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Aportes Para Uma Sociologia dos

Deslocamentos e das Culturas Móveis*

Edmilson Lopes Júnior


Universidade Estadual de Londrina

Palavras-chave: migrações; teoria sociológica; mobilidade; cultura.

Introdução

No período imediatamente anterior ao seu falecimento, Pierre Bourdieu iniciou


um processo de revisão das conquistas teóricas proporcionadas pelo seu trabalho
etnográfico na Argélia do início da década de sessenta1. Nesse processo de revisão
crítica, quase um ajuste de contas, o mais importante cientista social da segunda metade
do século vinte, reconstituiu a sua relação de trabalho com Abdelmalek Sayad, um
sociólogo argelino que dedicou sua vida intelectual à uma análise sócio-cultural dos
processos migratórios internacionais. Sayad, preocupado em apreender as múltiplas
dimensões da migração africana para a França, veio a faleceu um pouco antes de
Bourdieu, quando estava iniciando uma instigante inter-locucação, via publicações
científicas, com o rico e promissor campo da sociologia da imigração nos EUA.

Não é um fato de menor importância que cientistas sociais da estatura de


Bourdieu e Sayad tenham tomado a migração, no ápice de suas carreiras, como temática
decisiva para o repensar do fazer sociológico no século XXI. Igualmente significativo é
o fato de ambos empreenderem um exercício de reconhecimento de pesquisas
desenvolvidas, além-mar, por pesquisadores de há muito dedicados à investigação dos
fenômenos migratórios, como Alejandro Portes e Douglas Massey.

O desenvolvimento de uma sociologia reflexiva da imigração pode ser articulada


à um esforço de ruptura com a epistemologia do “container” que informa a perspectiva
analítica mais geral do projeto da sociologia enquanto disciplina acadêmica. Essa
sociologia reflexiva, que ganha aportes de campos variados como os estudos culturais

*
Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado
em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002.
1
Ver a respeito Bourdieu (2000) e Bourdieu & Wacquant (2000).
ou a teoria feminista, pode ser identificada também como uma sociologia dos
deslocamentos e das culturas móveis. Levando em conta essa apreensão, desenvolvo, no
que segue, uma narrativa objetivando conectar os ganhos teóricos dos estudos sobre
migração e tentando apreender como esse campo potencializa o projeto dessa sociologia
reflexiva. A idéia subjacente é a de que, num momento em que a modernidade
apresenta-se metaforicamente como “líquida”, como tem afirmado em seus escritos
Zigmunt Bauman, o nomadismo passa a ser uma possibilidade ontológica a ser encarada
seriamente. Com essa pretensão, exponho alguns elementos constitutivos de uma
sociologia dos deslocamentos e das culturas móveis e apresento uma especulação sobre
a sua tradução para a realidade brasileira, mais precisamente para a análise das redes
sociais construídas pelos imigrantes nordestinos em São Paulo.

Gênero e migração

A incorporação das análises de gênero e de redes sociais constitui-se em um


movimento teórico importante no campo dos estudos de migração. A sua emergência e
os seus desdobramentos impactam profundamente o desenvolvimento da sociologia da
imigração. Esse é um movimento que, mesmo fincado no terreno da análise sociológica,
absorve e relaciona-se com um amplo leque de disciplinas e campos transdisciplinares
paralelos. Dentre eles, conforme destacamos abaixo, um leque de estudos que
poderíamos denominar, correndo o risco da submissão ao artificialismo, de análise
econômica feminista.

