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O INIMIGO OCULTO
Autor
KURT MAHR
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
A morte de um robô provoca uma crise
interestelar e uma ação policial da Terra.
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— Com os diabos! Sei que não há muita coisa para ver, mas gostaria de dar uma
olhada lá embaixo. Será que sua cabeça dura pode compreender isto?
Ran Loodey já estava perdendo a mania de se sentir ofendido com as expressões um
tanto grosseiras de seu comandante. Piscando o olho, mas com expressão séria no rosto,
respondeu:
— Talvez, com o correr do tempo, Sir.
Untcher soltou um suspiro e dirigindo-se a seu primeiro-oficial disse, simulando um
desespero cômico:
— Stowes, preste atenção a este homem aí. Não lhe dê nunca um posto de
responsabilidade, pelo amor de Deus, pois ele só vê o inimigo, quando seu pescoço está
sendo cortado.
Stowes bateu uma continência brincando:
— Às ordens, Sir!
Untcher fez um sinal para o segundo-oficial:
— Lenzer, vamos sair. Mantenha a arma de prontidão.
Encaixou e atarraxou o capacete em seu uniforme espacial. Já era um costume para
ele, e não esperava que ninguém o imitasse. A atmosfera de Opghan era rarefeita como
nas altas montanhas da Terra, mas bem respirável. Não havia realmente nenhuma razão
para alguém ter de proteger-se com o uniforme espacial num ambiente daquele. Mas
Thomea Untcher tinha como princípio, em qualquer oportunidade, usar de toda garantia,
por mais exagerada que parecesse. Por exemplo, quando entrava por uma porta fazia-o
lentamente, com toda cautela. E agora lá estava ele, na sua saída de inspeção da
minúscula ilha, após a aterrissagem da Finmark, com o pesado uniforme espacial.
Já o Tenente Lenzer se contentava em puxar o capacete só até a testa, de maneira
que, mesmo assim, podia se utilizar do micro transmissor e do receptor. Ia bem perto de
Untcher e tomou a esteira rolante que passava pelo corredor central até a escotilha menor.
Em pensamento, estava caçoando das exageradas medidas de precaução de seu chefe.
Thomea Untcher passou pela pequena abertura, sem parar. Da soleira da escotilha
externa, a pouco mais de meio metro do chão, saltou cuidadosamente, como se tivesse
medo de levar um tombo. Olhou em volta.
Os raios fortes do sol castigavam o pequeno trecho de terra, com suas plantas
exóticas em forma de pequenas touceiras. Do chão fértil, brotavam folhas carnudas de um
verde-claro, que rodeavam num círculo protetor uma haste cor-de-rosa, quase tão grossa
quanto um galho, que se elevava a uns três metros de altura, tendo no alto uma flor de um
amarelo-forte, parecendo muito com o girassol. Mas a planta em seu todo se assemelhava
mais a uma gigantesca boca-de-leão.
“Que coisa esquisita”, pensava Untcher, “e não se pode esquecer que todas estas
plantas exuberantes têm somente cem horas de vida...”
Levantou o braço e consultou o relógio.
— Têm ainda só quatro horas de vida. Vão morrer de frio durante a noite. E cem
horas depois, quando o sol surgir novamente, de suas sementes conservadas pelo frio
vingarão novas plantas, que em duas horas atingem o tamanho e a pujança destas que
aqui estão — monologou.
Aproximou-se de uma delas, observou-a atentamente de todos os lados e abanou a
cabeça:
— Coisa singular, como a natureza é pródiga!
Lenzer não estava interessado em ver bocas-de-leão de três metros de altura, mas se
sentia no dever de dizer alguma coisa.
— Quero saber se quando a gente quebra-lhe uma haste os dedos ficam com uma
mancha preta.
Untcher olhou para ele.
— Meu jovem, você tem uma pobreza franciscana no tocante à inspiração
romântica. Não se preocupe com seus dedos. Ponha as luvas. E agora vamos continuar
nosso giro.
Lenzer o seguiu. Untcher esgueirou-se por entre aquelas plantas maravilhosas,
procurando atingir a margem. Não poderia ser difícil, tomando-se em consideração as
pequenas dimensões da ilhota. Mas devido às enormes e altas folhas das touceiras, podia-
se perder a direção.
Assim aconteceu que Thomea Untcher só percebeu o pequeno braço de mar que
penetrava ilha adentro, quando seu pé já estava n’água. Assustado, puxou-o para fora,
apoiando-se numa das grandes folhas da boca-de-leão, para não perder o equilíbrio.
Lenzer sorriu. Neste momento, Untcher olhou para trás e percebeu a expressão no
rosto de Lenzer.
— Não há motivo para caçoar, amigo. Acho que você deve saber, não melhor do
que eu, que nestas águas estranhas há tão grande quantidade de animais de todos os tipos,
que os catálogos arcônidas não são unânimes a respeito.
Lenzer não acreditava que numa água de um palmo de fundura pudesse haver tanta
coisa assim. Mas, preferiu calar. Conhecia bem a capacidade de Thomea Untcher de, no
seu modo aparentemente distraído e despreocupado de falar, confundir qualquer
interlocutor, mormente quando não era da mesma opinião que ele. A pessoa acabava não
sabendo mais o que tinha dito antes.
Sem largar a enorme folha, Untcher se inclinou, para poder ver melhor o mar.
— Incrível, como pode haver tanta água — comentou sério.
Lenzer concordou com entusiasmo:
— Mas isso não é só aqui, é em toda parte.
— É verdade — disse Untcher, retirando-se da água com um galeio elegante. —
Estou vendo que você é tão inteligente como eu. Um dia você ainda...
Alguma coisa o fez interromper a frase. A água do pequeno braço de mar começou a
se movimentar. Naquele trecho, surgiram pequenas ondas que vinham se quebrar na
margem. Thomea Untcher contemplava o fenômeno com expressão de perplexidade no
rosto.
Neste momento, a superfície líquida se fendeu ao meio e apareceu uma cabeça. Que
cabeça! Uma coisa de pele esverdeada, sem pêlos, estranhamente redonda, com dois
olhos enormes, cujas pupilas pareciam escondidas atrás de uma cortina meio opaca,
comum nariz pequeno demais e com o focinho largo de beiços finos. O animal a quem
pertencia a cabeça, se movia muito rapidamente.
Não eram decorridos ainda cinco segundos desde o início das ondas, quando aquele
estranho corpo coberto de escamas pulou para fora da água, não deixando nenhuma
dúvida de que via os dois terranos como inimigos de sua segurança.
— Cuidado, Lenzer! — exclamou Untcher.
***
Kayne Stowes estava convencido de que não poderia haver nesta ilhota nenhum
perigo para a Finmark, mas apesar disso não deixou de cumprir seu dever, com muita
atenção. A todo momento, seu olhar parava na tela panorâmica, que mostrava todo o
espaço em volta da nave, permitindo-lhe uma visão ampla da ilha. De vez em quando, via
a figura franzina de Thomea Untcher ou o alto e espadaúdo Phil Lenzer caminhando entre
a densa ramagem.
Uma calma de sono e de solidão se espalhava sobre a tela, que ainda refletia a luz
viva do sol. Os minutos iam se passando e Kayne Stowes começou a acreditar que estava
ouvindo o zumbir de abelhas. Sentiu então uma vontade irresistível de abandonar seu
posto para dar um giro lá fora e deitar um pouco no capim, sob aquele céu de um azul
diferente.
A mesma coisa parecia acontecer com Ran Loodey. Estava sentado diante dos
aparelhos de rádio e dava a impressão de saber exatamente que nas próximas horas não
teria nada para fazer. Kayne ouvia de vez em quando o espreguiçar do colega e tinha a
impressão de que Loodey queria despertar sua compaixão, para conseguir uma hora ou
mais de descanso lá fora no ar puro.
Mas a Finmark ainda estava em estado de alarme. Nos ninhos de artilharia pesada,
com tripulação reforçada, cada um achava-se mais atento que o outro. Havia muita gente
acreditando que Thomea Untcher podia expressar sua exagerada mania de segurança de
uma maneira mais útil e não sobrecarregar uma tripulação já com estafa, cansada de três
dias de viagem ininterrupta, exatamente naquele mundo subdesenvolvido. Ali não havia
nenhum perigo, e a primeira preocupação do comandante deveria ser de mandar todos
dormirem pelo menos dez horas ininterruptas.
Mas as ordens de Thomea Untcher tinham muito prestígio. Ninguém ousaria
abandonar seu posto. Ficavam de olhos fixos na mira automática, nas telas dos
rastreadores e nos demais instrumentos de medição, até que a vista lhes começava a
arder. Então convocavam seus substitutos, para descansarem um momento, todos, porém,
convencidos de que faziam uma prontidão inútil.
Até que viram realmente que acontecia alguma coisa diferente lá fora.
Kayne Stowes acordou repentinamente de seu cismar, quando viu, por trás das
grandes touceiras, um movimento quase fantasmagórico. Sabia perfeitamente que
Untcher e Lenzer tinham se dirigido para outra direção. O que observara, não podia ser,
portanto, nenhum dos dois.
Segundos depois, não tinha mais certeza se avistara mesmo alguma coisa. Fora tudo
tão rápido, que podia crer num reflexo de seu esgotado sistema nervoso. Era um
movimento de uma única folha da gigantesca boca-de-leão, embora a aerometria
confirmasse que não havia vento nenhum lá fora. Mas isto não era propriamente uma
prova.
No entanto, estava despertada a curiosidade de Kayne Stowes. Começou a prestar
mais atenção nos movimentos em torno da nave, através da tela. Tentou medir a
velocidade do objeto desconhecido — fosse o que fosse — e em que lugar haveria de
surgir novamente. Constatou-se que ele errara redondamente. O objeto desconhecido era
muito mais veloz do que poderia supor. Quando se mostrou pela segunda vez, os efeitos
foram tão nítidos que Kayne não pôde deixar de vê-lo.
Lá estava um estranho diante da nave. Saíra de entre as touceiras. Estava agora no
espaço livre que o campo de propulsão da Finmark produzira, arrancando da terra e
atirando para mais longe os arbustos da tal boca-de-leão.
Kayne Stowes examinava a estranha criatura. Sabia existir em Opghan uma raça
muito singular, à primeira vista com a aparência de humanóides. Um exame mais
demorado, porém, indicava algumas transformações interessantes, provenientes de um
contato permanente com o mar durante muitos milênios. Apesar disso, a primeira
impressão foi chocante e o assustou bastante. O homem, de pé diante da nave, era de
estatura normal. Como indumentária não trazia no corpo mais do que se esperava de um
habitante da África Central há alguns anos. Seu corpo reluzia e a água escorria em
pequenos filetes de todos os seus membros. Uma pele, constituída por grandes escamas,
completavam a estranha figura.
Kayne Stowes deixou a mão escorregar para frente e apertar o botão de alarme
geral, num movimento mecânico, impensado. As sirenes soaram em toda a grande
Finmark. Como se tivesse ouvido o forte apito, o estranho desapareceu no mesmo
momento, num movimento tão rápido que dava a impressão de poder se dissolver no
nada.
O sargento Loodey estava muito assustado.
— Prepare um grupo de vinte homens e desçam logo para a ilha — ordenou ele. —
Alguma coisa de anormal se passa lá embaixo e eu quero saber exatamente o que é.
Todo o cansaço e sonolência desapareceram de repente de Loodey. Já enquanto
estava dando a ordem, escolhia mentalmente os homens que ia levar. Stowes, apenas
virou-se para trás e pegou o microfone do intercomunicador para dizer os nomes dos
homens.
