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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE


HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS
MESTRADO PROFISSIONAL EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS

A MEMÓRIA DOS IMORTAIS NO ARQUIVO


DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS

APRESENTADO POR

MARIA DO SOCORRO DOS SANTOS OLIVEIRA

Outubro 2009

1
FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS
MESTRADO PROFISSIONAL EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS

PROFESSORA ORIENTADORA DOUTORA LETÍCIA BORGES NEDEL


PROFESSOR CO-ORIENTADOR DOUTOR SÉRGIO CONDE DE ALBITE SILVA

MARIA DO SOCORRO DOS SANTOS OLIVEIRA

A MEMÓRIA DOS IMORTAIS NO ARQUIVO


DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Centro de Pesquisa e Documentação de


História Contemporânea do Brasil – CPDOC como requisito parcial para a obtenção do
grau de Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais.

Rio de Janeiro, Outubro 2009

2
O48 Oliveira, Maria do Socorro dos Santos.

A memória dos imortais no Arquivo da Academia Brasileira de


Letras / Maria do Socorro dos Santos Oliveira. – 2009.
110 f. ; 30 cm.

Orientadora: Profª Drª Leticia Borges Nedel.

Dissertação (Mestrado em Bens Culturais e Projetos Sociais)—


Fundação Getúlio Vargas, CPDOC, Rio de Janeiro, 2009.
Bibliografia: f. 79-84.

1. Arquivos Pessoais. 2. Academia Brasileira de Letras.


3. Memória 4. Arquivologia. 5. Bens Culturais e Projetos Sociais
6. FGV-CPDOC-PPHPBC I. Título.

CDD 025.171

3
FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS
MESTRADO PROFISSIONAL EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS

A MEMÓRIA DOS IMORTAIS NO ARQUIVO


DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO APRESENTADO POR


MARIA DO SOCORRO DOS SANTOS OLIVEIRA

E
APROVADO EM
PELA BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________
PROFESSORA DOUTORA LETÍCIA BORGES NEDEL
(ORIENTADORA)

________________________________________________________
PROFESSOR DOUTOR SÉRGIO CONDE DE ALBITE SILVA
(CO-ORIENTADOR)

________________________________________________________
PROFESSORA DOUTORA LUCIANA QUILLET HEYMANN

________________________________________________________
PROFESSORA DOUTORA LÚCIA MARIA LIPPI DE OLIVEIRA
(SUPLENTE)

4
À minha querida amiga Dri (in memoriam) pelo
exemplo de coragem, generosidade, perseverança e
alegria de viver.

5
AGRADECIMENTOS

Aos professores Letícia Borges Nedel e Sérgio Conde de Albite Silva, por terem aceitado o
convite de guiar-me por essa viagem íntima e particular que envolve os arquivos pessoais.

Aos acadêmicos Marcos Vilaça e Nélida Piñon que reservaram um tempo concorrido de
suas agendas para a concessão dos depoimentos que serviram de fontes para esta
dissertação.

A todos os professores do Mestrado que me proporcionaram maravilhosas e produtivas


horas de leitura e aprendizado a serviço do conhecimento.

Aos meus colegas da turma classe “A” que participaram ativamente do processo de
construção deste trabalho, trazendo dicas e sugestões.

À minha família diurna, Paulino, Cíntia, D. Joana, os estagiários e demais funcionários da


equipe do arquivo da Academia Brasileira de Letras, que me incentivou e me apoiou em
todos os momentos desta caminhada, enriquecendo minha pesquisa e compreendendo
minhas ausências. Um agradecimento especial, aos técnicos de áudio e vídeo Marcio
Castorino e Michael Félix que registraram de forma cinematográfica os depoimentos.

Ao meu chão: Joana, Assis, Leonardo, Gabriel, Fernanda, José, Arnaldo, Fran e César que
estavam sempre no front me dando cobertura, e sofreram com minhas angústias e vibraram
com os meus regozijos.

Aos meus queridos amigos, com os quais tive que me desculpar tantas vezes pela falta aos
compromissos.

Ao Acadêmico Marcos Vinicios Vilaça, presidente da ABL na Gestão 2006/2007, que


tornou possível a realização deste Mestrado.

6
“Quando cheguei aqui, a Academia dispunha apenas de 16
malas de flandres, dentro de uma cafua escura onde estavam os
papéis das nossas memórias. Hoje dispomos de 40 fichários
onde estão os arquivos, mas queremos dar uma expansão muito
maior, porque eles não serão apenas da Academia, mas da vida
literária do Brasil. Por enquanto nós nos preocupamos apenas
com o que diz respeito à Academia, para o futuro, porém, eles
poderão compreender os papéis, as revistas, tudo aquilo que
nos for entregue e que se relacione com a vida literária do
Brasil inteiro.”

(Austregésilo de Athayde)

7
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 12

1 ESTATUTO ARQUIVÍSTICO DOS ARQUIVOS PESSOAIS............................ 22

2 OS USOS E A PROVENIÊNCIA DO ARQUIVO DOS ACADÊMICOS DA


ABL .............................................................................................................................. 40

2.1 Os usos do arquivo pelo titular e pelo grupo na Instituição .............................. 40

3 O OLHAR DO TITULAR ....................................................................................... 54

3.1 Os Titulares: Nélida Piñon e Marcos Vilaça ..................................................... 54

3.2 Os Arquivos: Nélida Piñon e Marcos Vilaça .................................................... 59

3.3 Os Olhares: Nélida Piñon e Marcos Vilaça ...................................................... 62

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 75

REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 79

ANEXOS

8
RESUMO

Esta dissertação apresenta uma análise dos arquivos pessoais sob o olhar do titular do
arquivo, buscando subsídios que possibilitem o melhor desempenho das atividades do
profissional que lida com esse tipo de acervo, apresentando o estatuto arquivístico dos
arquivos pessoais dentro da Arquivologia e discutindo princípios e métodos aplicados no
tratamento desses acervos. Possibilita ainda, uma discussão sobre os conceitos fundo e
coleção através da apresentação da formação do arquivo dos acadêmicos da Academia
Brasileira de Letras, além de analisar a lógica de acumulação dos arquivos pessoais de
Marcos Vilaça e Nélida Piñon e suas estratégias de perpetuação, assim como a destinação
que pretendem dar aos seus acervos. Será apresentado também um breve histórico da ABL,
além da origem e evolução do seu Arquivo.

Palavras-chave: Arquivos Pessoais; Memória; Arquivologia; Academia Brasileira de


Letras; Nélida Piñon; Marcos Vilaça.

9
ABSTRACT

This dissertation presents an analysis of personal archives under the gaze of the owner of
the archive, seeking grants to enable the best performance of the activities of the
professional who handles this type of holdings, showing the status of archival personal
within the Archives Administration and discuss principles and methods used in the
treatment of these holdings. It also makes possible a discussion of the concepts of the fond
and collection by presenting of the constitution of the archive of the Brazilian Academy of
Letters, in addition to analyzing the logic of accumulation of personal archives of Marcos
Vilaça and Nélida Piñon and their strategies of the perpetuation, as well as the destination
they wish to give their archives. It also presents a brief history of the Brazilian Academy of
Letters, and the origin and evolution of your Archive.

Keywords: Personal Archives; Memory; Archives Administration; Brazilian Academy of


Letters; Nélida Piñon; Marcos Vilaça.

10
LISTA DE ANEXOS

Anexo 1: Roteiro e Entrevista com Marcos Vilaça 86

Anexo 2: Roteiro e Entrevista com Nélida Piñon 97

11
INTRODUÇÃO

Os arquivos pessoais cada vez mais despertam o interesse dos pesquisadores.


Atualmente, podemos dizer que eles são considerados como a franja da arquivística como
área do conhecimento, pois causam bastante encantamento, seja por se acreditar que ali
estão guardados os mais íntimos pensamentos e idéias de um indivíduo, ou por se acreditar
que, através deles, pode-se, de maneira mais fiel, recontar e/ou reconstruir a história e a
memória de um país ou de uma sociedade.
No entanto, a literatura arquivística no Brasil que trate deste tema com maior
profundidade está dispersa. Não se pode deixar de mencionar aqui diversas iniciativas de
instituições pioneiras neste campo de atuação, como é o caso do Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC, da Fundação Getulio
Vargas - FGV, criado em 1973, e a Fundação Casa de Rui Barbosa – FCRB, após um
projeto de revitalização ocorrido na década de 1970. Desde então, no Brasil, cresce o
número de instituições que se dedicam e concentram capital humano e financeiro na
preservação e valorização desse tipo de acervo.
É neste contexto de construção de um projeto de memória de uma instituição
cultural, constituída por um grupo de intelectuais de diversas áreas de atuação,
preocupados com a preservação de seus acervos privados, que eu, enquanto profissional de
arquivos, desenvolvi esta pesquisa.
No ano de 1997, durante as comemorações do seu centenário de fundação, a
Academia Brasileira de Letras – ABL, envolvida em um processo de abertura da Casa para
a sociedade, implantou o Centro de Memória. Uma de suas prioridades era executar um
projeto de revitalização do seu arquivo, até então, consultado apenas por um pequeno e
seleto grupo de pesquisadores.
Diante do novo desafio, foi montada uma equipe de arquivistas e estudantes de
Arquivologia para que se desse cabo ao projeto idealizado pela instituição, com a adoção e
implantação de modernas técnicas e metodologia arquivísticas.
Assim, fui contratada como uma das estagiárias do Arquivo da ABL,
especificamente do Arquivo dos Acadêmicos, que é constituído pelos arquivos privados
pessoais de seus membros efetivos, patronos e correspondentes. Atualmente, sou
responsável pelo Arquivo dos Acadêmicos, onde coordeno e desenvolvo a organização e a

12
disponibilização desses acervos. Dessa forma, penso estar cumprindo um dos requisitos
fundamentais da Arquivologia, que considero como a função social do arquivista: dar
acesso intelectual e físico às informações.
A motivação de estudar os arquivos pessoais surgiu da percepção de uma série de
dificuldades e entraves no desenvolvimento cotidiano das atividades ligadas aos arquivos
pessoais, uma vez que a própria Arquivística, apenas recentemente, passou a se interessar
por este tema.
O que se pretendeu nesta pesquisa foi analisar os arquivos pessoais sob o olhar do
titular do arquivo, buscando subsídios que possibilitem o melhor desempenho das
atividades do profissional que lida com esse tipo de acervo, apresentando o estatuto
arquivístico dos arquivos pessoais dentro da Arquivologia e discutindo princípios e
métodos aplicados no tratamento desses acervos, além de analisar a lógica de acumulação
dos arquivos pessoais dos acadêmicos Marcos Vilaça e Nélida Piñon e suas estratégias de
perpetuação, assim como a destinação que pretendem dar aos seus acervos.
A pesquisa foi desenvolvida analisando três instâncias de intervenções nos arquivos
pessoais: o olhar da arquivística, o olhar da instituição e por último, o olhar do titular.
No capítulo I será apresentado o estatuto arquivístico dos arquivos pessoais dentro
da Arquivologia, além dos princípios e métodos aplicados no tratamento desses acervos.
No capítulo II, o leitor terá acesso ao processo de formação do Arquivo dos
Acadêmicos da Academia Brasileira de Letras, o uso e a proveniência dos documentos
pelo grupo e pela Instituição. Também serão discutidos os conceitos de fundo e coleção.
Finalmente, no capítulo III serão confrontados os olhares de dois acadêmicos
titulares de arquivos pessoais sobre seus acervos. A partir de entrevistas com Nélida Piñon
e Marcos Vilaça, propõe-se uma análise da lógica de acumulação dos arquivos pessoais
dos dois acadêmicos, além de suas estratégias de perpetuação de sua memória, e da
destinação que pretendem dar aos seus acervos.

Breve Histórico da Academia Brasileira de Letras

A Academia Brasileira de Letras - ABL, fundada em 1897, é uma instituição que


tem por fim a cultura da língua e da literatura nacional.
A Academia nasceu de uma idéia que já vinha percorrendo as mentes dos
intelectuais e literatos que viviam no Brasil em meados do século XIX, como se pode

13
verificar em dois trabalhos desenvolvidos sobre a ABL: o livro de Fernão Neves 1 ,
publicado em 1940, e o de Alessandra El Far, em 2000. Para El Far (2000):

A idéia de uma Academia de Letras não constituía uma novidade.


No final dos anos 1880 e início dos anos 1890, diversos literatos
engajados na nascente profissão das letras almejavam estabelecer
um novo padrão de sociabilidade literária. Os encontros casuais, as
módicas remunerações, os grupos de dispersos e
descompromissados já não lhes bastavam; queriam reconhecimento
social e uma identidade que os diferenciasse dos outros setores da
sociedade intelectual. (El Far, 2000:42)

Surgiram assim algumas agremiações, como o Grêmio de Artes e Letras (1887), a


Sociedade dos Homens de Letras (1890) e, mais tarde, as reuniões da Revista Brasileira,
que dariam origem à Academia Brasileira de Letras. Segundo Neves (1940):

No fim do século XIX, aqui Afonso Celso Júnior 2 , ainda no


Império, e Medeiros e Albuquerque 3 , já na República,
manifestaram votos por uma academia nacional, como a Academia
Francesa. O êxito social e literário da ‘Revista Brasileira’, de José
Veríssimo 4 , daria coesão a um grupo de escritores e, assim
possibilidade à idéia. (Neves, 1940, prefácio, p. V)

Assim, em 15 de dezembro de 1896 aconteceu a primeira das sessões preparatórias


para a fundação da ABL na sala da Revista Brasileira, na Travessa do Ouvidor, nº 31, e,
nela, Machado de Assis5 foi aclamado presidente. Naquele momento, ele era um dos mais

1
Fernão Neves, pseudônimo de Fernando Nery, chefe da secretaria da Academia Brasileira de Letras.
2
Afonso Celso (Afonso Celso de Assis Figueiredo Júnior), natural de Ouro Preto - Minas Gerais, nasceu em
31 de março de 1860 e veio a falecer no Rio de Janeiro a 11 de julho de 1938. Filho do visconde de Ouro
Preto, último presidente do Conselho de Ministros do Império. É o fundador da cadeira n. 36 da Academia
Brasileira de Letras.
3
Medeiros e Albuquerque (José Joaquim de Campos da Costa Medeiros de Albuquerque) jornalista,
professor, político, contista, poeta, orador, romancista, teatrólogo, ensaísta e memorialista, nasceu em Recife,
PE, em 4 de setembro de 1867, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 9 de junho de 1934. Em 1896 e 1897,
compareceu às sessões preliminares de instalação da Academia Brasileira de Letras. É o fundador da Cadeira
n. 22.
4
José Veríssimo (J. V. Dias de Matos), jornalista, professor, educador, crítico e historiador literário, nasceu
em Óbidos, PA, em 8 de abril de 1857, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 2 de fevereiro de 1916.
Compareceu a todas as reuniões preparatórias da instalação da Academia Brasileira de Letras. É o fundador
da Cadeira nº 18.
5
Machado de Assis (Joaquim Maria M. de A.), jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo,
nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 21 de junho de 1839, e faleceu também no Rio de Janeiro, em 29 de
setembro de 1908. É o fundador da Cadeira nº. 23 da Academia Brasileira de Letras. A obra de Machado de
Assis abrange, praticamente, todos os gêneros literários. Na poesia, inicia com o romantismo de Crisálidas
(1864) e Falenas (1870), passando pelo indianismo em Americanas (1875), e o parnasianismo em Ocidentais
(1897-1880). Paralelamente, apareciam as coletâneas de Contos fluminenses (1870) e Histórias da meia-noite

14
velhos integrantes do grupo, sendo reconhecido como um dos maiores autores da literatura
de língua portuguesa. Acabou ocupando por mais de dez anos a presidência da Academia,
que passou a ser chamada também de Casa de Machado de Assis.
Tais reuniões preparatórias se estenderam até o dia 28 de janeiro de 1897 e, em 20
de julho do mesmo ano, é realizada, numa sala do Pedagogium, na Rua do Passeio, a
sessão inaugural da Academia Brasileira de Letras. Na ocasião, o Presidente Machado de
Assis fez um breve discurso, Rodrigo Octavio 6 , primeiro-secretário, leu a memória
histórica dos atos preparatórios, e Joaquim Nabuco 7 , secretário-geral, pronunciou o
discurso inaugural.
A Academia Brasileira de Letras foi criada nos moldes da Academia Francesa. De
acordo com os seus Estatutos, elaborados no ano de sua fundação, a “Academia Brasileira
de Letras compõe-se de 40 membros efetivos e perpétuos, dos quais 25, pelo menos,
residentes no Rio de Janeiro, e de 20 membros correspondentes estrangeiros, eleitos
mediante escrutínio secreto”. Nos estatutos lê-se ainda: “Do mesmo modo serão
preenchidas as vagas que de futuro ocorrerem no quadro dos seus membros efetivos ou
correspondentes”.
Só podem ser membros efetivos da Academia os brasileiros que tenham, em
qualquer dos gêneros de literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses
gêneros, livro de valor literário. As mesmas condições, menos a de nacionalidade, exige-se
para os membros correspondentes.
O modelo da Academia Francesa das Cadeiras e dos Patronos foi adotado em linhas
gerais pelos fundadores da ABL com uma inovação: no modelo inspirador, as cadeiras não
são numeradas e não têm patronos. Na Academia Francesa, considera-se patrono o
primeiro ocupante da Cadeira. No Brasil, o critério da escolha ficou por conta dos
Acadêmicos que deveriam escolher para sua Cadeira o nome de um vulto da literatura
nacional, respeitando o art. 23 do Regimento Interno, “reunindo assim, sob o mesmo teto, a

(1873); os romances Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878),
considerados como pertencentes ao seu período romântico. A partir daí, Machado de Assis entrou na grande
fase das obras-primas, que fogem a qualquer denominação de escola literária e que o tornaram o escritor
maior das letras brasileiras e um dos maiores autores da literatura de língua portuguesa.
6
Rodrigo Octavio (R. O. de Langgaard Meneses), advogado, professor, magistrado, contista, cronista, poeta
e memorialista, nasceu em Campinas, SP, em 11 de outubro de 1866, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 28
de fevereiro de 1944. Participou, desde o início, do grupo de escritores que fundaram a Academia. É o
fundador da Cadeira n. 35.
7
Joaquim Nabuco (J. Aurélio Barreto N. de Araújo), escritor e diplomata nasceu em Recife, PE, em 19 de
agosto de 1849, e faleceu em Washington, EUA, em 17 de janeiro de 1910. Compareceu às sessões
preliminares de instalação da Academia Brasileira. É o fundador da Cadeira nº 27.

15
veneração respeitosa pelos homens ilustres que engrandeceram a nossa história literária e o
esforço fecundo dos que presentemente procuram engrandecê-la ainda”.
Machado de Assis, seu primeiro presidente, foi o principal responsável pela
sobrevivência e pelo prestígio do novo instituto. Lúcio de Mendonça 8 e Medeiros e
Albuquerque foram, em diferentes épocas, os idealizadores. No entanto, sem a figura de
Machado de Assis a idéia não se teria concretizado.
Na sessão inaugural, como se disse, Machado de Assis proferiu um breve discurso,
ressaltando o projeto de unidade da ABL. No momento em que o país vivia um contexto
político de incerteza, no qual a República estava dividida e se apregoava a ameaça
monarquista por todos os lados, ele declara:

O vosso desejo é conservar, no meio da federação política, a


unidade literária [...] A Academia Francesa, pela qual se modelou,
sobrevive aos acontecimentos de toda casta, às escolas literárias e
às transformações civis. A vossa há de querer ter as mesmas feições
de estabilidade e progresso. Já o batismo das suas cadeiras com os
nomes preclaros e saudosos da ficção, da lírica, da crítica, e da
eloquência nacionais, é indício de que a tradição é o seu primeiro
voto. Cabe-vos fazer com que ele perdure. Passai aos vossos
sucessores o pensamento e a vontade iniciais, para que eles o
transmitam também aos seus, e a vossa obra seja contada entre as
sólidas e brilhantes páginas da nossa vida brasileira. (Neves, 1940:
23)

A Academia, no início de seus trabalhos, não possuía uma sede fixa. Ocupou vários
prédios até obter sua sede atual, o Petit Trianon, construído para a Exposição do
Centenário da Independência do Brasil e doado pelo Governo Francês, em 1923.
Entre os anos de 1896 e 1904, suas sessões foram realizadas na sala da Revista
Brasileira, no Pedagogium, no Ginásio Nacional (Colégio Pedro II), na Biblioteca
Fluminense, no escritório de Rodrigo Octavio, no Ministério do Interior, e no Real
Gabinete Português de Leitura, onde foram realizadas várias sessões solenes. Por fim, os

8
Lúcio de Mendonça (L. Eugênio de Meneses e Vasconcelos Drummond Furtado de M.), advogado,
jornalista, magistrado, contista e poeta, nasceu em Piraí, RJ, em 10 de março de 1854, e faleceu no Rio de
Janeiro, RJ, em 23 de novembro de 1909. Fundador da Cadeira n. 11 da Academia Brasileira de Letras. Na
terceira fase da Revista Brasileira, dirigida por José Veríssimo, Lúcio passou a ser um dos frequentadores da
redação. Ali se congregavam, em torno de Machado de Assis e de Joaquim Nabuco, os principais
representantes da literatura brasileira no momento. Foi então que lhe nasceu o sonho de criar a Academia
Brasileira de Letras, da qual ele é, por depoimento unânime dos criadores da Instituição, o verdadeiro
fundador, o "Pai da Academia".

16
acadêmicos encontravam-se no Silogeu Brasileiro, que ficava no cais da Lapa, local que a
Academia ocupou de 1904 até 1923.
Como parte de um processo de construção e afirmação de uma identidade nacional,
após a fundação da ABL, foi nomeada uma comissão formada por acadêmicos para discutir
a escolha das armas e brasões da nova instituição. Ela não obteve sucesso, tendo sido
apresentadas diversas propostas por outros acadêmicos, que também não foram aprovadas.
Em 1923, numa retomada desse processo, a Academia adotou, por proposta de Afrânio
Peixoto, então seu Presidente, o emblema utilizado até hoje, que serve também de ex-libris:
uma coroa de louros, formada de dois ramos, presos por um laço de fita. Contornando-o, o
dístico Ad Immortalitatem; por bandeira – foi adotado o emblema verde sobre campo
branco.
No ano de 1997, a ABL comemorou o seu centenário de fundação e, com isso,
queria dar início a uma nova era que marcaria o fim do desconhecimento de sua história,
demarcando o papel e a importância da instituição na história cultural do país. Iniciou-se
um projeto de aproximação da ABL junto à sociedade, atraindo um grande público para a
participação em várias de suas atividades.
A Academia publica os Anais da Academia Brasileira de Letras, a Revista
Brasileira, os Discursos Acadêmicos, o Anuário, os volumes das Coleções Afrânio Peixoto,
Austregésilo de Athayde, os Vocabulários Ortográfico e Onomástico Brasileiro. Concede
os Prêmios Machado de Assis (conjunto de obras); Francisco Alves (monografias sobre o
ensino fundamental no Brasil e língua portuguesa); e ABL que envolve várias categorias:
Poesia; Ficção (romance, teatro e conto); Ensaio (crítica e história literária); Literatura
Infanto-juvenil; Tradução; e Cinema, esta última categoria instituída em 2007. Além
desses, atribui outros prêmios, oriundos de dotações excepcionais que tem o nome
proposto pelo respectivo doador, desde que aceito e aprovado pela instituição, com
regulamento próprio.
A Academia promove e realiza exposições e mesas redondas comemorativas em
homenagem a seus membros e grandes vultos da história nacional. Realiza também ciclos
de conferências e palestras abordando diversos temas da Literatura, Cultura e História do
Brasil, além de concertos e peças teatrais.

Origem e evolução do Arquivo da ABL

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A Academia Brasileira de Letras é uma instituição na qual está imbricada, desde
sua gênese, a vocação para o culto da memória e da tradição. Seus ritos de celebração da
imortalidade - a eleição, a posse, a comemoração dos aniversários de nascimento, de
falecimento, de publicação das obras e de seus membros; seus símbolos: insígnias,
bandeira e fardão - confirmam o desejo de seus fundadores de perpetuar a memória da
instituição e de si próprios, intitulados Imortais.
Esse projeto de perpetuação abre um amplo leque de discussões relativas à
construção da memória, fenômeno social que pode ser estudado sob diversas perspectivas.
No caso da ABL, como foi dito anteriormente, essa construção se dá de várias formas, mas
uma delas é especialmente interessante. Trata-se da acumulação, pela instituição, de um
acervo arquivístico riquíssimo para a memória social do país e do mundo.
O Arquivo da Academia Brasileira de Letras possui duas linhas de acervo: o
Arquivo Institucional, composto pelos documentos administrativos e funcionais,
produzidos, recebidos e acumulados em decorrência das atividades-meio e atividades-fim
da instituição, e o Arquivo dos Acadêmicos, composto pelos documentos privados e
pessoais de seus membros, entregues à custódia da Instituição.
A história da criação e formação do Arquivo da ABL aparece, basicamente, em
algumas falas de acadêmicos nas sessões plenárias iniciais, ditas preparatórias, datadas de
1896, e registradas nas atas da Casa. A expressão “Arquive-se!”, tão comum no dia a dia
de uma instituição, foi proferida na Academia Brasileira de Letras pela primeira vez pelo
Presidente Machado de Assis, na sessão de 23 de dezembro de 1896, antes mesmo de sua
fundação. Os acadêmicos indicavam então, que determinados documentos deveriam ser
recolhidos ao Arquivo, sugerindo a existência do serviço ou setor “Arquivo”. No entanto, a
primeira referência direta à estruturação de um Arquivo aparece na ata do dia 9 de
dezembro de 1926, quando o Acadêmico Constâncio Alves 9 propôs que fosse criado o
cargo de “archivista”, independente das funções do bibliotecário. Porém, a proposta não foi
aceita.
No projeto de reforma do Regimento da ABL, apresentado na sessão de 16 de
dezembro de 1943, constava uma emenda do Acadêmico Múcio Leão 10 que tratava da

9
Constâncio Alves foi funicionário da Biblioteca Nacional e chegou a ser Diretor da Seção de Manuscritos,
no período de 1903 a 1913.
10
Múcio Leão foi eleito Diretor do Arquivo, onde permaneceu até o seu falecimento em 12 de agosto de
1969. Após o seu falecimento, o Arquivo recebeu, em sua homenagem, o seu nome.