Na realidade, pesquisadoras feministas dedicadas à análise econômica têm sido


responsáveis por um dos mais consistentes ataques ao viés de gênero presente na
interpretação da ação econômica fornecida pelos neoclássicos e seus modernos cultores.
E uma boa parte desse trabalho de desconstrução realizado por essas teóricas alimenta a
redefinição da análise sociológica sobre o fenômeno da migração. Essa crítica feminista
tem apontado para o fato de que a visão do indivíduo maximizador de seus interesses
pessoais idealizado pela economia neoclássica, e em parte assumida pelos analistas dos
processos sociais relacionados à migração, pode ser criticada não apenas pela
fragilidade dos seus pilares filosóficos e sociológicos, mas também pelo seu

2
reducionismo no que diz respeito às relações de gênero2. Longe de significar uma
expressão de rigor analítico, o pressuposto do indivíduo maximizador tem funcionado
para ocultar uma percepção da vida econômica que, encaixada nos esquemas de
interpretação de mundo alimentados pela dominação masculina, deixa de apreender
dimensões e meandros fundamentais da vida social .

O desenvolvimento da teoria feminista e a disseminação das análises de gênero


têm se traduzido numa devastadora crítica ao androcentrismo (percepção da realidade a
partir do olhar masculino) presente não apenas na economia, mas também, e
principalmente, na sociologia. Para Folbre & Nelson (2000, p. 130), essa perspectiva
fica muito clara quando alguns economistas, como Gary Backer3, analisam a vida
familiar e o comportamento sexual. Eles apreendem essas dimensões da vida em
sociedade como sendo produtos de escolhas e trocas. O fato de a mulher ser obrigada,
em alguns contextos, a dedicar-se ao trabalho doméstico, por exemplo, é apreendido
pelos economistas neoclássicos como uma conseqüência da elevação de custos do
trabalho doméstico assalariado. Como se numa questão como essa fosse dispensável
qualquer análise relacionadas ao campo do simbólico. Não raro, a abordagem
dominante na análise econômica assume como pressupostos elaborações que tratam o
ser masculino como sendo racional e com maior interesse na “realização pessoal” ao
passo que a mulher é assumida como estando mais vinculada ao “lugar”4 e às emoções
e, portanto, mais motivada para, nos re-arranjos domésticos impulsionados por
mudanças produzidas no mercado, dedicar-se às atividades de cuidado das crianças e
da casa.

Como, então, a perspectiva analítica propugnada pela teoria feminista


(especialmente aquela produzida no terreno da economia) tem influenciado a análise
dos fenômenos migratórios? Antes de prosseguirmos, vale lembrar que pesquisadores
da área, como Michael Todaro5, adotavam como ponto de partida de suas análises a
idéia de que a decisão de migrar correspondia a um cálculo no qual entravam as
possibilidades de ganho (empregos e salários) e os riscos (deportação). A resposta dada

2
Ver a respeito, Nelson (1993 e 1996).
3
Para uma compreensão do projeto de “sociologia econômica” proposta por esse Prêmio Nobel de
Economia, ver Backer (1990).
4
Para uma crítica feminista a idéia de “lugar” presente, como categoria impensada de muitas análises, ver
Massey & Jess (1985).

3
por autores como Douglas Massey e Alejandro Portes, dentre outros, foi a de que,
mesmo quando os atores agem isoladamente eles não o fazem desconectados de uma
densa rede de relações. O entendimento era o de que a análise das redes de migração
(sua estruturação, relações de poder, capacidade de mobilização de recursos, etc.)
deveria ocupar um papel destacado na interpretação dos fenômenos migratórios,
especialmente das migrações internacionais que se destinam aos EUA. Essas redes de
migração estruturar-se-iam em densas relações de reciprocidade e apoios familiares.
Ligando os lugares de origem àqueles de destino, as redes de migração processam
informações e são campos articulados com base na confiança. Para utilizar aqui uma
linguagem próxima daquela mobilizada pela Nova Sociologia Econômica nas suas
narrativas de dimensões da vida econômica, a rede de migração encontra-se sempre
envolvida (embeddedness) em estruturas sociais e delimitada pelo universo cultural que
modula os esquemas de percepção dos migrantes. Esse o caminho apontado por Portes
& Sensenbrenner (1993). Ora, essa sofisticação da análise tem legitimado o olhar
sociológico sobre os esquemas de percepção e os modelos culturais subjacentes à essas
redes. Assim, quando descolado de um viés colado à escolha racional que orientavam os
primeiros estudos, a análise das redes de migração tem possibilitado a preocupação com
os esquemas de interpretação de mundo e modelos culturais que estruturam tais redes. O
resultado tem sido uma maior sensibilidade para as relações de gênero presentes nos
processo migratórios.

