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A ARMADILHA DE GELO

Autor
WILLIAM VOLTZ

Tradução
RICHARD PAUL NETO

Digitalização e Revisão
SKIRO
Os terranos sempre lutaram pela aliança entre as raças desconhecidas...
mas, sacrificando suas próprias vidas?...

Os acontecimentos dos anos 2.326 e 2.327 provaram com uma clareza


extraordinária que, apesar das milhares de naves exploradoras que há anos
vêm se dedicando às pesquisas cósmicas, os confins da Galáxia com seus
bilhões de sóis e planetas no fundo ainda são bastante desconhecidos.
Os terranos comandados por Perry Rhodan vêm praticando a
Astronáutica há séculos — de início com as embarcações espaciais de
transição, depois com as naves kalup. Mas só no ano de 2.326 foram
descobertos, por puro acaso, os vermes do pavor e seus descendentes: os
gafanhotos córneos.
Vários comandos terranos, formados por cientistas, soldados,
especialistas e mutantes, experimentaram derrotas seguidas nas suas
tentativas de desvendar os segredos dos vermes do pavor. Finalmente, quatro
homens da USO, o chamado “Corpo de Bombeiros Galáctico”, comandado
pelo Lorde-Almirante Atlan, conseguiram entrar em contato com um dos
jovens vermes do pavor do planeta Euhja. Esta criatura revelou o segredo de
sua espécie e formou com os terranos uma aliança contra os benévolos — ou
blues — seres que, com suas frotas espaciais invulneráveis, graças à
blindagem de molkex, dominam um grande império astral situado no setor
leste da Via Láctea. Foi uma aliança estranha que os terranos celebraram
com essas inteligências monstruosas de cor azulada. Estranha e muito
arriscada.
No âmbito das medidas estratégicas, o posto de Eastside é preparado
para entrar em ação. E este posto é o trampolim para A Armadilha de
Gelo...

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Don Kilmacthomas — Uma pessoa que os blues não podem
capturar.
Coronel Mos Hakru — Comandante de uma nave infeliz.
Sargento Wallaby — Um homem que tem de penitenciar-se por
várias coisas.
Perry Rhodan — O administrador geral que usa 3.000
espaçonaves numa ação de camuflagem.
Coronel Joe Nomers — Cuja estação espacial é o ponto de partida
e de chegada de uma ação montada em grande estilo.
Leclerc — Chefe dos blues.
1

Esta é a história do Tenente Don Kilmacthomas.


Também é a história da Estação Espacial Eastside número 1 e de seu efetivo e do
couraçado Tristan e sua tripulação.
Se folhearmos os inúmeros volumes da Enciclopédia da Humanidade, à procura do
nome Kilmacthomas, não o encontraremos, por maior que seja nosso esforço. Existe uma
descrição do Tristan e da ESS-1, além de um relato minucioso de certa ação heróica, mas
ali não se mencionam nomes, a não ser os de certas pessoas conhecidas como Melbar
Kasom, Mos Hakru e Joe Nomers.
Quando o Tenente Don Kilmacthomas subiu a bordo da nave Tristan, ele não sabia
que só teria poucos dias de vida. Morreu no dia 7 de junho de 2.327.
Provavelmente seu corpo está tão bem conservado que levaria alguém a acreditar
que Kilmacthomas morreu há poucos instantes.
O Tenente Don Kilmacthomas está sepultado sob uma camada de gelo de 600
metros de espessura. Em seus olhos azul-escuros nota-se uma expressão de ligeiro
espanto. Até parece que não conseguiu compreender o que estava acontecendo em torno
dele. Suas mãos seguram uma pistola de raios térmicos.
Kilmacthomas não foi o único homem que perdeu a vida durante as tentativas de
estabelecer contato com o sistema misterioso dos gatasenses. Mas seu destino apresenta
uma peculiaridade que lhe confere um aspecto bastante trágico.
A ação em que Kilmacthomas perdeu a vida foi a primeira que realizou em toda a
vida.
***
O sargento Wallaby acompanhou com as pálpebras semicerradas as tentativas do
jovem, que se esforçava para subir pelo passadiço da nave com uma mala pesada e
supergrande.
Wallaby era um homem de ombros largos e rosto anguloso, com os cabelos
ligeiramente grisalhos junto às têmporas.
Em sua própria opinião, era um homem delicado, sensível, inteligente, discreto,
culto e experimentado.
Acontece que na realidade não era nada disso.
Seu único talento era o de controlar o carregamento de uma nave, organizar
prontamente os setores com defeitos e intimidar os subordinados com seus berros
fenomenais.
O jovem com a mala tinha percorrido aproximadamente metade do caminho,
quando Wallaby jogou o quepe para trás e colocou as mãos nos quadris.
O jovem lançou um sorriso esperançoso para Wallaby, pois acreditava que o mesmo
desceria para ajudá-lo. Tinha rosto redondo e um olhar franco, um par de olhos azul-
escuros e uma cova muito acentuada no queixo. Não era muito alto. Em compensação,
era esbelto e tinha braços muito longos, e trajava um conjunto simples. Tudo isso fez com
que Wallaby nem desconfiasse de que o homem que se encontrava à sua frente era um
tenente.
Wallaby lançou um olhar penetrante para o homem que carregava a pesada mala. O
comportamento esquisito daquele jovem confirmava a suspeita de que o mesmo era um
cadete simplório. O sargento percebeu que o desprezo começava a tomar conta dele. O
que é que um menino como aquele pretendia fazer numa missão como a que tinham pela
frente?
Mas Wallaby logo se lembrou, com grande desagrado, que não cabia a ele tomar
qualquer decisão a este respeito.
A única coisa sujeita ao seu poder de comando era aquela mala monstruosa feita de
couro amarelo, que representava uma violação da norma segundo a qual os tripulantes da
nave só podiam subir a bordo com bagagens de pequenas dimensões.
— Ei! — gritou Wallaby.
Pôs-se a balançar sobre as pontas dos pés, pois descobrira que este tipo de
movimento lhe conferia um ar mais autoritário.
O jovem não parecia impressionar-se nem um pouco.
Descansou a mala e fez um sinal para que Wallaby se aproximasse.
— Não quer ajudar-me a transportar este monstro de mala? — perguntou em tom
amável.
Wallaby enrubesceu até atrás das orelhas. Olhou em torno, apressado, para verificar
se algum membro da tripulação presenciara a humilhação pública que acabara de sofrer.
Logo dirigiu todas as energias desencadeadas pela fúria contra o jovem desconhecido.
— Até parece que o senhor tomou leite de cascavel no café — berrou. — Será que
não bastava aparecer com tanta bagagem? Pelo menos deveria controlar-se para não
comportar-se como um moleque perante um superior.
O recém-chegado esboçou um sorriso benevolente e olhou em torno.
— Onde está o superior, sargento? — perguntou.
— O senhor será preso por isso — asseverou Wallaby em tom envenenado. — Nem
mesmo um cadete tem o direito de ser ignorante a ponto de não conhecer as insígnias.
— Sentido, sargento — disse o jovem, esticando as sílabas.
Wallaby arregalou os olhos, apavorado, quando viu o cadete enfiar a mão no bolso e
colocar uma insígnia de tenente na roupa que vestia.
— Eu ...bem, não podia saber, sir — principiou.
— Meu nome é Kilmacthomas — disse o jovem. — Don Kilmacthomas.
Um débil gemido saiu da boca de Wallaby. Então era este o tal do Kilmacthomas,
que os oficiais da Tristan esperavam com tanto interesse.
Naturalmente esse jovem era um tenente, mas também era um “rato terrano”, pois
nunca pusera os pés num mundo estranho. Wallaby não compreendia como um homem
desse tipo conseguira tornar-se oficial.
O que dizia mesmo o relatório sobre Kilmacthomas, que Wallaby lera às escondidas
na sala de comando?
Ele, o tenente, concluíra com sucesso um curso completo sobre o comportamento
nos planetas gelados, tanto na superfície como no interior da camada de gelo. Poderá ser
muito útil durante a missão, na qualidade de consultor.
Um resmungo irônico saiu da boca de Wallaby. Será que um homem que nunca saíra
do planeta Terra podia entender alguma coisa dos mundos de gelo? Kilmacthomas era um
daqueles teóricos inveterados, que a Academia produzia e continuaria a produzir
ininterruptamente.
Wallaby ficou em posição de sentido.
— Peço ao senhor tenente que queira desculpar-me — disse, depois de ter
recuperado o autocontrole. — Permita que chame sua atenção para as normas de
limitação de bagagem, que também se aplicam aos oficiais.
Kilmacthomas sorriu para o sargento, exibindo uma fileira de dentes irregulares.
“É mesmo um menino”, pensou Wallaby, zangado.
— Esta mala contém instrumentos de uso particular — disse o tenente. — Tenho
licença para trazê-los a bordo da Tristan, já que pertencem ao meu equipamento especial,
sem o qual não posso trabalhar.
No seu íntimo Wallaby tinha uma opinião nada lisonjeira sobre os especialistas que
carregam seu equipamento numa mala.
— Por que não despachou seu equipamento, sir, como fizeram os outros
especialistas?
— Trata-se de instrumentos de alta sensibilidade — respondeu Kilmacthomas em
tom enfático. — Prefiro não confiá-los a outras pessoas. Tenha cuidado quando levar a
mala ao meu camarote.
— Pois não, sir — disse Wallaby, contrariado.
Desceu pelo passadiço com uma lentidão provocadora. Enquanto ia descendo,
pensava: “Vou mostrar a esse menino inexperiente como se carrega uma peça desse
tipo”.
Quando Wallaby se aproximou, Kilmacthomas levantou-se. Sorriu ao ver o sargento
estender o braço em direção à mala. Wallaby viu então uma etiqueta colorida de gosto
bastante duvidoso que Kilmacthomas colara sobre a mala.
Além disso, havia na mesma uma placa de advertência, que recomendava cuidado
no manuseio da peça.
Os dedos ossudos de Wallaby envolveram a alça da mala.
Fez um movimento resoluto para erguer a mala, mas teve de fazer um esforço
extraordinário para fazê-la sair do solo. Voltou a descansá-la com um gemido.
— São pedras, sir? — perguntou.
— Quer uma ajuda? — perguntou Kilmacthomas em tom sarcástico.
— Já transportei peças muito mais pesadas — asseverou Wallaby e voltou a erguer a
mala. Saiu caminhando, ofegante e cambaleante, enquanto Kilmacthomas o seguia
tranqüilamente.
De vez em quando dava um bom conselho ao sargento.
Foi assim que Don Kilmacthomas, o teórico, subiu a bordo da nave Tristan.
***
A esfera de aço arcônida que gravitava em torno do segundo planeta do sol Lysso
era conhecida pelo nome Estação Espacial Eastside número 1, ou, abreviadamente, ESS-
1. Naquele momento, a antiga nave arcônida encontrava-se a 58 anos-luz do sistema
solar.
Acontece que os homens que se encontravam a bordo não estavam muito
interessados na distância. Outro sistema solar, muito mais próximo, porém, ocupava todas
as atenções.
A distância que separava a ESS-1 do sol Verth era de apenas 9.842 anos-luz.
O sistema Verth era o mundo dos blues.
O Coronel Joe Nomers, comandante da ESS-1, saiu do camarote pouco mais de uma
hora antes do momento em que era esperado o impulso-contato da Tristan.
Nomers era um homem baixo e musculoso, totalmente calvo, que tinha mais de
cinqüenta anos. Seus lábios sempre pareciam azuis. Dava a impressão de ser um homem
insignificante, e esta impressão era reforçada por seu gênio taciturno.
Nomers caminhou sem pressa em direção à sala de controle. Sentiu-se um tanto
contrariado ao lembrar-se que a ESS-1 com seus 800 metros de diâmetro fora aliviada de
todos os mecanismos dispensáveis. E não havia armamentos pesados a bordo.
O gigantesco teletransmissor instalado na nave, que era um produto acônida, tomava
todos os espaços disponíveis. A ESS-1 era realmente um gigantesco transmissor
flutuando no espaço e não uma nave. Nomers, que era comandante de espaçonave, sentia,
como qualquer astronauta, uma antipatia profunda por qualquer objeto voador que não
dispusesse de todos os equipamentos.
O planeta em torno do qual gravitava a ESS-1 era conhecido pelo nome de “Griez”.
Tratava-se de um mundo de gelo de tamanho acima da média, no qual não havia vestígios
de vida ou de civilização.
O pequeno sol vermelho era insuficiente para aquecer os dois planetas de seu
sistema a ponto de modificar as superfícies congeladas.
“Talvez”, pensou Nomers, “embaixo de todo esse gelo existam vestígios de
civilizações antigas e de seres inteligentes. Talvez esses seres tivessem nutrido suas
esperanças, amado e sofrido que nem os humanos, até que a natureza implacável
pusesse um ponto final em sua evolução.”
O sol esfriara lentamente, e as eras glaciais tiveram início.
Nomers entrou no centro de controle da ESS-1. No mesmo instante percebeu como
a tensão que dominava os tripulantes se transmitia a ele. Até parecia que acabara de
passar pela porta que separava dois recintos com atmosferas totalmente diversas. A
experiência colhida ao longo dos anos fizera nascer em Nomers uma sensibilidade toda
especial para as modificações do comportamento humano. Era capaz de interpretar as
reações mais insignificantes de um ser humano para deduzir seu estado de espírito num
dado momento.
Talvez seu gênio taciturno tivesse origem desse fato. Possivelmente receava dar
indicações semelhantes às pessoas que o cercavam e queria evitar que perscrutassem seu
íntimo e identificassem seus sentimentos e pensamentos.
Nomers lançou um olhar para a tela panorâmica. A ESS-1 estava passando por cima
da face diurna do planeta Griez. A tela registrava uma imagem bem nítida da superfície
do mesmo.
O coronel olhou em torno sem dizer uma palavra.
Lançou um olhar atento para cada um dos homens e saiu caminhando
tranqüilamente em direção à mesa do comando. O Tenente Nashville estava sentado
numa poltrona bem à sua frente. Tratava-se de um jovem oficial de espírito muito vivaz,
que representava exatamente o contrário de Nomers.
— Vá almoçar, tenente — disse Nomers em voz baixa, batendo no ombro de
Nashville.
— Obrigado, sir — respondeu Nashville.
Era muito gordo para sua idade, tinha o rosto inchado e desfigurado por um nariz de
poros largos, sobre o qual brilhavam pingos de suor, mas, apesar da gordura, revelava
uma espantosa agilidade.
Levantou-se e cedeu a poltrona ao coronel.
Não tinha a menor dúvida de que Nomers preferia comandar pessoalmente a estação
por ocasião do primeiro contato com a Tristan.
Sabia perfeitamente que Nomers não perderia mais uma única palavra e retirou-se,
cumprimentando-o com um gesto de cabeça. Nomers acomodou-se na poltrona, que logo
se adaptou às formas de seu corpo. Sabia que não havia nenhum tripulante nas
imediações, e por isso condescendeu num suspiro profundo.
Em sua opinião, a ESS-1 participava de um comando suicida.
Era bem verdade que levavam vantagem num ponto: não precisariam intervir
diretamente nos acontecimentos. Mas esta circunstância não poderia tranqüilizar um
homem como Nomers, que sabia pensar em termos estratégicos.
O coronel teve uma visão de conjunto do plano. O ponto fraco do mesmo era a
Tristan, não por que se tratasse de uma nave inferior ou antiquada, mas pelo simples fato
de lhe ter sido atribuída uma missão que Nomers considerava impossível.
Segundo o plano, a Tristan deveria avançar até o coração do Segundo Império, ou
seja, até Verth!
Nomers pensou nas chances extremamente reduzidas de uma nave estranha que
tentasse penetrar no sistema solar terrano e pousar em Plutão. Seria praticamente
impossível.
E esperava-se que a Tristan realizasse o impossível.
Perry Rhodan, que elaborara o plano, estava disposto a sacrificar algumas centenas
de naves numa operação de camuflagem.
“É um preço muito elevado”, pensou o Coronel Joe Nomers.
Elevado demais para não conseguir outra coisa senão levar uma espaçonave bem
para dentro da cova do leão.
2

Há três meses alguns cruzadores ligeiros de reconhecimento iniciaram uma operação


destinada a determinar a posição galáctica do gigantesco sol azul denominado Verth. Os
dados de que dispunham seus tripulantes poderiam ser tudo, menos minuciosos. Em
linhas gerais, esses dados se limitavam aos resultados que o Major Torav Drohner e seus
homens haviam transmitido ao centro de computação positrônica da Lua, por ocasião do
regresso da nave Kopenhagen.
Mas neste meio tempo haviam descoberto certas coisas, além da posição do sistema
em que viviam os gatasenses. Já se sabia que o sol Verth possuía 14 planetas. O quinto
destes planetas, denominado Gatas, era o mundo de origem dos blues. O diâmetro de
Gatas era de 14.221 quilômetros. Com uma densidade populacional de aproximadamente
14 bilhões de blues, esse mundo enfrentava uma situação de irremediável superpovoação.
Este fato revelava com uma nitidez extraordinária que o expansionismo desses seres tinha
sua origem principalmente em sua extraordinária fertilidade.
Perry Rhodan descobrira há muito tempo que seria impossível estabelecer um
verdadeiro contato com os blues, pois estes seres pareciam odiar qualquer criatura que
não pertencesse à sua raça. A melhor prova disso era o extermínio impiedoso de antigos
povos coloniais e de raças recém-descobertas.
Um blue só negocia com outro blue!
Esta frase lapidar levara Rhodan a procurar novos caminhos para ampliar seus
conhecimentos a respeito do inimigo.
Em princípios de junho do ano de 2.327, o Administrador Geral encontrava-se a
bordo da nave-capitânia da Frota, a Eric Manoli, que viajava em direção a um sistema
vizinho ao do sol Verth, juntamente com mais três mil naves.
Nas últimas horas, o comandante da nave, Kors Dantur, nascido em Epsal, e um dos
pilotos mais competentes da Frota, vivia se perguntando por que Perry Rhodan estava tão
calado. O Administrador Geral ficou sentado na sala de comando, mergulhado em
pensamentos.
Além de Rhodan, Reginald Bell e Regat Waynt, um especialista acônida,
encontravam-se na sala de comando. Naturalmente havia, além deles, a tripulação
normal.
Dantur estava cansado de saber que Regat Waynt seria incapaz de emitir qualquer
impulso que pudesse levar Rhodan a abandonar suas meditações e voltar ao mundo da
realidade. Waynt era um homem calado, magro, de face encovada e olhos penetrantes,
que invariavelmente exibia uma expressão irônica em torno dos lábios.
O único que parecia sofrer com o silêncio tanto quanto Dantur era Reginald Bell. E
realmente foi o comandante impulsivo da antiga frota arcônida que rompeu o silêncio.
— Aposto que está pensando em cancelar a missão no último instante — disse. —
Não se precisa das faculdades telepáticas de um rato-castor para notar isso.
— Não se preocupe à toa, gordo — disse Rhodan em tom tranqüilo.
Bell alisou o blusão com um gesto nervoso. Nele essa peça de roupa nunca ficava
tão justa como gostavam os oficiais graduados da Frota que levavam a sério os
regulamentos militares. Ainda bem que Bell praticamente não tinha nenhum superior.
Rhodan jamais pensaria em repreender o amigo por causa do uniforme.
— Não quer que me preocupe? — perguntou Bell. — Qualquer pessoa tem o direito
de preocupar-se quando quiser. E neste momento eu quero. Além disso, gostaria de
insistir na sugestão de procurarmos estabelecer os contatos necessários por intermédio
dos movimentos de resistência existentes nas fileiras dos blues.
Uma ruga vertical surgiu na testa de Rhodan.
— Já tentamos isso — disse. — Não vale a pena arriscar novos fracassos nesta área.
Os grupos de resistência são tão inacessíveis quanto os próprios gatasenses. Se quisermos
obter informações valiosas sobre o império dos blues, teremos de esforçar-nos para
consegui-las por nossa conta.
— Mesmo que isso possa custar-nos a cabeça — objetou Bell.
— No seu caso isso não representaria uma perda muito grande — disse Rhodan em
tom irônico. — De qualquer maneira, não pretendo negar que este perigo realmente
existe.
Bell apalpou a cabeça ruiva com os dedos. Parecia contrariado.
— Tenho a impressão de que sua antipatia por minha nobre cabeça é uma questão de
inveja — observou em tom compenetrado. — Afinal, de certas pessoas que andam por aí
não se pode dizer que a parte mais preciosa do corpo é aquela situada acima do pescoço.
Rhodan sorriu. Dantur deu uma risadinha e Waynt franziu os lábios numa expressão
irônica.
— Vamos lançar mão de três mil naves para possibilitar o pouso da Tristan no
décimo quarto planeta do sol Verth — lembrou Reginald Bell. — Três mil naves somente
para causar um pouco de confusão.
— Um pouco? — Rhodan sacudiu a cabeça. — Nada disso, gordo. Devemos fazer
com que os blues acreditem que uma invasão em grande escala está em andamento. Suas
atenções têm de concentrar-se no sistema vizinho, suas naves terão de ser desviadas para
lá. Antes de nos retirarmos, a Tristan tem de pousar sem que ninguém a perceba e
mergulhar praticamente sob o gelo daquele mundo. Segundo os planos, a Tristan deverá
ficar parada seiscentos metros embaixo da superfície, onde perfurará cavernas
subterrâneas. Estará completamente fora do alcance da localização óptica.
— A idéia me dá calafrios — confessou Bell.
Rhodan deu uma risada. Não havia motivo para acreditar que o sistema de Verth
fosse menos protegido que o sistema solar terrano. Na área dos blues também haveria um
tráfego intenso de espaçonaves. Provavelmente havia estações espaciais e postos de
vigilância. Naturalmente não se poderia excluir a possibilidade de que os blues ainda não
tivessem enfrentado dificuldades mais graves no curso de sua evolução. Neste caso
seriam menos cautelosos que os humanos.
Da mesma forma que a ESS-1, a Tristan estava equipada com um transmissor
acônida de grande porte. Assim que o comandante Mos Hakru conseguisse esconder a
nave sob a camada de gelo do planeta exterior do sol Verth, haveria a possibilidade de
infiltrar inúmeros especialistas da ESS-1 no sistema de Verth. Bastaria utilizar o
transmissor.
O maior problema consistiria em transportar um transmissor para o sistema dos
blues sem que estes o percebessem.
Mas os dirigentes do Império Unido não tinham outra alternativa senão assumir este
risco. Antes de dar o golpe decisivo, precisavam colher maiores informações sobre o
inimigo.
Era uma luta com o tempo...
3

