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humanidades

reproduções do livro rio de janeiro - Cidade Mestiça


[ História ]

A saudade
que mata
Pesquisa discute a polêmica questão do banzo
como “nostalgia mortal” dos escravos | Carlos Haag

V
ai com a sombra crescendo o vulto seja a sua forma extrema, o suicídio,
enorme/ Do baobá.../ E cresce na alma como decorrentes dos “desgostos pro-
o vulto de uma tristeza, imensa, imen- venientes do cativeiro”, fórmula usada
samente...”, escreveu o poeta parnasia- no século XIX para encobrir a natureza
no Raimundo Correia no soneto Banzo. violenta da relação entre escravos e se-
Essa tristeza, batizada de banzo, era um nhores. Na história do banzo, então, se
estado de depressão psicológica que cruzam várias rotas da história: histó-
tomava conta dos africanos escraviza- rias da psicopatologia, do tráfico tran-
dos assim que desembarcavam no Brasil e seria uma satlântico de escravos e das doenças.
enfermidade crônica: a nostalgia profunda que levava “A enfermidade sempre aparece numa
os negros à morte. “No século XIX, obras como as do dupla posição: ela é uma entidade clíni-
médico francês François Sigaud e do naturalista Carl F. ca, uma variação da nostalgia europeia
von Martius, bem como crônicas de viajantes europeus, nos trópicos, associada a outras doenças
veicularam essa ideia de uma nostalgia fatal dos escravos. dos negros e, ao mesmo tempo, não se
Nestes relatos, as mortes voluntárias dos cativos são dissocia dos debates políticos sobre o ca-
descritas como uma forma passiva de suicídio – recusar tiveiro negro”, observa a pesquisadora.
alimentos e deixar-se morrer de inanição e tristeza – e Segundo o Vocabulário, de Bluteau, de
também pelos métodos universais, como enforcamen- 1712, um jogo está banzeiro quando nem
to, afogamento, uso de armas brancas etc.”, explica a uma das partes ganha, uma indefinição
psiquiatra Ana Maria Galdini Oda, professora adjunta enervante. “A história do banzo remete
do Departamento de Medicina do Centro de Ciências a um jogo assim, de escravos contra se-
Biológicas e da Saúde da Universidade Federal de São nhores, da vida contra a morte, em longa
Carlos (UFScar), que analisou o banzo em sua pesquisa e tensa peleja.” Curiosamente, o conceito
Dos desgostos provenientes do cativeiro: uma história da de banzo deve sua origem a uma formu-
psicopatologia dos escravos brasileiros no século XIX, que lação europeia sobre a nostalgia como
recebeu da FAPESP uma bolsa do Programa de Jovem doença. O ponto inicial dessa história
Pesquisador em Centro Emergente. “Invariavelmente, é a dissertação do médico suíço Johan-
os narradores atribuíam esse desejo de morrer a uma nes Hofer (Basileia, 1678), De nostal-
enfermidade melancólica, relacionada à situação de ca- gia, que descreve a “nostalgia”, palavra
tiveiro: o desgosto causado pelo afastamento violento composta a partir dos radicais gregos
da África, a revolta pela perda de liberdade e as reações nóstos (regresso) e álgos (dor física ou
Os castigos aos castigos pesados e injustos.” moral), como uma enfermidade a que
cruéis seriam Segundo a pesquisadora, a análise histórica da enfer- os suíços seriam predispostos, conhecida
responsáveis midade reafirma a necessidade de desfazer explicações como Heimweh (ou maladie du pays, na
pelo banzo simplificadoras sobre os males de escravos, seja o banzo, França, ou mal del corazón na Espanha).