No que diz respeito aos estudos de migração, a introdução da análise de gênero


ainda necessita superar inúmeras barreiras. A ruptura com o androcentrismo dominante
nesse campo de estudos não se fará de forma artificial com a simples introdução da
apreensão dos diferenciais de expectativas e possibilidades de deslocamentos de homens
e mulheres. Diz respeito a algo mais profundo:

“O estudo de gênero, sobre migrações ou qualquer outra temática, significa mais


do que falar a respeito de homens e mulheres: requer investigar e compreender as
formas nas quais as diferenças e similaridades relacionadas à sexualidade física são
compreendidas, organizadas e praticadas dentro das sociedades. Assim, nos podemos
encontrar uma diversidade de sentidos e instituições baseados nas relações entre e
dentro dos diferentes grupos em todas as sociedades” (Gutman, 2000, p. 03).

5
Ver, por exemplo, Todaro (1986).

4
Ora, o gênero não apenas é uma referencial na construção das representações
sociais que modelam a percepção e a organização da migração como é por esta
redefinido. Contestação, negociação, relocalização e novas buscas de pertencimento são
dimensões que começam a ser analisadas nos estudos de migração e que têm se
traduzido em conquista teóricas para o fazer sociológico. Esse o caso do estudo
desenvolvido por Hondagneu-Sotelo & Avila (1997) sobre a situação das mulheres
mexicanas nas redes de migração para os EUA.

Saskia Sassen, uma economista cuja obra tem impactado fortemente a análise
sociológica contemporânea, chama a atenção para o fato de que a migração, no que diz
respeito às relações de gênero, pode significar um empoderamento das mulheres
(Sassen, 1997 e 2000). Isso porque o acesso ao emprego assalariado aliado a uma maior
capacidade das mulheres em resgatar laços comunitários torna-as ativas em dois
cenários importantes, especialmente na grandes metrópoles: nas instituições públicas e
privadas e na comunidade étnica. Essa perspectiva analítica leva Sassen à proposição de
que “a incorporação das mulheres ao processo de migração fortalece a possibilidade de
estabelecimento e contribui para uma participação maior dos imigrantes em suas
comunidades e na relação com o Estado” (Sasssen, 2000, on line).

Mobilidade e capital social

As culturas, como as pessoas, viajam. Viajam nas pessoas, com as pessoas. Nos
seus esquemas de interpretação do mundo, impregnadas na héxis corporal. E se, como
nos apontam os autores clássicos dos estudos antropológicos, nenhuma cultura se
constrói sem a figura do estrangeiro, como apreender a relação com esse “outro” que,
muitas vezes, somos nós mesmos nos nossos deslocamentos quotidianos? Uma
sociologia reflexiva da migração é também um projeto intelectual de apreensão dos
deslocamentos virtuais e corporais que moldam as paisagens culturais de nosso tempo6.

Se, como aponta-nos provocativamente Zigmunt Bauman, somos arrastados,


pela globalização, à condição de “turistas” e “vagabundos” é porque a mobilidade
deixou de ser um fenômeno à parte, momento episódico relacionado aos momentos de
“saídas” e “chegadas”, e estendeu as suas malhas e estruturas para o todo social,

5
contribuindo para (re)definir não apenas as experiências dos sujeitos sociais, mas
também os pilares mesmo sobre os quais estruturamos as nossas personalidades.
Embora os deslocamentos populacionais e os fluxos migratórios contínuos ligando
pontos distantes no globo sejam fenômenos que, potencializados pela modernidade,
existiram, as vezes com dramáticas significações de êxodo, em outros momentos
históricos, é somente na sociedade da informação que eles adquirem essa centralidade
na vida social.