Kayne Stowes estava a par da situação melindrosa em que se encontravam Thomea
Untcher e Phil Lenzer. Havia seres estranhos na ilha e sua atitude não era de gente
pacífica. Opghan era uma colônia arcônida. Os éfogos, por mais primitivos que fossem,
sabiam o que era uma espaçonave. Portanto, o estranho não se assustara com a aparência
da Finmark. Queria esconder-se.
Stowes apanhou o microfone que o ligava diretamente com Untcher e Lenzer. Mas
antes de poder dizer as primeiras palavras, ouviu a voz forte de Untcher em tom de
comando:
— Defenda-se Lenzer, cuidado!
Os pensamentos lhe giravam em remoinho na cabeça. Que havia acontecido com
Untcher e Lenzer? Onde estavam? Quem os atacava?
Não teve mais tempo de se preocupar com isto. De um momento para o outro, o
local onde a Finmark descera estava lotado de seres com a pele em forma de escamas
esverdeadas. Atacavam a espaçonave. Mas era um espetáculo ridículo. Não tinham arma
de espécie alguma, carregavam apenas um pequeno cilindro metálico que brilhava no ar.
As portas blindadas das comportas estavam tão bem fechadas que nada poderiam fazer, a
não ser que dispusessem de um canhão térmico.
Mas na cabeça de Kayne Stowes continuava a suspeita de que os estranhos sabiam o
que estavam fazendo. Eram seres primitivos, mas conheciam de sobra uma espaçonave e
não iriam atacar um colosso de metal, com apenas um pequeno cilindro metálico. A
situação parecia irreal e Kayne Stowes não sabia mesmo o que fazer. Além de tudo,
atacavam por baixo a Finmark, escapavam, logo depois, pela parte inferior da curvatura,
das objetivas e ninguém mais podia saber o que estavam fazendo.
Na cabeça de Stowes passou o pensamento de se utilizar dos canhões pesados, a fim
de livrar as imediações da Finmark de qualquer perigo. Mas o alcance da artilharia era
forte demais para a diminuta ilha. E ninguém podia garantir que os disparos não
atingiriam também a Untcher e Lenzer.
Neste meio tempo, Ran Loodey reunira seu grupo de ação. Nenhum deles tinha a
menor idéia do que acontecera. Loodey os instruiu com poucas palavras:
— Vamos prender os estranhos ou expulsá-los daqui.
À frente dos seus, deixou a sala de comando, percorrendo o mesmo caminho até a
comporta menor, por onde Thomea Untcher e Phil Lenzer haviam saído.
Ran Loodey era um homem que não conhecia a palavra hesitação. Deram-lhe uma
missão — expulsar das imediações da Finmark os seres estranhos com pele escamosa e
exatamente isto ele faria.
Seria ridículo acreditar que aqueles estranhos estivessem em condições de resistir.
Provavelmente teriam que ferir alguns deles com suas poderosas armas, a fim de assustar
os demais e convencê-los da inutilidade de resistir. Depois exigir que se entregassem
pacificamente.
Estava tão certo de que liquidaria sua missão em poucos segundos, que nem perdeu
tempo de puxar o capacete para frente e atarraxá-lo com a peça do ombro. De arma em
punho, o sargento pulou da escotilha externa para o chão macio da ilha e seus homens o
imitaram com a mesma agilidade.
O inimigo estava presente em toda parte. Ran Loodey não podia saber o que os
estranhos estavam procurando achar nas paredes externas da Finmark e para que serviam
as pequenas “garrafas térmicas”, que estavam manejando. Mas foi somente o fato de
alguém estar mexendo em qualquer coisa da Finmark, sem a devida autorização, que fez
o espírito disciplinado de sargento se revoltar em Loodey. Com uma voz de trovão,
comandou:
— Atacar, rapaziada!
O pele-escamada mais próxima distava três ou quatro passos de Ran Loodey. Estava
ajoelhado no chão, com o corpo apoiado, de tal modo que se adaptava às formas externas
da grande nave, tinha na mão o pequeno cilindro de metal, sobre cuja função ninguém
estava certo. Aparentemente, o pele-escamada o esfregava nas chapas de aço da Finmark.
Viu que Loodey se aproximava, mas não se mexeu. Num movimento muito rápido, o
sargento meteu a arma na cintura de novo, esticou os braços e pegou o éfogo pela cabeça.
Com forte puxão, botou-o de pé, bem na sua frente e lhe deu um soco tão bem dado no
queixo, que não tinha mais dúvida de que este adversário iria descansar ali pelo menos
duas horas.
A luta se desenrolava por todos os cantos. Os homens de Loodey se abstiveram de
fazer uso de suas pistolas. Os peles-escamadas não possuíam nenhuma arma e era contra
a mentalidade terrana lutar contra um adversário desarmado, usando qualquer tipo de
arma. Estavam lutando realmente só com as mãos. E como se dedicavam de corpo e alma
ao que estavam fazendo, não demorou a se ouvir em toda a ilha os gritos de dor dos
éfogos. Os nativos não foram tratados com muita brandura.
Depois que o próprio sargento havia deixado fora de combate quatro adversários,
com seus poderosos punhos, não achou mais graça na luta tão fácil.
— Parar! — reboou seu forte comando. — Isto não é luta para nós. Deixem que eles
fujam.
Demorou uns instantes até que todos obedecessem. Quando os peles-escamadas
foram liberados da pancadaria terrana e fugiram, restaram apenas sete ou oito, que não
podiam se mover.
Ran Loodey se afastou sem dar maior importância ao adversário ou aos cilindros de
metal, que estavam no chão por toda parte. Acudiu-lhe então o pensamento de que Kayne
Stowes não procedera corretamente, dando a ele esta missão. De repente começou a ter
pena dos nativos. Ficou ali parado, olhando para os pobres coitados. Causava-lhe grande
alegria quando um ou outro voltava a si e começava a se mexer. Aos poucos, todos
recobrariam os sentidos e haveriam de ir embora.
Ran Loodey resolveu então falar bem francamente com Kayne Stowes sobre aquela
desagradável missão que lhe fora confiada.
***
***
Mas o que acharam foi coisa bem diferente.
De toda a tripulação da Finmark, apenas quatorze homens estavam dispostos a
obedecer às ordens de seus oficiais superiores. Os demais, a maioria, apresentavam uma
atitude de renitência, até mesmo de rebeldia, de tal maneira que Thomea Untcher receava,
com razão, que, dentro de pouco tempo, chegariam à idéia de se apossarem da nave.
Já que, pelo menos no momento, ainda não estava bem claro sobre o que pretendiam
fazer, Untcher aproveitou a ocasião e travou, por meio da ligação de emergência, todas as
escotilhas da Finmark. Em seguida, mandou injetar, através dos tubos de aeração, dióxido
de carbono nos aposentos onde se encontravam os amotinados. Assim, em poucos
minutos, conseguiu afastar o perigo iminente. Mas com a testa banhada em suor, Untcher
não se esquecia de que, nestes minutos, a Finmark estava quase indefesa e de que o
inimigo desconhecido teria tempo para atacar uma segunda vez.
Porém os minutos se passavam, sem que nada acontecesse. Num trabalho cansativo
e paciente, os homens que causaram perturbações foram abrigados um por um na sala dos
oficiais, e ali aprisionados com todo conforto. Untcher lhes deixou a possibilidade de
entrarem em contato com a sala de comando, pelo intercom, e isto tinha sua importância,
caso mudassem de idéia e resolvessem portarem-se como soldados responsáveis.
Depois mandou investigar quantos médicos havia entre os quatorze. Havia apenas o
Dr. Dunyan. O comandante encarregou-o de fazer um exame no sargento Loodey.
Dunyan era muito competente e Untcher podia se dar por feliz pelo fato de o médico não
estar entre as vítimas do estranho fenômeno.
Dunyan começou seu trabalho, primeiramente examinando o ar a bordo da Finmark.
Abstraindo-se, porém, da elevada concentração de dióxido de carbono, não se constatou
nenhum elemento estranho. Estava então quase certo de que os amotinados tinham sido
de fato vítimas de um gás desconhecido, pois os dezessete restantes, que, cumprindo as
normas gerais e as ordens expressas do comandante, usaram o uniforme com o capacete
fechado, achavam-se livres do mal, exatamente pelo uso do capacete atarraxado ao
uniforme espacial.
No entanto, as medições do Dr. Dunyan pareciam querer refutar esta teoria.
O exame minucioso procedido em Ran Loodey também não apresentou resultados
sensacionais. O sargento estava sem sentidos e não apresentava outros sintomas, a não ser
os que são normais num homem atingido por uma forte e bem centrada cutilada. A única
coisa que Dunyan podia dizer de positivo era que Loodey, quando voltasse a si, teria
dificuldade para engolir.
— Quanto tempo o senhor leva para fazer um exame profundo, doutor? — foi a
pergunta de Untcher, depois de ouvir o seu relatório. — Digo “profundo”, no sentido de
que o senhor possa indicar o que corre nas veias do sargento e qual a razão de seu
procedimento maluco.
Dunyan fez um cálculo de quatro para cinco horas. Untcher ordenou-lhe que
começasse imediatamente, mas reduzisse o prazo para duas ou três horas. Dos quatorze
homens que restavam, selecionou dois para auxiliar Dunyan. Os outros, ele os reuniu na
sala de comando, para trocar idéias.
Lá fora o sol se punha. A temperatura começou a cair assustadoramente. A fina
atmosfera de Opghan fazia o calor, que fora acumulado durante o dia pelo imenso
oceano, desaparecer. A água do oceano era extremamente pobre em sal. Uma hora após o
pôr do sol, o oceano, que cobria 99,5% de todo o planeta, começava a gelar e a ilhota,
onde estava a Finmark, ficava então cercada por gelo.
3
***
— Dois motivos — dizia Thomea Untcher, depois de num longo suspiro, como se
estivesse cansado de dizer todas as coisas duas ou três vezes. — Dois motivos me levam
a não interromper a “expedição”. Primeiro existe uma convenção entre o Império Solar e
Árcon pela qual nós terranos, comprometemo-nos prestar auxílio a Árcon, com naves e
tripulação, sempre que formos solicitados para isto. Seremos como patrulheiros espaciais.
Ações policiais são empreendimentos executados com menos de quatro espaçonaves, e
nunca a tripulação pode ultrapassar a dois mil homens. Nossa missão aqui cai, sem
dúvida alguma, nesta categoria.
“O segundo motivo, meus senhores, é que eu não interrompo uma ação, quando me
restam ainda dezesseis homens sadios e valorosos.”
Com um sorriso, ainda acrescentou: — No momento em que só restarem três ou
quatro, pedirei reforço à Terra. Até lá podemos fazer muita coisa boa, isto é, um bom
trabalho.
“Em outras palavras: meu plano continua de pé. Se quisermos saber o que se passa
em Opghan, temos de procurá-lo debaixo d’água. Nas minúsculas ilhas do continente, os
éfogos não têm outra coisa a não ser local de descanso provisório. Seu verdadeiro
ambiente é o mar. Vamos visitá-los e conversar com eles. Tenho certeza de que o inimigo
oculto espera por nós em qualquer lugar lá embaixo. Está contando com que nós vamos
descer, certamente já com a armadilha pronta. Vamos dar uma olhada lá embaixo, ou não
vamos? Este é o risco que temos de correr.”
