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170 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº.

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Democracia por entre ção de que estaríamos diante de um mito não es-
friou as críticas advindas dos movimentos negros
classes e raças que se espalharam pelo país, nem as da academia,
e as representações paradoxais que surgiam nos
Antonio Sérgio Alfredo GUIMARÃES. Classes, ra- tratados sobre identidade nacional, nas artes, na li-
ças e democracia. São Paulo, Editora 34, 2002. teratura ou nas manifestações da cultura popular
231 páginas. acabaram por constituir uma arena de debate. Eis
o Brasil repetidamente confirmado como nação
Omar Ribeiro Thomaz naquilo que caracteriza essas entidades políticas
modernas: antes de serem um produto material
Respeite meus cabelos, brancos acabado, ou uma realidade social transparente,
Chico César parece que temos diante de nós um debate sem
fim, um foco virtual a orientar projetos e ansieda-
O Brasil mudou. E mudou ali onde, ao lon- des, instituições e expectativas, interpretações do
go de décadas, suspeitou-se que estaríamos dian- passado e projeções de futuro.
te do irredutível: aquelas representações que afir- Antônio Sérgio Guimarães não se furta em
mavam traduzir o que seria a nossa identidade nenhum momento à complexidade que se desenha
nacional. Como numa espécie de suspensão do diante de seus olhos. Num conjunto de ensaios
tempo, imaginou-se, durante décadas, um Brasil que supera as fronteiras existentes entre as ciências
que se realizaria no espaço, e que não seria outro sociais, o autor digladia-se igualmente com a lite-
se não o país que resultasse do encontro das três ratura propriamente sociológica e a que viria de
raças constitutivas de nossa nacionalidade. Pode- uma tradição antropológica, com as vozes que vêm
mos afirmar, sem medo, a existência de uma lon- da arte e da literatura e aquela que se apresenta
ga tradição discursiva (e política) que predestina- como proveniente de movimentos sociais. Afinal
va o Brasil à superação de sua marca de origem, a de contas, de identidade nacional se trata, e sobre
violência inerente ao sistema escravista, estando ela, incluídos e excluídos, ricos e pobres, “brancos”
assim a construção da nação condenada a superar e “negros”, todos temos algo a dizer.
a distância inicial imposta aos grupos formadores. Os principais interlocutores de Antônio Sér-
É Gilberto Freyre quem cria um verdadeiro esque- gio são, com toda a certeza, de duas ordens dis-
ma espacial e funcional numa forma mais acaba- tintas. De um lado, seus pares: sociólogos e antro-
da, o qual representaria a superação da distância pólogos; de outro, e em pé de igualdade, a
existente entre a casa-grande e a senzala, entre o inteligentsia vinculada aos movimentos sociais no
sobrado e o mocambo, num processo social espe- Brasil, particularmente os movimentos negros.
cífico, a mestiçagem. Ao mulato caberia a reden- Para estes, o mito de democracia racial tornar-se-
ção de nossa história que, diga-se de passagem, ia seu principal alvo, assim como para a literatu-
foi descrita por Freyre em sua obra magistral nos ra especializada, de forma evidente a partir da dé-
anos de 1930 como violenta e prenhe de conflitos. cada de 1970 e do acirramento das lutas pela
De teoria do Brasil à ideologia, de interpreta- democratização do país. Contra a ordem harmo-
ção do país à cultura nacional, a democracia social niosa e não-conflitiva pintada pelo enredo mítico,
de Freyre, transformada em democracia racial, pa- ergue-se a fala desmistificadora que revela a so-
recia ter vindo para ficar. Em todo caso, como ciedade brasileira tal como ela é: racista e discri-
tudo aquilo que chega em sua casa e parece se minadora. A democracia racial teria se tornado
eternizar, tal interpretação não deixou de provocar uma espécie de instrumento ideológico que legi-
incômodos desde o princípio. Já nos anos de 1930 tima as desigualdades e impede a transformação.1
e 1940, várias vozes levantaram-se no sentido de Numa leitura certamente interessada, já co-
criticar essa visão autocomplacente que passara a mum em nossa tradição intelectual, dois momen-
predominar entre nós, e que teve conseqüências tos se destacam: a década de 1930 e Gilberto
em projetos políticos e nas instituições. A percep- Freyre, momento em que o mito é construído, e
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os anos de 1950, quando, sob a batuta de Flores- de “raça” não implica seu abandono como cate-
tan Fernandes e Roger Bastide, de um lado, e goria social que opera nas relações sociais.
