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Introdução
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Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado
em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002.
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Ver a respeito Bourdieu (2000) e Bourdieu & Wacquant (2000).
ou a teoria feminista, pode ser identificada também como uma sociologia dos
deslocamentos e das culturas móveis. Levando em conta essa apreensão, desenvolvo, no
que segue, uma narrativa objetivando conectar os ganhos teóricos dos estudos sobre
migração e tentando apreender como esse campo potencializa o projeto dessa sociologia
reflexiva. A idéia subjacente é a de que, num momento em que a modernidade
apresenta-se metaforicamente como “líquida”, como tem afirmado em seus escritos
Zigmunt Bauman, o nomadismo passa a ser uma possibilidade ontológica a ser encarada
seriamente. Com essa pretensão, exponho alguns elementos constitutivos de uma
sociologia dos deslocamentos e das culturas móveis e apresento uma especulação sobre
a sua tradução para a realidade brasileira, mais precisamente para a análise das redes
sociais construídas pelos imigrantes nordestinos em São Paulo.
Gênero e migração
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reducionismo no que diz respeito às relações de gênero2. Longe de significar uma
expressão de rigor analítico, o pressuposto do indivíduo maximizador tem funcionado
para ocultar uma percepção da vida econômica que, encaixada nos esquemas de
interpretação de mundo alimentados pela dominação masculina, deixa de apreender
dimensões e meandros fundamentais da vida social .
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Ver a respeito, Nelson (1993 e 1996).
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Para uma compreensão do projeto de “sociologia econômica” proposta por esse Prêmio Nobel de
Economia, ver Backer (1990).
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Para uma crítica feminista a idéia de “lugar” presente, como categoria impensada de muitas análises, ver
Massey & Jess (1985).
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por autores como Douglas Massey e Alejandro Portes, dentre outros, foi a de que,
mesmo quando os atores agem isoladamente eles não o fazem desconectados de uma
densa rede de relações. O entendimento era o de que a análise das redes de migração
(sua estruturação, relações de poder, capacidade de mobilização de recursos, etc.)
deveria ocupar um papel destacado na interpretação dos fenômenos migratórios,
especialmente das migrações internacionais que se destinam aos EUA. Essas redes de
migração estruturar-se-iam em densas relações de reciprocidade e apoios familiares.
Ligando os lugares de origem àqueles de destino, as redes de migração processam
informações e são campos articulados com base na confiança. Para utilizar aqui uma
linguagem próxima daquela mobilizada pela Nova Sociologia Econômica nas suas
narrativas de dimensões da vida econômica, a rede de migração encontra-se sempre
envolvida (embeddedness) em estruturas sociais e delimitada pelo universo cultural que
modula os esquemas de percepção dos migrantes. Esse o caminho apontado por Portes
& Sensenbrenner (1993). Ora, essa sofisticação da análise tem legitimado o olhar
sociológico sobre os esquemas de percepção e os modelos culturais subjacentes à essas
redes. Assim, quando descolado de um viés colado à escolha racional que orientavam os
primeiros estudos, a análise das redes de migração tem possibilitado a preocupação com
os esquemas de interpretação de mundo e modelos culturais que estruturam tais redes. O
resultado tem sido uma maior sensibilidade para as relações de gênero presentes nos
processo migratórios.
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Ver, por exemplo, Todaro (1986).
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Ora, o gênero não apenas é uma referencial na construção das representações
sociais que modelam a percepção e a organização da migração como é por esta
redefinido. Contestação, negociação, relocalização e novas buscas de pertencimento são
dimensões que começam a ser analisadas nos estudos de migração e que têm se
traduzido em conquista teóricas para o fazer sociológico. Esse o caso do estudo
desenvolvido por Hondagneu-Sotelo & Avila (1997) sobre a situação das mulheres
mexicanas nas redes de migração para os EUA.
Saskia Sassen, uma economista cuja obra tem impactado fortemente a análise
sociológica contemporânea, chama a atenção para o fato de que a migração, no que diz
respeito às relações de gênero, pode significar um empoderamento das mulheres
(Sassen, 1997 e 2000). Isso porque o acesso ao emprego assalariado aliado a uma maior
capacidade das mulheres em resgatar laços comunitários torna-as ativas em dois
cenários importantes, especialmente na grandes metrópoles: nas instituições públicas e
privadas e na comunidade étnica. Essa perspectiva analítica leva Sassen à proposição de
que “a incorporação das mulheres ao processo de migração fortalece a possibilidade de
estabelecimento e contribui para uma participação maior dos imigrantes em suas
comunidades e na relação com o Estado” (Sasssen, 2000, on line).
As culturas, como as pessoas, viajam. Viajam nas pessoas, com as pessoas. Nos
seus esquemas de interpretação do mundo, impregnadas na héxis corporal. E se, como
nos apontam os autores clássicos dos estudos antropológicos, nenhuma cultura se
constrói sem a figura do estrangeiro, como apreender a relação com esse “outro” que,
muitas vezes, somos nós mesmos nos nossos deslocamentos quotidianos? Uma
sociologia reflexiva da migração é também um projeto intelectual de apreensão dos
deslocamentos virtuais e corporais que moldam as paisagens culturais de nosso tempo6.