A radicalização das experiências de mobilidade espacial potencializada pela


consolidação de uma sociedade da informação, na qual as estruturas sociais
reprodutoras da dominação social são modeladas pelo que ocorre no chamado “espaço
dos fluxos” (Castells, 1999, p. 403), expõe toda a fragilidade da base epistemológica do
edifício da sociologia tradicional. Isso porque, ancorada em categorias analíticas
marcadas pelos esquemas impensados de percepção do mundo alimentados por
entidades reguladoras que emergiram num momento particular da história humana (a
modernidade), como é o caso do Estado-Nação, a sociologia encontra muita dificuldade
para se desgarrar do terreno aparentemente sólida da sociedade (ou ainda do espaço
social nacional) e assumir epistemologicamente o nomadismo que marca os seus objetos
de estudos.

Para Ulrich Beck, essa dimensão “locacional” do fazer sociológico, facilmente


explicável ao se levar em conta o contexto político e intelectual no qual emerge a
sociologia no século XIX, conformou o desenvolvimento ulterior da sociologia,
conformando-a em análise do “container social” (Beck, 1998), ou seja, dos limites
dados por uma construção historicamente datada que é o Estado-Nação. A globalização
explicitaria, na análise de Beck, os limites desse exercício de produção de narrativas
sobre a vida social moderna. A mensagem implícita da abordagem de Beck é a de que
deve se levar ao centro da análise sociológica os atores, forças culturais e econômicas
que se deslocam velozmente ao redor do planeta. Mesmo se Beck não nos indica muitos
caminhos para a tradução dessa apreensão na realização de estudos sociológicos
pontuais, sua análise não deixa de fazer parte de um “novo movimento teórico”
emergente na sociologia: um “movimento” que propõe a mobilidade (e não as
sociedades) como referência primeira da investigação social.

6
A idéia de uma sociologia da mobilidade foi tematizada por Urry (2000)..

6
Uma das expressões do crepúsculo da sociologia ancorado na análise do
container social é a utilização extensiva da noção de rede social nas ciências sociais
atuais. Com exceção feita aos cientistas sociais identificados com a network analysis ou
dos estudiosos das migrações internacionais, rede social tem sido apropriada como uma
metáfora para dar sentido aos agenciamentos e articulações sociais que modelam a vida
social na atualidade. O caso mais exemplar é o do sociólogo catalão Manuel Castells,
que define a nossa como sendo uma “sociedade em rede”.

Castells nos fornece pistas de apreensão do mundo contemporâneo que, cruzadas


com a noção de rede, podem servir de substrato para uma abordagem da mobilidade.
Isso porque, no geral, a rede é uma forma de tradução de mobilidade. Mas, neste ponto,
talvez devêssemos deixar de falar “da” e “na” mobilidade para nos referirmos a
“mobilidades”. Isso porque, como aponta-nos o sociólogo inglês John Urry, podemos
identificar cinco interdependentes formas de mobilidades que modelam e são modeladas
pelas redes: a) as viagens corporais de pessoas para o trabalho, o lazer, o prazer, os
relacionamentos familiares, a migração e a fuga; b) o movimento físico de objetos
despachados através de serviços de entregas globais para produtores, consumidores e
vendedores; c) viagens virtuais ou imaginativas produzidas pelo acesso às imagens de
lugares e pessoas através da TV (isso envolve 1 bilhão de pessoais); d) viagens virtuais,
algumas vezes em tempo real, que transcendem as distâncias físicas e sociais como
aquelas possibilitadas pela internet; e e) viagens comunicativas dirigidas pelas pessoas
através de telefonemas, cartas e faxes7.

