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Estudo sobre Leis de Kashrut, parte 4:

Reflexões acerca da proibição da carne e do leite,


considerando suas origens no texto

O Judaísmo, como sabemos, proíbe a Judeus:

1) cozinhar carne e leite juntos,

2) comer carne que foi cozida com leite,

3) beneficiar-se de tal mistura.

No entanto, não há menção dessas proibições na Torá! Então, de


onde veio essa proibição?

No Talmud, os rabinos derivam esta proibição da frase: ‫לא תבשל‬


‫ גדי בחלב אמו‬- geralmente traduzida como "não cozinhe um
cabrito no leite de sua mãe", que aparece 3 vezes em toda a
Torá (Shemot 23:19; 34: 26 e Devarim 14:21).

[Talmud, Tratado de Hulin 8:4; Hulin 113a]


Mas, com certeza, qualquer pessoa percebe que, há pouca
substância no verso que sugere – de modo inequívoco - algo
além da ideia de alguém, literalmente, cozinhar um cabrito no
leite de sua mãe! Quer dizer, é óbvio que os parâmetros para
essa regra não estão claros.

Chazal (acrônimo de: Nossos sábios de abençoada memória, usado para se referir aos sábios do
Talmud) debatem a concepção, no sentido de determinar, a quais

animais exatamente, esta regra se aplica. O verso, ao que tudo


indica, está se referindo apenas a cabras, mas as opiniões que
surgem no texto da Mishná variam, desde “apenas os mamíferos
kasher domesticados” (opinião do Rabino Akiva), e também
“todos os mamíferos kasher” (opinião do Rabino Iossi O Galileu);
até “todos os animais kasher, excluindo apenas peixes e
locustas”. ( Opinião do Taná Kama e do Rav Iossef).

[Talmud, Tratado de Hulin 8:4; Hulin 104a]

Então, o Rabino Akiva até admite que animais silvestres e aves


façam parte desta proibição, mas apenas como uma questão de
lei rabínica; enquanto o rabino Iossi o Galileu permaneceu firme
na sua posição, de que a proibição não se estende às aves, já que
elas não têm relação alguma com o conceito de “leite da mãe”,
concepção indicada pelo próprio verso.

Ele estava absolutamente convencido disso, de tal modo que na


cidade aonde morava, aves “ao parmesão” eram servidas em sua
própria mesa. (Talmud, tratado de Shabat 130a)!
Não obstante, os rabinos debatem outros temas relacionados
também, como por exemplo: se deve haver um período de
espera entre o consumo de carne e leite, bem como se pratos
separados seriam necessários, etc.

[Para estudar uma discussão detalhada do desenvolvimento destas leis, é útil


conhecer a obra do Rabino Dr David Kraemer, chamada Jewish Eating and
Identity through the Ages (2007), Capítulo 4]

No entanto, tudo se concentra nestes três verso da Torá, que


devem então, ser analisados um a um:

O que o texto do cabrito no leite, implica em Shemot?

A frase “não cozinhar um cabrito no leite de sua mãe” é um


enigma, por si só. Por que alguém faria isso?

O Rambam, em seu Guia dos Perplexos (111: 48), sugere que isso
poderia ter sido um ritual religioso idólatra.

[E até certo ponto, estudiosos da área como o Rabino Harold Louis Ginsberg 1903-
1990 Z”L, especialista em Literatura Rabínica; mantinha que, a evidência para tal
prática, estava indicada na encontrada tábua Ugarítica. Entretanto, a tabuleta
estava danificada, e mesmo sua reconstrução linguística, acabou sugerindo algo um
pouco diferente, como “não coloque coentro no leite” ou algo parecido. ]

Mesmo uma leitura superficial do trecho mostra que, parece


estar desconectado do verso em se encontra. O texto em
Shemot 23: 18, 19 aparece assim:
.‫יח ל ֹא ִתזְ בַּ ח עַּ ל חָ ֵמץ ַּדם זִ ְב ִחי וְל ֹא י ִָלין חֵ לֶ ב חַּ גִ י עַּ ד ב ֶֹקר‬
‫ּכּורי אַּ ְד ָמ ְתָך ָת ִביא בֵ ית יְהוָה אֱ ֹלהֶ יָך ל ֹא ְתבַּ ֵשל גְ ִדי בַּ חֲ לֵ ב‬
ֵ ‫אשית ִב‬
ִ ‫יט ֵר‬
.‫ִאּמֹו‬

18 – Não ofereça o sangue de minha oferta com Hametz;


tampouco a gordura da celebração a Mim deverá permanecer a
noite toda, até a manhã.

