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1. Introdução
1
V. Supra, Regimes Políticos em Aristóteles.
2
Política, IV, 1295a25 segs.
3
É o que se evidencia no seguinte passo de Tucídides a respeito do governo dos 5000 de Terâmenes: “E
foi pelo menos este o primeiro período da minha vida em que os Atenienses me pareceram terem
constituído uma boa governação. Foi com bom senso que se deu a junção entre os partidários da
oligarquia e da democracia”, cfr. História da Guerra do Peloponeso, tradução de Raul Rosado Fernandes
e M. Gabriela Granwehr, Lisboa: Gulbenkian, 2010, Livro VIII, XCVII.
concepções, o que sobretudo se impede num regime misto é que as mesmas vinguem de
um modo extremado. Tal por via da promoção da classe média, esta última sempre
interessada na estabilidade e cumprimento das leis e tendente a rejeitar ideários
extremados4.
Note-se que ao propor esta solução Aristóteles não está a propor uma estrutura
institucional mista em que diferentes elementos se digladiem entre si, garantindo certo
arranjo institucional que as paixões democráticas controlem as paixões oligárquicas e
vice-versa (ou que “o poder controle o poder”, na fórmula que seria usada
modernamente por Montesquieu).
De resto, a ideia de um arranjo institucional cujos diferentes elementos
reciprocamente se controlassem não faz qualquer sentido em Aristóteles. O que está em
causa no regime misto aristotélico não é subsistência de instituições oligárquicas e
democráticas que se controlam e limitam entre si. O que está em causa é, antes, a fusão
desses elementos em instituições moderadas às quais se encontrem subjacentes homens
também eles moderados – detentores de uma virtude acessível à generalidade, a qual
Aristóteles associa à classe média –, assim se prevenindo a degenerescência inerente à
democracia e à oligarquia.
Neste sentido, no âmbito de um ilustrativo confronto entre a concepção
aristotélica e a fórmula de regime misto posteriormente materializada na república
romana – esta sim, uma república de “freios e contrapesos”5 –, sintetiza Andrew Lintott
que “Aristóteles está sobretudo preocupado com o meio e a moderação como
características de uma comunidade (…). A sua prioridade é a subsistência na cidade de
homens moderados com a sua natural propensão para a virtude. (…) No que Aristóteles
sobretudo pensa é em fusão e não em balanço ou equilíbrio de forças”6.
7
V. Justiça e Natureza na República
8
Na interessante leitura de Judith Shklar, a intenção que perpassa na utopia platónica não é a de promover
uma alteração radical da ordem política, mas a de evidenciar do melhor modo possível – assim por
contraposição – a injustiça que se alojou na caverna. Há pois, em Platão, um sentido trágico e pessimista
da impossibilidade de reforma, que se ilustra precisamente no desenho de um ideal irrealizável, cfr.
“What’s the Use of Utopia?”, in Political Thought and Political Thinkers, ed. Stanley Hoffmann,
Chicago/Londres: Chicago University Press, 1998, p. 175-190. No mesmo sentido, cfr. Jeffrey Abramson,
Minerva’s Owl – The Tradition of Western Political Thought, Cambridge/Massachusetts: Harvard
University Press, 2009, p. 83.
9
Tenha-se em conta o seguinte passo, no qual o Ateniense enaltece as virtualidades de um regime
misto:“Bem! Existem, entre as diversas constituições, duas que tanto se assemelham a duas mães, que
poderíamos dizer – e, aliás, com toda a razão – terem elas gerado todas as outras, sendo absolutamente
legítimo que a uma demos o nome de “monarquia” e à outra o de “democracia”. A primeira atinge o seu
apogeu com os Persas, a segunda, com os Gregos (…); sendo todas as outras formas de Constituição –
repito-o – e sem qualquer excepção, variantes daquelas duas primeiras. (…) Bom! Em virtude de uma
delas ter preferido acolher o regime monárquico enquanto que a outra o da liberdade; ambas, no entanto,
fazendo-o de uma maneira demasiado exclusiva e até excessiva; não se verifica, por esse motivo, em
nenhuma delas aquela justa medida que resulta do equilíbrio entre aqueles dois elementos. Todavia, os
vossos países, Esparta e Creta, conseguiram alcançar precisamente isso, para sua grande vantagem.
Quanto a Atenas e à Pérsia, depois de terem noutros tempos quase alcançado essa finalidade, encontram-
se mais longe de a conseguir”, cfr. Leis, III, 693d. Socorremo-nos aqui da tradução de Carlos Humberto
Gomes, Lisboa: Edições 70, 2004.