No entanto, ao contrário de algumas das elaborações mais apressadas sobre o


mundo globalizado, as novas tecnologias de informação não se traduzem numa espécie
de “novo começo” das relações sociais. As conexões entre as pessoas sempre estiveram,
em maior ou menor grau, ligadas à distância física e, nesse sentido, falar da “morte da
distância” não deixa de soar um tanto quanto despropositado. As relações sociais
baseadas na co-presença foram sempre, na maioria das sociedades conhecidas, apenas
uma das dimensões das relações possíveis. O problema é que a sociologia se concentrou
na análise desse tipo de relação, dando pouco destaque às mobilidades. Não raro, essas
relações de co-presença foram vistas como os alicerces da vida na comunidade. E as
relações comunitárias serviram de referências para as elaborações sobre a capacidade de

7
mobilização de recursos culturais e simbólicos, traduzida conceitualmente como
“capital social” (Putnan, 2000).

Em outras palavras, as sociedades produzem e reproduzem-se através de formas


de sociabilidades ancoradas em diferentes formas de mobilidades. Ou ainda, diferentes
formas de apropriação espacial. Essas sociabilidades expressam relações de co-presença
e de distaciamento. Essas relações quando se condensam em redes de obrigações
mútuas e reciprocidade, além de tendentes a horizontalidade, podem significar um
acúmulo de capital social para as comunidades nas quais essa redes estão enraizadas.

As culturas móveis significam uma maior complexificação da construção do


capital social. Embora exista uma grande discussão sobre a pertinência do uso desse
conceito, inicialmente presente na obra de Pierre Bourdieu8, ele tem se constituído numa
importante ferramenta analítica para compreender como a existência de uma cultura de
associativismo e cultura cívica, expressa em densas redes sociais, pode alavancar o
desenvolvimento econômico. A referência primeira é o trabalho pioneiro de Putnan
(1993). No entanto, nem Putnan nem alguns dos principais responsáveis pela
disseminação desse conceito (dentre eles organismos multilaterais, como o Banco
Mundial9, dedicaram muita atenção às comunidades e culturas móveis como fontes de
capital social.

Essa situação, compensada pela aproximação dos estudos das redes sociais de
migração com o instrumental conceitual e metodológico de compreensão da construção
de capital social, tem sido apreendida por pesquisadores dedicados à investigações
sociológicas das redes de migração centro-americanas com destino aos EUA. A análise
empreendida por Portes & Mooney (2001) é um bom exemplo: analisando as redes de
migração salvadorenhas os autores apontam a importância destas nos arranjos políticos
e institucionais que garantiram a transição da Frente Farabundo Marti para Libertação
Nacional (FMLN) de exercito guerrilheiro para partido político em El Salvador.

7
Ver Urry (2002).
8
Uma análise comparativa do uso diferenciado do conceito de capital social foi feita por Portes (2000).
9
No site oficial do Banco Mundial há um conjunto de textos e informações didáticas sobre os processos
de construção de capital social.

8
A migração nordestina como fio da meada da sociologia dos deslocamentos no
Brasil.

No Brasil, país em que os processos migratórios foram centrais em todos os


ciclos econômicos importantes da história do país não tem sido raro, nos últimos anos,
que a “questão da imigração” ultrapasse os recalques e ressentimentos que alimentam os
preconceitos de parcelas da população, especialmente nos estados das regiões Sul e
Sudeste, e apareça, mesmo que disfarçadamente, no debate político. Nas abordagens
sobre violência urbana, desemprego ou crise educacional, o imigrante é construído,
explícita ou implicitamente, como um “problema” a ser enfrentado. Visto como causa
primeira de males que afetariam os espaços metropolitanos imaginariamente
construídos como conspícuos, o imigrante passa a ser o sujeito oculto de muitos dos
discursos sobre as mazelas do mundo urbano. O imigrante ao qual referem-se os
discursos xenófobos é, na São Paulo do início do século XXI, o nordestino - essa
construção identitária precárias que não tem nem um século - apesar da redefinição do
ciclo migratório interno apontar para um novo e significativo movimento, a partir da
década de oitenta, que se caracteriza pela intensa migração de sulistas em relação aos
estados da região norte do país.