18
eleição do Diretor do Arquivo, desvinculando assim, o Arquivo, da Biblioteca. A proposta
foi aprovada por unanimidade.
Em 1979 a Academia inaugura o prédio Centro Cultural do Brasil e o Arquivo
transfere-se do porão do Petit Trianon para o novo prédio, espaço que ocupa até os dias
atuais.
Quase 20 anos depois, em 1997, como parte das comemorações do Centenário da
ABL, foi implantado um projeto de reformulação do Centro de Memória e revitalização do
Arquivo, iniciando-se pelos arquivos privados pessoais dos acadêmicos. No ano 2000 foi
implantado um novo projeto de estruturação e sistematização do arquivo institucional. Em
2003, foram publicados os primeiros instrumentos de pesquisa desenvolvidos pelo Arquivo,
o Guia Geral do Arquivo dos Acadêmicos e o Inventário do Arquivo Machado de Assis.
Os acervos arquivísticos da ABL revelam-se como fonte inesgotável da memória,
história, literatura e de inúmeros outros aspectos socioculturais brasileiros. No entanto,
nesta pesquisa será analisado, especificamente, o Arquivo dos Acadêmicos.

Arquivo dos Acadêmicos

O Arquivo dos Acadêmicos da Academia Brasileira de Letras foi concebido para a


guarda e difusão dos arquivos privados e pessoais de seus membros. Ele possui uma lógica
de acumulação diferenciada de outras instituições mantenedoras desse tipo de acervo.
Podem ser encontradas coleções de documentos e fundos arquivísticos. As coleções de
documentos são compostas pelos documentos acumulados e reunidos pela Academia,
enquanto que os fundos arquivísticos são os documentos acumulados pelos próprios
titulares e doados à ABL em vida, ou posteriormente, pelos seus herdeiros e familiares.
Para entender melhor como isto se deu, serão apresentados alguns episódios que
retratam esta lógica de acumulação. Na sessão de 31 de maio de 1951, com a apresentação
da sugestão do Acadêmico Peregrino Júnior para convocação de uma empresa de clipping
para estabelecimento de um acordo para “o fornecimento pontual e completo de todas as
informações, notas e comentários que sejam publicados no Rio e em outros estados sobre
cada um dos 40 acadêmicos” foi originada a coleção ABL de recortes de jornais, que após
o projeto de revitalização do Arquivo foi chamada de Hemeroteca da ABL. Constava
também da sugestão a criação de uma pasta para cada acadêmico, na qual seriam
arquivados em ordem cronológica todos os documentos e informações a ele referentes,

19
criando assim, a coleção de documentos de cada acadêmico. Na sessão de 7 de abril de
1960 foi inaugurada a nova seção do Arquivo da ABL, a Filmoteca, com a doação do
filme-documentário sobre Manuel Bandeira. Na sessão de 3 de agosto de 1967, O
presidente decidiu criar, depois de consulta feita ao Diretor do Arquivo, a seção
iconográfica do Arquivo da Academia Brasileira de Letras.
O Arquivo é composto de documentos textuais, originais manuscritos,
datilografados e impressos sobre suporte papel, recortes de jornais e revistas, películas
cinematográficas, registros magnéticos (fitas de áudio e de vídeo, CD-ROMs e disquetes),
fotografias, diplomas, cartazes, cartões de visita, etc. O conteúdo de tais documentos
consiste de depoimentos pessoais e profissionais, originais literários, discursos,
correspondências, entrevistas, atuações culturais, etc. Na maioria das vezes, são
documentos únicos, diferenciados, com a marca, com a “impressão digital” de seus
titulares.
A preservação e difusão dos arquivos privados e pessoais dos acadêmicos não
atende apenas à celebração da imortalidade e memória de seus membros, mas também
serve como fonte para pesquisas em diversas áreas do conhecimento. Isso porque, ao longo
dos 110 anos da ABL, acumularam-se quase 300 arquivos de grandes vultos da história
literária, cultural e científica do país. Segundo Fraiz (1998):

Uma característica essencial dos arquivos pessoais reside na


preponderância do valor informativo de seus documentos, isto é,
seu valor de uso para fins históricos. O valor de prova legal,
característica essencial dos documentos públicos, perde esse
sentido estrito para os papéis privados. Mas se alargarmos esse
conceito, também podemos dizer que, na organicidade de um
arquivo pessoal, na maneira como os documentos foram
organizados e mantidos em seu local de origem, é que reside seu
valor de prova. Essa maneira atesta, por exemplo, as intenções e os
sentidos emprestados pelo titular do arquivo relativos ao uso dos
documentos acumulados. (Fraiz, 1998: 62-63)

No entanto, um arquivo pessoal, ao ser doado a uma entidade mantenedora desse


tipo de acervo, muitas vezes apresenta um ordenamento já muito distante do original, já
que este pode ser alterado por diversos fatores, como por exemplo, a peregrinação do
acervo nas mãos de vários herdeiros. Isso torna o tratamento arquivístico de um acervo
como este uma tarefa árdua e subjetiva, pois, se é ainda possível observar uma certa

20
organicidade entre os documentos , é com grande dificuldade que se recupera a lógica de
acumulação.
No caso do Arquivo dos Acadêmicos, apesar de encontrarmos esta situação,
podemos também nos deparar com outra, quase oposta à relatada acima: muitos titulares,
por doarem os seus arquivos em vida, apresentam os documentos com um arranjo
preliminar já estabelecido por eles mesmos.
É em vista dessas situações que os Arquivos Marcos Vilaça e Nélida Piñon do
Arquivo dos Acadêmicos foram utilizados como campo empírico para a discussão e
reflexão das questões relacionadas às perspectivas do titular em relação aos arquivos
pessoais.
Assim, foi possível, através de entrevistas, ouvir os atores desse complicado
processo, trazendo, assim, contribuições para o trabalho do arquivista, ou seja, elementos
que possibilitem uma reflexão e embasamento estratégico e funcional para a
operacionalização de tarefas como definição de arranjo, identificação de tipologias
documentais, entre outras.

21
1 ESTATUTO ARQUIVÍSTICO DOS ARQUIVOS PESSOAIS

Os arquivos pessoais tornaram-se alvo de interesse da História e, até mesmo, da


Arquivologia há bem pouco tempo. A Arquivologia recentemente passou a se ocupar desse
tipo de acervo que alguns teóricos da área nem mesmo consideravam como arquivos.
Como indica Camargo, “Considerados como coleções de documentos, os arquivos pessoais
têm sido abordados por meio de critérios originários das bibliotecas, coerentes com a
tradição de ali se depositarem as obras e os demais papéis de escritores.” (Camargo, 2007:
37)
Este capítulo pretende discutir o estatuto arquivístico dos arquivos pessoais,
partindo de uma revisão bibliográfica que circunstancie a situação dos arquivos pessoais na
Arquivologia. Esta não é uma tarefa fácil, talvez por conta da dispersão da bibliografia
arquivística sobre o tema. Camargo (2007: 36) atesta que “os arquivos pessoais nem
sempre são tratados à luz da teoria arquivística e as razões desse desvio são várias e pouco
justificáveis.”
Antes de recuperar o estatuto arquivístico dos arquivos pessoais é necessário
apresentar uma conceituação desses arquivos. Esta, por sua vez, deverá ser precedida dos
arquivos privados, pois os arquivos pessoais são documentos produzidos e recebidos por
pessoas físicas de direito privado. Ainda que seja mencionada a situação em alguns países,
este panorama dará prioridade à situação brasileira.
“O Estado francês, já no século XIX, incluía em sua legislação os arquivos e os
fundos de natureza privada de origem familiar. Entretanto, a incorporação do conceito de
arquivo privado pela arquivística dar-se-á somente no século XX.” (Fraiz, 1998: 61). Em
1928, o arquivista italiano Eugenio Casanova, em sua obra intitulada Archivistica, definiu
arquivos como “a acumulação ordenada de documentos criados por uma instituição ou
pessoa no curso de sua atividade e preservados para a consecução de seus objetivos
políticos, legais e culturais, pela referida instituição ou pessoa.” (Casanova apud
Schellenberg, 2002 [1973]: pág. 37).

22
Ao analisar a noção de fundos de arquivo formulada em 1841 pelo historiador
francês Natalis de Wailly, verifica-se, também, a consideração das pessoas físicas como
entidades produtoras de arquivos:

Reunir os documentos por fundos, isto é, reunir todos os títulos (todos


os documentos) provindos de uma corporação, instituição ou família
ou indivíduo, e dispor em determinada ordem os diferentes fundos [...]
documentos que apenas se refiram a uma instituição, corporação ou
família não devem ser confundidos com o fundo dessa instituição,
dessa corporação ou dessa família. (Duchein, 1982: 16)

Dessa forma, observa-se que os arquivos de pessoas já estavam contemplados,


mesmo antes de se iniciarem as discussões sobre o tema na área arquivística.
No Brasil, podemos dar início a esta análise verificando o que nos diz o art. 11 da
Lei n° 8.159, de 1991, que trata dos arquivos públicos e privados no país: “Consideram-se
arquivos privados os conjuntos de documentos produzidos ou recebidos por pessoas físicas
ou jurídicas, em decorrência de suas atividades”. Já o conceito apresentado na obra
Arquivos permanentes, de Heloísa Bellotto (2006: 256), define que: “A conceituação de
arquivos pessoais está embutida na própria definição geral de arquivos privados, quando se
afirma tratar-se de papéis produzidos ou recebidos por entidades ou pessoas físicas de
direito privado”.
No entanto, Bellotto especifica que os documentos que integram os arquivos
pessoais diferem dos documentos produzidos por pessoas jurídicas como empresas ou
indústrias, pois são:

Papéis ligados à vida familiar, civil, profissional e à produção


política e/ou intelectual, científica, artística de estadistas, políticos,
artistas, literatos, cientistas etc. Enfim, os papéis de qualquer
cidadão que apresente interesse para a pesquisa histórica, trazendo
dados sobre a vida cotidiana, social, religiosa, econômica, cultural
do tempo em que viveu ou sobre sua própria personalidade e
comportamento. (Bellotto, 2006: 256)

Bellotto apresenta ainda algumas características dos arquivos privados que podem
contribuir para o entendimento das complicações geradas no tratamento desses acervos.

23
No caso dos arquivos de pessoas as tipologias são bastante
semelhantes; o fluxo e a organicidade são inerentes ao funcionamento
e às atividades da instituição ou à vida pessoal e profissional do titular
do arquivo; [...] no caso dos arquivos pessoais, o uso pela pesquisa se
dá, em geral, após a morte do titular, passando a documentação a uma
entidade pública ou privada ou, ainda, permanecendo em poder da
família, que poderá autorizar o acesso [...]; No caso dos acervos
privados é apenas por sensibilização, por persuasão, por especiais
interesses e concessões que certos acervos podem ser resgatados para
a pesquisa histórica. (ibid., p. 257-258)

Além disso, há casos em que as famílias fazem uma avaliação e seleção nos
documentos descartando os que, de alguma forma, mancham a imagem do titular, e
também casos onde ocorre uma supervalorização de um acervo, por parte dos herdeiros,
visando a possibilidade de venda dos documentos, atribuindo-lhes uma relevância
informacional que muitas vezes não possuem.
Para entendermos melhor o panorama no qual se encontra a discussão acerca dos
arquivos privados pessoais no Brasil, podemos analisar os verbetes do Dicionário
brasileiro de terminologia arquivística atribuídos para arquivo pessoal - arquivo de pessoa
física; e Arquivo privado – de entidade coletiva de direito privado, família ou pessoal.
Também chamado de arquivo particular. O verbete da forma como se configura no
dicionário sugere uma simplicidade que não reflete a complexidade das questões que
envolvem os arquivos pessoais.
Por muito tempo, os arquivos pessoais foram tratados por historiadores e
bibliotecários. Os historiadores, no dever de realizar suas pesquisas, muitas vezes
encontravam arquivos desorganizados e abandonados, assim se viam obrigados a tratarem
aquela documentação. Os bibliotecários se deparavam com as tais coleções de manuscritos
que muitas vezes acompanhavam os livros de uma biblioteca.
Os arquivos privados pessoais suscitam muita discussão. Uma delas, encontrada
com frequência na bibliografia arquivística, diz respeito à oposição entre fundo
arquivístico x coleção de documentos. Schellenberg (2002 [1973]: 270-272) apresenta uma
conceituação e caracterização de coleção de documentos, que divide as coleções de papéis
privados em dois tipos: “coleções naturais” ou “orgânicas” e “coleções artificiais”. As
“coleções naturais” são aglomerados de material documentário que se formam no curso
normal dos negócios ou da vida de entidades privadas – individuais ou coletivas – como

24
firmas comerciais, igrejas, instituições ou organizações. Elas são oriundas de uma mesma
fonte, reunidas concomitantemente com as ações a que se referem. Já as coleções artificiais
são constituídas depois de ocorridas as ações a que se relacionam, não concomitantemente,
e em geral derivam de diversas fontes e não de uma única. Para Schellenberg pode-se usar
os termos “arquivos” ou “coleções naturais” indiferentemente, o que nos faz pensar que o
que ele chamou de coleções naturais, na verdade, são fundos arquivísticos. Ao conceituar e
caracterizar as coleções, Schellenberg queria chamar a atenção para um ponto - a
aplicação do princípio básico da arquivística - a ‘proveniência’ – segundo o qual os
documentos devem ser preservados na ordem que lhes atribuíram seus criadores. Ou seja, a
preservação da ordem original dos documentos.
Bellotto (2006: 253), ao conceituar e caracterizar os arquivos privados, enfatiza esta
oposição: “...é preciso não confundir coleções com fundos de arquivo...”. Parece haver no
campo arquivístico um preconceito em relação aos arquivos privados pessoais e muito
desse preconceito se dá em razão da idéia equivocada de que os arquivos pessoais são
conjuntos de documentos sem organicidade, acumulados por motivos particulares e não
como fruto das atividades desenvolvidas pelo seu titular.

[...] é freqüente que um particular ‘colecione’ documentos por motivos


que vão desde o gosto pela raridade antiga até o querer possuir – e não
apenas consultar – os papéis que pretende analisar para elaborar
trabalhos historiográficos. A ‘organicidade’ estaria nesse aspecto e
não no da produção, o que, positivamente, perde sentido diante da
teoria arquivística. (ibid., p. 253)

De acordo com Bellotto, na teoria arquivística, a organicidade estaria presente no


contexto de produção dos documentos, e não no de acumulação. No entanto, deve se
reconhecer que em muitos casos um acervo acumulado por um titular pode conter
documentos com informações relevantes mesmo que não estejam diretamente ligadas às
atividades do titular. Esses documentos devem ser preservados, pois se constituem como
importante fonte de pesquisa para pesquisadores interessados em determinado tema e não,
necessariamente, no titular.
No caso da pesquisa histórica, os arquivos pessoais assumiram um papel de
importância e aumentaram sua abrangência de utilização como fontes oferecidas ao
historiador na investigação de suas hipóteses de trabalho.

25
“Desde o surgimento, no século XIX, do método crítico e do historiador
profissional, a questão do ‘arquivo’ não mais deixou de ocupar um lugar central nos
debates historiográficos” (Rousso, 1996: 1). Os arquivos pessoais tiveram grande
importância para as mudanças ocorridas no campo historiográfico.
O interesse crescente pelos arquivos privados corresponde a uma
mudança de rumo fundamental na história das práticas historiográficas.
Dois fatores, ligados, aliás, um ao outro, me parecem ser capazes de
esclarecer o gosto pelo arquivo privado. O primeiro é o impulso
experimentado pela história cultural, e mais particularmente, a
multiplicação dos trabalhos sobre os intelectuais. O segundo está
vinculado à mudança da escala de observação do social, que levou,
sobretudo pela via da micro-história e da antropologia histórica, a um
interesse por fontes menos seriais e mais qualitativas. (Prochasson,
1998: 110-111)

Em busca de dados que pudessem trazer contribuição a este levantamento


bibliográfico sobre os arquivos pessoais, foi realizada uma pesquisa das ocorrências deste
tema nos Anais das edições do Congresso Brasileiro de Arquivologia.
Logo na primeira edição do Congresso, em 1972, há uma sessão que tem como
relatora Heloisa Liberalli Bellotto intitulada “Comunicações do Instituto de Estudos
Brasileiros da USP”. Nestas comunicações são abordados os seguintes temas: Artes
Visuais, Literatura e História do Brasil. No tema literatura” apresentado por Telê Porto
Ancona Lopez é descrito todo o trabalho desenvolvido nos arquivos pessoais: Arquivo
Mário de Andrade, o primeiro incorporado ao Instituto, em 1968; Arquivo Oswald de
Andrade (1969); Arquivo Fernando Mendes de Almeida (1969); e Arquivo Fernando
Azevedo (1970). Segundo a apresentadora, estes arquivos fornecem dados para os
estudantes das áreas de Educação, Estética, Literatura Brasileira, Música e Teoria Literária.
No tema História do Brasil, apresentado por Heloisa Liberalli Bellotto, a palestrante traz
informações sobre dois arquivos especificando a natureza de seus documentos:
manuscritos da Coleção J. F. de Almeida Prado e manuscritos da coleção Lamego.
No 3° Congresso Brasileiro de Arquivologia, em 1976, há uma sessão de temas
livres dedicada aos arquivos familiais e pessoais. Em uma das apresentações pode-se
perceber o empenho, em 1976, de duas representantes do CPDOC, da Fundação Getulio
Vargas, ao apresentar o trabalho que vinha sendo desenvolvido no Centro, em indicar um
ponto de partida para o início dos interesses aos arquivos privados:

26
Quanto aos arquivos privados, foi no decorrer do século XIX que os
historiadores e as sociedades científicas tomaram consciência da sua
importância para a conservação da memória nacional. Chamaram a
atenção dos proprietários de acervos para a necessidade de
preservarem seus documentos pessoais e comunicarem sua existência.
(Franco e Bomeny, 1976: 469)

O despertar da sociedade em relação à preservação dos bens culturais e à cultura da


memória valoriza a utilização dos arquivos pessoais como fontes históricas para a pesquisa
em diversos aspectos e esferas sociais. Este movimento iniciou-se na Europa após a
segunda guerra mundial. Nos Estados Unidos, a mesma preocupação se dá, posteriormente,
através de um ato presidencial que trata das Bibliotecas Presidenciais:

Mas foi somente em 1949 que o Arquivo Nacional da França criou


uma Comissão encarregada de estudar as medidas para assegurar a
salvaguarda dos arquivos privados e sua valorização sob o enfoque
dos estudos históricos. Formavam esta Comissão proprietários de
arquivos privados, historiadores e arquivistas. O coroamento desta
política deu-se, por ocasião da doação ao Arquivo Nacional, em março
de 1969, do acervo da Casa de Orleans pelo Conde de Paris. Nos
Estados Unidos não se tem conhecimento de uma política definida
para a preservação de documentos históricos de caráter privado.
Apenas em relação aos documentos presidenciais encontrou-se uma
fórmula inteligente. Em 1955, um ato do Presidente Eisenhower criou
dentro do Arquivo Nacional um setor para administrar as chamadas
“Bibliotecas Presidenciais” com a finalidade de reunir e preservar
documentos históricos de Presidentes da República, funcionários
graduados, contemporâneos e familiares categorizados. (ibid., p. 469)

Além de apresentar estes dados, as pesquisadoras também descreveram a situação


dos arquivos privados no Brasil:

No Brasil, a preservação de arquivos particulares sempre esteve na


dependência de instituições privadas. O Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, com sede no Rio de Janeiro e criado em 1838 e
os Institutos Históricos Estaduais, organizados em sua maioria durante
o século XIX, conseguiram reunir rico documentário sobre o período
colonial e imperial. Foram criados com o objetivo de coligir,
metodizar, publicar ou arquivar os documentos necessários ao estudo
da história e da geografia do Brasil. O método utilizado era o de ‘fazer
copiar crônicas, memórias e documentos oficiais sobre história,
estatística, legislação e administração para o governo...’ nos arquivos
de Portugal, Espanha, Holanda e demais países cuja história cruzava-
se com a nossa.(ibid., p. 469)

27
Em relação ao período republicano, a situação mostrava-se diferente. Por falta de
uma política que regulamentasse e incentivasse a preservação das fontes históricas
nacionais havia uma dispersão das fontes de informação. Os acervos dos presidentes da
República, por exemplo, encontravam-se em várias instituições como no Arquivo Nacional,
Arquivo Histórico do Itamaraty, Biblioteca Nacional, entre outras. Era freqüente esta
mutilação dos arquivos privados por desconhecimento de seus titulares ou descendentes,
que tinham por hábito desmembrar os acervos entre diversas instituições.
Esta situação exigiu, na década de 1970, a criação e reorganização de várias
instituições públicas ou privadas que tomaram para si a função de recolher e preservar
documentos de valor histórico e incentivar a pesquisa no país. Como por exemplo, citamos,
entre outras, a Fundação Casa de Rui Barbosa, voltada para a Primeira República; o Centro
de Memória Social do Conjunto Candido Mendes, que cuidava da preservação dos
documentos da história recente; o Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil – CPDOC, da Fundação Getulio Vargas, com os arquivos
privados de homens públicos; e o Arquivo Edgar Leuenroth, da UNICAMP, com a
documentação de expressivas lideranças do movimento sindical.
Após o levantamento realizado nos Anais pôde-se constatar que em todas as
edições do Congresso Brasileiro de Arquivologia estava presente o tema arquivos privados
- familiares, pessoais, particulares. Algumas vezes era usado o termo coleção em vez de
arquivo. Como uma das características do usuário dos arquivos pessoais é a
interdisciplinaridade, as comunicações tratam, na maioria das vezes, de assuntos variados,
alguns abordando a teoria arquivística aplicada aos arquivos pessoais, outros discutindo os
princípios básicos da arquivística, tais como proveniência, respeitos aos fundos,
organicidade. Outros, ainda, abordando as opções metodológicas, os procedimentos
técnicos, como classificação e descrição, além de trabalhos que estão centrados nos
campos historiográfico e social, contemplando questões como a construção da memória
social a partir do indivíduo acumulador de documentos.
Outro ponto a ser destacado após este levantamento é o crescimento do número de
instituições preocupadas com a preservação dos arquivos pessoais como estratégia para
salvaguardar a história do país. Podemos citar como exemplos o Arquivo de História da
Ciência, do Museu de Astronomia; o Arquivo da Casa de Osvaldo Cruz, da Fundação
Osvaldo Cruz; a Fundação Joaquim Nabuco; a Fundação Casa de José Américo, entre
outras.

28
Um grande destaque no que se refere ao tema, pode ser verificado no XII
Congresso da Arquivologia, em 1998, quando é realizado o IV Seminário Nacional de
Arquivos Privados.
Isso demonstra que apesar de vários autores afirmarem que a Arquivologia não
contempla os arquivos pessoais, esta pode ser uma afirmação questionável. O que parece
haver é uma escassez de produção científica por parte dos arquivistas que trabalham com
esses acervos. Santos (2007: 44), ao apresentar o seu trabalho que tem como objetivo
discutir os padrões de constituição e os procedimentos de organização de arquivos de
cientistas aponta para este ponto:

No Brasil, o esforço técnico de resolução dos problemas práticos de


tratamento dos arquivos parece sempre superar a capacidade dos
profissionais de formularem uma reflexão teórica [...] No tema dos
arquivos pessoais, o panorama teórico e metodológico revela baixa
densidade de reflexões. (Santos, 2007: 46)

Isso culmina na repetição de metodologias e procedimentos, de tal forma que os


profissionais, ao longo dos anos e salvo algumas exceções, utilizam modelos pré-
estabelecidos pelas instituições pioneiras no tratamento dos arquivos pessoais.
No que se refere diretamente às metodologias de tratamento destaca-se o trabalho
do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil –
CPDOC/FGV, criado em 1973, que a partir da década de 1980 se tornou um centro
especializado na guarda de arquivos privados pessoais de representantes da elite política
brasileira e atualmente recebe arquivos de personagens importantes no cenário nacional,
como por exemplo, Herbert de Souza (Betinho). A metodologia de organização e descrição
de arquivos pessoais do CPDOC teve sua primeira edição publicada em 198011 e passou a
ser considerada como referência na área, constituindo-se num “modelo único” adotado por
diversas instituições.
Outra fonte utilizada para a pesquisa sobre a situação dos arquivos pessoais no
campo arquivístico são as edições do periódico Arquivo & Administração, revista
trimestral editada pela Associação dos Arquivistas Brasileiros – AAB e lançada na mesma
época da realização do I Congresso. Embora o tema Arquivos Pessoais tenha sido objeto
de estudo logo na primeira edição do Congresso Brasileiro de Arquivologia, em 1971, o
mesmo não aconteceu na publicação.
11
FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS. Procedimentos técnicos adotados pelo CPDOC na organização de
arquivos privados contemporâneos. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, CPDOC, 1980.

