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As palavras que se seguirão não têm outra pretensão que a de lembrar um aspecto do
caminho que muitas vezes é esquecido, tratando-se, no entanto, de um aspecto de grande
importância: o estado de perplexidade, quer apareça sob a forma de temor, quer apareça
sob a forma de deslumbramento – temor que é a forma negativa da perplexidade;
deslumbramento que é a sua forma positiva. Este tema ocorreu-me ao ler uma passagem
de um livro de Martin Lings (What is Sufism?), em que o autor refere quatro momentos do
caminho por analogia com o crescimento de uma planta:
a) semente (doutrina)
b) caule (compreensão)
c) botão (perplexidade)
d) flor (iluminação)
Vamos, então, procurar desenvolver um pouco este esquema apenas com o intuito
modesto, já referido, de destacar a importância da terceira “etapa”: a perplexidade.
Coloquei a palavra “etapa” entre aspas, porque não se trata de etapas cronológicas ou de
uma sequência; trata-se de quatro momentos complexos que muitas vezes são
concomitantes, outras se sucedem, outras se interpenetram.
A doutrina é como uma semente, na medida em que é uma potência, um saber potencial
que a alma deve assimilar ou, antes, que a alma deve, estudando-a, despertar ou acordar
em si, recordando-a (“recordar” é “acordar” de novo e estes dois actos ligam-se ao
“coração” ou ao verdadeiro “saber de cor”, o “decorar”). A doutrina de que se trata aqui
não é, pois, o saber erudito, mas antes o saber que a alma traz no fundo de si em estado de
dormência, em estado de esquecimento. O estudo da doutrina vai levando ao despertar
desse saber adormecido, que assim passa gradualmente da potência da semente ao acto do
caule ou da nebulosa reminiscência à presentificação da “memória”.
Seguindo esta bela e fecunda metáfora, logo somos levados a pensar na parábola do
semeador. Há terreno e terreno, há almas e almas ou diferentes ‘substâncias’ psíquicas
onde cai a semente da doutrina; e também há tempos e tempos, quer dizer, uma alma pode
ter recebido a semente numa altura em que, por falta de água ou calor, ela não frutificou;
mas tempos depois essa semente, já com outras condições, caída nessa mesma alma, pode
frutificar, como as sementes no túmulo do Faraó séculos e séculos depois.
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pela descoberta dos símbolos, inicia o seu trajecto vertical, num processo verdadeiramente
entusiasmante.
É, porém, quando a alma julgava ter compreendido (quer dizer, “abarcado” ou “agarrado”)
a doutrina que lhe acontece defrontar-se com os aspectos doutrinais mais paradoxais; até
ali, ela ascendia, alegre, levada pelo entusiasmo da compreensão doutrinal e eis que, de
repente, hesita, duvida, não compreende, recua, fecha-se sobre si mesma. É que a
doutrina implica no seu seio mais íntimo ou, o que é o mesmo, no seu ponto mais alto, a
passagem da imanência à transcendência, da criatura ao Criador ou
do saber ao sabor(dhawq) e, no entanto, o “pensamento só serve em relação às coisas
criadas, [pois] quando o Gnóstico se direcciona no sentido do Criador, então o seu
pensamento transforma-se em deslumbramento. Assim, o deslumbramento é o fruto do
pensamento (…)”, é o que diz o shaykh al-‘Alawī.
A alma terá de vencer aqui uma prova tremenda; o que lhe é pedido é que morra para si
mesma e para o que julgava saber, que veja a doutrina como upaya. É como se a alma se
visse subitamente num lugar outro, como que no meio de um oceano ou como se o caminho
em que seguia tivesse desembocado num abismo; o caule, quanto mais cresce, mais se
afasta da terra, lá no cimo, a alma vê-se como que “no céu”, no entanto, se não tiver
firmes raízes no húmus da razão e da religião, provavelmente tombará ao primeiro sopro do
espírito, pois o espírito sopra onde quer, ninguém sabe de onde ele vem nem para onde ele
vai. E ali, no cimo, os ventos sopram e, muitas vezes, em sentido contrário um ao outro. A
alma terá de fazer esta operação extrema: sair de si, colocar-se numa circunferência
exterior, no lugar de onde os ventos sopram, em vez de se deixar estar no centro do seu
“eu” que sofre com os ventos contrários ou que fica perplexo a pensar de que modo pode
a mesma doutrina conter em si isto e o seu contrário. Assim, como perante um koan zen, a
alma terá de saltar acima de si mesma, colocando-se, pois, fora de si, na raiz da sua
ipseidade, a que muitos chamam o “Si-mesmo” ou Ele; a raiz da sua ipseidade está no céu,
por isso, a planta, aqui chegada, percebe que a sua raiz verdadeira é celeste; a alma deixa
de ver em espelho, como diz São Paulo.