10
Diz o Ateniense ser “necessário que estas duas formas elementares de constituição sejam devidamente
representadas na eventualidade de se desejar que a nossa própria sabedoria se situe numa coexistência de
espírito de união e de liberdade. Eis, pois, aquilo que a nossa argumentação visa reclamar,
ii) Em segundo lugar, o espírito de um regime, mesmo que salutar, quando
não temperado tenderá a degenerar (o espírito de união da monarquia
tende a degenerar em espírito tirânico e o espírito liberal da democracia
tende a degenerar em espírito de licenciosidade11). Em correspondência,
tendem a corromper-se aqueles regimes que obedeçam extremadamente a
um princípio ou espírito só e não a uma composição harmónica de
princípios12.
A proposta platónica de um regime misto, nos termos em que é feita nas Leis,
pretenderá indiciar que a moderação apenas se deixa pensar ao ter-se presente que a
prossecução intransigente de dado princípio, espírito ou ideal – ainda que salutar –
degenera necessariamente em corrupção. Haverá, pois, uma inexorável associação entre
o que é óptimo e o que é degenerado, a qual apenas pode ser quebrada por uma
moderação que mantenha presente a necessidade de compromisso.
Mais do que qualquer ideia primeira, é a ponderada e porventura tormentosa
consciência da realidade – do seu peso e da sua resistência – que induz as virtualidades
de um regime misto em Platão e Aristóteles.
particularmente quando se afirma nunca poder, em instância alguma, a cidade ser bem governada sem ter
partilhado estes géneros de regime”, cfr. Leis, III, 694e.
11
Cfr. Leis, III, em especial, 700a segs.
12
Afirma o Ateniense que “Quando tomámos os Persas como exemplo, com especial referência ao
despotismo, ou os Atenienses, naquilo que à liberdade concerne, verificámos que reinava no momento
apropriado, tanto num como no outro, uma prosperidade que na altura se revelava propícia. Todavia,
quando ambos os regimes foram levados até ao limite extremo – um, até à fronteira da escravidão
enquanto que o outro, na via absolutamente oposta – nunca mais coisa alguma pode ser alcançada nestes
dois regimes”, cfr. Leis, III, 701e.
conselho real ao Senado, tendo ainda sido estabelecidas assembleias populares com
competência para eleger magistrados e aprovar as leis por estes propostas13.
O arranjo resultante, ajustado ao longo dos séculos seguintes, foi assim descrito
por Políbio: “as três formas de governo anteriormente mencionadas encontravam-se
amalgamadas na Constituição romana, e os três elementos estavam articulados com
tanto acerto e equilíbrio, que ninguém, mesmo entre os romanos, podia dizer se se
tratava de uma aristocracia, da uma democracia ou de uma monarquia. Esta dificuldade
era, no entanto, muito natural. Examinados os poderes dos cônsules, dir-se-ia que era
um regime monárquico, uma realeza; julgado pelos poderes do Senado, era, pelo
contrário, uma aristocracia; e, enfim, se se considerassem os poderes do povo, parecia
claramente que era uma democracia”14.
Semelhante composição encontra um antecedente no regime espartano
(celebrado por muitos, incluindo Platão15). Mas se este último regime terá sido um
produto da engenhosa imaginação de Licurgo, pretende-se ter sido a república romana,
pelo contrário, um resultado da evolução natural dos acontecimentos, consubstanciando
pois um ajuste induzido pela detida atenção aos mesmos.
Assim segundo Políbio, em cujos termos “Licurgo, prevendo através de um
processo de raciocínio como e de que modo os acontecimentos naturalmente têm lugar,
engendrou a sua constituição não desafiado pela adversidade; já os romanos, ainda que
possam ter chegado ao mesmo resultado quanto ao seu regime, não o atingiram através
de um processo de raciocínio, antes tendo feito frente a muitas dificuldades e contendas,
escolhendo os melhores arranjos à luz da experiência ganha nos desastres”16/17.
13
Reproduz-se aqui aquele que é o entendimento corrente a respeito da fundação da república romana,
muito embora se deva alertar para o cepticismo dos historiadores a seu respeito. Para os mesmos, tal
descrição com os contornos de um drama trágico e apta a ilustrar um ponto filosofófico-político não pode
ser confirmada, cfr. Andrew Lintott, The Constitution of the Roman Republic, p. 27 segs.
