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2016 2016

48 Por Gilka Vargas e Iara Noemi 1. “Meu


Fotos: modo
Frames de utilizar
extraídos a música
do filme é diferente: não a coloco onde a maioria o faz [...] comecei a pensar em termos de contrapontos
Cidadão Kane 49
Gilka Vargas é cineasta, pesquisadora e educadora; mestre em de imagem e som em lugar da união de imagem e som” (KUROSAWA, 1990, p. 298).
Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do 2. Kendo significa “caminho da espada”. Esgrima tradicional japonesa baseada nas técnicas de luta empregadas pelos samurais.
Rio Grande do Sul (PUCRS); bacharel em Artes Plásticas e em 3. Shodo significa “caminho da escritura”. Caligrafia japonesa que exige tanto destreza como disciplina em sua execução.
Psicologia; licenciada em Artes Visuais. 4. Benshi deriva de ben (narração) e shi (mestre, samurai). Era um narrador de filmes mudos, dava voz aos personagens, além de
Iara é cineasta e pesquisadora. explicar a trama e falar sobre o país de origem do filme antes da projeção.

A mostra de cinema Jidaigeki: viajando com Kurosawa ao Japão feudal, organizada pelo Departamento Nacional do Sesc, está em circulação pelos município gaúchos desde o segundo semestre de 2016.

Um olhar humanista rio, e após as aulas, praticava shodo.[3] Yutaka ti-


nha o hábito de levar os filhos às tradicionais nar-
rações de contos em salões musicais, e para ver
mirava o irmão e sua profissão; para ele, “[...] o
narrador não apenas contava a trama do filme,
mas também intensificava seu conteúdo emocio-

sobre a obra de
filmes em uma sala que exibia, em sua maioria, nal com a voz e os efeitos sonoros; proporcionava
produções americanas e inglesas. Para Kurosawa, descrições evocadoras dos acontecimentos e das
a atitude de seu pai frente ao cinema o fortaleceu imagens da tela” (KUROSAWA, 1990, p. 123).