Virou-se para trás e caminhou um pouco, pensativo. De repente, parou e disse por
sobre os ombros:
— Preparem-se, meus amigos, partiremos em meia hora.
***
Via-se claramente que Nathael estava muito preocupado. Seu rosto estava
afogueado e gesticulava muito nervoso.
— Eu já sabia que íamos ter muita dificuldade — resmungou cabisbaixo e zangado.
— Foi uma idéia errada, termos liquidado Pthal logo no começo.
Echnatal teve que engolir esta frase. Echnatal era o jovem de cuja barba artificial
Nathael já tinha feito muita caçoada.
— Idéia errada? — repetiu o jovem. — Quando lhe propus isto, você não teve nada
contra.
— Sim, é verdade, porque estava certo de que, apesar de toda pressa, você iria usar
de certas providências acauteladoras e não simplesmente mandar para lá um homem que
mata Pthal e, ao mesmo tempo, é morto por ele.
Virou o rosto para o outro lado, como se não pudesse suportar o olhar de Echnatal.
Olhava para a parede porque não tinha outro lugar melhor. Ele odiava lugares sem janelas
e só gostava de janelas amplas. Estava habituado a olhar para longe, ter um amplo ângulo
de visão, como acontecia nas telas panorâmicas de suas espaçonaves. Naturalmente, os
éfogos não iriam compreender seus anseios de amplos descortínios, criados e alimentados
em muitos anos de experiências e vivências. Em suas habitações, os éfogos tinham
apenas uma janela, isto é, na parede mais próxima da rua. Olhou para a rua lá fora,
pessimamente iluminada. Nathael suportava mais a visão da via deserta do que a do
edifício tipo galeria, com os móveis redondos, esquisitos, em que o chefe da cidade dava
suas audiências rotineiras.
— Esforcei-me ao máximo para fazer tudo que podia — continuou Echnatal ainda
irritado. — O senhor me disse que não tinha um minuto para perder. Deveria pois, agir
depressa.
O terceiro homem fez um gesto de quem não queria mais ouvir discussão:
— Parem com este bate-boca estéril. Estava sentado a uma escrivaninha, numa
poltrona bem confortável. Em contraste com Nathael e Echnatal, parecia muito tranqüilo
e desinteressado da discussão.
— Não compreendo por que vocês dois estão quebrando a cabeça — disse tão
calmamente, que Nathael e Echnatal tiveram de fazer esforço para entendê-lo. — O nosso
primeiro golpe parece ter dado resultado, pelo menos parcial e assim que os terranos se
atreverem a descer, vamos cobrar nossas dívidas.
Com uma expressão de ironia no rosto, Nathael soltou o ar pelos dentes, produzindo
um longo chiado.
— Cobrar nossas dívidas, como? Simplesmente como? Parece tão fácil, não é? Você
já tratou diretamente com terranos, Aktar?
Aktar olhou surpreso. Na luz fraca do aposento, sua barba castanha tinha um brilho
estranho.
— Não, naturalmente não. Você sabe disso.
— Sim — respondeu Nathael — e se não soubesse, teria notado agora. Vingar-se
dos terranos... Você acha que eles estão esperando por isto, que venha alguém para os
deter e prender?
Aktar esqueceu seu conforto. Descolou-se do cômodo encosto e comprimindo os
olhos falou:
— Você tem um alto conceito dos terranos, Nathael, não é verdade?
Nathael abanou a cabeça confirmando:
— E como o tenho! Você segura um terrano na mão, assim, por exemplo — ele
apertou a mão como se quisesse esmagar alguma coisa. — Você está certo de que ele
nunca mais escapará. Mas, de repente sua mão está vazia e o terrano já está atrás de você.
Antes de ter tempo de virar-se, já leva uma tremenda pancada na cabeça que o deixará
desacordado por muito tempo. Assim são os terranos, Aktar.
Este ia responder, mas antes que começasse a despejar seu ódio contra os terranos, a
porta dos fundos se abriu e surgiu a figura de Chchaath. Todos os olhares convergiram
para ele. Chchaath era o homem que trazia sempre as novidades.
— Os terranos estão a caminho — disse com sua voz molhada. — Deixaram treze
cinqüenta e oito numa espécie de barco e vão para o fundo do mar.
Sem dizer uma palavra, Nathael se virou, olhando para Aktar. Levantou as
sobrancelhas, e Aktar sabia muito bem o que ele teria dito, se abrisse a boca.
Chchaath esperou pela reação de suas palavras.
— Continue — exigiu Nathael. — Como é que você soube disso?
O homem-peixe mudou a expressão preocupada para um sorriso.
— Meus barcos estão por toda parte — disse com orgulho.
— Seus barcos!... Diga-me uma coisa, você mandou barcos ao encontro dos
terranos?
Visivelmente assustado, Chchaath chegou a gaguejar:
— Nã... não. Mandei que se dispersassem e dei ordem para que não se
aproximassem do inimigo.
Nathael chegou rente a ele:
— Mas tão perto que podiam ver o inimigo — disse gritando. — Com a pouca
visibilidade, devia ser uma distância de cem metros. E os instrumentos de rastreamento
dos terranos alcançam pelo menos cem vezes isto.
Chchaath recuou uns passos e não respondeu nada. Conhecia Nathael já há alguns
dias e sabia que sua cólera aumentava com a discussão.
Pela segunda vez, Nathael se dirigiu a Aktar.
— Já lhe disse que tudo está saindo errado. Colocamos nas mãos deste pele-
escamada ignorante todos os tipos de instrumentos, e ensinamos-lhe a manejá-los. Tais
instrumentos nos serviriam, e a ele também, para avisar com alguma certeza a
aproximação dos terranos. E agora, além de não usarem os aparelhos, ainda mandaram
seus barcos embora! Aposto todas as naves da minha estirpe contra um fio de sua barba,
que os terranos estão morrendo de rir da nossa estupidez.
Aktar levantou a mão, para falar:
— Nem tudo está tão ruim como você pensa, Nathael. Depois do ataque à sua nave,
os terranos já deviam ter pensado em nos visitar aqui no fundo do mar.
— É, mas agora não se trata mais de pensar em visitar, eles vêm mesmo e isto é
certo.
Com os olhos dirigidos para o chão, andava de um lado para o outro. Tremendo de
cólera, seus passos eram tão fortes que faziam estremecer as paredes, enquanto que o talo
roxo da canácea, a planta semi-inteligente, que entrava pelo teto da casa, de tanto medo,
começava a emitir um leve zumbido. De cabeça caída, dava voltas em torno de Chchaath.
De repente, estacou e perguntou em voz alta:
— Você tem em sua casa, em Bchacheeth, alguns instrumentos importantes e de
grande valor. Sabe como o povo anda falando de você. Já tomou providências para que
ninguém entre em sua casa, enquanto você está aqui, e os roube?
Chchaath sentiu-se mais aliviado com esta pergunta. Já que tinha errado muito na
outra questão, aqui não havia perigo. Estava por dentro do assunto.
— Sobre isto, você não precisa se preocupar — disse apressado. — O gravador e o
projetor que vocês me deram estão ligados constantemente. Uma vez em cada quatro
décimos de milésimo, eles passam a funcionar automaticamente.
Deu uma gargalhada boba.
— Gostaria de conhecer algum éfogo que agüente uma descarga com esta voltagem,
sem sair correndo feito um louco e passar um dia inteiro, sem poder abrir os olhos.
***
Nrrhooch viu-se atropelado. Alguma coisa macia, mas pesada atingiu-o com a
impetuosidade de um hchour, quando este ataca. Cambaleou e só não caiu porque a
parede o amparou. Algo se chocara contra suas pernas e parecia debater-se. Talvez
estivesse tentando atingir o túnel secreto.
Nrrhooch teria mentido a si mesmo, caso dissesse que não ficou com medo na hora
da aparição de Chchaath, com sua voz de trovão. Mas quando notou que aquilo que se
debatia próximo de suas pernas não era outro senão Grghaok e que Lchox o seguia
desvairado, começou a dar gargalhada. Pegou Grghaok pelas pernas e o puxou para fora.
Lchox tremia feito vara verde e Grghaok começou a gritar e com tanta força que
Nrrhooch teve de usar de energia com ele:
— Cale a boca, você vai acordar os guardas. Tudo não passou de um truque.
Grghaok se acalmou num instante.
— Um truque? — perguntou admirado. — Que tipo de truque?
— Os estrangeiros possuem aparelhos onde podem armazenar a voz de um homem e
depois reproduzi-la à vontade. Têm também dispositivos com os quais produzem imagens
que se movem. O que vocês ouviram, foi a voz armazenada de Chchaath e o que viram
era um pedaço de filme fotográfico.
Os dois estavam quase de respiração presa, devido à emoção. Mas... Grghaok não
estava acreditando muito.
— Esperem, vou mostrar para vocês — interrompeu-o Nrrhooch. — Onde está
mesmo o interruptor da luz?
— Ali na parede — disse Lchox, empurrando o rapaz na direção certa.
Nrrhooch achou o interruptor e o ligou. Uma luz amarelada, suave, iluminou o
ambiente. Apesar de tudo que falavam contra Chchaath, ele não havia aceitado a luz
branca e azulada dos estrangeiros, aquela luz que causava dor nos olhos.
— Olhem ali! — exclamou Nrrhooch. — Aquela coisa que parece uma tela, recebeu
a imagem de Chchaath — virou-se para o outro lado. — E ali está o instrumento que
produz a imagem e ao lado o aparelho que guarda a voz de Chchaath — virou-se de novo
para o projetor. — Ali, ao lado da tela, está dependurado o alto-falante, de onde sai a voz
de Chchaath. Vocês estão vendo que...
Foi interrompido. De repente, em conseqüência da luz acesa, apareceu de novo a
imagem de Chchaath e seu vozeirão gritou outra vez as mesmas palavras:
— Que procuram aqui, malandros? Vou cuidar para que sejam expulsos da cidade.
Os dois velhos começaram a rir, apertando a boca para não fazerem muito ruído.
— É um truque formidável — concordou Grghaok, reconhecendo o papelão que
haviam feito na primeira investida.
Levantou-se e limpou sua roupa empoeirada.
— Vamos começar então, agora — continuou ele — você, Nrrhooch, que entende
tanto destas coisas estrangeiras, pode nos explicar alguma coisa. Ali ainda existem mais
instrumentos. Fale-me deles.
Estava apontando para uma mesa maior, ao lado da tela semitransparente de
projeção. A mesa — fora do armário que estava no canto — era o único móvel no grande
aposento. Grghaok chegou à conclusão de que Chchaath já havia assimilado muita coisa
dos costumes estrangeiros, pois os éfogos tinham o hábito de entupir seus cômodos de
tantos móveis, que mal se podiam locomover.
Nrrhooch estava feliz. Encaminhou-se para a mesa e deu uma olhada nos muitos
aparelhos ali reunidos.
— Este aqui — disse apontando para uma caixa, não muito grande, tendo no centro
uma chapa de vidro fosco — é um aparelho para falar e ver a pessoa ao mesmo tempo.
— Ah!... é? — acudiu Lchox prontamente. — Quer dizer então que, se eu estiver
em minha casa e você ficar aqui, podemos nos falar e ver nossa imagem ao mesmo
tempo? Coisa formidável.
— Sim, com a condição de que você tenha também um aparelho igual ao meu, do
contrário não posso me ligar com você.
— É verdade, já vi os estrangeiros fazendo isto. Um deles tinha um aparelho deste
no carro.