29
A primeira menção a arquivos privados pessoais apenas ocorreu em 1974, no v.2
n.1, na coluna Documentando de Fernando de Guimarães, com um artigo intitulado O
arquivo de Sojenitzyn12. No mesmo ano, no v. 2. n.2, no artigo Diretrizes gerais para a
implantação de um Centro de Documentação da Universidade Estadual de Campinas –
UNICAMP, consta como uma das diretrizes do Centro o levantamento dos principais
arquivos privados brasileiros. Três anos mais tarde, em 1977, no v.5. n.1, o tema reaparecia
no testemunho de Ana Isabel de Souza Leão sobre um projeto de sistematização do
Arquivo de Joaquim Nabuco, tendo em vista o melhor aproveitamento das informações
sobre o titular. No v.6 n.1 de 1978, Heloisa Liberalli Bellotto assinou o artigo
Problemática atual dos arquivos particulares, apresentando um panorama geral e uma
discussão sobre as questões que envolvem os arquivos particulares. Em 1981 foi publicado
um número especial no qual constava um índice por assunto. Verifica-se assim que em dez
anos de existência do periódico foram publicados vários artigos sobre o assunto Arquivos
Privados, em sua maioria tratando de Arquivos Pessoais, tendo-se identificado 20
ocorrências em 28 números do periódico.
De fato, a produção científica abordando os Arquivos Pessoais aparece, na maioria
das vezes, através da publicação de artigos em periódicos, seja reproduzindo textos
apresentados em congressos, seminários etc, ou estudos de caso analisando problemas
particulares de determinadas instituições. Há, contudo, uma carência de trabalhos que
desenvolvam reflexões teóricas envolvendo princípios gerais da arquivística. Como explica
Bellotto:

Interdisciplinares por excelência, dando motivos a infinitas


abordagens e olhares, os arquivos pessoais não tinham merecido, até
duas ou três décadas atrás, a devida atenção no que diz respeito à sua
existência, rastreamento, organização e divulgação, nem tinham sido
objeto de pesquisa como poderiam e deveriam ser. Hoje a situação é
bem outra. (Bellotto, 1998: 202)

Atualmente o investimento intelectual nesta área tem aumentado, renovando a


discussão no campo dos arquivos pessoais. É o caso de Tempo e circunstância: a
abordagem contextual dos arquivos pessoais, livro elaborado a partir da experiência de
Ana Maria Camargo no trabalho desenvolvido no Instituto Fernando Henrique Cardoso,

12
Alexander Sojenitzyn - escritor russo, prêmio Nobel de 1970.

30
fundado com o objetivo de preservar o acervo documental do ex-presidente do Brasil
Fernando Henrique Cardoso.
Nesta obra, a autora apresenta o que ela chama de uma abordagem inovadora para o
tratamento dos arquivos pessoais, que consiste em “tratar o arquivo pessoal como conjunto
indissociável, cujas parcelas só têm sentido se consideradas em suas mútuas articulações e
quando se reconhecem seus nexos com as atividades e funções de que se originaram.”
(Camargo, 2007: 35-36). Ou seja, é preciso identificar a organicidade dos documentos
entre si e a relação dos documentos com as atividades e funções do titular. “Os arquivos
devem ser vistos como conjuntos orgânicos. Esta abordagem deve buscar recuperar a
conexão lógica e formal que liga um documento a outro mediante vínculo de necessidade.”
(Camargo, 2007: 43). Nesta nova abordagem optou-se por dar tratamento individualizado
aos documentos e incorporar livros e objetos ao mundo dos arquivos.

A coexistência, no acervo, de ambientes técnicos distintos – arquivo e


biblioteca – determinou a formulação de uma estratégia de tratamento
que, sem desconsiderar as especificidades de cada um deles e as
convenções adotadas nas suas respectivas áreas, submeteu-os a
algumas práticas descritivas comuns. (Camargo, 2007: 54)

Neste caso, as unidades que integram a biblioteca, foram submetidas, sempre que
possível, a um processo de contextualização, assim como o realizado nos documentos de
arquivo. O mesmo procedimento ocorreu para os artefatos, ou seja, nomeados pela autora
de objetos tridimensionais.

A simples presença de objetos tridimensionais não implica a criação


de um ambiente técnico museológico, como tem sido a opção de
várias instituições similares. No nosso caso, por mais que demandem
armazenamento e cuidados especiais nas múltiplas dimensões e
suportes sob os quais se apresentam, e por mais que tenham lugar de
destaque nas atividades expositivas do Instituto Fernando Henrique
Cardoso, os artefatos compõem, ao lado de outros gêneros
documentais, o conjunto articulado e indissociável a que chamamos de
arquivo. (ibid., p. 57)

O livro discute ainda várias questões que fazem parte do cotidiano dos profissionais
que trabalham com esses acervos, tais como a distinção feita entre os arquivos pessoais e
institucionais e os critérios utilizados no tratamento aplicado a esses acervos; as operações
classificatórias realizadas que colocam num mesmo plano formato, suporte, assunto e

31
outras categorias; a padronização dos arquivos pessoais e o reconhecimento das espécies
distintas. A autora considera ainda um argumento equivocado no tratamento dos arquivos
pessoais “a presunção de que, acumulados no espaço doméstico, estariam necessariamente
eivados de subjetividade e refratários a um tratamento convencional” (Camargo, 2007: 42).
Esta afirmação sugere uma questão: A subjetividade, um dos aspectos marcantes de um
arquivo pessoal, impediria a aplicação de um tratamento convencional ?
Outro caso que exemplifica o aumento do investimento intelectual nesta área são as
contribuições inovadoras e polêmicas de Armando Malheiro da Silva, professor e
pesquisador português que tem analisado a questão de mudanças de paradigma na
Arquivística. Segundo ele, o processo informacional relativo aos arquivos desde a década
de 1980 está na fase científica e pós-custodial e foi precedido pelas fases sincrética e
custodial (séc. XVIII – 1898) e técnica e custodial (1898-1980).13 Silva (2004a) pondera
que:

a generalidade dos autores considera que as Famílias e as Pessoas não


são equiparáveis a entidades públicas e privadas, estruturadas orgânica
e administrativamente e, assim sendo, os respectivos Arquivos surgem
como, no mínimo, “coisas esquisitas”. (Silva, 2004a)

Estas afirmações são resultados da diversidade de tipologias documentais


encontradas nos arquivos pessoais: manuscritos, impressos, recortes de jornais, fotografias,
livros, revistas, diplomas emoldurados, móveis, roupas etc. Silva (2004a) cita alguns
exemplos expressivos em Portugal dessa forma de encarar a realidade dos arquivos
pessoais, de acordo com o paradigma que ele classifica como “empirista, tecnicista,
custodial e patrimonialista” ainda dominante:

13
“Após um largo período de desenvolvimento que decorreu praticamente desde as origens da escrita ao fim
do Antigo Regime, os sistemas de arquivo sofreram o efeito modelador da viragem estrutural ocorrida no
processo histórico, com particular destaque para as implicações político-ideológicas, institucionais e jurídico-
administrativas da Revolução Francesa. Surgiram, então, os chamados arquivos históricos ao serviço da
memória do novo Estado-Nação e a Arquivística ligou-se à Paleografia e à Diplomática, dentro dos
parâmetros metolodológicos do conhecimento histórico. Esta situação não tardou a ser confrontada com o
impacto da industrialização e da complexificação burocrática, tornando-se a Arquivística um corpo de saber
especializado, dirigido a funções técnicas que se, por um lado, valorizavam a custódia, por outro, incidiam
sobre o controlo e avaliação dos documentos (da fase corrente até à definitiva). Nos anos mais recentes,
começou a ser defendida a individualidade da Arquivística no seio das ‘Ciências da Informação’. Foi o início
da era ‘póst-custodial’ em que os arquivos emergem como sistemas de informação, cuja complexidade nem
sempre se confina à ordem material dos documentos e cuja organicidade transcende as vicissitudes da sua
tradição custodial.” (SILVA, et. al. Arquivística. Teoria e prática de uma Ciência da Informação. vol. 1.
Porto: Edições Afrontamento, 1999.

32
Na Biblioteca Nacional de Lisboa, os Arquivos Pessoais são tratados
como Espólios (conceito bastante equívoco e impreciso); na Torre do
Tombo, também em Lisboa, predomina a tendência para adopção de
quadros de classificação mais temáticos que orgânicos, aplicáveis a
Famílias de Antigo Regime e Modernas (proposta inspirada no
modelo de Olga Gallego Dominguez); e entre os vários inventários e
catálogos disponíveis nota-se sobretudo a preocupação de tornar
acessíveis “os papéis” (forte carga patrimonialista) em detrimento do
contexto em que eles foram sendo produzidos. (Silva, 2004a)

Sob uma perspectiva sistêmica e interativa que corresponde uma radical mudança
de ponto de vista, Silva apresenta uma concepção diferente, baseada na substituição das
noções de documento, fundo, colecção, espólio, património arquivístico e arquivística,
pelas de “INFORMAÇÃO (fenómeno e processo), CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO e
TEORIA SISTÉMICA [...]”

“[...] A Teoria Sistémica é uma dessas “ferramentas” conceptuais que


permite romper com o empirismo reinante: um conjunto de “papéis e
de livros” deixa de ser o que parece (fundo, colecção, espólio), para
ser o que realmente é — um SISTEMA DE INFORMAÇÃO14. (Silva,
2004a)

Dessa forma, um arquivo de família ou um arquivo pessoal se adequa à teoria


sistêmica, passando obrigatoriamente a revelar sua estrutura orgânica anteriormente,
desprezada pela comparação às instituições públicas. De acordo com Silva:

“A Organicidade de uma Família assenta no encadeamento de


linhagem, dentro da sequência de Gerações, formadas por
descendentes e seus cônjuges (insere-se aqui sobretudo a Família
Extensa ou Patriarcal do Antigo Regime); e a Organicidade de uma
Pessoa revela-se nas FASES PSICOSSOMÁTICAS: Infância,
Adolescência, Juventude e Adultez.” (Silva, 2004a)

14
SILVA, et. al em Arquivística. Teoria e prática de uma Ciência da Informação. vol. 1. Porto: Edições
Afrontamento, 1999, definem ARQUIVO como um sistema (semi)fechado de informação social
materializada em qualquer tipo de suporte e configurado por dois factores essenciais - a natureza orgânica
(estrutura) e a natureza funcional (serviço/uso) - a que se associa um terceiro - a memória - imbricado nos
anteriores. Destacam, assim, três factores essenciais: organicidade, memória e funcionalidade, que
determinam a existência de arq. unicelulares e pluricelulares; arq. centralizados e descentralizados; e activos
e desactivados.

33
A proposta de Silva é complexa e necessita ainda de discussão na área; no entanto,
tratando-se de um texto ocupado do estatuto arquivístico dos arquivos pessoais , tornou-se
imprescindível apresentar aqui estas reflexões que, evidentemente, sugerem mudanças
radicais na metodologia de tratamento dos arquivos pessoais.
Outro ponto destacado por Silva é o tratamento dado aos documentos
bibliográficos e museológicos. Em sua proposta, o arquivo pessoal ou familiar pode ser
considerado um Sistema Patrimonial Complexo, pois contemplaria o arquivo, a biblioteca
e o museu.

Uma Família ou especialmente uma Pessoa (escritor, cientista, artista


plástico, político, empresário, etc..) produz/acumula um Sistema de
Informação Misto (arquivo, biblioteca e, actualmente, os STI) uno e
organicamente inteligível [...] esse SISTEMA concentra-se num
espaço físico e rodeado de objectos vários pertencentes à Família ou à
Pessoa que o gera e usufrui(u), daí a existência de CASAS-MUSEU
de Escritores, Políticos e Artistas. (Silva, 2004a)

Ao realizar este levantamento de fontes bibliográficas que trate dos arquivos


pessoais, constata-se que não há pouca bibliografia sobre o tema e sim uma dispersão de
fontes. A maioria dos trabalhos encontra-se publicada em periódicos com acessibilidade
restrita a determinados grupos e a Universidade, responsável pela formação dos novos
profissionais, parece estar alheia às discussões contemporâneas.
Uma discussão que aparece com frequência diz respeito à diferença entre os
arquivos institucionais e os arquivos pessoais. Terry Cook explorou uma questão
considerada por ele como fundamental para a teoria arquivística: os princípios e conceitos
arquivísticos tradicionais, que foram desenvolvidos para os documentos de instituições, são
também relevantes para os arquivos de indivíduos, famílias e grupos? Para tentar responder
a esta questão, Cook (1998) faz um breve resumo sobre o assunto demonstrando como a
discussão se apresenta nos EUA, Europa, Austrália e Canadá.

Em grande parte da literatura arquivística dos Estados Unidos, por


exemplo, há referências a duas partes distintas da profissão: a tradição
dos manuscritos históricos versus a tradição dos arquivos públicos [...]
Na Austrália, encontrei alguns arquivistas de arquivos públicos, na
verdade ignorando seus colegas que coletam manuscritos, não os
considerando arquivistas, e sim profissionais mais próximos, em seu
trabalho e em sua visão dos documentos, dos bibliotecários ou dos
curadores de museus [...] Em boa parte da Europa, os arquivos

34
nacionais, via de regra, não recolhem papéis pessoais de indivíduos
particulares (exceto políticos e burocratas) em bases iguais às dos
documentos oficiais do governo nacional [...] “uma exceção marcante
nessa situação geral é o Canadá, com seu conceito, há muito
implantado, de ‘arquivos totais’”. (Cook, 1998: 130)

No Brasil, esta situação é bastante incômoda. Os arquivos pessoais por muito tempo
foram tratados com os critérios originários da Biblioteconomia. Há também uma
fragmentação dos arquivos por se tratar de um negócio lucrativo aos herdeiros e até mesmo
aos seus titulares. Não há uma política e nem mesmo uma cultura de preservação desses
acervos em instituições que possam, por sua estrutura ou função, reunir arquivos que são
próximos em seus nexos e contextos. No entanto, esta situação não parece ser
exclusivamente um problema brasileiro. Silva (2004b) ao apresentar os aspectos do seu
modelo sistêmico e interativo afirma que há uma dependência de um padrão
comportamental generalizado.

A atitude habitual face aos "papéis" de famílias e de personalidades


mais ou menos ilustres, assim como à documentação de todas e
quaisquer entidades, tem ficado dependente de um padrão
comportamental muito generalizado que tende a negligenciar, a
eliminar, a vender e a fragmentar os mais diversos tipos de
documentos. E, desta infindável e permanente razia, fica — quando
fica... — um acervo residual que muitos arquivistas, marcados por
uma forte vinculação restritiva da noção de arquivo à actividade
administrativa, judicial e contabilística, têm dificuldade de considerar
como fundo e muito menos como um sistema de informação,
refugiando-se em termos difusos e equívocos — “colecção” e
“espólio” são muito usados por força do hábito e de pouco sentido
crítico (Silva, 2004b: 61)

Alguns autores defendem que os documentos pessoais não possuem valor


probatório nem, tampouco, organicidade. Outros, afirmam que os documentos pessoais são
orgânicos entre si e quando possuem uma integridade podem refletir as funções e
atividades do titular.

Essa idéia da diferença fundamental entre arquivos públicos e


arquivos pessoais é muito difundida no pensamento arquivístico
tradicional e na maior parte da literatura sobre o assunto. Os arquivos
públicos ou institucionais são apresentados (e seus defensores sempre
afirmam que é isso o que acontece) como acumulações naturais,
orgânicas, inocentes, transparentes, que o arquivista preserva de modo

35
imparcial, neutro e objetivo. Em contraste, os arquivos pessoais são
apresentados (e os arquivistas públicos, seus detratores, enfatizam isso)
como mais artificiais, antinaturais, arbitrários, parciais, algo realmente
mais próximo de um material de biblioteca, publicado, como as
autobiografias e as memórias, do que de documentos de arquivos
oficiais e públicos. (Cook, 1998: 132)

Cook, baseado nas mudanças fundamentais na natureza das instituições


governamentais e empresariais, nos meios dos registros e na natureza dos processos de
geração e manutenção dos arquivos e, considerando, ainda, o contexto pós-moderno em
que vivemos e os novos conhecimentos que estão sendo desenvolvidos sobre a história e o
caráter da memória, contesta a idéia tradicional de neutralidade dos arquivos públicos e do
arquivista institucional. O seu argumento é que a própria natureza dessas mudanças
conceituais transforma a tarefa dos arquivistas, tanto dos arquivos institucionais quanto dos
pessoais, e oferece uma perspectiva compartilhada sobre arquivos que, por sua vez, pode
levar a uma nova unidade nos esforços da arquivística, centrada na formação da memória
da sociedade.
Ducrot (1998: 152), ao apresentar a classificação dos arquivos pessoais e
familiares, também afirma que este é um trabalho comum ao realizado nos arquivos de
origem privada e nos provenientes de órgãos públicos, mas menciona que “a natureza
jurídica e a maneira particular como os arquivos privados entram nas instituições
arquivísticas suscitam problemas que não se apresentam no caso dos arquivos públicos —
ao menos, não da mesma forma.” (Ducrot, 1998: 152). Ao fazer esta afirmação, Ducrot
sugere uma diferenciação no tratamento aplicado aos arquivos de órgãos públicos e os de
origem privada.
Diversos autores compartilham da idéia da diferença entre os arquivos
institucionais e pessoais e, na maioria das vezes, essa diferença vem acompanhada da
suposição de que os arquivos institucionais são orgânicos, naturais e imparciais, enquanto
os pessoais são sempre dotados de características como intencionalidade, artificialidade,
imparcialidade etc. Mas a intencionalidade também está presente nos arquivos
institucionais. Ao se realizar uma avaliação, por mais imparcial que ela pareça, sempre
haverá as marcas dos profissionais e das circunstâncias envolvidas na realização da
operação. Para exemplificar melhor esta situação, podemos citar alguns autores, como
Santos (2007):

36
A literatura arquivística clássica sempre tratou as diferenças entre
arquivos institucionais e arquivos pessoais, estabelecendo uma
oposição bastante clara. Enquanto os primeiros representam um
conjunto homogêneo e necessário, resultado de uma atividade
administrativa, os pessoais são produtos de uma intenção de
perpetuar uma determinada imagem, portanto fruto de uma seleção
arbitrária, e se apresentam como agrupamento artificial e
antinatural onde não é possível a objetividade. (Santos, 2007: 46)

Esta discussão implica também no tipo de tratamento aplicado aos arquivos,


dificultando as atividades de arranjo e ordenação, por exemplo, dos documentos. Nos
arquivos institucionais, o arranjo normalmente é feito de acordo com a estrutura
hierárquica e funções da instituição, pois os documentos são gerados em função disto. Nos
arquivos pessoais, esse é um dos principais problemas, o arranjo varia de acordo com o
titular do arquivo e em geral gira em torno de classificações por atividades, tipológicas e
temáticas, o que muitas vezes gera uma ambiguidade na análise dos documentos e acabam
por sugerir a adoção de critérios totalmente alheios ao sentido ou à lógica de sua
acumulação, como se tal preceito não lhes fosse aplicável. (Camargo, 2007: 36)

No âmbito dos arquivos pessoais, no entanto, as fronteiras que


demarcam as diferentes áreas de ação de um mesmo indivíduo são
tênues e imprecisas [...] se a circunstância de um discurso é a abertura
de determinado congresso ocorrido em determinado tempo e lugar,
atrelá-lo à produção intelectual de seu autor ou às honrarias que lhe
cabem como titular de cargo público pode pôr em risco, por efeito de
superposição ou ambigüidade, o rigor do método que se pretende
aplicar. (Camargo, 2007: 23-24)

Ao refletirmos sobre os motivos que sugerem as diferenças entre os arquivos


pessoais e institucionais, podemos observar que estão mais ligados a aspectos estruturais
particulares dos produtores do arquivo, do que ao fato de ser pessoal ou institucional. Ou
seja, mesmo nos arquivos institucionais há diferentes tipos de arquivos. Instituições
públicas ou privadas podem ser mais ou menos complexas, apresentando problemas e
dificuldades na organização e disponibilização de seus documentos e informações.
No Brasil, no campo político, existem alguns movimentos que, aparentemente,
demonstram o empenho de vários profissionais no intuito de formular políticas que
possibilitem a preservação e o acesso democrático aos arquivos pessoais. “Pensar em
políticas voltadas para o amplo, diversificado e disperso universo dos arquivos privados, a

37
meu juízo, significa pensar em duas linhas de ação, fundamentalmente: identificação e
recenseamento, por um lado, assessoramento e treinamento por outro.” (Heymann 2005: 6)
Podemos citar como exemplo o caso da Câmara Setorial sobre Arquivos Privados
do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), criada em 2002 e formalmente instalada
desde 2003. A Câmara tem por finalidade identificar problemas e sugerir ações voltadas
para esse segmento específico. Visando auxiliar o Conarq em suas atividades censitárias, a
Câmara já formulou proposta de elaboração de um Cadastro Nacional de Agentes
Detentores de Arquivos Privados.
Ao longo deste capítulo pode-se observar que o arquivo pessoal suscita muitas
questões polêmicas, que vão desde o seu processo de constituição até a sua disseminação.
Muitas vezes, esse tipo de arquivo é visto como fonte privilegiada de informações, o que
talvez aconteça pelo fato de os pesquisadores – sobretudo da História – acreditarem ter
acesso a documentos que hipoteticamente representam e reproduzam a trajetória de vida do
titular. Estes seriam supostamente provenientes de uma acumulação natural, sem a
aplicação de métodos e procedimentos de gestão em sua fase de produção; no entanto,
mesmo que raramente problematizada pelos arquivistas brasileiros, essa naturalidade dos
arquivos pessoais é questionável, e diversos autores da área já se ocuparam de analisar o
tema.

A sedução exercida pelos arquivos privados pessoais sobre os


pesquisadores parece repousar exatamente na expectativa deste
contato com a experiência de vida dos indivíduos cuja memória,
imaginamos, fica acessível aos que examinam sua “papelada”, vista
como repositório seguro dos registros de sua atuação, pensamento,
preferências, pecados e virtudes. (Heymann, 1997: 1)

Heymann (1997) problematiza esta associação, relativizando a noção de senso


comum que identifica os conjuntos documentais de origem pessoal a uma manifestação
concreta da memória individual dos seus titulares e apresenta uma desconstrução da
representação dos arquivos privados pessoais por meio do acompanhamento do processo
sociológico de constituição destes arquivos. Ao realizar essa desconstrução aponta dois
equívocos: o primeiro é imaginar o arquivo pessoal como espelho da trajetória de seu
titular, a partir do qual se poderia buscar reconstituir toda as atividades desenvolvidas por
ele. O segundo seria imaginar o arquivo como “a memória”, em estado bruto, de seu titular,

38
como resultado de uma seleção estabelecida definitivamente por quanto ao que preservar e
de que maneira.
Ainda que a intenção inicial do titular seja a de acumular os documentos
comprobatórios e funcionais, estes, ao longo dos anos, podem acabar assumindo um status
de patrimônio pessoal que o titular deseja perpetuar e tornar acessível. Durante este
processo de acumulação são feitas seleções e arranjos e estas intervenções não são as
únicas. Somam-se a isso a agregação de outros sentidos atribuídos por assessores,
secretários, herdeiros e dos profissionais envolvidos na organização e disponibilização das
informações.

Temos, portanto, uma ação a posteriori, tanto da parte do acumulador


como dos outros agentes, assim como uma constituição intencional da
fonte histórica. Neste sentido, a análise deve necessariamente passar
por um exame que leve em consideração o conjunto, os projetos, as
intenções, fazendo ressaltar desta perspectiva exatamente a sua
dimensão memorial. (ibid., p. 18)

A naturalidade nos arquivos pessoais é um tema que merece muita reflexão e


análise. Ao utilizar um arquivo pessoal como objeto de investigação, podemos nos
confrontar com situações e contextos que forneçam subsídios para esta discussão. A
naturalidade, obviamente, não existe, nem mesmo nos arquivos institucionais que são
regidos por normas e procedimentos de gestão de seus documentos no momento de sua
produção.
As fontes bibliográficas sobre a origem e evolução dos arquivos pessoais
inicialmente se configuraram escassas, mas à medida que o levantamento foi avançando foi
possível constatar que a melhor estratégia para esta análise seria a pesquisa com um foco
nos arquivos privados, pois estes são contemplados desde o século XIX. Com esta
estratégia, foi possível encontrar muitas informações sobre esses acervos, e como foi
demonstrado, as pessoas já eram consideradas como entidades produtoras, ou seja, as
definições sempre mencionavam as pessoas físicas.
Foi possível constatar ainda que os trabalhos sobre os arquivos pessoais estão
dispersos por periódicos e, por mais que existam diversos profissionais e instituições
trabalhando com esse tipo de acervo e cada vez mais surjam novas instituições investindo
capital financeiro e intelectual, há poucas publicações com os resultados desses trabalhos,

39
o que para a área arquivística não é favorável, pois impossibilita uma ampliação da
discussão teórica e uma otimização das metodologias de tratamento com aplicação prática.
Os conceitos e reflexões de vários autores como Theodore Schellenberg, Eugenio
Casanova, Heloisa Bellotto, Ana Maria Camargo, Terry Cook, Ariane Ducrot, Armando
Malheiro da Silva, Paulo Roberto Elian dos Santos, Luciana Heymann, Ângela de Castro
Gomes, entre outros, possibilitaram uma contextualização do objeto de reflexão - os
arquivos pessoais - contribuindo na elaboração do panorama da situação do tema na área
arquivística.

40
2 OS USOS E A PROVENIÊNCIA DO ARQUIVO DOS ACADÊMICOS DA ABL

2. 1 Os usos do arquivo pelo titular e pelo grupo na Instituição

Abordar os usos dos arquivos pessoais pelos titulares e pelo grupo na instituição,
utilizando como campo empírico a ABL, impõe, ao analista, deparar-se com a dificuldade
na identificação da lógica de produção de alguns documentos: os documentos que não são
guardados de uma vez por todas, que voltam à tona, são utilizados novamente e podem dar
origem a outros; as diversas versões do mesmo documento; além do uso dos documentos
pelo titular e pela instituição para celebração da figura do imortal. Ao discutir essas
questões, torna-se indispensável compreender o processo de formação do seu arquivo, ou
seja, da proveniência dos documentos dos arquivos privados pessoais de seus membros,
custodiados pela Academia e denominados “Arquivo dos Acadêmicos”. Isso torna a ABL,
como mantenedora de arquivos pessoais, diferente de outras instituições, pois além de
mantenedora, ela também é responsável pela acumulação. O CPDOC, por exemplo, da
Fundação Getulio Vargas, custodia arquivos pessoais de homens públicos de atuação
destacada no cenário nacional, além de arquivos de partidos políticos, utilizados como
fonte de pesquisa para a história contemporânea brasileira que são doados ao Centro.
Porém, esses arquivos foram acumulados pelo próprio titular, o que nem sempre acontece
na ABL.
O Arquivo dos Acadêmicos da ABL é formado pelos arquivos privados pessoais de
seus membros15. Porém, a proveniência desses acervos nem sempre pode ser confirmada
como de origem do próprio acadêmico. A produção, no sentido de condição de autor do
documento, sim, mas a produção, conforme Duchein (1986), de quem acumula, não. Para
Duchein “as palavras produzir, produto e produção são os arquivos formados por um
organismo” (Duchein). Organismo é entendido por Duchein como o produtor de arquivos.
De acordo com a Norma Brasileira de Descrição Arquivística, a ABL pode ser identificada

15
A Academia Brasileira de Letras foi criada nos moldes da Academia Francesa. De acordo com os seus
Estatutos, elaborados no ano de sua fundação, a “Academia Brasileira de Letras compõe-se de 40 membros
efetivos e perpétuos, dos quais 25, pelo menos, residentes no Rio de Janeiro, e de 20 membros
correspondentes estrangeiros, eleitos mediante escrutínio secreto”. Nos estatutos lê-se ainda: “Do mesmo
modo serão preenchidas as vagas que de futuro ocorrerem no quadro dos seus membros efetivos ou
correspondentes”.

