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de sentido variadas, tanto entre hipônimos quanto entre hi-

perônimos, entre as quais se destacam a sinonímia e a anto-


Disciplina: Redação [Curso Extensivo Pré-vestibular] nímia.
Responsável: Prof. Adriano Tarra Betassa Tovani Cardeal
Sinonímia
AULA 05 | Semântica da sinonímia e da antonímia.
A relação de sobreposição de espectros semânticos
TEXTO TEORÉTICO XI resulta, sobretudo, na relação de sinonímia. Para o senso
comum, chamam-se sinônimas duas ou mais formas da lín-
Relações entre significados gua que codificam a mesma informação, como os verbos
“esconder” e “ocultar” em: “Ele escondia sua verdadeira i-
A percepção humana está especialmente estruturada dentidade” e “Ele ocultava sua verdadeira identidade”. Os
para o registro de diferenças e de semelhanças. Não se trata semanticistas costumam enfatizar que, por mais que a troca
de aspectos antagônicos da realidade, mas de aspectos asso- de uma palavra por outra mantenha inalterada a informação,
ciáveis e interdependentes. O que nos leva em uma direção é inadmissível a existência de sinônimos perfeitos. Sempre
ou em outra é o foco escolhido, o dado relevante no contexto haverá entre os sinônimos algum traço que os diferencie e
comunicativo: pode-se dar maior importância ao que distin- impeça que um ocupe o lugar do outro em todas as ocorrên-
gue e separa dois objetos ou ao que os aproxima e asseme- cias de ambos. A esse respeito, é interessante a seguinte re-
lha. flexão de Rubem Alves: “Quem fala ‘retrato’ já confessou
O espaço do texto é uma espécie de arena onde as a idade. É velho. Hoje se diz ‘foto’. Segundo o Aurélio, as
palavras disputam a preferência do enunciador, a quem ofe- duas palavras são sinônimas. Não são. Os dicionários fre-
recem os respectivos espectros semânticos, internamente a- quentemente se enganam. ‘Retrato’ e ‘foto’ são habitantes
nalisáveis em traços básicos de sentido. Um martelo e um de mundos que não se tocam”.
serrote diferem quanto à função (fixar versus cortar), mas se De fato, o que garante a sobrevivência dos sinônimos
assemelham pela classe: ambos são ferramentas de carpinta- na língua é justamente a possibilidade de exprimirem conte-
ria. “Martelo” e “serrote” lexicalizam a diferença, enquanto údos diferentes, por mais sutil que seja essa diferença. A si-
“ferramenta” lexicaliza a semelhança. “Caminhar” e “pas- nonímia é, portanto, um fenômeno que deve ser descrito,
sear” podem servir para denotar o mesmo movimento de lo- preferencialmente, em função da variação linguística. Mui-
comoção (andar), mas “passear”, diferentemente de “cami- tos sinônimos são variantes regionais, outros são variantes
nhar”, acrescenta ao referido ato de locomoção a ideia de etárias. Distinguiremos quatro subtipos de sinônimos: a) va-
um ato de lazer. “Caminhar” e “passear” lexicalizam a dife- riantes regionais ou geográficas; b) variantes estilísticas ou
rença entre modos ou finalidades de “andar”; este, com seu discursivas; c) variantes psicológicas ou expressivas; d) va-
sentido mais genérico, lexicaliza o que há de comum aos ou- riantes etárias ou históricas.
tros dois.
Variantes regionais ou geográficas
O geral e o específico
Trata-se de sinônimos usados em diferentes áreas ge-
Quando ignoramos o traço que distingue, semantica- ográficas. Os vocábulos “apressado” e “vexado” (estúltimo
mente, dois significados, nossa opção é unificá-los sob uma comum no Nordeste) ilustram bem essa variação, conside-
designação abrangente. Assim é que, aos atos de “cami- rando-se para “vexado” o sentido de “apressado”, e não o
nhar” e “passear” chamamos, genericamente, “andar”, e aos de “envergonhado”, que, por vezes, apresenta. Situação se-
objetos conhecidos como “martelo” e “serrote” chamamos, melhante ocorre com relação aos vocábulos “bala”, “bom-
genericamente, “ferramenta”. Logo, “ferramenta” e “andar” bom” e “chocolate”. No Centro-Sul, o vocábulo “bala” de-
são termos gerais, enquanto “martelo”, “serrote”, “passear” signa “pequena guloseima de açúcar em ponto vítreo, a que
e “caminhar” são termos específicos. O significado de “fer- se acrescentam corantes e ingredientes ou essências de vári-
ramenta” é um componente semântico genérico dos signifi- os sabores”, sentido atribuído, no Nordeste, ao vocábulo
cados de “martelo” e “serrote”, assim como o significado de “bombom”. Já este significa, no Centro-Sul, “confeito, ge-
“andar” é um componente semântico genérico dos significa- ralmente de chocolate, por vezes com cobertura de glacê ou
dos de “caminhar” e “passear”. Na descrição das relações caramelado, podendo ou não vir com recheio (de fruta, a-
lexicais, adotam-se os conceitos de conjunto e subconjunto, mêndoa, licor etc.); no Nordeste, o mesmo elemento é cha-
e diz-se que o termo geral é um hiperônimo dos termos es- mado “chocolate”. Isso significa que, no Nordeste, a frase
pecíficos, e que os estes são hipônimos do termo geral. Os “Você quer uma bala ou prefere um bombom?” não teria
termos específicos, por sua vez, são co-hipônimos um do muito sentido, diferentemente do que aconteceria no Cen-
outro. A estruturação do léxico em termos de hipônimos e tro-Sul. Também se pode presumir que um falante do Su-
hiperônimos é uma propriedade fortemente presente nas lin- deste, por exemplo, ao receber a oferta de um bombom, pu-
guagens técnicas e científicas caracterizadas pelo uso osten- desse ficar frustrado quando recebesse uma bala.
sivo de terminologias classificatórias. Na língua corrente, Exemplos desse tipo de sinonímia aparecem em qua-
especialmente usada na conversação mais espontânea, ter- se todos os livros didáticos e são de conhecimento geral, co-
mos genéricos têm uma amplitude ainda mais elástica que mo as correspondências entre “macaxeira” e “aipim”, “tan-
os hiperônimos propriamente ditos, haja vista a frequência gerina” e “mexerica”, “aipo” e “salsão”, “mandioquinha” e
de termos como “coisa”, “parte”, “negócio” etc. A técnica “batata-baroa”. Não por acaso, tais exemplos vêm da culiná-
da definição inclui largo uso de hiperônimos, como se com- ria – atividade e campo de conhecimento marcado pela cor
prova nos dicionários (ato ou ação de, animal da família local, o que se confirma na terminologia adotada.
dos, qualidade ou condição de). Pode haver certas relações