Guerreiro Ramos e Costa Pinto, de outro, denun- O dilema não é menos aflitivo do que aque-
cia-se o preconceito e a discriminação, ainda que le enfrentado por Vicent Capranzano no início da
sob pena de a questão racial ter-se reduzido à década de 1980, quando procurava, a partir de
problemática de classes. um procedimento etnográfico, compreender a
E é justamente tendo como ponto de partida instituição do poder do ponto de vista dos pode-
o conceito de classe social – e seus desdobramen- rosos na África do Sul então dominada pelo apar-
tos na sociologia no Brasil – que Antônio Sérgio theid.2 A proposta implicava uma aproximação ao
Guimarães inicia esta coletânea de ensaios que, mundo dos “brancos”, divididos entre anglófonos
arrisco, veio para ficar. Para além do rigor concei- e boers. A crítica ao apartheid, por parte do an-
tual anunciado logo no primeiro momento – o tropólogo, começava numa tentativa de se afastar
que em seus próprios termos garante a perenida- de categorias como “negros”, “brancos”, “india-
de de um trabalho sociológico – o conjunto dos nos” ou “coloured” – tratava-se afinal de classifi-
ensaios é o que melhor representa o terremoto cações criadas pelo apartheid para garantir sua
que, há pelo menos uma década, tem contempla- perpetuação. No momento de construir o texto,
do o panorama das ciências sociais no Brasil, pre- Capranzano não conseguiu escapar dos termos
nunciado na necessidade de revisitar a nossa tra- por ele criticados, pois se encontrara com um
dição intelectual, rever os clássicos, renovar sua mundo social efetivamente dividido entre “bran-
leitura e, de quebra, chacoalhar os lugares co- cos”, “negros”, “indianos” e “coloureds”.
muns que dominam qualquer universo social – Lidamos com um dilema pelo menos análogo
como lembra Bourdieu, o mundo intelectual é um no Brasil? Um conceito como o de “raça”, criticado
mundo social como qualquer outro. E mais: se há pelo menos um século por uma vigorosa tradi-
desejamos uma sociedade mais justa, devemos ção antropológica, poderia ser incorporado como
(nós, da universidade) repensar a nossa já históri- uma categoria social? Antônio Sérgio encontra-se
ca relação com outros grupos sociais – nomeada- em meio a um debate, que é recuperado ao longo
mente movimentos sociais, sindicatos e organiza- dos seus ensaios, em especial no capítulo 2, quan-
ções políticas – e com o Estado. do o autor dá voz aos seus críticos. A idéia de
O problema é ainda mais intrincado, pois os “raça” como um conceito nativo que não poderia
dois conceitos iniciais que orientam a análise de ser assim incorporado como categoria sociológica,
Antônio Sérgio, “classe social” e “raça”, são, como ou a noção (esta sim muito presente na academia
de praxe, importados. Importados de tradições brasileira) de que se trataria da manipulação de um
sociológicas hegemônicas que pautaram a conso- jogo dual de classificações devedor de uma reali-
lidação da moderna sociologia entre nós (poderia dade estrangeira, particularmente dos Estados Uni-
ser de outra forma?) e de tradições culturais e po- dos, constituem argumentos respondidos pelo au-
líticas estrangeiras não menos hegemônicas. À crí- tor quando procura apresentar as linhas que
tica de que o conceito de classe social não dá conduzem a discussão em torno do racialismo.
conta da particularidade da reprodução da desi- Antônio Sérgio incorpora ainda as críticas daqueles
gualdade social e da pobreza entre nós – o que que vêm na noção de “raça” algo carregado de um
exige sua revisão, tema do primeiro capítulo – so- sentido histórico preciso, claramente devedor da
brepõe-se o desconforto suposto numa idéia de biologia ou da genética.