41
como produtora dos documentos dos arquivos privados pessoais dos acadêmicos, pois
produtor se define como:

A entidade singular ou coletiva responsável, em última instância, pela


acumulação do acervo. Ao longo do seu tempo de atividade, o
produtor, seja uma entidade coletiva, pessoa ou família, pode ter seu
nome modificado. Apesar de o produtor do acervo poder ser autor de
boa parte dos documentos que o integram, produtor e autor devem ser
considerados figuras distintas. (CONARQ, 2006: 30)

No caso do Arquivo dos Acadêmicos, no momento da aplicação do princípio da


proveniência na identificação da origem dos documentos de um arquivo, que já esteja sob a
custódia da ABL há algum tempo, esta questão suscita problemas, pois mesmo sabendo
que um acervo documental foi doado em sessão por familiares de um acadêmico morto, e
esse ato registrado em ata, pode-se afirmar que nesse acervo já poderão ter sido
acrescentados documentos entregues por outros acadêmicos, sem nenhum registro de
doação. Isso se dá pelo fato de, em determinada época, os arquivos não terem sido
descritos ou inventariados adequadamente, impossibilitando a identificação da origem dos
documentos. Deste problema, surgem outros, pois como Bellotto observou

O fator norteador da constituição do fundo é a origem do documento,


o que ele representa no momento de sua criação. A razão pela qual foi
criado, sua função e a entidade que o gerou são fatores que o marcarão
definitivamente, mesmo que a sua utilização pelos historiadores seja
muito mais ampla, e até mesmo muito mais diversificada do que se
poderia supor quando da produção da informação. Em torno destas
assertivas, pode-se então melhor compreender o princípio fundamental
da arquivística no âmbito dos arquivos permanentes: o respect des
fondes”... “...o que se chama o fundo de arquivo desta administração,
deste estabelecimento ou desta pessoa. Significa, por conseguinte, não
mesclar documentos de fundos diferentes, sendo, afinal, o que já está
implícito na própria definição de fundo. (Bellotto, 1991: 81)

Com o objetivo de melhorar o entendimento do processo de formação do Arquivo


da ABL, e orientar as discussões sobre o arranjo, a proveniência, a organicidade e os usos
desse arquivo será feita uma descrição de acontecimentos e fatos que podem demonstrar
como foi realizado o recolhimento desses documentos assim como a situação política e
hierárquica do arquivo na instituição, possibilitando a compreensão da representação do
papel da instituição Arquivo para a Casa e para os seus membros ao longo dos anos, pois o

42
acervo arquivístico, até o ano de 1943, quando então foi criado o cargo de Diretor do
Arquivo, era de responsabilidade da Biblioteca. Paralelamente a isso, será discutida a
oposição fundo x coleção.
É comum ver nas atas das sessões acadêmicas doações de acervos dos acadêmicos
para o Arquivo. Um dos registros mais importantes pode ser visto na ata da sessão de 3 de
outubro de 1908, primeira após o falecimento de Machado de Assis, onde o acadêmico
Rodrigo Octavio comunica que Machado de Assis, em declaração verbal, legou à
Academia “os seus livros, papéis e recordações literárias”. No entanto, ao organizar o
Arquivo Machado de Assis, foram encontrados documentos datados após o falecimento de
Machado de Assis, como homenagens póstumas realizadas cinquenta anos após o seu
falecimento, por exemplo.
Diante deste quadro, como proceder? Conclui-se que a formação desses conjuntos
documentais denominados como arquivos, de acordo com o princípio da proveniência,
seriam, de fato, coleções de documentos, pois teriam sido reunidos pela ABL e seus
membros muitas vezes após o falecimento do titular.
Mas o que fazer com os documentos acumulados pelo titular que foram agrupados a
essas coleções? De acordo com o princípio do respeito aos fundos, esses documentos não
deveriam ser agrupados a essas coleções e deveriam ser identificados como fundo do
titular que os acumulou. Analisando o conceito de fundo utilizado por Belloto, este
exemplo serve para refletir sobre a proveniência e organicidade desse acervo.

Conjunto de documentos produzidos e/ou acumulados por


determinada entidade pública ou privada, pessoa ou família no
exercício de suas funções e atividades, guardando entre si relações
orgânicas e que são preservados como prova ou testemunho legal e/ou
cultural, não devendo ser mesclados a documentos de outro conjunto
gerado por outra instituição, mesmo que este, por quaisquer razões,
lhe seja afim. (Bellotto, 1991:pág. 79)

Bellotto dedica um capítulo da sua obra Arquivos Permanentes à identificação de


fundos arquivísticos. Mesmo não apresentando uma definição para o termo coleção, ao
apresentar uma confrontação das definições clássicas do termo fundo no Manual Francês
de Arquivística, no Manual Holandês da Associação dos Arquivistas, no Manual Espanhol
de Vicenta Cortés e no Manual Inglês de Hilary Jenkinson, em um dos itens, descarta a
caracterização dos documentos como coleções, o que ela define como “papéis reunidos por

43
razões científicas, artísticas, de entretenimento ou quaisquer outras que não as
administrativas.” Bellotto (1991:80). Ao fazer esta afirmação, Bellotto parece estar se
referindo apenas aos documentos produzidos por pessoas jurídicas, pois muitos arquivos
pessoais são reunidos por razões não administrativas, mas como resultado das atividades
do seu titular.
No caso do Arquivo da ABL, o critério para a reunião das coleções não se enquadra
em nenhuma das razões apresentadas por Bellotto. Neste caso, o ponto de referência é o
acadêmico, e o critério poderia ser a utilidade do que foi guardado para produzir, celebrar e
encenar ritualisticamene a memória do imortal. No entanto, alguns arquivos pessoais de
acadêmicos doados à ABL são resultados de suas atividades, objetivos e funções, e podem
não ter sidos reunidos apenas com o intuito de monumentalização num exercício de
vaidade do titular, mas como uma consequência da relevância do acadêmico em sua área
de atuação.
É sabido que os membros efetivos escolhidos são, geralmente, escritores de grande
importância e reconhecimento para a sociedade brasileira e mundial. Neste aspecto, a ABL
acaba por ser responsável pela preservação e disseminação de boa parte da memória
literária nacional, lembrando que, pela diversidade das áreas de atuação dos acadêmicos,
ela acaba por se tornar responsável também, através dos arquivos pessoais dos seus
membros, pela guarda de documentos importantes para outras áreas do conhecimento, que
não só a literária.
Adiante, será retomada a discussão sobre a oposição fundo x coleção. Outro
exemplo de origem e proveniência dos documentos do Arquivo dos Acadêmicos pode ser
observado na sessão de 15 de fevereiro de 1923. Na ocasião, Mário de Alencar doou várias
cópias de autógrafos de acadêmicos, e Goulart de Andrade um retrato do patrono de sua
cadeira, Casimiro de Abreu, foto que lhe foi oferecida por uma irmã do poeta.
Também, em fevereiro de 1923, na sessão do dia 22, outros acadêmicos ofereceram
ao Arquivo da ABL documentos de outros membros da Casa. Nesta sessão ocorre uma
discussão relevante para o estudo da formação do Arquivo, a qual vale a pena destacar:
Carlos de Laet pergunta se os autógrafos a serem recolhidos devem ser de acadêmicos
vivos e mortos, pois gostaria de doar uma carta do atual secretário, Luiz Murat, por ocasião
de uma sessão em sua homenagem.
Este questionamento gera uma discussão entre Alberto Faria, que entende que os
autógrafos devam ser de acadêmicos mortos, e de Mário de Alencar, que defende que a

44
Academia não pode estabelecer uma regra fixa a esse respeito. O Presidente Afrânio
Peixoto resolve a questão da seguinte forma: “deixa a critério dos acadêmicos as ofertas
que desejarem fazer, certos de que Academia jamais publicará senão o que não faça mal
nem à memória nem à boa fama dos signatários” (Livro de Atas da ABL, sessão de 22 de
fevereiro de 1923). Alguns membros defendem o ponto de vista de Alberto Faria, enquanto
o secretário e outros - entre eles, Filinto de Almeida – defendem que as doações devam ser
apenas de acadêmicos mortos. Curiosamente, até o ano de 1997, quando houve o projeto
de reestruturação do Arquivo, o arranjo físico dos documentos era dividido em vivos e
mortos.
Havia essa preocupação em relação aos critérios utilizados para o recolhimento dos
documentos. No entanto, o Arquivo não era contemplado na estrutura organizacional da
instituição, até a eleição do Diretor do Arquivo em 1943. Até então, era de
responsabilidade do Bibliotecário a conservação dos documentos arquivísticos (autógrafos,
correspondências, retratos etc.). A primeira referência direta à estruturação de um Arquivo
aparece na ata do dia 09 de dezembro de 1926, quando o Acadêmico Constâncio Alves
propôs que fosse criado o cargo de “archivista”, independente das funções do bibliotecário.
A proposta, porém, não foi aceita.
Outra prova contundente desta acumulação dos arquivos pessoais pela academia
pode ser verificada em uma carta de Fernando Nery, secretário administrativo da ABL,
solicitando autógrafos de acadêmicos falecidos para serem publicados numa seção
intitulada “epistolário acadêmico”, na “Revista da Academia”. Ao solicitar esses
autógrafos para publicação, a Academia sugere aos acadêmicos que ofereçam esses
documentos ao arquivo, com a promessa de “resguardados com todo o carinho, ficarão eles
ao abrigo das injúrias do tempo sem correrem o risco de se dispersar. Tanto mais
continuarão, em qualquer tempo, ao inteiro dispor de V. Ex. ª e dos membros de sua
família”16.
Na sessão de 29 de maio de 1930, Humberto de Campos ofereceu ao arquivo parte
dos originais de “Opúsculo acerca do palmeirim de Inglaterra”, de Odorico Mendes, um
dos patronos do quadro de Sócios Correspondentes da ABL. Nesta doação, o que chama a
atenção na fala de Humberto de Campos é o nome dado ao local onde será arquivado o

16
Carta de Fernando Nery a Graça Aranha, datada de 4 de fevereiro de 1930 – Arquivo ABL/Arquivo Graça
Aranha.

45
documento: “No arquivo da academia, composto hoje de sessenta cinerários 17 , há um
consagrado a Odorico Mendes, e aos seus sucessores. Que seja guardado, pois, nele, esse
original do opúsculo sobre Palmeirim, encontrado entre os papéis que pertenceram ao
helenista maranhense”. Este nome dado ao local de guarda dos documentos remete à morte,
talvez sinalizando a intenção de ter a guarda de documentos de acadêmicos falecidos, com
uma indicação de perpetuação do seu nome através de seus ‘papéis’. Este uso do arquivo
pelos acadêmicos e pela instituição e por seus membros está além da sua funcionalidade.
Parece estar ligado ao processo de monumentalização.
Como já foi sinalizado anteriormente, o arranjo dos documentos do Arquivo dos
Acadêmicos era estabelecido com uma divisão de vivos e mortos, seguida pela ordem de
cadeira. Cada acadêmico possuía um conjunto de pastas com documentos textuais
(manuscritos e impressos), recortes de jornais e iconográficos. As séries, geralmente, eram
as mesmas para todos: correspondência ativa e passiva, obras, notícias e críticas, eleição,
posse, falecimento e sucessão. Essas quatro últimas séries acabavam por representar a
dinâmica de entrada e a vivência acadêmica de um membro da Academia. Com o
falecimento de um membro, abre-se uma vaga na ABL. Logo na primeira sessão após a sua
morte é comunicado o óbito e declarada a abertura da vaga. Os candidatos poderão
apresentar suas candidaturas, através de uma carta de inscrição, acompanhada da relação
de suas obras. A eleição é realizada em escrutínio secreto.
Após a sessão de eleição é designado um acadêmico para fazer o comunicado ao
candidato eleito sobre sua vitória. Este deverá preparar um discurso para sua posse, que
deverá conter um elogio ao seu antecessor, tratando da personalidade e das obras. Para isso,
muitos deles recorrem ao Arquivo dos Acadêmicos, com o objetivo de reunir informações
para o discurso. A eleição e a cerimônia de posse ou de recepção, são rituais repletos de
documentos e instrumentos de celebração. Além do elogio proferido pelo membro eleito
que está sendo empossado, há também um discurso de recepção proferido por um
acadêmico designado pelo Presidente para saudar o recém eleito.
Na sessão de 16 de dezembro de 1943, quando a ordem do dia era “discussão do
Projeto de Reforma do Regimento Interno” da ABL, o acadêmico Múcio Leão propôs que
fosse eleito um Diretor do Arquivo, após a eleição da Diretoria e do Bibliotecário. O
Projeto de Reforma do Regimento Interno foi aprovado, por unanimidade. Nessa sessão
deveria ser eleito o primeiro Diretor do Arquivo, mas por sugestão de Pedro Calmon, o

17
Cinerário: relativo à cinza; que contém as cinzas de um morto; relativo aos mortos: fúnebre, mortuário;
jazigo, sepultura; caixão mortuário; esquife, féretro. HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva. 2003.

46
recém eleito presidente da ABL, acadêmico Múcio Leão, deveria acumular a Presidência
da instituição e a Diretoria da “primeira fase de organização” do Arquivo da ABL. Alguns
anos mais tarde, na sessão de 23 de dezembro de 1948, o acadêmico Múcio Leão é reeleito
para Diretor do Arquivo, cargo que ocupou até o seu falecimento, em 12 de agosto de 1969,
portanto, por 26 anos consecutivos. A criação do cargo de Diretor do Arquivo na Diretoria
da ABL repercutiu na imprensa brasileira. Em um artigo publicado no Jornal A Noite em 4
de janeiro de 1945, intitulado Arquivos literários o autor, ao descrever o Arquivo da ABL,
apresenta outro exemplo da origem dos documentos.

Instituição que tem congregado algumas das figuras mais altas do


pensamento brasileiro, possui, de suas atividades, preciosos documentos e
reminiscências, e a ela chegam, de todas as origens, importantes ofertas de
peças raras que pertenceram a seus membros ou a escritores de nomeada do
país e do estrangeiro. Não lhe cabe apenas a guarda e vigilância da língua
nacional, mas também a do patrimônio literário, compreendido no seu mais
alto sentido, que inclui, por certo, dentre outros aspectos, a correspondência
dos escritores, os inéditos, as primeiras edições de suas obras, as publicações
esparsas em jornais e revistas, as entrevistas concedidas à imprensa, a crítica
publicada a respeito de cada qual, as atividades praticadas na Academia e
fora, no domínio das letras e nas demais profissões que acaso exercesse, a
coleta de retratos, caricaturas, bustos, máscaras e quantos elementos possam
fixar a imagem dos acadêmicos e outros grandes vultos de nossas letras.[...]
O Arquivo da Academia, nos moldes em que se vai estruturar, poderá vir a
ser a mais preciosa fonte de estudos das nossas atividades literárias”. (Jornal
A Noite, 4 de janeiro de 1945)

No projeto de reforma do regimento, as competências do Diretor do Arquivo seriam


as seguintes:

a) Ter sob sua direção e vigilância o Arquivo da Academia;


b) Solicitar dos senhores acadêmicos, e bem assim das famílias dos patronos
e dos acadêmicos falecidos, papéis e documentos que devam figurar no
Arquivo da Academia;
c) Promover a aquisição das peças que forem necessárias à reconstituição
da história da Academia, ou que interessem à história literária do Brasil;
d) Dar organização definitiva ao Arquivo, solicitando para isso à Diretoria o
pessoal e os recursos materiais de que houver necessidade;
e) Fazer registrar em livro especial as novas aquisições que forem feitas;
f) Publicar, no mais breve prazo possível, o catálogo circunstanciado do
Arquivo;

47
g) Publicar, anualmente, a relação das novas aquisições que tiverem sido
feitas.

No terceiro item das competências, o que se percebe é que o interesse dos


acadêmicos se dava por documentos isolados, como objetos de coleções, desconsiderando
o contexto de produção desses documentos e sua organicidade. Isso remete à noção de
autenticidade que está ligada à história do século XIX, que profissionalizou a pesquisa em
arquivo pautada na descoberta de documentos “inéditos” “raros”, que registrem fatos ainda
não revelados.
Percebe-se também uma intenção de reunir documentos não só de acadêmicos, mas
de outros grandes nomes da literatura nacional. Atualmente, essa intenção também faz
parte do discurso de alguns acadêmicos, no entanto é uma tarefa muito difícil de ser
cumprida, pois só o universo do Arquivo dos Acadêmicos e da ABL já é bastante amplo.
Na sessão de 31 de maio de 1951 o acadêmico Peregrino Júnior elogia a
organização do arquivo realizada pelo seu diretor Múcio Leão, mas explica que o arquivo,
para ser útil, necessita de um constante enriquecimento de documentos e informações
relativas aos acadêmicos. Com essa finalidade, sugere a convocação da empresa Lux-
Jornal para firmar acordo visando ao “fornecimento pontual e completo de todas as
informações, notas e comentários que sejam publicados no Rio e em outros estados sobre
cada um dos 40 acadêmicos” e a “criação de uma pasta para cada acadêmico, na qual serão
arquivados, na ordem cronológica, todos os documentos e informações a ele referentes.”
(Livro de Atas da ABL, sessão de 31 de maio de 1951) O presidente declara que as
sugestões serão tomadas em consideração oportunamente. No entanto, não foi encontrada
nenhuma referência a este assunto nas sessões seguintes. Esta pode ser a origem da coleção
ABL de recortes de jornais e das coleções de documentos dos acadêmicos, separados por
pastas individuais com o nome de cada Membro Efetivo. Porém, em 20 de agosto de 1953,
por proposta do presidente Barbosa Lima Sobrinho, foi aprovada pelo Plenário a seguinte
Resolução:
Art. 1 – Cabe ao Chefe da Secretaria da Academia organizar um arquivo de recortes,
relativo aos acadêmicos e aos assuntos literários em geral.
Art. 2 – Para esse fim, os artigos destinados ao arquivo figurarão num fichário
especial, com referência às pessoas e aos assuntos respectivos.

48
Art. 3 – Os acadêmicos colaborarão com esse serviço, entregando ou indicando, ao
Chefe da Secretaria, os recortes, que considerem em condições de serem arquivados pela
Academia.
Durante a presidência do acadêmico Barbosa Lima Sobrinho, o Arquivo passou por
uma “remodelação dos seus serviços”, com aquisição de móveis, materiais e contratação de
pessoal.
As duas propostas são semelhantes, pois tratam da organização de um arquivo de
recortes de jornais sobre os acadêmicos, mas se for considerado o que está registrado em
ata, apenas a segunda foi aprovada. No entanto, até o ano de 2006, a ABL mantinha com a
empresa LUX JORNAL um contrato de fornecimento do serviço de clipping com notícias
sobre os acadêmicos e a ABL.
Na sessão de 11 de setembro de 1952, o presidente Aníbal Freire da Fonseca
submeteu à apreciação do Plenário a criação de uma filmoteca e de uma discoteca. Esta
proposta surgiu após uma comunicação do acadêmico Austregésilo de Athayde que
informou aos acadêmicos a possibilidade de colaboração da Rádio Ministério da Educação
e Cultura com a Academia, onde seriam realizadas palestras de acadêmicos e depois
gravadas em discos. Além disso, seria produzido um filme documentário da vida de cada
acadêmico18. A última proposta, de que as sessões da ABL fossem transmitidas pela Rádio,
gerou polêmica e discussão entre os acadêmicos, com alegações sobre a ameaça à
intimidade dos acadêmicos e da Academia.
Em 3 de junho de 1953, o acadêmico Menotti Del Picchia sugere que os autógrafos
de livros dos Acadêmicos sejam oferecidos por esses, ou solicitados aos membros da
família dos mesmos, a fim de serem arquivados na Academia.
Em 20 de novembro de 1957 há uma comunicação informando a conclusão dos
trabalhos do Arquivo, pois estava sendo catalogada a cadeira 39, dando indícios que o
critério utilizado para escolha do arquivo a ser tratado obedecia à ordem das cadeiras dos
acadêmicos. No entanto, esse trabalho nunca seria conluído, pois da forma como é feita a
sucessão dos acadêmicos, em dois anos, por exemplo, já teriam novos acadêmicos nas
cadeiras anteriores a de número 39.

18
Nas sessões de 7 de abril e 19 de maio de 1960 foi realizada a doação, por José Renato dos Santos Pereira,
Diretor do Instituto Nacional do Livro, do filme-documentário sobre o acadêmico Manuel Bandeira. Com
este ato foi inaugurada a filmoteca, uma nova seção do Arquivo da ABL.

49
Como já exposto anteriormente, o Arquivo dos Acadêmicos é formado por coleções
de documentos que foram reunidos por amigos, familiares e pela Academia e por fundos
arquivísticos acumulados pelo titular e doados pelo próprio acadêmico, em vida, ou por
familiares e herdeiros, após o falecimento.
Em alguns casos é possível precisar a data da doação, como por exemplo, a do
Fundo Roquette-Pinto, relevante fonte de informação para a História da Ciência, do Rádio
e muitos outros temas. Esta doação foi realizada por seus herdeiros e anunciada na sessão
de 14 de novembro de 1963, documentada com registro em ata.
Na sessão de 3 de agosto de 1967, o presidente Autregésilo de Athayde decidiu
criar, depois de consulta feita ao Diretor do Arquivo, acadêmico Múcio Leão, a seção
Iconográfica do Arquivo da Academia Brasileira de Letras. Desde então, este é um dos
acervos mais consultados pelos pesquisadores, fornecendo imagens dos acadêmicos para
publicações de livros, produção de exposições etc.
Na sessão de 16 de novembro de 1978, o presidente Austregésilo de Athayde
comunicou aos acadêmicos que pensou em transferir o Arquivo, que ficava no porão do
Petit Trianon, para o Centro Cultural do Brasil, edifício de 30 andares, de propriedade da
ABL, que estava sendo construído ao lado do Petit Trianon. Os arquivos permanecem
neste local até os dias atuais.

Penso também passar imediatamente para lá os arquivos da Academia


a que vamos dar maior relevo. Quando cheguei aqui à Academia
dispunha apenas de 16 malas de flandres, dentro de uma cafua escura
onde estavam os papéis das nossas memórias. Hoje, dispomos de 40
fichários onde estão os arquivos, mas queremos dar uma expansão
muito maior, porque eles não serão apenas da Academia, mas da vida
literária do Brasil. Por enquanto, nós nos preocupamos apenas com o
que diz respeito à Academia. Para o futuro, porém, eles poderão
compreender os papéis, as revistas, tudo aquilo que nos for entregue e
que se relacione com a vida literária do Brasil inteiro. (Livro de Atas
das Sessões da ABL: 1978: p. 606)

O Arquivo dos Acadêmicos possui muitas características que podem identificá-lo


como uma coleção reunida pela ABL com documentos de seus membros, fazendo parte
assim do seu Arquivo Institucional. No entanto, na prática, os arquivos dos acadêmicos
batizados com o nome do titular já assumiram grande importância para os pesquisadores
que utilizam o arquivo da ABL como fonte de informação, obrigando, assim, os arquivistas

50
a adotarem este arquivo como uma segunda linha de acervo. Impõe-se, deste modo, a
aplicação de uma metodologia de tratamento baseada na arquivística contemporânea,
desenvolvida especialmente para os arquivos privados pessoais dos membros da instituição.
A oposição fundo e coleção é uma questão que merece ser aprofundada na
Arquivística. No caso do Arquivo dos Acadêmicos esta problemática se apresenta como
desafio constante, pois para a Academia é de suma importância a reunião de documentos
sobre os seus membros para que sirvam de fonte de informação, nas áreas culturais e
literárias, para as gerações atuais e futuras. Assim, o critério utilizado para essa reunião é a
simples condição de ser acadêmico.
A documentação colecionada pela ABL sobre determinado acadêmico, mesmo não
se configurando como um fundo arquivístico, traz informações importantes e, muitas vezes,
únicas, encontradas apenas no âmbito do arquivo da ABL. Essa vocação da ABL em
colecionar documentos sobre seus membros possibilitou a muitos pesquisadores obter
informações sobre os patronos, por exemplo, escritores que no momento de sua fundação
já eram falecidos.
Os teóricos e práticos da área isolam a coleção, tratando-a como um objeto de
estudo da Biblioteconomia. Assim, poucas são as ocorrências do tema na bibliografia
arquivística. Em uma das raras referências sobre o assunto, Camargo (2007) apresenta a
questão, da seguinte forma:

Considerados como coleções de documentos, os arquivos pessoais têm


sido abordados por meio de critérios originários das bibliotecas,
coerentes com a tradição de ali se depositarem as obras e os demais
papéis dos escritores. Dessa perspectiva, os documentos são tratados
um a um, gerando unidades descritivas autônomas. Resultado:
transferem-se para o documento de arquivo os atributos do livro, cuja
autonomia de significado – que o leva a constituir um verdadeiro
universo de auto-suficiência – corresponde à possibilidade de ser
descrito a partir de regras gerais, sem levar em conta o contexto em
que foi produzido. (Camargo, 2007: 37)

Os documentos dos acadêmicos, provavelmente, eram catalogados pela equipe que


trabalhava na Biblioteca como foi exposto anteriormente, o cargo de Diretor do Arquivo só
foi criado em 1943.
Durante a implantação do projeto de revitalização do arquivo, em 1997, a equipe de
arquivistas, ao realizar o diagnóstico do acervo, constatou que havia alguns fichários com
as fichas catalográficas dos documentos, ou seja, eles eram tratados individualmente.