— Está bem, mas então ligue agora este aparelho.
— Está louco? — respondeu Nrrhooch. — No outro lado, em qualquer parte do
planeta, está sentado outro estrangeiro e, quando nos perceber aqui, compreenderá o que
estamos fazendo.
— Chiii... — fez Grghaok com o dedo indicador fechando a boca — isto é verdade.
Mas eu não saio daqui, sem ver este negócio funcionar.
Nrrhooch ficou pensativo. Fez um grande esforço mental, pois não era muito
inteligente e, além do mais, não entendia quase nada daqueles aparelhos. Apenas vira
uma vez como o estrangeiro apertava um botão aqui ou ali, aparecendo primeiro uns
riscos confusos no vidro leitoso.
— Quem sabe... espere um pouco... vou experimentar.
Sentou-se na única cadeira que havia na frente da mesa, e ficou olhando longamente
para o videofone. Tentou se lembrar do modo como procedera o estrangeiro, há um dia
de Opghan. Titubeante, Nrrhooch apertou um botão. O aparelho respondeu com um fraco
zumbido, que o deixou mais animado, pois já o conhecia. Apertou outro botão e, no
mesmo instante, a tela se iluminou. Viu os mesmos rabiscos e cintilações, como na outra
vez, com o estrangeiro. Suspirou mais aliviado. Podia até ser que, de repente, surgisse ali
o rosto barbudo de um estrangeiro.
— Assim é que o negócio funciona — explicou aos dois velhos curiosos. — Se
continuar girando este botão, surgirá um estrangeiro na tela e me perguntará o que quero.
E se eu fosse Chchaath, poderia lhe responder.
Lchox e Grghaok olhavam fascinados para o quadro de vidro fosco. Grghaok deu
um passo para frente, postando-se bem rente do aparelho. Nrrhooch ficou olhando para
ele, esperando que dissesse alguma coisa. Com isto, não reparou na mão do velho nem
notou que ele estava girando o botão. Nrrhooch apenas reparou o que estava se passando,
quando a tela aumentou sensivelmente a luminosidade e uma voz estranha começou a
falar numa língua estrangeira.
Nrrhooch levou um susto. No vidro fosco surgiu o rosto de um homem
desconhecido. Estava mesmo certo de que nunca vira uma criatura deste tipo. O
estrangeiro não usava barba. Tinha acabado de falar e olhava atento para Nrrhooch.
Tomado de pânico, este queria desligar o aparelho ou pelo menos girar para trás o
botão traiçoeiro. Mas desta vez foi o próprio Grghaok quem manteve o sangue-frio.
Segurou Nrrhooch pelos braços e lhe cochichou no ouvido:
— Espere, este não é nenhum dos estrangeiros que nos oprimem!
No mesmo instante, o homem da tela começou a falar. Desta vez, porém, usando a
mesma língua dos estrangeiros, que era muito semelhante à dos éfogos, de tal maneira
que os homens-peixe a entendiam sem dificuldades.
— Rapazes, não tenham medo de nós, quem são vocês? — falou o homem sem
barba.
Grghaok puxou Nrrhooch de lado e sentou-se na cadeira em frente ao aparelho.
— Somos Nrrhooch, Lchox e Grghaok de Bchacheeth, estrangeiro. E você quem é?
O estrangeiro arregalou os olhos:
— Santo Deus! Que tipo de língua é esta? Você não pode tirar um pouco da água
que tem na boca?
Grghaok estava quase querendo se irritar com a observação, mas o estrangeiro
continuou:
— Não me leve a mal, amigo, terei de me acostumar com a sua linguagem. Onde
fica Bchacheeth?
— Entre Xchaghacht e Pchchogh — respondeu Grghaok. — Uma viagem de um
décimo de Xchaghacht e de um décimo e meio de Pchchogh.
O estrangeiro, pela expressão do rosto, deve ter ficado na mesma.
— Não tem maior importância — continuou ele — procuraremos depois no mapa.
Mas diga-me uma coisa: assassinaram seu funcionário mais importante, não é verdade?
Grghaok levantou os braços para confirmar.
— Sim, isto foi há quatro dias e, desde então, os estrangeiros estão aqui nos
oprimindo.
— De quem você está falando?
— Dos nossos opressores. Vieram para cá há quatro dias, afastaram nossos
funcionários e tomaram o governo. Estão nos obrigando a trabalhar nas plantações e...
— Devagar — interrompeu-o o homem sem barba — não estou compreendendo
tudo de uma só vez, mas percebo que vocês estão em dificuldade. Precisam de auxílio?
— Sim, naturalmente — disse Grghaok com sua voz molhada. — O mais depressa
possível. Odiamos os estrangeiros e...
— Então é necessário que eu saiba mais alguma coisa. É muito perigoso falarmos
pelo telecom. É bom que eu chegue até vocês. Será que a gente pode penetrar na cidade,
sem que os estrangeiros percebam?
— Não, pelo amor das santas águas — disse Grghaok assustado. — Impossível para
quem não conhece as comportas clandestinas e, além disso, só com um barco muito
pequeno.
— Sei. E vocês podem sair da cidade?
— Sim e não. Eu e talvez Lchox podemos. Mas Nrrhooch daria muito na vista a sua
ausência nos trabalhos da plantação.
— Se vocês conseguirem encontrar-se comigo, ele não precisa mais se preocupar
com os trabalhos na plantação. Depressa, diga-me um lugar onde eu possa encontrá-los
com segurança.
Grghaok hesitou por uma fração de segundo.
— Em Pchchogh — disse um tanto excitado. — É uma velha cidade abandonada,
onde apenas algumas casas ainda estão inteiras. Existem por lá algumas canáceas que
nem mesmo os hchour querem mais.
O homem sem barba franziu a testa de uma hora para a outra.
— Canáceas? — repetiu ele — hchour... onde fica mesmo esta Pchchogh?
— Um décimo e meio de viagem daqui, já disse — respondeu o velho.
— Em que direção?
— Na direção do sol poente.
— E não há nada entre Bchacheeth e Pchchogh?
— Apenas umas duas ou três colinas de bem pouca altura.
— Está bem. Haveremos de estar em Pchchogh e aguardá-los.
— Sim, espere um pouco, quem são vocês?
O estrangeiro sem barba sorriu.
— Terranos — respondeu com firmeza.
Desligou depois seu aparelho e, no vidro fosco do receptor de Chchaath, não havia
mais nada a não ser rabiscos e cintilações. Grghaok levantou-se solenemente, olhou
triunfante para Lchox e para Nrrhooch.
— Vocês ouviram? São os terranos.
4
Thomea Untcher, por alguns instantes, ficou com os olhos presos na tela panorâmica
que acabara de desligar. Depois, virando-se para Phil Lenzer que estava a seu lado, na
poltrona do piloto, disse ainda mergulhado em seus pensamentos:
— Coincidência das coincidências! Que coisa misteriosa! Parece que estavam
brincando com as freqüências e foram parar casualmente na nossa.
Lenzer não respondeu nada no momento. Estava prestando atenção na grande tela,
que lhe fazia as vezes de janela, tentando penetrar na penumbra cinzenta, que invadia o
mar a uma profundidade de quase dois mil metros. Phil Lenzer era o responsável pela
vida e pela segurança de seis homens, sem contar com a sua própria, de seis homens que
confiaram plenamente numa embarcação anfíbia e em sua competência, para chegarem
até as profundezas do oceano. Tentariam caçar o inimigo oculto.
O veículo anfíbio voara da ilhota, onde estava a Finmark, na direção do poente até
alcançar o sol, ou seja a face iluminada do planeta. E depois de ultrapassar a faixa
divisória do gelo, imergiu no oceano. Já havia uma hora que o veículo anfíbio perseguia
uma rota em linha reta, num ângulo de trinta graus em relação à superfície do mar.
— O que eu acho esquisito é que recebemos este apelo, somente no momento em
que o rastreador não podia mais localizar nenhum destes minibarcos que nos perseguiam
até então — disse Lenzer.
Thomea Untcher cocou a cabeça.
— Você tem razão, Phil. Eu também estaria inclinado a tomar tudo como uma
cilada, se não tivesse visto as caras assustadas destes três rapazes, que surgiram na tela de
repente. E mesmo que não tivesse visto... Não, Phil, eles estão mesmo em apuros. Não é
uma cilada, não.
Phil continuava cético. Estava concentrado na tela panorâmica. A penumbra
cinzenta não era absolutamente conseqüência da falta da luz do sol. Esta luz solar não
chegava de maneira alguma às profundezas de dois mil metros. Não só Lenzer, como o
próprio Untcher eram unânimes em explicar a parca luz difusa naquela profundidade,
como conseqüência de peixes fosforescentes que fugiam ante a aproximação do veículo
anfíbio, formando um grande círculo em torno do misto de avião com submarino.
Os homens atrás de Untcher e de Lenzer estavam calados. Além de um ou outro
suspiro ou de algum bocejo ruidoso, provenientes mais da tensão nervosa do que da
monotonia reinante, nenhum deles, com exceção do rastreador, tinha dito uma só palavra
desde o momento em que imergiram no oceano.
Este mundo submarino não fora feito para eles. Estavam acostumados com a
amplidão e a claridade do espaço e com a imensidão de terras áridas em outros mundos,
mas não com os abismos do mar. Viagens submarinas a grandes profundidades faziam
parte do programa de sua formação na Academia Espacial de Terrânia; mas esta parte do
programa nunca tivera valor objetivo para eles, convencidos que estavam de que, daí para
frente, só teriam sob os pés as placas plásticas das poderosas espaçonaves.
Desde a hora em que mergulharam, o rastreador percebeu pequenos objetos
semimetálicos, que se moviam nas proximidades do veículo anfíbio. Moviam-se de tal
forma que não podiam ser outra coisa a não ser veículos teleguiados. Com toda a energia
concentrada no intercom, Thomea Untcher tentou entrar em contato com um ou outro,
não recebendo, porém, resposta.
De repente, estes miniveículos desapareceram, como se alguém tivesse ordenado
sua retirada. Isto foi pela profundidade de mil e quinhentos metros. Depois disso, o
veículo anfíbio se deslocara mais quinhentos metros para frente e tudo voltara à calma...
até que veio o singular diálogo com os três homens-peixe de nomes impronunciáveis.
Thomea Untcher virou-se para trás e perguntou:
— Rastreador, já tem algum resultado novo?
O homem sentado rente às paredes laterais da nave anfíbia, tendo à frente os
complicados aparelhos, nem mexeu a cabeça ao responder:
— Num instante, Sir! O cálculo não está terminado.
Untcher olhou para a grande tela. A monotonia da penumbra cor de cinza o levou a
soltar as rédeas de sua fantasia. Começou por repetir o diálogo mantido com os três
homens-peixe de Bchacheeth. Phil Lenzer tinha razão. Qualquer um, em sua posição,
haveria de considerar o apelo de auxílio como uma cilada, e das bem palpáveis. Teria por
finalidade atrair os terranos para um certo local, onde o inimigo oculto pudesse
concentrar com antecedência suas forças de ataque e assim, sem dificuldade, se ver livre
do indesejável intruso.
Afinal de contas, ele mesmo, Thomea Untcher, usara há quinze minutos atrás o
argumento de que os éfogos não possuíam nenhum tipo de telecomunicador. Como é que
os três estavam se utilizando de um aparelho assim? Tinha que ser mesmo uma cilada,
bem primitiva aliás.