“raça” (sempre entre “aspas”) que parece distante O que parece que deveria constituir um ob-
do universo social brasileiro – tema do livro como jeto mais sistemático de análise, ou dúvida, diz
um todo, mas particularmente do capítulo 2. respeito à afirmação de que a noção de “raça”,
Ciente desse desconforto, sobre o qual muito tem como conceito nativo, é realmente operativa para
sido escrito nos últimos anos, Antônio Sérgio en- compreender a realidade brasileira. Se é evidente
frenta o problema da seguinte forma: a percepção que estamos num país numericamente dividido
sociológica do caráter questionável do conceito pelo censo como sendo formado por “brancos”,
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“pretos”, “pardos”, “amarelos” e “índios”, e que é iluminar o processo de insulto por meio do expe-
percebido por setores dos movimentos negros e diente judicial, o qual, por definição, recorta o
por alguns intelectuais como pautado pela exis- conflito a partir do uso explícito de termos racia-
tência de “negros” e “brancos”, valeria a pena lizantes, não permite que cheguemos à conclusão
lembrar aqueles que insistem na evidência de de que o insulto institucionalize a possibilidade
uma dinâmica social pautada pela ambigüidade de “fazer o insultado retornar a um lugar inferior
quanto às classificações baseadas em fenótipo ou já historicamente constituído” (p. 194). No limite,
origem. Injusto seria dizer que Antônio Sérgio não parece que o autor se apropria da forma de um
tem em conta autores como Peter Fry, Yvonne discurso social extra-legal, “o insulto racial”, para
Maggie ou Mônica Grin. Parece no entanto que descrever e informar um processo de instituciona-
deveríamos levar adiante esta reflexão, que, por lização de pretensões de inferiorização. A circula-
outro lado, não coloca em xeque a proposta do ridade do raciocínio, contudo, não compromete a
autor, particularmente no que diz respeito às aná- importância de cada um dos pólos desse proces-
lises que têm a pobreza como questão. so, apenas chama a atenção sobre as inúmeras
De certa forma, essa ambigüidade está pre- possibilidades abertas pela riqueza do material le-
sente quando Antônio Sérgio incorpora em sua vantado e para a complexidade social interna às
análise uma reflexão sobre os “baianos” da cida- relações pautadas pelo insulto. Suspendendo, ain-
de de São Paulo. Se é evidente que a clara per- da que momentaneamente, suas conclusões, acei-
cepção de que estamos diante de uma violenta ta-se o convite proposto pelo próprio autor para
discriminação de um grupo balança os alicerces participar ativamente no debate vivo plasmado
de uma nação que se queria étnica e regional- neste e em outros volumes escritos por Antônio
mente harmônica, não é menos claro que um gru- Sérgio Guimarães.
po como o dos “baianos” nos obriga a rever rígi- De alguma forma, seu trabalho indica uma
das categorias pautadas pela idéia de “raça”. Aqui, forte tendência a um reencontro das ciências so-
ao fenótipo se somam outras características cru- ciais com momentos decisivos de sua história,
ciais para definir a experiência da discriminação, agora em outros termos, pois deparamo-nos com
como gestos, sotaques etc. uma sociedade que passou por um recente pro-
Por fim, ao enfrentar o mito por sua negação cesso de democratização e que agora, mais do
cotidiana, o insulto racial, Antônio Sérgio apre- que nunca, olha para a academia não apenas à
senta um dos ensaios mais luminosos desta cole- espera de soluções, mas com a expectativa da-
tânea, o qual deve (eu espero) render múltiplas et- queles que exigem um tratamento pautado por
nografias e estudos de caso, pelas questões que noções de igualdade – isto sim, algo, até agora,
levanta. O insulto racial constitui um dos rituais alheio à nossa tradição histórica.
mais perversos do nosso cotidiano, representando
uma dimensão essencial das relações entre os
grupos sociais no Brasil, e revela uma dimensão NOTAS
privada nem sempre bem trabalhada pelas ciên-
cias sociais: o sofrimento individual como esfera 1 Cf. “Democracia racial: o mito e o desejo”,
decisiva na criação de subjetividades e na repro- mesa-redonda, Folhetim, Folha de S. Paulo,
dução de jogos sociais. Sua porta de entrada são 8/6/1980.
as demandas apresentadas na Delegacia de Cri- 2 Vicent Capranzano, Wainting: the whites of
mes Raciais da cidade de São Paulo, o que, em South Africa, Londres, Granada, 1985.
princípio, oferece certas limitações, para as quais
o autor está absolutamente atento. A primeira diz OMAR RIBEIRO THOMAZ é professor do De-
respeito à premissa de que o insulto racial, que partamento de Antropologia da Unicamp e
nos envolve a todos, possíveis insultantes e possí- pesquisador do Centro Brasileiro de Análise
veis insultados, desde a mais tenra idade, pode se e Planejamento e do Núcleo de Pesquisa so-
traduzir numa demanda judicial. A tentativa de bre o Ensino Superior.

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