19 – Traga as melhores primícias de sua terra à casa de


HaShem, seu Elohim. Não cozinhe um cabrito no leite de sua
mãe.

E o texto em Shemot 34: 25, 26 é muito parecido:

.‫ה ל ֹא ִת ְשחַּ ט עַּ ל חָ ֵמץ ַּדם זִ ְב ִחי וְל ֹא י ִָלין לַּ ב ֶֹקר זֶבַּ ח חַּ ג הַּ פָ סַּ ח‬
‫ּכּורי אַּ ְד ָמ ְתָך ָת ִביא בֵ ית יְהוָה אֱ ֹלהֶ יָך ל ֹא ְתבַּ ֵשל גְ ִדי בַּ חֲ לֵ ב‬
ֵ ‫אשית ִב‬
ִ ‫ו ֵר‬
.‫ִאּמֹו‬

25 - Não ofereça o sangue da minha oferta com Hametz; e a


oferta do Pessach não pode ser deixada até a manhã.

26 - Leve as melhores primícias de sua terra à casa de HaShem,


seu Elohim. Não cozinhe o cabrito no leite de sua mãe.

[A principal distinção entre Shemot 34 e 23 é que, ao invés de “oferta de


celebração”, é dito “Oferta de Pessach”. Por isso, muitos estudiosos concordam que,
esta seção em 34 foi simplesmente copiada do capítulo 23.]
Como lemos, em ambos os casos, a frase parece um adendo ao
contexto. Mesmo assim, por que foi colocado aqui dentre todos
os lugares? O que é que, cozinhar um cabrito no leite da mãe,
tem a ver com Ofertas ou Primícias?

A maioria dos comentários tradicionais ignora completamente


esse problema, e se concentra na explicação tradicional da
passagem; relacionada a proibição de cozinhar e consumir carne
e leite juntos.

Poucos são os comentários - ainda que com uma orientação


“peshat” (simples) como o Rashbam e Ibn Ezra - que tentam
encontrar alguma conexão entre a proibição e seu contexto.

A interpretação mais radical e esclarecedora, que toma o


contexto do verso como primordial, é a do Bekhor Shor – Rabino
Iossef ben Itzhak Bekhor Shor, século XII – França Medieval.

Ele acredita que esta frase, tal como sua compreensão clássica;
tem sido simplesmente mal interpretado pela maioria.

O Bekhor Shor argumenta que o versículo em Shemot não tem


nada a ver com, literalmente, cozinhar um cabrito no leite da
mãe; ou mesmo com, cozinhar leite e carne juntos!
Ele escreve:

”.‫ כמו “הבשילו אשכלותיה ענבים‬,‫ “בישול” לשון גידול וגמר‬,‫לפי הפשט‬
‫ שתאחרנו עד שתגדלנו‬,‫ לא תניחנו לגדל ולגמול בחלב אמו‬:‫והכי קאמר‬
:‫ דומיית תחילת הפסוק שאמר‬,‫ אלא בראשית תביאנו‬,‫האם בחלבה‬
”‫“ראשית בכורי אדמתך‬

De acordo com o significado simples, o termo “ bishul ” aqui


usado, significa crescer ou completar, semelhante ao seu uso [no
verso (Bereshit 40:10)]: “seus cachos amadureceram (‫ )הבשילו‬em
uvas.” Isto é o que o verso está dizendo então: não permita que
[o cabrito] cresça e seja desmamado do leite da mãe. [Em outras
palavras, não espere até que o cabrito cresça tomando o leite de
sua mãe; ao invés disso, traga-o depressa! Isso se encaixa com o
contexto da primeira parte do verso, "as primícias dos frutos de
seu solo [você deve trazer]."