51
Porém, na catalogação não foi empregada a Classificação Decimal de Dewey utilizada na
Biblioteconomia. As fichas possuíam um código alfanumérico que era reproduzido nos
documentos. Mesmo realizando vários estudos, não foi possível identificar a lógica
adotada nessa codificação. Um dos principais problemas encontrados pela equipe de
arquivistas foi a ausência de registros sobre os trabalhos anteriormente realizados no
tratamento dos documentos.
Belloto (1991: 85) ao analisar a sistemática do arranjo, ressalta a importância do
princípio da organicidade nos grupos de documentos. “Esta organicidade, que está
vivamente presente na própria conceituação de fundo, é o fator que melhor esclarece a
diferença entre os conjuntos documentais arquivísticos e as coleções, características das
bibliotecas e dos centros de documentação.”
Ao silenciar diante desta questão, os teóricos isentam-se de uma discussão mais
aprofundada. O resultado disto são instituições arquivísticas repletas de coleções tratadas
como arquivos. Para Camargo (2007: 35), esta situação serve para justificar a
padronização de organização dada aos arquivos pessoais.

Tal abordagem, antiarquivística por excelência, apresenta-se muitas


vezes mascarada por artifícios classificatórios que colocam num
mesmo plano formatos, suportes, assuntos e outras categorias. Essas
famílias de documentos, adotadas para dar coerência aos conjuntos
depositados em instituições cujo escopo é a reunião de arquivos
pessoais (de cientistas, de políticos e de literatos, por exemplo), têm
sido objeto, inclusive, de definição apriorística, em nome de uma
questionável necessidade de padronização. (Camargo, 2007: 37)

No caso do Arquivo dos Acadêmicos, mesmo admitindo um grande número de


coleções, a padronização das séries, por exemplo, se torna inviável, pois analisando o perfil
dos acadêmicos, verifica-se a diversidade de profissões e atividades exercidas por eles.
Há acadêmicos que atuavam como políticos, jornalistas, médicos, antropólogos,
advogados, juristas, professores, teatrólogos, cineastas etc. Dessa forma, nem sempre as
séries utilizadas no arquivo de um acadêmico médico, como por exemplo, o cirurgião
plástico Ivo Pitanguy, poderia ser utilizada no arquivo de um acadêmico político como o
Senador Marco Maciel.
Buscando a discussão em trabalhos anteriores, pode-se destacar o ponto de vista de
Schellenberg, o qual, tendo sido referência na década de 1980, é um dos poucos que tratou
do tema coleção de documentos. Para ele, os papéis privados são coleções. Em sua obra

52
Arquivos Modernos, a qual teve sua primeira edição publicada em 1973, no capítulo
Arranjo de papéis ou arquivos privados, é dedicada uma seção à definição do termo
coleção, analisando-a do ponto de vista da maneira pela qual vieram a existir. Ele as divide
em coleções orgânicas ou naturais e coleções artificiais:

Coleções naturais é o termo empregado para aglomerados de material


documentário que se formam no curso normal dos negócios ou da vida
de entidades privadas – individuais ou coletivas – como firmas
comerciais, igrejas, instituições ou organizações, e as coleções
artificiais são constituídas depois de ocorridas as ações a que se
relacionam, não concomitantemente e, em geral derivam de diversas
fontes e não de uma única.” (Schellenberg, 2002: 270)

De acordo com Schellenberg, uma das características das coleções naturais é que
são oriundas de uma mesma fonte reunida concomitantemente com as ações a que se refere.
E que os termos “arquivos” e “coleções naturais” podem ser usados indiferentemente.
Ao caracterizar as coleções artificiais, Schellenberg explica que estas são derivadas
de diversas fontes e são constituídas, na maioria das vezes, após as ações a que se
correlacionam.
Refletindo à luz do pensamento de Schellenberg, de Bellotto e de Camargo é
possível identificar os fundos arquivísticos doados à ABL, pelo próprio titular, como
coleções naturais, acumuladas por eles no desenvolvimento de suas atividades e funções, e,
como coleções artificiais, os documentos acumulados pela ABL e seus membros sobre
determinado acadêmico, em geral, após o seu falecimento.
Isso demonstra como foi o processo de acumulação dos arquivos dos acadêmicos,
ou seja, a proveniência deste acervo. Em um mesmo arquivo, podem ser identificados dois
produtores: o acadêmico titular e a ABL.
Os acadêmicos, desde a fundação da ABL, preocupavam-se com o enriquecimento
do arquivo da instituição com fontes documentais que pudessem ser utilizadas,
principalmente, em suas celebrações e rituais. Talvez eles não imaginassem que os seus
arquivos serviriam à produção de conhecimento científico por pesquisadores nacionais e
estrangeiros de diversas áreas.
Ao longo dos cento e onze anos, foram aplicadas diversas formas de tratamento
desse acervo, principalmente, métodos utilizados pela Biblioteconomia, mas a partir da

53
criação do cargo de Diretor do Arquivo, este se estruturou e transformou-se em um núcleo
importante dentro da ABL.
Dessa forma, atendendo aos desejos de seus fundadores, o arquivo da ABL tornou-
se uma rica fonte de informação para a sociedade.
No próximo capítulo, através da análise de um recorte de dois acadêmicos, Nélida
Piñon e Marcos Vilaça, poderá ser observado os arquivos pessoais de um acadêmico sob
duas perspectivas distintas.

54
3 O OLHAR DO TITULAR

3.1 Os Titulares: Nélida Piñon e Marcos Vilaça

Nesta pesquisa, o principal aspecto analisado foi o olhar do titular sobre os seus
arquivos pessoais. Que critérios ele utiliza na seleção e escolha dos documentos que serão
perpetuados? Por que e para quem faz um arquivo? O que o titular de um arquivo privado
gostaria que os pesquisadores nele encontrassem? E quais seriam as expectativas do titular
em relação à organização do seu acervo? Como o titular de um arquivo gostaria de ser
lembrado? Até que ponto estas escolhas são intencionais? Existe, realmente, um projeto
memorial por parte do titular?
O grau de subjetividade existente nestas questões demonstra a dificuldade de se
analisar a lógica de acumulação de um arquivo pessoal e consequentemente sua
organização. De todo modo, não seria possível responder a essas questões sem que, ao lado
da análise dos arquivos, se desse voz aos próprios titulares dos arquivos.
No cumprimento dessa meta, utlilizou-se como campo empírico os arquivos
pessoais de Marcos Vilaça e Nélida Piñon, ambos membros da Academia Brasileira de
Letras. Em um universo de 40 acadêmicos, como se deu esta escolha?
Um dos principais motivos que justificam esta escolha é a preocupação com a
preservação que os dois acadêmicos, de forma distinta, demonstram ter em relação aos
seus arquivos.
Enquanto o acadêmico Marcos Vilaça fez doação de todo o seu arquivo para a ABL,
incluindo documentos familiares, como os preservados por sua mãe Evalda19 sobre toda a
família, a acadêmica Nélida Piñon mantém sob sua administração, em um espaço privado,
todo o seu arquivo.
Escolhidos dois acadêmicos que tinham em comum essa preocupação, partiu-se
para outro critério de escolha: dois escritores, mas com trajetórias, pessoal e profissional,
diferentes.
Enquanto Marcos Vilaça tem grande destaque, principalmente, no cenário político
brasileiro, tendo ocupado vários cargos na alta administração do país, Nélida Piñon

19
A quem após análise da proveniência do arquivo atribui-se responsabilidade em alimentar em Marcos
Vilaça a vontade de guardar, como confirmado em sua entrevista.

55
destaca-se por sua produção literária, ministrando cursos e conferências pelo Brasil e pelo
mundo, além de ter recebido vários prêmios de grande relevância para a área literária. Não
há como omitir que, de certa forma, a diferença de gênero também teve um certo peso na
escolha: em vez de ouvir dois homens ou duas mulheres, optou-se por ouvir um homem e
uma mulher.
A trajetória profissional de Marcos Vilaça e Nélida Piñon tem alguns pontos
divergentes, mas também muitos, convergentes. Para esta pesquisa um ponto de
convergência importante, é o fato dos dois pertencerem à Academia Brasileira de Letras e
terem ocupado o cargo de Presidente da instituição. Além de pertencerem a uma mesma
geração, entraram para a Academia na mesma década. Marcos Vilaça foi eleito para ABL
em 11 de abril de 1985 e tomou posse em 2 de julho do mesmo ano na cadeira de número
26, que tem como Patrono Laurindo Rabelo20 e Nélida Piñon foi eleita para a ABL em 27
de julho de 1989 e tomou posse em 3 de maio de 1990 na cadeira de número 30 que tem
como Patrono o acadêmico Pardal Mallet21.
Nélida foi a primeira mulher a assumir a posição de Presidente da ABL em 1997, o
ano do Centenário de sua fundação. Em seu discurso de posse, fez questão de ressaltar a
importância deste fato:

É como mulher, escritora, cidadã brasileira que hoje, com a ajuda de


Deus, dos brasileiros amantes das causas nobres, dos membros desta
Casa, que libertos de preconceitos confiaram na minha condição
feminina, assumo, comovida, a presidência da Academia Brasileira de
Letras. Muito obrigada.
(Discurso de posse de Nélida Piñon na Presidência da Academia
Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1996)

Marcos Vilaça ocupou a presidência da ABL nos anos 2006 e 2007, portanto, dez
anos depois. Durante esses dois mandatos, o de Nélida Piñon e o de Marcos Vilaça, a

20
Laurindo Rabelo (L. José da Silva R.), médico, professor e poeta, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 8 de
julho de 1826, e faleceu na mesma cidade, em 28 de setembro de 1864. É o patrono da Cadeira nº 26, por
escolha do fundador Guimarães Passos.

21
Pardal Mallet (João Carlos de Medeiros P. M.), jornalista e romancista, nasceu em Bagé, RS, em 9 de
dezembro de 1864, e faleceu em Caxambu, MG, em 24 de novembro de 1894. É o patrono da Cadeira n. 30,
por escolha do fundador Pedro Rabelo

56
Academia obteve grande divulgação e muito espaço na mídia, por executar projetos
inovadores para a rotina da instituição.
Cumprindo a promessa feita pela acadêmica no seu discurso de posse, a presidência
de Nélida Piñon foi movimentada culturalmente, pois ela foi responsável por uma abertura
da instituição para a sociedade brasileira. Foram produzidos livros, CD´s, selos, medalhas
comemorativas, além de diversos eventos como concertos, saraus, peças de teatro etc.
Também em sua presidência foi inaugurado o Centro de Memória da ABL e o projeto de
revitalização do arquivo, com remodelação dos espaços físicos, além da contratação de
equipe especializada para a organização dos arquivos.

Todos juntos querem celebrar este centenário em sintonia com a


sociedade. Do mesmo modo como resistimos às
intempéries históricas, ocupando nossas cadeiras com uma plêiade de
criadores e expoentes, deveremos auscultar, sempre mais, o que a
cultura brasileira forjou de mais expressivo.

Quando Machado de Assis, no seu discurso inaugural, confessa que os


moços inspiraram a fundação desta Academia, ouso repetir, cem anos
mais tarde, que é momento de reduzir a distância que separa os jovens
das instituições que os precederam no tempo, forjaram a psique e a
cidadania. Afinal a modernidade atribuída aos jovens, não sendo
exclusivamente, deve rastrear sua genealogia, de onde provém os
subsídios profundos de uma nação. Convém lembrar-lhes que entre
nós se abriga um patrimônio intelectual, que pertence à nação
brasileira. É momento, pois, de freqüentarem de novo esta Casa,
reviverem simbolicamente, junto a nós, outra Semana de Arte
Moderna. Poucas coisas são hoje tão brasileiras quanto esta
instituição. Forcem, pois, a passagem, batam à porta. Ela está aberta.
Hão de recebê-los vivos e mortos. (Discurso de posse de Nélida Piñon
na Presidência da Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 12 de
dezembro de 1996)

Nélida Piñon formou-se em Jornalismo na PUC/RJ, iniciou sua trajetória


profissional escrevendo contos e artigos para a imprensa brasileira e também foi
correspondente de revistas estrangeiras.
Brasileira, nascida no Rio de Janeiro, filha de Galegos, aos dez anos mudou-se com
os pais e avós maternos para Borela, onde ficou por dois anos. Este período na aldeia
galega para a menina urbana foi de descoberta e encantamento, isso trouxe grande
influência para sua obra.

57
Após uma análise em sua biografia, é justificável afirmar que Nélida Piñon, é por
profissão, escritora. Todos os cargos desempenhados por ela ao longo dos anos, tais como
Diretora do Laboratório de Criação Literária da Faculdade de Letras da UFRJ, Diretora-
assistente da Revista Cadernos Brasileiros, Vice-Presidente do Sindicato dos Escritores do
Rio de Janeiro, Diretora da Divisão Cultural, órgão do Departamento de Cultura do Estado
do Rio de Janeiro (atual Secretaria Estadual de Cultura) estão relacionados diretamente
com sua condição de escritora.
Nélida estreou na Literatura em 1961, aos vinte e quatro anos, com a publicação do
romance Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo, a partir de então, publicou vários livros como os
romances Madeira Feita Cruz, Fundador , A Casa da Paixão, Tebas do Meu Coração A
força do Destino, A República dos Sonhos, A doce Canção de Caetana e Vozes do Deserto;
os livros de contos Tempo das Frutas, Sala de Armas, O Calor das Coisas, além do
romance infanto-juvenil A Roda do Vento e o livro de crônicas Até Amanhã, Outra vez,
sendo agraciada com diversos prêmios nacionais e internacionais. Muitos dos prêmios
foram concedidos pela primeira vez a uma mulher ou a um escritor de Língua Portuguesa.
Uma das diferenças percebidas entre os dois acadêmicos escolhidos para esta
pesquisa são suas trajetórias profissionais. Enquanto Marcos Vilaça, mesmo tendo escrito
vários livros, atua mais na área política/administrativa, Nélida Piñon vive do labor de
escritora.
Talvez isso seja um reflexo da formação de Marcos Vilaça. Formado em Ciências
Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco em
1962, cursando também o Mestrado na mesma instituição Marcos Vilaça iniciou sua vida
profissional em 1964, como Professor, ministrou aulas de Direito Internacional Público,
Direito Administrativo, História Política-Econômica e Social do Brasil.
Como estudante, participou ativamente do movimento estudantil universitário,
ocupando cargos de Diretoria, principalmente no setor cultural, tendo fundado a Academia
dos Novos em Limoeiro-PE.
Poucas pessoas no Brasil conseguem reunir em uma mesma biografia tantas
atividades, Marcos Vilaça conseguiu exercer diversos cargos públicos importantes em
diferentes governos e está sempre envolvido em atividades inusitadas. Em 2008, foi Chefe
da Delegação da Seleção Brasileira de Futebol em um jogo amistoso.
Conforme mencionado anteriormente, exerceu cargos importantes como Diretor da
Caixa Econômica Federal, Coordenador do “Programa Nacional de Centros Sociais

58
Urbanos-CSU” Vinculado à SEPLAN – Presidência da República, Presidente da Fundação
Legião Brasileira de Assistência – LBA, Secretário da Cultura do Ministério da Educação e
Cultura, Presidente da Fundação Nacional Pró-Memória, Presidente da Fundação Nacional
de Arte – FUNARTE, Secretário Particular para Assuntos Especiais do Presidente da
República José Sarney, Suplente do Senador da República Nilo de Souza Coelho,
representando o ARENA pelo Estado de Pernambuco, Fundador e Secretário Executivo do
Instituto Cultural Brasil-Argentina, do Recife-PE, Fundador e Diretor Cultural da
Associação Cultural Brasil-Japão, do Recife-PE, Presidente da Academia Pernambucana
de Letras, Ministro do Tribunal de Contas da União, a partir de 1988, tendo ocupado o
cargo de Presidente no exercício de 1995.
Assim como Nélida Piñon, Marcos Vilaça é membro de diversas instituições como
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Academia de Ciências de Lisboa, Academia
Brasiliense de Letras, Academia Pernambucana de Letras, Membro do Conselho
Consultivo da Associação Cultural da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro,
Membro da Academia Brasileira de Ciências da Administração, Membro da Sociedade
Brasileira de Direito Internacional entre outras.
Marcos Vilaça mesmo tendo uma vida política e social intensa, possui uma vasta
bibliografia, com destaque para os livros Em torno da Sociologia do Caminhão, e Coronel,
Coronéis.
Ao longo de sua vida pública recebeu diversos prêmios e honrarias nacionais e
internacionais, tais como prêmios, medalhas, títulos, entre outros, o que em um
depoimento sobre sua vida, ele chamou de “administração da glória”.
Ao escolher como campo empírico para esta análise os dois acadêmicos acima
citados e seus arquivos, acredita-se poder trazer novas perspectivas para o estudo dos
arquivos pessoais. Um dos diferenciais desta pesquisa é que os dois acadêmicos escolhidos,
estando em pleno desenvolvimento de suas atividades e funções, alimentam o que a
Arquivística define como um fundo aberto.
Em muitos estudos se discute as intenções dos titulares em relação à acumulação
dos documentos em seus arquivos; porém, a maioria das pesquisas é desenvolvida sobre
arquivos de titulares já falecidos, ou seja, fundos fechados. Apesar de reconhecer a
relevância deste tipo de pesquisa, entende-se que o resultado final é realizado com base no
olhar do pesquisador e não do titular, ao contrário do que se pretende nesta pesquisa.

59
3. 2 Os arquivos: Nélida Piñon e Marcos Vilaça

O Arquivo Marcos Vilaça é um dos maiores acervos do Arquivo dos Acadêmicos


da ABL. Em 2004, o titular fez uma doação de todo o seu acervo que estava armazenado
em sua residência em Brasília, cidade onde morava até o ano de 2007, quando fixou
residência na cidade do Rio de Janeiro.
Este acervo não se configura como a totalidade do fundo fechado, pois como o
Acadêmico se encontra em plena atividade, muitos documentos são produzidos
diariamente e enviados ao Arquivo da ABL o que também demonstra uma preocupação
por parte do titular pela preservação dos registros documentais de sua vida privada e
pública. Este fato traz novos debates para o campo arquivístico, já que normalmente os
arquivos são recolhidos por uma entidade custodiadora após a morte do titular.
Este arquivo é formado por diversos gêneros e tipos documentais: correspondências,
certificados, fotografias, documentos audiovisuais, recortes de jornais entre outros. Possui
um arranjo intelectual misto, com séries divididas em funções, temas, datas etc. O arquivo
possui aproximadamente 40 metros lineares de documentos textuais e iconográficos e
cerca de 100 documentos audiovisuais.
Na análise realizada no arquivo de Marcos Vilaça observou-se que o titular é
generoso no envio de papéis, mandando inclusive documentos dos seus familiares, em
especial seu filho Marcantônio Vilaça falecido em 2000 e de seu pai Antonio de Souza
Vilaça, professor e escritor pernambucano.
Esta lógica de acumulação possibilitou a discussão de questões tais como, a
Proveniência em um arquivo pessoal: estes documentos constituem novos fundos? Ou
devem ser considerados parte do fundo Marcos Vilaça? E este seria considerado uma
coleção? Ou ainda: não seria um fundo familiar, ainda que haja uma predominância de
documentos de Marcos Vilaça?
De acordo com o Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística, arquivo “é o
conjunto de documentos produzidos e acumulados por uma entidade coletiva, pública ou
privada, pessoa ou família, no desempenho de suas atividades, independentemente da
natureza do suporte”.
Através da análise conceitual do termo Arquivo, pode-se afirmar que todos os
documentos acumulados por Marcos Vilaça constituem-se em seu arquivo pessoal,

60
formando, simplesmente, o Fundo Marcos Vilaça, resultado de suas atividades, funções,
objetivos e interesses. O que não impede que dentro do Fundo Marcos Vilaça existam
algumas coleções, como por exemplo, a coleção Antonio e Evalda, seus pais. Esses
documentos foram acumuladas por Evalda Vilaça e depois entregue a Marcos Vilaça.
Assim, em seu arquivo pode-se encontrar documentos provenientes das instituições
das quais o acadêmico ocupou cargos, tais como Presidente do Tribunal de Contas da
União, Secretário da Presidência da República, Secretário de Cultura do Ministério da
Educação e Cultura, Diretor da Caixa Econômica Federal, Presidência da LBA,
Presidência da Academia Pernambucana de Letras, Presidência da Academia Brasileira de
Letras entre outros.
Há também os documentos acumulados por interesses particulares e individuais,
tais como os documentos resultados de atividades de terceiros, mas que por algum motivo
o titular se interessou em guardar. Desses documentos, pode-se enumerar os provenientes
dos membros de suas famílias.
Um exemplo disto é a coleção de menus que Maria do Carmo, sua esposa acumulou
ao longo dos anos, o que representa uma grande quantidade de documentos. Todos os
eventos como almoços e jantares freqüentados pelo casal. Não são apenas os menus, mas
também, os convites, as placas identificadoras dos presentes à mesa etc. Estes documentos
trazem dados importantes sobre a rede de sociabilidade do casal.
Uma vez identificada a proveniência, passamos a outra etapa. O que considerar
como documentos arquivísticos? Neste arquivo há uma gama variada de suportes
documentais, como as honrarias que acompanhadas da peças, ficam armazenadas na
reserva técnica do acervo museológico.
Como o arquivista deverá proceder? Analisando a informação ou o meio em que ela
está registrada? A medida que a análise passa a ser voltada para a informação e não mais
para o documento, fica mais complexa a identificação de documentos arquivísticos,
biblioteconômicos e museológicos.
O Arquivo Nélida Piñon no Arquivo dos Acadêmicos da ABL possui muitos
documentos referentes à participação da titular nas atividades da instituição,
principalmente do período de 1997, quando ocupou o cargo de presidente da casa. São
discursos, correspondências, convites, folhetos, artigos, recortes de jornais e revistas sobre
a titular, além de fotografias e documentos audiovisuais.

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Freqüentemente, a acadêmica envia ao Arquivo documentos sobre sua atividade
literária, tais como notícias, críticas e crônicas sobre sua obra, além de artigos seus
publicados em jornais no Brasil e no exterior.
Diferentemente do acadêmico Marcos Vilaça a acadêmica, também consciente da
importância do seu arquivo para a história da literatura brasileira, mantém um projeto
particular de gestão e preservação de seu acervo, que é mantido em sua própria residência.
Observam-se aí duas perspectivas diferentes em relação à gestão de um arquivo pessoal.
Enquanto, o acadêmico Marcos Vilaça entregou todo o seu acervo para a guarda da ABL, a
acadêmica Nélida Piñon, prefere manter os seus documentos próximos aos seus olhos, em
sua residência.
Outra perspectiva analisada foi a lógica de acumulação dos documentos,
considerando as prerrogativas da titular e da ABL. Até que ponto este conjunto de
documentos custodiados pela instituição pode ser considerado um fundo ou uma coleção,
já que a proveniência é da própria titular do acervo? Até que ponto a ABL é entidade
mantenedora e produtora deste acervo?
Após o estudo e análise do caso específico do arquivo de Nélida Piñon custodiado
pela ABL, chegou-se a conclusão de que esta pequena parcela de documentos, mesmo
sendo proveniente da própria acadêmica, configura-se como uma coleção de documentos
sobre Nélida Piñon no Arquivo dos Acadêmicos, pois o Fundo Nélida Piñon, como
mencionado anteriormente, está sob sua guarda.
A lógica de acumulação de um titular de arquivo pessoal pode possuir muitas
facetas como as apresentadas até aqui, gerando dificuldades na execução das atividades de
elaboração de arranjos e descrição. Neste caso, a opção metodológica utilizada será: Uma
vez identificada como uma coleção de documentos, este conjunto documental receberá o
mesmo tratamento dado a um arquivo, evidentemente, compreendendo e contemplando
suas limitações.

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3. 3 Os Olhares: Nélida Piñon e Marcos Vilaça

Para a execução da principal atividade desta pesquisa, que são as entrevistas com
Nélida Piñon e Marcos Vilaça, foi empregada a técnica utilizada pela história oral. Foram
realizadas duas entrevistas: a primeira com o acadêmico Marcos Vilaça no dia 08 de julho
de 2008, e a segunda com a acadêmica Nélida Piñon no dia 28 de julho de 2009. Ambas
foram gravadas em vídeo e a pedido dos entrevistados ficaram arquivadas no Arquivo dos
Acadêmicos da Academia Brasileira de Letras.
Por se tratar de uma entrevista temática, o roteiro foi basicamente o mesmo, com
pequenas alterações. Foi elaborado um roteiro que possibilitasse a coleta de informações
referentes à origem do arquivo: Como foi feita a acumulação dos documentos; se havia
critérios de seleção e escolha dos documentos que seriam preservados e disponibilizados
aos pesquisadores; o que os titulares gostariam que os pesquisadores encontrassem em seus
arquivos; as expectativas e planos em relação à preservação do acervo; além da finalidade
de se preservar um arquivo pessoal.
A discussão em torno dos arquivos pessoais, geralmente se dá no discurso dos
arquivistas, historiadores, antropólogos, sociólogos e até mesmo, psicanalistas. Nesta
pesquisa, se priorizou a voz do titular do arquivo. A realização das entrevistas com esse
agente produtor possibilitou um estudo dos arquivos pessoais através da verificação e
análise da gênese e da finalidade do arquivo pessoal, trazendo subsídios para o trabalho do
arquivista na descrição e preservação dos mesmos.
Ao realizar as entrevistas com o Acadêmico Marcos Vilaça e com a Acadêmica
Nélida Piñon foi possível observar vários aspectos sob uma perspectiva ainda pouco
abordada na literatura arquivística. E o mais rico deste trabalho, talvez seja a possibilidade
de comparar duas estratégias de monumentalização.
Os arquivos pessoais são dotados de características e especificidades que trazem
muitas dificuldades e obstáculos para o seu tratamento por parte dos arquivistas. Muitas
dessas características e especificidades devem-se às particularidades na produção e
acumulação desses documentos por parte dos titulares do arquivo, assim como pelas
intervenções realizadas pelos herdeiros, doadores e arquivistas.
Na entrevista com Nélida Piñon, há duas passagens que retratam bem esta questão.
Ao falar sobre o hábito de guardar, ela relata:

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Muito bem, então a partir daí, eu comecei a guardar tudo, mas guardando até
papéis de viagens, eu gosto das lembranças de viagem, eu guardo também tudo aquilo que
de algum modo, incendeia uma flama interior e que me leva a identificar uma experiência
pretérita.
Por exemplo, de repente, eu recorto um artigo sobre Lúcio Cardoso, um grande
escritor brasileiro que eu conheci pessoalmente bastante, um homem fascinante... Então,
como eu não confio na memória, a memória distraída, dispersa, trai, não é? Ela se associa
a invenção. Eu recorto isso num jornal em algum momento, recortei, e vai pra chamada
pasta da memória. O que isso quer dizer? Quer dizer que nesse meu arquivo eu tenho um
material enorme que basta eu consultar uma das pastas que eu vou ser tomada pelas
evocações. Então, o arquivo não é arquivo morto pra mim.