Akira Kurosawa
e o animou a tornar-se um cineasta: “[...] ele nos Em 1928, aos 18 anos, prestou exame para
levava a vê-lo com frequência. Constantemente a Academia de Arte de Tóquio, não sendo aceito.
defendeu sua convicção no valor educativo do Continuou estudando e pintando em casa, tendo
cinema, inclusive mais adiante, em tempos mais um trabalho selecionado para exposição na con-
“Não há nada que diga mais sobre sentido para o público japonês, eu – como artis- conhecido por sua teimosia e perfeccionismo, era japonês e os valores universais, ao mesmo tempo reacionários, nunca mudou de opinião” (KURO- ceituada galeria Nitten. Neste momento históri-
um criador que o próprio trabalho ta japonês – simplesmente não estou interessado taxativo quanto ao controle artístico de seus fil- em que cria imagens de intenso senso plástico. SAWA, 1990, p. 26). co, o Japão encontrava-se com sérios problemas
que realiza.” nele” (KUROSAWA apud RODRIGUES, 1968, p. 17). mes. Observador tenaz da realidade social de seu Suas indagações sobre o homem e seus conflitos Ao ingressar na escola, Akira era tímido, econômicos e sociais; sua família enfrenta restri-
Akira Kurosawa Ao todo, realizou 32 filmes, e os produzidos país, mostra ao mundo o Japão em diferentes mo- psicológicos, seus dramas éticos e morais, vêm chorão e franzino. Surge, então, o professor Sei- ções financeiras e o jovem Akira constrangia-se
entre os anos 1950 e 1965 obtiveram êxito de mentos: feudal, em guerra e pós-guerra, enfren- acompanhados pelo domínio técnico: roteiros ji Tachikawa, considerado por ele como um dos em gastar com material de pintura, dedicando-
Falar sobre Akira Kurosawa é falar sobre um artista bilheteria no Japão e sucesso no cinema interna- tando primeiro a rigorosa censura dos militares bem escritos; storyboards detalhados; movimen- pilares de sua formação. Mestre inovador, pos- -se, então, à literatura, ao teatro, à música e ao
completo e complexo que proporcionou ao Oci- cional. Diretores estrangeiros foram influenciados japoneses e, depois, a dos aliados macarthistas. tos de câmera e enquadramentos bem planeja- suidor de métodos pedagógicos avançados para cinema, atividades possíveis ao parco orçamento
dente vislumbrar o Japão e sua riqueza cultural nas diretamente por seu trabalho: foi realizado o re- Mantém suas raízes na tradicional cultura dos; técnica primorosa de montagem; beleza e sua época, foi por seu intermédio que o menino familiar. Comprava livros em sebos, ouvia música
telas a partir dos anos 1950. Desde o Leão de Ouro make de Os Sete Samurais (1954) por John Sturges japonesa e torna-se o mais universal dentre os ci- precisão nos cenários; uso expressivo do preto e conheceu o universo da pintura. A relação esta- clássica na casa de amigos, frequentava concer-
recebido por Rashomon (1950) no Festival Interna- (Os Sete Magníficos, 1960); Sergio Leone rodou neastas asiáticos justamente por tratar de temas branco e das cores; impecável direção de atores; e belecida entre ambos, os incentivos dados pelo tos, exposições. Como seu irmão Heigo, escrevia
cional de Cinema de Veneza em 1951, Akira e sua seu spaguetti wersten Por um Punhado de Dólares universais: transporta Shakespeare (Ran) para trilha sonora que multiplica a imagem. [1]
professor e o reconhecimento da qualidade de programas de cinema, especialmente sobre filmes
obra invadiram o mundo ocidental que se rendeu, (1964) baseado em Yojimbo (1961); A Fortaleza Es- o Japão feudal a fim de mostrar o ser humano seus próprios desenhos fizeram com que Akira se estrangeiros, recomendava quais ele deveria as-
reconhecendo seu valor artístico. Entretanto, no condida (1958) tornou-se referência do cinema ja- por inteiro, com suas limitações, suas ambivalên- Artes visuais e luta samurai sentisse seguro, elevando sua autoestima, o que sistir e lhe conseguia entrada gratuita. “Eu mes-
Japão, foi acusado de se ocidentalizar: sua paixão ponês de aventuras, sendo fundamental para Star cias, seus conflitos. Em Rashomon, brinca com a Akira traz em seus filmes as influências de sua teve como resultado uma melhora geral em seu mo estou surpreso pelo número de filmes que
pelo cinema norte-americano (especialmente por Wars (1977), de George Lucas. Em Coração Valente mentira e a verdade detrás das quais o homem se infância. Cresceu entre o campo e a cidade em desempenho escolar. Quando Tachikawa saiu da vi em minha juventude; filmes que marcaram a
John Ford) e pelo europeu (expressionismo alemão, (1995), Mel Gibson dirige suas cenas de batalha esconde e se protege, e deixa clara sua capacida- um momento em que esta começava a absorver escola, o menino visitava-o diariamente após as história do cinema, e devo isto ao meu irmão”
Eisenstein) foram alguns dos argumentos utiliza- seguindo a estética das sequências de Kagemusha de em penetrar na alma humana. Suas indaga- ideias do mundo exterior; simbolismo, vanguar- aulas, agora como seu amigo. (KUROSAWA, 1990, p. 123).
dos para isso. Porém, ao visitar sua obra e ler sua – A sombra do samurai (1980) e Ran (1985). No ções humanistas o aproximam de Dostoiévski e da e tecnologia conviviam com as filosofias mais Com Heigo, seu irmão mais velho, apren- Em 1929, acreditando ser urgente se expres-
autobiografia, percebe-se claramente seu desejo rol dos diretores que o reverenciam encontram-se apresenta O Idiota (1951), ambientado no Japão tradicionais. Seu pai, Yutaka Kurosawa, era um deu a admirar importantes escritores ocidentais, sar perante a vida, ingressou na Liga de Artistas
de trabalhar as tradições culturais e artísticas de Fellini, Coppola, Kitano, Scorsese, Orson Welles, Ta- pós-guerra, trazendo para a tela os dilemas e tor- orgulhoso descendente de samurais e fez com como Dostoiévski, Gorki, Tolstoi e Shakespeare. Proletários, de inspiração marxista, permanecen-
seu povo, ao mesmo tempo em que assimila esté- rkovski e Spielberg, dentre outros. mentos dos três protagonistas. que o pequeno Akira, seu caçula, tivesse uma ro- Heigo Kurosawa não era apenas leitor entusias- do até 1932. Distanciou-se ao perceber que o
tica e técnica ocidentais. “Eu nunca faria um filme Akira, chamado O Imperador por seus admi- Seu olhar humanista proporciona ao espec- tina rígida e disciplinada: pela manhã, antes de ir mado dos clássicos russos e cinéfilo: era um im- grupo tendia a um estilo realista, julgando que
para um público estrangeiro; se o filme não tiver radores, amava o que fazia; de personalidade forte, tador uma obra densa na qual mescla o espírito para a escola, treinava kendo, orava no santuá-
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portante benshi em Tóquio. O jovem Akira ad-
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isto limitaria seu potencial artístico, e por sentir
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50 5. O teatro No se desenvolveu por volta do século 15 e traz temas ligados à religião e à mitologia. Em suas representações utiliza 51
música, dança, canto e um figurino rebuscado.
6. O teatro Kabuki tem por base lendas populares e se caracteriza pela refinada atuação dramática, realizada por um elenco
exclusivamente masculino (KUROSAWA, 1990, p. 221).