14
Histórias, VI, 10. A tradução inglesa de W. R. Paton pode ser consultada aqui:
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Polybius.
15
Atente-se nas seguintes palavras do Ateniense: «Primeiro, um certo deus que era responsável por tomar
conta de vós [espartanos] e que, antecipando-se ao próprio futuro, ao fazer nascer dois gémeos reis, em
vez de um só, levou a autoridade a enquadrar-se dentro de limites mais justos. Depois, uma natureza
humana, a qual ainda se encontrava ligada à natureza divina, ao ver como a vossa realeza tanto insistia em
permanecer soberba – para além de juntar o poder decorrente do exercício da razão, tão típico da velhice,
àquela força arrogante, tão típica da sua própria raça – outorgou ao conselho dos vinte e oito anciãos, no
que diz respeito aos assuntos mais importantes, o mesmo poder de sufrágio que aquele outro, o qual
naturalmente emanava do poder real. Finalmente, vem o “terceiro salvador”, ele que observa esse poder
entre vós ainda inflamado e dominado pela ira, ele que impõe, à maneira de um freio, o poder dos éforos,
atribuindo igual poder ao lote. Graças a esta distribuição do poder, a realeza do vosso país – que é, afinal,
uma espécie de mistura proporcionada daqueles elementos fundamentais e por isso tão necessários – não
só conseguiu salvar-se a si mesma, como também foi, ela própria, a salvação de todos os outros», cfr.
Leis, III, 691c a 692a
16
Histórias, VI, 10.
Encarando assim a origem da república romana, Políbio classifica o
correspondente regime misto como “o melhor de entre todos”, pois o seu intrínseco
equilíbrio evita a corrupção das outras formas de governo. Mas importa frisar bem que
esse equilíbrio não é idêntico àquele que Aristóteles pensara, estando-se aqui perante
uma outra concepção de regime misto.
Com efeito, e como vimos, no Estagirita a característica essencial de um regime
misto encontrar-se-ia na fusão de distintos elementos – oligárquico e democrático – no
âmbito de instituições moderadas suportadas por homens também eles moderados. Já
em Políbio, os elementos que se balanceiam não se fundem, antes permanecem
articuladamente na república, sendo canalizados por instituições distintas (o elemento
monárquico surge corporizado nos cônsules, o elemento aristocrático é canalizado pelo
senado e o elemento democrático manifesta-se nas assembleias populares e seus
tribunos).
A virtualidade de um regime misto encontra-se então em preservar as virtudes
correspondentes aos diferentes elementos (a unidade quanto ao elemento monárquico,
os sentido de dever e prudência quanto ao elemento aristocrático, a liberdade quanto ao
elemento democrático), evitando a sua degenerescência (evitando a conversão do
espírito de unidade em espírito tirânico, do sentido de dever em sentido de privilégio, do
espírito liberal em espírito de licenciosidade). Mais: aquelas virtudes, canalizadas por
diferentes instituições, concorreriam entre si para a grandeza de Roma.
17
A ideia de uma evolução natural da Constituição relevante de se atingirem sucessivamente novas
soluções após a ocorrência de crises políticas, sugerida em Políbio, merece hoje a concordância de
Andrew Lintott, The Constitution of the Roman Republic, p. 38-39.
18
É muito curioso o facto de, em Políbio, a conversão da força bruta em razão implicar o
desenvolvimento de valores, o que se supõe resultar da observação e do interesse próprio. Na verdade, no
estádio primitivo, os maus comportamentos para com os outros começam a ser encarados com desprazer,
pois teme-se ser tratado do mesmo modo, começando a emergir uma ideia de justiça. Em correspondência
em tirania, a que, por seu turno, se sucede a aristocracia (em que o governo é confiado
aos poucos excelentes responsáveis pela expulsão ou morte do tirano). A sucessão de
gerações converte a aristocracia em oligarquia, pois o sentido aristocrático de dever dá
lugar a um injustificado sentido de privilégio e poder. A expulsão ou morte dos
oligarcas permite a democracia (governo obediente aos deuses e às leis), mas a sua
duração é limitada, pois desaparecendo os referentes e exemplos que moderariam
tendências primárias, tornam-se inevitáveis a luta irrestrita pelo poder, o domínio dos
demagogos e a licenciosidade. Cai-se então novamente no caos, reiniciando-se
subsequentemente o ciclo.