É, pois, ali que nasce o botão, depois da verticalidade ascensional, como uma aparente
(mas apenas exteriormente) estagnação. Confrontada com o Real (al-Haqq), assusta-se,
percebe que, afinal, não sabe. Percebe que o seu “saber” não é nada face ao Criador. Da
imanência pressente o abismo da transcendência e tem medo. Mas o medo é o princípio da
sabedoria; ela foge da causa do medo, em primeiro lugar, e isso leva-a a fechar-se, como o
botão da flor. Como botão, ali, suspensa no céu, a alma sabe que já não há retorno, tem
vertigens. Esta vertigem acontece ou pode acontecer por dois motivos: um é a vertigem da
razão perante os primeiros fulgores intuitivos do Intelecto (vai com maiúscula, para que
não se confunda com o que vulgarmente se designa por inteligência); fulgores que,
resplandecendo, como que a cegam. Outro motivo é o espanto perante a existência do
mundo criado; a impressão tremenda da infinitude. A infinitude da verdade do Intelecto e a
infinitude na existência da criação. São os “sinais de Deus”, como lhes chama
o Alcorão: ayat’Allāh ou sinais de Deus, os sinais na alma e os sinais no horizonte, como se
diz numa surata. Os sinais dentro (batin) e os sinais fora (zahir). Um filósofo português,
Sampaio Bruno, chamava às verdades do Intelecto, as verdades “acima da razão”, pois o
Intelecto supera a razão. Ela segue sendo necessária para a exposição doutrinal, e, por
assim dizer, não perderá a sua razão de ser, porque ela é um elemento protector da alma
humana; é comparável a um muro que a protege, mas se a protege, também a cerca e, por
isso, para quem subiu um pouco acima dela, tem de dar o salto para lá do muro ou apenas
contemplar de dentro do muro o exterior imenso. Assim, um dia, alguém olhando um pôr-
do-sol, aquilo que viu, fora das categorias habituais, foi como uma misteriosa fogueira que
vogasse no ar. Não era o sol, era algo misterioso, tremendo, directo, fulgurante e
desconhecido. Exige-se que a capa do hábito, dos hábitos, caia e que se tome algo
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O encontro com o Mestre dá-se, para as almas maduras, nesta fase da perplexidade.
Depois de se ter fechado, a alma começa idealmente um processo de abertura para cima,
quer dizer, depois da reacção ao medo e à vertigem por fuga (e não tendo para onde fugir,
ela busca inicialmente refúgio em si mesma), acaba por se abrir confiante ao Criador;
entrega-se-lhe, como que dizendo “eu não sei, mas Tu sabes” e suplica, abrindo-se aos
raios da Sua Luz: “Ilumina-me, Senhor, pois só pela Tua Luz posso ver.” Abrindo-se, pois,
para cima, ela é já à imagem do Criador, como diz um amigo meu (António Telmo): “As
flores imitam o sol”. O homem é à imagem de Deus; a flor é à imagem do sol. Fitra ou o
reencontro com a natureza primordial do homem, com a inocência virginal – a alma pode
reencontrar a sua imagem, que é o modo como o Criador se teofaniza nela. Para isso, ela
terá de ser o mais moldável possível, como a matéria-prima em estado puro ou o barro
pronto nas mãos do oleiro celeste. É este um dos mais fundos sentidos da submissão(islām),
comparável à ideia de tao no Oriente ou ao fiat voluntas Tua, no Pater; porque a Sua
vontade, na verdade, quer dizer, na eternidade, já está feita.
A perplexidade assume, pois, um aspecto operativo, por assim dizer, de primeira instância;
como diz Martin Lings, a perplexidade “é um modo de faqr” (pobreza espiritual; como no
sermão da montanha: “bem-ditos os pobres de espírito”) ou é “a necessidade imperativa de
iluminação” ou ainda, poder-se-ia dizer, o bater à porta ou o pedir. Só bate ou pede aquele
que necessita e um pobre é, como dizemos em português, um necessitado.
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