— Coloque sobre a cama, sargento — disse Kilmacthomas, enquanto Wallaby


soltava um gemido. — Tenha cuidado.
O sargento Wallaby praguejou baixinho e colocou a mala do tenente no lugar
indicado. Seu rosto estava muito vermelho, por causa da raiva ou do cansaço físico.
Provavelmente era por ambas as causas.
Don Kilmacthomas passou os olhos pelo camarote.
— É um pouco apertado, não é mesmo, sargento? — perguntou em tom
decepcionado.
— Os alojamentos dos tripulantes são ainda mais apertados — resmungou Wallaby.
— O Coronel Hakru contenta-se com um camarote igual a este, sir.
Wallaby achou que acabara de fazer uma observação bastante diplomática e fungou
de satisfação.
Ao que parecia, Kilmacthomas não ficara zangado.
— Pode retirar-se, sargento — disse.
Wallaby saiu contrariado. Bem que gostaria de ver Kilmacthomas desfazer aquela
mala. Tinha suas dúvidas de que o mesmo realmente trouxesse instrumentos consigo.
Fechou ruidosamente a porta e ficou parado do lado de fora. Lançou um olhar
apressado pelo corredor. Não viu ninguém. Vários oficiais ainda não tinham subido a
bordo. Hakru provavelmente estava na sala de comando, a fim de controlar os
preparativos da decolagem.
Wallaby engoliu nervosamente em seco. Abaixou-se para olhar pelo pequeno buraco
que ficava embaixo da fechadura magnética. Viu a cama. Depois de algum tempo
Kilmacthomas entrou no seu campo de visão. O “calouro” espacial acabara de tirar o
conjunto que usara ao subir a bordo e, para a tristeza de Wallaby, trajava um roupão
vermelho-vivo. O sargento soltou um gemido.
Será que esse menino inexperiente acreditava que iriam a uma festa?
Ouviu um ruído vindo de trás e ergueu-se apressadamente. Era apenas a válvula
automática de ventilação que se abrira. Wallaby voltou a ocupar seu posto de observação.
Kilmacthomas sentou na cama, ao lado da mala. Seu rosto exprimia satisfação.
Wallaby sentiu uma lufada de ar frio vinda pelo buraco, mas não deixou que isso o
perturbasse.
Finalmente Kilmacthomas abriu a mala. O peso fizera com que esta se inclinasse
para a frente, permitindo que Wallaby visse perfeitamente o interior da mesma.
O sargento deixou cair o queixo e arregalou os olhos.
Kilmacthomas não levara um único instrumento para o camarote.
Na mala que ele, o sargento Wallaby, carregara que nem um idiota havia inúmeras
garrafas com etiquetas coloridas.
E Wallaby não tinha a menor dúvida de que nessas garrafas só havia bebidas
alcoólicas.
O Tenente Don Kilmacthomas acabara de introduzir mercadoria proibida a bordo da
Tristan. E ele, Wallaby, se deixara enganar, e além de tudo carregara a bagagem suspeita.
O sargento teve vontade de chorar. A essa hora o rapazinho devia estar zombando
dele. Wallaby sentiu uma raiva fria apoderar-se dele. Tinha uma chance de fazer o
“calouro” espacial pagar pelo que lhe fizera no passadiço da nave.
Wallaby ergueu-se apressadamente. Atravessou o corredor a passos rápidos. Refletiu
se não seria preferível ir ao compartimento de carga para verificar se os instrumentos
daquele especialista já se encontravam a bordo, no lugar em que estavam os
equipamentos dos outros.
Wallaby usou o poço principal que conduzia ao compartimento de carga. Quando
saiu do mesmo, viu o cabo Lessink sentado sobre uma caixa, conferindo com o rosto
aborrecido uma lista de material que se encontrava à sua frente.
Wallaby pigarreou. Lessink estremeceu e virou a cabeça. Quando viu Wallaby,
levantou-se de um salto e conformou-se de antemão com o sermão que sem dúvida estava
para vir.
Mas, contrariando seus hábitos, Wallaby permaneceu calmo.
— Gostaria que você me desse uma informação, Dan — disse.
— Naturalmente, sargento — disse Lessink apressadamente. — De que se trata?
— Você não tem uma relação de todo o material colocado hoje a bordo da Tristan?
— Perfeitamente, sargento.
— Muito bem, Dan. Pois você vai fazer o favor de verificar se já recebeu os
instrumentos e outros equipamentos de um certo Tenente Don Kilmacthomas.
— Não preciso verificar nada, sargento — disse Lessink com um sorriso. — Ainda
me lembro de que esse rapaz me procurou para pedir que tivesse um cuidado todo
especial com seus equipamentos. Estão ali, junto aos sacos de lã de vidro, onde estão bem
protegidos — lançou um olhar desconfiado para Wallaby. — Há algo de errado com o
tenente? Tive a impressão de que era um pouco...
Wallaby já desaparecera no poço. O sargento não fez o menor esforço para reprimir
os sentimentos de triunfo que passaram a apoderar-se dele. Graças à sua inteligência, seu
faro e seu senso psicológico, Kilmacthomas seria desmascarado antes que as bebidas
alcoólicas pudessem minar a disciplina a bordo da nave.
Wallaby dirigiu-se apressadamente à sala de comando.
Conforme esperara, encontrou o Coronel Mos Hakru na mesma. Hakru era um
homem delicado, que quase chegava a parecer fraco. Tinha 38 anos, era cosmonauta e,
como físico, pertencia ao comando experimental formado por Rhodan.
Wallaby endureceu numa continência quando notou que acabara de despertar a
atenção de Hakru.
— O que houve, sargento? — perguntou o coronel.
Durante o caminho Wallaby refletira perfeitamente sobre o que pretendia dizer, mas
agora não tinha coragem para falar sem rebuços.
— Trata-se de um dos novos oficiais — disse, arrastando as palavras. — Tenho uma
suspeita, sir.
O olhar de Hakru fez com que o sangue lhe subisse à cabeça.
— Vamos logo, sargento Wallaby — ordenou Hakru. — Não posso perder tempo
com coisas sem importância.
— Centenas de garrafas de álcool estão a bordo — exclamou Wallaby. — Vi por...
bem... por acaso quando as bebidas foram retiradas.
— Quem as retirou de onde? — perguntou Hakru.
— O Tenente Kilmacthomas, sir — apressou-se Wallaby a dizer. — Em seu
camarote.
— Kilmacthomas é o novo oficial — lembrou Hakru. — Muito bem, Wallaby.
Vejamos se a acusação que o senhor acaba de formular procede. Se for, o tenente será
expulso imediatamente da nave.
Wallaby acenou com a cabeça. Parecia satisfeito. A mala pesada voltaria a ser
carregada pelo passadiço.
Para baixo!
“E pelo Tenente Don Kilmacthomas!”, pensou com sarcasmo.
***
O sargento Wallaby parou à porta do camarote do tenente.
— É aqui que ele está alojado, sir — disse, dirigindo-se a Hakru.
— Bata à porta — ordenou o coronel. Wallaby adiou que tamanha discrição com um
contrabandista que acabara de introduzir bebidas alcoólicas a bordo de uma nave era
exagero, mas bateu à porta do camarote.
— Entre quem quer que seja! — exclamou uma voz juvenil.
O sargento Wallaby teve vontade de esfregar as mãos. A seguir, abriu
cuidadosamente a porta.
— Atenção! — gritou a plenos pulmões. — O comandante!
— Deixe para lá, sargento — ordenou Hakru, contrariado, e entrou.
Kilmacthomas continuava a trajar o roupão vermelho. Os olhos azuis dirigidos para
o coronel não exprimiam nenhuma confusão, mas demonstravam um grande interesse.
— Já fomos apresentados, sir — disse, dirigindo-se a Hakru.
Wallaby sentiu-se decepcionado ao notar que Kilmacthomas não parecia nem um
pouco decepcionado. Mas ele não perderia por esperar.
— Pretendia apresentar-me ao senhor assim que tivesse início a contagem regressiva
— disse Kilmacthomas.
Hakru atravessou o camarote com algumas passadas rápidas.
— Para encurtar a conversa, tenente: o sargento Wallaby o acusa de contrabandear
bebidas alcoólicas a bordo de uma nave que está prestes a entrar em ação.
Por um ligeiro instante toda a amabilidade desapareceu do rosto do tenente. E de
repente esse rosto não parecia tão jovem como Wallaby o tinha na lembrança. Mas o
velho sorriso logo voltou a aparecer.
— Quer dizer que o senhor andou espionando, sargento — constatou Kilmacthomas
em tom indiferente.
Wallaby ergueu as sobrancelhas.
— O senhor acha que pode ofender-me depois de ter sido desmascarado? —
perguntou em tom solene.
Kilmacthomas limitou-se a sorrir. Tirou a mala amarela de baixo da cama. Abriu-a.
Hakru lançou os olhos para as inúmeras garrafas de que Wallaby lhe falara.
— Verifique se há álcool nestas garrafas — ordenou o coronel a Wallaby, que tremia
de exaltação.
— Será um prazer, sir — apressou-se o sargento a dizer.
Afinal, poderia tomar um bom gole de graça e sem entrar em choque com seus
superiores.
Com um gesto indiferente Kilmacthomas pegou uma das garrafas e entregou-a a
Wallaby.
— Experimente isto — recomendou.
Wallaby afastou sua mão.
— Prefiro escolher eu mesmo — resmungou. — Não pense que pode enganar-me
com uma garrafa de suco de fruta.
Pegou uma garrafa, abriu-a e cheirou. Fez uma careta.
— Então, sargento? — perguntou Hakru, impaciente. — É bebida alcoólica ou não
é?
— Naturalmente é bebida alcoólica, sir — cochichou Wallaby, enquanto pingos de
suor começavam a aparecer em sua testa. Encostou a garrafa à boca e tomou um bom
gole.
Kilmacthomas fitou-o com muito interesse. Wallaby quase sufocou. O tenente teve
de tirar-lhe a garrafa da mão, antes que a deixasse cair. O sargento ficou pálido que nem
cera e seus joelhos começaram a ceder.
— O que houve, sargento? — repetiu Hakru.
— Veneno — gemeu Wallaby, apavorado. — É algum veneno.
— Trata-se de soluções químicas com as quais pretendo realizar ensaios analíticos
do gelo, sir — explicou Kilmacthomas. — Cada uma destas garrafas é extremamente
preciosa e perigosa. Por isso achei preferível mandar levá-las ao meu camarote.
— Perigosa? — perguntou Wallaby num sopro. — Então terei de morrer?
— Não acredito — disse Kilmacthomas em tom delicado. — A garrafa que lhe
ofereci apenas causaria uma queda de cabelo. A bebida que o senhor acaba de tomar lhe
renderá uma erupção cutânea que o deixará preso à cama por uma semana. Seu irmão não
o reconheceria no estado em que ficará. Mas o senhor vai melhorar.
Wallaby cobriu o rosto com as mãos, enquanto Hakru reprimia um sorriso.
— Retire-se, sargento — ordenou, dirigindo-se a Wallaby.
O sargento Wallaby saiu choramingando. Assim que se viram a sós, Mos Hakru
fitou o jovem oficial com uma expressão pensativa.
— É sua primeira missão, tenente? — perguntou depois de algum tempo.
— Sim senhor — respondeu Kilmacthomas.
Hakru olhou para o roupão vermelho.
— O senhor naturalmente tirará isso — ordenou.
— Sim senhor — respondeu Kilmacthomas.
Hakru foi saindo, mas virou-se na porta.
— Acho que nos daremos bem, tenente — disse.
— Sim senhor — voltou a dizer o Tenente Don Kilmacthomas, fitando o coronel
com uma amabilidade ingênua.
4

— Mensagem da nave-capitânia — exclamou Mowegan, telegrafista-chefe da ESS-


1, enquanto entregava ao Tenente Joe Nomers um papel com a mensagem decifrada. Para
não assustar os povos do Império, Perry Rhodan ordenara que todas as mensagens
expedidas no curso da missão fossem redigidas em código. Devia-se evitar de qualquer
maneira que a agitação nas diversas colônias e impérios estelares aumentasse ainda mais.
Na situação atual o Império Unido não podia dar-se ao luxo de entreter conflitos
internos.
Nomers lançou um olhar rápido para a mensagem. Segundo ela, o grupo de naves
comandado pela Eric Manoli acabara de chegar ao ponto de partida, de onde seria
conduzida a operação.
A Tristan poderia ir para lá.
No momento em que a nave-transmissora penetrasse no sistema de Verth, as três mil
naves da Frota Imperial lançariam um ataque arrojado contra um sistema ocupado pelos
blues, que não haviam instalado estações espaciais no mesmo. Os planetas desse sistema
eram mundos de metano e de gelo, motivo por que só poderiam ser habitados pelos blues,
no interior de recintos devidamente protegidos.
Apesar disso os blues considerariam as bases situadas nas proximidades de seu
próprio sistema tão importantes que lançariam mão de todo seu poderio para defendê-las.
Era nisso que se baseava o plano de Rhodan. Enquanto o ataque das naves do
Império mantivesse os gatasenses totalmente ocupados, a Tristan faria uma tentativa
arriscada de pousar no mais inóspito de todos os planetas de Verth.
Rhodan acabara de conduzir o grupo de naves a um ponto de onde o ataque
simulado poderia ser lançado em pouco tempo.
Nomers lançou um olhar para o relógio de bordo. Se tudo corresse conforme
desejavam, a Tristan deveria aparecer nas proximidades de ESS-1 em menos de vinte
minutos.
Ali ainda estaria a 9.842 anos-luz do mundo dos blues.
A órbita que descrevia em torno de Griez conduzira a ESS-1 para a face noturna do
planeta. Nomers mandara desligar a tela de observação da superfície. Mesmo na face
diurna do planeta não havia nada para ver, além das massas de gelo que cobriam tudo.
A Tristan pousaria num mundo de gelo igual a este. Seu comandante, o Coronel Mos
Hakru, tentaria conduzir a nave a um ponto situado pelo menos quinhentos metros abaixo
da superfície gelada.
No âmbito da Frota essa tentativa representaria um fato novo. Os cientistas mais
competentes haviam quebrado a cabeça sobre a melhor maneira de levar a operação a
bom termo.
De certa forma Nomers sentia-se satisfeito por não pertencer ao grupo de homens
que teriam de mergulhar sob o gelo. Era possível que a operação não fosse muito
perigosa, conforme afirmavam os cientistas, mas a sensação de não ter nada além de um
frio mortal acima da cabeça não devia ser nada agradável.
Dali a alguns minutos o Tenente Nashville voltou à sala de comando. Nomers
observou o oficial gordo enquanto este passava habilmente entre os diversos controles,
caminhando em sua direção.
— Já almocei, sir — disse, dirigindo-se a Nomers. — Além disso, fiz uma
verificação no transmissor. Pelo que dizem os técnicos, está tudo em ordem. Os acônidas
que trabalham com eles também estão satisfeitos. Dizem que só resta montar o outro
terminal, para podermos enviar pelo transmissor qualquer coisa que desejemos.
— Está bem — respondeu Nomers.
Nashville cruzou os braços sobre o peito.
— Não confio nesses acônidas — disse em tom pensativo. — O que acontecerá se
entre eles surgir algum fanático que pratique um ato de sabotagem?
Nomers passou a mão pela calva, como se quisesse afastar alguma coisa que lhe
comprimia a cabeça.
— Parece que sua antipatia pelos acônidas se restringe aos membros masculinos
dessa raça — disse em voz baixa.
O rosto de Nashville ficou muito vermelho.
— Bem que poderia ter imaginado que alguém lhe contasse esta história, antes que
eu fosse transferido para a ESS-1.
— Aqui o senhor terá oportunidade de recuperar sua patente de major que lhe foi
tirada, tenente — disse Nomers em tom enfático.
— Amei essa mulher — cochichou Nashville. — Não poderia imaginar que ela só
me usava para obter certas informações sobre acontecimentos no seio da Frota, de que os
acônidas não deveriam ter tido conhecimento.
— O senhor é um oficial — disse Nomers. — Já está na hora de subordinar seus
sentimentos à inteligência. Seus talentos são altamente apreciados, e por isso resolveram
dar-lhe outra chance. Em condições normais nem lhe deveria ter contado isso, mas quero
que saiba a quantas anda.
— Obrigado, sir — disse Nashville.
Nomers procurou compreender o comportamento de Nashville. Perguntou a si
mesmo se também seria capaz de cometer um erro destes. Teve de confessar que só
poderia responder a esta pergunta se fosse colocado em situação idêntica. Não seria justo
desconfiar de Nashville por causa de seu passado, ou até condená-lo.
Em sua longa carreira Nomers conhecera muitos oficiais, e Nashville sem dúvida
era um dos melhores.
— Localizamos alguma coisa, senhor — exclamou Benton, o controlador-chefe. —
Um objeto voador desconhecido aproxima-se do sistema.
Era a Tristan!
Nomers soltou um suspiro de alívio. Até que enfim alguma coisa estava
acontecendo. A espera chegou ao fim.
— Solicitar sinal de identificação — ordenou.
Dali a alguns minutos a Tristan e a ESS-1 entraram em contato pelo rádio.
Nomers anunciou que Rhodan e suas três mil naves estavam preparados. Até ali
tudo correra conforme fora planejado. A Tristan também não comunicou nada de
anormal.
No instante em que a Tristan interrompeu o contato de rádio com a ESS-1, a nave
ainda se encontrava a exatamente 9.842 anos-luz do centro do Segundo Império.
Essa distância começou a diminuir muito depressa.
5

Um homem malvado poderia deixar qualquer cientista desesperado. Bastaria que lhe
pedisse uma prova da existência de uma nave espacial durante o vôo linear. O cientista
estaria diante de um problema insolúvel, a não ser que se encontrasse a bordo da nave.
Realmente, uma nave espacial que se encontrava no interior da zona de libração
deixava de existir, ao menos para o observador situado no universo einsteiniano e para
todos aqueles que se encontrassem em qualquer um dos planos n-dimensionais
conhecidos.
Durante o vôo linear a nave praticamente permanece em um meio por ela mesma
criado, num espaço que não pode ser influenciado a partir de nosso universo ou de
qualquer uma das dimensões de ordem superior. Na criação da chamada zona semi-
espacial, a enorme força de propulsão do conversor kalup aproveita a instabilidade entre
o espaço normal e um suposto hiperespaço (admite-se com segurança que existem
inúmeros hiperespaços, criando suas próprias leis físicas no espaço intermediário.
O nosso conjunto integrado espaço-temporal nem de longe possui a estabilidade que
supomos. O perigo de provocar alterações através das influências por nós exercidas
sempre está presente. O incidente com o universo dos druufs é a melhor prova disso.
Mas para a astronáutica essa debilidade existente entre o espaço normal e os
hiperespaços oferece uma vantagem enorme: permite percorrer uma distância quase
infinita num tempo incrivelmente reduzido.
A descoberta prematura da Tristan só foi evitada graças ao fato de ela se ter
aproximado do sistema dos blues em vôo linear.
***
O Tenente Don Kilmacthomas estava prestes a infligir ao imediato da Tristan, o
Tenente Zang, uma derrota arrasadora no xadrez, quando os alto-falantes do sistema de
intercomunicação emitiram um estalo e a voz do Coronel Mos Hakru se fez ouvir.
— Atenção, todos os oficiais! — ordenou Hakru. — Compareçam imediatamente à
sala de comando. Sairemos em pouco tempo do espaço linear.
Zang deu um ligeiro empurrão no seu rei, derrubando-o e fazendo que rolasse para o
lado oposto do tabuleiro.
— Sou o campeão de xadrez a bordo desta nave — disse, contrariado — mas perto
do senhor pareço um simples principiante.
Kilmacthomas levantou-se e colocou as figuras numa caixa.
— O senhor tem um ótimo talento — disse em tom benevolente. — Se treinar
bastante, talvez possa conseguir sua revanche dentro de alguns anos.
Zang sorriu e abotoou o uniforme. Kilmacthomas guardou o tabuleiro num armário,
sem demonstrar muita pressa.
— Vamos andando — disse.
Os dois tenentes saíram para o corredor. A Tristan tinha 500 metros de diâmetro, e
tal qual na ESS-1 o maior espaço era ocupado pelo transmissor. O armamento da Tristan
era superior ao da ESS-1, mas a bordo da nave ninguém chegaria ao ponto de acreditar
que a nave pudesse resistir a um ataque maciço.
Os tripulantes sabiam perfeitamente que, ao penetrarem na área do inimigo, eles se
expunham a um perigo mortal. Perry Rhodan tivera o cuidado de evitar que algum pai de
família fosse destacado para servir na Tristan.
Quando Zang e Kilmacthomas entraram na sala de comando, os outros oficiais já
estavam reunidos. O Coronel Hakru desocupara a poltrona de comando, para que a
mesma fosse usada pelo primeiro piloto Nortruk.
Sua figura delicada estava encostada à mesa com os mapas.
— Só retornaremos por alguns instantes ao universo einsteiniano, porque o perigo
de sermos descobertos é grande. Nessa oportunidade transmitiremos um impulso
instantâneo para a Eric Manoli. Diante disso Perry Rhodan dará início ao ataque simulado
contra o sistema vizinho. — Hakru tossiu. — Não sabemos por quanto tempo o chefe
conseguirá sustentar os ataques, mas para evitar muitas perdas deveremos andar depressa
depois da emissão do impulso, para atingir o décimo quarto planeta do sol Verth e
camuflar nossa presença no mesmo.
— Uma pergunta, senhor — disse o Major Lasalle, primeiro oficial da nave. — Não
poderemos prosseguir ininterruptamente em vôo linear, até atingirmos aquele mundo de
gelo e pousarmos no mesmo. Durante a manobra de aproximação teremos de sair da zona
protegida do semi-espaço.
— É verdade — disse Hakru. — Voltaremos ao universo normal a intervalos
regulares. Só podemos fazer votos para que o ataque do grupo de naves de nossa frota
deixe os blues tão perturbados que os mesmos não tenham tempo de cuidar do planeta
exterior de seu sistema.
— Nave retornando ao espaço normal, senhor — exclamou Nortruk em sua
poltrona.
Num homem baixo como Hakru, a calma inabalável quase chegava a ser apavorante.
— Façam a localização espacial — disse sua voz, interrompendo o silêncio.
Telas acenderam-se e aparelhos de localização foram ligados. Os “olhos” eletrônicos
e positrônicos da Tristan atravessaram o espaço. Instrumentos ultra-sensíveis captavam
qualquer impulso energético emitido por outras naves.
— Localização espacial em funcionamento, senhor — anunciou Brunner, o
controlador-chefe.
— A nave acaba de retornar ao universo normal — disse Nortruk.
Os olhos dos homens reunidos na sala de comando dirigiram-se para as telas.
Haviam dito a eles que se encontrariam com outras naves, e também que seriam muitas
naves.
Mas ninguém lhes dissera que o número de localizações diretas seria tão elevado
que nenhum ser humano seria capaz de contá-las. Só mesmo o dispositivo positrônico
poderia desempenhar essa tarefa.
O reflexo das luzes de controle iluminou o rosto de Hakru, que se manteve
impassível que nem uma máscara.
— Impulso instantâneo para a nave-capitânia! — ordenou.
— Impulso emitido! — gritou o radioperador junto ao hipercomunicador.
Hakru virou a cabeça. Levantou os braços como se quisesse dizer alguma coisa. O
movimento quase chegava a parecer desajeitado.
— Nortruk, retorne ao vôo linear — limitou-se a dizer.
As telas apagaram-se e os indicadores dos painéis voltaram à posição zero.
Acelerando fortemente, a Tristan penetrou na zona de libração.
O Major Lasalle foi o primeiro a falar.
— E muito pior do que esperávamos, senhor.
— E, sim — confirmou Hakru. — O tráfego espacial entre os diversos sistemas é
muito intenso. Até parece que a fertilidade dos blues foi transmitida às suas espaçonaves.
Ninguém riu. Uma única pergunta ocupava o pensamento daqueles homens: como
poderia a Tristan passar entre as incontáveis naves sem que sua presença fosse notada?
As primeiras interpretações realizadas pelo computador positrônico de bordo não
contribuíram para levantar o ânimo da tripulação. Segundo essas interpretações, havia na
área estações espaciais de tamanho descomunal. Sem dúvida serviam para encobrir e
proteger as outras naves. E nessas estações certamente havia equipamentos de
localização, que perscrutavam o espaço e identificavam prontamente qualquer intruso.
— Temos de voltar — disse Zang. Evidentemente só estava dizendo o que quase
todos pensavam.
— E isso mesmo, senhor — confirmou o Major Lasalle. — Nunca conseguiremos
pousar.
— Todos são da mesma opinião? — indagou Hakru.
— Não! — disse uma voz resoluta.
Os oficiais viraram abruptamente a cabeça e seus olhares cruzaram com o do
Tenente Kilmacthomas, que acabara de pronunciar o “não” decisivo.
— Qual é mesmo sua opinião, tenente? — perguntou o coronel.
Kilmacthomas sorriu como se sua tarefa consistisse exclusivamente em pronunciar
uma conferência num seminário. Até parecia que a vida daqueles homens não estava em
jogo.
— Mesmo que se queira admitir que os blues possuem muitas naves — principiou
— seu número não pode ser tão elevado como acreditamos neste momento. Suponho que
entre os diversos sistemas existem rotas espaciais regulares, pelas quais trafegam frotas
inteiras para sustentar o comércio. Tivemos o azar de vir à tona justamente num lugar
destes, onde no momento havia uma grande concentração de naves. Podemos ter certeza
de que nem em todos os lugares será a mesma coisa.
— De onde tira essa certeza, tenente? — perguntou o Major Lasalle. — Como
sabemos, o senhor não tem experiência prática na astronáutica.
Kilmacthomas parecia não ter notado a ironia que havia nessa observação. Seu rosto
continuou amável.
— Há numerosos precedentes na História, que provam que até mesmo um homem
experiente comete seus erros — disse sem abalar-se. — Convém lembrar ainda que
dentro de pouco tempo essas naves voarão confusamente de um lado para outro, que nem
um bando de vespas espantadas. Isso acontecerá no momento em que o Administrador
Geral lançar seu ataque simulado.
Lasalle tinha uma resposta áspera na ponta da língua, mas Hakru interrompeu a
discussão com um gesto ligeiro.
— Basta, senhores — disse em tom penetrante. — O destino da Tristan não pode ser
outro senão o gigantesco sol azul denominado Verth.
6