Se Políbio desenha esta teoria cíclica, a sua defesa de um regime misto traz
paradoxalmente implicada a ideia de que um engenho humano bem ciente da
“experiência ganha nos desastres” é capaz de quebrar o ciclo. A grandeza da república
romana encontrar-se-ia precisamente aí, correspondendo essa pois a uma espécie de
superação da história. Note-se, no entanto, que Políbio não declara a este respeito um
qualquer “fim da história”: nele não se encontra aquele triunfalismo inimigo de qualquer
moderação a que muitos viriam a ceder quando, noutros momentos, combinaram
também a teoria dos regimes políticos com a teoria da história. Assim, mesmo Roma
poderia degenerar, caindo-se novamente no ciclo19.
5.1. Tal como sucede em Políbio, é a república romana que constitui o ponto de
partida de Cícero. Mas se Políbio encarara o seu auge, a base da visão política de Cícero
é o estertor da república. Com efeito, a reflexão de Cícero surge em momento de
degenerescência das instituições romanas. Estas tornavam-se cada vez mais permeáveis
a uma imoderação evidenciada em repetidos episódios de violência política,
acompanhados pela ascensão do poder pessoal, este último culminante na afirmação
irrestrita de Júlio César.
começa a surgir uma ideia de honra ligada a bons comportamentos e de desonra ligada a maus
comportamentos. Quando o monarca comanda de acordo com os valores assim emergentes, a obediência
passa a decorrer de um sentido de dever, a força dá lugar à razão, o monarca torna-se rei. A este respeito,
v. Brian C. McGing, Polybius’ Histories, Oxford: Oxford University Press, 2010, loc. 2103 segs. (edição
kindle).
19
É o que se infere do passo em que o regime romano é comparado com o regime cartaginês: este teria
sido também excelente, mas a certo momento o povo teria ganho “influência preeminente nas
deliberações”, destruindo-se aquele equilíbrio que apenas poderia permanecer em Roma enquanto a
posição do Senado continuasse a ser respeitada, cfr. Histórias, VI, 51.6-8.
Assim, o que se demonstra nos últimos anos da república é que o arranjo
institucional correspondente, por mais perfeito que fosse, não podia subsistir se não se
lhe encontrasse subjacente virtude, entendida esta, não como piedade, mas como
“romanidade”, viril espírito cívico: um espírito imbuído de amor pela república, pela
sua história cívica e militar, pelas suas instituições, costumes e leis. Segundo Cícero, a
república estaria irremediavelmente condenada no momento em que tal espírito desse
lugar às nuas paixões pelo poder e pela riqueza a que se entregava no seu tempo.
Com vista a demonstrá-lo, Cícero socorre-se da história. Com efeito, a
reconstrução da história de Roma que é feita no Tratado da República – uma
reconstrução destinada “a definir, com pessoas e tempos ilustres, exemplos de
personalidades e de factos”20 – tem precisamente como mote a ideia de que tudo estaria
perdido na ausência dos “costumes pátrios” e “varões excelentes” em que outrora a
república havia assente: “Nos costumes antigos se firma o Estado romano e em seus
varões”21.
Caso paixões afrontosas de tais costumes fossem deixadas à solta, a imoderação
tornar-se-ia inevitável por mais perfeito que fosse o sistema institucional: “as paixões,
funestas dominadoras (…) exigem e ordenam coisas sem limite e, ao não poderem de
modo algum ser satisfeitas ou saciadas, impelem para toda a espécie de crimes a quem
incendiaram com as suas seduções”22.
A insistência de Cícero na virtude de governantes e governados não o leva, note-
se, a desmerecer as instituições romanas. Não se trata de contrapor ao regime misto de
Roma uma visão monárquica, tendo-se bem presente a imprescindibilidade de
conciliação entre unidade e liberdade23. Do que se trata é, perante a evidência de que a
república não podia subsistir sem virtude, reflectir sobre aqueles elementos capazes de
promover ou instilar tal virtude.
20
De Republica, 2.55. Socorremo-nos da tradução de Francisco de Oliveira, Lisboa: Temas e Debates,
2008.
21
Idem, em particular, 5.1. seg.
22
Idem, 6.1.
23
Afirma-se que ao povo submetido a um rei “falta em absoluto muitas coisas, e antes de mais a
liberdade”. E sugere-se noutro ponto ser a integral heteronomia algo indesejável, mesmo que o senhorio
seja justo, pois tem a virtualidade de impedir o espírito público, cfr. Idem 2.43 e 3.37. Deste modo, não se
preconiza a monarquia ou realeza: apenas se admite que essa seria a melhor opção de entre os regimes
simples, sem prejuízo de um regime misto sempre ser preferível. Atente-se na seguinte fala de Cipião: de
um “desses três tipos (…) separadamente, por si mesmo, não recomendo nenhum deles. A cada um
anteponho um outro que seja a fusão de todos eles. Mas se tivesse de dar a minha recomendação a um só,
e simples, recomendaria o régio”, cfr. 1.54.