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blinha o traço de deboche, de ridicularização do outro, que
integra o espectro significativo do vocábulo. Com isso, fica
Variantes estilísticas ou discursivas excluída a possibilidade de usar-se “remedar” quando a in-
tenção seja assinalar o lado positivo de uma prática imitati-
Trata-se de sinônimos usados em diferentes domíni- va, como na frase “Para aprimorar seu estilo, ele *remeda-
os da atividade discursiva. Caracterizam não apenas regis- va pintores consagrados”.
tros linguísticos diferentes, mas identificam grupos sociais Consideremos, agora, os vocábulos “ousadia” e “te-
em seus jargões. Tomemos como exemplos “operação” e meridade” – vê-se que, em ambos, encontram-se traços rela-
“cirurgia”, “bandido” e “meliante” – é possível identificar, tivos a fazer-se algo que exige coragem e irreverência, mas,
no segundo elemento de cada par, termos típicos dos jargões em “temeridade”, o risco envolvido em tal conduta ganha
médico e policial respectivamente. Exemplo análogo é o destaque; isso revela que o enunciador, de certa forma, teme
dos vocábulos “trave”, “poste” e “pau”, considerando-se o pela segurança de alguém.
contexto do futebol. Todos indicam os suportes que delimi- No par de adjetivos “pobre” e “miserável”, que apa-
tam o espaço do gol, da meta, mas “trave” é mais comum recem como sinônimos nos dicionários, verifica-se, a partir
no uso leigo, enquanto “poste” e “pau” são mais facilmente do uso, uma gradação, com intensificação do traço de pobre-
observáveis em narrações esportivas e situações discursivas za no vocábulo “miserável”. Disso decorre que, no uso cor-
afeitas à tática futebolística, em frase como “O jogador acer- rente, os falantes acabam produzindo uma dessemelhança
tou a bola no poste” ou “A bola resvalou no primeiro pau, entre tais vocábulos, com base na componente psicológica
e o atacante, vindo do segundo pau, fez o gol”. Observa-se ou expressiva, a ponto de fazerem seleção excludente. No
que o termo “pau” tem uso preferencial em situações de es- uso formal, contudo, os vocábulos são permutáveis, como
canteio, quando a ordenação espacial das traves ganha sig- se comprova pela chamada para notícia publicada no portal
nificância, sendo frequentemente acompanhado do numeral PNUD Brasil, em que eles se alternam, sem divergência de
ordinal. Fora desse contexto, “trave” e “poste” são mais co- significados, mas com impacto maior a partir do vocábulo
muns, distribuindo-se apenas conforme o grau de envolvi- “miséria”, haja vista sua escolha para a manchete principal:
mento do enunciador com a matéria. “Brasil vence miséria com salários melhores: estudo indi-
Nos pares “comida” e “rango”, “fragrância” e “per- ca que país é um dos poucos da América Latina onde trans-
fume”, “oração” e “reza”, “requisito” e “exigência”, “ruído- ferência de renda não foi maior causa da queda da pobreza”.
so” e “barulhento”, “despojado” e “simples”, “obsequioso”
e “prestativo”, a distribuição do uso se dá em função do grau Variantes etárias ou históricas
de monitoramento linguístico do falante, sendo a primeira
ocorrência de cada par representativa de maior monitora- Trata-se de sinônimos que revelam diferença de ida-
mento em relação à segunda, de uso mais popular. O uso de de ou geração. Usados como elogios à beleza masculina,
uma ou outra forma assinala a intenção comunicativa do e- “pão” e “gato”, em frases como “Este cara é um pão” e “Es-
nunciador em situar seu ato de fala num patamar mais cuida- te cara é um gato”, conquanto sejam ambos compatíveis aos
do (como em “obsequioso” no lugar de “prestativo”) ou de usos coloquiais, identificam-se, respectivamente, com uma
incorporar as marcas linguísticas de um dado grupo (como geração mais antiga e outra mais recente. Os termos “sestro-
ao usar “requisito”, termo jurídico, em vez de “exigência”), so” e “esperto”, tomados como sinônimos, identificam usos
ou, ainda, revela a extensão do vocabulário do enunciador. compatíveis com diferentes momentos da história da língua
e não são mutuamente substituíveis, na atualidade, sem que
Variantes psicológicas ou expressivas advenha do uso de “sestroso” uma certa sensação de anacro-
nismo. Já nos casos em que “sestroso” se identifica, seman-
Trata-se de sinônimos que revelam diferenças afeti- ticamente, com “malandro”, no contexto específico da ca-
vas ou emotivas. Nos vocábulos “lento” e “lerdo”, “vencer” poeira, indicando aquele que é dado à sua prática, perde-se
e “derrotar”, é possível observar um componente de julga- o referencial histórico por um regional ou geográfico. Em
mento por parte do enunciador no uso de “lerdo” e “derro- sua distribuição discursiva, “surpreso” e “bolado” mantêm
tar”, que agrega valor depreciativo ao contexto. Ser ou estar relações marcadas pela identificação com uma faixa etária
“lento” indica a velocidade com que algum processo é de- mais madura (ao usar-se “surpreso”) e outra, jovem (quando
senvolvido; ser ou estar “lerdo” implica que o processo ou se usa “bolado”), como se observa em frases como “Vi um
elemento em questão está provocando algum incômodo ou vídeo incrível na internet – fiquei surpreso/bolado”. Entre
prejuízo pelo fato de ser lento. os jovens, o termo “bolado” chega a admitir outras signifi-
Os pares de vocábulos “matar” e “assassinar”, “pe- cações, indicando preocupação e até medo, em frases como
dir” e “exigir”, “imitar” e “remedar”, “ousadia” e “temeri- “Fiquei bolado com o resultado da prova” e “Ouvi um baru-
dade” revelam, igualmente, potencialidades expressivas na lho estranho na casa – estou bolado”.
sua distribuição, sendo o segundo termo de cada par o ele-
mento marcado em termos psicológicos ou expressivos. Antonímia
Partindo dum sentido comum, verifica-se reforço de
intencionalidade e de gravidade do ato em “assassinar” e re- Os opostos estão por toda parte, segundo categorias
forço de autoridade em “exigir”. Note que o uso de “assassi- em que situamos as experiências do quotidiano: “noite” e
nar” se atém, normalmente, a pessoas, sendo incomum o uso “dia”, “frio” e “calor”, “verdade” e “mentira”, “vício” e
desse verbo para tratar, por exemplo, do ato de matar uma “virtude”, “verde” e “maduro”, “rico” e “pobre”, “grande”
barata, exceto se o enunciador pretender carregar na expres- e “pequeno”. Eles são os limites referenciais idealmente es-
sividade, conferindo ao ser morto um status superior – o que pecíficos em que nos apoiamos para atribuir sentido ao meio
só confirma ser “assassinar” uma variante psicológica de termo, àquela zona de nossa experiência em que as coisas
“matar”. Por seu turno, o uso de “remedar” por “imitar” su- geralmente carecem de designação ou mesmo de definição.

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“morrer”, “nascer”/“morrer” e “morrer”/“sobreviver” pares
antonímicos? O que opõe “matar” a “morrer” é o papel de
A língua lexicaliza, ostensivamente, nossa experiência dos “agente” ou de “paciente” do respectivo sujeito; o que opõe
opostos, mas tende a deixar sem expressões específicas as “nascer” a “morrer” é a ideia de “início” e de “fim” da vida;
zonas intermediárias, que quase sempre conceptualizamos, o que opõe “morrer” a “sobreviver” é a ideia de “interrup-
genericamente, pelo recurso ao adjetivo “normal” ou aos ção” e de “continuidade” da vida. Estamos diante de signifi-
circunlóquios “nem uma coisa nem outra”, “mais ou me- cados que contrastam como autênticos antônimos, mas, em
nos” etc. Isso explica a extraordinária variedade de formas cada caso, o contraste assenta numa variável diferente.
para exprimir conceitos consensualmente contrários: “sor- E o que dizer, também, das relações de sentido que
te”/“azar”, “feio”/“bonito”, “ganhar”/“perder”, “descer”/ se estabelecem entre o verbo “perder”, de um lado, e, de ou-
“subir”, “longe”/“perto”, “dormir”/“acordar”, “limpo”/“su- tro, os verbos “ganhar”, “achar”, “vencer”, “pegar” e “to-
jo”, “rico”/“pobre”, “cheio”/“vazio”, “preto”/“branco”, “du mar”, como em: “Perdi/ganhei um amigo”, “Perdi/achei
-ro”/“mole”, “doce”/“amargo”, “doce”/“salgado”, “doce”/ meu anel”, “Perdi/venci o concurso”, “Perdi/peguei o ôni-
“azedo”. bus” e “Perdi/tomei o trem”? Trata-se de um caso típico de
À primeira vista, pode parecer necessário encontrar polissemia do verbo “perder”, que forma diferentes pares
uma oposição radical para que um par de lexemas funcione antonímicos.
antonimicamente. Na realidade, a antonímia se estabelece É razoável, portanto, admitir que a antonímia expres-
quando, considerado um determinado contexto, o que está sa uma das estratégias fundamentais de apreensão do mundo
em foco é a substituição de um traço semântico relevante como experiência conceptualmente organizada. Não é por
pelo seu contrário. A rigor, se duas palavras forem estranhas acaso que, além de estar presente em várias classes de pala-
uma à outra em todos os traços, o que se observará será uma vras, a antonímia dispõe de um mecanismo morfológico al-
total falta de nexo entre elas, sem qualquer relação. Um par tamente produtivo – a prefixação – para gerar uma grande
de antônimos apresenta, obrigatoriamente, algum traço se- quantidade de pares: “fiel”/“infiel”, “temor”/“destemor”,
mântico compartilhado, para que se monte uma relação de “armar”/“desarmar”.
identidade contrastiva. Nos casos em que haja lacuna de formas derivadas
Tomemos os lexemas “navio” e “avião”. Ambos par- por prefixação, pode-se, ainda, contar com o uso prefixal do
ticipam do campo semântico “meios de transporte”, ambos advérbio “não” que, anteposto a um radical, inaugura termo
incluem transporte coletivo, de cargas, mas o primeiro tem antônimo, atendendo necessidades comunicativas ainda não
o traço [+ por mar] “navegação marítima”, enquanto o se- lexicalizadas.
gundo tem o traço [+ pelo ar] “navegação aérea”. Nem por Percebe-se, então, que os estudos acerca da sinoní-
isso esses termos serão vistos como antônimos, porque não mia e da antonímia não podem ater-se, em absoluto, a um
há, na realidade objetiva, relação de oposição entre mar e ar, catálogo ou a uma listagem, mas devem desenvolver-se nos
relativamente aos meios de transporte. Ou seja: os lexemas contextos, observando os ingredientes semânticos em suas
contrastam, mas não chegam exatamente a se opor. Exem- relações de sobreposição e de oposição e seus desdobramen-
plo inverso pode ser dado com as expressões “presencial” e tos sobre a construção dos significados. A antonímia se rea-
“a distância”, em frases como “Eu faço um curso presenci- liza por quatro modos principais, que podemos chamar de:
al”, mas meu irmão faz um curso a distância”. Nesse con- complementar, polar, distributivo e reverso.
texto, “presencial” tem o traço [+ presença], que o curso a Diz-se que os antônimos são complementares se a
distância não tem. A relação opositiva está estabelecida, já afirmação ou negação de um deles corresponde, necessaria-
que o mesmo traço [presença] é positivo [+ presença] para mente, à negação ou afirmação do outro. Os antônimos
um e negativo [- presença] para outro. Isso caracteriza a an- complementares são dicotômicos e contraditórios: “vivo”/
tonímia entre essas expressões, nesse dado contexto. “morto”, “falar”/“calar”, “falso”/“verdadeiro”, “obedecer”/
Claro está que, mudando-se os contextos, mudam-se “desobedecer”, “condenar”/“absolver”, “direito”/“esquer-
também as relações semânticas entre as palavras, de modo do”. Se algo não está vivo, obviamente está morto; se o juiz
que pares de sinônimos ou de antônimos podem, simples- absolve o réu, obviamente não o condena.
mente, desaparecer. A respeito da determinação do contexto Há polaridade entre antônimos quando eles são ex-
sobre as relações semânticas entre lexemas, veja-se o exem- pressões dos polos numa escala. Eles se referem a atributos,
plo seguinte. estados e situações contrários, mas não contraditórios: “al-
Analisemos as palavras “homem” e “garoto”, nas to”/“baixo”, “frio”/“quente”, “calmo”/“nervoso”, “largo”/
frases “Nasceu meu filho; é um homem” e “Nasceu meu fi- “estreito”, “longe”/“perto”, “depressa”/“devagar”. Os antô-
lho; é um garoto”. No contexto dado, “homem” e “garoto” nimos polares não são compatíveis – é ilógico afirmar que
funcionam como sinônimos. O traço diferencial [idade] foi algo é, ao mesmo tempo, frio e quente, ou quem alguém se
neutralizado, mantendo-se os demais traços semânticos. Em apressou devagar – mas podem ser, simultaneamente, ne-
tais frases, o traço semântico mais importante é relativo ao gados (“Esta rua não é larga nem estreita”, “O carro não
sexo [+ masculino], presente em ambas as palavras. Veja- andava depressa nem devagar”, “A escola não fica longe
mos, agora, o que se passa na frase seguinte: “Ele tem 21 a- nem perto”) e são passíveis de gradação: mais alto, menos
nos, é um homem; não é nenhum garoto”. Nela, “homem” quente, muito perto, tão devagar quanto.
e “garoto” apresentam-se em oposição semântica, já que, no Dois termos se acham em relação de antonímia dis-
contexto, o traço [adulto], presente em “homem” e ausente tributiva (ou conversa) se, mesmo exprimindo conteúdos
em “garoto”, é de vital importância para a compreensão da diversos, um deles denota um fato ou uma situação que pres-
frase. supõe ou implica, logicamente, o outro. Chama-se “distribu-
Observemos, desta vez, em que consiste a oposição tivo” esse contraste de significados porque cada termo se re-
de significados observada na seguinte série de verbos: “ma- fere a uma entidade diferente: “oferecer”/“aceitar”, “dar”/
tar”, “morrer”, “nascer” e “sobreviver”. Seriam “matar”/ “receber”, “perguntar”/“responder”. Cada um desses verbos