As três mil naves terranas pareciam ter sido trazidas por uma mão de fantasma.
Saíram do semi-espaço e penetraram em alta velocidade no pequeno sistema solar. Na
ponta da formação ia uma esfera de 1.500 metros de diâmetro. Era a Eric Manoli.
O sol ao qual se dirigiam só possuía três planetas. Eram três mundos imobilizados,
que gravitavam a grande distância em torno de seu sol. Os blues só haviam instalado
pequenas estações por ali.
Duas minúsculas naves-disco sem blindagem de molkex fizeram a tentativa
temerária de deter a formação. Rhodan não gostava de investir contra duas naves com
tamanha superioridade de forças, mas era necessário que os blues acreditassem que tudo
estava em jogo. Sem dúvida um aviso de alerta já havia chegado ao sistema de Verth.
— Procurem não destruir essas naves completamente — ordenou aos homens que
ocupavam a central de comando de fogo. — Dêem-lhes uma oportunidade de escapar.
Dentro de alguns segundos as naves-disco estavam reduzidas a destroços. Conforme
previra Rhodan, procuraram salvar-se pela fuga.
Rhodan mandou que as naves lançassem o primeiro ataque contra uma estação
situada em terra firme. Termobombas, suficientes para destruir uma povoação bem maior,
caíram na superfície, abrindo crateras na neve de metano e amoníaco.
Torpedos de neutrinos cortaram o espaço. Os homens que ocupavam os postos de
controle levaram-nos a explodir em pontos não muito perigosos, para que os blues,
quando aparecessem com sua frota de guerra, tivessem um bonito fogo de artifício.
O pequeno sistema transformou-se num inferno. As naves disparavam todas as
armas contra alvos que praticamente não tinham a menor importância. A atenção
daqueles homens estava dirigida principalmente para os instrumentos de localização.
Rhodan, Bell e Dantur fitavam as telas numa expectativa tensa. Será que os blues se
deixariam enganar pelo estratagema? A fúria destrutiva que sentiam diante de qualquer
ser que não pertencesse à sua raça faria com que aparecessem por ali.
Regat Waynt foi o único que parecia impassível diante dos acontecimentos. Retirou-
se para a mesa dos mapas, sem demonstrar o menor interesse.
Pouco menos de trinta minutos se tinham passado, quando uma das naves de
Rhodan estacionadas fora do sistema deu o primeiro alarme.
Rhodan endireitou o corpo. Seu rosto magro parecia indiferente.
— Estão chegando — limitou-se a dizer.
7

O Coronel Mos Hakru notou que alguém se aproximara pela retaguarda. Olhou para
trás e viu o rosto juvenil do Tenente Kilmacthomas. Sua primeira reação foi de
contrariedade.
— O senhor sempre fica rindo, tenente? — perguntou.
— Quase sempre, senhor — confessou Kilmacthomas. Um dos seus braços
compridos passou junto ao corpo do Coronel Hakru e apontou para a tela.
— Quase poderíamos dizer que é um milagre — disse. — Receei o tempo todo que
não conseguiríamos.
A raiva de Hakru desvaneceu-se. Kilmacthomas tinha razão. Realmente era um
milagre terem chegado a esse planeta. O décimo quarto mundo do sol Verth, um bloco de
gelo de diâmetro superior a 6 000 quilômetros, que não era maior que Plutão, apareceu na
tela da Tristan, que já se preparava para pousar.
Nortruk, o primeiro piloto, manipulava o mecanismo de direção da nave. No caso da
Tristan a dificuldade não era o pouso propriamente dito, mas a operação planejada, para
fazer a nave penetrar profundamente no gelo.
Os canhões térmicos de alta potência derreteriam a camada de gelo, para que a
Tristan pudesse afundar na mesma. A água proveniente da fusão voltaria a cobrir a nave e
congelaria de novo.
Era assim que se imaginava a operação de pouso. Mas apesar de tudo surgiria uma
abertura afunilada, já que grande parte do líquido se evaporaria sob a ação dos raios
térmicos.
Kilmacthomas não se sentiu nada à vontade enquanto contemplava o quadro que se
oferecia a seus olhos. Tinha um grande volume de conhecimentos teóricos sobre os
mundos de gelo e seria capaz de encher volumes inteiros com descrições sobre o
comportamento do gelo nas mais diversas composições químicas. Mas havia uma
diferença entre estar sentado atrás de uma escrivaninha ou encontrar-se a bordo de uma
espaçonave que pretendia penetrar quinhentos metros abaixo da superfície de gelo de um
planeta desconhecido.
Provavelmente os outros tripulantes também não se sentiam muito felizes.
Kilmacthomas sentiu-se satisfeito porque Hakru era um comandante que não
admitia rodeios em seus diálogos. Sabia conduzir seus homens. E Kilmacthomas
constatara que o Major Lasalle não deixava que as considerações egoísticas
comandassem seus pensamentos. O primeiro-oficial queria evitar maiores riscos, e não se
poderia dizer que isso representasse uma qualidade negativa.
A Tristan desceu bem em cima da linha do equador. Os instrumentos de localização
não indicaram a presença de qualquer nave inimiga numa proximidade que pudesse
tornar-se perigosa. Revelaram que várias espaçonaves dos blues tinham mudado de rumo.
Na opinião de Mos Hakru, isso era devido ao ataque simulado de Rhodan, já em
andamento. A confusão instalara-se entre os gatasenses. Teriam de aproveitar o tempo de
que dispunham, pois os chefes gatasenses acabariam descobrindo que tinham caído num
truque.
A Tristan fora reformada para o fim especial de suportar temperaturas extremas,
bem como pressões muito elevadas. Os campos antigravitacionais garantiriam uma
segurança total embaixo do gelo, mas sempre havia a possibilidade de que os geradores
falhassem. Nesse caso tudo dependeria da estabilidade do casco da nave.
A voz calma de Nortruk foi anunciando as altitudes cada vez menores.
Kilmacthomas lançava os olhos constantemente para as telas dos instrumentos de
localização espacial. Esperava que fossem atacados a qualquer momento, mas por
enquanto tudo correra bem.
Agindo com a tranqüilidade de um piloto experimentado, Nortruk e seus auxiliares
colocaram a nave sobre o gelo.
— Acabamos de pousar, senhor — limitou-se a anunciar.
Hakru despertou de sua imobilidade. Depois de um ligeiro exame, constatou-se que
a nave descera numa depressão pouco profunda. Em torno da Tristan tudo era gelo. Verth,
o gigantesco sol azul, ficava tão distante que sua luz mal bastava para que se distinguisse
qualquer coisa do lado de fora. Kilmacthomas teve a impressão de que a superfície era
entrecortada por montanhas íngremes. As substâncias congeladas formavam figuras
grotescas.
Os canhões térmicos estavam dispostos de forma anelada em torno da nave. Uma
vez postos a funcionar, poderiam atingir praticamente todos os pontos situados num raio
de 600 metros de diâmetro. Abririam um caminho por onde a Tristan desceria para as
profundidades.
Kilmacthomas manteve-se numa expectativa tensa. Talvez estivessem cavando um
gigantesco túmulo gelado, de onde jamais conseguiriam voltar.
— Disparar canhões térmicos! — ordenou Hakru depois de certificar-se de que não
havia nenhuma nave estranha nas proximidades do planeta.
Os homens que se encontravam no interior da nave não viram quase nada do fogo de
artifício desencadeado do lado de fora. Os estabilizadores da Tristan inquietaram-se
quando Nortruk mandou recolher as pernas de aterrissagem, que se haviam tornado
inúteis. A Tristan ficou num ângulo de dez graus em relação ao plano de pouso, mas os
canhões térmicos não demoraram a sanar a irregularidade, de tal forma que o poço que se
ia formando levasse diretamente para baixo.
Kilmacthomas notou que Hakru evitava olhar para um dos oficiais. O major não
tirava os olhos dos controles de estabilização. Kilmacthomas sabia que qualquer desvio
acentuado em relação à vertical significaria o fracasso da missão. Nesse caso teriam de
dar-se por satisfeitos se conseguissem pôr-se a salvo numa decolagem rápida.
— Nave descendo, sir — disse Nortruk, que parecia não ter nervos enquanto estava
sentado junto aos controles direcionais da nave.
Kilmacthomas lançou um olhar para o piloto musculoso, de cabelos negros. Nortruk
parecia ser um homem comum, mas isso ele não era.
“Nortruk, que nome estranho!”, pensou Kilmacthomas. “Quem serão os
antepassados desse homem?”
— Cem metros, senhor! — gritou Nortruk.
A Tristan continuava a descer. Kilmacthomas procurou imaginar o que estava
acontecendo fora da nave. Os canhões térmicos estavam formando uma abertura
gigantesca no gelo. O tenente não acreditava que a camada de gelo tivesse mais que
alguns quilômetros de espessura. Quanto à configuração da superfície propriamente dita
do planeta, só se podia adivinhar.
— Inclinação de quinze graus! — gritou Lasalle com a voz rouca, numa advertência
dirigida a Nortruk.
Kilmacthomas não compreendia como numa situação destas, que representava uma
tarefa jamais enfrentada, um piloto pudesse reagir com tamanha calma, acionando os
propulsores regulados para a potência mínima de forma a colocar a nave numa posição
que se aproximava do normal.
Mas Nortruk conseguiu.
— Oito graus — disse Lasalle em tom de alívio. Kilmacthomas ouviu seu próprio
suspiro de alívio.
— Duzentos metros — anunciou Nortruk. As indicações de profundidade
correspondiam ao centro da nave. Portanto, ainda havia uma parte da nave fora do gelo.
O movimento descendente tornava-se cada vez mais lento. Kilmacthomas imaginou
que o gelo derretido e milhões de pequenos blocos se acumulavam no fundo da
escavação. Como a quantidade de calor que podia escapar para cima era cada vez menor,
os canhões térmicos levavam mais tempo para abrir caminho à nave.
— Trezentos metros, senhor — disse Nortruk.
Kilmacthomas teve de reprimir um desejo cada vez mais intenso de fazer alguma
coisa contra o afundamento no gelo. Não era que tivesse medo, mas havia um sentimento
desagradável que se tornava cada vez mais intenso. As mãos ficaram úmidas de
nervosismo. Certamente os outros, inclusive o Coronel Hakru, experimentavam
sensações semelhantes. Justamente para Hakru, devia ser muito difícil fazer a razão
triunfar sobre a vontade cega de interromper a missão.
— Há uma forte elevação da temperatura no setor sete — anunciou Lasalle, que não
tirava os olhos dos controles.
Hakru e os oficiais estavam nervosos.
— Estamos cozinhando em nossa própria calda, senhor — observou Nortruk em
tom seco.
— A temperatura continua a subir rapidamente, senhor — gritou Lasalle com a voz
estridente.
— Quatrocentos metros, senhor! — anunciou Nortruk.
Hakru esforçou-se para tomar uma decisão rápida. Para ficarem em segurança
absoluta, teriam que descer pelo menos mais cem metros. Acontece que naquele
momento a nave estava exposta a um grande perigo. Deveria assumir o risco de fazê-la
baixar ainda mais?
— Pelo amor de Deus, senhor, temos de parar — gemeu Lasalle, desesperado.
Hakru pediu que lhe fossem fornecidos os dados que estavam sendo registrados.
Num certo ponto do casco o calor quase havia chegado ao limite de tolerância, embora
todos os equipamentos fossem capazes de fazê-lo baixar.
— Desligar os canhões térmicos do setor sete — ordenou Hakru.
Nortruk virou-se abruptamente.
— Isso nos derrubará, senhor — ponderou.
— Qual é a profundidade? — indagou Hakru.
— Quatrocentos e cinqüenta metros, senhor.
Kilmacthomas notou que suas mãos se crispavam em torno da mesa com os mapas.
A respiração dos homens era apressada. Até parecia que acabavam de enfrentar uma
corrida.
— Temperatura baixando, senhor. A inclinação já chega a dezesseis graus.
— Voltem a acionar os canhões térmicos — ordenou Hakru.
— Quinhentos metros, senhor — anunciou Nortruk.
A Tristan atingiu a profundidade de 570 metros com uma inclinação pouco inferior a
vinte graus. Hakru mandou que os canhões térmicos fossem desligados. A temperatura no
setor sete era pouco superior ao limite máximo e baixava constantemente.
Nortruk levantou-se. Estava exausto. Sem demonstrar nenhuma pressa, Hakru fez
seu corpo delicado passar junto ao Major Lasalle e tomar a direção de Nortruk. Bateu no
ombro do piloto.
— Conseguimos — disse com um suspiro de alívio.
Havia um tom agressivo na voz de Nortruk, quando este respondeu:
— Ouça bem, senhor. Eu não voltaria a fazer isso. Nunca!
— Compreendo o que está sentindo, Tenente Nortruk — disse Hakru.
O piloto fez meia-volta e foi saindo com as pernas duras. Kilmacthomas pensara que
se sentiria aliviado assim que chegassem lá embaixo.
Mas não era nada disso.
Haviam realizado uma façanha ao fazer a nave penetrar meio quilômetro no gelo.
Mas Don Kilmacthomas imaginava que isso seria apenas o começo.
8

Seria inútil tentar contar as naves dos gatasenses que penetravam no sistema que
Rhodan escolhera para sua manobra de camuflagem, vindas de todas as direções. Dentro
de pouco tempo o grupo de naves do Império Unido viu-se diante de uma enorme
superioridade de forças.
A maior parte das naves dos blues dispunha de blindagens de molkex, que as
tornavam praticamente indestrutíveis. A única vantagem das naves terranas era a
mobilidade. A capacidade de aceleração dos veículos espaciais esféricos era muito
superior ao das naves-disco.
O Coronel Kors Dantur fez a Eric Manoli atravessar o campo de batalha em
manobras temerárias. Rhodan acompanhou a luta pela tela de imagem. Os oficiais que
operavam as centrais de comando de fogo não tiveram outra alternativa senão dedicar sua
atenção às naves inimigas que não dispusessem de blindagem de molkex. Só assim
conseguiriam impactos eficazes.
Rhodan dirigiu-se a Waynt, o acônida.
— Agora o senhor tem uma oportunidade de ver estas naves — disse. — Não
acredito que consiga novos dados sobre o molkex, mas não custa tentar.
— Naturalmente — respondeu Regat Waynt, que não parecia abalar-se nem um
pouco com o conflito cósmico.
As formações de naves terranas experimentaram as primeiras perdas. As naves
aproximaram-se velozmente, apesar dos ataques furiosos dos blues, e conseguiram salvar
parte dos náufragos espaciais. Pequenos barcos espaciais saíam das naves destruídas,
pondo-se a salvo nos hangares de outros veículos espaciais esféricos.
Se não fosse a velocidade superior, as coisas teriam ficado bem ruins para os
couraçados do Império. Rhodan percebeu que sua posição piorava a olhos vistos.
Mas a mensagem de rádio da Tristan, que anunciasse logo o pouso bem-sucedido.
Rhodan olhou para o relógio. Só lhe restava fazer votos de que no sistema de Verth tudo
tivesse corrido segundo o plano.
A Eric Manoli atravessou em alta velocidade um grupo de naves inimigas,
espalhando a destruição entre as naves-disco não protegidas. Mesmo quando os raios
mortíferos atingiam camadas de molkex, a força dos mesmos bastava para espalhar a
confusão.
Um cruzador terrano da classe “cidade” explodiu nas imediações da nave-capitânia.
Rhodan cerrou os dentes. Valeria a pena esperar mais? Por que a Tristan não dava sinal de
vida?
— As coisas começam a ficar pretas para nós — observou Bell, que se encontrava
ao lado de Rhodan. — Acho que logo devemos bater em retirada.
Perry Rhodan olhou para o relógio de bordo. Devia dar mais uma chance ao Coronel
Mos Hakru e aos tripulantes da Tristan.
— Podemos agüentar mais dez minutos sem grandes perdas — respondeu. — Nunca
pensei que nosso ataque desencadeasse uma reação como esta entre os blues.
Esperávamos sua intervenção, mas não acreditávamos que mobilizassem uma frota
inteira.
— Hakru deve ficar satisfeito com isso — disse Bell laconicamente e passou a mão
pelo cabelo curto.
Kors Dantur levou a nave-capitânia para perto de alguns cruzadores que estavam
sendo acossados pelas naves inimigas. Os campos defensivos do supercouraçado de 1
500 metros de diâmetro estremeceram quando quatro inimigos atacaram a Eric Manoli de
vez.
Com grande habilidade Dantur levou a nave esférica para fora da área de perigo.
Rhodan, que mantinha contato pelo rádio com todas as naves, deu ordem para que
se retirassem aos poucos.
— Não vamos fugir logo para o espaço linear — ordenou. — Devem ter a
impressão de que relutamos em sair daqui.
Quando os atacantes foram saindo do sistema, as naves-disco seguiram-nos
prontamente. Rhodan imaginava que a bordo das naves de molkex já se previa uma
vitória fulminante.
Depois de oito minutos a Tristan emitiu o impulso instantâneo que fora combinado.
Bell soltou um suspiro de alívio. Rhodan, que não acreditara mais no sucesso da
operação, transmitiu em tom de alívio a ordem para a fuga geral.
As naves da frota aceleraram e penetraram no semi-espaço, onde estavam a salvo.
Os blues golpearam o nada. As naves-discos atravessavam furiosamente o sistema, para
ver se agarravam um ou outro inimigo que ainda se encontrasse por lá.
As naves esféricas desapareceram com a mesma rapidez com que tinham aparecido.
A bordo da Eric Manoli Rhodan formulou uma restrição à observação triunfante de
Dantur:
— Sem dúvida a Tristan chegou ao lugar previsto, mas a maior dificuldade será
manter a posição.
Ninguém imaginava que essas palavras eram muito verdadeiras.
9