Um dos elementos promotores de virtude encontrar-se-ia na própria permanência
do regime misto, pois as respectivas instituições abririam caminho à participação de
todos os estratos sociais na coisa pública e à concomitante preservação do espírito
público – algo, por seu turno, com a virtualidade de colocar todos os elementos, com as
virtudes que lhes são próprias, na busca de soluções equilibradas e estáveis24.
Um outro elemento instilador de virtude residiria na existência de figuras
referenciais. No Tratado da República, Cícero, inspirando-se em Platão, propõe mesmo
a figura de um “moderador do Estado” ou “regedor da pátria”25, figura referencial,
colocada acima do jogo próprio de um regime misto, cuja qualidade maior se
encontraria em ser “profundamente conhecedor do direito supremo, sem o qual ninguém
consegue ser justo”26, com a capacidade de mobilizar a opinião pública no sentido
aprovador da virtude e reprovador do vício27.
24
Veja-se a este respeito a introdução de Francisco de Oliveira à edição consultada do Tratado da
República, p. 27 e 42. Nas palavras do Autor “Esta constituição mista – cuja superioridade é louvada por
Cícero – poderá garantir a estabilidade, ideia expressa pelos termos aequabilis, aequabilitas, firmus,
firmitudo, immutabilis, icommutabilis, stabilis, stare. Essa estabilidade baseia-se no facto de a
constituição mista não ser uma simples constituição tripla (2.42), mas um equilíbrio, um balanço (2.57:
compensatio), uma ponderada fusão das três constituições simples não defeituosas: o amor paternal e o
poder inerente à figura do rei ou dos magistrados; a capacidade de sábio conselho próprio dos melhores, a
liberdade implícita na democracia (2.51)”.
25
De Republica, 1.45, 2.45, 2.67, 2.69, 5.2. segs. e 6.1 segs.
26
De Republica, 5.5.
27
Sugere Freitas do Amaral ser este “regedor da Pátria” um “líder”, um “homem de Estado que governe o
país” que em Roma seria o cônsul, cfr. História do Pensamento Político Ocidental, Coimbra: Almedina,
2011, p. 68. Discordamos desta leitura, sendo a mesma inteiramente anémica à aversão pelo poder pessoal
por Cícero. Na verdade, o que nos parece estar em causa no “moderador do Estado” é uma referência
moral e não o efectivo exercício do governo do país.
28
Diz Filo que “todos os que têm poder de vida e de morte sobre o povo, são tiranos, mas preferem ser
chamados reis, com o nome de Júpiter Óptimo. Porém, quando, pelas suas riquezas, raça ou outros
recursos, um certo número de homens governa o Estado, trata-se de uma facção, mas eles chamam-se
optimates ‘aristocratas’. Se é o povo que tem a maioria do poder e tudo é gerido de acordo com as suas
decisões, isso diz-se liberdade, mas é liberdade excessiva. Porém, quando cada um teme o outro, um
homem teme o seu igual e uma ordem social teme outra ordem social, então, por ninguém se sentir
Ora, a essa concepção responde Cipião, veiculando a posição de Cícero, dizendo
que um regime desses não constitui uma república no sentido próprio, pois não lhe
corresponde um espírito preso à coisa pública e um consenso jurídico fundamental ou
consenso sobre o sentido de justiça. Ora, na falta de tal consenso, as instituições
tenderiam a agir desarmonicamente – contra a própria utilidade de todos – havendo um
paralelo entre esse arranjo e uma orquestra em que cada músico toca para seu lado29.
Deste modo a virtualidade de um regime misto não seria a de garantir a
moderação perante homens imoderados, corrompidos pelas paixões. A virtualidade de
um regime misto antes seria a de promover a concórdia entre diferentes elementos30,
sendo que tal apenas seria possível quando não se encontrem ausentes as virtudes
próprias de cada um (a unidade quanto ao elemento régio, a prudência quanto ao
elemento aristocrático, a moderada liberdade quanto ao elemento popular) e todos
partilhassem do mesmo espírito público e do mesmo consenso fundamental sobre a
justiça.
confiante por si só, estabelece-se um pacto entre o povo e os poderosos. Daí resulta aquilo que Cipião
louvava, um tipo harmónico de Constituição. Efectivamente, nem a natureza nem a vontade são a mãe da
justiça, mas a fraqueza”, cfr. De Republica, 3.23.