que “[...] minha própria febre de esquerda nunca Soltei todas as minhas críticas acumuladas e me amizade além da profissão. Ao lado de Yamamoto tou o teatro Kabuki [6] (Os Homens que Pisaram na realizar seu trabalho. Para Ran (1985), levou cinco Storyboards feitos
por Akira Kurosawa
havia sido real” (KUROSAWA, 1990, p. 130). diverti bastante fazendo isto” (KUROSAWA, 1990, por sete anos, tornou-se um primeiro assistente de Cauda do Tigre, 1945); flertou com a comédia, o anos preparando as pinturas, que trazem clara-
Em 1933, para ajudar no sustento dos pais p. 144). Surpreendeu-se ao ser chamado para as direção dedicado, disciplinado, criativo, assumindo drama psicológico, o cinema noir; homenageou mente sua visão do filme. Serviam, também, como
após a morte de seus dois irmãos, passou a traba- etapas seguintes: descrever o cenário de uma de- por diversas vezes a direção da segunda unidade o cinema mudo. A cada filme, uma nova pesqui- registro de suas intenções, caso não conseguisse
lhar com ilustrações para revistas femininas, histó- terminada cena e ser entrevistado por dois exami- de gravação, aprendendo todos os passos neces- sa abordando temas fundamentais de sua época produzir os filmes.
rias em quadrinhos para revista de beisebol, dese- nadores. Com sua experiência na pintura, resolveu sários à produção de um filme – desde o roteiro, sob uma perspectiva crítica objetiva voltada para Qual a unidade de sua obra? A cada filme
nhos para escolas culinárias e cartazes de filmes. com facilidade a questão do cenário. Quanto à en- passando pela elaboração e construção dos cená- a revelação dos múltiplos caminhos que se abrem histórico pode-se ver os movimentos do pequeno
trevista, foi uma conversa longa e agradável que rios, pela revelação da película, pela montagem até para o homem. Para ele, um constante exercício de lutador de kendo; a cada fotograma, a precisão e
O cineasta abordou música, pintura e cinema. Akira nunca ha- a finalização do som. determinação, pois “[...] para um diretor, cada tra- a disciplina exigidas pelo shodo; a cada harmo-
dos storyboards impecáveis via pensado em trabalhar com cinema; entretanto, Em 1943, Akira dirigiu seu primeiro filme, balho que finaliza supõe uma vida por inteiro. Vivi nização das cores, o jovem pintor dedicado; em
O jovem Akira cresceu conhecendo e admirando “[...] havia me dedicado à pintura, à literatura, ao Sanshiro Sugata – A saga do judô. Trata-se da ini- muitas vidas diferentes em cada um dos filmes que vários filmes, a relação professor-aluno: Cão Da-
indistintamente clássicos ocidentais e japoneses teatro, à música e a outras artes; havia quebrado a ciação física e mística nas artes marciais de um fiz. Por isto, a preparação de um novo requer um nado (1949), Os Sete Samurais (1954), A Saga do
da literatura, do cinema, da música, da pintura; cabeça com todas essas questões que, afinal, a arte famoso campeão de judô do início do século 20. Já esforço tremendo para poder esquecer o universo Judô (1943), Sanjuro (1962), Barba Ruiva (1965) e
assistindo a narrações de contos, a representações do cinema reúne. [...] tudo o que posso dizer é que neste filme imprimiu algumas de suas influências: anterior” (KUROSAWA, 1990, p. 202). Madadayo (1993).
do teatro No, e tornou-se campeão de kendo e
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a preparação foi totalmente inconsciente” (KURO- as cenas dos vários duelos foram coreografadas de Ao iniciar um novo projeto, utilizava-se de Shakespeare e Dostoiévski lhes eram caros
aficionado do golfe. É com esta bagagem cultural SAWA, 1990, p. 145). modo original, o progresso interior do noviço foi velhos e bons conhecidos: o desenho e a pintura. porque, assim como eles, preocupava-se com o
que, aos 25 anos, respondeu a um anúncio para Em seu segundo trabalho para o PCL foi de- mostrado. É possível reconhecer aqui o pequeno Enquanto escrevia os roteiros, desenhava as cenas, homem e sua incapacidade de convivência pacífi-