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contribuindo para (re)definir não apenas as experiências dos sujeitos sociais, mas
também os pilares mesmo sobre os quais estruturamos as nossas personalidades.
Embora os deslocamentos populacionais e os fluxos migratórios contínuos ligando
pontos distantes no globo sejam fenômenos que, potencializados pela modernidade,
existiram, as vezes com dramáticas significações de êxodo, em outros momentos
históricos, é somente na sociedade da informação que eles adquirem essa centralidade
na vida social.
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A idéia de uma sociologia da mobilidade foi tematizada por Urry (2000)..
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Uma das expressões do crepúsculo da sociologia ancorado na análise do
container social é a utilização extensiva da noção de rede social nas ciências sociais
atuais. Com exceção feita aos cientistas sociais identificados com a network analysis ou
dos estudiosos das migrações internacionais, rede social tem sido apropriada como uma
metáfora para dar sentido aos agenciamentos e articulações sociais que modelam a vida
social na atualidade. O caso mais exemplar é o do sociólogo catalão Manuel Castells,
que define a nossa como sendo uma “sociedade em rede”.
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mobilização de recursos culturais e simbólicos, traduzida conceitualmente como
“capital social” (Putnan, 2000).
Essa situação, compensada pela aproximação dos estudos das redes sociais de
migração com o instrumental conceitual e metodológico de compreensão da construção
de capital social, tem sido apreendida por pesquisadores dedicados à investigações
sociológicas das redes de migração centro-americanas com destino aos EUA. A análise
empreendida por Portes & Mooney (2001) é um bom exemplo: analisando as redes de
migração salvadorenhas os autores apontam a importância destas nos arranjos políticos
e institucionais que garantiram a transição da Frente Farabundo Marti para Libertação
Nacional (FMLN) de exercito guerrilheiro para partido político em El Salvador.
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Ver Urry (2002).
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Uma análise comparativa do uso diferenciado do conceito de capital social foi feita por Portes (2000).
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No site oficial do Banco Mundial há um conjunto de textos e informações didáticas sobre os processos
de construção de capital social.
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A migração nordestina como fio da meada da sociologia dos deslocamentos no
Brasil.
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institucional das sociedades que recebem o imigrante. A tarefa mais importante talvez
seja exatamente incorporar o desafio analítico de apreender o mundo do qual o
migrante, suas instituições, valores e vetores culturais. Do contrário, como aponta
Abedelmalek Sayad10, sociólogo argelino dedicado à análise da imigração africana para
a África, temos estudos mutilados que, incapazes de romper com o senso comum,
reafirmam, no campo acadêmico, o etnocentrismo.
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Ver a respeito Sayad (1999).
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emigrante, os seus esquemas de percepção de mundo e os valores que o orientam estão
sendo tecidos também nos lugares de origem. Assim, quando moradores da região de
Pau dos Ferros (RN) se apropriam dos espaços de comércio informal na região do Metrô
Santana na Zona Norte de São Paulo, as suas práticas de trabalho e ocupação das ruas
estão relacionadas à estruturas de relacionamento e espacialização social que deitam
raízes tanto no solo paulistano quanto nos pequenos municípios do Oeste do Rio Grande
do Norte. Os processos de incorporação e/ou exclusão de pessoas nessas redes de
trabalho estão alicerçadas em valores e sentimentos tais como os compromissos
familiares e a fidelidade aos lugares de origem.
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O que estamos propondo é que os ganhos epistemológicos e teórico-
metodológicos dos estudos sobre mobilidade seja incorporados à análise sociológica
brasileira. Essa abertura significa caminhar por um terreno inseguro. Um sociologia
reflexiva da migração no Brasil só pode ser uma sociologia das condições de
mobilidade no mundo globalizado e isso implica um abandono da segurança ontológica
da narrativa sociológica tradicional. Exige, como todo exercício de abertura para o
interdisciplinar e o indeterminado, uma certa “coragem do abandono” (Giri, 2002, p.
112) e uma disposição para se mover em terras estrangeiras. Ora, mas não é exatamente
essa uma das dimensões constitutiva da experiência humana do migrante? Esse
caminho implica, portanto, os mesmos riscos e promessas de aventuras da imigração da
qual essa disciplina que se deixa ir além dos esquematismos fáceis das narrativas
tradicionais busca se aproximar analiticamente.
Conclusão
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Referências bibliográficas:
FOLBRE, Nancy & NELSON, Julie A “For Love or Money – or Both?” Journal of
Economic Perspectives, vol. 14, nº 4, 2000.
GIRI, Ananta Kumar. The calling of a creative transdisciplinarity. Futures. Vol. 34, nº
1, pp. 103-115, 2002.
HONDAGNEU-SOTELO, Pierrette, and AVILA, Ernestine Avila “ ‘I’m Here, But I’m
There’: The Meanings of Latina Transnational Motherhood.” Gender and Society vol.
11, nº 5, pp. 548-71, 1997.
MASSEY, Doreen & JESS, Pat (orgs.). A place in the world?. New York: Oxford
University Press, 1995.
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PORTES, Alejandro & MOONEY, Margarita. “Social Capital and Community
Development”. Conference on Migration and Development. Princeton: Princeton
University, 2000.
PUTNAN, Robert. Bowling alone. New York: Simon and Schuster, 2000.
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