Duas horas depois da penetração bem-sucedida no gelo, o Tenente Don


Kilmacthomas conseguiu atingir a superfície propriamente dita do planeta com uma
broca gravitacional. Kilmacthomas dirigia os trabalhos daquela máquina especial a partir
da grande eclusa da Tristan. Já dispunham de um canal de quatro metros de diâmetro,
através do qual poderiam fazer chegar à superfície o gelo derretido. Além disso havia a
possibilidade de subir sempre que a situação o exigisse.
Depois disso Kilmacthomas e seus auxiliares iniciaram uma escavação sistemática
do gelo em torno da Tristan. Criaram corredores com numerosas ramificações e grandes
cavernas, em cujo interior os especialistas que chegariam pelo transmissor poderiam
armar seus acampamentos.
Kilmacthomas vivia levando amostras de gelo ao laboratório da nave, para que
fossem analisadas. Depois de algum tempo acreditava que já dispunha de todas as
informações de que precisava. Saiu do laboratório e apresentou seu relato ao Coronel
Hakru. Os homens dirigidos pelo técnico Masterson estavam abrindo mais uma galeria no
gelo.
— Por enquanto não será possível ir às cavernas sem o traje espacial — disse
Kilmacthomas. — Mesmo que façamos o bombeamento de oxigênio para o interior das
mesmas, teremos de esperar mais algum tempo. Descobri várias substâncias tóxicas que
se desprenderam durante a fusão.
— Transmitirei a informação à ESS-1 — anunciou Hakru. — Os especialistas
devem trazer o equipamento necessário.
Antes que Kilmacthomas tivesse tempo de responder, o alarme soou.
— Estamos sendo atacados — gritou Hakru, surpreso.
— Não senhor — contestou Kilmacthomas, enquanto pegava o traje espacial. —
Tomei a liberdade de modificar o sistema principal de alerta durante nosso trabalho. O
sinal foi expedido por Masterson. Alguma coisa não deu certo.
— Preciso falar com Masterson, sir — disse.
— Irei com o senhor — respondeu Hakru numa súbita resolução.
Kilmacthomas saiu do laboratório sem esperar pelo coronel. Na eclusa de ar
encontrou-se com um grupo de homens assustados. O Major Lasalle era um deles.
— O poço em que Masterson estava trabalhando desabou — gritou para
Kilmacthomas.
— Desabou?! — repetiu Kilmacthomas, zangado. — O senhor deve estar enganado.
— O sorriso juvenil desapareceu de seus lábios. Passou os olhos pelo grupo.
— Quem está operando o sistema de irradiação? — perguntou.
— O sargento Wallaby — respondeu Lasalle.
Kilmacthomas empurrou o major para o lado para avançar mais depressa. Uma vez
do lado de fora, encontrou o sargento com os braços cruzados sobre o peito, à frente da
pequena usina de força.
— Temos de tirar Masterson de lá, senhor — disse, dirigindo-se a Kilmacthomas.
O tenente fez um exame instantâneo da máquina.
— Quem deu ordem para desligar o sistema de irradiação? — perguntou em tom
penetrante.
Wallaby ficou nervoso. Sentiu a desgraça desabar sobre sua cabeça e não sabia
como fugir à mesma.
Apontou para trás com o polegar.
— Percebi que alguma coisa não estava certa, senhor — disse. — Pelo que
indicavam os controles, estávamos expelindo uma quantidade bem menor de água
derretida que o normal. Depois de algum tempo os ponteiros desceram para a marca zero.
— Hesitou um pouco. — Ali achei prudente desligar a máquina.
O Coronel Hakru saltou para fora da eclusa e aproximou-se dos dois. Kilmacthomas
não lhe deu nenhuma atenção. Até mesmo pelo rádio do capacete sua voz parecia
perigosamente tranqüila, quando disse a Wallaby:
— Se não disser logo a verdade, sargento, farei com que seja chamado à Justiça por
ter assassinado doze homens plenamente capazes.
O rosto de Wallaby assumiu um tom sombrio por baixo do visor do capacete. Os
braços do sargento caíram junto ao corpo. Lançou um olhar suplicante para Hakru.
— Vamos logo — disse o coronel com a voz fria. — Fale, Wallaby.
— Masterson comunicou pelo rádio que faria uma pequena pausa — principiou
Wallaby com a voz trêmula de medo. — Pensei que seria preferível desligar o mecanismo
por um instante, a fim de não forçar a máquina. Afinal, no momento o grupo de
Masterson não estava derretendo nenhum gelo.
— Continue — insistiu Kilmacthomas.
— Depois de algum tempo Masterson voltou a chamar para perguntar por que de
repente o gelo derretido estava saindo tão devagar. Voltei a ligar a máquina, mas ela não
funcionou.
O Tenente Kilmacthomas expeliu ruidosamente o ar.
— Temos de fazer alguma coisa para salvar Masterson — disse Hakru. — O senhor
é perito no assunto, tenente. O que devemos fazer?
— Basta que a máquina deixe de funcionar por alguns minutos para que o canal que
leva para cima seja obstruído pelo gelo. A água proveniente da fusão do gelo logo formou
uma crosta dura. Quando Masterson e seus companheiros voltaram a fazer uso das armas
térmicas que traziam consigo, o gelo derretido não podia sair. Acumulou-se no corredor
atrás do grupo e deixou-o preso no gelo.
— Pelo amor de Deus — exclamou Hakru. — Wallaby, se alguma coisa aconteceu a
esses homens, eu o mandarei colocar na superfície do planeta sem traje protetor. Seu
idiota!
O sargento engoliu em seco, mas não se atreveu a dizer qualquer coisa.
— E agora? — perguntou Hakru. — Será que ainda estão vivos?
— Se não demoraram a desligar as armas térmicas, ainda podem estar vivos — disse
Kilmacthomas. — Acontece que o fato de que não estão entrando mais em contato
conosco contradiz esta esperança.
— Mande trazer armas térmicas, Wallaby. Sairemos à procura do grupo de
Masterson — ordenou Hakru.
O sargento ficou satisfeito por poder retirar-se.
— Temos de esperar, senhor — objetou Kilmacthomas. — Antes de mais nada o
canal tem de ser aberto a fogo.
— Acontece que vidas humanas estão em jogo!
— Já fiz minhas experiências com o gelo, senhor — disse Kilmacthomas. — Não
pense que eu perderia um segundo em iniciar imediatamente a operação resgate. Mas se
não criarmos uma saída para o gelo derretido, colocaremos em perigo a vida de outras
pessoas.
— Está bem — resignou-se Hakru. — Encarregue-se da operação de resgate.
— Obrigado, senhor — respondeu Kilmacthomas e saiu correndo para preparar a
broca gravitacional. Desta vez a operação foi muito mais rápida, porque praticamente só
havia necessidade de perfurar a camada de gelo que se formara na superfície.
Kilmacthomas esperou impacientemente que a broca voltasse a aparecer no canal.
— Ligar o sistema de irradiação! — gritou para o cabo Lessink, que se encarregara
das operações.
Assim que a máquina começou a trabalhar, Kilmacthomas pegou uma arma térmica.
— Vamos tirar Masterson de lá — ordenou.
Dois técnicos também se muniram de armas térmicas e penetraram na galeria em
que o grupo de Masterson estava preso. Logo esbarraram na barreira formada pelo gelo
que não se escoara com a rapidez necessária.
Kilmacthomas dividiu as armas térmicas por toda a largura da galeria e começaram
a abrir caminho. O equipamento de irradiação funcionava impecavelmente.
Kilmacthomas mandou que usassem as armas térmicas com mais cuidado, para não
ferirem os eventuais sobreviventes. Dessa forma só conseguiram avançar muito devagar.
Depois de algum tempo surgiu a primeira abertura no gelo.
— Parem! — ordenou Kilmacthomas.
Mandou que os homens recuassem alguns passos e desligassem as armas térmicas.
Com muito cuidado abriu um buraco maior no gelo, a fim de lançar os olhos para o outro
lado.
Aproximou-se numa atitude que quase chegava a ser hesitante.
Masterson e mais onze homens jaziam no interior de uma caverna de gelo de apenas
dez metros quadrados. Os braços e as pernas de alguns deles estavam presos no gelo. Ao
ver os capacetes abertos de dois homens, Kilmacthomas deduziu que o pânico irrompera
entre eles.
Não havia sobreviventes.
Kilmacthomas afastou-se da abertura. Estava profundamente abalado. Hakru veio
correndo pela galeria.
— Já os encontrou? — perguntou.
Kilmacthomas parecia olhar através dele.
— Estão lá dentro — respondeu com a voz apagada. — Chame alguns homens com
macas, para que possamos levar os cadáveres a bordo.
O rosto do coronel endureceu.
— Nada de macas — ordenou. — Estes homens ficarão onde estão. Esta galeria será
fechada. Escavaremos outra. O Major Lasalle preparará os funerais. — Afastou-se. — O
sargento Wallaby ficará detido a partir deste momento.
Com a morte dos doze homens a desgraça desabou sobre a Tristan.
E nunca mais a abandonaria...
10

Conforme as ordens do Coronel Mos Hakru, os doze homens acidentados


continuaram no seu túmulo de gelo. Hakru leu algumas passagens da Bíblia e ressaltou
que aqueles homens haviam morrido enquanto lutavam pela Humanidade e raças aliadas.
Depois disso derreteram uma porção de gelo para fechar a caverna e Hakru mandou que a
galeria fosse desativada.
O incidente causara uma profunda depressão entre os tripulantes. Alguns homens
queriam que Wallaby fosse submetido a um processo sumário, mas Hakru recusou sem
maiores comentários.
— De qualquer maneira precisamos arranjar uma ocupação para os tripulantes —
disse, dirigindo-se a Lasalle e Kilmacthomas enquanto discutiam a situação logo depois
dos funerais. — Os trabalhos têm de ser acelerados ainda mais, para que o transmissor
possa entrar em ação. Quando chegarem os especialistas da ESS-1, o moral dos homens
subirá de novo.
Lasalle e Kilmacthomas eram da mesma opinião. O tenente encarregou-se
pessoalmente da direção dos trabalhos nas galerias principais. Depois de sete horas
Kilmacthomas voltou para a Tristan.
— Tudo bem, coronel — disse, dirigindo-se a Hakru. — Já temos dezoito
corredores interligados e cinco galerias principais. Além disso fundimos nichos no gelo
em diversos lugares. Acho que basta.
— Descanse um pouco, Kilmacthomas — respondeu Hakru. — O mais importante
já foi feito. Avisaremos a ESS-1, para que as estações do transmissor comecem a operar.
Acho que dentro de uma hora o primeiro especialista estará aqui.
Kilmacthomas voltou a sorrir pela primeira vez depois de algumas horas, embora
ainda estivesse bastante abatido. Masterson e os outros homens mortos não podiam ser o
único motivo da depressão. O tenente gostaria de saber por que ficava mergulhado em
reflexões vãs. Afinal, haviam concluído o trabalho sem que ocorressem novos
contratempos. Ao que parecia, não tinham sido descobertos pelos blues.
Kilmacthomas levantou-se.
— Irei ao meu camarote, senhor — disse, dirigindo-se a Hakru. — Se precisar, pode
chamar-me.
Retirou-se da sala de comando. No corredor encontrou-se com Nortruk, que esboçou
um sorriso tímido. Kilmacthomas lembrou-se que depois do momento em que
começaram a penetrar no gelo não vira mais o piloto.
— Acho que os nervos me estão pregando uma peça — disse o homem de cabelos
negros. — Falarei com o coronel para pedir minha demissão. Afinal, existem outros
trabalhos além do de piloto.
Kilmacthomas ouviu a tristeza que vibrava naquela voz. Refletiu sobre a melhor
maneira de livrar o homem das suas preocupações.
— O senhor é um bom piloto — disse sem muita diplomacia. — Hakru não
concordará em ficar sem o senhor.
Nortruk esboçou um sorriso e saiu andando. Kilmacthomas seguiu-o com os olhos.
Pôs-se a refletir. Antigamente sempre conseguira convencer os homens, mas depois do
acidente sofrido por Masterson já não tinha o menor poder de persuasão. Reconheceu que
nem sequer o trabalho nas galerias fora realizado com muita convicção.
Abriu a porta do camarote. O Tenente Zang estava sentado na cama. Colocara o
tabuleiro de xadrez sobre a mesa.
— Rei de E2 para E4 — disse a título de cumprimento.
— Por que todo esse formalismo? — perguntou o tenente e fez um lance inicial sem
sentido.
Zang sorriu e pôs Kilmacthomas em xeque-mate.
11

Quando o Coronel Joe Nomers chegou em companhia do Tenente Nashville, a


enorme sala em que ficava o transmissor acônida da ESS-1 parecia um acampamento
militar. Os dois vinham da sala de comando. Há alguns minutos Nomers recebera de
Rhodan a comunicação de que a Tristan chegara ao destino. O Administrador Geral já
retirara o grupo de naves da área do Segundo Império.
Os especialistas, agentes e cientistas continuavam a chegar ininterruptamente a
bordo da ESS-1. Cada um trazia seu equipamento. Não demorou e a ESS-1 ficou
irremediavelmente superlotada. Melbar Kasom, um dos especialistas mais conhecidos da
USO, também chegara para que o transmissor o transportasse ao sistema de Verth.
Além disso alguns caças espaciais do último tipo seriam enviados à Tristan.
Segundo previa o plano de Rhodan, essas naves especiais de dimensões reduzidas
penetrariam profundamente no sistema de Verth. O uso de minitransmissores e o auxílio
de alguns mutantes deveria possibilitar a descida de alguns agentes em Gatas.
Nashville passou os olhos pela sala do transmissor e franziu o nariz.
— Devemos ter cuidado para não pisar no pé de ninguém — disse em tom
sarcástico. — Será que o senhor vê um pedaço de chão em que possamos colocar os pés?
Nomers sorriu. Conversaram com alguns dos homens que seriam transportados para
a Tristan.
— Os tripulantes da Tristan abriram galerias no gelo — disse Nomers, dirigindo-se
aos agentes. — Qualquer equipamento que queiram levar poderá ser instalado lá.
Prosseguiram na ronda. Alguns homens lhes fizeram perguntas, mas nenhum deles
demonstrou o menor nervosismo. Até parecia que penetrar no coração de um império
inimigo não era uma operação perigosa.
Nomers disse de si para si que estes homens estavam acostumados a arriscar a vida
no desempenho de suas funções. Qualquer missão que executavam era perigosa.
O transmissor da ESS-1 estava preparado para entrar em ação. Faltava apenas uma
breve mensagem da Tristan, e os primeiros homens poderiam entrar na máquina acônida.
Nomers lembrou-se de que, apesar de todos os esforços, ainda não haviam
conseguido construir um transmissor fictício do tipo que a Humanidade recebera de
presente do ser espiritual que habitava o planeta Peregrino. Depois que os dois aparelhos
insubstituíveis foram destruídos, os homens tentaram em vão criar algo de semelhante.
Nomers e Nashville voltaram à sala de comando. Não havia a menor dúvida de que
os homens que se encontravam na sala do transmissor sabiam perfeitamente o que
deveriam fazer. Dali a algumas horas chegou a mensagem tão esperada da nave Tristan. O
transmissor montado no décimo quarto planeta do sol Verth estava pronto para entrar em
ação.
Nomers ligou o intercomunicador.
— Aqui fala o comandante da Estação Eastside número um — disse. — Tenho uma
mensagem para os homens que passarão pelo transmissor. Na Tristan está tudo preparado.
Podemos iniciar o transporte. Nossos técnicos tomarão as providências necessárias para
que tudo corra sem contratempos. Também cuidarão dos caças especiais e dos outros
equipamentos. Os oficiais e tripulantes da Eastside número um lhes desejam muito êxito.
Dali a pouco chegou a mensagem que confirmava que o transmissor estava ligado.
Os primeiros especialistas prepararam-se para o salto que os levaria até a Tristan.
— Os blues terão uma surpresa — disse Nashville em tom de triunfo.
Estava muito enganado, porém.
***
Os primeiros homens saíram do arco do transmissor e cumprimentaram o Coronel
Mos Hakru, que assistia à operação. Os tripulantes da Tristan receberam os equipamentos
para levá-los imediatamente às galerias escavadas no gelo.
Hakru encarregara o Major Lasalle dos trabalhos de rotina a bordo da nave, pois
queria dedicar-se pessoalmente aos homens que fossem chegando. As coisas correram
melhor do que se esperava. Até parecia que os especialistas nunca haviam feito outra
coisa senão dar saltos através do transmissor. Dirigiram-se prontamente aos lugares que
lhes foram designados no interior da nave. Hakru viu Melbar Kasom entre os
especialistas da USO. A presença do ertruso provava que para Rhodan a missão era uma
coisa muito séria.
Praticamente todos os setores do Império estavam representados por grupos bastante
numerosos.
Menos de uma hora se passou, e verdadeiros enxames de homens enchiam a nave
Tristan. Na maioria eram terranos, mas Hakru constantemente via rostos cujo feitio
demonstrava que as pessoas não tinham nascido no planeta Terra.
Kilmacthomas chegou perto de Hakru com o rosto sonolento.
— Olá, tenente — disse o coronel a título de cumprimento. — Todo mundo está
satisfeito com os buracos que o senhor criou.
— Obrigado, senhor — disse Kilmacthomas. — Lembre-se de que nenhum dos
recém-chegados deve ir para lá sem traje espacial.
— As ordens neste sentido já foram transmitidas — disse Hakru para tranqüilizá-lo.
— Temos de aumentar o diâmetro do canal, para que os caças espaciais possam
decolar daqui.
— Quer que comece imediatamente?
— Aguarde até que todos tenham chegado, para não nos perturbarmos uns aos
outros — determinou Hakru. — Devemos ter um pouco de paciência na conquista do
sistema de Verth.
Kilmacthomas sorriu. Observou um grupo de cientistas que estava saindo do
transmissor. Os rostos pareciam taciturnos.
“Tomara que sejam mais otimistas que eu”, pensou Kilmacthomas.
Foi saindo em direção à eclusa de ar. Enquanto o transmissor estava funcionando,
cuidaria da broca gravitacional. Sua tarefa era cuidar do gelo. Era um erro preocupar-se
com os problemas dos outros. Enfiou-se apressadamente num traje espacial. Era possível
que seu nervosismo persistente resultasse das canseiras do primeiro vôo pelo espaço.
Saltou da eclusa. O cabo Lessink estava agachado junto ao equipamento de
irradiação; parecia cansado. Kilmacthomas fez-lhe um sinal.
— Daqui a pouco haverá novamente trabalho para nós, cabo — gritou pelo rádio do
capacete.
Lessink fitou-o com uma expressão contrariada.
— Ia perguntar quando virá o revezamento, senhor — disse.
12

Do ponto de vista estético aquele ser poderia ser considerado belo. Tinha um corpo
esbelto, pernas curtas e pés com sete dedos. O ser tinha certa semelhança com um urso
que se pusesse sobre as patas traseiras, mas seu corpo era muito mais gracioso e os
movimentos mais refinados. Não tinham nada de desajeitado. Aliás, não parecia haver
nada de pesado nele. Nem mesmo a cabeça em forma de disco, presa a um pescoço em
forma de mangueira com vinte centímetros de comprimento, poderia ser chamada de feia.
Apesar de tudo a visão dessa criatura não poderia deixar de provocar sentimentos
hostis num ser humano.
Era por causa dos olhos.
Aquele ser possuía quatro, dois na frente e dois atrás, dispostos na borda da cabeça
em forma de disco. Não eram redondos, mas elipsóides, e as pupilas eram alongadas que
nem as de um gato.
Era um ser incapaz de rir ou demonstrar qualquer espécie de sentimento.
Era este o motivo por que provocava repugnância em qualquer criatura humana.
O ser era um blue.
Comandava uma grande nave de guerra em forma de disco protegida por uma
blindagem de molkex.
O nome do comandante daquela nave dos blues era difícil de reproduzir. Um ser
humano talvez o pronunciasse como Leclerc.
O comandante Leclerc participara do ataque ao grupo de naves inimigas que acabara
de ser expulso do sistema solar vizinho.
Leclerc era incapaz de entreter qualquer sentimento que correspondesse ao ódio de
uma criatura humana. O que sentia naquele momento talvez pudesse ser designado como
uma raiva surda.
Leclerc começou a desconfiar que os seres estranhos não estavam interessados na
conquista de alguns planetas desolados. Sem dúvida tinham percebido que por ali só
havia algumas bases sem importância, e que não poderiam conseguir muita coisa com
ataque.
O motivo do aparecimento do inimigo deveria ser outro.
Leclerc tinha 1,92 metros, o que representava um tamanho extraordinário até mesmo
para um gatasense. Isso lhe permitia abranger com a vista toda a sala de comando da
nave-disco, sem levantar da poltrona especial.
Leclerc observou os outros tripulantes. Estavam nervosos, o que constituía um
indício seguro de que também estavam refletindo sobre alguma coisa. Leclerc usava um
uniforme, e por isso a penugem azul que cobria seu corpo não era visível.
Pelos cálculos do comandante, o inimigo lançara pelo menos três mil naves no
ataque. Nenhuma raça capaz de atravessar o espaço com naves que desenvolviam
velocidades superiores à da luz seria estúpida a ponto de concentrar um potencial militar
dessa ordem em pontos que não tinham a menor importância estratégica.
“A não ser”, pensou Leclerc, “que a finalidade do ataque consista em desviar sua
atenção de outra missão.”
Que missão seria esta?
Por mais que refletisse, Leclerc não teve a menor idéia do que os desconhecidos
pretendiam conseguir com aquele ataque. Talvez fosse apenas uma operação destinada a
testar o potencial da frota gatasense.
Nesse caso teriam descoberto que uma nave gatasense revestida com uma
blindagem de molkex dificilmente podia ser destruída.
Mas isso eles já sabiam.
Era outro império, continuava pensando o comandante. Devia ter pelo menos o
tamanho do seu. Mais dia menos dia ocorreria o conflito, pois a expansão do império
gatasense era cada vez mais rápida e acentuada. A raça precisava de espaço.
Provavelmente a distância entre as áreas periféricas dos dois impérios já era
perigosamente pequena.
Para a estranha mentalidade de Leclerc a paz era apenas um conceito abstrato, uma
situação que na melhor das hipóteses pode ser aproveitada, mas que não pode ser mantida
por muito tempo.
Dessa forma qualquer raça estranha despertava nele idéias de guerra e destruição.
Nem por um instante chegou a pensar que os inimigos pudessem ter idéias diferentes, que
talvez nem desejassem o conflito.
O povo gatasense reproduzia-se muito depressa e precisava de cada vez mais espaço
vital.
“Com aqueles desconhecidos as coisas não podem ser diferentes”, concluiu Leclerc.
Por isso só havia uma alternativa: a guerra.
Do ponto de vista humano essa teoria seria má e condenável. Era sinal de uma
personalidade ávida de poder, de falta de tolerância e de visão. Mas seria uma injustiça
aplicar essa interpretação a Leclerc.
Do ponto de vista gatasense o comandante não era mau. Pelo contrário. Fora
escolhido para um cargo tão elevado por ser honesto, corajoso e leal, porque se
empenhava com todas as forças pelos interesses de seu povo.
Os gatasenses encaravam a guerra com uma raça estranha de forma muito diferente
que os humanos.
Naquele momento a nave de Leclerc ainda não iniciara o vôo linear. Como não
recebera outras ordens, ficou cruzando pelas regiões exteriores do sistema de Verth.
Aqueles desconhecidos os haviam enganado, voltou a pensar Leclerc. Quanto mais
refletia, maior era sua certeza. Aquele ataque absurdo tinha por fim esconder alguma
coisa.
E haviam conseguido.
O comandante era incapaz de sentir o medo propriamente dito. A melhor palavra
para designar seus sentimentos seria pavor. Leclerc sentiu-se apavorado ao pensar no que
poderia ter acontecido.
Leclerc levantou-se e atravessou a sala de comando. A disposição de seus olhos
permitia-lhe ver todos os pontos ao mesmo tempo. Não achava isso extraordinário, pois
não estava acostumado a outra coisa. Provavelmente uma criatura que virasse a cabeça
lhe causaria compaixão, se fosse capaz de experimentar um sentimento dessa espécie.
Um gatasense não tinha necessidade de virar a cabeça para verificar o que estava
acontecendo atrás da mesma.
A disposição dos aparelhos de localização e das telas de imagem no recinto obedecia
a esse princípio. Para um terrano seria pouco prática, mas para um blue era a disposição
ideal.
Foi assim que todos os olhos de Leclerc transmitiram ao cérebro o sinal de alerta
que se acendeu de repente.
Todos os aparelhos de localização reagiram ao mesmo tempo.
Leclerc só ficou estupefato por alguns segundos. Logo compreendeu que uma coisa
extraordinária estava acontecendo. A reação dos aparelhos foi tão intensa que se poderia
acreditar na presença de uma frota inteira.
Mas os olhos treinados de Leclerc viram mais que isso.
Viram que não havia uma única nave por perto.
Nenhuma nave de seu povo ou de outra raça.
E viram mais uma coisa, que fez crescer o medo que sentira de início,
transformando-o em pânico: as blindagens de molkex que envolviam a nave-disco
ficaram abauladas de repente, como se estivessem prestes a dissolver-se!...
13