participar da seleção para o cargo de assistente de signado a fazer assistência para Kajiro Yamamoto, Akira: aprendiz esforçado de kendo e aluno con- os enquadramentos, a atmosfera, a composição, a ca, sua ambição pelo poder, as constantes e recor-
direção no Photo Chemical Laboratory (PCL), futu- um dos seus entrevistadores, importante diretor fiante do professor Tachikawa. perspectiva, a textura, a iluminação, o figurino, os rentes disputas entre o bem e o mal, a prevalência
ra produtora Toho. e “[...] o melhor professor que tive em toda a mi- A partir deste filme, muitos outros se segui- acessórios; tudo com extrema riqueza de detalhes. da vaidade, do egoísmo, do mentir para si mesmo.
Como primeira parte do processo de sele- nha vida” (KUROSAWA, 1990, p. 145). Yamamoto rão sem que se prendesse a apenas um gênero; Minucioso, a cada filme pesquisava sobre a época, Quando seus assistentes lhe pediram que explicas-
ção, foi solicitado um texto sobre as deficiências era um homem flexível, de caráter agradável e eclético, explorou os filmes de época (jidaigeki), os objetos, a arquitetura, o vestuário – e o resul- se o roteiro de Rashomon (1950), “[...] respondeu
fundamentais do cinema japonês. “Não lembro do mente aberta, permitindo aos seus assistentes ex- contemporâneos (gendaigeki), realizou adapta- tado aparece em seus desenhos e pinturas. Para que o roteiro era ininteligível porque tratava do
conteúdo exato de meu ensaio [...] como era um pressarem suas opiniões, e com ele Akira reviveu ções de clássicos da literatura ocidental: O Idiota a realização de Os Homens que Pisaram na Cauda espírito ininteligível do ser humano [...]” (NOGAMI,
fanático por cinema, havia encontrado muitas a relação que teve com o professor Tachikawa, na (1951), Trono Manchado de Sangue (1957), Ralé do Tigre, estudou com afinco o teatro Kabuki: seus 2010, p. 77).
coisas no cinema japonês que não me satisfaziam. qual havia a liberdade criativa, o respeito mútuo, a (1957), Céu e Inferno (1963), Ran (1985); adap- cenários, seus figurinos, o movimento dos atores Sua filmografia carrega o seu rigor, sua dis-
no palco. ciplina, sua exigência consigo mesmo e com sua
Desenhava seus storyboards para refletir so- equipe; o modo como colocou na tela a cultura de
bre o ambiente, a personalidade e as emoções dos seu país, cultura essa que assimilou ao longo de sua
personagens, qual o melhor ângulo da câmera para vida, integrando-a a cultura ocidental. Akira era
determinado movimento. Sentia a necessidade de um homem do mundo e seus filmes mostram isto.
capturar a imagem de cada cena para visualizá- “Nunca me sinto deslocado no estrangeiro, mesmo
-la com clareza e montar mentalmente o filme que não fale nenhum outro idioma. Acredito que
que desejava fazer. Em alguns de seus storyboar- meu lugar é a Terra” (KUROSAWA, 1990, p. 103).
ds, como de Kagemusha – A sombra do samurai
(1980) e Sonhos (1990), percebe-se a mescla da
pintura impressionista – Van Gogh, Renoir, Cézan-
REFERÊNCIAS bibliográficas
ne – e da complexa iconografia japonesa.
KUROSAWA, Akira. Autobiografia (o algo parecido). Trad. Raquel
Os storyboards faziam parte de seu processo Moya. Madrid: Fundamentos, 1990.
MUSEO ABC. Los dibujos de Akira Kurosawa. La mirada del
criativo. Entretanto, tinham também outras fun- samurái. Madrid: Fundación Colección ABC y Tf. Editores,
ções: eram um elemento a mais quando da capta- 2011.
NOGAMI, Teruyo. À Espera do Tempo – Filmando com Kurosawa.
ção de recursos para realizar o filme. Além do ro- Trad. Diogo Kaupatez. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
RODRIGUES, Jaime. Kurosawa. FILME Cultura. Rio de Janeiro:
teiro, mostrava para as produtoras como pretendia INC, Ano II, n. 9, 30 abril, 1968, p.02-19.

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