E apesar de tudo...! Thomea Untcher mesmo não sabia o que o levava a confiar
tanto naqueles três homens. Mas confiava. Sem nenhuma hesitação. Estava resolvido a ir
para Pchchogh para encontrar-se com eles. Naturalmente, observando certas normas de
segurança, inerentes a um homem de responsabilidade.
Foi então que o rastreador se apresentou:
— Treze quilômetros o vetor radial, Sir. Fi, cento e sessenta e oito e Teta, cento e
três.
Thomea Untcher fez então o que costumava fazer sempre em tais situações, tal
maneira de proceder tornava-se ridícula num comandante espacial do gabarito de um
Untcher. Esticou as duas mãos no sentido indicado pelos dados do rastreamento,
procurando assim traduzir concretamente os resultados da orientação.
— Baixo — disse ele — muito baixo. Qual é a profundidade da água abaixo de nós?
— Cerca de dois mil metros — respondeu Phil Lenzer. — Estamos, mais ou menos,
no meio do oceano.
— Bem, você sabe a direção. Pchchogh, conforme os dados dos éfogos, está
exatamente a oeste deste ponto. Não se aproxime demais da cidade. Receio que por lá
estão nadando certas pessoas, que não nos são muito simpáticas. Não há perigo nenhum
para nós, entrarmos em contato com os desconhecidos, antes de falarmos com os éfogos.
— Se é que chegaremos mesmo a falar com eles... — respondeu Lenzer.
***
***
***
Kayne Stowes aguardava a chegada de Ran Loodey com grande ansiedade. Mas
quando o sargento penetrou na sala de comando, foi uma surpresa decepcionante e
horrível, totalmente ao contrário do que esperava.
E a desgraça de Stowes foi que estava sozinho no posto de comando. Loodey estava
com a pistola térmica, que havia tirado do Dr. Dunyan, engatilhada na mão direita, não
deixando a menor chance para o piloto. Desarmou o primeiro-oficial e, com uma
coronhada, o deixou sem sentidos.
Rápido e com determinação, começou seu trabalho. Do posto de comando,
destravou a escotilha central do salão dos oficiais e ficou observando no intercom, cheio
de satisfação, como a leva dos trancafiados, que aos poucos recuperava os sentidos, se
abatia sobre os poucos guardas, desarmando-os e os trancafiando.
O resto foi muito fácil. Todos os postos na nave estavam ocupados apenas por um
homem. Havia quatro deles, três nos importantes ninhos de artilharia. Ran Loodey deus
as primeiras instruções aos homens recém-liberados, através do intercom, muito alegre
por saber que estava com o comando absoluto da Finmark em mãos.
Não confiou a ninguém o que pretendia. Supunha, naturalmente, que todos já
soubessem, pois estava convencido de que pensavam como ele. Mandou-os para seus
postos, recomendando-lhes que ficassem atentos. Após algumas horas de plena calma,
parecia que tudo na Finmark havia voltado ao ponto de partida, isto é, o momento da
aterrissagem. A nave estava em estado de alarme total... só que o inimigo agora era outro.
Ran Loodey dava mostras de que o comando da Finmark não iria mais escapar-lhe
das mãos, embora entre seus comandados, houvesse dois tenentes e cinco membros do
Corpo de Mutantes, também oficiais. Ninguém fez objeção quanto a isto. Loodey deu
ordem para que dois mutantes e um tenente viessem ter com ele no posto de comando. E,
enquanto estes homens estavam a caminho, enviou para a Terra o radiograma mais
memorável de toda história da Galáxia. O rádio tinha o seguinte teor:
***
***
Nrrhooch sentia-se tão horrorizado, que no momento não pôde mover-se. O pequeno
e velho barco estava no meio da rota do grande barco dos estrangeiros e, além disso, este
último se movia tão rápido que por mais imediata que fosse a reação de Nrrhooch, não
havia nenhuma possibilidade de se evitar o choque.
Mas aconteceu um quase milagre. Quando o barco dos estrangeiros surgiu à tona,
rompendo a nuvem de lama, provocada pela queda do tronco de psimo, a proa pontiaguda
irrompeu vertical, como se estivesse apenas esperando por esta abertura para escapar do
emaranhado vermelho da floresta.
A quilha do barco dos estrangeiros passou raspando no pequeno bote dos homens-
peixe. Nrrhooch até julgou ter ouvido o ruído leve do raspão.
Estupefato, ele viu como o veículo de proa pontiaguda deu uma guinada para o alto
até desaparecer totalmente na penumbra leitosa das águas profundas. Nrrhooch não
acreditou no que seus olhos viram. Os estrangeiros estiveram tão perto que poderia tocar
no moderno barco. O mais esquisito é que foram eles mesmos que proibiram os éfogos de
se utilizarem de qualquer tipo de embarcação. Se os tivessem visto, os teriam detido e
apreendido o velho barco de Grghaok.
Certamente nem chegaram a ver a pequena embarcação dos éfogos e continuaram
sua viagem.
Nrrhooch olhou para os dois velhos e soltou um grito de alegria. Era visível a
felicidade estampada no semblante de Grghaok.
— Para frente! — ordenou Nrrhooch. — Não podemos parar, o mar está sendo
nosso amigo. Em pouco tempo estaremos em Pchchogh e nos encontraremos com os
terranos.
***
Ran Loodey não tinha nada contra o fato de os estrangeiros quererem vir a bordo da
Finmark. Eram de boa estatura, musculosos e espadaúdos; seis ao todo e, desde o
começo, se comportaram de tal modo como se a nave lhes pertencesse. Ran Loodey
parecia estar de acordo. Tinha pessoalmente a opinião de que os invasores barbudos eram
os legítimos donos da Finmark e... estava tudo muito bem. Indiferente, nem quis saber
quem eram aqueles estrangeiros, de onde vinham e o que pretendiam. Sentia-se até mais
aliviado porque o comando da espaçonave havia passado às mãos dos invasores. Parece
que todos os amigos do sargento pensavam do mesmo modo.
Nesta pronunciada apatia, ninguém reparou que os estrangeiros traziam pequenos
cilindros metálicos, e os escondiam cuidadosamente por todos os cantos da Finmark, de
tal maneira que não seriam encontrados facilmente. Porém, mesmo que Ran Loodey
tivesse notado qualquer coisa, não ia fazer nenhuma objeção e concordaria com tudo.
Finalmente, um dos corpulentos estrangeiros penetrou na sala de comando e
ordenou a Loodey que preparasse a espaçonave para partir imediatamente.
— Vocês retornarão imediatamente à Terra, pelo caminho mais curto — ordenou o
gigante barbudo.
***
O único que não estava satisfeito com sua situação era o Dr. Teodoro Dunyan.
Quando voltou a si, sentiu uma coisa fibrosa na boca, não conseguindo nem mover a
língua. A cabeça lhe doía tremendamente por deficiência de respiração. Também não
enxergava nada, pois em cima dele havia uma série de cobertores, roupas e coisas
semelhantes que o isolavam do ambiente externo. Não podia nem mover os braços. O
malandro do Loodey o havia amordaçado e amarrado com técnica de mestre.
Por falar em Ran Loodey... O Dr. Ted Dunyan descobrira finalmente a causa da
estranha alteração no comportamento de Loodey e de alguns membros da tripulação. O
resultado das pesquisas foi tão surpreendente e ao mesmo tempo incrível, que Dunyan a
princípio julgou ter sido vítima de algum erro, e tal dúvida obrigou-o a repetir os exames.
Com a confirmação do primeiro resultado, Dunyan teve um grande choque
emocional, ao perceber que havia descoberto uma coisa importantíssima para a
Humanidade.
Loodey tinha voltado a si e agia com a naturalidade de quem é dono de todas as suas
faculdades. Disse com toda autenticidade que lamentava tudo que fizera contra a
disciplina e não queria outra coisa, a não ser dirigir-se diretamente ao comandante, para
desculpar-se.
Dunyan tinha previsto esta fase no processo do misterioso mal. E o fato de ela ter se
concretizado era mais uma prova da veracidade de suas descobertas. Fez tudo que pôde
para que Loodey não percebesse que estava sendo observado e que ele, Dunyan, sabia do
estado semi-hipnótico que perdurava em Loodey.
Mas, de alguma maneira Dunyan se traíra, ou então Loodey chegara à conclusão de
que um adversário a menos era sempre melhor. O fato foi que, quando o médico estava
ocupado com seus instrumentos, Loodey saltou de repente contra ele. O Dr. Dunyan
ainda guardou a expressão fria do rosto de Loodey. E a partir deste momento, o médico
não sabia de mais nada. Quando voltou a si, sentia uma enorme falta de ar e percebeu que
estava amarrado e amordaçado.
Ted Dunyan era acima de tudo cientista. Ainda rapaz, com vinte e poucos anos,
entrara para a Frota Solar por estar convencido de que nas viagens pelos confins das
Galáxias teria oportunidade de ampliar seus conhecimentos.
Agora, somente a preocupação com sua vida não lhe teria dado forças para escapar
das mordaças e dos laços bem dados. Mas a consciência de estar de posse de uma
importantíssima descoberta e ficar ali preso, lutando para respirar, ao invés de voltar à
Terra e expor a todos o que acabara de descobrir, o fez converter toda sua ira inteligente
em força física, a fim de libertar-se das amarras.
Ficou mais esperançoso, quando ouviu vozes. Pensou que Loodey estivesse
voltando para ver seu estado, mas notou que as pessoas falavam o arcônida.
Ficou naturalmente mais curioso. Não fez mais nenhum movimento para não fazer
barulho e ser descoberto. Ouviu como um dos interlocutores desconhecidos ria bem alto e
afirmava:
— Até que a Terra tenha notado que o negócio se espalhou por toda a sua atmosfera,
não estarão mais em condições de se protegerem.
E seu companheiro o acompanhou na estrondosa gargalhada.
Ted Dunyan sabia a respeito de que os dois arcônidas estavam falando. Era o único
terrano que sabia o que os estrangeiros pretendiam dizer com a palavra “negócio”. Assim
que as vozes emudeceram e os passos se afastaram, como um louco, começou a forçar
suas amarras, usando uma força que não era sua, mas do conhecimento do perigo
iminente que a Terra corria.
***
***
***
Ted Dunyan desmaiou diversas vezes, antes de conseguir qualquer resultado. A luta
desesperada contra as amarras e a mordaça custava-lhe muito ar, e era exatamente isto
que o Dr. Dunyan não tinha. Constantemente estava vendo estrelas girarem diante de seus
olhos, ficando ali desacordado, antes de voltar a si para recomeçar seus ingentes esforços.
Mas, de repente, como se tivesse vencido a maior batalha de sua vida, conseguiu
liberar um braço. Uma larga tira de pano estava ainda presa no pulso, mas isto não o
impediu em nada. Removeu primeiro a mordaça, depois atirou para o lado os pesados
cobertores e panos velhos, onde estava “sepultado”. A seguir, sorveu com satisfação o ar
fresco, num verdadeiro exercício de respiração.
Por último, desatou os pés e levantou-se, abrindo as portas do armário, movendo-se
um pouco de um lado para o outro, na antiga cabina de Loodey, evitando naturalmente
qualquer ruído. Estava com isto reativando a circulação sangüínea. Achava-se consciente
de que corria grande perigo. Do posto de comando, Loodey podia ligar qualquer aparelho
do intercomunicador. Caso se lembrasse de ligar para esta cabina, Ted Dunyan estaria
perdido, antes de começar a executar seus planos.