Nas elaborações das ciências sociais brasileiras, a “questão da imigração”


aparece, muitas vezes, como um pressuposto não explicitado nas análises sobre os
problemas sociais do mundo urbano brasileiro. Não se trata aqui de responder,
adentrando também num debate político preso às percepções fornecidas pela
interpretação dominante desse fenômeno, de que os imigrantes contribuíram
decisivamente para a construção das riquezas econômicas e culturais de tais metrópoles.
Trata-se, isso sim, de chamar a atenção para o fato de que, mesmo em estudos nos quais
a imigração aparece como um “problema” a ser sociologicamente construído, esquece-
se facilmente de um dos princípios constitutivos de uma sociologia da imigração
reflexiva: o imigrante é, antes de tudo, também emigrante.

Ou seja, esquece-se algo que, como vimos anteriormente, já se encontra mais ou


menos consolidado na literatura internacional de ponta dos estudos sobre os processos
migratórios, qual seja a proposição de que o fenômeno da migração não pode ser
consequentemente abordada considerando apenas o ambiente político, econômico e

9
institucional das sociedades que recebem o imigrante. A tarefa mais importante talvez
seja exatamente incorporar o desafio analítico de apreender o mundo do qual o
migrante, suas instituições, valores e vetores culturais. Do contrário, como aponta
Abedelmalek Sayad10, sociólogo argelino dedicado à análise da imigração africana para
a África, temos estudos mutilados que, incapazes de romper com o senso comum,
reafirmam, no campo acadêmico, o etnocentrismo.

Seguindo o desafio colocado pelo cientista social argelino, podemos apontar


para o fato de que a resposta dos imigrantes nordestinos aos problemas urbanos da
grande metrópole não estão desligadas das práticas e dos esquemas de percepção de
mundo que os instituem como emigrantes nos seus lugares de origem. O
reconhecimento da indissociabilidade entre emigração e imigração cria as condições não
apenas para uma ruptura com o etnocentrismo, mas também potencializa uma
abordagem muilti-dimensional do fenômeno da migração.

Um exemplo: pesquisadores do urbano paulistano têm chamado a atenção para o


fato de que imigrantes nordestinos articulam redes de sociabilidade que se traduzem
tanto em sustentáculos para a recepção de novos familiares quanto potencializam
fenômenos urbanos, muito perceptíveis em São Paulo, como o predomínio da origem
dos participantes em eventos tão distintos como as invasões de terreno na Zona Sul
paulistana ou a instituição de espaços demarcados para o desenvolvimento das
atividades dos camelôs. Esses fenômenos quando são investigados o são de uma
perspectiva analítica que não rompe com os esquemas etnocêntricos de percepção da
migração nordestina. Assim, não são raros os projetos de investigação sociológicas em
curso no universo acadêmico paulista que tomam a migração nordestina como variável
dependente nas abordagens dos novos fenômenos sócio-culturais relacionados à
inserção de São Paulo no rol das chamadas “cidades mundiais de segunda ordem”.

Ora, as redes de camelôs que ocupam a Praça da Sé ou as áreas adjacentes das


estações do Metrô paulistana não podem ter a sua vasta e complexa tessitura apreendida
se as tomamos apenas como produtos de “imigrantes” no chão paulistano. Elas também
são tecidas há milhares de quilômetros da capital paulista, nos vilarejos e pequenas
cidades do sertão nordestino. Se o imigrante é dois em um dado que também é

10
Ver a respeito Sayad (1999).

10
emigrante, os seus esquemas de percepção de mundo e os valores que o orientam estão
sendo tecidos também nos lugares de origem. Assim, quando moradores da região de
Pau dos Ferros (RN) se apropriam dos espaços de comércio informal na região do Metrô
Santana na Zona Norte de São Paulo, as suas práticas de trabalho e ocupação das ruas
estão relacionadas à estruturas de relacionamento e espacialização social que deitam
raízes tanto no solo paulistano quanto nos pequenos municípios do Oeste do Rio Grande
do Norte. Os processos de incorporação e/ou exclusão de pessoas nessas redes de
trabalho estão alicerçadas em valores e sentimentos tais como os compromissos
familiares e a fidelidade aos lugares de origem.