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Platão, no Teeteto, fala da filologia de Sócrates, que
consiste no amor ao lógos (“palavra”) e no interesse por sua
significa algo que pressupõe (“responder” pressupõe “per- interpretação. Era a época da Filosofia, do florescimento do
guntar”) ou implica (“derrubar” implica “cair”) o outro. espírito grego. A época helenística, por seu lado, cuida não
Também é distributiva a relação antonímica que opõe “pai” de criação, mas de preservação. A cultura é, acima de tudo,
e “filho”, “patrão” e “empregado”, “professor” e “aluno”, a memória do passado e se baseia, assim, em ensino e apren-
“avô” e “neto”. dizagem. E o estudo de poetas e oradores de expressão bela
A quarta espécie de relação antonímica aqui identifi- e correta é atividade do filólogo.
cada – e que chamamos reversa – diz respeito à relação en- O termo philólogos se refere àquele que se interessa
tre movimento em direção contrária no espaço e no tempo: pela cultura em geral; o que tenta a revisão crítica de textos
“entrar”/“sair”, “subir”/“descer”, “avançar”/“recuar”, “au- e a compreensão da obra literária se chama, mais especifica-
mentar”/“diminuir”, “aproximar”/“afastar”. A prefixação mente, grammatikós (“gramático”). Este não só explica as
com “des-” é um meio de criação de uma série aberta de an- obras como também as julga; reconhece ou não sua autenti-
tônimos reversos: “cobrir”/“descobrir”, “montar”/“desmon- cidade, aponta suas belezas e seus defeitos. Faz a correção
tar”, “ocupar”/“desocupar” etc. dos textos e exerce julgamento em geral; é, pois, um crítico,
atividade que representa poder de decidir como juiz das o-
(AZEREDO, José Carlos de. “Relações entre Significados”. bras escritas. É atividade de pesquisa à qual se alia a docên-
In: Gramática Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: cia, pois o gramático é o mestre-escola que sucede ao gra-
Publifolha, 2008, p. 435-443) matista (grammatistés), instrutor primário ao qual sucede o
retor.
LEITURA COMPLEMENTAR XV Era para facilitar a leitura dos primeiros poetas gre-
gos que os gramáticos publicavam comentários e tratados
A disciplina gramatical de gramática, que cumpriam duas tarefas: estabelecer e ex-
plicar a língua desses autores (pesquisa) e proteger da cor-
A disciplina gramatical é uma criação da época hele- rupção essa língua “pura” e “correta” (docência), já que a
nística, a qual representa, em relação à época helênica, não língua cotidianamente falada nos centros do helenismo era
apenas uma diferença de organização política e social (o fim considerada corrompida. E, servindo à interpretação e à crí-
das cidades-Estados), mas também o estabelecimento de um tica, realiza-se o estudo metódico dos elementos da língua e
novo estilo de vida, um novo ideal de cultura. Especialmen- compõe-se o que, tradicionalmente, seria qualificado como
te, verifica-se um esforço de pesquisa; reflete-se e se exerce “gramática”.
a crítica sobre tudo o que ficara de séculos de criatividade. De toda a situação cultural que cerca o nascimento
A atividade cultural concentra-se nas bibliotecas e tem em dos estudos gramaticais, decorrem as características que de-
vista, primordialmente, a preservação, para transmissão, da terminaram sua natureza: limitação à língua escrita, especi-
herança cultural helênica. almente à língua do passado, mais especificamente à língua
A necessidade de manter e cultivar o que seriam as literária, e, exclusivamente, à grega. Nem interessava a lín-
características helênicas – em oposição às bárbaras – dá im- gua coloquial nem quaisquer línguas de outros povos. A elu-
portância primordial à educação. O que o espírito helênico cidação dos textos clássicos e o comentário crítico a eles di-
criou é agora zelosamente cultivado com pesquisa e ensino. tavam a diretriz dos estudos linguísticos.
O que essa educação representa, acima de tudo, é a O fato de os gregos empregarem o termo grammatiké
transmissão de um patrimônio literário e, assim, o exame de (“gramática”), que designa a arte de ler e escrever, para dar
grandes obras do passado constitui a atividade cultural por nome ao estudo da língua, costuma ser invocado para evi-
excelência. A própria seleção das obras poéticas se faz com denciar a atenção que, desde o início, foi dada à língua escri-
vistas à finalidade educativa, a qual responde, por exemplo, ta. Diz Aristóteles em seus Tópicos que a grammatiké com-
pela preservação de apenas algumas obras dos trágicos e de preendia o ensino da escrita e da leitura, fazendo parte da
Aristófanes, em detrimento de outras. educação elementar. Na época helenística, ela é uma disci-
Particularmente importante é a explicação (exégesis, plina independente, constituindo exposição sistemática e
“exegese”) dos textos dos poetas, em especial a exegese ho- metódica de fatos de língua depreendidos de obras literárias.
mérica. Tendo-se tomado consciência de uma discrepância
entre os padrões do grego clássico e linguagem corrente, (NEVES, Maria Helena de Moura. “A gramática”. In A ver-
contaminada de barbarismos, põem-se em exame os autores tente grega da gramática tradicional: uma visão do pen-
cuja linguagem autenticamente oferece os padrões ideais samento grego sobre a linguagem. São Paulo: UNESP, 2005
que devem ser preservados. Essa necessidade especial de di- p. 111-114)
vulgação do helenismo impulsiona o desenvolvimento dos
conhecimentos literários e linguísticos; buscam-se os textos LEITURA COMPLEMENTAR XVI
verdadeiros, não corrompidos, especialmente os de Home-
ro, e levantam-se os fatos que caracterizam essa língua con- Línguas: quem fala mais?
siderada modelo. Ao lado de uma crítica literária, desenvol-
ve-se uma atividade filológica, a qual tem, na época helenís- Marcos Bagno
tica, um caráter peculiar, decorrente da própria situação his-
tórico-social. O que significa philólogos (“filólogo”), no pe- Na semana passada, tentamos responder a pergunta
ríodo alexandrino, não é o mesmo que significou na tradição sobre quantas línguas são faladas hoje no mundo. Hoje, va-
grega. Diferentes as condições e os pontos de vista, diferen- mos tratar doutra pergunta, muito comum também: “Quais
dtes também interesses e tarefas. as línguas mais faladas no mundo?”