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A melancolia seria uma indisposição por O banzo é apresentado como uma “gra- tada à Faculdade de Medicina do Rio
se estar ausente do lar que se transfor- víssima doença, causada pela exacerba- de Janeiro para a obtenção do título de
mava em enfermidade mortal. ção do sentimento de saudades”. doutor, considera o banzo como uma
No decorrer dos séculos XVIII e XIX, Essa imagem do banzo como fruto moléstia mental originada das saudades
a nostalgia tornou-se objeto de muitos da crueldade do tráfico estendeu-se à da pátria, tendo como sede o cérebro.
trabalhos médicos e, aos poucos, a me- primeira metade do século XIX e foi “Identificado com a classe senhorial, o
lancolia helvética foi rapidamente se tor- incorporada às narrativas de viagem, escritor romântico não demonstra sim-
nando menos suíça: a elevada ocorrên- aos compêndios de medicina tropical patia alguma pelos escravos, mas pen-
cia dessa enfermidade nos exércitos de e a teses de medicina. “É a vocação do sava que a nostalgia dos negros merecia
várias nações europeias tornara a pato- banzo para ser um tipo de ‘enfermi- ser estudada, pois a considerava como
logia um objeto de especial interesse dos dade-argumento’, mobilizada na luta potencial ameaça à economia nacional”,
médicos militares (como o cirurgião do contra a escravidão”, lembra a autora. relata a pesquisadora. Além dos três,
exército de Napoleão, Larrey), que rela- Sigaud, em Do clima e das doenças do outros estrangeiros trataram da ques-
tavam verdadeiras epidemias de nostal- Brasil (1844), lançado pela primeira tão da morte voluntária entre escravos
gia. Até o célebre Phillipe Pinel dedicou- vez em português este ano pela edito- no século XIX: Debret, Henry Koster,
-se ao tema na Encyclopédie méthodique. ra Fiocruz, considerava o banzo como Rugendas, Thomas Ewbank, Robert
“Certamente, os postulados dos vários uma doença mental, uma variante da Walsh, F. Dabadie, entre outros. “De-
médicos militares e outros cientistas nostalgia-melancolia desencadeada por pois desse interesse, o banzo permane-
foram estendidos para os africanos es- causas morais tais como as saudades cerá quase adormecido até os anos 1930
cravizados. Assim, pode-se considerar o da África ou o ressentimento por cas- e 1940, quando os chamados estudos
banzo como uma aplicação do conceito tigos injustos. Já Martius, em Natureza, afro-brasileiros o recolocaram como
de nostalgia, desenvolvido na Europa”, doen­ças, medicina e remédios dos índios potencial objeto de investigação. Ele se-
diz a autora. Mas o primeiro ilustrado a brasileiros (1844), faz uma compara- rá tomado como algo real, uma doença
analisar a questão sob o ponto de vista ção entre o banzo do negro e do índio, um pouco misteriosa, mas sem muita
dos escravos e descrever o banzo foi o afirmando que em ambos a melanco- problematização”, conta a autora.
advogado português, nascido na Bahia, lia reina como causa da morte, com
Luis Antonio de Oliveira Mendes, na sua a ressalva de que os negros pareciam Lar - Surge mesmo uma nova etimo-
Memória (1793) sobre a grande morta- sentir mais do que os indígenas os sen- logia para a palavra: banzo seria ligado
lidade dos africanos transportados ao timentos dolorosos, já que estes últimos ao quimbundo mbanza, aldeia, e assim
Brasil, feita a pedido da Academia Real seriam frios e distantes em oposição significaria a “saudade da aldeia” e, por
de Ciências de Lisboa. “Seu trabalho foi aos africanos, emotivos e passionais. extensão, do lar. “A origem africana da
a primeira publicação em língua portu- Joaquim Manuel de Macedo, em sua palavra me parece um pouco incerta. No
guesa a se ocupar da saúde dos escravos monografia sobre a nostalgia, escrita Vocabulário, de Bluteau, por exemplo, a
e é a principal fonte para as descrições em 1844 (o mesmo ano da publicação palavra “banzar” aparece como a ação de
do banzo no século XIX”, diz Ana Maria. de A moreninha) como tese apresen- ‘pasmar com pena’ e “banzeiro” seria algo
Destacando as ligações entre as enfermi- ‘inquieto, mal seguro’. Há quem acredite
dades mortais e o péssimo tratamento na origem portuguesa da palavra.” Em
dado aos cativos, Oliveira Mendes assi- 1933, o conceito reapareceu nas páginas
nala que, mesmo bárbaros, os africanos Escravos sem finais de Casa-Grande & Senzala (1933),
eram sinceros e constantes nos afetos. sua liberdade de Gilberto Freyre, cuja visão marcou
e vítimas de
sistema violento

