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MARTINEZ, Horácio Luján. Poder e Política: horizontes de antagonismos.

Curitiba:
Editora CRV, 2010, 170p.

PREFÁCIO:
De agonismos e antagonismos: para uma ética-política do dissenso

“(...) vemos triunfar na filosofia Este livro nasce de pensar a política em


política e nas ciências sociais um termos foucaultianos e até
discurso que glorifica o retorno do ator,
do individuo que discute que contrata
nietzscheanos onde o conflito funda
que age. No momento em que nos uma ontologia política ou “do político”.
dizem que os dados são inequívocos e Esta posição está sendo atualmente
que as escolhas se impõem por si renovada nos textos da politicóloga
mesmas, celebra-se ruidosamente o belga Chantal Mouffe. Para esta autora
retorno do ator racional à cena social.
Quanto menos coisas há a discutir,
a política é o campo de um
mais se celebra a ética da discussão, da inerradicável conflito. Este conflito dá
razão comunicativa como fundamento lugar a “antagonismos” onde se procura
da política. Há um quarto de século, a eliminação (por vezes simbólica, por
víamos indivíduos partindo para criar vezes não) do adversário e também a
núcleos de guerrilha, levando nos
bolsos livros que proclamavam a
“agonismos” onde se parte do conflito e
supremacia da lei das estruturas sobre a a existência do “outro” como elemento
autonomia dos sujeitos. Hoje, ao constitutivo “do político”. As posições
contrário, em todos os comitês oficiais, que alimentam antagonismos pensam a
vemos pessoas carregando nos bolsos oposição como defeito a ser
obras sobre o retorno do ator, da
escolha e da autonomia, constatando
solucionado pelo consenso ou pelo uso
que não há outra coisa a fazer além do da força. O “agonismo” levaria a um
que fazem nossos governos.” Jacques horizonte de conflito que não seria outro
Rancière. “O dissenso”1 que o da “radicalização da democracia”.

1
Capítulo do livro A crise da razão. Adauto Companhia das Letras. Tradução de Paulo
Navaes (Org.) São Paulo: Minc-Funarte. Neves. 2006 p. 367

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É necessário, aqui, distinguir entre “a ter seus problemas. Deve-se admitir que
política” (politics) e “o político” (the em certas condições, existe sempre a
political). A “política” é a dimensão possibilidade de que a relação
empírica “do político”, isto é, as ações “nós/eles” se torne antagônica, isto é,
que conduzem à hegemonia de um vire uma relação de oposição
grupo; as práticas e instituições através “amigo/inimigo”. Não obstante isto, ela
das quais se cria uma determinada salienta que a distinção amigo/inimigo
ordem e organização da coexistência pode ser considerada tão somente como
humana.2 uma das formas de expressão possível
desta dimensão antagônica que é
“O político” é o campo de conflito e
constitutiva do “político”. Deve-se,
pertence a nossa condição ontológica.3
Com Freud percebemos que a embora admitindo a possibilidade
sempre presente do antagonismo,
irracionalidade da luta de Eros e
Tanatos atravessa e funda essa imaginar outros modos de construção
do binômio “nós/eles”. O desafio para a
condição. Não somos animais
contratuais ou o somos em casos em política democrática é o de tentar
que não há outra saída. impedir o surgimento do antagonismo
mediante um modo diferente de
Mouffe recupera a leitura de Carl estabelecer a relação “nós/eles”. O
Schmitt4 e sua critica ao liberalismo a verdadeiro problema é transformar
partir da distinção amigo/inimigo. Mas “antagonismo” como relação de forças
ela pensa “Schmitt contra Schmitt” isto não em equilíbrio, mas em algo
é, enquanto o jurista alemão procura e parecido com a fricção que não chega a
precisa de um demos homogêneo, o que acender o fogo.
o faz excluir a possibilidade do
pluralismo; para nossa comentadora do O “agonismo”, assim, seria um modo de
que se trata é, precisamente, de “dessubliminar” a violência, de não
estimular e reconhecer as diferenças colocá-la ao lado de uma hipotética
plurais. Estas diferenças só serão fundação do estado com a intenção
possíveis a partir da criação e primária de desterrá-la para sempre
manutenção de identidades políticas (Hobbes na leitura de Foucault)5.
coletivas. A negação da dimensão conflitiva do
político não é uma omissão empírica,
Esta posição de Mouffe, favorável a
mas uma omissão constitutiva do
uma espécie de agonismo, não deixa de
pensamento liberal e por isto, e como
2
Ver, entre outros, The democratic paradox.
hegemonia política de nosso tempo, os
Chantal Mouffe. London: Verso 2009 autores aqui reunidos pensam em torno
3
Não podemos entrar aqui, a pesar de muito da crítica ao liberalismo.
interessante, no debate proposto por Alain
Badiou em seu Compêndio de metapolítica, Achamos que a idéia da exclusão da
sobre a existência ou não do “político”. violência em função da ordem racional
4
Com todas as reservas do caso. “Criticar é a ilusão que favorece que cada vez
Schmitt e não utilizá-lo por motivos morais que um setor hierarquicamente
constitui uma típica tendência moralista
característica do Zeitgeist pós-político.” Chantal
importante da sociedade se sinta “em
Mouffe En torno a lo político. Buenos Aires: perigo”, a violência apareça novamente,
Fondo de Cultura Económica 2005 p.12 Esse seja sob a forma de “gatilho fácil” ou
Zeitgeist consiste em manifestar o político num
registro moral, isto é, uma forma de política que
5
inibe a luta, mas habilita o escândalo moral, Ver Michel Foucault Em defesa da sociedade.
como veremos a seguir. Aula de 4 de fevereiro de 1976.