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o Ethnologue, mais de 64 milhões, o que alteraria bastante
a estatística.
De novo, os números apresentam uma grande flutua- O caso do árabe também é peculiar: a tabela exibida
ção. Afinal, como já sabemos, é difícil decidir onde termina no site apresenta um número total de falantes de “árabe”,
uma língua e começa outra. Além disso é complicado deli- mas, ao mesmo tempo, subdivide essa “língua” em 19 varie-
mitar o número de usuários duma língua como primeira dades regionais (marroquino, líbio, tunisiano, egípcio etc.),
língua (L1) ou como segunda língua (L2). O inglês, por e- que são, como já discutimos também no texto anterior, siste-
xemplo, é a L1 da população de diversos países, com cente- mas linguísticos que não permitem a intercompreensão total
nas de milhões de falantes, mas também é a L2 mais empre- entre seus falantes.
gada hoje em dia no mundo inteiro de modo que o número Quanto ao português, a primeira observação é: por
total de usuários do inglês é, na prática, incalculável. Por que o Ethnologue subdivide o árabe e o chinês, mas não faz
outro lado, são muitos os países que têm o inglês como lín- a mesma coisa com o português (e com o espanhol, o fran-
gua oficial –língua da administração pública, da educação cês e o inglês)? Parece predominar ali uma visão conserva-
formal, dos meios de comunicação etc. –, mesmo não sendo dora, tipicamente ocidental, de que as línguas europeias,
a língua mais empregada no território. É o caso das ex-colô- mesmo depois de levadas para os quatro cantos do planeta,
nias britânicas na África que, depois da independência, op- mesmo depois de mais de meio milênio de expansão e inten-
taram pela língua do antigo colonizador para evitar criar so contato com outros idiomas, essas línguas permanecem
conflitos étnicos com a escolha de um idioma em detrimen- homogêneas, sem grande variação.
to dos outros. Na Nigéria, por exemplo, existem 521 línguas Ora, nós brasileiros sabemos muito bem as dificulda-
catalogadas, mas é o inglês que funciona como língua ofici- des que temos para entender completamente o que dizem os
al, na tentativa de permitir uma comunicação mais ampla portugueses, sobretudo em situações de fala espontânea e,
entre tantas etnias distintas. A mesma situação se encontra mais ainda, se forem pessoas da zona rural, com seus diale-
nas ex-colônias portuguesas, francesas e belgas no conti- tos muito peculiares. Não admira que os filmes portugueses,
nente africano. quando passados no Brasil, já venham com legendas. O
De acordo com a página Ethnologue: languages of mesmo site lista 11 países onde o português seria falado co-
the world, uma referência muito citada quando o assunto são mo primeira língua: além dos países independentes que têm
estatísticas desse tipo, as línguas mais faladas no mundo co- o português como língua oficial (Angola, Brasil, Cabo Ver-
mo primeira língua seriam as seguintes: de, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Prín-
cipe, Timor-Leste) e de Macau (cidade chinesa, ex-colônia
portuguesa devolvida à China em 1999 e onde o português
já desapareceu na prática), aparecem a França (!) e a Índia.
Ora, na Índia o que de fato existe são crioulos de base portu-
guesa, ainda assim muitíssimo pouco usados, com probabi-
lidade de extinção em breve, quando a última geração de fa-
lantes deixar de existir. Por outro lado, não se menciona o
caso do Uruguai, que tem uma parcela de sua população
cuja primeira língua há muitas gerações é o português uru-
guaio, já devidamente reconhecido e estudado pelos lin-
guistas uruguaios e há pouco tempo incluído nos currículos
escolares da região fronteiriça com o Brasil. Por fim, o gran-
de problema é que o português só é realmente a língua majo-
ritária da população no Brasil e em Portugal. Em todos os
Essa tabela, no entanto, como não poderia deixar de demais países, mesmo aqueles em que a língua tem status de
ser, apresenta problemas. O rótulo de chinês, por exemplo, oficial, o português é minoritário, aprendido formalmente
é aplicado a uma multiplicidade de línguas e dialetos, fre- na escola, enquanto as verdadeiras línguas nacionais são ou-
quentemente sem intercompreensão mútua. Existe uma lín- tras. Tudo isso para concluir com o que já dissemos: é muito
gua oficial, tradicionalmente chamada mandarim (pǔtōn- difícil estabelecer estatísticas confiáveis quando o assunto é
ghuà em “chinês”) usada pela maioria da população chine- língua.
sa, mas não por todos os chineses como L1. No entanto, to- Uma coisa importante a reconhecer, desde logo, é
das essas línguas são escritas com os mesmos ideogramas, que o velho refrão “um povo, uma nação, uma língua” é uma
de modo que, por exemplo, um falante de mandarim e um ilusão ideológica. A ideia de que “na França se fala francês;
falante de cantonês (língua incompreensível para quem fala na Itália, italiano; na Turquia, turco; na China, chinês; na
só mandarim e vice-versa) podem se comunicar e se enten- Coreia, coreano etc.”, com um vínculo simbólico muito for-
der por escrito. O cantonês é falado no sul da China, em te entre o nome do país e o nome da língua, não tem corres-
Hong-Kong e Macau, por exemplo. Esse incrível poder sim- pondência alguma na realidade. As situações de multilin-
bólico da escrita (lindamente retratado no filme Herói, de guismo é que são a regra mundo afora. E como multiplici-
2007, dirigido por Feng Xiaogang) talvez explique o senti- dade linguística equivale a multiplicidade étnica e cultural,
mento de unidade que existe entre os falantes das diferentes são frequentíssimos os casos de conflito linguístico, isto é,
e várias línguas “chinesas”. de disputas – muitas vezes com guerras, perseguições e
O híndi, por outro lado, aparece sozinho, como uma massacres – entre os falantes das diferentes línguas existen-
língua específica, sem se levar em conta o urdu que, como tes num mesmo território. A ânsia de um determinado grupo
já discutimos na semana passada, é de fato idêntico ao híndi. de conquistar a hegemonia política, cultural, religiosa e lin-
Os falantes de urdu como primeira língua somam, segundo guística de um país é o que leva a tais situações conflituosas.

