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Resenhas

Ângela Alonso, Idéias em movimento: a geração nativa, que já rendeu excelentes pesquisas e ainda
1870 na crise do Brasil Império. São Paulo, Paz e pode render outras, não é a seguida por Ângela
Terra, 2002, 392 pp. Alonso em Idéias em movimento: a geração 1870 na
crise do Brasil Império.
É interessante apontar, inicialmente, as opções
João Ehlert Maia rejeitadas na pesquisa, por indicarem quais cami-
Doutorando em Sociologia no Iuperj nhos novos a autora deseja trilhar. De saída, Alonso
descarta uma das mais tradicionais abordagens, que
Como tratar de forma original um tema tão fami- classifica os personagens em função de suas filiações
liar à imaginação intelectual brasileira como esse, o intelectual-doutrinárias. Essa recusa não é gratui-
da famosa “geração 1870”? Como apreender o sen- ta. De acordo com a autora, isso seria conferir ao
tido dessa geração, que abriga nomes tão díspares mundo intelectual do período (Segundo Reinado)
quanto Joaquim Nabuco, Alberto Salles, Sílvio uma autonomia e uma complexidade inverossímeis.
Romero, Lopes Trovão, entre tantos outros? Como Como falar de escolas intelectuais num cenário em
interpretar sociologicamente um conjunto que reúne que política e letras se misturavam de forma tão
liberais, republicanos, positivistas e federalistas, to- provocadora? Ademais, assumir filiações e prefe-
dos às voltas com Spencer, Comte e Darwin? Uma rências como índice seguro de classificação signi-
alternativa seria seguir o padrão que parece lenta- ficaria atribuir peso excessivo às próprias inter-
mente se impor nas áreas de estudos voltadas para o pretações dos atores do período, como se a visão
chamado “pensamento social brasileiro”: o tratamen- que os mesmos construíram a respeito de suas tra-
to monográfico de autores e obras, recurso que per- jetórias já esgotasse o processo de pesquisa socio-
mitiria maior precisão conceitual e interpretativa lógica. A opção por uma abordagem que buscasse
diante das generalizações esquemáticas. Essa alter- correspondência direta entre ideologia e grupos
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sociais (como “cientificismo = expressão de seto- Ao longo do texto, Alonso trabalha com um “tri-
res médios emergentes”) também é afastada, dada pé” conceitual que a auxilia a encaminhar o argu-
a pluralidade de atores que compunham essa ge- mento principal. Comunidade de experiência, repertó-
ração – setores médios, por certo, mas também grupos rio e estrutura de oportunidades políticas formam o ar-
tradicionais decadentes. Ora, então onde estaria o cabouço a partir do qual a autora interpreta a ação
sentido do protesto coletivo que sacudiu o Impé- coletiva da geração e o sentido prático-político que
rio e propiciou uma explosão de “idéias novas”? O orientaria esse “movimento social”. De uma certa
argumento da autora é cristalino, e trabalhado exaus- forma, os capítulos centrais estão estruturados justa-
tivamente ao longo do livro: a geração de 1870 deve mente em torno de cada um desses conceitos, o que
ser compreendida a partir de um marco analítico facilita a exposição da hipótese e o acompanhamento
que destaque a experiência compartilhada de seus do raciocínio desenvolvido.
membros. Com esse movimento, a autora busca evitar No primeiro capítulo, a autora apresenta o regi-
a clássica dualidade que opõe cultura e prática social, me imperial, seus valores, práticas e modus operandi.
problema que assola qualquer estudo sobre idéias Demonstrando habilidade para lidar com a biblio-
e intelectuais. Assim, o trânsito intelectual entre Europa grafia consagrada ao tema e combiná-la com clássi-
e Brasil não é tratado como um processo autôno- cos sobre a formação social brasileira (e aqui o re-
mo infenso ao jogo social “nacional”, como se ao curso principal é ao ensaio de Florestan sobre a re-
analista restasse apenas a tarefa de determinar o maior volução burguesa no Brasil), Alonso delineia o que
ou menor grau de “imitação” presente nesse trânsi- considera serem os eixos principais na legitimação
to. Mas, ao mesmo tempo, as idéias não são deduzidas do status quo saquarema: o indianismo romântico, o
aprioristicamente a partir da localização cartográfica liberalismo estamental e o catolicismo hierárquico.
dos grupos na estrutura de classes. As “idéias no- Todos esses elementos teriam alimentado a energia
vas”, nos diz a autora, são ferramentas, mobiliza- intelectual envolvida nas disputas que acirraram a
das seletivamente a partir dos critérios que orga- crise no Segundo Reinado, momento em que os
nizavam a luta política na crise do Segundo Rei- conservadores se viram obrigados a um exercício
nado. Estão em movimento. constante de racionalização em torno dos funda-
Alonso busca numa literatura mais comumente mentos da ordem ameaçada. O segundo capítulo,
associada a outros campos de pesquisa o instru- possivelmente o mais ricamente documentado, in-
mental necessário para confeccionar um enquadra- vestiga os diferentes grupos que compunham a ge-
mento singular para seu objeto. Assim, autores como ração de 1870 (liberais republicanos, novos liberais,
Tilly, Swindler e Tarrow são mobilizados para a positivistas abolicionistas, federalistas positivistas do
compreensão de um movimento que, na perspectiva Rio Grande do Sul e federalistas científicos de São
da autora, nunca teria sido propriamente “intelec- Paulo) e destaca a experiência comum de margina-
tual”, mas antes uma ação coletiva animada por lização política. Essa marginalização, é claro, seria
um profundo desejo de intervenção política. O que relativa, e diria respeito antes ao esgotamento de
unificaria os diversos membros da famosa geração possibilidades de realização profissional e intelec-
seria uma coleção de críticas novas ao status quo tual dentro dos limites estreitos da ordem imperial
imperial e saquarema, críticas essas assentadas em do que a uma efetiva posição de subordinação so-
uma experiência comum de marginalização polí- cial dentro dessa mesma ordem. Manejando rica pes-
tica, e não a filiação doutrinária ou a pertença a quisa empírica, a autora mostra como integrantes
esta ou aquela classe social. destacados da geração tiveram aspirações e projetos