Assim que diminuiu um pouco a dor lancinante do reinicio do funcionamento
normal da circulação do sangue, Ted Dunyan achou que seu organismo estava preparado
para os esforços que iria enfrentar. Abriu com cuidado a porta da cabina e deu uma
olhada no corredor.
Estava vazio. A uns dez metros à esquerda, dava para o corredor central do convés,
servido por uma esteira transportadora, que proporcionava maior rapidez. Ted resolveu
fazer uma tentativa, embora não soubesse se Loodey havia colocado guardas por ali.
Chegou sem ser percebido até o início do corredor central. Ouvia apenas o inevitável
zumbido de todo interior da espaçonave e a vibração surda da esteira transportadora. Em
todo o corredor central não se via ninguém.
Ted Dunyan não podia desejar coisa melhor. Seu plano continuava firme. Depois de
ter andado uns trinta metros no corredor central, sentia-se mais seguro. Nos caminhos
tortuosos e escuros por onde teria de andar daí para frente, certamente não encontraria
ninguém.
Nem uma só vez passou pela cabeça de Ted Dunyan que seria rematada loucura
querer conquistar uma espaçonave totalmente tripulada, sozinho e desarmado.
***
Thomea Untcher abriu os olhos e viu diante de si três seres estranhos, postados
como estátuas, numa posição de curiosidade Ma e científica.
Como se um véu lhe saísse de repente dos olhos, quando notou melhor os estranhos
percebeu imediatamente de onde vinha o complô, que se encenava em Opghan, e
compreendeu o alcance do que estava se passando naquele momento.
Dois dos homens eram espadaúdos e de boa estatura, ambos de barba completa,
embora a barba do mais moço parecesse postiça. O terceiro era um modelo de feiúra.
Maior que os outros dois e terrivelmente magro, seco. Sua cabeça estreita, abobadada e
sem cabelo era dominada por dois olhos inteligentes e cruéis. Lábios estreitos e
austeramente unidos. O pescoço sobressaía dos ombros estreitos.
Os aras tinham a mesma origem dos saltadores e dos arcônidas. Partindo da crença
de que uma força invisível criara o Universo com o único fim de que os aras viajassem
por ele para desvendar seus mistérios, acabaram se transformando numa raça de
cientistas. Cientistas estes que buscavam a ciência pela ciência e não tinham a menor
consideração diante dos direitos de outra gente.
As maiores conquistas científicas dos aras eram no domínio de medicina e da
biofísica. Não havia médicos iguais em toda a Galáxia, embora muitos de seus pacientes,
independentes de suas vontades, tivessem sido retalhados em pedaços, somente para que
eles, os aras, estudassem o mistério da vida humana. Subjugaram muitos planetas por
meio de seus medicamentos e os psicotrópicos e narcóticos de sua fabricação eram
disputados a bom preço em toda a Galáxia. Agora já produziam até monstros artificiais
em suas retortas, e estes terríveis produtos humanos de laboratório começavam a
inquietar a Segurança Terrana.
Os aras tinham se enquistado em Opghan. Thomea Untcher, neste momento, não
podia fazer outra coisa, senão sentir compaixão dos éfogos. Esta pobre raça estava já
condenada à estagnação, pelo simples interesse dos aras por eles.
Os outros dois homens eram saltadores, descendentes daquela raça nômade, que se
consideravam agrupamentos de comerciantes. Acreditavam que Deus criara, em especial
para eles, o monopólio comercial. Alguns comandantes saltadores de maior prestígio
foram às vezes aliados de Perry Rhodan, nunca, porém, seus verdadeiros amigos. Em
suas relações com os povos das Galáxias, a Terra tivera, mais de uma vez, sérias
encrencas com os chamados comerciantes das Galáxias. Era bem recente a história do
patriarca Cokaze, cuja pretensão era ocupar definitivamente a Terra, já que não
conseguira dela o tratado de monopólio comercial no sistema solar.
De qualquer maneira, não era a primeira vez que aras e saltadores se uniam para
uma ação em conjunto contra a Terra, como também contra o Império Arcônida.
Depois de selecionar seus pensamentos, Untcher começou a interessar-se mais por
sua própria situação. Não estava amarrado, apenas sentado numa cadeira. Porém, sem
poder fazer nenhum movimento. Os únicos músculos que obedeciam ao seu comando
eram os das pálpebras, da boca e os que facultavam o processo de respiração. Estava se
recordando agora dos dois terríveis impactos que recebera, sabendo que fora atingido por
arma de descarga elétrica. A paralisia era conseqüência do choque nervoso e haveria de
desaparecer com o tempo.
Seus dois companheiros não estavam mais à vista. O aposento parecia-lhe muito
espaçoso e equipado apenas com instrumentos medicinais. Era um gabinete como se
esperaria numa cidade dos aras. Estava, pois, mais do que claro que os aras tinham
também uma colônia, ou melhor, um ponto de apoio em Pchchogh. Foram eles que
construíram a eclusa que tornava uma parte da cidade habitável. E Thomea Untcher foi
um marinheiro de primeira viagem que caiu como um patinho na armadilha. Era o que
mais irritava o velho comandante.
Os três estrangeiros em torno dele notaram que voltara a si. Um deles, o saltador
com a barba verdadeira, deu um passo à frente e declarou em arcônida:
— Sou Nathael, patriarca da minha estirpe. Quem quer que o senhor seja, poderia
ter feito coisa melhor do que meter o nariz em coisas que não são de sua conta.
— Não se trata de coisas que não me dizem respeito — respondeu Thomea Untcher
calmo, num tom de voz ponderado, como se estivesse sentado numa sala de conferência e
conversasse com pessoas de alto nível intelectual. — O Império Arcônida nos solicitou a
cooperação numa ação policial em Opghan e, a partir deste momento, isto é um assunto
de nossa competência. A Terra mantém com Árcon um tratado de cooperação mútua que
nos obriga a prestar auxílio em casos como este. E os senhores sabem que nós cumprimos
nossos tratados.
Parece que Nathael não deu muita importância à indireta sobre a falta de
responsabilidade de seu povo. Pelo contrário, passou para o tom banal de conversa e
respondeu:
— Aqui se trata de um negócio, meu amigo.
— Meu nome é Untcher, Thomea Untcher, só para que você não esteja obrigado a
me chamar de “meu amigo”.
Nathael ficou um pouco embaraçado. Depois continuou:
— Trata-se, como já disse, de um negócio. E estes negócios são assuntos
exclusivamente nossos. Não podemos tolerar nenhuma interferência de fora e, em virtude
de o senhor não ter respeitado este nosso direito, vai pagar com a vida, ou no mínimo
com sua vontade...
Thomea Untcher viu nestas palavras uma possível alusão aos estranhos fatos
ocorridos com a tripulação da Finmark.
— Ah! É isto? E como é que conseguirão destruir nossa vontade?
Nathael deu um sorriso malicioso e fez um gesto para o ara.
— Muito simples. Nosso amigo Plougal trabalha já há muito tempo no
desenvolvimento de um novo hormônio, cujos componentes básicos se encontram no
embrião de uma planta nativa de Opghan, chamada de psimo. Conseguiu há pouco
produzir este hormônio na sua fórmula mais eficaz... e o resultado disso o senhor já viu a
bordo de sua própria nave.
Untcher concordou.
— Você acha que os homens continuarão para sempre neste estado em que se
encontram? O hormônio não perde o efeito com o passar do tempo?
— Não automaticamente — respondeu Nathael. — O hormônio contém neo-amino-
disprosionato. Este componente pode ser neutralizado através de irradiações com
nêutrons térmicos, fazendo com que os efeitos desapareçam e o neoamino seja aos
poucos eliminado do organismo. Acho, pois, que somente a irradiação com nêutrons
térmicos será capaz de afastar os efeitos do hormônio.
— E você me descreve isto assim tão abertamente? — perguntou Untcher.
Nathael respondeu com um gesto displicente:
— Você não terá oportunidade de fazer proveito destes conhecimentos.
— Quer apostar? — disse Untcher. Nathael franziu a testa.
— Como? Ah, sim! — e começou a gargalhar estrondosamente. — Você não teria
mais nem tempo para pagar a aposta perdida.
— É lamentável, mas isto não tem maior importância. Agora, diga-me só uma coisa.
Como é que vocês descobriram Opghan e quais são seus planos daqui para frente?
Nathael estava sentindo gosto no seu papel de superioridade e quis bancar o
soberano condescendente, respondendo todo bonachão:
— Já há muitos milênios que Opghan é um campo de pesquisa de nossos amigos da
estirpe de Plougal. Começaram estudando os seus habitantes, os éfogos. Você já deve ter
notado que eles têm uma série de características, segundo as quais temos que classificá-
los como descendentes de emigrados arcônidas. Por outro lado, nenhum tipo de arcônida,
mesmo vivendo num mundo quase só de água, como este, desenvolveu nadadeiras e
tubos de respiração. Os fatos são contraditórios. O enigma se resolve, quando se sabe que
a estirpe de Plougal, logo depois da chegada dos arcônidas a Opghan, fundou aqui uma
colônia.
“Naturalmente, de início vieram apenas duas naves de Plougal, pois mais gente não
iria caber nas três mil e tantas ilhotas. Esta gente pesquisadora de Plougal logo percebeu
que era um contra-senso um punhado de homens viverem encurralados em ilhas-
miniatura, quando Opghan oferecia lugar folgadamente para milhões e milhões de
emigrantes, caso estes emigrantes soubessem adaptar-se ao meio ambiente, ou seja, aos
fatores ecológicos.
“E os aras levaram avante este plano, parte com a cooperação dos próprios
emigrantes. E assim, no correr de muitos séculos e muitas gerações, criaram uma nova
raça, a raça dos éfogos, dos homens-peixe. Você sabe como é esta gente dos Plougal.
Fazem qualquer sacrifício pela ciência. A experiência durou praticamente mil anos, mas
seu esforço foi coroado de êxito. Haviam criado uma raça para as condições do planeta.”
Thomea Untcher fez qualquer movimento na cadeira. Constatou que seus músculos
e nervos já lhe estavam obedecendo.
— Para os primeiros emigrantes devia ter sido um grande choque — afirmou ele —
presenciarem que seus filhos passavam a ter nadadeiras e trombas para respiração.
— É claro que no princípio não foi muito agradável — respondeu Nathael sorrindo
— mas os aras, em benefício da ciência, sacrificam a felicidade e até a vida se necessário
for.
Untcher já podia mover a cabeça. Concentrou os olhos no rosto de Plougal,
procurando descobrir seu pensamento. Mas Plougal não movia um só músculo. A
descrição dos atos desumanos de seus irmãos de raça não o alterava em nada.
Com Nathael já não era assim. Parece que ele se empolgava com o som de suas
palavras. E, neste tom, continuou falando:
— Durante séculos e séculos os aras tinham aqui apenas um pequeno núcleo de
colonização. Você compreende, as conseqüências de uma tal experiência devem ser
acompanhadas com cuidado e escrúpulo. Em todo este tempo do longo trabalho
científico, não podiam esperar que Opghan lhes trouxesse qualquer vantagem material.
Descobriram então o hormônio do psimo e a partir daí, surgiu, de um momento para o
outro, um grande interesse em Opghan.
“Fizeram algumas experiências que acabaram dando excelentes resultados. Os aras
pensaram então em explorar a plantação espontânea das florestas de psimo no fundo do
mar. Mas, para isto, precisavam do trabalho dos éfogos e já que eles, por sua vontade,
jamais trabalhariam com compromisso de horário, tinham de ser obrigados a fazê-lo.