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“chacina” (Brasil) ou de ditadura depois de ter preparado o terreno, estas
genocida (Argentina e Chile). Neste críticas promovam a assimilação fácil
sentido as posições dialoguistas que entre qualquer governo dito populista e
pensam o consenso como o telos o fascismo ou até o nazismo.
intrínseco, podem acabar – mesmo que Estabelece-se uma genealogia espúria e
por defeito – criando as condições de perigosa que começa com Gustave Le
possibilidade para a violência política. Bon, se enriquece na passagem por
Quando o consenso não é atingido, a Joseph Goebbels e Hitler e chega até
parte que está numa posição mais forte Hugo Chávez.
de poder legitima a coação (uso de
A política como campo de conflito é
força), uma vez que já foi o
conhecida suficientemente na América
suficientemente tolerante (pensar na
Latina, política que entre graves casos
posição atual dos EUA com o Irã, por
de corrupção (Brasil e quase América
exemplo). Neste sentido, a tolerância e a Latina toda), enfrentamentos levados
paciência política podem agir
até o paroxismo (Argentina), e
perversamente, como formas reedições de golpe de estado
protocolares da violência.
(Honduras) espera seu momento criando
O problema, – concreto e que parece alianças que só dependam do bloco
num primeiro momento aporético – é o latino-americano.
de que as identidades políticas coletivas As posições neoliberais advogam por
invocadas contra o individualismo uma política aparentemente mais
liberal, não exigem um ponto de
objetiva. Quem representa se apresenta
expressão e condensação que acabe
como um signo transparente que em
sendo encarnado por um líder populista.
nada opaca a delegação de poder. Este
Como destaca Ernesto Laclau, ninguém modelo, em tanto apela à transparência,
define com muita clareza o que é o impossibilita o debate de fundo e traduz
populismo.6 Na verdade parece apontar todo conflito para termos morais e,
uma região da política onde o critério assim, habilita o escândalo íntimo como
empresarial da eficiência, e da política nos casos de Bill Clinton ou dos
como administração, não tem muito senadores e prefeitos republicanos nos
lugar. Um termo no qual a oposição Estados Unidos da América.
define ao governo que as pessoas
A unanimidade sobre o que deve ser a
seguem por algum tipo de identificação
racionalidade política levou a que os
forte que nasceria – na opinião de seus
conflitos de interesses sejam deslocados
críticos - do assistencialismo.
para a esfera da moral privada. Isto é,
Na verdade o populismo não esquece da nega-se a evidente incapacidade,
dimensão afetiva e de construção de indiferença e indisponibilidade para
subjetividades que carrega toda pensar soluções políticas e se exibe o
identidade política. segredo escandaloso. Assim a verdade
De qualquer modo, é um fato política fica mais perto do reality show
– com seus personagens sinistros e os
preocupante o de que as críticas ao
seus caricatos - e torna-se pornográfica,
populismo adquiram o teor de uma
uma vez que a câmera oculta só reflete
crítica ao culto à personalidade e,
obscenidades. Chega-se assim ao
6
estágio do escândalo como a indignação
Ver La razón populista. Buenos Aires: Fondo moral que não dá em nada. Os holofotes
de Cultura Económica. 2005, Capítulo 1 “La
denigración de las masas.”