Kilmacthomas estava tão entretido com as tentativas de colocar a broca


gravitacional numa nova posição, que nem percebeu o estalido no alto-falante do rádio de
capacete.
Só reagiu quando a voz de Hakru se fez ouvir. Soltou a máquina que caiu no chão e
derramou gelo derretido sobre seu traje espacial.
— Atenção, oficiais! Compareçam imediatamente à sala de comando! — ordenou a
voz de Hakru.
Kilmacthomas fez um ligeiro sinal a Lessink, para que este mantivesse o
equipamento de irradiação em funcionamento e saiu correndo em direção à eclusa de ar.
Teve de passar pelos técnicos que estavam levando o equipamento dos especialistas para
as galerias abertas no gelo.
Nas proximidades do hangar um caça espacial estava sendo retirado da Tristan. O
braço giratório do guindaste colocou a nave unipessoal em forma de torpedo
cuidadosamente no chão.
Kilmacthomas esgueirou-se para passar por alguns homens e chegou à câmara
interna da eclusa. Assim que a equalização da pressão foi concluída, tirou o traje espacial
e apressou-se para chegar à sala de comando. Notara algo de estranho na voz de Hakru,
na qual havia algo mais que um simples nervosismo.
Quando entrou na sala de comando, os outros oficiais já estavam reunidos. Hakru
cumprimentou-o com um gesto. Seu rosto estava muito sério. Os homens, por sua vez,
estavam perturbados. Parecia que Hakru já lhes tinha dado algumas informações.
“Informações desagradáveis”, constatou Kilmacthomas.
Chegou perto do Tenente Zang e cochichou ao ouvido deste:
— O que houve?
— Chegou uma mensagem de Rhodan — respondeu Zang em voz baixa. — Vamos
receber visita.
— Do chefe? — perguntou Kilmacthomas, estupefato. — Mas como...
Foi interrompido pela voz de Hakru.
— Ao que tudo indica trata-se de uma nave dos blues — disse o coronel. — Ela vem
seguindo diretamente para cá. Só há uma interpretação para o fato: fomos descobertos.
Kilmacthomas engoliu em seco. Então era isto. Hakru continuou a falar, mas
Kilmacthomas não prestou atenção às suas palavras. Refletiu febrilmente sobre o que
aconteceria caso os blues atacassem sua base subterrânea.
Os pensamentos de Kilmacthomas foram interrompidos pelo radioperador, que saiu
apressadamente de sua cabine para entregar outra mensagem ao coronel.
Hakru leu a mensagem e imediatamente informou os presentes:
— Já não existe a menor dúvida de que fomos descobertos. Segundo revelam as
observações realizadas pela Eric Manoli, outras naves aproximam-se do mundo em que
nos encontramos.
Kilmacthomas sentiu-se dominado pela amargura. A missão tão bem preparada,
falhara.
— Ao que suponho, os blues localizaram as emissões energéticas do transmissor —
disse Hakru. — Só nos resta um caminho: fugir imediatamente para a ESS-1, através do
transmissor. O dispositivo automático robotizado da Tristan transformará a Tristan numa
simples esfera de aço, com a qual os gatasenses não saberão o que fazer.
Kilmacthomas pensou nas galerias cavadas no gelo. Lembrou-se do equipamento
valioso que seria perdido se não fosse tirado dali.
— Senhor comandante! — exclamou.
— Pois não, Tenente Kilmacthomas — respondeu Hakru em tom gentil.
— Peço permissão para retirar o equipamento das galerias juntamente com
cinqüenta voluntários.
— Está bem, tenente — concordou Hakru. — Ande depressa. O senhor terá de fugir
pelo transmissor antes que o dispositivo automático destrua a nave.
Kilmacthomas não demorou a encontrar homens dispostos a ajudá-lo. Melbar
Kasom era um deles. Hakru ligou o dispositivo automático de destruição e mandou que
os primeiros homens entrassem no transmissor para serem transportados à ESS-1.
Nem bem tinham iniciado a ação quando as primeiras bombas caíram na superfície
gelada. O gelo começou então a vibrar, como se fosse um corpo gigantesco que estivera
adormecido. As sereias de alarme uivaram no interior da nave.
O Tenente Don Kilmacthomas, que se encontrava na eclusa de ar, enfiou o traje
espacial. Havia um brilho estranho em seus olhos azul-escuros. Ouviu no alto-falante do
capacete os ruídos produzidos pelos outros voluntários. Alguns praguejaram para
disfarçar o medo.
— Tenente Kilmacthomas! — chamou a voz de Hakru.
— Sim senhor.
— O senhor dispõe de uma hora, tenente. Depois haverá um grande estouro.
— Está bem, senhor — respondeu Kilmacthomas com a voz zangada. Saiu da eclusa
juntamente com os companheiros. O bombardeio era cada vez mais violento. Sentia-se o
abalo do gelo até através das solas grossas das botas.
Kilmacthomas viu o cabo Lessink, que continuava a controlar o sistema de
irradiação.
— Dê o fora! — ordenou. — Vá para dentro da nave.
Notava-se que Lessink ficou satisfeito por sair dali. O cabo correu para a eclusa de
ar, que continuava aberta.
Um homem apareceu bem ao lado de Kilmacthomas. O tenente olhou para ele e
reconheceu o rosto do sargento Wallaby.
— Wallaby! — exclamou surpreso. — Pensei que estivesse preso.
— O coronel concedeu licença para que saísse, senhor — disse o sargento em tom
sério. — Acho que tenho de reparar um grande erro.
Kilmacthomas sorriu. Saíram correndo lado ao lado pelo primeiro corredor. Outros
homens os acompanhavam.
“Não deixaremos nada para eles”, pensou Kilmacthomas, furioso.
Estava enganado. Ele mesmo ficaria para trás.
E mais alguns homens.
14

Reginald Bell esmurrou a mesa com os mapas.


— Foi em vão — gritou numa raiva impotente. — Tudo em vão.
Fizeram mais um rápido avanço para o sistema de Verth, para desviar as naves dos
blues do décimo quarto planeta. Mas desta vez os gatasenses não se deixaram enganar.
Prosseguiram nos ataques contra um dos mundos de seu próprio sistema.
Rhodan não teve outra alternativa senão retirar seu grupo de naves e transmitir ao
Coronel Hakru a ordem de retirada através do transmissor.
— Encontraremos um caminho — asseverou Rhodan. Dirigiu-se a Regat Waynt, o
acônida. — Como será que descobriram a Tristan?
— A quantidade de energia liberada em cada salto através do transmissor é muito
grande. Não sabemos como seus instrumentos reagem a isso — respondeu Waynt em tom
indiferente. — De qualquer maneira, tenho a impressão que foi o funcionamento do
transmissor que colocou os gatasenses na pista da Tristan.
— Acho que foi isso mesmo. — Rhodan caminhava ao acaso pela sala de comando.
Kors Dantur parecia zangado. Sentado diante dos comandos da nave, contemplava a
tela panorâmica, como se esta pudesse dar uma resposta às inúmeras indagações.
— Dali se conclui que não poderemos usar um transmissor no sistema de Verth se
não quisermos ser descobertos — disse Waynt.
— Como poderemos chegar novamente a Gatas? — perguntou Bell em tom
preocupado.
Rhodan sabia que a pergunta que o amigo acabara de formular tinha sua razão de
ser. Ainda haveria alguma possibilidade de obter novas informações sobre os blues? Não
teriam perdido a última chance?
O Segundo Império — o império dos blues — continuava a ser um osso duro de
roer.
Certamente não era menos poderoso que o dos terranos e seus aliados.
“E isso significa alguma coisa”, pensou Rhodan com uma ligeira ironia.
15

Leclerc apenas teve uma sensação de alívio ao notar que o movimento da blindagem
de molkex não passava do inexplicável abaulamento. A camada protetora não foi
destruída, nem se desprendeu da nave. Apesar de tudo os acontecimentos eram
preocupantes.
Os ensaios goniométricos realizados às pressas revelaram que a emissão energética
que provocara a alteração no molkex vinha do planeta exterior do sol Verth.
De repente Leclerc compreendeu por que os desconhecidos haviam lançado aquele
ataque simulado. Enquanto os gatasenses saíram voando sem pensar em mais nada, o
inimigo desembarcara um comando secreto naquele inóspito mundo de gelo. Concluiu
que coisas interessantes e perigosas deviam estar acontecendo naquele planeta.
Leclerc transmitiu suas ordens à tripulação.
O grupo de intrusos não podia ser muito numeroso — o que significava que era
fraco. O comandante gatasense reconheceu a oportunidade que se oferecia. Talvez
conseguisse capturar alguns prisioneiros que lhe revelassem alguma coisa sobre aquela
estranha raça.
Leclerc transmitiu as informações sobre o incidente para Gatas. Conforme esperara,
a permissão para o ataque foi dada imediatamente. Outras naves-disco foram enviadas ao
local para apoiá-lo.
Leclerc não conseguiu desenvolver qualquer sentimento de triunfo. A única coisa de
que foi capaz foi a versão gatasense de uma profunda satisfação.
Deixou que este sentimento o envolvesse até que descobriu o lugar em que a nave
estranha pousara. Cuidadosas operações de localização revelaram que o intruso se
escondera sob o gelo. As primeiras fotografias mostraram um funil mais baixo que o resto
da paisagem, que não poderia ser de origem natural.
Era ali que estava o inimigo.
Leclerc dirigiu seus olhos de gato para as telas. Sua mão segurou o microfone, que o
ligava aos gatasenses que controlavam os canhões.
Leclerc disse uma única palavra.
Em intercosmo significava o seguinte:
— Fogo!
16

— Estão voltando — disse o Tenente Nashville.


Como geralmente acontecia, o Coronel Joe Nomers não fez nenhum comentário.
Mantinha os lábios azuis firmemente cerrados. Observaram como os agentes e
especialistas voltavam à ESS-1 através do transmissor. Os tripulantes da Tristan também
já estavam chegando.
Um dos homens aproximou-se de Nomers e fez continência.
— Major Lasalle, senhor! — disse. — Sou o imediato da Tristan. Trago um relatório
do Coronel Hakru. É para o senhor.
— Onde está o coronel? — perguntou Nomers.
— Está esperando por um comando de voluntários que voltou às galerias de gelo
para salvar os valiosos equipamentos. Pede que o senhor mantenha o transmissor em
funcionamento até que a Tristan tenha explodido.
— Está bem, major. Peça que lhe indiquem um lugar nesta estação. Rhodan já
mandou vir naves que levarão o senhor e os outros.
Lasalle voltou a fazer continência e retirou-se.
Nashville lançou um olhar pensativo para ele.
— Até parece que a bordo da Tristan ainda existem alguns idiotas que estão
cansados de viver — disse.
— Talvez eles consigam impedir que certos equipamentos muito importantes caiam
nas mãos dos blues — disse Nomers.
Aos poucos os homens foram voltando da Tristan. Finalmente o fluxo foi
interrompido, embora o transmissor continuasse em funcionamento. Nomers mandou
chamar Lasalle.
— Estão faltando cinqüenta homens — disse. — Sabe quanto tempo ainda
demorarão a chegar?
Lasalle olhou para o relógio.
— A autodestruição da Tristan ocorrerá daqui a vinte minutos — explicou. — Se
não chegarem até lá, não haverá salvação para eles. Mas acho que chegarão.
Dali a vinte minutos um estranho brilho apareceu no arco do transmissor. Nomers
reconheceu o perigo e mandou que desligassem imediatamente. Nashville, que se
encontrava a seu lado, empalideceu.
— Senhor — gaguejou. — Parece que o outro terminal do transmissor explodiu.
— Tomara que esteja enganado — disse Nomers, deprimido.
Dali a algum tempo voltaram a ligar o transmissor. O silêncio desceu sobre a ESS-1.
As pessoas que se encontravam a bordo esperavam que alguém passasse pelo arco do
transmissor.
Mas ninguém apareceu.
O Major Lasalle olhou para o relógio.
— A Tristan explodiu há algum tempo — disse. — Ninguém mais pode vir de lá. —
Sacudiu violentamente a cabeça. — Não compreendo por que o Coronel Hakru não se
pôs a salvo. Permaneceu a bordo da Tristan. Disse que queria esperar pelos voluntários.
— É possível que nunca saibamos — disse Nomers.
O grande arco do transmissor tinha um aspecto fantasmagórico.
O sopro da morte parecia sair dele.
***
O Tenente Kilmacthomas entrou na grande galeria à frente do grupo de voluntários.
Era ali que os especialistas da USO tinham erguido seu acampamento. Instrumentos
valiosos e equipamentos especiais tinham sido levados para esse lugar. Não havia
necessidade de explicar aos homens o que estava em jogo. Cada um pôs uma carga
pesada nas costas.
Kilmacthomas viu o gigantesco Melbar Kasom, que se encarregou sozinho do
trabalho de vários homens.
Kilmacthomas abaixou-se para pegar uma carga.
Foi quando ouviu o grito de advertência no alto-falante do capacete. Kilmacthomas
levantou-se de um salto. Encontrava-se nos fundos da galeria. Tinham fundido uma
espécie de tablado no gelo, motivo por que Kilmacthomas pôde ver tudo.
Viu os homens largarem suas cargas e correrem em sua direção. Também viu por
que estavam agindo assim.
O corredor que começava no fim da galeria começou a desabar, fechando o caminho
que levava à Tristan. Uma fenda de um metro de largura se abrira no gelo. Os abalos
constantes causados pelas explosões das bombas estavam transmitindo sua inquietação ao
gelo.
Corredores e galerias estavam desabando.
Antes que Kilmacthomas pudesse concluir seus pensamentos, uma onda de gelo
desceu junto à saída da galeria. Foi uma verdadeira avalanche que avançou até o centro
do subterrâneo. Os homens comprimiram-se sobre o estrado, para tirar proveito da
segurança ilusória desse lugar.
Kilmacthomas esperava que a qualquer momento a própria galeria desabasse. Seria
o fim, pois os trajes espaciais não resistiriam às massas de gelo.
De repente as explosões na superfície cessaram. O tremor do solo tornou-se menos
forte.
Kilmacthomas criou nova esperança.
— Atenção! — gritou pelo rádio do capacete. — Grupo Kilmacthomas falando.
Estou chamando a Tristan. Há mais alguém a bordo?
Prendeu o fôlego e pôs-se a esperar. Sabia que todos prestavam atenção ao menor
ruído. O alto-falante emitiu um estalo. A voz familiar de Hakru saiu do mesmo.
— Droga, Kilmacthomas! — disse o coronel em tom violento. — O que aconteceu
por aí?
A Tristan tombou de lado. Sofreu fortes abalos.
Kilmacthomas esforçou-se para falar em tom tranqüilo.
— Estamos presos, senhor. Os abalos fizeram desabar o corredor. A qualquer
momento poderá haver novas avalanches de gelo.
Até parecia que a natureza queria confirmar suas palavras, pois uma fenda da
espessura de um braço humano abriu-se bem em cima deles. Os homens recuaram em
pânico para os fundos da galeria. Mas o teto estava agüentando.
— A Tristan explodirá dentro de vinte minutos — disse Hakru, nervoso. — Acho
que as naves dos blues estão pousando. Investigarão a área. Sem dúvida descobrirão os
depósitos instalados sob o gelo.
— Está sozinho a bordo? — perguntou Kilmacthomas.
— Os outros já saltaram para a ESS-1 — respondeu Hakru.
— Vá atrás deles, senhor — pediu Kilmacthomas em tom enfático. — O senhor não
poderá fazer mais nada por nós.
— Não voltarei coisa alguma — resmungou Hakru. — Um calouro teimoso como o
senhor não me impedirá de pegar uma arma térmica e abrir o corredor.
— Não faça isso, coronel — objetou Kilmacthomas. — Temos armas térmicas
conosco, mas não podemos usá-las por causa do perigo de desabamento. O senhor não
possui nenhum equipamento desse tipo.
— Possuo, sim — respondeu Hakru. — Arranjarei uma arma térmica. Há muitas
delas espalhadas pela Tristan. O dispositivo de irradiação ainda está funcionando. Logo, o
canal que leva à superfície ainda está aberto.
Kilmacthomas escorregou de cima do estrado e saiu caminhando pela galeria.
Passando por grandes blocos de gelo, chegou perto do corredor. O quadro com que se
deparou não foi nada animador. Será que ainda conseguiriam desimpedir a passagem?
— Não há tempo para isso — disse pelo rádio do capacete. — A nave explodirá
antes que o senhor consiga disparar a primeira carga térmica.
— Tanto faz — respondeu Hakru com a voz ofegante. Ao que parecia, estava
fazendo um trabalho pesado.
O tenente refletiu para descobrir um meio de evitar que seu superior seguisse suas
intenções. Mas, ao que parecia, Hakru não estava disposto a envolver-se numa discussão.
Kilmacthomas dirigiu-se aos homens que o acompanhavam.
— O Coronel Hakru tentará desimpedir a passagem a partir da nave — anunciou. —
Não temos nada a perder. Por isso trabalharemos com nossas armas na remoção dos
destroços. É possível que morramos, mas antes isso que permanecer inativos.
Gritos de concordância fizeram-se ouvir pelo rádio do capacete. Os homens
sentiam-se ansiosos para fazer alguma coisa para se salvarem. A certeza de que Hakru se
aproximava do outro lado deu-lhes novo ânimo.
Kilmacthomas não quis revelar que as chances de sobrevivência eram mínimas. Não
queria que seus homens perdessem a esperança.
Levantou a arma térmica e acionou-a cautelosamente para derreter o gelo. Sabia
perfeitamente que a água não tinha para onde escorrer. O funcionamento da arma térmica
aqueceria a galeria, fazendo com que a água proveniente do gelo derretido não congelasse
mais, o que significava que poderiam ter água pelo pescoço antes que conseguissem abrir
passagem pela galeria.
Isso era outra coisa que seus companheiros não sabiam.
Apontou a arma térmica cuidadosamente para os obstáculos.
Ainda era muito jovem. Não queria morrer. Mas sabia que não cabia a ele
determinar o momento da morte. Isso lhe deu novas forças. Tranqüilo e seguro,
trabalhava à frente do comando.
Dali a pouco estavam com água pelos joelhos.
O chão tornou-se escorregadio. Constantemente um dos homens caía na água. Só
não morreram graças aos trajes protetores.
Apesar de sua pouca idade, Kilmacthomas estudara o comportamento do gelo. Sabia
mais sobre os planetas gelados que a maioria dos outros homens.
Quase poderia dizer que convivera com o gelo.
E agora parecia que receberia uma sepultura de gelo.
***
Dez minutos antes do momento em que o dispositivo automático destruiria a Tristan,
o Coronel Mos Hakru finalmente conseguiu retirar e pôr em ação a arma térmica. Estava
banhado em suor. Não perdeu tempo olhando para o relógio. De qualquer maneira, não
conseguiria terminar antes do momento fatal.
Correu pelo corredor principal, em direção à eclusa. Saltou para fora da mesma.
Com um ligeiro olhar certificou-se de que o equipamento de irradiação continuava a
funcionar. Mas quando a nave explodisse, ele corria perigo de ser destruído.
Hakru levantou a arma térmica e penetrou no corredor obstruído.
Será que os cinqüenta homens que se encontravam do outro lado do corredor teriam
o mesmo destino de Masterson e seus companheiros?
Hakru chegou ao lugar obstruído.
— Kilmacthomas! — gritou para dentro do microfone do rádio de capacete. —
Ainda me ouve?
— Tudo bem, senhor — disse a voz do tenente. — Passe pelo transmissor enquanto
é tempo.
— Estou no corredor. Começarei a derreter o gelo — disse Hakru, sem dar atenção
às objeções do tenente. — Procure avançar de seu lado.
— É o que estamos fazendo, senhor — anunciou Kilmacthomas.
Hakru avançava obstinadamente. Sabia que teria de abrir um buraco bem grande,
pois a passagem de cinqüenta homens exigiria muito espaço.
Por acaso seus olhos caíram no relógio.
Faltavam seis minutos!
Sentiu o suor descer-lhe pelas sobrancelhas e arder nos olhos. A lâmina transparente
do visor ficou embaçada.
A água ia saindo do corredor atrás dele, formando regatos turvos. Chegava ao
equipamento de irradiação, de onde era soprada para a superfície.
Mais quatro minutos.
Hakru reconheceu que não conseguiria. Soubera desde o início. Apesar disso não
pôde deixar de trabalhar. Precisava libertar os cinqüenta homens. Talvez Rhodan
conseguisse enviar uma nave de resgate.
Restava saber se morreriam na explosão da Tristan. Essa possibilidade não podia ser
excluída, muito embora a nave não devesse desmanchar-se em pedaços. A explosão
somente desencadearia um processo de fusão, que transformaria a Tristan num pedaço
disforme de aço. Mas o processo geraria quantidades enormes de calor. O gelo derreteria.
A água penetraria em todas as galerias. Era duvidoso que o equipamento de remoção
pudesse remover a água com a rapidez necessária, se é que o mesmo resistisse ao impacto
da explosão.
Faltavam dois minutos!
Um sorriso obstinado surgiu no rosto de Hakru. A bordo da ESS-1 estavam
esperando em vão por ele. Fazia votos de que nenhum dos seus subordinados cometesse a
tolice de voltar para procurá-lo.
Hakru girou a arma térmica para cima a fim de alargar o corredor que se ia
formando.
— Kilmacthomas! — disse num gemido.
— Sim senhor.
A voz do tenente parecia preocupada.
— A explosão — advertiu Hakru. — Será dentro de alguns segundos.
Desligou a arma térmica, para não se ferir a si mesmo quando surgisse a onda de
pressão.
— Coronel — disse Kilmacthomas em tom áspero.
Disse mais alguma coisa, mas Hakru não o ouviu mais.
De um instante para outro parecia ficar livre da ação da gravidade. Alguma coisa o
levantou, uma força primitiva impeliu-o para a frente, em direção ao gelo.
Quis gritar, mas nenhum som saiu de sua garganta ressequida. No momento em que
esperava ser despedaçado de encontro ao gelo, a barreira branca recuou à sua frente.
Bateu em alguma coisa e seu corpo foi virado violentamente. Os braços agitavam-se
no ar. Teve a impressão de ver pontos escuros ã sua frente. Percebeu que inúmeros blocos
de gelo, grandes e pequenos, acompanhavam seus movimentos. Estavam sendo
arrastados juntamente com ele.
Um trovão e um zumbido encheu seus ouvidos. Até parecia que se encontrava
embaixo de uma queda de água. Mas como ainda conseguia respirar, seu capacete não
podia ter sido destruído.
Finalmente bateu num gigantesco bloco de gelo. Seus pulmões foram comprimidos,
expelindo o ar. Hakru perdeu os sentidos.
***
O gelo rachou bem à frente de Kilmacthomas. Um grito saído de dezenas de bocas
acompanhou o fenômeno. Kilmacthomas baixou a trava da arma térmica e atirou-se no
chão. O gelo desabou sobre eles. Uma chuva de partículas desceu sobre os homens.
Depois veio a onda de pressão. Teve bastante força para arrastar Kilmacthomas por
alguns metros, apesar dos esforços que ele fazia para segurar-se. O mundo que o cercava
parecia consistir exclusivamente de matéria branca.
Levantou a cabeça. Com a explosão o corredor ficara desimpedido. Só por um
milagre não desabara. Mas a onda não arrastou somente o gelo pelo corredor.
Um vulto pequeno estava deitado ao lado de Kilmacthomas.
Era o Coronel Mos Hakru. Suas mãos ainda seguravam firmemente a arma térmica.
Kilmacthomas levantou-se. De todos os lados os homens vieram correndo em sua
direção.
O tenente caminhou a passos claudicantes em direção ao coronel. Quando chegou
perto dele, inclinou-se e deitou-o de costas.
Hakru abriu os olhos e sorriu.
Dali a três minutos veio o vagalhão.
17
Não havia a menor dúvida. Os instrumentos de localização mostravam que o posto
secreto dos desconhecidos ficava bem embaixo deles. Como depois de um violento
bombardeio os blues não viram nenhum gesto de defesa, Leclerc mandou suspender o
fogo. Durante seus ataques, a formação de naves inimigas aparecera por um instante no
sistema de Verth, mas desta vez Leclerc não se deixara enganar.
Frotas gigantescas decolaram de todos os mundos ocupados pelos blues, fazendo
com que o inimigo logo batesse em retirada. Mas isso não interessava a Leclerc. O ligeiro
aparecimento dos desconhecidos provava que lá embaixo estavam acontecendo coisas
perigosas — perigosas para eles, os gatasenses.
O comandante fez a nave-disco circular por algum tempo sobre o lugar
bombardeado, onde ficava o estranho funil. A blindagem de molkex recuperara a rigidez
normal que distinguia aquele material indestrutível.
Leclerc imaginou que o comportamento do molkex estava ligado à estação inimiga
montada lá embaixo. Se o inimigo já dispunha de meios que provocavam ondulações
nessa substância, isso era muito preocupante. Talvez estivessem trabalhando numa
substância capaz de destruir o invólucro que protegia suas naves.
Para qualquer gatasense essa idéia seria apavorante. O molkex era considerado
indestrutível. Os blues praticamente haviam criado uma dependência ao mesmo. Por isso
era indispensável manter a parceria unilateral com os vermes do pavor, acontecesse o que
acontecesse.
A maneira pela qual aproveitavam as propriedades fisiológicas dos vermes do pavor
não doía na consciência de Leclerc.
O molkex que envolvia sua nave voltara ao estado normal, mas os instrumentos de
localização provavam que havia alguma coisa embaixo do gelo.
Leclerc entrou em contato com as naves mais próximas. Mandou que
permanecessem numa órbita em torno do mundo de gelo. Ele mesmo pousaria com sua
nave. Desta forma estaria coberto se lá embaixo ainda houvesse alguém que tivesse
capacidade de oferecer resistência.
Fez descer a nave numa distância segura do funil. Os canhões da nave giraram para
apontar na direção em que se supunha estivessem os desconhecidos embaixo da
superfície.
Leclerc dividiu a tripulação em três grupos. Um dos grupos permaneceu na nave,
para que a mesma permanecesse em condições de disparar sua artilharia e decolar a
qualquer momento. O segundo grupo espalhou-se em torno da nave com armas portáteis
de grande calibre e trajes espaciais.
O terceiro grupo foi comandado por Leclerc. Seus componentes também estavam
armados e usavam trajes espaciais. O comandante espalhou os homens em torno do funil.
Mandou que procurassem localizar alguma descida no gelo. Imaginou que houvesse
alguma ligação com as camadas mais profundas.
Aos poucos foi tomando corpo em sua mente a idéia de que o funil era a abertura
congelada por onde uma espaçonave penetrara no gelo. Para Leclerc era a explicação
mais lógica. Nem pensou em admirar esse feito do inimigo, porém mais uma vez sua
opinião de que os desconhecidos eram muito avançados na astronáutica — mais
avançados que os blues — foi confirmada pelos fatos.
A única vantagem que levavam em relação ao inimigo era a camada de molkex que
protegia suas naves.
Do lado oposto do funil os homens encontraram um pequeno poço, que descia pelo
gelo. Avisaram o comandante, que se apressou em chegar ao local.
Os astronautas gatasenses afastaram-se respeitosamente quando o chefe resolveu
vistoriar a abertura. Leclerc viu um buraco relativamente pequeno. O gelo que cercava o
mesmo assumira formas estranhas. Não apresentava a aspereza natural. Era liso e
espalhava-se para os lados, como se fosse formado por uma série de grossas veias
congeladas. Os homens iluminaram cuidadosamente as áreas adjacentes.
“Por esta abertura eles fazem subir à superfície a água proveniente do gelo
derretido”, conjeturou depois de algum tempo. “Lá embaixo devem ter máquinas que
bombeiam o líquido para cima.”
Leclerc não poderia saber que o sistema de irradiação dos terranos era muito mais
aperfeiçoado que qualquer estação de bombeamento que precisasse de estações
intermediárias.
Apesar disso era espantoso que logo tivesse reconhecido a finalidade do canal.
— Parece que suas máquinas não estão trabalhando mais — opinou Leclerc.
Era uma criatura cautelosa, mas resolveu assumir um risco. Mandou que duas das
plataformas antigravitacionais que se encontravam na nave fossem levadas para perto do
poço. Dois gatasenses foram escolhidos para voar pelo interior do canal.
— Voltem assim que tiverem descoberto o que está acontecendo lá embaixo —
ordenou Leclerc. Iluminou-os enquanto subiam na plataforma e se amarravam, esperou
que o mecanismo entrasse em funcionamento e desligou a luz.
— Vamos começar! — ordenou.
A plataforma antigravitacional desprendeu-se da superfície e planou em direção à
abertura. Leclerc mandou que a outra plataforma ficasse de prontidão, para que pudesse
intervir imediatamente se houvesse algum imprevisto. Se os gatasenses não encontrassem
nenhuma dificuldade, mandaria trazer outros artefatos voadores. Nesse caso iria para
baixo do gelo juntamente com os outros.
Alguns segundos depois de a plataforma voadora ter penetrado no canal, Leclerc
teve a impressão de que estava sentindo uma ligeira vibração do solo. Até parecia que o
planeta queria sacudir os visitantes indesejáveis. Imediatamente dirigiu uma indagação à
sua nave e viu confirmadas suas suspeitas: os instrumentos indicavam uma forte emissão
de energia nas imediações.
— Fizeram explodir a estação subterrânea, para evitar que a mesma caia em nosso
poder — disse Leclerc, decepcionado.
No mesmo instante lembrou-se de que os astronautas que tinham penetrado no poço
estavam sujeitos a um perigo grave. Chamou-os pelo rádio e mandou que voltassem
imediatamente.
Já era tarde.
Os dois blues voltaram à superfície, mas não na plataforma antigravitacional.
Foram atirados para fora do canal no topo de um esguicho de água. Eram apenas
dois pontos turbilhonantes. Os destroços da plataforma vieram atrás deles.
O quadro fantástico parecia fascinar Leclerc. Um cenário belo e horrendo exibiu-se
à luz débil do sol Verth e sob a iluminação dos holofotes da nave.
A água proveniente do gelo derretido começou a cair sobre eles.
Leclerc saiu correndo.
18