Você conhece o modo de pensar dos homens da estirpe de Plougal.”
Esticou os braços para um gesto bem largo, como se falasse a um amigo sobre outro
amigo, cujo erro procurava justificar.
— São incapazes de cometer violências e, por outro lado, não possuíam ainda a
quantidade de hormônio necessária para dominar completamente os éfogos. Ofereceram-
nos interesse comercial e nós aceitamos e executamos este trabalho para eles. Em poucos
dias, não se esqueça de que um dia neste maravilhoso planeta dura quase nove dos seus
dias da Terra, será produzido tanto hormônio que transformaremos estes éfogos em
simples máquinas de trabalho, quase gratuitas. Então começará um comércio maravilhoso
para nós, com um lucro tremendo...
Thomea Untcher não quis mais responder. Estava literalmente saturado, pois há um
limite para tudo. Apesar de ser um espírito liberal, tolerante, sem preconceito de espécie
alguma, não suportava mais a nojenta frivolidade e o cinismo de seu interlocutor. Já sabia
bastante da história lamentável dos pobres éfogos. Eram descendentes dos velhos
arcônidas, mas com as experiências degradantes dos aras sofreram grandes alterações
biológicas, regredindo para uma fase de primitivismo da qual os arcônidas se haviam
liberado já há muitos milênios. Sabia também que uma parte dos conhecimentos técnicos
e científicos continuava preservada entre os mais bem dotados, de maneira que os éfogos
estariam em condições de, dentro de alguns séculos, erguerem uma nova civilização, de
valor apreciável. Assim se explicava também uma certa contradição neste povo singular:
possuíam, por exemplo, submarinos para qualquer profundidade oceânica, melhores que
os da Terra de antes da Primeira Guerra Mundial. Por outro lado, não sabiam o que era
um rádio e ainda praticavam a pesca submarina com arpões de ar comprimido, ao invés
de usarem armas de fogo.
Untcher compreendia tudo agora. Viu como seus homens, na Finmark, entraram em
total dependência mental, sob os efeitos da droga contida nos cilindros metálicos. Sabia
muito bem que, com uma arma deste tipo nas mãos, os saltadores seriam uma desgraça
para todo o Universo. Certamente, sua primeira vítima seria naturalmente a Terra. Os
saltadores eram tão inescrupulosos como os aras. A única diferença: o objetivo dos aras
era científico, enquanto que os comerciantes das Galáxias visavam exclusivamente aos
lucros materiais.
— Há apenas uma coisa que me interessa saber — disse Untcher. — Que aconteceu
com meus homens?
— Oh! Não se preocupe com eles — respondeu o cínico Nathael. — Estão conosco,
vieram à sua procura, quando você demorou a aparecer. Caíram na mesma cilada que
você. Estão bem guardados. Há muitos séculos, os aras expulsaram os éfogos desta
cidade no fundo do mar, inventando para isto histórias macabras de assombração e
simulando ataques de monstros submarinos. Tudo isto para convertê-la em sua base de
operação. Dispõem aqui de mais de duzentas habitações intactas e luxuosas, servindo de
residências particulares a cada um de seus homens.
Untcher ouvia silencioso. Sabia que, ao menos no momento, não lhe restava
nenhuma esperança. Se conseguisse sair de Pchchogh, haveria de fazer muita coisa.
Uma parcela de seu desânimo parecia se refletir em seu rosto e Nathael que
considerava o abatimento moral do prisioneiro muito importante para seus intuitos,
continuou desfilando o rosário de coisas desagradáveis:
— Não é apenas isso, Untcher. Estamos também de posse de sua nave. Nossos
homens estiveram a bordo da Finmark e deram ordem ao sargento Loodey de regressar
imediatamente à Terra. É claro que Loodey obedecerá. Em poucas horas, a nave estará a
caminho da Terra, com uma carga perigosíssima a bordo, como lembrança de Opghan.
Untcher não tinha a menor dúvida da veracidade das palavras de Nathael. Procurou
esconder a grande aflição que lhe ia no íntimo, mas não foi de todo possível. Não queria,
de maneira alguma, dar esta alegria ao saltador, de vê-lo abatido e conturbado. Ficou,
pois, mais alegre, quando percebeu qualquer movimento atrás dele e Nathael, o outro
saltador e Plougal se entreolharam estupefatos.
— Que que há, Aktar? — ouviu ele a pergunta de Nathael.
— Três éfogos abateram um guarda na comporta de Bchacheeth e deixaram a cidade
— falou numa voz muito excitada. — Chchaath já enviou todos os homens disponíveis
em seu encalço. Veio para cá o mais depressa possível. Persiste a possibilidade de os
fugitivos estarem a caminho de Pchchogh.
Nathael ainda estava confuso e, para despistar, perguntou:
— Vocês ainda se preocupam com estes miseráveis éfogos?
— Eu não me preocuparia tanto — respondeu Aktar, como se estivesse se
desculpando. — Mas Chchaath afirma que um deles, um tal de Grghaok conhece todos os
cantos e recantos de Opghan. Chchaath acha que este éfogo é capaz mesmo de penetrar
nesta cidade submarina, sem ser percebido.
6
***
Thomea Untcher ouviu os dois tremendos estampidos. Sentiu o ar quente que entrou
em lufada por alguma parede rebentada na vizinhança... e tratou de agir.
O saltador Nathael ficara sozinho com ele naquele compartimento, pois o homem de
barba postiça, a quem chamavam de Echnatal, saíra já antes. Para onde, Untcher não
sabia. Depois disso, o ara e o éfogo traidor também deixaram a casa e finalmente, o velho
saltador Aktar também se despedira.
O que quer que estivesse acontecendo lá fora, não estava nas previsões de Nathael.
Com um grito de horror, o saltador virou para trás e ficou olhando para a porta... e
Thomea Untcher não perdeu a oportunidade!
Desprezando as grandes dores que sentia em todo o corpo maltratado, saltou de sua
cadeira. Nathael ouviu o ruído atrás de si e ia se virando com a mão sacando a pistola.
Mas Untcher foi bem mais rápido e, ligeiro, saltou nas costas do corpulento e barrigudo
saltador, antes que este percebesse o que estava se passando. Untcher era mestre neste
tipo de ataque. E com duas pancadas bem seguras, dadas com o canto da mão espalmada,
na nuca do adversário, deixou-o estendido no chão, sem sentidos. Apanhou a arma, ainda
quando o corpo estava caindo e saiu porta afora.
Aquela porta dava para um outro compartimento e lá estava o pobre Phil Lenzer,
sentado também numa cadeira. Seu estado parecia bem mais grave, devia ter sofrido
muito com os choques e exatamente por este motivo não havia guarda para vigiá-lo.
Untcher gastou uns dois minutos para fazer com que Lenzer conseguisse ficar de pé.
Fazendo-lhe massagens e, com palavras de estímulo, conseguiu colocar seu comandado
em condições de reagir.
Enquanto isso, lá fora, em qualquer lugar da vizinhança, o barulho continuava, sem
que Untcher pudesse saber de onde vinha.
Já acompanhado de Lenzer penetrou no próximo cômodo. Lá encontraram mais dois
dos seus, sob a guarda do saltador com barba postiça. Echnatal também estava a caminho
da porta, também assustado com o ruído. Ao abri-la, os dois terranos deram de cara com
o saltador. Thomea Untcher, enfurecido, avançou contra ele, atirando-o inconsciente no
chão.
Os terranos eram agora quatro e empunhavam duas boas armas. Podiam se atrever a
penetrar mais na cidade desconhecida, a fim de libertar seus outros colegas.
Acharam-nos na próxima casa, vigiados por dois aras, que infelizmente estavam
bem longe da porta de entrada, de maneira que os terranos não tinham possibilidade de
travar uma luta corporal com eles. Assim que compreendeu a situação, Thomea Untcher
começou a atirar, liquidando os dois guardas.
Imediatamente se dirigiu ao grupo de terranos.
— Temos de voltar imediatamente para a Finmark — ordenou ele. — Cada um de
nós quatro está agora com uma arma. Caso alguém queira barrar nosso caminho, temos
de atirar. Vamos embora.
Não sabiam por qual das muitas portas se chegava à rua. Tentaram três vezes, na
quarta deram com a rua, saindo daquela claridade exuberante da base submarina dos aras
para a iluminação fraca e amarelada das velhas e abandonadas vielas.
A rua parecia ter sofrido há pouco um grande terremoto. Na parede de uma das
casas havia um grande rombo e massa de pedra derretida se espalhava pelo chão. Fumaça
de cheiro penetrante ainda estava no ar e, através dela, Untcher percebeu os vultos dos
três éfogos.
Parou e começou a chamá-los. Os éfogos se viraram e vieram vagarosos em seu
encontro. Untcher não sabia bem por que estava desperdiçando seu tempo. Mas
acreditava que aqueles três fossem os homens-peixe com os quais falara da Finmark e aos
quais havia prometido auxílio. Não, não podia deixá-los na mão, embora isto lhe custasse
um tempo precioso.
Quando distavam ainda alguns metros, Untcher lhes gritou em arcônida:
— Vocês são os homens de Bchacheeth? Nrrhooch, Grghaok e Lchox?
Palavras de confirmação vieram através da fumaça e os éfogos começaram a correr.
— Somos os terranos. Os estrangeiros nos prenderam, mas nós nos libertamos.
Como poderemos sair depressa da cidade?
— Há uma comporta velha e abandonada — começou um dos homens-peixe a
explicar em sua linguagem molhada, como se falassem com a boca cheia d’água — nós
entramos por ela.
Untcher se dirigiu aos seus:
— Atarraxem os capacetes, rapazes, temos que passar por uma comporta ali na
frente.
Sem dizer uma palavra, os éfogos os acompanharam. A comporta era muito pequena
para todos passarem ao mesmo tempo. Foram abandonando a velha cidade de quatro em
quatro. Thomea Untcher e Nrrhooch ficaram entre os últimos.
Dos saltadores e dos aras não se via nem sinal. Para se compreender sua reação,
tinha-se que conhecer a mentalidade dos aras. Certamente ouviram os tiros e o barulho
todo e sabiam que alguma coisa não estava dando certo. Mas, se nesse momento
estivessem ocupados com algum estudo sério, com alguma experiência, era para eles
mais do que natural não se deixarem perturbar. Continuariam sentados diante de seus
microscópios ou de outros instrumentos de medição, e não se incomodariam nem mesmo
se o exército inimigo invadisse a cidade.
Quanto aos saltadores, o fato de não se manifestarem, Untcher explicava isto como
conseqüência de que ali em Pchchogh só estavam os três: Nathael, Echnatal e Aktar. Os
dois primeiros achavam-se desacordados e Aktar certamente já tinha deixado a cidade.
Untcher reparou na pistola térmica no cinturão de Nrrhooch e começou a entender
como se originou toda aquela confusão em Pchchogh; os tremendos estampidos, o rombo
na parede e o chão da rua todo estourado e derretido. Tudo isto porque um rapaz
inexperiente apertou um botão de disparo de uma arma, cuja reserva energética ele
desconhecia por completo. Thomea Untcher passou a ter grande respeito aos éfogos.
Aquela gente era simples, mas destemida.
Após o tempo determinado, dando ainda uma pequena pausa de segurança,
Nrrhooch abriu a portinhola da comporta e encontrou a câmara completamente vazia.