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os relatos modernos da palavra: “Não historiador Renato Pinto Venâncio,
foi de todo alegria a vida dos negros. da Universidade Federal de Ouro
Houve os que se suicidaram comendo Preto e autor de Ancestrais: uma in-
terra, enforcando-se, envenenando-se. trodução à história da África Atlântica
O banzo, a saudade da África, deu cabo (Editora Campus). “Mas, como todo
de muitos. Houve os que de tão ban- testemunho do passado, isso deve ser
zeiros ficaram lesos, idiotas”, escreveu lido com olhos críticos: o registro de
Freyre. Em 1939 começaram a surgir suicídio pode encobrir assassinatos
visões médicas da moléstia, como a do praticados por senhores. Isso não im-
parasitologista Manoel Augusto Pirajá, plica diminuir o banzo como uma das
que afirmava ser o banzo uma forma expressões trágicas da loucura comum
da doença do sono, a tripanossomíase Máscara de ferro a milhões de pessoas vítimas do tráfico
africana, hipótese descartada atualmen- de escravos de escravos. A divulgação desse sofri-
te. “Uma proposta a se considerar é a do seria por causa mento nos jornais deve ter contribuído
psiquiatra Álvaro Rubim de Pinho, da da geofagia para a formação da sensibilidade abo-
Faculdade de Medicina da Bahia, expos- licionista na sociedade imperial. Daí
ta em Aspectos históricos da psiquiatria se entender o banzo como uma forma
folclórica no Brasil (1982). Segundo ele, não intencional de protesto político,
o banzo seria aproximado das chamadas meridional, de 1962) eles eram evidentes um exemplo primário de luta pela não
‘síndromes de campo de concentração’, manifestações de rebeldia, das poucas violência.” Os números esconderiam
diz a autora. O modelo é multicausal: o facultadas aos escravos. Os suicídios se- outras motivações. “Os homens livres
mal dos escravos seria um quadro em riam sinais de rebelião individual, assim ocultavam seus casos procurando
que se superporia um estado mental como os quilombos e as insurreições, de evitar sanções morais e religiosas, que
depressivo (característico de situações rebeldia coletiva”, explica a pesquisadora. impediam o sepultamento em cemi-
de terror, fome, confinamento etc.) a Para ela, porém, seja na perspectiva de térios, o que pode explicar o número
sintomas decorrentes de acentuada ca- Freyre, seja nesta, mais engajada, se deu elevado de mortes de cativos”, explica
rência nutricional e de vulnerabilidade pouco espaço aos fatores subjetivos en- o historiador Jackson Ferreira, da Uni-
a doenças graves, várias das quais seriam volvidos nas ações dos sujeitos históricos. versidade Federal da Bahia e autor do
as responsáveis pelos sintomas físicos e Assim, o suicídio cativo pode ser visto artigo “Por hoje se acaba a lida: suicí-
mentais do banzo.” também, mas jamais unicamente, como dio escravo na Bahia (1850-1888)”. “Os
A produção historiográfica dos anos forma de protesto ou fuga da situação de atos suicidas foram mais que expressão
1960 e 1970, contestando o que se cha- cativeiro, sempre considerando a com- e mecanismos de desespero, mas for-
mou de “mito da escravidão branda”, plexidade da experiência do cativeiro e a mas de negociar melhores condições,
preconizado por Freyre, enfatizou o ca- capacidade humana de descobrir formas de resistir às condições de cativeiro ou
ráter violento das relações entre senhores de viver em situações adversas. “Atribuir libertar-se dele, abandonando defini-
e escravos e deu nova acepção ao banzo. a motivação para a morte apenas à con- tivamente esta ‘terra de vivos’, como
“Estudos desse período associam atos dição cativa é uma abordagem simplis- escreveu o escravo Timóteo em sua
como suicídios, homicídios e agressões ta. Os atos suicidas são manifestações nota de suicídio.”
físicas à excessiva carga imposta pelo extremas que não podem ser reduzidas Ana Maria Oda está pesquisando
cativeiro e para alguns autores (como a uma explicação única, seja ela socioló- atualmente o curioso “suicídio por in-
Alípio Goulart em Da fuga ao suicídio, gica, antropológica ou psicopatológica”, gestão de terra”, citado com frequência
de 1972, ou Fernando Henrique Cardo- assegura o historiador Saulo Veiga Oli- por viajantes, no projeto Geofagia e
so em Capitalismo e escravidão no Brasil veira, que analisou a questão no artigo escravidão, financiado pelo Conselho
“O suicídio de escravos em São Paulo”, Nacional de Desenvolvimento Cientí-
publicado na revista História, Ciências, fico e Tecnológico (CNPq) e vinculado
Saúde – Manguinhos. “Basta ver que o ao Grupo de Pesquisa Escravidão, Raça
O Projeto
alto índice de suicídios entre escravos e Saúde, sediado na Casa de Oswaldo
nas últimas duas décadas da escravidão Cruz, Fiocruz. “A pica (alteração do
Dos desgostos provenientes do
é, em geral, atribuído aos ‘desgostos do hábito alimentar que inclui a ingestão
cativeiro - nº 2004/07810-9
cativeiro’, como reação à condição servil. de terra ou barro – a geofagia –, de cal,
modalidade Mas há muitos outros motivos: proble- madeira etc.) é interpretada como uma
Bolsa Jovem Pesquisador mas com a Justiça ou o medo de castigos deliberada ação em direção à morte, um
impostos pelo senhor.” método de suicídio lento dos negros es-
Co­or­de­na­dora cravos”, diz a pesquisadora. Debret re-
Ana Maria Oda - UFScar Assassinatos - “O índice de ‘mortes tratou escravos com máscaras de ferro
investimento
voluntárias’ entre escravos, quando colocadas para evitar a prática. “A geo-
R$ 230.994,90 (FAPESP) comparado ao de homens livres, era fagia como suicídio não se sustenta. Não
duas ou três vezes mais elevado e, em se determinaram as suas consequên­cias
geral, atribuído ao banzo”, afirma o sobre a saúde, más ou boas.” n

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