Kilmacthomas ajudou o Coronel Hakru a pôr-se sobre os pés. A onda de pressão


removera os últimos obstáculos que obstruíam o corredor. O caminho estava livre. Mas o
tenente sabia que em hipótese alguma deveriam abandonar a galeria naquele momento.
Se havia alguma chance de escapar às águas, essa chance estava no interior da galeria.
Hakru sacudiu o corpo.
— Tudo bem, tenente — disse. — Já estou novamente em forma.
Kilmacthomas soltou-o. Um dos homens fora atingido de maneira tão infeliz por um
bloco de gelo que seu traje espacial se rasgara.
Morrera imediatamente.
Dessa forma seu número diminuíra para trinta e nove.
— A nave acaba de ser destruída e com isso desapareceram nossas chances de voltar
para ESS-1 através do transmissor — disse Hakru. — Mas temos de encontrar um meio
de sair daqui.
Kilmacthomas confirmou com um gesto.
— Antes disso teremos de aguardar a vaga, que certamente virá — disse. — Se
sobrevivermos à mesma, e essa chance só existe-se o equipamento de irradiação
continuar a funcionar, ainda poderemos pensar na melhor maneira de chegar à superfície.
Em pensamento Kilmacthomas voltou ao dia em que subira a bordo da Tristan. Esse
dia parecia situar-se num passado longínquo e tinha algo de irreal. Era como se nunca
tivesse havido aquele encontro com Wallaby.
Seus olhos procuraram o sargento entre os homens, mas como muitos lhe davam as
costas, não o descobriu.
No momento só lhe restava esperar.
Kilmacthomas perguntou a si mesmo o que os blues estariam fazendo naquele
instante.
Será que tentavam penetrar no gelo, para capturar o inimigo?
A morte no gelo não era preferível à ação das armas gatasenses? Era bem possível
que tentassem aprisioná-los, pois o estudo de seus corpos proporcionaria informações
valiosas aos blues.
A presença de tantos especialistas deu novas esperanças a Kilmacthomas. Essa gente
não desistiria tão depressa. Sabia defender-se em situações desesperadoras.
O Coronel Hakru, ajudado por alguns homens, começara a empilhar grandes
volumes bem à frente do corredor, para quebrar a violência das águas. Quando o trabalho
ainda não estava totalmente concluído, veio o vagalhão.
— Segurem-se, para que ninguém seja arrastado para fora da galeria — gritou
Kilmacthomas.
A água rugiu através do corredor aberto e penetrou na galeria. Era uma massa
agitada e espumante, em cuja superfície os blocos de gelo dançavam que nem plumas.
Kilmacthomas deixou-se cair e agarrou-se a uma máquina. O vagalhão passou por cima
dele, puxando seu corpo com uma força tremenda.
No entanto, a coisa não foi tão ruim como o tenente esperara. Dali só se podia
concluir que o sistema de irradiação continuava a funcionar, transportando para a
superfície massas enormes de gelo derretido.
O vagalhão quebrou-se nos fundos da galeria, retornou que nem um focinho
gigantesco, precipitando-se novamente sobre os homens.
Kilmacthomas sentiu a pressão da água, mas continuou a segurar-se com mão férrea.
Finalmente a fúria do vagalhão quebrou-se de encontro à parede da galeria.
Kilmacthomas levantou-se. Estava com água até o peito.
Já se enxergava novamente. A medida que vinham chegando os homens, a luz dos
faróis iluminava a galeria. Kilmacthomas soltou suspiro de alívio ao ver a figura
encharcada do Coronel Hakru aproximar-se a passo claudicante. Fizeram uma contagem
e constataram que não houvera mais nenhuma morte.
Até parecia que a sorte voltara a favorecê-los.
— Parece que essa máquina dos infernos ainda está funcionando — gritou Hakru.
— O fabricante merece uma medalha.
— O senhor pode dá-la quando voltar à Terra — sugeriu Kilmacthomas.
Viu Melbar Kasom, o gigantesco ertruso, atravessar a água como se fosse um animal
pré-histórico. Kasom apoiara alguns homens quando a grande vaga entrou na galeria.
Kilmacthomas já ouvira falar na força descomunal daquele especialista da USO,
mas até então não acreditara nas histórias que costumavam contar a seu respeito. Mas
agora viu-se obrigado a mudar de opinião.
— Vamos esperar que a água baixe um pouco, para que possamos sair da galeria
sem correr perigo de morrer afogados, senhor — disse, dirigindo-se a Hakru.
A ação da água fazia brilhar o traje protetor do comandante da Tristan. O rosto de
Hakru estava pálido sob a lâmina transparente, mas não parecia deprimido. Tinha-se a
impressão de que um novo otimismo tomara conta do pessoal.
O nível da água baixava lenta, mas constantemente. Grande parte do equipamento
guardado na galeria fora destruída ou ao menos inutilizada. O chão estava muito
escorregadio; qualquer movimento poderia significar uma queda.
— O hipercomunicador está guardado em uma das cavernas — lembrou Hakru. —
Se conseguirmos encontrá-lo, poderemos transmitir uma mensagem.
— É possível que a caverna tenha desabado, senhor — objetou um dos especialistas.
— Ou então o aparelho pode ter sido destruído.
— É verdade — respondeu Hakru. — Mas de qualquer maneira devemos tentar.
No seu íntimo Kilmacthomas concordou com o coronel. Ficar parado na caverna
para esperar que a água descesse era um exercício que punha à prova a paciência dos
homens. A qualquer momento o corredor poderia ficar obstruído de novo, ou então o teto
da galeria poderia desabar.
Corriam um grave perigo de vida, mas ninguém quis pensar nisso.
Kilmacthomas foi até o corredor, para verificar se havia uma saída por onde
pudessem passar. Não havia nenhum obstáculo, a não ser alguns blocos de gelo que
tinham ficado presos. As armas térmicas não eram sensíveis à umidade ou às
temperaturas extremas. Por isso tais blocos de gelo não representavam um obstáculo
insuperável. Seria fácil derretê-los.
A seguir Kilmacthomas lembrou-se da broca gravitacional. Era a única possibilidade
de chegarem à superfície — se é que ainda estava funcionando.
Hakru apareceu a seu lado.
— Como estão as coisas? — perguntou.
Kilmacthomas iluminou o lugar em que teriam de abrir passagem à força.
— Fora disso está tudo em ordem — respondeu com a voz tranqüila. — Assim que a
água baixar, poderemos sair.
19

O esguicho desmoronou como se só tivesse força para aquela irrupção selvagem.


Mas a água continuava a sair da abertura no gelo.
Leclerc venceu o pavor e ficou parado. O líquido que saía do gelo não representava
nenhum perigo. Nunca representara, a não ser para os dois blues que se haviam arriscado
a penetrar na galeria. Para estes não havia salvação.
Fora do canal não havia nada a recear.
Leclerc ordenou os pensamentos e pôs-se a refletir intensamente. A quantidade de
água que saía pelo canal ia diminuindo aos poucos.
Por certo chegaria a hora em que a abertura ficaria desimpedida, e então poderia
enviar mais alguns planadores gravitacionais para dentro do gelo.
Leclerc não acreditava que o acidente fatal se repetisse. Acalmou os homens que se
encontravam na nave e solicitou outras plataformas antigravitacionais. Além disso,
mandou que seus acompanhantes fossem equipados com projetores vibracionais. Se
houvesse sobreviventes lá embaixo, pretendia pegá-los vivos. A chance de estudar o
inimigo não voltaria tão depressa.
O comandante era um homem ambicioso. O fato de que o aprisionamento dos
inimigos lhe proporcionaria uma subida rápida pesou bastante em sua decisão. Mas no
momento não tinha tempo para pensar nisso. Tinha que dedicar-se exclusivamente à
tarefa que tinha pela frente.
Escolheu setenta homens, equipados com armas vibracionais. Seus trajes protetores
foram envoltos numa camada de molkex, que tornava os homens invulneráveis às armas
do inimigo.
— Assim que o canal estiver desimpedido, penetraremos no gelo — anunciou.
Sabia que muitos tinham medo de acompanhá-lo na perigosa viagem ao fundo, mas
era o comandante e não achava justo discutir suas ordens com os subordinados.
Formaram um círculo em torno da abertura e puseram-se a esperar.
Esperaram o momento em que a água deixasse de sair, deixando livre o caminho
para a profundidade.
Neste ponto não se distinguiam dos humanos que se encontravam seiscentos metros
abaixo deles.
Com a diferença de que estes queriam subir.
***
Quando a água ainda lhe chegava aos tornozelos, Kilmacthomas começou a derreter
os blocos de gelo que impediam o caminho. Agiu com a maior cautela, para evitar que o
teto descesse, barrando novamente seu caminho.
Os homens contemplaram-no em silêncio. Era perito em mundos de gelo, e por isso
ninguém tentou influir em suas decisões — nem mesmo os oficiais mais graduados.
Alguns pedaços de gelo caíram em cima do tenente, que imediatamente interrompeu
seu trabalho. Inúmeros pares de olhos fixaram-se ansiosamente no lugar em que havia o
risco de desabamento. Só quando teve certeza de que a fenda não se abriria mais,
Kilmacthomas prosseguiu em seu arriscado trabalho.
Conseguiu abrir o corredor o suficiente para que pudessem sair da caverna. A água
já se escoara. Só restavam algumas poças no chão, que logo congelaram.
Kilmacthomas prendeu a arma térmica no cinto e ligou o farol. Rastejou
cuidadosamente pela abertura que criara no corredor. Iluminou centímetro após
centímetro do teto, pois sabia que após a explosão o gelo estava agitado. O desabamento
seria o fim. Viu algumas fendas que não lhe agradaram nem um pouco, mas não teve
alternativa senão rastejar pelo corredor, apesar do perigo a que se expunha.
Fez um sinal aos outros com o farol.
— Como estão as coisas, tenente? — perguntou o Coronel Hakru.
O alto-falante do rádio de capacete de Kilmacthomas não funcionava muito bem,
mas naquele momento não tinha tempo para preocupar-se com isso.
— Se tivermos sorte, poderemos atravessar o corredor e chegar ao canal —
respondeu. — Os homens devem seguir-me um após o outro. — Iluminou o chão à sua
frente. Ninguém deve usar a arma térmica sem que eu lhe dê ordem expressa para isso.
Os astronautas e especialistas foram seguindo um após o outro. Kilmacthomas tinha
a garganta seca. Pensou que fosse falta de oxigênio, mas logo se lembrou de que as
reservas ainda bastavam para algumas horas.
Deu com um desabamento lateral.
— Parem! — ordenou.
— O que aconteceu? — cochichou Hakru. O coronel encontrava-se bem atrás de
Kilmacthomas. Fez o feixe de luz passar para além do tenente e viu o obstáculo. Um
homem pequeno não teria nenhuma dificuldade em passar. Acontece que entre eles havia
gente grande, de ombros largos. Melbar Kasom, por exemplo, precisaria de uma abertura
com o dobro do diâmetro.
Hakru soltou um assobio. Não se sabia se era de medo ou espanto.
Os homens que se encontravam bem atrás, em parte ainda no interior da caverna,
começaram a inquietar-se. Perguntas foram formuladas em voz alta.
— Silêncio! — ordenou o coronel em tom penetrante. — Logo continuaremos.
Kilmacthomas fez uma careta, pois considerava o otimismo do comandante um
tanto prematuro. Afastou alguns blocos de gelo e introduziu-se na abertura, passando ao
outro lado do corredor. Graças ao seu corpo delicado, Hakru não teve qualquer
dificuldade em segui-lo. Já o homem que o seguia, um especialista de corpo esbelto, mas
um pouco cheio, enfiou a cabeça na abertura muito pequena. Parecia perturbado.
— Quando tiver admirado isto por bastante tempo, talvez tenha uma idéia — disse
Hakru numa suave ironia.
Kilmacthomas sorriu, mas como estava de costas para Hakru, este não notou.
— Então? — perguntou Hakru.
— Seria muito perigoso usarmos as armas térmicas — disse Kilmacthomas, falando
devagar. — Acho que o senhor e eu devemos remover o gelo com as mãos, até que os
outros possam passar.
Começaram a trabalhar em silêncio. Kilmacthomas retirava os blocos de gelo e os
entregava a Hakru, que os atirava para o corredor, de tal forma que ficassem espalhados.
De repente, quando Kilmacthomas estava tirando um bloco maior, o monte de gelo cedeu.
O tenente praguejou e deu um salto para trás.
Os homens que se encontravam do outro lado fizeram uma porção de perguntas.
— Não aconteceu nada — disse Kilmacthomas em tom tranqüilizador. — Vai
demorar mais alguns minutos.
Finalmente conseguiram alargar a abertura o suficiente para que todos pudessem
passar rastejando.
Deram ordem para prosseguir. O corredor tinha a largura original, de maneira que
Kilmacthomas e Hakru puderam caminhar lado a lado.
Dali a pouco chegaram à grande ante-sala e atingiram aquilo que já fora a Tristan,
mas estava reduzido a uma bola de metal derretido. Neste ponto o frio terrível passou a
ser um bom aliado, pois fizera com que o metal esfriasse rapidamente. O gelo correra de
todos os lados para a primeira caverna. Tudo estava mudado. Apesar disso dispunham de
mais lugar que antes.
Os homens foram se reunindo aos poucos em torno de Hakru e Kilmacthomas.
A primeira coisa que Kilmacthomas fez foi ir até o mecanismo que levava a água
proveniente do gelo derretido para a superfície. O revestimento externo da máquina
estava envolto numa espessa camada de gelo, mas a mesma ainda funcionava
perfeitamente. Kilmacthomas soltou um suspiro de alívio. Derreteu o gelo nos lugares em
que o mesmo poderia representar um perigo e voltou para junto de seus companheiros.
— Muito bem — disse, satisfeito. — Vamos procurar a broca gravitacional e
verificar se ainda pode ser usada.
— Não se esqueça do hipercomunicador — lembrou Hakru. — Acho que é muito
importante enviarmos uma mensagem à ESS-1.
— Não devemos esquecer... — principiou Kilmacthomas. Nunca se soube o que ele
não quis que fosse esquecido.
A uns cem metros de distância, bem no início do canal de irradiação da água,
alguma coisa planou para dentro da caverna. Parecia um disco com um abaulamento no
centro.
Seis blues estavam de pé sobre o disco. Usavam trajes espaciais e apontavam as
armas para os terranos.
Antes que qualquer um dos agentes pudesse esboçar alguma reação, outro disco saiu
do canal, e mais outro, e muitos outros...
***
Quando a corrente de água cessou de vez, Leclerc começou a duvidar do acerto de
sua decisão. Mas logo se deu conta que ficaria irremediavelmente exposto, caso
revogasse as instruções já transmitidas aos seus subordinados.
Empertigou-se e subiu com mais cinco gatasenses no disco que penetraria no canal
antes dos outros. Leclerc não se sentiu como herói, mas havia uma ponta de orgulho em
seu interior. Era um comandante que se colocava ao lado da tripulação, mesmo nos
momentos mais difíceis, na vitória ou na derrota.
Transmitiu as últimas instruções ao astronauta que pilotava o disco. O revestimento
de molkex de seu traje espacial conferia-lhe uma sensação de segurança. Sabia que
dificilmente lhe aconteceria alguma coisa, a não ser que outro jato de água fosse expelido
do canal.
— Vamos! — ordenou Leclerc sem aumentar o volume da voz. Seus quatro olhos
viam todos os objetos que o cercavam ao mesmo tempo: a silhueta escura da nave-disco
no plano dos fundos, o gelo com seu cinza-sujo, os outros blues e o buraco em cujo
interior mergulhariam dali a pouco.
O disco desprendeu-se da superfície, sob a ação dos campos magnéticos
controlados. O piloto estava muito nervoso. Leclerc notou por causa do vôo irregular,
mas preferiu ficar calado.
Quando se encontravam bem em cima do canal, Leclerc sacou a arma vibratória e
mandou que os outros fizessem a mesma coisa. Finalmente o disco foi descendo devagar,
mas ininterruptamente.
As paredes do canal iam deslizando fugazmente perto deles. As formas e as cores
mudavam constantemente. A luz dos faróis portáteis dava ao conjunto o aspecto de
milhões de cristais movimentados por uma força desconhecida. Na verdade, era o disco
que se movia.
Leclerc não sabia a que profundidade se encontravam, mas concluiu que logo
deveriam chegar ao destino. O inimigo não poderia fazer milagres, penetrando com uma
espaçonave ainda mais profundamente no gelo.
— Luzes! — gritou o piloto.
Leclerc olhou por cima da borda do disco.
Também viu a luminosidade que penetrava no canal, vinda de baixo. Sentiu uma
imensa satisfação. Nem tudo fora destruído lá embaixo. Teve a impressão de que a luz
mudava de intensidade. Quase se poderia ser levado a acreditar que alguém estava
caminhando de um lado para outro com um farol.
De repente Leclerc ficou muito nervoso.
Será que a sorte realmente o favoreceria, fazendo cair alguns prisioneiros em suas
mãos?
Ordenou ao piloto que descesse mais devagar e, uma vez embaixo, saísse
rapidamente do canal. Queria tirar proveito do fator surpresa.
Procurou imaginar o que os esperaria lá embaixo, mas seus conhecimentos sobre o
inimigo eram tão reduzidos que tudo não passava de uma criação da fantasia que em nada
se parecia com o produto de um pensamento realístico.
Os sete dedos da mão de Leclerc seguraram firmemente o vibrador.
— Agora? — perguntou o piloto.
“Os próximos segundos podem trazer a decisão sobre a vida ou a morte”, pensou
Leclerc. Espantou-se com a indolência do pensamento, que nem chegou a tocar seu
sentimento.
— Agora! — confirmou.
Apesar do nervosismo, o piloto demonstrou uma habilidade de mestre ao tirar a
plataforma antigravitacional do canal. Deixou-a cair subitamente e fê-la avançar por meio
de um impulso horizontal, fazendo com que fosse tangida para o interior da caverna que
nem uma folha seca.
Por um instante os olhos de gato de Leclerc tremeram diante da claridade
inesperada. Mas logo viu figuras — figuras estranhas — que se moviam na luz. Levantou
o vibrador e começou a atirar.
20