... tem uma coisa muito interessante, eu estou lendo um jornal, eu leio muitos
jornais internacionais, estrangeiros ou revistas, há um assunto que me interessa, aí já não
é no plano daquele material que evoca minha memória, incendeia minha memória,
desperta minha memória, não. Eu, por exemplo, matéria que me interessa, eu recorto, leio
e penso: Não, pode ser que esta matéria diga muito de mim ou o que eu tava pensando
nessa época, vai para o arquivo, ou seja, eu tenho noção da importância do arquivo...

Marcos Vilaça também expõe alguns pontos importantes para a reflexão sobre as
particularidades na produção e acumulação dos documentos pessoais.

É claro que o arquivo tem dois momentos: tem o momento objetivo, que são
aquelas peças que transcendem a individualidade, que ganha mais um status diferente e
tem aquelas peças que são rigorosamente subjetivas. E, é claro que o meu primeiro
caderno de caligrafia, eu estudei... quando eu estudante tinha caligrafia, eram aquelas
letras desenhadas, ele tem uma importância para mim muito grande, foi o meu primeiro
caderno, foi ali que eu comecei a desenhar as palavras, essa é a realidade subjetiva. A
realidade objetiva é que tipo de educação, de instrução, se dava àquele tempo, onde se
fazia esse tipo de ação com a criança, hoje é inconcebível isso, não é? Então, há uma
vertente objetiva e uma vertente subjetiva no arquivo. A pessoa que tem sua memória
arquivada, não sabe, não deve fazer esta distinção, essa distinção é do técnico, não é? Daí,
porque o material que eu mando para o Centro de Memória da Academia, onde você

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trabalha, e trabalha muito bem, é um caos, é caótico. Porque tem desde o documento mais
rigorosamente importante sob o ponto de vista histórico, não por minha causa, mas a
função que eu ocupei, as funções por onde eu passei, tem importância para o país, então
aquilo tem essa relevância. E tem a coisa muito pessoal minha, por exemplo, minha
mulher coleciona menus de banquetes aonde vai, a vida toda, vai guardando..., vai
mandando as pessoas, quando são mesas menores, assinar, então aí tem o menu da casa
do meu cumpadre em Caruaru, mas tem também o menu do Kremlin, menu da Casa
Branca, o menu do Palácio do Elyseu na França. E tem os papéis do Clube Náutico
Capibaribe, tem os papéis da Academia Pernambucana de Letras, tem os papéis do
Tribunal de Contas, tem os papéis da Secretaria da Cultura, então é aquele tumulto. Vocês,
vocês é que tem que fazer essa coisa insólita, dar ordem ao caos.

Por mais objetivo que o arquivista seja no momento da organização do acervo


pessoal, e compreenda que os documentos são o resultado das atividades e objetivos do
titular não há como ignorar a subjetividade dos papéis pessoais. Como recuperar a
informação que diz respeito ao sujeito acumulador dos documentos? Esta é uma questão
delicada, cuja complexidade que pode comprometer o trabalho do arquivista.
A acumulação de um arquivo pessoal não é uma responsabilidade individual do
titular, há outras pessoas que atuam, como por exemplo, secretárias, esposas, filhas. No
caso de Marcos Vilaça além de sua mãe, sua esposa também tem um papel fundamental na
produção do seu acervo.

E ainda tenho muita coisa para mandar para vocês, tem algumas coisas que minha
mulher está segurando...” “... ela, em determinado momento da minha vida, é quem fazia
as colagens daqueles papéis, aquelas coisas, ela organizava isso, e eu acho que ela tem
um pouco de ciúmes desse material, mas aos poucos, ela vai liberando...

Marcos Vilaça questionado sobre a origem do seu arquivo, falou da questão do


guardar, e nos trouxe uma contribuição sobre a dimensão coletiva do arquivo pessoal, pois
o seu arquivo tem origem na vontade de guardar de sua mãe. Em seu arquivo há
documentos referentes a seus primeiros dias de vida, como por exemplo, recordações e
lembranças do seu nascimento.

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Essa acumulação começou na educação que eu recebi. Os meus pais sempre
tiveram cuidado com a questão da memória, a memória, para eles, sempre foi algo
importante e que devia ser tratado com atenção. Desde menino, no caso, eu fui recebendo
essa consciência de que é preciso guardar, e minha mãe zelou pela guarda dos meus
primeiros livros, das minhas roupas, dos primeiros brinquedos, foi guardando isso e
depois foi, no momento próprio, me mostrando essas coisas, e eu desde esse momento,
despertei para a necessidade da memória, o esforço pela memória. Essa é a raiz profunda
da minha consciência de favorecer o trabalho de arquivar.

Em outro momento da entrevista, ao ser novamente questionado sobre a influência


dos pais no hábito de guardar e arquivar, o entrevistado lembra que também teve a
influência da obra de Gilberto Freyre a quem ele chama de “Mestre”.

... quem de certa forma, também me estimulou indiretamente a isso, foi a obra de
Gilberto Freyre, Gilberto Freyre tem livros, livros, e não é um, tem livros e tem uma rotina
na obra dele baseada em diários, mocinhas que registravam coisas, personalidades
importantes do país que guardavam as cartas, e Gilberto utilizou tudo isso como
contributo à obra sociológica extraordinária que ele fez...” “ ...então esse material serviu
a ele. Pode ser que esse material que eu depositei no Centro de Memória da Academia
sirva, no futuro, para alguma coisa.

Nélida, quando questionada sobre a origem do seu arquivo, também se remeteu


imediatamente à sua infância, mas após alguns minutos, relatou ter a impressão da origem
do seu arquivo estar ligada às suas viagens.

Eu não saberia dizer exatamente quando eu comecei porque você não vai ter essa,
menina, eu já menina, desejava ser escritora, me proclamava escritora, então você não
tem essa noção de que possuir um papel é dar uma dimensão nova a sua vida, não é? Que
esse papel está associado a sua decisão de ser escritora, então, mas de vez em quando eu
guardei algumas coisas e por exemplo, eu tenho a impressão que surgiu muito mais, talvez,
esse arquivo nasceu das viagens, porque eu guardei alguns papéis relativos às viagens que
ia fazendo, que é através das fotografias, bilhetes de trem, bilhete de teatro, programas de

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teatro, porque eu freqüentava muito teatro e nas viagens eu também ia ao teatro e
procurava guardar inicialmente como uma lembrança daquilo que eu vira, não é?
Com o tempo eu fui estendendo essa reserva, né? Em relação à literatura também,
alguns contos que eu fazia, eu tenho guardado, eu tenho guardado, talvez a coisa mais
preciosa, eu vendia, eu fazia um jornalzinho com os desenhozinhos que eu mesma fazia,
não tinha uma grande habilidade, contava uma história e depois costurava essas folhas,
que não havia grampeador, e vendia pro meu pai, ou seja, eu associava, quer dizer, a
memória daquele momento e os direitos autorais, não é? Porque eu vendia pro meu pai e
meu pai comprava, foi uma das primeiras coisas que eu lembro ter desse, daquilo que
viria a ser meus arquivos.
Com os anos cada vez mais, eu me dei conta da importância do papel, porque eu
amava os livros, então esse amor aos papéis está associado também ao meu amor ao livro,
portanto, não é como se eu tivesse um livro com o acúmulo daqueles papéis, mas é como
se eu tivesse a lembrança daqueles livros lidos, e do que eu vinha escrevendo, não é isso?
E tanto, que, por exemplo, o meu primeiro romance, Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo, eu
tenho os originais até hoje.

A pergunta sobre a origem do arquivo foi novamente retomada, pois a


entrevistadora considerou que a resposta de Nélida não incluía os documentos produzidos
diariamente em cumprimento de suas funções e atividades, tais como a correspondência
pessoal, por exemplo.

Tudo eu considero meus arquivos, eu tenho aprendido, porque eu penso sobre o


que é um arquivo, eu acho que o arquivo de um escritor, de verdade, também compreende
sua vida privada, não a sua vida íntima, se ele não quiser, eu, por exemplo, muitas coisas,
eu não desejo que fiquem preservadas, mas por exemplo, certos objetos eu acho...
atestados, por exemplo, de óbitos do meu pai, tudo isso, documentos, acho que documentos
fazem parte da vida do escritor, os documentos familiares, por exemplo, os contratos, eu
considero, os contratos editoriais pra mostrar a vida difícil de um escritor, o quanto o
escritor brasileiro sofre, padece nesta terra brasileira, por exemplo, uma coisa que eu
adoro, eu guardo tudo que eu recebo, que eu tenho dos congressos internacionais e
nacionais que eu freqüento muitíssimo...

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... o que mais que eu tenho? Tenho as correspondências, a correspondência,
eventualmente com escritores, eu nunca alimentei uma correspondência deliberada, como
muitos escritores fizeram para poder alimentar o seu arquivo, isso eu não faço, nem
pensar, nem pensar... mas... eu não tive este desejo, eu não sou uma correspondente, mas
eu tenho que trocar algumas cartinhas, o que mais que tem, por exemplo, é tanto material,
certos objetos, são de memória, mas eles estão na minha casa, não estão lá embaixo.

Os entrevistados quando questionados sobre a classificação dada aos documentos


durante a acumulação, responderam de forma diferente. Marcos Vilaça afirmou fazer uma
classificação, mas sem utilizar nenhuma técnica.

Ah, eu separo, eu separei, isso eu fiz, essa separação, o que era do Tribunal, o que
era Secretaria, na minha vida mesmo, que são meus livros, os artigos, as cartas, as coisas
de cada um dos meus livros elas estão separadas, estão por pastas...

Dossiês individualizados, isso eu também fiz, não sei técnica nenhuma, nunca
houve técnica de coisíssima nenhuma, creio até que vocês vão ter que enfrentar a
necessidade de salvar fotografias, de recuperar papéis, às vezes, era recorte de jornal
colado com alguma atuação química dessas colas no papel, tudo. Essas coisas é preciso
fazer...

Já Nélida Piñon relatou que não faz nenhuma seleção, pois isso demanda muito
tempo e seu cotidiano a impede.

Não, já não faço, eu não posso me preocupar porque o meu cotidiano já mão me
deixa mais, o que eu faço, às vezes, por exemplo, foi uma coisa que eu introduzi
ultimamente, porque eu imprimo toda a correspondência que me chega, o email, que eu
acho, aquela que deva ser impressa, então é uma coisa nova que eu comecei há pouco.
Por exemplo, uma grande amiga de Madri, uma grande historiadora Carmen
Iglesias, que é uma pessoa admirável da Real Academia, tanto de Letras, como de História,
é a grande mestra do Príncipe de Astúrias, do Príncipe Felipe. Então, o que eu estou
botando agora? Madri, Espanha, isso vai indicar que lá embaixo quando classificar que...
eu disse pra ela, nós estamos precisando classificar a correspondência de outro modo, por

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país, talvez, o modo da gente poder localizar, e por função, talvez, Escritor, não escritor,
amigo, correspondência privada, mas, enfim, eu nem penso muito nisso querida, já é muito
eu acumular os papéis, eu mando e seja o que Deus quiser.

Na pergunta sobre os critérios de escolha do que vai ser arquivado e disponibilizado


aos pesquisadores, os entrevistados concordam em alguns pontos.
Marcos Vilaça admite que não faz nenhuma seleção, porém se preocupa com a
questão da disponibilização dos documentos aos pesquisadores.

Não. Isso eu vou decidir, está com vocês, eu não autorizo a ninguém ainda para ver
e, mas a minha intenção é não demorar muito com isso não, porque se não, perde a
circunstância, eu não vou acreditar que esse arquivo meu tenha significação para daqui a
20 anos, 30 anos, coisíssima nenhuma, eu não tenho essa importância, eu tenho
autocrítica, então, talvez mais proximamente, mais perto..., não se diz que jornal de
anteontem vale mais do que o de ontem, não é? Pode ser que haja alguém interessado no
anteontem.

Nélida Piñon também afirma que não faz seleção do que manda para o arquivo, no
entanto, admite guardar com ela, os documentos familiares.

(Fez sinal negativo com a cabeça). Vai tudo para o arquivo, só não vai para o
arquivo, uma fotografia especial de uma tia minha... de tia Celina, por exemplo. O que diz
respeito aos meus afetos profundos, à minha memória familiar, que eu sou muito zelosa
com a minha família, com a história da minha família, isso é sabido por todo mundo, não é?
Então, os retratos do meu avô Daniel, da minha avó Amada, por exemplo, os retratos das
aldeias da minha família, de onde eu me origino, todo esse lado que eu tenho pavor de
perder, porque eu perdi documentos importantes nessa mudança de funcionários, de tudo
isso, gente que... tanto que agora não estou mais deixando ninguém pesquisar, eu perdi
uma... não encontro nunca mais uma peça, primeira fotografia, primeira peça sobre minha
pessoa que saiu no jornal, eu teria meus 3 anos de idade, desapareceu isso.
Está em algum lugar, isso vai se ver depois, eu, numa praia, com uma menininha,
parece já...[risos]...isso é muito engraçado... parece que era uma neta ou bisneta do

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Mussolini que estava no Brasil, uma coisa dessas, coleguinha de praia, em Copacabana,
onde nós morávamos.

Quando questionados sobre o que gostariam que os pesquisadores encontrassem em


seus arquivos, Marcos Vilaça ensaiou uma modéstia que não lhe é muito característica,
mas imediatamente, retomou sua personalidade e falou sobre o seu esforço para o bem
cultural do Brasil e sobre valores como gratidão e lealdade aos amigos.

É... não... aí para eu dizer é pretensioso, mas como eu sou muito pretensioso, eu
vou dizer aqui, eu quero que encontrem o esforço legítimo que eu fiz pelo bem cultural do
Brasil. Eu fiz um esforço, se eu fiz ou não fiz, eu não sei, isso aí o pesquisador vai..., mas
eu queria que ele prestasse atenção que ali está reunido um acervo de alguém que se
interessou pela cultura do país e que foi leal aos amigos, faço muita questão disso. Cultivo
muito lealdade, e gratidão, minha filha, e gratidão, é uma virtude altíssima a da gratidão,
eu procuro ser grato, não sei se sempre sou, mas eu procuro ser grato, eu queria ver se...
gostaria que alguém que transitasse por ali identificasse essa trajetória constante.

Nélida também afirmou inicialmente não estar preocupada, mas admitiu que
reconhece o valor do seu arquivo para a memória dos escritores do seu tempo.

Ah, não tenho a menor idéia, eu não posso pensar nisso, eu não posso pensar, já
será muito se meu arquivo resistir, não é? Eu ainda não lhe dei um destino, mas pra não
pensar que eu não estou preocupada, fazer um charme de que eu estou desatenta, não é
verdade. Eu sou uma pessoa, nesse sentido, muito sincera, eu acho que ele tem um
determinado valor e deve ter porque eu sou uma escritora brasileira, quando mais não
seja, porque faz parte de uma memória nossa, da Academia, de escritores, de escritores do
meu tempo, já está no meu testamento...[risos]... certas orientações, pra você ver como eu
estou sendo sincera.

Em relação às expectativas e planos para os seus arquivos no futuro, os titulares


deram uma resposta semelhante, os dois transferiram a outras pessoas esta
responsabilidade, mas sabe-se que eles em vida já estão tomando as decisões relativas à
preservação de seus acervos.

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Marcos Vilaça como já fez a doação do seu arquivo para a ABL, transferiu para a
Academia a responsabilidade.

Tenho as maiores expectativas que vocês vão cuidar daquilo muito bem, que vai
dar tudo muito certo, vai ficar uma maravilha, e vou novamente voltar ao insólito, tenho
certeza que vocês vão dar ordem ao caos. [risos]

Nélida Piñon que é responsável pela manutenção do seu arquivo declarou que o
Arquivo da Academia não está nos seus planos.

Olha, eu deveria me definir, quer dizer, de qualquer modo, se eu não me definir a


tempo, a pessoa que foi designada para definir, vai ter que tomar uma decisão.
O problema, eu espero, que seja a minha preferência é que tudo meu fique aqui no
Brasil, mas não sei o que vai acontecer, não é? Porque nós somos tão descuidados, tão
desinteressados que eu não sei se vai interessar a alguém, não é? E não estarei aqui pra
organizar post-mortem...[risos]... eu sou uma mulher que organizo, mas há um limite,
morreu... uma vez que eu indo embora, meu bem, não tenho nada a ver com isso, façam o
que quiserem, não posso cuidar dos vivos já não fazendo parte deles.

Mas eu nunca cogitei (arquivo da ABL), e é muito interessante, o que me dá


isenção, porque eu criei o Centro de Memória pensando nos interesses da casa e não num
possível interesse meu no futuro, tanto que a Academia não está nos meus projetos, não
esteve até hoje.

Quanto às funções de seus arquivos no futuro, os entrevistados nos deixam as


seguintes mensagens: Iniciando por Marcos Vilaça que nos diz que:

...Pois é, tem outras coisas, eu acho muito interessante, acho isso muito bom,
porque depois, se for o caso, não por conta da minha pessoa, mas por conta do episódio
que eu vivi, ou do período que eu cumpri na terra, pode se levantar uma pesquisa
sociológica sobre isso... Pode ser que esse material, que eu depositei no Centro de
Memória da Academia, sirva no futuro para alguma coisa

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... O arquivo está lá, a provocação está dentro do arquivo, é destampar ali uma
coisa e vem o fragor dos fatos, das lembranças.

Em relação às funções atribuídas ao seu arquivo, Nélida declara que:

Eu espero que ele seja útil, não só em relação a alguém que possa vir a me estudar
ou que se interesse por alguma coisa minha, não é? Ou pela presidência da...eu tenho o
arquivo da presidência do centenário (ABL), como eu lhe disse, eu tenho peças com um
valor pra mim e para os companheiros do meu tempo... porque eu tenho, por exemplo, pra
eu lhes dar uma idéia, tem inúmeras fotografias de Clarice Lispector, bilhetes dela, que
ela foi me dando no leito de morte dela, não é isso? Eu tenho coisas muito privadas, mas
eu nunca dei pra ninguém, tanto que muita gente dizia: Você devia escrever a biografia,
ou algum sobre...Clarice, eu digo: Não escrevo, porque eu sei demais da vida dos meus
amigos, eu sou de uma lealdade, eu jamais vou me arriscar a dizer aquilo que eu recebi
em confiança, não é? Eu não sei o que vai acontecer, mas aí está, alguma coisa há de
acontecer, que é por isso que eu guardo, senão, eu não guardaria, eu queimaria tudo, não
é verdade? Mas, também, se não fizerem nada, paciência!, a minha parte eu fiz, que era
quase me tornar uma amanuense... [risos]....mais do que uma escritora...risos...não é
verdade?
Então, muito bem, mas enfim, eu amo, eu amo o papel, eu amo o documento, eu
tenho o maior respeito, entendeu? Alguém me falou... Quem foi? que alguém me falou que
há uns documentos preciosos não sei aonde, eu já me... meu impulso é conseguir levantar
um dinheiro com pessoas e comprar, eu sou assim, tal o amor que eu tenho à
documentação e como eu lamento que o Brasil não é respeitoso com os papéis, mas eu sou
altamente respeitosa com os papéis, porque eu me formei com eles, eu devo tudo aos
papéis, aos livros, né? A vida me chegou muito através dos papéis, dos livros, não é?
Então, eu tenho que zelar por eles.

É interessante verificar o que os dois acadêmicos pensam a respeito da preservação


da memória e para falar disso utilizaram o Centro de Memória da ABL.

Para Marcos Vilaça: O país como um todo, ele tem que ser muito provocado para
cuidar da memória. O nosso Centro de Memória da Academia tem quantos anos? Onze

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anos, uma Academia que tem cento e onze anos. Então, nós passamos cem anos sem
cuidar disciplinadamente da memória. Imagine! Isto aqui é um centro de excelência, isso
aqui é um núcleo dos mais exponenciais da inteligência brasileira. Passamos cem anos
sem fazer uma coisa ordenada, então não existe essa coisa, o país todo precisa de um
esforço pró-memória.

Conforme apresentado no capítulo anterior, muito já se fazia pela preservação da


memória dos imortais, afinal a Academia tem esta função, criar e manter um panteão dos
literários. No entanto, com a implantação do Centro de Memória e a abertura da casa para a
sociedade no seu centenário de fundação, o arquivo ficou com maior visibilidade, daí a
explicação para esta impressão do acadêmico.
Nélida Piñon, responsável pela implantação do Centro, concorda com Marco
Vilaça no que se refere ao poder da Academia em relação à preservação da memória.

... eu tenho noção da importância do arquivo, de tal forma que eu abri, inaugurei,
fui eu que abri o Centro de Memória da Academia que não tinha, não havia um Centro de
Memória na Academia, na casa da memória, você não pode viver sem a memória, você
precisa bater à porta da memória todo o tempo, buscar subsídios, não é buscar
deliberadamente, os subsídios vem, mas quando não vem, é preciso que você vá lá e
reverencie a memória.

Em alguns trechos da entrevista, a acadêmica Nélida Piñon expõe as possibilidades


que um pesquisador poderá ter no futuro ao estudar sua obra.

... Eu tenho os originais de todos os meus livros por assim dizer, a gênese de cada
qual, a pessoa poderá um dia estudar as variações, as mudanças, os acréscimos, o que eu
fui subtraindo, o que eu fui cortando, e é muito engraçado, eu tratei sempre, acho que é
uma característica interessante minha, eu tratei sempre os papéis com um carinho
extraordinário. Nunca em minha vida, eu não me lembro, eu não tenho memória, de ter
rasgado um papel no qual eu estivesse escrevendo, ou amassado, amarfanhado e jogado
fora.

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... eu tenho um material enorme, você pode rastrear através do material que eu tenho a
questão, vamos dizer, os rostos que passaram pela minha vida, o meu rosto ao longo dos
anos, as marcas do meu florescer e do meu envelhecimento, está tudo ali, ah, por exemplo,
para lhes dar idéia do meu processo de quase que de restauração, a busca do rosto da
frase, a República dos sonhos teve tais versões que você pode ver, se você for puxar o
metro, é alguma coisa daqui até aqui (faz gesto com a mão sinalizando mais ou menos 70
cm) e nessa ânsia que eu sempre tive de não ser brutal com o meu texto, com as folhas,
empregar uma determinada delicadeza ao texto ou a folha do texto, eu cortava e escrevia
além do que eu trabalhava nas entrelinhas, quer dizer que é um trabalho verdadeiro de
renda, é muito interessante, eu própria, acho interessante, quando as poucas
oportunidades que eu tenho de rever isso pra mostrar a alguém, eu acho interessante a
minha paciência, eu me sinto uma tecelã, só que eu não sou uma Penélope, que desfaço o
que eu fiz, eu vou preservando tudo, você pode rastrear onde eu estive por onde eu fui, o
que me pareceu oportuno preservar, o que me obrigou a desistir, não é? Até que o livro,
afinal, ganhou o seu rosto final que é a publicação.

A entrevista com o acadêmico Marcos Vilaça foi encerrada com uma pergunta
sobre o que ele achava da relação entre o arquivo e a vaidade. Se ele considerava esta
relação.

Mas é lógico, é lógico. Você acha o quê? É claro. Nós guardamos aquilo na
esperança de que alguém descubra aquilo como um tesouro, que cultive. Ora! [...] Você
falar de vaidade nesta casa, nós aqui tudo só enxerga o umbigo, a gente só olha para o
umbigo e eu também sou desses, eu sou dos mais vaidosos, e talvez até pior, porque eu não
tenho de que ter vaidade, mas tenho. E o mais interessante é o seguinte: é que os mais
vaidosos são aqueles que dizem que não tem vaidade, que são despojados, que isso, e que
aquilo e que aquilo outro, que não ligam, são os que mais ligam, é a maior hipocrisia que
tem aqui nesta casa, é o fingimento dos que dizem que não tem orgulho, que não tem
vaidade e são poços de vaidade. Eu acho uma graça enorme, como eu também sou, então,
convivo com eles muito bem, somos como se diz no Nordeste: farinha do mesmo saco.

A acadêmica Nélida Piñon deixou a seguinte mensagem no encerramento da


entrevista.

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É, talvez eu me pergunto até que ponto eu me esquivo de conviver com o arquivo,
além do fato de eu não ter tempo, porque só o que eu tenho lá em cima onde moro, os
deveres, as tarefas, os papéis, é alguma coisa sufocante de tanto trabalho, de tantos
envolvimentos. Mas eu me pergunto às vezes até que ponto eu não quero tocar nesse
arquivo enorme pra não reviver o que já passou... o que já é passado, porque esse arquivo
de algum modo, declara em voz alta, ou em surdina para mim, o quanto eu trabalhei pra
poder aprender escrever três linhas, ou quatro linhas, o esforço que eu fiz, para não
perecer numa sociedade em que é tão difícil ser escritor, em que você é convocado todo o
tempo a desistir, uma frase que eu digo muito, sempre os jovens repetem: Você é
convocado todos os dias pra desistir, e no entanto, eu ao longo desses anos todos, eu disse:
Eu não desisto!!! (Enfaticamente), não adianta bater na minha porta, que eu continuo.
Então, eu acho também que tem muito a ver, a história de uma vida em minúcias, em que
você muitas vezes deve se esquiva, por isso, que talvez tenha sido interessante publicar
esse livro de memórias que eu publiquei agora, Coração Andarilho. Mas enfim, isso é uma
cogitação, esse arquivo não me atormenta, não me faz sofrer, não me cobra mais do que
eu posso lhe dar, já preservando os papéis, eu não tenho angústia quanto ao futuro dele,
gostaria que ele pudesse servir a uma pequena comunidade, mas não me cabe mais
responder por alguma coisa que talvez estará fora do meu alcance, mas não me arrependo,
se isso, eu talvez devo acrescentar, não me arrependo o fato de ter guardado
modestamente meus papéis, ter trazido da Europa, envelopes e envelopes de coisas que eu
gostava de coisas que eu via, o teatro, tudo isso, as provas...pequenas provas da minha
existência, porque a existência mais profunda não tem documento.