Novamente, comentando Shemot 34, o Bekhor Shor ofereceu


uma interpretação praticamente idêntica.
‫ “בישול” משמע‬,‫ לא תעזבנו עד שיגמור גידולו בחלב אמו‬:‫לפי הפשט‬
]‫ כמו “הבשילו אשכלותיה ענבים” וכן בלשון תלמוד “[ארץ ישראל‬,‫גמר‬
‫ “ראשית בכורי‬,‫קלה לבשל פירותיה” והוא דומיא דרישא דקרא‬
.‫” משמע שמתבכרות שלא תאחר עד גמר הפירות‬,‫אדמתך‬

De acordo com o significado simples, não deixar que [o cabrito]


fique, até que cresça pelo leite da mãe. "Bishul" implica
conclusão, como [no verso (Bereshit 40:10)]: "seus cachos
amadureceram (‫ )הבשילו‬em uvas." O Talmud usa o termo de
modo similar (tratado de Ketubot 112a): "[A terra de Israel ]
frutifica (‫ )לבשל‬com facilidade. ” Isto faz alusão, ao início do
verso que diz: “a primícias do fruto do seu solo [você deve
trazer].” Isto implica que eles estão passando pelo processo de
maturação, que não se deve demorar até que os frutos estejam
maduros.

De acordo com esta interpretação e elucidação, a frase ‫לא תבשל‬


‫ גדי בחלב אמו‬não tem nada a ver com comer carne com leite, ou
mesmo cozinhar um com o outro!

Ao invés disso, a frase deve ser entendida – diz o Bekhor Shor -


como uma maneira poética de expressar a exigência de levar os
animais primogênitos como Oferta no Templo, o mais rápido
possível.

Isso corrobora de modo muito mais harmonioso e lógico com o


contexto do verso 19 – como indicado pelo próprio Bekhor Shor!

Pois, nesse verso, a Torá ordena ao povo de Israel que não deixe
a gordura da Oferta até de manhã. Ao invés disso, eles deveriam
comer toda a Oferta naquela mesma noite, no momento
adequado. Em outras palavras, a totalidade dos versos 18-19 diz
respeito a ser pontual sobre fazer o ritual do Templo e não
esperar ou deixar as coisas para fazer depois!
Agora, o que o texto do cabrito no leite, implica em Devarim?

Sim, o contexto do verso em Devarim é bem diferente.

A frase aparece ali como parte de uma listagem de alimentos


proibidos, especificamente, acerca da proibição de comer carne
não abatida ritualmente.

Isso força o leitor a procurar um entendimento diferente; já que


a frase agora não faz parte de uma discussão sobre as primícias.
Então a explicação dada, pelo Bekhor Shor antes, não funciona
aqui. O texto em Devarim 14: 21 diz:

‫א ל ֹא ת ֹאכְ לּו כָל נְ בֵ לָ ה לַּ גֵר אֲ ֶשר ִב ְשעָ ֶריָך ִת ְת ֶננָה וַּאֲ כָלָ ּה אֹו ָמכֹר ְלנָכְ ִרי‬
.‫ּכִ י עַּ ם ָקדֹוש אַּ ָתה לַּ יהוָה אֱ ֹלהֶ יָך ל ֹא ְתבַּ ֵשל גְ ִדי בַּ חֲ לֵ ב ִאּמֹו‬

21 – Não comam nenhum animal Nevelah; contudo, podem dá-


lo ao estrangeiro residente com vocês, para que ele o coma; ou
então vende-lo a pessoas de outras nações, pois vocês são um
povo consagrado ao HaShem, seu Elohim. Não cozinhem um
cabrito no leite de sua mãe.

O Bekhor Shor percebeu o contexto alterado aqui, e deu uma


explicação bem diferente também:
‫ דרך בישול אסרה תורה… ואסור בשר בחלב‬,‫בשר בחלב אסור לבשל‬
,‫ ו"אמו”נתינת טעם‬.‫ מדכתיב תלתא “לא תבשל” בתורה‬,‫באכילה והנאה‬
‫ והבהמה שיצא‬,‫דדרך אכזריות שיבשל בשר בחלב [האם] שגידלתו‬
‫ וזאת המצוה דומיא ד"לא תקח האם‬... ‫ממנה החלב שמא אמו הייתה‬
.”‫על הבנים” ו"אותו ואת בנו‬