Untcher, Nrrhooch e dois dos homens de Untcher foram os últimos a deixarem a cidade.
Esperavam impacientes até que a câmara se enchesse e a pressão fosse a mesma do fundo
do mar. Depois abriram a escotilha interna e saíram nadando pelo cômodo escuro da casa,
passando pela rua iluminada, onde se encontraram com Grghaok, Lchox e os homens do
grupo de Untcher, que já os esperavam.
Somente fazendo com que Grghaok encostasse a cabeça no seu capacete, Untcher
conseguiu comunicar-se com o velho para lhe explicar como era o local onde havia
deixado seu veículo anfíbio. O chefe dos éfogos se mostrou pronto para conduzi-los até
lá. Untcher não estava certo se os aras não haviam danificado seu barco anfíbio, mas
tinham pelo menos que procurá-lo e, com o auxílio do éfogo, vencerem aquele paredão
de quatro mil metros de água.
Grghaok teve de reduzir seu ritmo de natação, pois os terranos, com pouca
experiência do fundo do mar, moviam-se lentamente. Isto deixava Grghaok um tanto
preocupado. Ele estava nadando rente ao teto de proteção da cidade e mostrava aos
terranos como se utilizar das raízes das canáceas para se apoiar e dar bons impulsos para
frente.
Apesar disso, levaram meia hora até chegar ao barco anfíbio. Estava onde o haviam
deixado e não se notava indício de que alguém houvera penetrado nele.
O embarque foi rápido e sem dificuldade. Com os três éfogos como tripulação extra,
não sobrava mais espaço no seu interior. Mas os homens de Thomea Untcher estavam
acostumados a não medir sacrifícios para obterem sucesso. Queriam escapar dos aras e
chegar salvos à superfície da água.
O próprio Untcher tomou o lugar do piloto. Numa ampla curva fez com que o barco
iniciasse a subida, passando por uma grande fenda da pedra artificial que protegia a
cidade de Pchchogh. A seguir, acelerou ao máximo. Estava preocupado com a frase de
Nathael de que a Finmark já estava nas mãos dos saltadores, pois sabia que o patriarca
não precisava mentir.
***
Ted Dunyan atingira seu objetivo. Estava sentado num reduzido compartimento
onde se concentravam todas as válvulas das instalações de aeração da Finmark. Desta
maneira, poderia controlar a nave e quando dessem por sua ausência, ninguém o viria
procurar neste recanto esquecido.
Havia, porém, um grande ponto de interrogação no empreendimento técnico-
científico do Dr. Dunyan: através do controle dos tubos de aeração da espaçonave, podia
injetar qualquer quantidade de gás entorpecente para toda a nave. Mas não sabia quantos
do grupo de Ran Loodey estavam de uniforme completo e assim não seriam atingidos
pelo gás sonífero. E o pior ainda era que o próprio Dr. Dunyan também estava sem o
uniforme e o capacete, arrancados por Loodey, antes de seu “sepultamento” no armário.
Assim o médico seria a primeira vítima de seu plano para neutralizar os amotinados de
Loodey.
Sua iniciativa só teria êxito se soubesse a hora exata em que Thomea Untcher
voltaria de sua expedição. Se soubesse isso, Untcher, ao penetrar na Finmark, encontraria
apenas um grande número de pessoas inconscientes a bordo, sem que houvesse perigosa
resistência física. Supondo-se, naturalmente, que ninguém do grupo de Loodey estivesse
com o capacete atarraxado.
O Dr. Dunyan necessitava, pois, de uma tela de rastreador para ver o que se passava
em torno da Finmark. Sabia que lá fora continuava a grande noite, nove vezes mais longa
que a noite da Terra. Mas esperava que as estrelas no céu claro e sem nuvens de Opghan
dessem uma claridade suficiente para se ver alguma coisa lá embaixo. No pequeno
compartimento das válvulas de aeração, não havia nenhuma tela de rastreador. Mas no
posto de comando havia duas, e o compartimento das válvulas era uma dependência do
posto de comando. Existia o perigo de ser visto pela tripulação, o que estragaria os planos
de Dunyan. Mas tinha de ser assim mesmo, e ficou ali olhando para a tela, esperando a
chegada de Untcher.
Passaram-se algumas horas, até que viu na tela a sombra do barco anfíbio,
irrompendo da camada de gelo que cobria o mar. Voltou para o compartimento das
válvulas e começou a injetar na espaçonave uma substância inodora, oraldin, e um
entorpecente sem maior perigo, que, conforme o Dr. Dunyan esperava, agiria tão
rapidamente, que não daria tempo para ninguém notar. No tocante a si mesmo, estava
muito contente com o efeito do entorpecente, que ele seria o primeiro a experimentar. De
fato, assim que acionou os registros, os contornos do pequeno compartimento se lhe
desapareceram dos olhos e o doutor perdeu os sentidos. Merecia bem um repouso, depois
de tantas horas de horrível tensão nervosa.
***
A confusão na Terra durou somente até que Perry Rhodan pessoalmente tomou a
iniciativa de apurar os fatos. Não podia saber o que estava se passando em Opghan, a
10.383 anos-luz da Terra. Mas estava mais que evidente: a primeira mensagem não era
verdadeira e somente a segunda, de Thomea Untcher, podia ser tomada a sério.
Desde este momento, até a partida do supercouraçado Barbarossa, com o próprio
Perry Rhodan a bordo, não se passaram mais do que trinta minutos.
Numa única transição, Rhodan chegou até o ponto combinado com Thomea
Untcher. Este ponto não distava mais de um ano-luz do sistema Ep-Hog e Rhodan
supunha que a intenção do Major Untcher era atacar diretamente o planeta Opghan.
A Finmark já estava a postos e, em redor dela, as cinco naves cilíndricas dos
saltadores prontas para destruí-la. Foi-lhes uma surpresa desagradável o aparecimento da
gigantesca e poderosa Barbarossa. Três das naves cilíndricas inimigas foram abatidas, as
outras duas preferiram a fuga desabalada a uma inútil demonstração de coragem. A
estação de rastreamento da Barbarossa assinalou que as duas naves, ao invés de
retornarem para Opghan, fizeram uma curva de noventa graus. Dava a impressão de que
os saltadores iriam fazer uma revisão nos seus planos a respeito de Opghan, pois a
pressão de fora era muito forte.
Perry pediu ao Major Untcher que comparecesse a bordo da Barbarossa. O
comandante levou o Dr. Dunyan, que lhe havia dito mais de uma vez, ter uma
comunicação muito importante a fazer.
— Tive oportunidade de observar, por muitas horas seguidas — explicava Ted
Dunyan — uma das vítimas dos gases inoculados na Finmark, isto é, o sargento Ran
Loodey. Encontrei o agente patológico em seu sistema nervoso. Sua composição era
relativamente simples, de maneira que a análise de início não ofereceu dificuldade. O
quadro foi totalmente diverso, quando repeti o exame para confirmar meu julgamento. A
composição tinha se alterado substancialmente, de maneira que este agente patológico
passou a provocar uma nova reação...
“Isto me levou a suspeitar de outra coisa. Nesta droga não havia apenas um agente
que produz um determinado efeito e com isso encerra seu ciclo de ação, e sim um que
conserva esta ação indefinidamente. Normalmente, Loodey e os demais atingidos pelo
agente, se amotinariam e não passaria disso. Poderiam se rebelar contra as ordens de seus
superiores, mas nunca tomar iniciativas por conta própria. Mas exatamente isto é que eles
fizeram. Ran Loodey é um exemplo vivo disso.
“Um outro fato esclarece mais ainda. Quando examinamos o ar de respiração na
Finmark, logo depois que Loodey e os rapazes apontaram os sintomas do
envenenamento, não havia mais nenhum sinal do agente patológico. Tínhamos, pois, a
certeza de que o tóxico entrara a bordo através de um gás.
“As micro partículas do gás se difundiram com incrível mobilidade, inclusive
através das paredes externas da nave. Desta feita os pobres éfogos, manipulados pelos
saltadores, não precisavam fazer outra coisa do que desatarraxar um pouco o cilindro
metálico que traziam sob o braço, para o gás penetrar na Finmark. Se fosse um gás
pesado, mesmo dias após o ataque, sobrariam vestígios dele a bordo. Este não era o caso.
O fato de que este gás tinha muita afinidade com o corpo humano e era por ele assimilado
integralmente é a prova objetiva. E assim que atingia uma pessoa, começava seu efeito.”
Ted Dunyan encostou-se no espaldar da cadeira e enxugou o suor da testa. Agora,
que estava começando a dizer o que sabia, o suor lhe vinha ao rosto. Suor do medo,
talvez se tivesse enganado, talvez houvesse outra explicação para os fatos, ou uma outra
maneira de combater os efeitos da droga do psimo.
— Compreendo muito bem como se deve sentir, doutor — disse-lhe Rhodan
amigavelmente. — Fale sem receio nenhum. A Galáxia certamente já viu coisas tão
admiráveis como este gás inteligente.
Dunyan perguntou, quase gaguejando:
— Como é que o senhor sabe disso?
— É a conclusão lógica de tudo que o senhor expôs, doutor. O senhor disse que o
agente patológico, por si mesmo tinha a capacidade de se adaptar às situações, não é
verdade?
Ted Dunyan admirado fez um gesto afirmativo.
— Lamento — continuou Perry Rhodan — que nenhuma de nossas línguas evoluiu
ao ponto de arranjar uma outra palavra em lugar de inteligente, neste caso. Claro que é
um erro considerar cada molécula do agente intoxicante como um ser inteligente. A
faculdade de adaptar-se às diferentes circunstâncias, persistindo sempre no objetivo
central, que deve ter parecido aos produtores do gás, os aras, como o mais importante no
tóxico, é certamente uma obra-prima da química orgânica. Mas a molécula não pensa.
Possui apenas uma faculdade, uma faculdade estatística, porque não são todas as
moléculas, mas algumas, talvez até a maioria, que reagem corretamente na hora certa,
podendo alterar-se de acordo com o fim, sem que haja uma ação externa para isto.
Olhou para Ted Dunyan, que concordou sorrindo.
— Por mais que falemos a respeito — concluiu Rhodan — para tomar o mistério
mais compreensível, é e continuará sendo uma descoberta maravilhosa dos aras, de sua
dedicação à ciência. Devia servir para objetivos mais nobres e não cair nas mãos
mercenárias dos saltadores, que vão utilizá-la para fins condenáveis.
Isto queria dizer que Perry Rhodan resolvera terminar de uma vez por todas com a
operação Opghan.
***
***
***
Todo perfilado, o sargento Ran Loodey fez a continência para o Major Thomea
Untcher, que à paisana entrava no posto de comando. Olhou para Loodey, desconfiado, e
disse:
— Como é? Desta vez você não faz nenhuma referência ao “asilo dos
desabrigados”?
— Não, major! Durante muitas horas, eu é quem merecia ir para uma clínica de
neurologia.
***
**
*
O Inimigo Oculto necessitava mesmo de levar uma boa
lição... No entanto, Atlan não ignora que o grande Império
Arcônida, cujo governo está em suas mãos, mais cedo ou mais
tarde entrará em decadência, se ele não conseguir agrupar em
torno de si os homens mais capacitados e de maior
determinação de seu povo.
Será que os “adormecidos”, encontrados por Gucky nas
imensidões da Galáxia, poderão se tornar os auxiliares de
Atlan?
Em O Sol Chamejante, próximo livro da série, outra
surpreendente aventura será narrada.