75
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os arquivos pessoais de Nélida Piñon e de Marcos Vilaça configuram-se como


importantes fontes documentais para a memória nacional. Seja na área literária, seja na
área política e social. O fato dos dois titulares fazerem parte da Academia Brasileira de
Letras os coloca em um lugar de destaque, pois os seus arquivos ficarão preservados para
gerações futuras.
O Arquivo dos Acadêmicos da Academia Brasileira de Letras é um “lugar de
memória” da Literatura nacional construído pelos membros da casa com o objetivo de
reunir documentos e informações sobre os acadêmicos. Esse projeto de monumentalização
dos imortais realizado pela ABL ao longo dos seus cento e onze anos de existência é um
projeto vitorioso, como poucos no Brasil.
Através desta pesquisa percebeu-se que a lógica de acumulação dos documentos
pessoais é de caráter particular, mas em alguns casos também pode assumir um caráter
coletivo. Esta constatação não deve atrapalhar o trabalho do arquivista que deverá construir
uma conexão entre a lógica de acumulação e a de acesso, sem que com isso comprometa a
contextualização desses documentos, e conseqüentemente o trabalho de organização e
recuperação da informação.
Ao realizar a pesquisa bibliográfica acerca do estatuto arquivístico dos arquivos
pessoais, várias foram as surpresas encontradas. Inicialmente, imaginava-se um tema
pouco explorado, pois o que se via era a repetição de referências bibliográficas nos
trabalhos desenvolvidos sobre o tema. No entanto, constatou a existência de produção
científica, porém, dispersa em artigos publicados em revistas especializadas nacionais e
estrangeiras ou até mesmo em publicações produzidas como resultado de seminários,
congressos etc. Livros exclusivamente dedicados ao tema são poucos.
Como é sabido, no Brasil, a década de 1970 foi muito fecunda para a criação de
instituições que se especializaram na preservação de acervos particulares e até hoje elas
continuam funcionando com todo vigor, possibilitando à sociedade o acesso a documentos
que poderiam estar armazenados em locais não apropriados sem nenhum tratamento
arquivístico. É o caso do CPDOC da Fundação Getulio Vargas; da Fundação Casa de Rui
Barbosa, que possui dois núcleos destinados a preservação de tais acervos: o Arquivo
Museu de Literatura Brasileira/AMLB e os Arquivos Históricos; onde estão arquivados os

76
documentos de Rui Barbosa e outras personalidades importantes para o círculo
historiográfico brasileiro.
Além dessas instituições, temos ainda o Instituto de Estudos Brasileiros - IEB da
Universidade de São Paulo – USP; o Arquivo Edgar Leueronth da Universidade de
Campinas – UNICAMP; o Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST com o seu
Arquivo de História da Ciência; a Casa de Osvaldo Cruz; a Academia Brasileira de Letras
entre outras. São diversas instituições investindo capital humano e financeiro na
preservação desse tipo de acervo.
No caso do Arquivo dos Acadêmicos da ABL, como já foi citado anteriormente,
além dos arquivos doados pelos herdeiros e familiares, houve um grande esforço por parte
dos Acadêmicos para a criação de um panteão literário, com a reunião de documentos
sobre os acadêmicos que pudessem ser utilizados como instrumentos de celebração e como
fontes de pesquisa. Assim como em outras instituições, a opção metodológica utilizada foi
a divisão dos arquivos em fundo e coleção.
Ao analisar os olhares do titulares Nélida Piñon e Marcos Vilaça, verificaram-se
percepções e estratégias diferentes em relação aos seus arquivos, à preservação dos seus
documentos. Marcos Vilaça tem uma visão mais abrangente do arquivo. Tudo para ele é
documento de arquivo. Não só os documentos produzidos e enviados por ele, mas os
produzidos por terceiros podem fazer parte do seu arquivo pessoal, que será
disponibilizado para os pesquisadores.
Nélida Piñon considera que um arquivo de escritor pode compreender sua vida
privada, mas não sua vida íntima se esta não for sua vontade. Assim, o seu arquivo parece
ser direcionado à memória literária, pois segundo seu relato, os documentos familiares,
íntimos, não ficam no mesmo local onde ela guarda os originais de sua obras, os contratos
editoriais, recortes de jornais, documentos dos eventos literários dos quais participou, os
documentos que lhe causam interesse e encantamento.
Portanto, ao descrever um arquivo pessoal é preciso entender além da lógica de
acumulação do titular, sua compreensão do que é um arquivo. É óbvio que em arquivos de
titulares já falecidos não se terá acesso a esta informação através do titular. Mas pela
análise dos documentos também pode se chegar a essa compreensão.
Os titulares esperam que os pesquisadores, ao consultarem os seus arquivos,
encontrem documentos que comprovem os atos realizados por suas causas, no campo

77
cultural, como o “bem cultural do Brasil”, para Vilaça e, no campo literário, “a memória
dos escritores de seu tempo”, para Nélida.
Enquanto o acadêmico Marcos Vilaça decidiu doar todo o seu arquivo pessoal para
o Arquivo dos Acadêmicos da Academia Brasileira de Letras, a acadêmica Nélida Piñon
guarda o seu em um apartamento vizinho à sua casa. A Acadêmica freqüentemente envia
ao arquivo da ABL, notícias publicadas em periódicos nacionais e estrangeiros sobre sua
vida e obra, mas em sua entrevista ela afirma que o Arquivo da ABL até hoje não esteve
em seus planos. Esta não é uma decisão exclusiva de Nélida Piñon, outros acadêmicos
entregaram seus arquivos a instituições que também têm como finalidade a preservação de
acervos.
Os olhares dos titulares também demonstraram que os critérios de seletividade,
conscientes ou não, dos documentos que serão preservados é variável. Comparando os
arquivos e depoimentos de Nélida Piñon e de Marcos Vilaça, verifica-se a existência no
arquivo deste, da família como ponto de referência fundamental, o que é conformado pela
grande quantidade de documentos de parentes, tais como: convites para casamento da filha,
chegada da maternidade de netos, recortes de jornais sobre a participação do genro em
campanha política, entre outros. Em sua entrevista Nélida nos dá outra perspectiva, mais
individualizada. Ao priorizar, no processo de acumulação, o que poderá contribuir para
identificar o ambiente literário de seu tempo, ela afirma que documentos particulares dos
familiares, tais como documentos de identificação, certificados e atestados de óbitos,
fotografias familiares, ficam sob seu poder com acesso restrito.
Outro aspecto percebido foi que muitas vezes os titulares preservam documentos,
que em uma primeira análise, não possuem nexo com os outros documentos, não fazem
sentido no arquivo. Mesmo assim, eles o preservam por consideração ao que, no futuro,
poderá interessar a pesquisadores, confiando em sua capacidade de decifrar o que está
subentendido naquele documento, como por exemplo, o que o titular estava pensando em
determinada época de sua vida. Mas isto não está explícito em nenhum lugar, não há
registro algum informando porque este documento foi preservado e muitas vezes o
arquivista, mesmo investindo muito trabalho de investigação, não consegue chegar à
resposta de algumas questões: Por que o titular arquivou determinado documento? Onde
está a correlação desse documento com os outros documentos do arquivo?
Os arquivos pessoais, assim como os institucionais, são resultado das ações e de
representações de seus produtores, ou seja, de suas atividades, de suas competências, de

78
seus objetivos, mas também dos seus interesses particulares, dos seus desejos íntimos, de
sua forma de lidar com o passado e o futuro. Talvez esta seja sua característica
determinante.
Esta pesquisa abordou os arquivos pessoais através do olhar do seu titular e do
grupo, representado pelas ações de guarda e de acumulação da instituição (no caso, a ABL).
Ofereceu ao pesquisador a possibilidade de analisar uma questão sob dois ângulos
diferentes, resultando numa rica análise da gênese desde tipo de acervo e contribuindo para
futuras discussões sobre o tema que ainda merece muito esforço de pesquisa.

79
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ago/1974.

85
ANEXOS

86
ANEXO I

ROTEIRO E ENTREVISTA COM MARCOS VILAÇA

ROTEIRO PARA ENTREVISTA


Tema: Os arquivos pessoais sob o olhar do titular
Marcos Vinicios Rodrigues Vilaça
Data 08/07/2008

VISÃO DOS ARQUIVOS PESSOAIS PELO TITULAR


Origem do seu arquivo (quando, como, onde, alguma pessoa)

1. O senhor lembra quando e como começou a acumulação de seus documentos (Teve


ajuda de alguém?)

2. Havia uma preocupação na acumulação dos documentos (como o senhor acumulou...


exemplos)

3. O senhor adota algum critério na seleção e escolha dos seus documentos que serão
disponibilizados para os pesquisadores? Quais são eles?

4. O que gostaria que os pesquisadores encontrassem no seu arquivo?

5. Através do seu arquivo, como o senhor gostaria de ser lembrado?

6. Quais são suas expectativas em relação à organização e preservação do seu acervo?

7. Por que e para quem o senhor acredita que se deva preservar um arquivo?

8. Recentemente, o senhor doou todo o seu arquivo pessoal para o Arquivo da ABL,
quais os espaços que esses documentos ocuparam antes da doação? (Recife, Brasília...)

87
FICHA TÉCNICA

Tipo de entrevista: temática


Projeto: Pesquisa para a Dissertação de Mestrado de Maria Oliveira “A memória dos
imortais no Arquivo da Academia Brasileira de Letras - Mestrado em Bens Culturais e
Projetos Sociais da Fundação Getulio Vargas
Levantamento de dados: Maria Oliveira
Pesquisa e elaboração do roteiro: Maria Oliveira
Entrevistadora: Maria Oliveira
Sumário: Maria Oliveira
Técnicos de gravação: Marcio Antonio Castorino e Michael Félix
Local: Academia Brasileira de Letras - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Data: 08/07/2008
Data da transcrição: 12 e 13 de julho de 2008
Duração: 22 min 23 segs
Fita: MiniDV: 01

ENTREVISTA

M - Entrevista com o Acadêmico Marcos Vinicios Vilaça sobre o tema Os arquivos


pessoais sob o olhar do titular para a mestranda Maria Oliveira22 do Mestrado Bens
Culturais, da Fundação Getulio Vargas, gravado em 08 de julho de 2008 no Salão
Francês da Academia Brasileira de Letras na cidade do Rio de Janeiro.

M – Dr. Vilaça, eu gostaria que o senhor falasse um pouco sobre o seu arquivo23,
quando ele começou a ser acumulado, eu sei que é uma acumulação natural, mas o
senhor lembra quando começou essa acumulação, se o senhor teve a ajuda de alguém?

MV – Essa acumulação começou na educação que eu recebi. Os meus pais sempre tiveram
cuidado com a questão da memória, a memória, para eles, sempre foi algo importante e que
devia ser tratado com atenção. Desde menino, no caso, eu fui recebendo essa consciência
de que é preciso guardar, e minha mãe zelou pela guarda dos meus primeiros livros, das
minhas roupas, dos primeiros brinquedos, foi guardando isso e depois foi, no momento
próprio, me mostrando essas coisas, e eu desde esse momento, despertei para a necessidade

22
Maria Oliveira, Arquivista do Arquivo dos Acadêmicos da Academia Brasileira de Letras
23
Arquivo Marcos Vilaça doado ao Arquivo da Academia Brasileira de Letras, em 2004. Desde então, o arquivo recebe remessa diária
de documentos.

88
da memória, o esforço pela memória. Essa é a raiz profunda da minha consciência de
favorecer o trabalho de arquivar.
É claro que o arquivo tem dois momentos: tem o momento objetivo, que são aquelas peças
que transcendem a individualidade, que ganha mais um status diferente e tem aquelas
peças que são rigorosamente subjetivas. E, é claro que o meu primeiro caderno de
caligrafia, eu estudei... quando eu estudante tinha caligrafia, eram aquelas letras
desenhadas, ele tem uma importância para mim muito grande, foi o meu primeiro caderno,
foi ali que eu comecei a desenhar as palavras, essa é a realidade subjetiva. A realidade
objetiva é que tipo de educação, de instrução, se dava àquele tempo, onde se fazia esse tipo
de ação com a criança, hoje é inconcebível isso, não é? Então, há uma vertente objetiva e
uma vertente subjetiva no arquivo. A pessoa que tem sua memória arquivada, não sabe,
não deve fazer esta distinção, essa distinção é do técnico, não é? Daí, porque o material
que eu mando para o Centro de Memória da Academia24, onde você trabalha, e trabalha
muito bem, é um caos, é caótico. Porque tem desde o documento mais rigorosamente
importante sob o ponto de vista histórico, não por minha causa, mas a função que eu
ocupei, as funções por onde eu passei, tem importância para o país, então aquilo tem essa
relevância. E tem a coisa muito pessoal minha, por exemplo, minha mulher coleciona
menus de banquetes aonde vai, a vida toda, vai guardando..., vai mandando as pessoas,
quando são mesas menores, assinar, então aí tem o menu da casa do meu cumpadre em
Caruaru, mas tem também o menu do Kremlin, menu da Casa Branca, o menu do Palácio
do Elyseu na França. E tem os papéis do Clube Náutico Capibaribe, tem os papéis da
Academia Pernambucana de Letras, tem os papéis do Tribunal de Contas, tem os papéis da
Secretaria da Cultura, então é aquele tumulto. Vocês, vocês é que tem que fazer essa coisa
insólita, dar ordem ao caos.

M – Há uma preocupação nessa acumulação, assim: O que é do TCU, o senhor faz


essa separação?

MV – Ah, eu separo, eu separei, isso eu fiz, essa separação, o que era do Tribunal, o que
era Secretaria, na minha vida mesmo, que são meus livros, os artigos, as cartas, as coisas
de cada um dos meus livros elas estão separadas, estão por pastas...

24
O Centro de Memória da Academia Brasileira de Letras foi inaugurado em 1997 e implantado um projeto de revitalização do
Arquivo.

89
M – São dossiês...

MV – Dossiês individualizados, isso eu também fiz, não sei técnica nenhuma, nunca houve
técnica de coisíssima nenhuma, creio até que vocês vão ter que enfrentar a necessidade de
salvar fotografias, de recuperar papéis, às vezes, era recorte de jornal colado com alguma
atuação química dessas colas no papel, tudo. Essas coisas é preciso fazer, mas o Centro de
Memória da Academia está habilitado para salvar o que for necessário.

M - No início, o senhor adquiriu essa vontade de guardar, o senhor herdou, eu lembro


que no seu arquivo tem mesmo até que é uma coisa hoje em dia, que talvez alguns
pais não façam, as mesadas, tem todo o balanço de caixa das mesadas...

MV – Exatamente. [risos]

M – Que a sua mãe fazia...

MV – Exatamente, gastei tanto com isso.

M – Doces!

MV – Já encontraram isso, já? Pois é, tem outras coisas, eu acho muito interessante, acho
isso muito bom, porque depois, se for o caso, não por conta da minha pessoa, mas por
conta do episódio que eu vivi, ou do período que eu cumpri na terra, pode se levantar uma
pesquisa sociológica sobre isso. Quem fez, quem, de certa forma, também me estimulou
indiretamente a isso, foi a obra de Gilberto Freyre, Gilberto Freyre tem livros, livros, e não
é um, tem livros e tem uma rotina na obra dele baseada em diários, mocinhas que
registravam coisas, personalidades importantes do país que guardavam as cartas, e Gilberto
utilizou tudo isso como contributo à obra sociológica extraordinária que ele fez, Gilberto
redescobriu o Brasil, Gilberto é o maior intérprete do Brasil, então, esse material serviu a
ele. Pode ser que esse material, que eu depositei no Centro de Memória da Academia, sirva
no futuro para alguma coisa

90
M – É. Os arquivos pessoais têm essa característica, eles servem à pesquisa
antropológica, sociológica, política...

MV – Isso, exatamente.

M – Tem uma mistura, como o senhor falou no início, sobre as duas vertentes do
arquivo, essa da pesquisa e da individualidade, essa subjetividade...

MV – E ainda tenho muita coisa para mandar para vocês, tem algumas coisas que minha
mulher está segurando...

M – Mas o seu pai também...

MV – Porque Maria do Carmo, ela em determinado momento da minha vida, ela é quem
fazia colagem daqueles papéis, aquelas coisas, ela organizava isso e eu acho que ela tem
um pouco de ciúme desse material [risos], mas aos poucos, ela vai liberando...

M – Em um dos depoimentos, o senhor falou que ela guarda várias cartas suas.

MV – É, guarda, essas eu acho que vocês nunca vão ter [risos]. Essa aí, ela vai querer ficar
para ela mesmo.

M – O seu pai também tinha essa característica, não é? De escrever diários, a gente já
encontrou...

MV – Tinha, estão aí também, não estão? Aquilo me emociona muito, porque ele já bem
velho, tinha Parkinson, era uma dificuldade para ele fazer as anotações, ele foi fazendo, e à
medida que ele foi perdendo a lucidez foi ficando menos disponível, ele começou... Isso aí
já é um pouco doloroso para mim, ver como foi perdendo a importância o registro que ele
fazia das coisas, não é? Foi perdendo importância, antes era reflexão de natureza política,
da política partidária no interior de Pernambuco, era um pouco do depoimento da questão
da economia rural que ele ia comentando nessas anotações, depois isso tudo foi minguando,

91
minguando e passou para fazer registros banais, de banalidades, de coisas simples...
[Emoção]

M – Mas é interessante...

MV – Isso para gente, para mim como filho é um pouco cruel, mas deixei para ser
verdadeiro, não é?

M – É interessante, que alguns relatos dele parece também que ele escrevia para não
esquecer.

MV – Sim, sem dúvida...

M – O que acontecia, o dia-a-dia no hospital, ele relata...

MV – Tudo, tudo, ele e eu somos vítimas de uma memória péssima, nós dois temos,
tínhamos uma memória muito ruim. A minha memória, eu digo muito que eu não
escreverei nunca um diário, porque vão pensar que eu sou mentiroso, porque eu vou
misturar as coisas tudo, misturo data, tenho uma dificuldade enorme de rememorar. Olha,
se eu fosse contar as coisas que eu sei, vividas em certo período da Presidência da
República do Brasil, o que eu vi, as coisas que eu fui anotando, documentos da época da
doença de Tancredo25, eu tenho uma cópia da carta que o Dr. Zapol26, aquele infectologista
americano que veio para ver o Tancredo lá no INCOR, ele fez uma carta para o presidente
Sarney e o Presidente me deu uma cópia dessa carta, está comigo... então..., nem sei se essa
carta está nesse arquivo...

M – O Senhor tem algum critério de escolha em mandar, o que o senhor manda para
o Arquivo, o que vai ser disponibilizado para os pesquisadores?

25
Tancredo Neves eleito presidente do Brasil pelo Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985, não chegou a tomar posse no cargo. Um
dia antes da posse, marcada para o dia 15 de março de 1985, Tancredo foi submetido a uma cirurgia de emergência. José Sarney tomou
posse como presidente na manhã do dia 15. Tancredo Neves faleceu no dia 21 de abril, na manhã do dia 22, Sarney foi confirmado na
presidência.

26
Warren Mayron Zapol – especialista norte-americano chamado ao Brasil como recurso final para dar um diagnóstico sobre o estado
de saúde de Tancredo Neves

92
MV – Não. Isso eu vou decidir, está com vocês, eu não autorizo a ninguém ainda para ver
e, mas a minha intenção é não demorar muito com isso não, porque se não, perde a
circunstância, eu não vou acreditar que esse arquivo meu tenha significação para daqui a
20 anos, 30 anos, coisíssima nenhuma, eu não tenho essa importância, eu tenho autocrítica,
então, talvez mais proximamente, mais perto..., não se diz que jornal de anteontem vale
mais do que o de ontem, não é? Pode ser que haja alguém interessado no anteontem.

M – É. O que o senhor gostaria que os pesquisadores encontrassem no seu arquivo, o


uso que eles vão fazer, o que o senhor gostaria...

MV – É... não... aí para eu dizer é pretensioso, mas como eu sou muito pretensioso, eu vou
dizer aqui, eu quero que encontrem o esforço legítimo que eu fiz pelo bem cultural do
Brasil. Eu fiz um esforço, se eu fiz ou não fiz, eu não sei, isso aí o pesquisador vai..., mas
eu queria que ele prestasse atenção que ali está reunido um acervo de alguém que se
interessou pela cultura do país e que foi leal aos amigos, faço muita questão disso. Cultivo
muito lealdade, e gratidão, minha filha, e gratidão, é uma virtude altíssima a da gratidão,
eu procuro ser grato, não sei se sempre sou, mas eu procuro ser grato, eu queria ver se...
gostaria que alguém que transitasse por ali identificasse essa trajetória constante.

M - Em seu depoimento de 2004 27 que o senhor gravou com a participação do


professor Irapoan Cavalcanti...

MV – Esse conhece muito minha vida...

M – O senhor comenta que muitas ações que as pessoas fazem no plano social
atualmente, dizem como inovadoras, o senhor já fez lá atrás, aí o senhor comenta que
gostaria... no futuro um pesquisador pode contar essa história...

MV – Eu acho graça, uma graça enorme, agora com a morte da professora Ruth Cardoso28,
historiadores e jornalistas mencionarem como uma grande novidade iniciativas dela, foram

27
Depoimento “Marcos Vinicios Vilaça; trajetória e convicções” de Marcos Vilaça com participação do professor Irapoan Cavalcanti
para o projeto “Arquivos contemporâneos” do Centro de Memória da Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 16 de abril de 2004.

93
relevantes sim, mas não são inovadoras, já foram feitas, não todas, não estou falando em
todas, mas algumas coisas foram feitas no passado, antes dela houve quem tivesse
preocupação em que o país não fosse apenas, que o setor social do Governo não fosse uma
mera atitude assistencialista, houve quem concebesse e se preocupasse com a natureza
desenvolvementista também, isso houve, não foi dela não, antes disso, um programa
conhecido de microempresas sociais que implantou no país 600 mil empresas,
microempresas sociais, não foi ela, antes dela, ela talvez tenha feito melhor e mais, mas
não é pioneiro mas... a maré de louvor, morreu no Brasil passa a ser muito bom, santo, é
um processo: vem o enterro e em seguida, a canonização.

M – Tem a questão dos tombamentos, das restaurações dos edifícios históricos.

MV – Pois é, nunca se tinha tombado um monumento da cultura negra, nunca! O Brasil


nunca fez essa classificação.

M – Patrimônio imaterial...

MV – E eu fiz, eu liderei o processo de tombamento de um terreiro, o Terreiro da Casa29


Branca, em Salvador, nunca tinham feito o tombamento de um monumento representativo
da epopéia da seca no Nordeste, tombei, o açude chamado da Galinha Choca30, no Ceará,
essas inovações que a gente... vila operária deixa de ser monumento? Não. É monumento,
é monumento histórico, pode até nem ser artístico, sim, tudo bem, sair dessa coisa de
tombar só a pedra e cal para tombar também a natureza, as florestas e agora essa etapa
seguinte de que eu participei já não mais como secretário, mas como parecerista de cuidar
do patrimônio imaterial, até já vi, até o frevo31 já foi tombado. [risos]

28
Ruth Cardoso – Antropóloga brasileira e ex-primeira dama casada com ex-presidente da república Fernando Henrique Cardoso,
falecida em 24 de junho de 2008.
29
O registro de tombamento do Terreiro da Casa Branca foi realizado em 14 de Agosto de 1986, porém a aprovação pelo Conselho
Consultivo do SPHAN, sobre a decisão tombamento do mais antigo terreiro de candomblé do país, aconteceu alguns anos antes.
30
O açude do Cedro é o mais antigo do Brasil. Sua construção foi iniciada por D. Pedro II em 1873 sendo inaugurado somente em 1906,
pelo presidente Afonso Pena. O reservatório é tombado como patrimônio histórico da humanidade. Além da parede do açude feita
artesanalmente, no local, pode ser apreciada a pedra da Galinha Choca que tem o formato parecido com a ave. O registro de tombamento
foi realizado em 19 de julho de 1984

31
O pedido de registro do Frevo como Patrimônio Cultural Imaterial no Livro das Formas de Expressão - como forma de expressão
musical, coreográfica e poética enraizada em Recife e Olinda - foi encaminhada ao Ministério da Cultura em 20 de fevereiro de 2006
pela Prefeitura do Recife, por meio da sua Secretaria de Cultura. Em fevereiro de 2007, a resolução foi anunciada pelo ministro da
Cultura, Gilberto Gil, após reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan).

94
M – Quais são as suas expectativas em relação à organização do seu acervo, o senhor
tem alguma expectativa em relação a isso?

MV – Tenho as maiores expectativas que vocês vão cuidar daquilo muito bem, que vai dar
tudo muito certo, vai ficar uma maravilha, e vou novamente voltar ao insólito, tenho
certeza que vocês vão dar ordem ao caos. [risos]

M - Por que e para quem o senhor acha que um arquivo deve ser preservado? O
senhor já falou algumas coisas aqui, que podem até mais ou menos responder esta
questão. Um arquivo pessoal pode ser preservado? Nem sempre os arquivos pessoais
são tão valorizados.

MV – Desábito não é? Desabito.

M – Um pouco

MV – O país como um todo, ele tem que ser muito provocado para cuidar da memória. O
nosso Centro de Memória da Academia tem quantos anos?

M – De implantação, funcionamento? Onze anos.

MV – Onze anos, uma Academia que tem cento e onze anos.

M – Quase trezentos acadêmicos.

MV – Então, nós passamos cem anos sem cuidar disciplinadamente da memória. Imagine!
Isto aqui é um centro de excelência, isso aqui é um núcleo dos mais exponenciais da
inteligência brasileira. Passamos cem anos sem fazer uma coisa ordenada, então não existe
essa coisa, o país todo precisa de um esforço pró-memória.
M – Recentemente, o senhor doou todo o seu arquivo para a Academia.

95
MV – Está tudo aí, está quase tudo, não há outro caminho, tem uma peça ou outra na
Biblioteca da Academia Pernambucana de Letras, alguns manuscritos que eu deixei lá,
outros estão na Biblioteca Nacional, e outros na Casa Rui32, só. O mais está com a D.
Maria do Carmo Vilaça e com a Academia [risos]

M – Este material que veio de Brasília, tem algum arquivo ainda em Brasília?