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de ascensão emperrados pelo imobilismo da má- de 1870 “intelectuais” envolvidos em polêmicas


quina saquarema, incapaz de dar conta da dinâmica doutrinárias. Contudo, o próprio desenvolvimento
moderna que se gestava no Brasil no período. O uso do capítulo suscita outras leituras do problema. Ao
da categoria “marginalização” é decerto afrouxado, abrir a literatura examinada, Alonso pontua discus-
o que permite incluir nessa situação nomes tradi- sões ricas, que certamente revelariam novos ângulos
cionais com proeminência parlamentar, como Joa- de análise para os interessados no tratamento her-
quim Nabuco. Esse capítulo talvez seja o mais rele- menêutico desses textos. O debate entre america-
vante para o encaminhamento do argumento, na nismo e iberismo, por exemplo, ganha sutilezas e
medida em que busca caracterizar sociologicamen- contornos inesperados na interpretação da autora,
te a geração de 1870 sem obscurecer sua evidente que apenas pincela um possivelmente produtivo di-
heterogeneidade interna. Alonso não hesita em mos- álogo com os escritos de Werneck Vianna a respeito
trar como o elo de solidariedade entre seus inte- do tema. Como sua linha interpretativa rejeita aná-
grantes era algo frágil, já que construído não em lises mais próximas ao universo da História das Idéias
torno de identificações profissionais ou intelectuais, e dedica-se a um tratamento sociológico amplo de
mas por uma situação histórica contingente. toda uma geração, Alonso nesse capítulo termina por
O capítulo 3 é o mais intrincado do livro. Como apresentar inúmeras análises interessantes e criativas
já foi dito, a abordagem da autora é centrada no que infelizmente não podem ser mais aprofundadas.
tratamento político de um movimento em geral visto O capítulo 4 e a conclusão do livro arrematam
como puramente “intelectual”. Mas como a absor- de forma precisa o argumento. Após trabalhar a co-
ção das idéias que movimentavam a Europa na se- munidade de experiência e o repertório, Alonso finaliza
gunda metade do século XIX por parte dos mem- seu tripé conceitual analisando a estrutura de opor-
bros da geração é uma parte central da investigação tunidades que se teria gestado no período e forne-
do movimento de protesto, é imprescindível abrir a cido uma gama de recursos organizacionais para os
literatura produzida por esses personagens. É preci- membros da geração. A conjugação de urbanização,
so, diz a autora, compreender seu repertório, ou seja, a desenvolvimento econômico e maior complexida-
gramática intelectual mobilizada pelos agentes na de do tecido social imperial teria possibilitado aos
formação de um movimento coletivo. personagens pesquisados espaços novos de mobili-
Nas extensas análises que faz de obras seminais zação que escapavam ao estrangulamento vivido no
dos principais autores envolvidos, Alonso demons- sistema partidário. Assim, o olhar de Alonso volta-se
tra segurança e conhecimento dos debates que en- para os comícios, os novos jornais e os manifestos
volviam positivistas, darwinistas, “cientificistas”, que se multiplicavam e teriam possibilitado a arti-
abolicionistas, liberais ou combinações entre esses culação de um movimento heterogêneo que com-
elementos. O critério de interpretação que usa é partilhava como princípio identitário apenas um
condizente com sua linha argumentativa: esses es- antagonista. Na interpretação da autora, a geração
critos devem ser compreendidos como peças pro- de 1870 é indissociável do surgimento de um “proto-
duzidas pela absorção política de idéias européias, espaço público”, na medida em que sua própria
ou seja, como obras que visariam a atacar funda- experiência de marginalização e o aprofundamento
mentos da ordem imperial saquarema, e não avan- do capitalismo no país (com a conseqüente intro-
çar no campo da teoria política. Com esse procedi- dução de novos personagens e tipos sociais) teriam
mento, a autora afasta-se novamente de abordagens forçado a abertura de novos lugares sociais para o
tradicionais que enxergam nos membros da geração fazer político. O esgarçamento da dinâmica Partido