44
cas, surgiram, sobretudo a partir da segunda metade do sé-
culo XX, políticas linguísticas de valorização, proteção e
Sociedades monolíngues praticamente não existem, estímulo ao uso de línguas não oficiais, minoritárias, de imi-
até porque dentro de uma mesma língua existem diferentes gração etc.
variedades regionais e sociais, e uma delas acaba sendo Nesse campo, é forçoso reconhecer, o Brasil está a-
transformada artificialmente em norma para a totalidade de trasado: além de não haver uma política linguística oficial,
falantes, gerando inevitáveis distâncias culturais entre quem explícita, para a difusão do português brasileiro no mundo,
empregam uma variedade mais próxima da norma e os que também não existe uma política federal para as línguas indí-
empregam variedades muito afastadas dela. O Brasil, como genas e as línguas de imigração, tão numerosas no nosso pa-
sabemos, é um caso exemplar a esse respeito, mas está longe ís. Algumas poucas iniciativas levadas a cabo principalmen-
de ser uma exceção. te pela organização não governamental IPOL (Instituto de
O multilinguismo é bastante previsível em países Políticas Linguísticas), como a cooficialização das língu-
muito extensos e com grande população, como China, Índia, as baníua, tucano e nheengatu no município de São Gabri-
Rússia, Indonésia, Nigéria etc. E, numa cidade como Nova el da Cachoeira (AM), da cooficialização do pomerano no
Iorque, são faladas pelo menos 800 línguas diferentes, o que município de Santa Maria do Jetibá (ES), foram resultado
faz dela o conglomerado urbano com a maior diversidade de muito esforço da parte das pessoas interessadas, esforço
linguística do mundo. Mas pluralidade linguística também que seria poupado se tivéssemos uma política linguística fe-
se verifica em pequenas nações, como Portugal (onde o por- deral bem traçada.
tuguês, com variedades bem marcadas regionalmente, con-
vive, por exemplo, com o mirandês, cooficializado na dé- (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Preconceito linguísti-
cada de 1990), Luxemburgo (um país com metade da área co. Disponível em: http://e-proinfo.mec.gov.br/eproinfo/blo
do nosso Distrito Federal, mas que tem três línguas oficiais: g/preconceito/línguas-quem-fala-mais.html. Acesso em: 15
francês, alemão e luxemburguês, variedade de alemão), U- fev. 2014)
ruguai (espanhol e português), Bélgica (francês, neerlan-
dês e alemão), para não mencionar o caso clássico da Suíça EXERCÍCIOS DE COMPREENSÃO TEÓRICA II
(francês, alemão, italiano e romanche). E nunca é demais
lembrar que o Brasil, com suas 190 línguas indígenas, mais Leia este texto a fim de responder a questão número 01.
umas duas dezenas de línguas de imigração (alemão, italia-
no, japonês, árabe etc.), está entre as nações com a maior Ciência e moralidade
diversidade linguística do mundo.
De fato, além das línguas que tradicionalmente têm Marcelo Gleiser
sido faladas dentro das fronteiras de cada país, existem tam-
bém, e com cada vez mais frequência e mais intensidade, as A percepção pública da ciência é, com razão, repleta
línguas de imigração, levadas para os mais diferentes luga- de conflitos. Alguns acreditam que a ciência seja a chave
res pelos grandes movimentos populacionais que o mundo para a liberdade do homem, para a melhora das condições
sempre presenciou e presencia em nossa época de forma de vida de todos, para a cura dos tantos males que afligem
muitas vezes dramáticas, quando não trágicas, como o re- pobres e ricos, desde a fome até as mais variadas doenças.
cente e terrível caso de um navio de imigrantes africanos Já outros veem a ciência com grande desconfiança e até com
que naufragou a pouca distância do porto da ilha italiana de desprezo, como sendo a responsável pela criação de várias
Lampedusa, provocando a morte de mais de 400 pessoas. armas de destruição inventadas através da história, da espa-
Isso explica, por exemplo, por que, no território da da à bomba atômica. Para esse, grupo os homens não são
França, as muitas variedades de árabe formam o segundo maduros o suficiente para lidar com o grande poder que re-
conjunto de línguas mais faladas do país, depois do francês. sulta de nossas descobertas científicas.
Nos Estados Unidos, a intensa imigração proveniente do No início do século 21, a clonagem e a possibilidade
México, de Porto Rico e de outros países latino-americanos de construirmos máquinas inteligentes prometem uma rede-
está fazendo do espanhol uma língua com presença cultural finição do que significa ser humano. Na medida em que será
e política cada vez mais forte naquele país: segundo o re- possível desenhar geneticamente um indivíduo ou modificar
cém-fundado Observatório da Língua Espanhola e das Cul- sua capacidade mental por meio de implantes eletrônicos,
turas Hispânicas nos Estados Unidos, sediado na Universi- onde ficará a linha divisória entre homem e máquina, entre
dade Harvard, o número de falantes do espanhol em territó- o vivo e o robotizado? Entre os vários cenários que vemos
rio estadunidense poderá ultrapassar, em 2050, o da popula- discutidos na mídia, o mais aterrorizador é aquele em que
ção total do México, que é hoje o maior país de língua es- nós nos tornaremos, forçosamente, obsoletos, uma vez que
panhola (120 milhões de habitantes). clones bioeletrônicos serão muito mais inteligentes e resis-
Essas situações levaram à publicação, em 1996, na tentes do que nós. Ou seja, quando (e se) essas tecnologias
cidade de Barcelona (Espanha), da Declaração Universal estiverem disponíveis, a ciência passará a controlar o pro-
dos Direitos Linguísticos, um conjunto de princípios norte- cesso evolutivo: a nossa missão final é criar seres “melho-
adores para uma convivência pacífica e harmoniosa entre os res” do que nós, tomando a seleção natural em nossas pró-
povos e suas línguas. O primeiro esboço dessa declaração prias mãos. O resultado, claro, é que terminaremos por cau-
foi iniciativa do linguista brasileiro Francisco Gomes de sar a nossa própria extinção, sendo apenas mais um elo na
Matos, numa reunião internacional ocorrida no Recife em longa cadeia evolutiva. O filme Inteligência artificial, de
1984. Esse documento é importante porque chama a atenção Steven Spielberg, relata precisamente esse cenário lúgubre
para as constantes situações de perseguição de grupos étni- para o nosso futuro, a inventividade humana causando a sua
cos por causa de sua língua, de proibição sistemática de uso destruição final.
de línguas minoritárias etc. Nas sociedades mais democráti-

45
A presidente filipina Gloria Arroyo designou a pró-
pria manicure para um cargo bem remunerado numa agênci-
É difícil saber como lidar com essa possibilidade. Se a governamental de Habitação, uma decisão criticada pelo
tomarmos o caso da tecnologia nuclear como exemplo, ve- candidato favorito às eleições presidenciais por considerá-
mos que a sua história começou com o assassinato de cente- -la própria de uma política do “clientelismo”.
nas de milhares de cidadãos japoneses, justamente pela po- Anita Carpon, manicure da presidente Arroyo e con-
tência que se rotula “lado bom”. Esse rótulo, por mais ridí- siderada estilista, foi nomeada no conselho de administra-
culo que seja, é levado a sério por grande parte da população ção de uma agência responsável por financiar as casas dos
norte-americana. É o velho argumento maquiavélico de que funcionários, anunciou Gary Olivar, porta-voz da presidên-
os fins justificam os meios: “Se não jogássemos as bombas cia. Ela receberá um salário mensal equivalente a 2900 dóla-
em Hiroshima e Nagasaki, os japoneses jamais teriam se res, o dobro do que recebe a presidente Arroyo, segundo a
rendido e muito mais gente teria morrido em uma invasão imprensa. A nomeação foi muito criticada pelo candidato
por terra”, dizem as autoridades militares e políticas norte- favorito às eleições presidenciais de 10 de maio, Benigno
-americanas. Isso não só não é verdade como mostra que são Aquino, filho da ex-presidente Corazón Aquino. “Acentua
os fins político-econômicos que definem os usos e abusos a cultura do clientelismo político no país ao nomear as pes-
da ciência: os americanos queriam manter o seu domínio no soas que são leais para postos delicados sem preocupação
Pacífico, tentando amedrontar os soviéticos que desciam pe- com a qualificação”, disse Butch Abad, diretor da campanha
la Manchúria. As bombas não só detiveram os soviéticos co- de Aquino.
mo redefiniram o equilíbrio de poder no mundo. Ao menos
até os soviéticos desenvolverem a sua bomba, o que deu iní- (Gazeta do Povo, 22.04.2010)
cio à Guerra Fria.
As consequências de um conflito nuclear global são 02. O antônimo do termo acentua, em destaque no último
tão horrendas que até os líderes das potências nucleares con- parágrafo do texto, é
seguiram resistir à tentação de abusar de seu poder: criamos
uma guerra sem vencedores e, portanto, inútil. a) reforça.
Porém, as tecnologias nucleares não são propriedade b) revela.
exclusiva de potências nucleares. A possibilidade de que um c) nega.
grupo terrorista obtenha ou construa uma pequena bomba é d) aponta.
remota, mas não inexistente. Em casos de extremismo reli- e) identifica.
gioso, escolhas morais são redefinidas de acordo com os
preceitos distorcidos da religião: isso foi verdade tanto nas 03. No contexto em que está inserido, o vocábulo delicados,
Cruzadas como hoje, nas mãos de suicidas muçulmanos. em destaque no último parágrafo do texto, significa
Eles não hesitariam em usar uma arma atômica, caso
a tivessem. E sentiriam suas ações perfeitamente justifica- a) suaves.
das. Essa discussão mostra que a ciência não tem uma di- b) estratégicos.
mensão moral: somos nós os seres morais, os que optamos c) insignificantes.
por usar as nossas invenções de modo criativo ou destrutivo. d) inferiores.
Somos nós que descobrimos curas para doenças e ga- e) carentes.
ses venenosos. Daí que o futuro da sociedade está em nossas
mãos e será definido pelas escolhas que fizermos daqui para 04. Assinale a alternativa correta quanto ao emprego de pa-
frente. Não é da ciência que devemos ter medo, mas de nós rônimos.
mesmos e da nossa imaturidade moral.
a) Para muitos, a nomeação de Anita Carpon infligiu a cons-
(Folha de S. Paulo, “Mais!”, 07.07.2002) tituição do país.
b) Como Benigno Aquino é o favorito às eleições presiden-
01. Assinale a opção que apresenta sinônimos das palavras ciais de 10 de maio, sua vitória é eminente.
grifadas nos trechos abaixo. c) Para os opositores de Gloria Arroyo, é fragrante a nome-
ação de Carpon por lealdade e não por competência.
I. “O filme Inteligência artificial […] relata, precisamente, d) O mandado da presidente Gloria Arroyo está chegando
esse cenário lúgubre para o nosso futuro […]”. ao fim e pode ser que seu opositor vença a eleição.
II. “É o velho argumento maquiavélico de que os fins justi- e) Gloria Arroyo ratificou sua decisão de manter Anita Car-
ficam os meios […]”. pon no cargo público: ela continua na agência governamen-
III. “[…] nós nos tornaremos forçosamente obsoletos […]”. tal de Habitação.

a) nostálgico – esperado – antiquados; 05. Considere o seguinte excerto textual:


b) incerto – político – ultrapassados;
c) pessimista – previsível – retrógrados; O “Projeto Genoma”, que envolve centenas de cien-
d) triste – antiquado – ignorantes; tistas de todos os cantos do globo, às vezes tem de competir
e) soturno – ardiloso – arcaicos. com laboratórios privados na corrida pelo desenvolvimento
de novos conhecimentos que possam promover avanços em
Leia este texto para responder as questões 02 a 04. diversas áreas.