Um dos homens soltou um grito de raiva e decepção. Parecia o grito selvagem de


um animal acuado. Mas o desabafo fez com que os agentes saíssem da letargia. Numa
fração de segundo compreenderam o que estava acontecendo.
Os blues estavam penetrando nos recintos subterrâneos. Eram figuras altas e
graciosas que usavam trajes protetores cobertos com um material estranho.
Mas a reação veio tarde. Os primeiros disparos dos gatasenses produziram um efeito
devastador. Mais de metade dos humanos caiu inconsciente antes que um único tiro fosse
disparado de uma arma térmica.
O Coronel Hakru, que não fora atingido, ficou apavorado ao notar que a intenção
dos blues era capturar prisioneiros.
— Para os corredores! — gritou. — Temos de sair daqui!
Saíram correndo em todas as direções. Não tiveram outra alternativa: deixaram para
trás os homens paralisados. Os blues avançaram rapidamente. Saltaram dos discos
antigravitacionais e iniciaram a perseguição.
O Coronel Hakru correu à frente de sete homens para o corredor do qual acabavam
de sair. Constatou que dispunham de duas armas térmicas.
Mandou que todos se abrigassem atrás do gelo proveniente do desabamento lateral.
— Terão uma recepção condigna — resmungou. — Assim que aparecerem no
corredor, dispararemos as armas contra eles.
Desesperado, Hakru perguntou a si mesmo onde teriam ficado os outros. Não valia a
pena chamá-los pelo rádio de capacete, pois cada um dos grupos de fugitivos tinha seus
problemas.
Os homens praguejavam e xingavam, dando vazão ao desespero. Hakru fazia votos
de que ao menos alguns dos agentes tivessem fugido para a caverna em que estava
guardado o hipercomunicador. Seria a única possibilidade de receberem socorro.
Encostado a um bloco de gelo, o coronel esperava que os blues aparecessem no
corredor. Os dois homens armados estavam a seu lado. Muito tenso, Hakru ficou
observando a abertura. Provavelmente o trabalho de carregar os homens inconscientes e
levá-los à superfície mantinha os blues ocupados.
Numa guerra cósmica os prisioneiros valem mais que uma vitória numa batalha
espacial. Por intermédio deles podia-se descobrir muita coisa a respeito do inimigo,
colhiam-se informações sobre suas características, seus pontos fortes e fracos e sua
constituição física. Com um pouco de inteligência e habilidade, até se podia conhecer a
mentalidade do inimigo.
Hakru cerrou os dentes. Recriminou-se pelo que acontecera. Deveriam ter sido
muito mais cautelosos. Hakru admitiu que o mínimo que poderia ter feito era colocar uma
sentinela junto ao canal.
Mas já era tarde para esse tipo de reflexão. Os blues tinham chegado, e só lhes
restava saber como lidar com os mesmos. Hakru sabia perfeitamente que suas chances
eram praticamente nulas. O armamento de que dispunham era insuficiente e não
poderiam contar com reforços. E, mais do que isso, os seres do Segundo Império tinham
uma grande superioridade numérica.
Pelo menos vinte dos seus homens já haviam sido postos fora de ação. O resto
fugira desordenadamente para os corredores e as galerias não desabadas.
— Até parece que perderam o interesse por nós — disse um dos homens que
seguravam uma arma térmica. — Está tudo quieto.
— E só esperar — advertiu Hakru. — Ainda há de chegar a hora em que
desejaríamos que os blues tivessem sido mais vagarosos.
Pensou na possibilidade de ser aprisionado pelos gatasenses. Os blues submeteriam
um oficial a um interrogatório muito mais rigoroso. A prisão poderia representar dias ou
semanas de martírio.
Concluiu que seria preferível morrer a ser carregado vivo para fora do subterrâneo.
Seus companheiros ficavam cada vez mais nervosos. Finalmente um deles fez uma
sugestão que o coronel já esperara há muito tempo.
— Por que não vamos ver o que está acontecendo?
— Aqui nossas possibilidades de defesa são maiores — limitou-se Hakru a dizer.
Com certa ironia perguntou a si mesmo o que estavam defendendo. Um corredor
meio desabado cavado no gelo? Por que não dava ordem para que saíssem e
combatessem resolutamente na primeira caverna?
Haviam ensinado a Hakru que devia colocar a inteligência na frente dos
sentimentos, e era o que estava fazendo. Não queria sacrificar desnecessariamente seus
homens.
Os faróis iluminavam o corredor. A luz refletia-se nas superfícies lisas do gelo e
atirava sombras compridas nos lugares em que havia blocos maiores.
A impaciência dos homens crescia a cada momento que passava. Caminharam de
um lado para outro atrás do lugar em que houvera o desabamento, praguejavam baixinho
e empurravam pedrinhas de gelo com os pés.
Hakru deixou-os à vontade. Apenas prestou atenção para que os dois homens que
carregavam armas térmicas estivessem preparados.
— Olhe, senhor! — disse uma voz retumbante pelo rádio de capacete.
Hakru virou-se abruptamente e comprimiu seu corpo junto à abertura no gelo.
Quatro blues se aproximavam, com as armas apontadas. O coração de Hakru batia
furiosamente. Os inimigos certamente supunham que iriam encontrar resistência, mas não
sabiam que estavam caindo numa armadilha.
— Esperem até que cheguem bem perto — cochichou Hakru.
Os quatro gatasenses aproximaram-se rapidamente. Dali a pouco reconheceriam o
brilho das armas térmicas. Mas o coronel não queria que as coisas chegassem a este
ponto.
— Fogo! — gritou. No mesmo instante a tensão abandonou-o por completo. Sentiu
a paixão do combate tomar conta dele. As armas térmicas abriram trilhas de fogo no meio
da escuridão. O gelo do teto esquentava rapidamente e a água pingava. Os blues deveriam
ter-se desmanchado em fogo sob a força concentrada dos tiros.
Hakru olhava firmemente para a parede de fogo. Procurava reconhecer alguma coisa
em meio à claridade ofuscante.
A primeira coisa que distinguiu foram os quatro blues que saíam da parede
energética, que aparentemente não representavam nenhum obstáculo para eles. Hakru
sentiu um calafrio. Pôs-se a refletir instantaneamente.
— Molkex! — gritou um dos homens. — Estão usando trajes de molkex, senhor.
Hakru sentiu que lágrimas de raiva lhe enchiam os olhos. Viu os quatro gatasenses
aproximarem-se com uma segurança inabalável. Até parecia haver certa arrogância na
maneira pela qual se aproximavam dos humanos sem a menor cautela.
Hakru cerrou os punhos.
De repente percebeu que estava só. Os homens se haviam retirado para os fundos da
caverna. Isso não adiantaria nada. As armas térmicas inúteis estavam jogadas no chão.
Deu uma gargalhada selvagem, pegou uma das armas e passou pela abertura, saltando
bem para a frente dos blues.
Ele não cairia vivo nas mãos deles.
Puxou o gatilho. Os blues literalmente tomaram um banho de energia, que não lhes
fez nenhum mal.
Retribuíram o fogo. Hakru estacou como se tivesse esbarrado num muro. O dedo
que apertava o gatilho tornou-se rígido. O oficial caiu para trás, porém continuava na
posse plena das faculdades mentais.
“Preciso abrir o capacete”, pensou enquanto jazia completamente imóvel. “Preciso
abri-lo para morrer”.
Hakru não queria tornar-se prisioneiro, queria poupar-se ao vexame de uma situação
humilhante como esta. Mas não conseguiu mover o braço. Não conseguiu fazer mais
nada.
“Eles me pegaram”, pensou, martirizado.
Os blues chegaram perto dele, mas não pararam. Passaram por cima dele,
penetrando nos fundos da caverna, para agarrar os outros homens.
“Levarão todos”, pensou Hakru, desesperado. “Agarrarão um após o outro.”
Olhou para o teto, que estava sendo iluminado por seu farol. Alguns pingos haviam
congelado, transformando-se em agulhas de gelo. Hakru viu rachaduras de alguns
centímetros de largura. Queria que o teto desabasse.
Aos poucos seus pensamentos foram-se tornando cada vez mais confusos. Quando
os blues chegaram para carregá-lo, já estava inconsciente.
***
O destino fez com que o Tenente Don Kilmacthomas se retirasse para os destroços
da Tristan quando fugia dos blues.
A eclusa de ar estava reduzida a um buraco derretido, pelo qual Kilmacthomas mal
conseguiu passar. Arrastou-se através do mesmo, ofegante. Imediatamente desligou o
farol, para não ser descoberto. Fez um esforço para ficar de pé e olhou para a primeira
caverna. Não viu mais nenhum dos homens que haviam escapado aos primeiros tiros.
Havia mais de vinte homens inconscientes espalhados pelo chão. Desesperado e sem
saber o que fazer, teve de ver os blues caminhar entre os homens. Outros gatasenses
entravam nos corredores, em perseguição aos homens que fugiam.
Parecia que no momento o inimigo ainda não desconfiava de sua presença naquele
lugar. Pensou que era a única pessoa que ainda poderia ter uma chance de enviar uma
mensagem pelo rádio. Devia aguardar uma oportunidade para entrar na caverna em que
estava o hipercomunicador. Como a mesma ficava bem perto do canal, nenhum dos
homens pudera entrar na mesma quando os blues apareceram de repente.
Por enquanto, reconheceu Kilmacthomas numa avaliação fria, a tentativa equivaleria
ao suicídio. Os gatasenses acumulavam-se junto à saída do canal, e novas levas iam
chegando. Pelos cálculos do tenente, havia pelo menos sessenta inimigos no subterrâneo.
Alguns já estavam colocando os homens inconscientes sobre as plataformas
antigravitacionais. Os blues não tratavam seus prisioneiros com muita delicadeza. Ainda
bem que no momento estes não estavam sentindo nada.
Kilmacthomas, que durante a fuga não se separara da arma térmica, ergueu a
mesma, que talvez poderia usar em sua defesa. Deveria abandonar o lugar em que se
encontrava e ir para a primeira caverna?
Valeria a pena tentar impedir a prisão dos homens? Não. Apenas seria mais uma
vítima do inimigo. Poderia fazer muito mais por aqueles coitados se aguardasse uma
chance de chamar a ESS-1.
Kilmacthomas contou vinte e seis prisioneiros.
Sem dúvida o número ainda aumentaria.
Kilmacthomas preferiu não penetrar mais profundamente nos destroços da nave. O
interior da mesma estava completamente derretido, e por isso não havia mais corredores
ou elevadores. Qualquer passo que desse poderia significar a morte. Não teria outra
alternativa senão continuar no mesmo lugar e esperar.
Até então os blues quase não haviam dado nenhuma atenção à Tristan. “Não é de
admirar”, pensou num assomo de sarcasmo. “Qualquer idiota pode ver o que aconteceu
com a nave”. “Mas”, continuava pensando, “até mesmo um idiota acabará por fazer uma
inspeção de rotina nos destroços. Quando isso acontecer, não deverei estar mais ali”.
Ficou furioso ao ver os blues carregarem mais alguns homens inconscientes para
fora de um corredor. Entre eles havia uma figura pequena, insignificante. Era o Coronel
Mos Hakru.
— Quer dizer que esses demônios também o agarraram — disse, amargurado.
Viu oito homens serem carregados para fora do corredor, do qual há pouco tinham
saído com tanta dificuldade. Um gatasense muito alto — parecia ser o comandante, pois o
traje espacial que usava era de feitio diferente — aproximou-se do canal. Ao que parecia,
estava conversando com os outros. Pelos gestos ligeiros, Kilmacthomas concluiu que não
havia mais ninguém por lá.
O número de prisioneiros tinha subido para vinte e quatro.
Quinze homens ainda desfrutavam o prazer duvidoso de continuar livres.
Kilmacthomas gostaria de saber se os blues também haviam sofrido perdas. Era uma
pergunta sem maior interesse. Pouco importava que houvesse alguns blues a mais ou a
menos no subterrâneo.
Encostado à entrada da eclusa, Kilmacthomas acompanhava com os olhos doloridos
a tragédia que se desenrolava à sua frente.
De repente teve a impressão de que nunca mais sairia desse mundo. Isso não o
deixou amargurado ou amedrontado. Era apenas um jovem que tinha uma missão a
cumprir antes de morrer.
21

A facilidade com que o inimigo foi dominado deixou Leclerc surpreso. Esperara que
fossem sofrer pesadas perdas, mas os trajes de molkex haviam resistido aos ataques do
inimigo. Viu que o receio de que os desconhecidos pudessem ter inventado uma arma
capaz de romper a blindagem de molkex não tinha base.
Dividiu os grupos de combatentes pelos corredores abertos no gelo. Dessa forma
aprisionariam e levariam para bordo da nave-disco qualquer inimigo que ainda se
encontrasse por ali.
Uma vez cumprida esta tarefa, teria que dedicar sua atenção à espaçonave dos
desconhecidos, que certamente fora transformada propositalmente em sucata.
Leclerc transmitiu suas ordens com a voz calma. Era apenas uma questão de tempo
que a nave sob seu comando pudesse decolar do mundo gelado e viajar em direção a
Gatas.
O comandante Leclerc era o primeiro gatasense que conseguira capturar
prisioneiros.
A idéia deixou-o orgulhoso. Sentiu-se satisfeito ao ver mais três inimigos postos
fora de ação com os vibradores, que estavam sendo carregados para fora do corredor e
colocados sobre um dos discos antigravitacionais.
O gatasense transmitiu uma mensagem para a nave, a fim de que se preparassem
para receber os prisioneiros. Além disso tranqüilizou os astronautas que haviam ficado lá
e esperavam ansiosamente sua volta.
Leclerc dirigiu-se ao lado oposto da caverna. Depois dos disparos feitos no
momento em que penetraram na caverna, não usara mais a arma. Mas estava preparado
para repelir um eventual ataque de surpresa. Graças aos quatro olhos podia observar
praticamente todos os pontos da caverna situados desse lado da nave.
— Pegamos mais quatro, comandante — anunciou alguém. Muito satisfeito, Leclerc
esperou que os prisioneiros fossem carregados para fora do corredor.
Um dos suboficiais aproximou-se dele.
— Não pode haver mais inimigos por aqui — disse. — Acho que já pegamos todos.
Leclerc sentiu a raiva tomar conta dele.
— Eu darei a ordem, quando achar que a ação deve ser suspensa — disse em tom
penetrante.
Mandou que saíssem novamente à procura dos inimigos.
Não podia cometer o erro de subestimar o inimigo, somente porque o mesmo não
possuía armas capazes de destruir o molkex. Isso não significava absolutamente nada. No
momento em que estivessem festejando a vitória, um grupo de inimigos poderia reunir-se
e tentar escapar à força.
Leclerc resolveu que continuaria a agir com muita cautela.
Nem desconfiava de que um par de olhos azuis acompanhavam seus movimentos.
***
O sargento Wallaby olhou para cima, através da carlinga, para ver se ainda estava só
naquela caverna. O caça espacial em que se abrigara não era um esconderijo muito bom,
mas a oferta de lugares protegidos era tão reduzida que não teve outra possibilidade senão
retirar-se naquela minúscula nave espacial.
Desde o momento em que se apresentara como voluntário, o sargento Wallaby
passara por uma transformação. Reconheceu que cometera muitos erros durante a vida. O
pior deles fora enganar a si mesmo. Admitiu que não era uma grande inteligência. E seu
grau de instrução não lhe permitia dispensar aos subordinados um tratamento que pudesse
ser considerado objetivamente correto.
Sentia-se muito velho, e ainda era sargento. Dali já deveria ter concluído que havia
algo de errado com ele. Mas sempre que alguma coisa não dava certo, culpava os outros.
Acenou com a cabeça. Estava aflito. Se conseguisse sair dali, teria de reparar muitos
erros. Imaginou como seriam as coisas se num dia quente ficasse sentado na varanda de
sua casa, com os olhos semicerrados, observando as moças que passavam pela rua.
Sorriu. Por que se lembrava disso justamente agora? Era uma coisa de louco.
Acontece que não estava sentado numa varanda. As moscas não zumbiam em torno
dele e não havia nenhum cachorro acorrentado nas vizinhanças, que latisse seus
aborrecimentos para o ar tépido do meio-dia. A senhora Moreno não estava pendurando
roupa no varal, do outro lado da rua, e nenhuma espaçonave traçava uma raia prateada no
céu. O velho Tesko Patton não subia a rua, arrastando os pés, embriagado como
costumava estar a essa hora do dia.
Estes quadros só existiam na imaginação de Wallaby. Eram uma lembrança da
cidadezinha do planeta Terra em que vivera. Antigamente essas coisas lhe pareciam
secundárias e ridículas.
Wallaby costumava fechar-se diante disso, até chegara a desprezar esses quadros e
zombar deles. Mas agora achava que um ébrio como Tesko Patton compreendia muito
mais dessas coisas do que ele, que era o sargento Wallaby.
A cidadezinha desmanchou-se em seu pensamento que nem uma bolha de sabão.
Viu à sua frente o metal duro do caça espacial, a arma térmica que segurava nas mãos e a
caverna escura que envolvia tudo — escura, porque desligara seu farol portátil.
A luz passou tão repentinamente pelo teto da caverna que o sargento estremeceu.
Levantou-se, enquanto a luminosidade se tornava cada vez mais intensa, e olhou para
fora da carlinga.
Vinham num grupo de dez.
Suas figuras magras lançavam sombras bruxuleantes sobre as paredes da caverna.
Distribuíram-se de maneira uniforme pelo recinto, com as armas apontadas para a frente.
Dois deles vieram em direção ao caça espacial.
Wallaby levantou a carlinga da minúscula nave e girou-a para trás, como se isto
fosse a coisa mais natural do mundo. Levantou-se e apontou a arma térmica na direção
dos blues que se aproximavam.
Não conseguiu fazer um único disparo. Os blues, que tinham quatro olhos, viram-no
imediatamente. Suas armas vibratórias entraram em ação.
Wallaby teve a impressão de que o sangue estava congelando em suas veias. De
repente o frio do gelo parecia atravessar seu traje protetor e penetrar em seu corpo.
Teve um pensamento sarcástico: “Meus olhos devem estar iguais aos de Tesko
Patton”, enquanto tombava lentamente para a frente, caindo para fora da carlinga. Antes
que pudesse bater com toda força no chão, os blues chegaram e o arrancaram de lá.
Wallaby perdera os sentidos.
Era o prisioneiro número quarenta e oito.
Porém somente um dos seus companheiros continuava em liberdade: o Tenente Don
Kilmacthomas!
22