É proibido cozinhar carne no leite. A Torá proíbe especificamente


o ato de cozinhar.... Também é proibido comer ou obter
qualquer benefício da carne [cozida] no leite. A inclusão do
termo “sua mãe” vem nos ensinar a razão [para esta lei],
implicando que seria cruel, da nossa parte, cozinhar a carne de
um cabrito no leite da mãe. [Portanto, todo tipo de leite é
proibido], pois talvez o animal de onde veio este leite fosse sua
mãe… Esta mitzvá é semelhante a: “não tome a mãe [a ave] com
seus filhotes” [Devarim 22:6] e também: “...nenhuma vaca ou
ovelha será morta com sua prole, no mesmo dia. [Vaicrá 22:28]”

Neste caso, o Bekhor Shor expõe de modo completamente


distinto. Tal qual os sábios, ele entende que esta passagem é
realmente sobre se cozinhar carne no leite. Ele acrescenta até
mesmo a elaboração rabínica sobre o leite e a carne serem
proibidos, tanto de comer como desse beneficiar; uma
elucidação baseada nos três versos. Até certo ponto, isso não é
surpreendente.

Como o Rashbam (1085-1158) antes dele, o Bekhor Shor


acredita que há um lugar para a elucidação dada, mesmo quando
esta elucidação parece contradizer o peshat, o sentido simples
do verso.
É o Midrash é o que fortalece a halachá.

Não obstante, o Bekhor Shor fez uma forte declaração. Existe um


elemento peshat do verso que não pode ser ignorado, de
qualquer modo. A passagem em Devarim parece associar essa
regra às leis dos alimentos proibidos. Parece lógico oferecer uma
leitura da proibição nesta frase que culminaria com algum tipo
de alimento proibido.

Mas, como uma mesma frase pode significar duas coisas


completamente diferentes?

Uma possível explicação, seria considerar o pensamento do


Bekhor Shor sobre os versos em Shemot – explicação
enormemente persuasiva, pelo menos para mim - mas também o
seu argumento de que o verso em Devarim fala sobre uma
proibição alimentar. Ou seja, ao aplicarmos as explicações
distintas, dada sobre os mesmos termos, em versos distintos;
estaríamos dizendo, que estes versos vieram de fontes
tradicionais distintas que, entendiam a frase, de modo distinto!

Afinal, os Acadêmicos acreditam que o autor do Devarim (a fonte


tradicional jurídica, ou D) estava familiarizado com a “Coletânea
do Pacto” (termo usado por acadêmicos para se referir a leis em
Shemot 20: 19 e 23: 19) e então, usou-o como base para compor
seu próprio trabalho.
[ Para se ter uma visão mais detalhada – e na minha opinião, bastante convincente
– de como a “tradição jurídica” foi elaborada sobre os textos “da Coletânea do
Pacto”; é preciso ver o trabalho do Professor Bernard Malmolm Levinson na obra
“Deuteronomy and the Hermeneutics of Legal Innovation” (1998). ]

A chamada “coletânea do Pacto” apresenta uma discussão sobre


a exigência de se levar as primícias e os animais primogênitos ao
Templo (provavelmente no Mishkan – ver Shemot 20:24).

A exigência foi formulada de uma maneira poética, com uma


expressão idiomática incomum a nós: "não cozinhe/mature o
cabrito no leite de sua mãe".

Quando o autor do código da tradição jurídica estava lendo este


trabalho, ele entendeu a frase literalmente, como "não cozinhe
um cabrito, literalmente, no leite de sua mãe” e, portanto,
combinou tal expressão na lista de animais proibidos – algo que
o Professor Michael Fishbane (Universidade de Brandeis), chama
de exegese bíblica interna.

[Michael Fishbane na obra: Biblical Interpretation in Ancient Israel (1987). ]

Se a linha do tempo relacionada estiver correta, nem foram os


rabinos da Mishná que iniciaram o processo de elaboração da lei
que proíbe carne e leite, mas a própria Tradição Jurídica textual,
que deu início a este processo, reinterpretando uma regra
passada via expressão linguística, por conferir a esta, novo
significado.

Bentzion

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