Presidente filipina nomeia Assinale a alternativa em que o termo privado foi usado no
manicure para posto-chave mesmo sentido em que se observa acima.

46
Não se conformou: devia haver engano. Ele era bru-
to, sim senhor, via-se perfeitamente que era bruto, mas a
a) Muitos laboratórios são privados de participar da concor- mulher tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do
rência pelos obstáculos legais que se impõem aos partici- branco. Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estri-
pantes. bos. Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que e-
b) Nem sempre os projetos que envolvem ciência básica po- ra dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar co-
dem contar com a injeção de recursos privados, que privile- mo negro e nunca arranjar carta de alforria!
giam as pesquisas com perspectivas de retorno econômico O patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom
no curto prazo. que o vaqueiro fosse procurar serviço noutra fazenda. Aí Fa-
c) Alguns dos grandes laboratórios que atuam no mercado biano baixou a pancada e amunhecou. Bem, bem. Não era
veem-se privados de condições materiais para investir em preciso barulho não. Se havia dito palavra à toa, pedia des-
pesquisa de ponta. culpa. Era bruto, não fora ensinado. Atrevimento não tinha,
d) Laboratórios privados da licença para desenvolver pes- conhecia o seu lugar. Um cabra. Ia lá puxar questão com
quisas com clonagem de seres humanos prometem recorrer gente rica? Bruto sim senhor mas sabia respeitar os homens.
da decisão. Devia ser ignorância da mulher, provavelmente devia ser ig-
e) Muitos projetos desenvolvidos em centros universitários, norância da mulher. Até estranhara as contas dela. Enfim,
privados de recursos, acabam sendo engavetados. como não sabia ler (um bruto, sim senhor), acreditara na sua
velha. Mas pedia desculpa e jurava não cair noutra.
06. Assinale alternativa que apresenta mesmo sentido da pa-
lavra em destaque em: “Com algumas ações individuais po- (Graciliano Ramos. Vidas secas. São Paulo: Livraria Mar-
demos ter um grande resultado coletivo. tins Editora, 1974)

a) [...] em particular. 07. “Pouco a pouco, o ferro do proprietário queimava os bi-


b) [...] em conjunto. chos e Fabiano”. A forma verbal queimava, no período aci-
c) [...] em quantidade. ma, apresenta o sentido de:
d) [...] em produção.
e) [...] em absorção. a) Ignorava.
b) Assava.
Leia o texto abaixo para responder a questão 07. c) Destruía.
d) Marcava.
Contas e) Prejudicava.

Fabiano recebia na partilha a quarta parte dos bezer- PROPOSTA TEMÁTICA REDACIONAL 05: Legaliza-
ros e a terça dos cabritos. Mas como não tinha roça e apenas ção de drogas no Brasil: crise da moralidade ou evolução da
se limitava a semear na vazante uns punhados de feijão e sociedade?”.
milho, comia da feira, desfazia-se dos animais, não chegava
a ferrar um bezerro ou assinar a orelha de um cabrito. 75% dos jovens infratores no Brasil são
Se pudesse economizar durante alguns meses, levan- usuários de drogas, aponta CNJ
taria a cabeça. Forjara planos. Tolice, quem é do chão não
se trepa. Consumidos os legumes, roídas as espigas de mi- Dos adolescentes internados em cumprimento a me-
lho, recorria à gaveta do amo, cedia por preço baixo o pro- didas socioeducativas no Brasil, 75% deles são usuários de
duto das sortes. Resmungava, rezingava, numa aflição, ten- entorpecentes. O dado foi apresentado nesta terça-feira, em
tando espichar os recursos minguados, engasgava-se, engo- um relatório divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça
lia em seco. Transigindo com outro, não seria roubado tão (CNJ). Pesquisa “Panorama Nacional, Execução das Medi-
descaradamente. Mas receava ser expulso da fazenda. E ren- das Socioeducativas de Internação” foi realizada pelo De-
dia-se. Aceitava o cobre e ouvia conselhos. Era bom pensar partamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema
no futuro, criar juízo. Ficava de boca aberta, vermelho, o Carcerário (DMF) e pelo Departamento de Pesquisas Judi-
pescoço inchando. De repente estourava: ciárias (DPJ). O levantamento foi realizado por uma equi-
– Conversa. Dinheiro anda num cavalo e ninguém pe multidisciplinar que visitou, de julho de 2010 a outubro
pode viver sem comer. Quem é do chão não se trepa. Pouco de 2011, 320 estabelecimentos de internação existentes no
a pouco o ferro do proprietário queimava os bichos e Fabia- Brasil para analisar as condições de internação de 17502 a-
no. E quando não tinha mais nada para vender, o sertanejo dolescentes que cumprem medidas socioeducativas de res-
endividava-se. Ao chegar a partilha, estava encalacrado, e trição de liberdade. Durante essas visitas, a equipe entre-
na hora das contas davam-lhe uma ninharia. vistou 1898 adolescentes internos.
Ora, daquela vez, como das outras, Fabiano ajustou Dos jovens entrevistados, 74,8% faziam uso de dro-
o gado, arrependeu-se, enfim deixou a transação meio apa- gas ilícitas, sendo o percentual mais expressivo na Região
lavrada e foi consultar a mulher. Sinha Vitória mandou os Centro-Oeste, onde 80,3% dos adolescentes afirmam ser u-
meninos para o barreiro, sentou-se na cozinha, concentrou- suários de drogas. Em seguida, está a Região Sudeste, com
-se, distribuiu no chão sementes de várias espécies, realizou 77,5% de usuários. Entre as substâncias utilizadas pelos a-
somas e diminuições. No dia seguinte, Fabiano voltou à ci- dolescentes, a maconha foi a droga mais citada (89%), se-
dade, mas, ao fechar o negócio, notou que as operações de guida da cocaína (43%), com exceção da Região Nordeste,
Sinha Vitória, como de costume, diferiam das do patrão. Re- em que crack foi a segunda substância mais usada (33%).
clamou e obteve a explicação habitual: a diferença era pro- Aparecem no levantamento usuários de inalantes, medica-
veniente de juros. mentos e LSD. De acordo com o relatório, a alta incidência

47
Ainda segundo tal estudo, o crime de homicídio foi
bastante expressivo em todas as regiões do país, com exce-
de uso de psicoativos pode estar relacionada à ocorrência de ção do Sudeste onde esse delito corresponde a 7% do total.
atos infracionais. Segundo o CNJ, é ato infracional toda Nas regiões Norte, Centro-Oeste, Nordeste e Sul, percentu-
conduta praticada por criança ou adolescente definida qual ais de homicídio como motivo da atual internação dos jo-
“crime” ou “contravenção” pelo Código penal brasileiro. E vens correspondem, respectivamente, a 28%, 21%, 20% e
entre atos infracionais mais comuns de adolescentes inter- 20%. O estudo divulgado nesta terça aponta o roubo tam-
nados estão crimes contra o patrimônio, como roubo e fur- bém como principal motivo de internação entre adolescen-
to. De acordo com levantamento, 36% dos entrevistados a- tes reincidentes. O levantamento constata, porém, que a o-
firmaram estar internados por roubo. Depois, aparece o trá- corrência de homicídio na reiteração da prática infracional
fico de drogas (24%). foi aproximadamente três vezes superior à primeira inter-
nação, aumentando de 3% para 10% dos casos em âmbito
nacional. Entre adolescentes entrevistados em cumprimen-
to de medida de internação, 43,3% já haviam sido interna-
dos ao menos outra vez. Nas regiões Nordeste e Centro-O-
este, 54% e 45,7% dos jovens, respectivamente, são reinci-
dentes; nas demais regiões índice de reincidência entre os
entrevistados varia de 38,4% a 44,9%. Há registros de re-
incidência em 54% dos 14613 processos analisados no ter-
ritório nacional. Conforme pesquisa divulgada pelo CNJ, a
idade média dos adolescentes entrevistados é 16,7 anos. O
maior percentual de internos na pesquisa tem 16 anos, com
índices acima dos 30% em todas as regiões do país. Tal es-
tudo aponta que a maioria desses adolescentes cometeu seu
primeiro ato infracional entre 15 e 17 anos (47,5%). Consi-
derando-se período máximo de internação, o estudo revela
que boa parte de jovens infratores alcança a maioridade ci-
vil e penal durante o cumprimento da medida. Quanto à es-
colaridade, 57% dos jovens declararam que não frequenta-
vam a escola antes da internação. Entre os entrevistados, a-
penas 8% afirmaram ser analfabetos. Ainda assim, a última
série cursada por 86% dos jovens pertencia ao Ensino Fun-
damental. No que diz respeito às relações familiares, o es-
tudo diz que 14% daqueles jovens têm filhos. Do total de
adolescentes ouvidos no levantamento, 43% foram criados
apenas pela mãe, 4% pelo pai sem a presença da mãe, 38%
por ambos e 17% por avós. De aspectos comuns à maioria
dos entrevistados, segundo a pesquisa, estão criação em fa-
mílias desestruturadas, defasagem escolar e relação estreita
com entorpecentes.