29
Idem, 2.69 e 3.43 segs.
30
O que está em causa é a “consonância afinada e congruente através da moderação de vozes muito
diferentes (…). Entrecruzando as ordens sociais mais altas com as mais baixas e com as médias, como se
fossem sons, numa mistura racional, uma cidade canta a uma só voz, com o consenso dos mais diferentes
elementos. E o que pelos músicos é chamado harmonia no canto, isso numa cidade é concórdia, o mais
apertado e o maior vínculo de incolumidade em qualquer Estado”, De Republica, 2.69.
31
De Officis, I.26. Socorremo-nos da tradução de Carlos Humberto Gomes, Lisboa: Edições 70, 2000.
costumes da cidade”, sem prejuízo daquelas que se enraízem na qualidade de cada um
como ser humano sujeito à lei natural ou direito supremo32.
Poder-se-á dizer, então, que no Tratado dos Deveres, Cícero explora a ideia de
institucionalização – como assim hoje a designamos – como chave da moderação da
república.
Do exposto decorre que o regime misto não foi encarado pelos Antigos como um
mero arranjo institucional apto a salvaguardar o bom governo ou o governo moderado
independentemente da existência de moderação ou virtude ao nível individual. Pelo
contrário: a virtualidade de um regime misto na acepção aristotélica encontra-se em
tratar-se de um regime assente numa virtude moderada, assim acessível à generalidade.
Já um regime misto na acepção romana encontraria a sua virtualidade em preservar o
espírito público de todos, conservando articuladamente as virtudes (monárquica,
aristocrática e democrática) inerentes a cada elemento e evitando a prevalência das
paixões contrárias (tirânica, oligárquica ou demagógica).
A ideia de um arranjo institucional misto cujos “freios e contrapesos”
dispensassem a moderação ou virtude individual, garantindo em si e por si o governo
moderado ou o bom governo – assim em razão de as paixões frearem as paixões, o
poder controlar o poder – corresponde a uma outra ideia de regime misto, estranha aos
Antigos, que se exponencia em Montesquieu.
Com efeito, evidencia-se neste último a ideia de um governo moderado ao qual
subjazem homens imoderados. Nestes termos, a limitação do poder político não
dependerá da virtude dos homens, do controlo ou ausência de paixões: num momento
em que tal controlo ou ausência é declarado como impossível ou mesmo tido como
indesejável (pois assim, segundo os mais característicos filósofos modernos, os homens
estariam a ser transformados naquilo que não seriam, apartando-se da sua “base”), a
limitação do poder apenas poderá resultar de paixões refrearem paixões.
Assim, a virtualidade de um regime misto encontrar-se-á precisamente em,
mediante dado arranjo institucional, paixões contraditórias serem canalizadas e
32
Cfr. Melissa Lane, "Ancient Political Philosophy", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall
2011 Edition), ed. Edward N. Zalta, (http://plato.stanford.edu/archives/fall2011/entries/ancient-political/).
colocadas em confronto, freando-se as correspondentes “empresas”33, tudo resultando
na limitação do poder. Delineia-se pois, na esclarecedora síntese de Miguel Morgado,
“uma ligação robusta entre a lição da filosofia moderna relativamente à economia das
paixões da alma e a limitação do poder político”34.
Montesquieu terá estado bem ciente que a sua elaboração de um regime misto,
correspondente à Constituição inglesa na sequência da Revolução Gloriosa, se
distinguia de elaborações antigas, moldadas a partir da república romana. É
precisamente nessa razão que evita qualquer paralelo entre uma e outra – um paralelo
corrente entre os seus contemporâneos35 - sugerindo uma marcada originalidade
histórica do regime inglês.
33
Do Espírito das Leis, Livro XI, Cap. VI.
34
Formulação de Miguel Morgado, Introdução a Do Espírito das Leis, Lisboa: Edições 70, 2011, p. 9-
113, p. 84.
35
Tenha-se em conta o seguinte texto escrito por Joseph Addison em 1712: “I could never read a passage
in Polybius, and another in Cicero, to this purpose, without a secret pleasure in applying it to the English
constitution, which it suits much better than the Roman. But these Authors give pre-eminence to mixed
government, consisting of three branches, the Regal, the Noble and the Popular”, citado em McGing,
Polybus’ Histories, loc. 3632.