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O presente artigo realiza uma pesquisa de natureza bibliográfica, visando identificar, nos
estudos de Vigotski (1999, 2001), contribuições de sua obra para o domínio da imaginação
criativa e o exercício da experiência afetiva nas práticas de ensino da produção e de recepção
de texto literário no ensino fundamental. Demonstramos que os estudos realizados por esse
pensador russo são de extrema relevância para compreender o processo criativo com textos
ficcionais, considerando a relação autor-obra-leitor na construção de efeito de sentido. Para
descrever esse processo, destacamos as categorias conceituais elaboradas pelo autor sobre o
desenvolvimento da imaginação criativa; bem como o papel da mediação e das experiências
acumuladas na elaboração de atividades discursivas criativas.
Palavras-chave: criatividade, sociointeracionismo, produção de texto.
This article presents a research of bibliographic nature aiming to identify, in the studies of
Vigotski (1999, 2001), the contributions of his work to the domain of the creative imagination
and the exercise of the affective experience in the teaching practices of text production and
text reception of literary texts in elementary school. We showed that the studies carried out by
this Russian thinker are extremely relevant for understanding the creative process with fictional
texts, considering the relation author-work-reader in the construction of a sense effect. To
describe this process, we highlighted the conceptual categories elaborated by the author on
the development of the creative imagination; as well as the role of mediation and of the
accumulated experiences in the elaboration of creative discursive activities.
1
Professor associado do Departamento de Educação da Universidade Federal de Sergipe,
campus Itabaiana. Professor do mestrado PROFLETRAS-UFS. Doutor em Estudos Linguísticos
pela UFF. Líder do grupo de pesquisa GEADAS (Grupo de Estudos Alfabetização, Discurso e
Aprendizagens).
Keywords: creativity, socio-interactionism, text production
Outro elemento que reforça a relação de Vigotski com o teatro foi sua
constante presença, durante a juventude, nos espetáculos teatrais de
Gomel e Moscou, acompanhando de perto a importante revolução
dramática que se desenvolvia nos palcos russos com Stanislavski
(1863-1938) e seus sucessores, principalmente Meyerhold (1874-1940)
e Vaghtangov (1883-1922). Em Moscou, era assíduo espectador das
famosas e polêmicas encenações do Teatro de Arte de Moscou (TAM),
que o influenciaram muito, ensinando-lhe coisas sobre o mundo e
provocando diversas reflexões acerca da vida, da arte e de si mesmo
(Levitin, 1982, p. 23). (BARROS; CAMARGO, 2011, p. 232)
Por meio das pesquisas sobre a relação da Psicologia e da Arte, Vigotski (1999)
buscou compreender os processos psicológicos superiores (memória, percepção,
imaginação, sentimentos) que envolvem o fenômeno da criatividade, estabelecendo
críticas às práticas escolares que buscam formas padronizadas para se exprimir. Tais
reflexões apontam para um exame crítico do ensino da língua materna que explora os
conteúdos de ensino de uma forma mecânica e abstrata, não promovendo o
desenvolvimento de capacidades para agir em situações concretas de interação verbal.
O processo de inibição a criatividade começa muito cedo, quando a escola induz a
produção escrita com base nos pseudotextos encontrados nas cartilhas.
Figura 1: redação do aluno Fábio em uma classe de alfabetização
Fonte do autor
Era uma vez uma galinha branca que punha ovos azuis...
- Ovos azuis? - reclamou a professora, indignada,
interrompendo a leitura da minha redação, enquanto a turma se
agitava em risinhos de troça e segredinhos maliciosos.
- Era uma vez uma galinha branca que punha ovos brancos, só
porque não a deixavam pôr ovos azuis...
Tolstói defendia, ainda, uma visão de arte que não se restringisse a parâmetros
ditados pela classe privilegiada, focada no puro prazer, descompromissada com as
questões éticas e sociais. Esse intelectual estabelece critérios para distinguir a boa e a
falsa arte a partir da observação do “contágio emocional artístico”. Para identificar a
arte contagiante, era necessário que a obra despertasse emoções particulares, como
alegria, promovendo sentimento de comunhão do autor com outros homens
envolvidos em sua recepção. O grau de intensidade dessa relação é responsável pela
definição de produção da arte verdadeira. Sendo assim, ele vê o artista como alguém
ligado a realidade cotidiana que produz um objeto artístico que cumpra a função moral.
Dessa forma, Tostói idealiza uma visão de arte que apresente uma visão utilitária,
assumindo um efeito único aos diferentes apreciadores de um objeto artístico.
Para Vigotski (1998), as reações físicas e afetivas provocadas pelas artes ocasionam
sentimentos que mobilizam a criatividade de forma singular em cada indivíduo. Elas
envolvem a atividade psíquica de descarga de sentimentos opostos, sendo reconhecidos
como catarse, ou seja, uma reação estética que gera a transmutação de sentimentos.
Diferente de Aristóteles (384 a. C. a 322 a. C.), difusor da noção de catarse com
experiência emocional vivida pelo espectador no teatro, onde o receptor expurga seus
sentimentos reprimidos por meio de um processo de identificação com um
personagem trágico, gerando, assim, o sentimento de temor e piedade; Vigotski,
observa que a catarse não se limita a expurgar sentimentos, mas também realiza a
transformação de sentimentos no ser humano. Por meio da exposição de sentimentos
contraditórios, vivenciados pelo espectador, em uma situação de apreciação estética,
o sujeito reelabora tais sensações vinculadas a suas experiências, promovendo a
compreensão de si.