(G1, “Brasil”, 10.04.2012)

Drogas: qual a alternativa?

Ferreira Gullar

Volto a um assunto que tenho abordado aqui e o fa-


ço porque considero necessário discuti-lo sempre que pos-
sível e com total isenção: o problema da liberação das dro-
gas. Agora mesmo, uma comissão de juristas submeterá ao
Congresso um anteprojeto propondo descriminalizar o por-
te e o plantio de maconha. Admito que, por alguma razão,
pessoas de tanta responsabilidade entendam que a descri-
minalização é uma medida positiva. Ainda assim, duvido da
conveniência de uma tal medida, uma vez que, no meu
modo de ver, o fator principal que sustenta o tráfico de
drogas é o consumidor. Volto ao argumento óbvio, confor-
me o qual não há mercado para mercadorias que não se
consomem. Então, se o tráfico ganhou a dimensão que tem
hoje, foi porque, a cada dia, número maior de pessoas con-
some drogas. E um dos argumentos usados pelos defenso-
res da liberação das drogas é o de que a repressão não deu
os resultados esperados, uma vez que o tráfico, em lugar de

48
diminuir, aumentou. Já discuti esse argumento, que me pa-
rece descabido. Basta raciocinar: desde que a humanidade
existe, combate-se a criminalidade e, não obstante, ela não
acabou. Pelo contrário, aumentou. Devemos concluir, pois,
que a Justiça fracassou e que, por isso, o certo é acabar com
ela? É claro que não. Se se praticasse semelhante insensatez,
simplesmente, poríamos fim à sociedade humana. O certo é
entender que determinados problemas não têm solução defi-
nitiva, mas nem por isso devemos nos render a eles, sob pe-
na de se tornar inviável o convívio humano. A droga é um
desses problemas. Exterminá-la definitivamente parece-nos
impossível, mas, por outro lado, aceitá-la é abrir mão de im-
portantes valores que o homem conquistou ao longo de sua
história. A droga é uma herança de tempos remotos, quando
estava associada à concepção ingênua e mágica da existên-
cia. E a ciência mostrou que os efeitos que aquela provoca
são resultados de elementos alucinógenos que fazem parte
de sua composição química. Ela se alimenta daquilo que, no
ser humano, resiste à compreensão objetiva e racional da e-
xistência. Como, talvez, o ser humano jamais alcance um
estado permanente de lucidez, em face do mistério da vida,
a droga continuará a ser necessária a uma parte da socieda-
de, que, naquela, encontra compensação para suas ansieda-
des. Disso se valem e se valerão produtores e vendedores de
drogas. As últimas apreensões de drogas, ocorridas no Bra-
sil, indicam o crescente poderio econômico e técnico de tra-
ficantes. São toneladas de maconha, cocaína e crack, o que
pressupõe um crescimento progressivo de consumidores. A-
creditar que a legalização das drogas fará que essas organi-
zações clandestinas se tornem, de repente, empresas legais,
é excesso de boa-fé. E o que fazer com drogas sintéticas que,
por se multiplicarem rapidamente, gozam de legalidade, já
que os órgãos de repressão nem sequer as conhecem? A le-
galização de drogas transformaria o Brasil num centro inter-
nacional de consumo, como é hoje a Holanda. Outro ponto
que os defensores da legalização parecem ignorar é o fato
de que consumidores de drogas (em sua maioria, jovens)
nem sempre dispõem de dinheiro para comprá-las, e isso os
leva a praticar roubos e assaltos. Hoje, a maioria dos crimes
está ligada, de uma maneira ou outra, ao tráfico e consumo
de drogas. Na verdade, o viciado é um aliado do traficante
– já que têm interesses comuns – e o ajuda a burlar repres-
sões. Amparado na lei, o viciado em drogas vai se sentir
mais à vontade para consegui-la a qualquer preço, sem que
a família tenha autoridade de impedi-lo, já que estará agin-
do dentro da legalidade. A alternativa seria o Ministério da
Saúde – que não consegue manter em funcionamento satis-
fatório os hospitais, por falta de verbas – subvencionar ví-
cios de drogados? Creio que tudo conduza à conclusão de
que o caminho certo é batalhar para reduzir o número de
consumidores de drogas, e isso só será possível se as auto-
ridades, em níveis nacional e internacional, se dispuserem a
promover trabalho sistemático de esclarecimento e educa-
ção dos jovens para mostrar-lhes que as drogas só os levarão Efeitos adversos da maconha
à autodestruição.
Dráuzio Varella
(Folha de S. Paulo, “Ilustrada”, 10.06.2012)
Maconheiro é louco para dizer que maconha não vi-
cia nem faz mal. Vou resumir uma revisão da literatura so-
bre efeitos adversos da maconha, publicada no “The New
England Journal of Medicine”, por pesquisadores américa-
nos do National Institute on Drug Abuse: 1) Dependência:

49
de 3% nos anos 1980, para 12% em 2012. E o aumento da
concentração do componente ativo dificulta a interpretação
inquéritos mostram que 9%, dos que experimentam, se tor- dos estudos sobre os efeitos do uso prolongado. E sobre os
nam dependentes. Esse número chega a 1 em cada 6 no ca- efeitos benéficos da maconha, nenhuma palavra? Lamento
so daqueles que começam a usá-la na adolescência. Entre os desapontá-lo, leitor aflito, mas prometo que será o tema da
que fazem uso diário, 25 a 50% exibem sintomas de de- próxima coluna.
pendência. Comparados com os que começaram a fumar na
vida adulta, os que o fizeram enquanto adolescentes a- (Folha de S. Paulo, “Cotidiano”, 28.06.2014)
presentam 2 a 4 vezes mais sintomas de dependência quan-
do avaliados dois anos depois de fumar o primeiro basea- Efeitos benéficos da maconha
do. Uma vez instalada a dependência surgem crises de abs-
tinência: irritabilidade, insônia, instabilidade de humor, an- Não são poucos os benefícios potenciais da maco-
siedade. 2) Alterações cerebrais: da fase pré-natal aos 21 a- nha. Na última coluna, falamos sobre os efeitos adversos,
nos de idade, o cérebro está em estado de desenvolvimento apresentados numa revisão recém-publicada no “The New
ativo, guiado pelas experiências. Nesse período, fica mais England Journal of Medicine”. Explicamos que os estudos
vulnerável aos insultos ambientais e à exposição a drogas na área padecem de problemas metodológicos e, geralmen-
como tetrahidrocanabinol (THC). Adultos que se tornaram te, envolvem usuários que consomem quantias maiores por
usuários na adolescência apresentam menos conexões en- muitos anos, acondicionadas em baseados com concentra-
tre neurônios em áreas específicas do cérebro que contro- ções variáveis de tetrahidrocanabinol (THC), o componen-
lam funções como aprendizado e memória (hipocampo), a- te ativo. Como consequência, ficam sem respostas claras as
tenção e percepção consciente (precúneo), controle inibitó- consequências indesejáveis no caso dos usuários ocasio-
rio e tomada de decisões (lobo pré-frontal), hábitos e roti- nais, a grande massa de consumidores. Em compensação, o
nas (redes subcorticais). Essas alterações podem explicar as uso medicinal do THC e de demais canabinoides dele de-
dificuldades de aprendizado e o QI mais baixo dos adul-tos rivados está fartamente documentado. A descoberta de que
jovens que fumam desde a adolescência. 3) Porta de os canabinoides se ligavam aos receptores CB existentes na
entrada: qualquer droga psicoativa pode moldar o cérebro membrana celular dos neurônios aconteceu em 1988. Dois
para respostas exacerbadas a outras drogas. Nesse sentido, anos mais tarde, esses receptores foram clonados e
o THC não é mais nocivo do que o álcool e a nicotina. 4) mapeadas suas localizações no cérebro. Em 1992, foi iden-
Transtornos mentais: o uso regular aumenta o risco de cri- tificada a anandamida, substância existente no sistema ner-
ses de ansiedade, depressão e psicoses, em pessoas com voso central, relacionada aos receptores mas distinta deles.
vulnerabilidade genética. Uso frequente, em doses eleva- A partir de então, diversos trabalhos revelaram que os ca-
das, durante mais tempo, modificam o curso da esquizofre- nabinoides naturais ou sintéticos desempenham papel im-
nia, e reduzem de 2 a 6 anos o tempo para a ocorrência do portante na modulação da dor, controle dos movimentos,
primeiro surto. O que os estudos não conseguem estabele- formação e arquivamento de memórias e na resposta imu-
cer é a causalidade, isto é, se a maconha provoca esses dis- nológica. Pesquisas com animais de laboratório demons-
túrbios ou se os portadores deles usam a droga para aliviar traram que o cérebro desenvolve tolerância aos canabinoi-
suas angústias. 5) Performance escolar: na fase de intoxi- des e que eles podem causar dependência, embora esse po-
cação aguda, o THC interfere com funções cognitivas críti- tencial seja menor do que o da heroína, nicotina, cocaína,
cas, efeito que se mantém por alguns dias. O fato de a ação álcool e de benzodiazepínicos, como o diazepan. Hoje, sa-
no sistema nervoso central persistir, mesmo depois da eli- bemos que o uso de maconha tem ação benéfica nos se-
minação do THC, faz supor que o uso continuado, em do- guintes casos: 1) Glaucoma: doença causada pelo aumento
ses elevadas, provoque deficiências cognitivas duradouras, da pressão intraocular, pode ser combatida com os efeitos
que afetam a memória e a atenção, funções essenciais para transitórios do THC na redução da pressão interna do olho.
o aprendizado. Essas relações, no entanto, são muito mais Existem, no entanto, medicamentos bem mais eficazes. 2)
complexas que estudos sugerem. O uso de maconha é mais Náuseas: o tratamento das náuseas provocadas pela quimi-
frequente em situações sociais que interferem diretamente oterapia do câncer foi uma das primeiras aplicações clíni-
na escolaridade: pobreza, desemprego, falta dos estímulos cas do THC. Hoje a oncologia dispõe de antieméticos mais
culturais, insatisfação com a vida e desinteresse pela esco- potentes. 3) Anorexia e caquexia associada à Aids: a me-
la. 6) Acidentes: a exposição ao THC compromete a habi- lhora do apetite e o ganho de peso em doentes com Aids a-
lidade de dirigir. Há uma relação direta entre as concentra- vançada foram descritos há mais de 20 anos, antes mesmo
ções de THC na corrente sanguínea e a probabilidade de a- de terem surgido antivirais modernos. 4) Dores crônicas: a
cidentes no trânsito. 7) Câncer e doenças pulmonares: em- maconha é usada há séculos com essa finalidade. Os cana-
bora a relação entre maconha e câncer de pulmão não pos- binoides exercem o efeito antiálgico ao agir em receptores
sa ser afastada, o risco é menor do que aquele associado ao existentes no cérebro e noutros tecidos. O dronabinol, co-
fumo. Porém, fumar maconha com regularidade, durante a- mercializado em diversos países para uso oral, reduz a sen-
nos, provoca inflamação das vias aéreas, aumenta a resis- sibilidade à dor, com menos efeitos colaterais que o THC
tência à passagem do ar pelos brônquios e diminui a elasti- fumado. 5) Inflamações: o THC e o canabidiol são dotados
cidade do tecido pulmonar, alterações associadas ao enfi- de efeito anti-inflamatório que os torna candidatos a tratar
sema pulmonar. Não há demonstração de que o uso ocasio- enfermidades como a artrite reumatoide e as doenças infla-
nal cause esses malefícios. O uso frequente agride a parede matórias do trato gastrointestinal (retocolite ulcerativa, do-
interna das artérias e predispõe ao infarto do miocárdio, ença de Crohn, entre outras). 6) Esclerose múltipla: o THC
derrame cerebral e isquemias transitórias. Nos Estados U- combate as dores neuropáticas, a espasticidade e os distúr-
nidos, país em que a maioria desses estudos foram realiza- bios de sono causados pela doença. O Nabiximol, canabi-
dos, o conteúdo de THC na maconha apreendida aumentou noide comercializado com tal indicação na Inglaterra, Ca-