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Liberal/Partido Conservador e a cisão dentro da visitado pelas nossas ciências sociais. Cabe ao leitor
própria elite imperial seriam outros componentes interessado o desafio de seguir essas trilhas e mobi-
desse processo de alargamento da vida pública. Ao lizar de forma criativa esse trabalho de Ângela Alonso.
final, a caracterização dessa ampla coalizão é feita
pela autora com o recurso ao conceito de “refor-
mismo”. Diante da heterogeneidade interna da ge- Enio Passiani, Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato
ração e das inúmeras tensões que terminaram por e a formação do campo literário no Brasil. Bauru,
minar uma unidade que por si só já seria precária, Edusc, 2003, 276 pp.
Alonso opta por unificar conceitualmente os diver-
sos matizes de rebeldia sob a égide do combate ao Flávio Moura
imobilismo imperial – ao fim e ao cabo, único prin- Professor de Teoria do Jornalismo na Facamp
cípio que permitiria a agregação da diversidade. e editor da revista Novos Estudos, do Cebrap.
Curiosamente, volta-se aqui a uma matriz operató-
ria clássica da política “à brasileira”, como bem per- Comemorações do aniversário de São Paulo e mi-
cebe a autora: a moderação – que no registro de nisséries globais à parte, o momento é de revisão das
Alonso possui contornos negativos, sendo associada idéias estabelecidas sobre o modernismo. Desde o
ao elitismo que caracterizaria o processo histórico final dos anos de 1990, vêm sendo publicados di-
nacional. Certamente se poderia cotejar esse fecho versos trabalhos que tratam de atenuar o caráter trans-
com notações mais positivas desse “traço” nacional, formador do movimento e compreendê-lo a partir
em especial aquelas que, centradas no conceito de um ponto de vista mais distanciado que o dos
gramsciano de revolução passiva, buscam uma in- críticos responsáveis pela supervalorização de seu le-
terpretação do Brasil que escape à dicotomia “re- gado.Trabalhos como o de Tadeu Chiarelli, Annate-
forma versus revolução”. resa Fabris e Sergio Miceli, entre os de vários outros
O percurso feito por Alonso ao longo do livro é autores, têm se ocupado de identificar os elementos
decerto instigante e original. Pode-se questionar a conservadores que lhe serviram de base, de relativizar
centralidade conferida pela autora ao tema da margi- algumas de suas conquistas estéticas, de entendê-lo
nalização política como critério sociológico de com- mais como continuidade do que como ruptura e de
preensão do objeto e sua utilização “alargada”, mas desmontar seus pressupostos à luz do projeto de li-
não a densidade da pesquisa que sustenta essa tese e derança empreendido por seus artistas de maior des-
a coerência argumentativa que a encaminha. O ris- taque e pelos críticos mais ligados a eles.
co de compactar de forma excessiva a heterogenei- Em boa medida, Na trilha do Jeca, trabalho de
dade da geração de 1870 é assumido e enfrentado mestrado do sociólogo Enio Passiani publicado no
sem que o rigor da abordagem escolhida seja ate- fim de 2003, pode ser aproximado a essa linhagem.
nuado, o que faz com que esse trabalho seja exem- A proposta é entender, a partir do exame da obra de
plar no campo da metodologia disciplinar. Ao final, Monteiro Lobato e de sua atuação editorial, como
o resultado que se lê em Idéias em movimento: a gera- ele passou a ocupar posição hegemônica no campo
ção 1870 na crise do Brasil Império não é apenas posi- literário brasileiro nas duas primeiras décadas do
tivo pelo que está apresentado no argumento prin- século XX – e como sua perda de influência nos
cipal, que por si só já garante um lugar de relevo anos seguintes se liga à ascensão do grupo moder-
para esta obra, mas também pelas sugestões e trilhas nista.“Os modernistas fizeram de Lobato o símbolo
de pesquisa abertas pela autora em um tema já tão maior de um passado que devia ser enterado; por-

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