Se, como aponta-nos Abdelmalek Sayad, imigração e emigração são os dois


lados indissociáveis da mesma moeda, então, a pesquisa sobre a geometria do poder e os
esquemas de percepção de mundo que delimitam as práticas sociais dos nordestinos
pode assumir um papel estratégico na compreensão dos processos sociais e econômicos
relacionados à inserção de São Paulo no conjunto das cidades mundiais. A investigação
aqui proposta marcha contra as análises apressadas e limitadas ao calor dos dados
fornecidos pelos últimos censos demográficos. A diminuição da intensidade da
migração nordestina para São Paulo não se traduz numa igual diminuição da
importância do processo migratório na espacialização social da cidade. As análises
simplistas, geralmente reproduzidas pela imprensa e pelos políticos paulistas, alicerçam-
se num viés etnocêntrico e classista que associa a migração nordestina à demanda por
mão de obra “pouco qualificada”. Essa percepção tende a acentuar, desde o mundo
acadêmico, o reforço para que se tome a “imigração nordestina” como um “problema”.

Essa forma de apreender a presença do imigrante é reforçada, no que diz respeito


à análise das mutações sociais relacionadas à inserção de uma determinada metrópole
no que já se convencionou denominar de “rede mundial de cidade”, pelas
representações geralmente associadas ao processo de globalização nas quais os
“lugares” e os processos sociais neles ancorados são esvaziados pelo que ocorre nos
luminosos “espaços dos fluxos”. No mundo da intensa mobilidade e das comunicações
em escala planetária, os “jogadores globais” é que seriam os atores que teriam peso nas
estruturas sociais decisivas de nosso tempo. Até certo sentido, esse é o caminho
seguido, por exemplo, por Castells (1999).

11
O que estamos propondo é que os ganhos epistemológicos e teórico-
metodológicos dos estudos sobre mobilidade seja incorporados à análise sociológica
brasileira. Essa abertura significa caminhar por um terreno inseguro. Um sociologia
reflexiva da migração no Brasil só pode ser uma sociologia das condições de
mobilidade no mundo globalizado e isso implica um abandono da segurança ontológica
da narrativa sociológica tradicional. Exige, como todo exercício de abertura para o
interdisciplinar e o indeterminado, uma certa “coragem do abandono” (Giri, 2002, p.
112) e uma disposição para se mover em terras estrangeiras. Ora, mas não é exatamente
essa uma das dimensões constitutiva da experiência humana do migrante? Esse
caminho implica, portanto, os mesmos riscos e promessas de aventuras da imigração da
qual essa disciplina que se deixa ir além dos esquematismos fáceis das narrativas
tradicionais busca se aproximar analiticamente.

Conclusão

O que buscamos apresentar, de forma inegavelmente panorâmica, foi os


contornos do que vimos denominando como a sociologia dos deslocamentos e das
culturas móveis. Projeto de investigação social que se lança numa “insondável
travessia” rumo ao cruzamento de fronteiras disciplinares, essa sociologia imaginada
potencializaria a ruptura epistemológica com a “análise do container social”. Da mesma
forma, apropriando-se crítica e criativamente dos ganhos teóricos alcançados pela teoria
feministas, ela poderia contribuir para uma segunda importante ruptura epistemológica
no âmbito das ciências sociais: aquela que deve ser feita com relação ao
androcentrismo. Essa ciência social desterritorializada traduz um desafio
epistemológico que vem sendo assumido, já algum tempo, pelas teóricas do feminismo,
dentre elas Kaplan (1996). No ambiente acadêmico brasileiro, uma sociologia dos
deslocamentos e das culturas móveis contribuiria para des-naturalizar o olhar
sociológico sobre os processos sociais relacionados às redes de migração inter-regionais
e complexificaria a análise social de fenômenos abordados tradicionalmente pela área
de estudos urbanos e regionais.

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