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levará vantagem; se for barata, estimula o consumo. Como
controlar a quantidade permitida para cada comprador? E os
nadá e outros países com o nome de Sativex, não está dis- pontos de venda? Farmácias como no Uruguai, os coffee
ponível para pacientes brasileiros. 4) Epilepsia: estudo re- shops como na Holanda, lojas especializadas ou nossas pa-
cente mostrou que 11% dos pacientes ficaram livres de cri- darias, que já comercializam álcool e cigarros? Se a inicia-
ses convulsivas com o uso de maconha com teores altos de tiva privada estiver envolvida em qualquer fase do proces-
canabidiol; em 42%, o número de crises diminuiu 80%; e, so, como impedir o marketing para aumentar as vendas? A
em 32% dos casos, a redução variou de 25 a 60%. Canabi- experiência com o álcool e o fumo mostra que deixar dro-
noides sintéticos de uso oral estão liberados em países eu- gas legais nas mãos de particulares resulta em milhões de
ropeus. Com tal espectro de ações em patologias tão diver- dependentes. São tantas as dificuldades que fica mais fácil
sas, só gente muito despreparada pode ignorar o interesse proibir. Tudo bem, se as consequências não fossem tão ne-
medicinal da maconha. Qual a justificativa para impedir que fastas. A que levou a famigerada política de guerra às dro-
comprimidos de THC e seus derivados cheguem aos que gas, senão à violência urbana, crime organizado, corrupção
poderiam se beneficiar deles? Está certo jogar pessoas generalizada, marginalização dos pobres, cadeias abarrota-
doentes nas mãos dos traficantes? No entanto, o argumento das e disseminação do consumo? Legalizar não é “liberar
de que o uso de maconha deve ser liberado em virtude dos geral”. É possível criar leis e estabelecer regras que prote-
efeitos benéficos que acabamos de enumerar é insustentá- jam os adolescentes, disciplinem o uso e permitam ofere-cer
vel: a maioria dos usuários não o faz com finalidade tera- assistência a interessados em livrar-se da dependência.
pêutica, mas recreativa. Como diz o povo: “uma coisa é u- Dinheiro gasto na repressão seria mais útil em campanhas
ma coisa”. Acho que a maconha deve ser legalizada, sim, educativas para explicar às crianças que drogas psicoativas
mas por razões que discutiremos na nossa próxima coluna. fazem mal, prejudicam aprendizado, isolam o usuário, tu-
multuam a vida familiar e causam dependência química es-
(Folha de S. Paulo, “Cotidiano”, 12.07.2014) cravizadora. Nos anos 1960, mais de 60% dos adultos bra-
sileiros fumavam cigarro. Hoje, são 15% a 17%, números
Legalização da maconha que não param de cair, porque esta-mos aprendendo a lidar
com dependência de nicotina, esclarecer a população a res-
Dráuzio Varella peito dos malefícios do fumo e criar regras de convívio so-
cial com fumantes. Embora os efeitos adversos do tabagis-
Em duas colunas anteriores mostramos que os efei- mo sejam mais trágicos que os da maconha, algum cidadão
tos adversos da maconha não são poucos nem desprezíveis de bom senso proporia colocarmos o cigarro na ilegalida-
e que o componente psicoativo da planta pertence à classe de? Manter a ilusão de que a questão da maconha será re-
dos canabinoides, substâncias dotadas de diversas proprie- solvida pela repressão policial é fechar os olhos à realida-
dades medicinais. Falamos das evidências de que fumar de, é adotar a estratégia dos avestruzes. É insensato insis-
maconha pode causar dependência química – embora me- tirmos ad eternum num erro que traz consequências tão de-
nos intensa que a da nicotina, da cocaína ou dos benzodia- vastadoras, só por medo de cometer outros.
zepínicos que mulheres e homens de respeito tomam para
dormir. No final, dissemos que o inegável interesse medi- (Folha de S. Paulo, “Cotidiano”, 26.07.2014)
cinal de canabinoides não é justificativa para a legalização
da droga, já que a imensa maioria dos usuários o faz com
finalidade recreativa. Acho que a maconha deve ser legali-
zada por outras razões. A principal delas é o fracasso re-
tumbante da política de “guerra às drogas”. De acordo com
o 2º Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad),
realizado em 2012 pelo grupo do Dr. Ronaldo Laranjeira,
da Unifesp, cerca de 7% dos brasileiros entre 18 e 59 anos
já fumaram maconha. Descontados menores de idade, seri-
am 7,8 milhões de pessoas. Perto de 3,4 milhões haviam u-
sado no ano anterior. Como se trata de droga ilegal, pode-
ríamos considerá-los criminosos, portanto passíveis de pri-
são. E quantas cadeias seriam necessárias? Quem aceitaria
ver filho numa jaula superlotada, porque foi pego com ba-
seado? Legalizar, entretanto, não é empreitada corriqueira,
como atestam as experiências do Colorado, Washington,
Holanda e Uruguai. Quem ficaria encarregado da produção
e comercialização: o Estado ou a iniciativa privada? Fun-
daríamos a Maconhabrás e colocaríamos fora da lei planta-
ções particulares? Seriam autorizados cultivos para consu-
mo pessoal? Há amparo jurídico para reprimir a produção
doméstica de uma droga legal? Por acaso é crime plantar
fumo no jardim, ou destilar cachaça em casa, para uso pró-
prio? Quantos pés cada um teria direito de cultivar? Os que
excedessem a cota seriam obrigados a incinerar o excesso,
ou iriam para a cadeia? Quem fiscalizaria de casa em casa?
A que preço a droga seria vendida? Se custar caro o tráfico

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