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iluminam a alcova junto com a nossa um modo ou outro, reúnem todos os
incapacidade para pensar alternativas. textos deste livro.
Aqueles que advogam por uma política Luiz Vieira chama a nossa atenção
dita mais objetiva, esquecem que parte sobre a insuficiência das explicações
da queda de popularidade de Barack racionalistas da política que só podem
Obama tem a ver com o fracasso do interpretar o curso atual da política
esquema conciliatório. Fracasso que latino-americana como uma espécie de
reclama aquilo que se lhe critica ao calamidade geral (quase como um
populismo, a autoridade forte do “desastre ambiental” que ninguém
homem de estado. Nem todo cidadão consegue controlar). As formas
americano gosta de um presidente muito alternativas de reestruturação do
disposto para conversar e sobre tudo, político na América Latina, das quais os
para ouvir. O mesmo fracasso acontece movimentos sociais seriam exemplo,
na Europa, que cada vez mais se divide são pensadas por Vieira como lugar de
entre países falidos e países credores, ativa experimentação, acabando com o
ambos coincidindo na política de gesto de transformar o representado
exclusão na forma de intolerância e refém do representante.
severidade para com os imigrantes. Enrique Dussel destaca o papel de Paulo
Este presente globalizado e em crise nos como seguidor de Jeshua Ben Josef
deixa às portas de uma evidência: as (Jesus) no ato de transgredir a Lei. Jesus
“comunidades ideais de comunicação” transgrediu a Lei já que, entre outras
possuem o irritante hábito de não ações, curou um cego no sábado: “(...)
existir.7 respeitar a lei como último critério de
Entre estas “agitadas coordenadas” se justificação é ser escravo”. Aqueles que
desenha este livro. Desconfiando das se libertam da lei do sistema antigo são
posições facilmente racionalistas, mas quem acreditam em si mesmos,
não acreditando em que algo assim condição ontológica necessária para
como seu oposto seja um remédio já formar um “povo”. O poder desse povo
pronto para uso. emerge do consenso com o qual se cria
a nova justificação dos atos. Encontrar-
O texto de Guilherme Castelo Branco nos-íamos, então, frente a uma espécie
encarna de modo bastante aproximado a de genealogia da identidade popular a
iniciativa do livro de pensar a política partir da desobediência da lei. Deste
como campo de agonismos, e por isso modo Dussel entende a “tarefa agônica”
ele aparece como texto inicial, agindo como a pretensão de instaurar justiça
como uma espécie de “manifesto”. A frente à ordem injusta.
ênfase numa liberdade que se constrói a
partir de e em torno ao conflito, em Rainer Zimmermann e Christian Fuchs
lutas contra formas de subjetivação que pela sua vez, se perguntam pela raiz
só asseguram o “assujeitamento”, assim espinosano do conceito de “multidão”
como “o debate ríspido sem nenhuma recuperado por Antonio Negri e
Michael Hardt, para afirmar que quando
modalidade de consenso” fazem parte
Espinosa falava de uma democracia
de nosso modo de ver a política e, de
absoluta, ele queria dizer que a
democracia é à base de qualquer
7
Acho que meus colegas e amigos apelianos sociedade. O mundo conectado em rede
compreenderão a brincadeira antes de me acusar dá lugar a uma ciberdemocracia onde a
de “auto-contradição perfomativa” dizendo que
“aquilo que não existe não possui hábitos”.
cooperação, base de toda sociedade