O estranho que estava sendo carregado para fora de uma das cavernas era de estatura
descomunal. Leclerc não resistiu à tentação de examinar detidamente esse homem, que
diante de seus companheiros era um verdadeiro gigante.
Leclerc não poderia imaginar que se tratasse de Melbar Kasom, especialista da
USO. Controlou pessoalmente a colocação do gigante sobre um dos discos
antigravitacionais. “Deve ser o comandante da nave”, conjeturou Leclerc.
Mais um disco antigravitacional estava totalmente carregado. Leclerc mandou que
subisse à superfície. Depois chamou um dos suboficiais.
— Todos os corredores e cavernas foram cuidadosamente revistados? — perguntou.
— Foram — respondeu o blue. — Não há mais nenhum inimigo por aqui.
Leclerc percebeu que o blue queria dizer mais alguma coisa, mas não tinha coragem
de manifestar-se perante seu superior.
— Quer mais alguma coisa? — perguntou.
— Há muitos equipamentos nas cavernas — disse o suboficial. — Sugiro que os
examinemos.
— Naturalmente — disse Leclerc. — Cuidaremos disso. Pode retirar-se. A nave
inimiga também será submetida a um exame cuidadoso.
O blue retirou-se tranqüilamente. Leclerc subiu num dos discos antigravitacionais.
Deixou dez blues para montar guarda. Voltaria assim que os prisioneiros tivessem sido
colocados na nave.
Os aparelhos voadores levantaram-se do chão da caverna e foram desaparecendo no
canal. A claridade diminuiu bastante, pois o ambiente era iluminado apenas pelos faróis
dos blues que tinham ficado para trás.
Nada indicava que dali a vinte minutos o tumulto voltaria a reinar sob o gelo.
***
As observações realizadas por Kilmacthomas não deixaram de produzir seus
resultados.
Já tinha certeza de que os trajes protetores dos blues tinham um revestimento de
molkex. Era por isso que não haviam sofrido perdas. Não podiam ser atingidos pelas
armas térmicas.
Deveria lembrar-se disso quando conseguisse penetrar na caverna em que estava o
hipercomunicador.
Sentiu-se aliviado ao ver os discos voadores desaparecerem um após o outro. Mas se
esperava que todos os blues se retirassem, estava enganado.
Dez gatasenses ficaram para trás e patrulhavam a área. Ao que parecia, estavam
muito nervosos. Kilmacthomas podia compreender que para estes seres não seria nada
agradável montar guarda num lugar destes.
Por algum tempo acompanhou todos os movimentos dos guardas. O pior era que as
rondas eram feitas ao acaso. Não seguiam um esquema preestabelecido, que
possibilitasse a Kilmacthomas abandonar seu posto de observação. Resolveu aguardar
uma oportunidade favorável. Não havia outra alternativa.
Diante da presença dos guardas concluiu que os outros blues voltariam. Isso queria
dizer que seu tempo era limitado.
Seus companheiros tinham sido aprisionados. Quarenta e oito cidadãos do Império
Unido encontravam-se em poder dos blues.
Se não agisse com muito cuidado, seria o número quarenta e nove.
Seis dos dez gatasenses desapareceram do outro lado da Tristan. O tenente espiou
para fora da eclusa destruída. Não deveria esquecer que os blues tinham quatro olhos.
Seriam capazes de vê-lo, mesmo que estivessem de costas para ele.
A penumbra da caverna iluminada somente por uns poucos faróis estendia-se à
frente de Kilmacthomas. Mais um gatasense desapareceu atrás da Tristan.
Uma oportunidade como esta não voltaria tão depressa. Teria de percorrer mais de
duzentos metros para chegar à caverna em que estava guardado o hipercomunicador.
O tenente olhou para fora da eclusa, à procura de alguns lugares em que pudesse
abrigar-se, pois não poderia percorrer o trecho de uma vez. O gerador do sistema de
irradiação de água poderia protegê-lo por um instante dos olhos vigilantes do inimigo.
Além disso, havia alguns blocos de gelo de grandes dimensões pelo caminho. Se
necessário, poderia esconder-se atrás dos mesmos.
Kilmacthomas entesou o corpo. Saltou da eclusa e dobrou os joelhos quando seus
pés tocaram o gelo. Havia dois blues atrás dele, mas por enquanto estaria protegido pelos
destroços da Tristan. O terceiro blue que se encontrava do mesmo lado da nave estava
parado junto à entrada de uma das cavernas.
Kilmacthomas correu abaixado. O calor gerado durante o processo de fusão abrira
uma vala profunda em torno da Tristan. O tenente saltou para dentro da mesma e
continuou rastejando. Sabia que este caminho não o levaria ao destino. Mas conseguiria
avançar um bom pedaço.
Ofegante, chegou ao lugar em que teria de sair da vala se não quisesse afastar-se da
caverna em que se encontrava o hipercomunicador.
Olhou por cima da borda da vala. Mais ao longe viu quatro blues que estavam
voltando da ronda. Seus faróis descreviam movimentos bruscos. A luz corria pelo chão e
lançava reflexos fantasmagóricos no teto.
Kilmacthomas saiu da vala e rastejou pelo gelo, com o corpo colado contra o chão.
A qualquer momento poderia soar um tiro. Não teve coragem de olhar para trás. Os dois
blues que estavam à sua frente já bastavam. Permanecendo sempre grudado ao chão,
atingiu um bloco de gelo. Soltou um suspiro de alívio e encostou-se ao mesmo.
O coração batia fortemente, porque não estava acostumado a tamanho esforço físico.
Obrigou-se a rastejar em torno do bloco de gelo, tendo sempre o cuidado de não entrar no
feixe de luz de um dos faróis.
A unidade geradora ficava apenas a uns sessenta ou setenta metros do lugar em que
estava, e dali deveria ser relativamente fácil chegar à caverna.
Mas entre seu abrigo atual e o sistema de irradiação de água havia somente o gelo
liso. Não viu a menor irregularidade no solo que pudesse servir-lhe de proteção.
Não poderia rastejar nesse trecho. Teria de percorrê-lo numa corrida rápida.
Procurou determinar a posição dos dez gatasenses. Encontravam-se nos lugares
menos favoráveis em que poderiam estar, mas Kilmacthomas sabia perfeitamente que não
poderia continuar ali.
Desprendeu-se do bloco de gelo que nem uma sombra e saiu correndo.
***
Assim que recuperou a consciência, vieram as dores. O Coronel Mos Hakru quis
cerrar os dentes, mas teve de constatar que a mandíbula não obedecia ao comando do
cérebro. Não podia fazer o menor movimento. Estava completamente paralisado.
Sentiu uma pressão surda no peito. Era como se alguém tivesse colocado uma carga
sobre o mesmo.
Aos poucos a lembrança dos acontecimentos voltou à sua mente — e com ela o
sentimento de pavor.
Era prisioneiro. Estava em poder dos blues.
Um formigamento espalhou-se, partindo do couro cabeludo. Conseguiu abrir os
olhos.
Olhou diretamente para um teto de plástico marrom. Não pôde ver o recinto em que
se encontrava, pois não conseguia mover a cabeça, por pouco que fosse.
De qualquer maneira já não estava embaixo do gelo. Os blues haviam-no levado a
outro lugar.
Idéias confusas o martirizavam. Já estaria em Gatas? Ou estaria preso numa nave-
disco? Os ruídos que atingiam seu ouvido indicavam esta última possibilidade.
Hakru sentiu-se miseravelmente mal. Não eram tanto as dores físicas, mas
principalmente a decepção e a amargura.
O avanço para o sistema de Verth fracassara. Mais que isso, transformara-se num
triunfo do inimigo. Como era um dos comandantes do projeto, sentia-se responsável pelo
malogro.
E agora jazia no chão, desamparado e incapaz de mover um dedo.
Os olhos doloridos de Hakru fitavam o teto. Quanto tempo demoraria até que a
rigidez abandonasse seu corpo? Será que os blues o deixariam paralisado até que
chegassem ao destino?
Outra pergunta passou a ocupar os pensamentos do coronel. Onde estavam os outros
homens, que foram presos juntamente com ele? Talvez estivessem deitados a seu lado e
ele não conseguia vê-los porque era incapaz de mover a cabeça.
De repente uma sombra caiu sobre ele.
Os olhos de Hakru estremeceram. Era a única reação de que era capaz.
O rosto indiferente de um gatasense baixou sobre ele. Um par de olhos de gato
fitaram-no. Hakru sentiu pavor, medo e ódio. Mas não conseguiu desviar-se daqueles
olhos, que pareciam enfeitiçá-lo.
Por algum tempo os dois se fitaram — o humano e o blue. Provavelmente cada um
procurava descobrir os pensamentos do outro, sem a menor possibilidade de sucesso.
Talvez o ser que se interessava por ele fosse um dos chefes dos gatasenses, refletia
Hakru. Talvez se divertisse em observar a criatura indefesa. A única coisa que Hakru
pôde fazer foi retribuir o olhar com todo o ódio de que era capaz.
Uma estranha tensão espalhou-se por sua nuca. Até parecia que alguém queria
arrancar-lhe a medula. Hakru soltou um gemido. O desconhecido continuava a fitá-lo,
imóvel. A tensão ficou mais forte. De repente Hakru conseguiu mover a cabeça.
O que viu deixou-o profundamente abalado. „
À sua esquerda jazia uma fileira de homens que vestiam trajes protetores. Pareciam
mortos.
O coronel fez um esforço tremendo e conseguiu levantar a cabeça. Compreendeu
imediatamente que as pessoas que estava vendo eram os voluntários. Nenhum deles
escapara à prisão. Deixou cair a cabeça e fechou os olhos.
Não podia saber que um dos homens continuava em liberdade. Mesmo que
soubesse, seu desespero não seria menor. O blue que estava a seu lado retirou-se.
Hakru estremeceu. Não sabia o que o futuro lhe reservava. Mas sabia que não havia
a menor esperança. O caminho que se estendia à sua frente era o da prisão gatasense.
Pelo que sabiam a respeito dos blues, isso era pior que a morte.
23

Kilmacthomas nunca pensara seriamente que pudesse chegar à caverna sem ser
descoberto. Correu abaixado em direção à unidade geradora.
Quando se encontrava a uns dez metros da mesma, foi descoberto.
De repente viu-se envolvido pela luz de vários faróis. Instintivamente soltou um
grito. Deu um salto desesperado em direção à unidade geradora. O lugar em que se
encontrara há um instante foi literalmente inundado pelos raios dos vibradores. O braço
esquerdo de Kilmacthomas entrou na linha de fogo de uma das armas. Teve a impressão
de que sua mão estava congelando.
Atirou-se ao chão. Por um instante saiu da área iluminada pelos faróis e rolou em
direção à unidade geradora. Sentiu a resistência do metal e segurou-se com a mão intacta.
No lugar em que se encontrava o gelo era tão liso que conseguiu chegar facilmente
ao lado oposto da máquina. Deu uma olhada para o lado oposto do mecanismo e viu sete
gatasenses que se aproximavam.
Kilmacthomas nem tentou atirar contra eles, pois sabia que seria inútil.
Uma idéia arrojada atravessou seu cérebro. Levantou a arma térmica e fez pontaria
para o teto da caverna, bem em cima dos blues. Deu um disparo contínuo. O gelo
derreteu e uma torrente de água e de blocos de gelo caiu sobre os gatasenses,
estabelecendo a confusão em suas fileiras.
O tenente logo se pôs de pé e saiu correndo em direção à entrada da caverna.
Quando os blues compreenderam que suas vidas não estavam em perigo, Kilmacthomas
já se encontrava fora do alcance de suas armas.
Correu ofegante pelo corredor que o levaria à outra caverna. Quando chegou lá, fez
circular a luz do farol.
Ficou aliviado ao notar que o hipercomunicador continuava no mesmo lugar em que
fora deixado pelos especialistas. Seu revestimento estava coberto por uma camada de
gelo. Era uma conseqüência da onda de pressão. Acontece que o aparelho fora
especialmente construído para funcionar num mundo de gelo. Bastaria derreter o gelo
para colocá-lo em funcionamento.
Esperava que a vantagem que levava sobre seus perseguidores fosse suficiente.
Ligou a arma térmica para o campo mais estreito e pôs-se a derreter o gelo.
De repente viu luzes no corredor.
Os blues estavam chegando. Kilmacthomas virou-se e praguejou. O
hipercomunicador ainda não estava em condições de entrar em funcionamento, e seus
perseguidores já tinham chegado bem perto.
Mas estava decidido a expedir a mensagem, houvesse o que houvesse. Encontraria
um meio de deter os gatasenses.
Um plano desesperado começou a delinear-se em seu cérebro, um plano que só
poderia ser concebido por uma pessoa que não tinha mais nada a perder.
***
O alarme atingiu Leclerc como um choque. Quando o sinal foi transmitido, estava
vistoriando os prisioneiros. O comandante retirou-se às pressas. Um suboficial veio
apressadamente pelo corredor.
— Alarme na caverna, comandante — anunciou. — Os homens comunicam que há
mais um inimigo em liberdade. Ficou escondido o tempo todo nos destroços da nave.
— Só um? — perguntou Leclerc em tom de desprezo.
— Só — confirmou o astronauta. — Mas está criando dificuldades. Parece ter um
plano bem definido. Os nossos que estão lá de vigia informam que ele assumiu um risco
enorme para chegar a determinada caverna.
Leclerc amaldiçoou a leviandade que o levara a cometer tamanho erro. Imaginava
perfeitamente o que levava aquele desconhecido a dirigir-se a uma certa caverna. Lá
devia existir um radiotransmissor, com o qual poderia solicitar reforços ou ao menos
transmitir a notícia dos acontecimentos.
— Quero meu traje espacial — ordenou Leclerc. — Mande preparar imediatamente
uma nave-disco. Assumirei pessoalmente o comando da operação. Temos de pegar esse
homem de qualquer maneira, antes que possa executar seu plano. A caverna deve ser
tomada de assalto. — Colocou o traje de molkex e transmitiu novas ordens. — Prestem
atenção a eventuais impulsos que indiquem que um radiotransmissor foi posto em
atividade. Em hipótese alguma o inimigo deve ter conhecimento de que aprisionamos
seus homens. Quero que no império deles todo mundo acredite que nenhum dos homens
sobreviveu ao nosso ataque.
Enquanto proferia as últimas palavras, Leclerc já se dirigia à eclusa da nave. Uma
plataforma antigravitacional com seis homens a bordo já estava à sua espera. Saiu da
nave o mais depressa que pôde.
— Vamos! — resmungou assim que subiu no disco. O piloto imprimiu uma
aceleração tremenda ao aparelho. Logo chegaram ao canal de entrada e foram descendo.
Na caverna, outra surpresa esperava Leclerc. Os dez blues que deixara para vigiar o
local estavam à frente de uma caverna, bastante confusos.
Leclerc saltou da nave-disco assim que o mesmo tocou o chão.
— O que houve? — perguntou. — Onde está o inimigo? Vocês o mataram?
Os blues ficaram calados. Estavam embaraçados. Sabiam perfeitamente que haviam
cometido um erro que atrairia a ira do comandante sobre eles.
— Vamos! Falem logo! — ordenou Leclerc.
— Ainda está lá dentro — disse um dos astronautas, apontando para o corredor.
Leclerc cochichou algumas palavras compreensíveis e disse:
— Tirem-no de lá.
— Ele deve estar louco, comandante — disse o porta-voz dos guardas. — Não
conseguimos chegar lá. É um verdadeiro demônio.
— Está sozinho — disse Leclerc em tom irônico.
Mas logo soube o que fizera o estranho.
***
Kilmacthomas virou-se resolutamente para a entrada da caverna, onde os blues
apareceriam dentro de alguns instantes. Devia retê-los de qualquer maneira.
Levantou a arma térmica e regulou-a para a potência máxima. Fez pontaria para as
camadas de gelo situadas acima da entrada. O teto cedeu dentro de alguns segundos.
Kilmacthomas soltou uma expressão de triunfo.
Viu uma avalanche obstruir a entrada. A água penetrou na caverna e pedaços de gelo
vieram rolando em sua direção. Se tivesse azar, toda a caverna desabaria. Kilmacthomas
só parou de atirar quando a entrada ficou totalmente obstruída. Isso deteria os atacantes
por algum tempo. Fazia votos de que as massas de gelo tivessem atingido alguns deles.
Eles acabariam abrindo caminho, mas até lá teria tempo de expedir sua mensagem.
Com os dedos trêmulos, voltou a dedicar-se ao hipercomunicador. A água, que lhe
chegava aos tornozelos, congelava muito depressa. Kilmacthomas contornou o aparelho
para remover a última camada de gelo.
Logo pôs à vista todos os comandos. Verificou se estava tudo em ordem. Não notou
qualquer avaria. As baterias forneciam energia suficiente.
Moveu a chave mestra e esperou que o controle liberasse o aparelho para a
transmissão da mensagem.
De repente percebeu que a água estava subindo no interior da caverna e não
congelava mais.
Logo soube o motivo: os blues tinham começado a derreter um caminho no gelo.
Voltou-se novamente para o aparelho e fez votos de sair vitorioso na luta contra o
tempo.
***
— Sem dúvida está morto — disse um dos blues, dirigindo-se a Leclerc. — Está
enterrado embaixo do gelo.
O comandante gatasense não tinha tanta certeza assim. Acreditava que o
desconhecido sabia perfeitamente o que estava fazendo.
— Vamos verificar se ainda está vivo — ordenou Leclerc.
Mandou então que trouxessem projetores térmicos e penetrou no corredor
juntamente com quatro gatasenses. Era exatamente como lhe haviam contado. Em certo
trecho o corredor desabara, impedindo a passagem.
— Fundiremos um caminho no gelo — disse Leclerc, e começou a acionar os
projetores.
Tiveram de trabalhar com cuidado, pois a remoção do obstáculo não deixava de
oferecer certo perigo. A qualquer momento novas massas de gelo poderiam cair sobre
eles. Aquele inimigo solitário lhes causava muitos problemas.
Leclerc exigiu pressa de seus companheiros, embora soubesse que aqueles homens
amedrontados estavam fazendo o possível.
Aos poucos foram derretendo o gelo e abrindo uma passagem de tamanho suficiente
para permitir a entrada de um homem. Na opinião de Leclerc, a camada de gelo não era
muito espessa.
Viu confirmada sua suposição.
De repente surgiu um buraco no gelo, que foi aumentando rapidamente.
— Suspendam o fogo — disse Leclerc em tom satisfeito. — Se ainda estiver vivo, é
muito perigoso. Vamos ver o que está fazendo.
Leclerc aproximou-se do buraco para lançar um olhar no interior da caverna. No
mesmo instante as fúrias do inferno pareceram desabar sobre eles.
***
No início o buraco tinha o aspecto de um olho incandescente, mas logo foi
crescendo. A água pingava das bordas. Kilmacthomas lançou um olhar para o
hipercomunicador e certificou-se de que teria de esperar mais alguns segundos para
colocá-lo em funcionamento.
O buraco já era do tamanho de uma bola de futebol. O tenente constatou que do lado
oposto os blues tinham suspendido o bombardeio.
De repente a abertura obscureceu-se. Kilmacthomas viu um olho de gato que o
fitava. Não podia ver o resto da cabeça, porque esta era muito maior que o buraco.
O olho era protegido por um capacete que cobria toda a cabeça. Kilmacthomas
levantou a arma térmica. O gatasense desapareceu imediatamente.
Já sabiam que ainda estava vivo. O cano de uma arma foi entrando pela abertura.
Um sorriso feroz surgiu no rosto de Kilmacthomas, que deu um salto para o lado e
disparou a arma térmica. O cano da arma foi retirado da abertura, mas o disparo do
tenente aumentara o tamanho da abertura. Kilmacthomas viu os contornos vagos do
inimigo. Abriram fogo contra ele e atingiram-no na perna direita, que dentro de alguns
segundos ficou paralisada.
Não teve outra alternativa senão atirar para o teto da caverna, junto à entrada. Mais
uma vez blocos de gelo e torrentes de água foram descendo. No momento nenhum perigo
o ameaçava, pelo menos da parte dos blues. Em compensação o risco representado pelo
gelo era muito mais grave. Novas fendas surgiram no teto. Com base em sua experiência,
Kilmacthomas deduziu que o teto iria desabar. Seria apenas uma questão de tempo. A
entrada estava completamente obstruída. Os blues levariam alguns minutos para fundir o
gelo e abrir outro buraco, se é que estavam dispostos a assumir o risco de serem
esmagados.
Kilmacthomas saiu mancando em direção ao hipercomunicador.
A perna paralisada ardia que nem fogo. No entanto, Kilmacthomas ficou aliviado ao
notar que o aparelho estava em condições de ser usado.
Agachou-se à frente do mesmo e apertou a tecla principal. Nenhum gatasense
poderia impedi-lo.
De repente o teto cedeu bem em cima de Kilmacthomas. Grandes pedaços de gelo
choveram sobre sua cabeça. O tenente foi atirado para trás e bateu violentamente com a
cabeça no chão. O capacete amorteceu o impacto. Kilmacthomas fez um esforço
desesperado e conseguiu libertar-se. Olhou para o teto e pôde avaliar toda a extensão da
tragédia: a caverna ia desabar, era só uma questão de tempo. E a entrada da mesma estava
bloqueada. Ele mesmo cortara seu caminho de fuga.
Esse caminho de fuga só poderia conduzi-lo aos blues.
Kilmacthomas voltou para junto do hipercomunicador, passando por cima dos
blocos de gelo. O aparelho continuava intacto.
Parecia estar com o corpo dormente. Não sentiu nem um pouco de dor. Concentrou-
se exclusivamente na mensagem que pretendia transmitir. Se ainda era capaz de entreter
um sentimento, este sentimento seria o da satisfação pela tarefa cumprida.
***
— Para trás! — gritou Leclerc. Esbarrou em um dos companheiros e foi bater na
parede do corredor. O gelo escorregou à sua frente. Fendas com inúmeras ramificações
apareceram no teto.
— A caverna está desabando! — gritou um dos gatasenses.
Correram para salvar a vida. Leclerc nem olhou para trás enquanto saía do corredor,
seguido pelos outros astronautas. O inimigo estava perdido. Seria esmagado pelo gelo.
Leclerc admirou a coragem daquele homem solitário, que preferia destruir-se a cair
prisioneiro.
— Devemos voltar imediatamente à superfície — ordenou Leclerc. — O
desabamento da caverna pode provocar alterações em toda a estrutura da estação
subterrânea. Se isso acontecer, ficaremos presos numa armadilha.
Os blues ficaram satisfeitos quando puderam subir num de seus discos voadores.
Leclerc não perdeu tempo. Mandou que partissem imediatamente. O piloto levou o
aparelho para fora do canal. Dali a pouco chegaram à nave-disco.
Leclerc desvencilhou-se do traje protetor e dirigiu-se à sala de comando, onde uma
surpresa o aguardava. Os dois homens que estavam sentados junto aos aparelhos de
localização informaram-no de que alguém transmitira um hiperimpulso. Alguém que só
poderia estar sob o gelo do planeta.
Não aconteceu o que todos esperavam: Leclerc não ficou zangado.
Parecia pensativo. Foi para perto da tela. Provavelmente a esta hora a frota inimiga
já estava informada sobre os acontecimentos que se haviam desenrolado naquele mundo
de gelo. Não havia mais nada que ele pudesse fazer. Não acreditava que o inimigo
assumisse o risco de um ataque temerário. Mas no futuro o império dos gatasenses, o
Segundo Império, teria de estar muito bem protegido contra um ataque vindo de fora.
Aquelas criaturas eram perigosas. Eram muito corajosos e não podiam ser
subestimados num conflito de maiores proporções.
Leclerc tranqüilizou-se quando se lembrou dos prisioneiros. Eles forneceriam
muitas informações sobre o inimigo. O seu império poderia planejar suas operações
militares futuramente de acordo com essas informações.
A raça dos blues precisava de um espaço vital mais amplo.
Não podia dar-se o luxo de permitir que alguém a detivesse na busca desse espaço.
Leclerc mandou que as eclusas de ar fossem fechadas. Os instrumentos de bordo,
que eram muito sensíveis, registraram uma movimentação do gelo, sob a superfície do
mesmo.
“Foi a caverna que desabou”, pensou Leclerc, impassível.
O gelo estava cobrindo o que restava da base subterrânea. Com o tempo ninguém
encontraria o menor vestígio da mesma, por mais intensas que fossem as buscas.
A ferida que o inimigo abrira no império dos blues estava fechada.
Com a voz firme Leclerc deu ordem para decolar. Gatas estava à espera dos
prisioneiros.
24

Perry Rhodan inclinou-se sobre a fita em que estava gravada a mensagem que a
ESS-1 retransmitira para a Eric Manoli.
Bell leu por cima do ombro do amigo. Segundo a mensagem, os blues haviam
conseguido aprisionar quarenta e oito homens no décimo quarto planeta de seu sistema
solar. Entre os prisioneiros estava o Coronel Mos Hakru e Melbar Kasom, especialista da
USO. O Tenente Don Kilmacthomas, autor da mensagem, supunha que os homens seriam
levados para Gatas, mundo central do Segundo Império.
O próprio Kilmacthomas estava preso numa caverna, onde aguardava a morte.
— Não podemos fazer nada por Kilmacthomas — disse Rhodan, amassando a fita
com a mensagem.
Contrariando seus hábitos, Bell permaneceu em silêncio. Refletia intensamente.
— Os blues conseguiram prisioneiros — disse Rhodan. — Isso lhes confere uma
grande vantagem. A tentativa de penetrar no sistema de Verth foi um fracasso lamentável.
Kors Dantur pigarreou fortemente.
— Temos de tirar os homens de lá — disse.
O rosto magro de Rhodan não demonstrava o menor sentimento. Naturalmente
deviam fazer tudo para libertar os prisioneiros, mas no momento não via a menor
possibilidade de fazerem isso.
Os blues deviam estar muito desconfiados. Redobrariam a vigilância. Era pouco
provável que uma única nave terrana conseguisse aproximar-se do sistema de Verth sem
ser localizada e atacada imediatamente.
O Império Unido acabara de sofrer um grave revés.
Bell, que parecia adivinhar os pensamentos de Rhodan, disse em voz baixa:
— Vamos descobrir um meio, meu chapa.
Mas não havia muita convicção em suas palavras.
***
Se procurarmos o nome Kilmacthomas nos inúmeros volumes da Enciclopédia da
Humanidade, não o encontraremos, por mais que nos esforcemos.
O Tenente Don Kilmacthomas está sepultado sob uma camada de gelo de seiscentos
metros de espessura. Há uma ligeira expressão de espanto em seus olhos azul-escuros.
Até parece que não conseguia compreender o que estava acontecendo em torno dele.
A missão em que Kilmacthomas encontrou a morte foi a primeira de que participou.
Esta foi sua história...

***
**
*
Em missões anteriores, os terranos conseguiram
capturar e interrogar alguns blues. Mas agora estes
acabam de registrar um êxito notável. Perto de
cinqüenta terranos caíram em suas mãos. Entre eles
encontra-se Melbar Kasom, o célebre agente especial
da USO! É claro que Lemy Danger não poderia
abandonar seu gigantesco amigo. Lemy entra
diretamente na toca do leão, à frente dos
Homúnculos de Siga, título do próximo volume desta
série.

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