O pesquisador observa que toda atividade criadora está direta ou indiretamente
ligada às experiências acumuladas nos processos de interação estabelecidas pelo ser
humano com o seu tempo na esfera da imaginação e da fantasia. As lendas, os mitos e
as manifestações culturais com as quais os sujeitos interagiram vão povoando o
universo imaginário, servindo de lastro para produção de narrativas.
Se a escola ampliar a leitura dos alunos, estabelecendo momentos de
apreciação sobre a relação conteúdo e a forma material de textos (oral, imagético ou
verbal), apontando para as diferentes perspectivas de ver um objeto, bem como
proporcionar experiências para apropriação de recursos estéticos expressivos, é
possível expandir o universo de criação e a redimensionamento do próprio sujeito. O
acúmulo de experiência estética a partir de vivências favorece o desenvolvimento da
capacidade expressiva, fornecendo, assim, base para a construção de elaborações
combinatórias, analógicas e metafóricas sobre novas construções artísticas. Neste
sentido, a escola pode atuar sobre o desenvolvimento de uma postura criativa voltada
para os conteúdos da produção de textos ficcionais. A qualidade de textos que
professor oferece nas aulas e a realização de atividades reflexivas sobre a linguagem
atuam, diretamente, sobre o desenvolvimento da criatividade.
As atividades propostas por Rodari (1982) apontam para uma das facetas do
processo criativo que diz respeito à liberação da imaginação criativa. Para desenvolver
a compreensão desse processo, Vigotski (2009) reconhece que o mecanismo da
imaginação criativa estabelece uma forma de organização complexa, pois se constitui
por um processo de associação e dissociação com base em impressões que leva a
resultados surpreendentes. Para construir uma base criativa é preciso reunir diferentes
elementos, rompendo com uma relação natural percebida. A título de exemplo,
Vigotski (1998) menciona o processo de criação da personagem Natacha do romance
Guerra e Paz de Tostói. O romancista, no processo de construção da personagem,
observou traços de duas mulheres de sua intimidade, aglutinando tais características
para construir a personalidade de Natacha. A escolha de cada traço e a rejeição de
outros atributos, provocou, segundo Vigotski, a operação que denomina dissociação.
“Esse processo é de extrema importância em todo o desenvolvimento mental humano;
ele está na base do pensamento abstrato, da formação de conceitos. (VIGOTSKI, 2009,
p.36)
Observa-se o exagero do tamanho do copo de cerveja do rei que mede 2,3 metros de
altura contribui para a construção de um universo fantástico. A presença do universo
maravilhoso, redimensionado pela fantasia, não tem a preocupação com a verossimilhança.
Nele o filtro da criatividade amplia as possibilidades de sentido dentro do universo ficcional
nutrido pela fantasia e a imaginação. Diante dessa construção, antropomorfizar e animar
animais e objetos constitui um processo de construção de realidade simbólica.
Outra experiência similar pode ser observada por Carvalho (2016) a partir da reescrita
do conto “Maria Angula” feita por uma aluna do 5º ano do ensino fundamental em uma escola
pública do estado de Sergipe. Na narrativa, a personagem Maria Angula, uma moça fofoqueira
e recém-casada, sempre pede orientação a vizinha Mercedes para cozinhar pratos deliciosos
para o seu marido. Ao final de cada receita, a moça sempre dizia que a receita já era conhecida
por ela. Até que um dia, a Dona Mercedes dá uma receita errada que precisa usar tripa de
defunto. Maria Angula vai ao cemitério e rouba as tripas de um defunto, faz um jantar delicioso
para o seu marido. Durante a noite, o defunto bate à porta de Maria Angula e leva a moça que
desaparece para sempre. O professor da turma convidou os alunos a criarem um novo final para
para a história de Maria Angula, propondo um novo desfecho. Carvalho (2016, p.12) apresenta
o texto de Cristiano que reiventa a história da seguinte forma.
E na casa de Maria Angula, o defunto não deixava ela em paz um dia. Ela distraída, o
defunto pegou ela e levou para o cemitério. E quando chegou lá, ele levou ela para
um lugar muito escuro e cheio de teia de aranha. E disse:
- Maria Angula cadê minhas tripas?
- O meu senhor defunto, minha visinha pegou e jogou no rio. Ela mora lá perto da
minha casa.
- Eu vou perguntar em que rio ela jogou, vamos Maria Angula. Você vai com migo.
- Bota essa roupa para desfaçar e vamos embora.
E assim eles foram.
- Maria Angula, como é o nome dela?
- É Mercedes.
E o defunto bateu na porta e disse:
- É você que é Mercedes?
- Sim, sou eu.
- A senhora sabe naonde é o rio das tripas?
- Sim eu sei, fica próximo ao tanque.
E assim, o defunto foi correndo com Maria Angula. E quando chegou lá o defunto
olhou, olhou...e disse:
- Tem certeza que e aqui que tá minhas tripas?
- E Maria Angula disse:
- Vai lá vê... e empurrou o defunto, e ele se afogou, e Maria Angula viveu feliz.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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