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humana segundo os autores, poderia se policialescos nos quais predomina a
fortalecer e multiplicar. A “multidão” ilegalidade, com a formação de poderes
seria expressão e base para futuras e paralelos ao Estado; falar do terror, dos
novas formas de ser: “A multidão, campos de concentração, da deportação
então, pode ser vista como um e do etnocídio; falar, enfim, de
movimento que observa a existência sociedades massificadas, com uma
social num processo coletivo e especula enorme população supérflua, apavorada
nas lutas práticas sobre como o mundo e controlada pelos aparatos de
poderia vir a ser.” propaganda (leia-se mídia) e pelos
distintos mecanismos de aniquilação, é
O capítulo de Silvana Rabinovich toca
falar também de algumas das formas da
num assunto cada vez mais escaldante:
dominação atual.”
o problema geopolítico da disputa entre
Palestina e Israel. A ética dialógica de O texto de Rosalvo Schütz vai de
Martin Buber lhe servirá à autora para confronto com as noções neoliberais de
pensar a compreensão do outro. Se não política, aquelas que advogam por uma
é possível dizer “eu sou”, mas somente institucionalização extremada e
“eu também sou” isto pode ajudar a “reduzem o debate da educação à
desmontar o ódio sordidamente eficácia em termos econômico-
construído pela propaganda belicista: financeiros”. A visão administrativa da
“Em ambos os lados existem pessoas política é uma forma de despolitização
com medo, deve-se humanizar o da sociedade que, como decorrência,
conflito. Já basta de fazer do Islamismo acaba num processo de
uma religião de crianças fanáticas e do desdemocratização. Como
judaísmo uma de malvados contraproposta, Schütz enfatiza o papel
depredadores. Tampouco é certo que o dos “movimentos sociais populares”
laicismo ocidental tenha dado mostras (MSP) que reforçam a democracia a até
de respeito ao próximo: é hora de se a radicalizam, uma vez que são forças
deixar ensinar pelo outro e suas crenças. que não reproduzem a ordem
Ao fim e ao cabo se trata de fazer um estabelecida, forças do não-idêntico:
chamado à imaginação política, e esta “(...) quem não faz experiência alguma
só vem em estado de tradução. Traduzir com o não-idêntico tende a aceitar, de
é aceitar que não há univocidade.” O forma passiva, sua vida como destino.”
chamado à responsabilidade e à Procurou-se neste livro pensar o
compreensão do outro, só pode começar conflito político como um horizonte
a partir dos “desobedientes de ambos os para novas identidades e novas
lados”; aqueles que não acreditam ou alteridades. Quase todos os textos têm
cansaram da incitação oficial à pinceladas de otimismo. Não deixa de
beligerância. ser curioso que me sinta, de alguma
Pilar Calveiro pela sua vez “revisita” maneira, obrigado a salientar isto. Tanto
Hannah Arendt e a sua caracterização ficou associado o pensamento político
do totalitarismo para procurar certos ao pragmatismo quase niilista8 que
pontos de contato entre essas desconfiamos de qualquer olhar para o
características e a atual dominação futuro que não seja desesperado, o que
neoliberal: “Falar da busca de uma
hegemonia global mediante atos bélicos 8
Niilismo de caráter nietzscheano que “idealiza
que geram uma instabilidade mundial no sentido do feio” e não reconhece outro
permanente; falar de estados campo dos fenômenos políticos que não seja
aquele que anuncia sempre o apocalipse.

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tornou toda ação política o campo de grupo ou da minha parte, que levasse ou
uma fenomenologia da emergência. sugerisse aos autores a modificação do
Este livro nasceu das leituras e conteúdo de seus textos.
discussões do “Grupo de Ética e Quero agradecer também aos amigos e
Política” da Unioeste (Universidade colegas do Brasil e àqueles espalhados
Estadual do Oeste do Paraná – Campus pelo mundo que aceitaram o convite e
de Toledo), do qual Rosalvo Schütz é participaram do projeto.
atualmente líder. Sem o apóio e o
trabalho dos colegas não teria sido
possível. Não houve nenhuma Horacio L. Martínez
observação dos outros membros desse

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