MV – Tem, tem que mandar para vocês, tem sim.

M – Em Recife, tem alguma coisa?

MV – Não, não. Tem alguma coisa em Brasília, no Recife não tem mais.

M – No seu depoimento em 199933, o senhor também falou em relação à paixão pela


questão cultural, e aí o senhor diz uma frase que é assim “a impressão digital desta
paixão pode ser encontrada desde o colégio” o senhor acha que o arquivo pode ser um
caminho para falar sobre isso?

MV – Naturalmente, não tenha dúvida. O arquivo está lá, a provocação está dentro do
arquivo, é destampar ali uma coisa e vem o fragor dos fatos, das lembranças.

M – E a questão da vaidade, como é que o senhor ver a vaidade e o arquivo? O senhor


acha que tem alguma relação?

MV – Mas é lógico, é lógico. Você acha o quê? É claro. Nós guardamos aquilo na
esperança de que alguém descubra aquilo como um tesouro, que cultive. Ora! [...] Você
falar de vaidade nesta casa, nós aqui tudo só enxerga o umbigo, a gente só olha para o
umbigo e eu também sou desses, eu sou dos mais vaidosos, e talvez até pior, porque eu não
tenho de que ter vaidade, mas tenho. E o mais interessante é o seguinte: é que os mais
vaidosos são aqueles que dizem que não tem vaidade, que são despojados, que isso, e que
aquilo e que aquilo outro, que não ligam, são os que mais ligam, é a maior hipocrisia que

32
Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro - RJ
33
Depoimento de Marcos Vinicios Vilaça para o projeto “Depoimento Acadêmico” do Centro de Memória da Academia Brasileira de
Letras, Rio de Janeiro, 09 de dezembro de 1999.

96
tem aqui nesta casa, é o fingimento dos que dizem que não tem orgulho, que não tem
vaidade e são poços de vaidade. Eu acho uma graça enorme, como eu também sou, então,
convivo com eles muito bem, somos como se diz no Nordeste: farinha do mesmo saco.

M – Então, é um equilíbrio não é? Porque o senhor fala de vaidade, mas também o


senhor fala muito de humildade, uma vez que o senhor admite...

MV – Por vaidade, minha filha, fala em humildade por vaidade, é isso mesmo. [risos]

M – Então, Dr. Vilaça, este roteiro que eu fiz hoje a gente conseguiu atender algumas
questões e se precisar, a gente vai marcar outro dia.

MV – Pode chamar, pode me convidar, que eu, vaidosamente, venho falar... [risos]

M – O senhor gostaria de falar mais alguma coisa em relação ao seu acervo?

MV – Não senhora, não, não, minha filha, vamos ficar por aqui e vamos aguardar outros
momentos assim de exibicionismo. [risos]

M – Muito Obrigada!

MV – Está bom. Um abraço!

[Final da entrevista]

97
ANEXO II

ROTEIRO E ENTREVISTA COM NÉLIDA PIÑON

ROTEIRO PARA ENTREVISTA


Tema: Os arquivos pessoais sob o olhar do titular
Nélida Piñon
Data: 28/07/2009

VISÃO DOS ARQUIVOS PESSOAIS PELO TITULAR


Origem do seu arquivo (quando, como, onde, alguma pessoa)

1 A senhora lembra quando e como começou a acumulação de seus documentos?


(Teve ajuda de alguém?)

2. Quais os espaços físicos que o seu arquivo ocupou e ocupa atualmente?

3. Há uma preocupação com a classificação dada aos documentos durante a


acumulação? (A senhora faz algum tipo de separação dos documentos:
assunto/data/etc.)

4. A senhora adota algum critério na seleção e escolha dos seus documentos que serão
disponibilizados para os pesquisadores? Quais são eles?

5. O que a senhora gostaria que os pesquisadores encontrassem no seu


arquivo?

6. Por que e para quem a senhora acredita que se deva preservar um arquivo pessoal?

7. Que funções a senhora atribui para o seu arquivo agora e no futuro?

8. Quais são suas expectativas e planos em relação à preservação do seu arquivo? Que
destinação será dada a ele?

98
FICHA TÉCNICA

Tipo de entrevista: temática


Projeto: Pesquisa para a Dissertação de Mestrado de Maria Oliveira “A memória dos
imortais no Arquivo da Academia Brasileira de Letras - Mestrado em Bens Culturais e
Projetos Sociais da Fundação Getulio Vargas
Levantamento de dados: Maria Oliveira
Pesquisa e elaboração do roteiro: Maria Oliveira
Entrevistadora: Maria Oliveira
Sumário: Maria Oliveira
Técnicos de gravação: Michael Félix
Local: Academia Brasileira de Letras - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Data: 28/07/2009
Data da transcrição: 21 a 25 de julho de 2009
Duração: 32 min 22 segs
Mídia: DVD: 01

ENTREVISTA

M - Entrevista com a acadêmica Nélida Piñon sobre o tema arquivos pessoais sob o
olhar do titular para a mestranda Maria Oliveira do Mestrado em Bens Culturais da
Fundação Getulio Vargas, gravado em 28 de julho de 2009 na Biblioteca Lúcio de
Mendonça da Academia Brasileira de Letras no Rio de Janeiro na cidade do Rio de
Janeiro.

M – Então, a gente vai falar um pouco sobre o olhar do titular do arquivo sobre os
arquivos pessoais.

NP – Com muito prazer. Eu, própria, vou me surpreender com o que eu vou dizer.

M – Ah que bom!

M – Então, eu gostaria que a senhora falasse sobre a origem do seu arquivo. A


senhora lembra como e quando começou a acumulação dos seus documentos. Se a
senhora teve ajuda de alguém? Como é que foi esse processo?

99
NP – Eu não saberia dizer exatamente quando eu comecei porque você não vai ter essa,
menina, eu já menina, desejava ser escritora, me proclamava escritora, então você não tem
essa noção de que possuir um papel é dar uma dimensão nova a sua vida, não é?
Que esse papel está associado a sua decisão de ser escritora, então, mas de vez em quando
eu guardei algumas coisas e por exemplo, eu tenho a impressão que surgiu muito mais,
talvez, esse arquivo nasceu das viagens, porque eu guardei alguns papéis relativos às
viagens que ia fazendo, que é através das fotografias, bilhetes de trem, bilhete de teatro,
programas de teatro, porque eu freqüentava muito teatro e nas viagens eu também ia ao
teatro e procurava guardar inicialmente como uma lembrança daquilo que eu vira, não é?
Com o tempo eu fui estendendo essa reserva, né? em relação à literatura também, alguns
contos que eu fazia, eu tenho guardado, eu tenho guardado, talvez a coisa mais preciosa, eu
vendia, eu fazia um jornalzinho com os desenhozinhos que eu mesma fazia, não tinha uma
grande habilidade, contava uma história e depois costurava essas folhas, que não havia
grampeador, e vendia pro meu pai, ou seja, eu associava, quer dizer, a memória daquele
momento e os direitos autorais, né? Porque eu vendia pro meu pai e meu pai comprava, foi
uma das primeiras coisas que eu lembro ter desse, daquilo que viria a ser meus arquivos.
Com os anos cada vez mais, eu me dei conta da importância do papel, porque eu amava os
livros, então esse amor aos papéis está associado também ao meu amor ao livro, portanto,
não é como se eu tivesse um livro com o acúmulo daqueles papéis, mas é como se eu
tivesse a lembrança daqueles livros lidos, e do que eu vinha escrevendo, não é isso? E tanto,
que, por exemplo, o meu primeiro romance, Guia mapa de Gabriel Arcanjo, eu tenho os
originais até hoje.

M – isso eu ia perguntar, sobre os originais dos seus livros, a senhora tem todos eles?

NP – Eu tenho todos. Eu tenho os originais de todos os meus livros por assim dizer, a
gênese de cada qual, a pessoa poderá um dia estudar as variações, as mudanças, os
acréscimos, o que eu fui subtraindo, o que eu fui cortando, e é muito engraçado, eu tratei
sempre, acho que é uma característica interessante minha, eu tratei sempre os papéis com
um carinho extraordinário. Nunca em minha vida, eu não me lembro, eu não tenho
memória, de ter rasgado um papel no qual eu estivesse escrevendo, ou amassado,
amarfanhado e jogado fora. Há um filme Julia que é a vida da Lillian Hellman, grande
teatróloga americana, em que ela está na praia, lá nos hamptons americanos com seu

100
amante de toda a vida, o Hammett... me esqueci, daqui a pouco eu digo, e há um momento
de grande ira, temperamental, uma escritora temperamental, ela pega a máquina, diante de
um fracasso qualquer, de uma dificuldade, ela pega a máquina e joga pela janela, eu achei
extraordinário! mas eu não jogava fora um papel assim com ira, ao contrário, eu descobri
uma frase que buscava representar o meu fracasso, as minhas dificuldades, eu disse:
Nélida, tenha paciência, é assim mesmo, eu falava alto, mais ou menos isso, eu dizia
sempre isso, tenha paciência, tenha paciência, o fracasso é natural, eu julgava natural errar,
sempre achei natural errar, embora eu tenha sido motivada sempre por uma possível
perfeição que a gente não alcança. Muito bem, então a partir daí, eu comecei a guardar
tudo, mas e guardando até papéis de viagens, eu gosto das lembranças de viagem, eu
guardo também tudo aquilo que de algum modo, incendeia uma flama interior e que me
leva a identificar uma experiência pretérita.
Por exemplo, de repente, eu recorto um artigo sobre Lúcio Cardoso, um grande escritor
brasileiro que eu conheci pessoalmente bastante, um homem fascinante... Então, como eu
não confio na memória, a memória distraída, dispersa, trai, não é? Ela se associa a
invenção. Eu recorto isso num jornal em algum momento, recortei, e vai pra chamada pasta
da memória. O que isso quer dizer? Quer dizer que nesse meu arquivo eu tenho um
material enorme que basta eu consultar uma das pastas que eu vou ser tomada pelas
evocações. Então, o arquivo não é arquivo morto pra mim, embora eu não consulte quase,
eu quase não consulto o arquivo, mas eu penso que um dia poderei consultar, e penso que
um dia pode ser útil e penso que pode ser também útil a quem seja no futuro, se alguém
tiver interesse em alguma coisa.
Então, como eu dizia tem essa parte de fotografias que eu guardo muitas fotografias, até
certa época, eu guardava muitas... eu pedia aos fotógrafos, agora eu não posso mais, já há
muitos anos que eu não tenho condições pessoais, profissionais de perseguir, no bom
sentido, as fotografias que fizeram comigo, vamos dizer, as entrevistas que fizeram, porque
eu sei que tem muitas entrevistas ao longo da minha vida, mas ainda assim, eu por exemplo,
eu pedia, nós gravávamos, eu pedia que alguém me desse uma cópia daquelas fitas
modestíssimas, depois, como é?... fita de...

M – Rolo, fita de rolo.

101
NP – Rolo, e depois agora são os dvd’s, eu tenho um material enorme, você pode rastrear
através do material que eu tenho a questão, vamos dizer, os rostos que passaram pela
minha vida, o meu rosto ao longo dos anos, as marcas do meu florescer e do meu
envelhecimento, está tudo ali, ah, por exemplo, para lhes dar idéia do meu processo de
quase que de restauração, a busca do rosto da frase, a República dos sonhos teve tais
versões que você pode ver, se você for puxar o metro, é alguma coisa daqui até aqui (faz
gesto com a mão sinalizando mais ou menos 70 cm) e nessa ânsia que eu sempre tive de
não ser brutal com o meu texto, com as folhas, empregar uma determinada delicadeza ao
texto ou a folha do texto, eu cortava e escrevia além do que eu trabalhava nas entrelinhas,
quer dizer que é um trabalho verdadeiro de renda, é muito interessante, eu própria, acho
interessante, quando as poucas oportunidades que eu tenho de rever isso pra mostrar a
alguém, eu acho interessante a minha paciência, eu me sinto uma tecelã, só que eu não sou
uma Penélope, que desfaço o que eu fiz, eu vou preservando tudo, você pode rastrear onde
eu estive por onde eu fui, o que me pareceu oportuno preservar o que me [?], que me
obrigou a desistir, não é? Até que o livro, afinal, ganhou o seu rosto final que é a
publicação.

M – E atualmente, com o advento da tecnologia e o computador a senhora continua


escrevendo seus originais, a senhora escreve no computador ou utiliza uma máquina?

NP – Bom, o tempo todo devo lhes dizer que eu escrevi sempre à máquina, desde menina,
eu ganhei uma maquinazinha Hermes a partir dos 13 anos, só houve uma época que eu
escrevi à mão e o meu secretário passava à maquina, mesmo aí naquela época não tinha um
computador, eu custei muito, eu pessoalmente, custei muito a ingressar no mundo da
tecnologia, não é? Mas quando eu ingressei, aprendi rápido, porque eu já sabia bater à
máquina, então, pra mim isso foi fácil e fui até que eu hoje me sinto absolutamente à
vontade de criar na tela do computador, mas eu tenho o hábito, eu imprimo tudo, o que eu
faço, cada versão, mas há coisas, que eu, por exemplo, já há falhas, já não é uma... Não há
uma apreensão total porque já hoje eu trabalho muito na própria tela quando eu sinto que
eu mais ou menos exauri este tipo de trabalho, de elaboração na tela, aí imprimo, quer
dizer, hoje em dia, sobretudo, a partir de Vozes do deserto, não é? Já não há uma
transmissão absoluta, já não há uma...

102
M – Ficam perdidas algumas.

NP – Não é perdida, existem muitas cópias, mas o que houve entre elas, já não está... não
há registros, porque eu fui corrigindo e muita coisa desapareceu na própria tela.

M - O que me parece... a pergunta inicial era de quando e como a senhora começou o


seu arquivo, a senhora falou muito dos documentos que a senhora gosta de colecionar,
e os documentos das suas atividades? A correspondência pessoal, os originais a
senhora já falou, as fotografias de família, isso, a senhora mantem em outro lugar
separado?

NP – Tudo eu considero meus arquivos, eu tenho aprendido, porque eu penso sobre o que é
um arquivo, eu acho que o arquivo de um escritor, de verdade, também compreende sua
vida privada, não a sua vida íntima, se ele não quiser, eu, por exemplo, muitas coisas, eu
não desejo que fiquem preservadas, mas por exemplo, certos objetos eu acho... atestados,
por exemplo, de óbitos do meu pai, tudo isso, documentos, acho que documentos fazem
parte da vida do escritor, os documentos familiares, por exemplo, os contratos, eu
considero, os contratos editoriais pra mostrar a vida difícil de um escritor, o quanto o
escritor brasileiro sofre, padece nesta terra brasileira, por exemplo, uma coisa que eu adoro,
eu guardo tudo que eu recebo, que eu tenho dos congressos internacionais e nacionais que
eu freqüento muitíssimo, agora evito ir a congressos, mas de vez em quando eu vou a
seminários mais discretamente, congressos grandes eu detesto, atualmente, eu não vou
mais, eu tenho mudado muito a minha vida, sabe? Já não tenho o desejo de me envolver
em atividades amplas de muita gente, já vivi tudo isso com uma intensidade rara, já fiz
mais de 200 viagens internacionais muito mais que isso, então são experiências que você
acumula, e não é que elas terminem por exaurir você, é que você termina por traduzí-las
em excesso, você já sabe o que vai acontecer de algum modo, mas enfim, por exemplo,
vou a um congresso, eu trazia não só o material que dividiam, que entregávamo-nos, mas
aquilo que eu escrevia, que alguns amigos leram no palco, e também, eu , por exemplo,
tem uma coisa muito interessante, eu estou lendo um jornal, eu leio muitos jornais
internacionais, estrangeiros ou revistas, há um assunto que me interessa, aí já não é no
plano daquele material que evoca minha memória, incendeia minha memória, desperta
minha memória, não. Eu, por exemplo, matéria que me interessa, eu recorto, leio e penso:

103
Não, pode ser que esta matéria diga muito de mim ou o que eu tava pensando nessa época,
vai para o arquivo, ou seja, eu tenho noção da importância do arquivo, de tal forma que eu
abri, inaugurei, fui eu que abri o Centro de Memória da Academia que não tinha, não havia
um Centro de Memória na Academia, na casa da memória, você não pode viver sem a
memória, você precisa bater à porta da memória todo o tempo, buscar subsídios, não é
buscar deliberadamente, os subsídios vem, mas quando não vem, é preciso que você vá lá e
reverencie a memória e, por exemplo, o que eu mais que eu tenho? Tenho as
correspondências, a correspondência, eventualmente com escritores, eu nunca alimentei
uma correspondência deliberada, como muitos escritores fizeram, para poder alimentar o
seu arquivo, isso eu não faço, nem pensar, nem pensar... mas...

M – Por opção mesmo, né?

NP – ... É, eu não tive este desejo, eu não sou uma correspondente, mas eu tenho que trocar
algumas cartinhas, o que mais que tem, por exemplo, é tanto material, certos objetos, são
de memória, mas eles tão na minha casa, não estão lá embaixo.

M – Na sua entrevista à Maria Claúdia, a senhora chegou a comentar de umas cartas


para uns críticos de arte, na adolescência a senhora ia assistir às peças no Teatro
Municipal, e a senhora falou que isso a senhora tinha guardado.

NP – Era muito engraçado, eu era muito jovem, e a gente tem as pretensões da idade, o que
fazem bem, você quando muito jovem, precisa ter suas pretensões, suas aspirações, seus
desejos, e eu tinha paixão por Ballet, por exemplo, como também, ópera, assistia a tudo, e
eu queria aprender, eu sempre tive uma paixão pelo conhecimento e o que que eu fazia,
além de comprar os livros de ballet de críticos, que eu queria ler a teoria sobre ballet, a
escola disso, a escola italiana, a escola russa, a escola francesa e tudo mais, né? Eu mandei
imprimir um cartão, aliás, de enorme mau gosto, mas eu achava elegantíssimo, não é? Um
cartãozinho impresso com letras em vermelho, não sei porque, eu achei lindo, eu que não
gosto de vermelha, não sou fã, as pessoas até dizem que eu fico bem de vermelho, por
causa da minha pele muito clara, mas eu, enfim, não sou uma entusiasta, então, e mandava
para os grandes críticos e mandava também para as pessoas, os grandes cantores
internacionais pedindo fotografias e alguns me responderam e então eu escrevia para eles,

104
por exemplo, Arnold Haskell, foi um grande crítico inglês, não é? Ele me respondeu, enfim,
a minha vida foi muito alimentada pelos meus sonhos, eu ... e além do mais o sentido da
aventura, eu escrevia, de repente, eu me lembro que uma vez eu escrevi para uma
associação, não sei se era de admiradores, de quem foi? De Dumas, porque eu adorava os
três mosqueteiros, quatro mosqueteiros, até hoje, eu vou à Paris, eu não deixo de visitar a
place des vosges, onde houve grandes embates entre os mosqueteiros do Rei e os, por
assim dizer também, os do Richelieu, quer dizer, e eu também... o próprio arquivo sobre a
Academia, eu tenho um arquivo muito bom sobre o centenário que era meu arquivo, então
eu tenho todo o arquivo do centenário comigo em minha casa.

M – Da sua presidência, não é?

NP – Da minha presidência, não é? Realmente, você esteve na minha casa, eu tenho um


apartamento só dedicado aos arquivos, não é? É um material, foi lá em casa há muitos anos,
então os meus arquivos estavam na casa da minha mãe, não estavam bem postos, tão
visíveis como hoje eles estão, Peter Johnson, ele era curador, grande especialista em
arquivos internacionais, e ele comprava os arquivos, ele visitava, ele sabia como avaliá-los
porque era um homem que tinha uma formação de arquivos e ele visitou um pouco, ficou
lá o dia inteiro, estava a caminho de Buenos Aires, deteve-se justamente para conhecer
meu arquivo, há anos atrás, ele disse: Você não tem um arquivo só literário, você tem um
arquivo histórico, por exemplo, tudo que diz respeito ao manifesto dos 1000 intelectuais
que se opuseram à ditadura, foi o primeiro grande documento da sociedade civil, isso é
bom frisar, pois bem, eu tenho tudo isso guardado. Eu tenho guardado todo, por exemplo,
todas as reivindicações e o convívio que tivemos com o então candidato Tancredo Neves
que depois se tornou Presidente, mas faleceu antes de poder tomar posse, mas enfim, ele...
eu tenho tudo isso guardado, tem coisas muito interessantes guardadas, porque elas me
interessaram, diziam respeito, de alguma maneira, a minha pessoa e ao meu tempo.

M – A senhora citou o apartamento à minha próxima pergunta, é em relação a isso,


quais os espaços físicos que o seu arquivo ocupou e ocupa atualmente?

NP – Olha, deve ser o quê? 100m², não sei, talvez.

105
M – E Eles sempre ficaram na sua casa?

NP – Sempre perto de mim, eu não tinha às vezes espaço suficiente, eu dividia com a casa
de minha mãe com o apartamento de minha mãe que sempre generosa comigo, sacrificava
o espaço dela par me dar, me ceder o seu espaço, não? Hoje não, hoje eu tenho um
apartamento só dedicado aos meus arquivos, no mesmo edifício onde eu moro, eu
raramente eu vou lá ver, eu to sempre me prometendo visitas pra ver se posso ter umas
curiosidades rever um pouco o passado, pensar um pouco no que foi feito e até ter idéias
para organizar de uma forma mais coerente, mas termina não fazendo muito porque a
minha vida, o meu cotidiano é muito absorvente, agora eu tenho muito material, que
deveria estar neste arquivo, que está comigo, na minha casa, inclusive, objetos pessoais da
minha infância, do meu nascimento, retratos mais queridos da minha vida, estão comigo,
eu já não quero mais que fiquem lá embaixo, fiquem só comigo e mais ninguém.

M – Por que nesse espaço que a senhora fala lá embaixo, a senhora abre para
consultas?

NP – Eu não vou porque algumas pessoas vão, eu nunca mais, eu nunca vou, eu, raramente,
eu tenho duas pessoas que trabalham: a minha secretária e uma pessoa que me ajuda
também, então são eles que vão, eu, raramente, quando eu quero alguma coisa, eu peço:
descubram isso, vê se vocês descobrem, mas eu já... eu tive pessoas que trabalharam nos
meus arquivos há muitos anos atrás, mas hoje em dia, eu não tenho profissional à frente
dos meus arquivos.

M – Há uma preocupação com a classificação dada aos documentos durante a


acumulação, ao enviar para o arquivo a senhora faz alguma separação, de
assunto/data?

NP – Não, já não faço, eu não posso me preocupar porque o meu cotidiano já mão me
deixa mais, o que eu faço, às vezes, por exemplo, foi uma coisa que eu introduzi
ultimamente, porque eu imprimo toda a correspondência que me chega, o email, que eu
acho, aquela que deva ser impressa, então é uma coisa nova que eu comecei há pouco. Por
exemplo, uma grande amiga de Madri, uma grande historiadora Carmen Iglesias, que é

106
uma pessoa admirável da Real Academia, tanto de Letras, como de História, é a grande
mestra do Príncipe de Astúrias, do Príncipe Felipe. Então, o que eu estou botando agora?
Madri, Espanha, isso vai indicar que lá embaixo quando classificar que... eu disse pra ela,
nós estamos precisando classificar a correspondência de outro modo, por país, talvez, o
modo da gente poder localizar, e por função, talvez, Escritor, não escritor, amigo,
correspondência privada, mas, enfim, eu nem penso muito nisso querida, já é muito eu
acumular os papéis, eu mando e seja o que Deus quiser.

M – Então, eu tenho uma pergunta que está mais ou menos nesse sentido, a senhora
não adota nenhum critério de seleção e escolha dos seus documentos que serão
disponibilizados para os pesquisadores?

NP – Não, até uma certa época, vamos dizer, há uns 15 anos atrás, eu tive a professora
Ângela e mais duas bibliotecárias formidáveis, que trabalharam, sei lá, uns dois, três anos,
mas aí eu não pude mais porque também eu não posso, quer dizer, eu não devo ter gastos
que devem ser, que deveriam ser responsabilizados por uma instituição, eu não posso
pretender ser uma instituição, já é muito o que eu faço em manter vivo esse arquivo,
preservado, bem tratado, limpo, por exemplo, tudo o que sai, além dos livros meus, as
referências que aparecem em livros estrangeiros que me mandam, tudo está guardado, quer
dizer, precisa ser classificado, não dá pra fazer, eu assumir o papel de uma instituição, eu
sou muito realista, eu não posso e nem devo.

M – A senhora faz uma seleção do que vai para o arquivo e do que fica com a senhora?

NP – (Fez sinal negativo com a cabeça). Vai tudo para o arquivo, só não vai para o arquivo,
uma fotografia especial de uma tia minha... de tia Celina, por exemplo. O que diz respeito
aos meus afetos profundos, à minha memória familiar, que eu sou muito zelosa com a
minha família, com a história da minha família, isso é sabido por todo mundo, não é?
Então, os retratos do meu avô Daniel, da minha avó Amada, por exemplo, os retratos das
aldeias da minha família, de onde eu me origino, todo esse lado que eu tenho pavor de
perder, porque eu perdi documentos importantes nessa mudança de funcionários, de tudo
isso, gente que... tanto que agora não estou mais deixando ninguém pesquisar, eu perdi

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uma... não encontro nunca mais uma peça, primeira fotografia, primeira peça sobre minha
pessoa que saiu no jornal, eu teria meus 3 anos de idade, desapareceu isso.

M – Nossa!, É deve estar em algum lugar.

NP – Está em algum lugar, isso vai se ver depois, eu numa praia, com uma menininha,
parece já..risos...isso é muito engraçado... parece que era uma neta ou bisneta do Mussolini
que estava no Brasil, uma coisa dessas, coleguinha de praia, em Copacabana, onde nós
morávamos.

M – Que interessante...risos

NP – É, vejam só...risos...

M – O que a senhora gostaria que os pesquisadores encontrassem no seu arquivo?

NP – Ah, não tenho a menor idéia, eu não posso pensar nisso, eu não posso pensar, já será
muito se meu arquivo resistir, não é? Eu ainda não lhe dei um destino, mas pra não pensar
que eu não estou preocupada, fazer um charme de que eu estou desatenta, não é verdade.
Eu sou uma pessoa, nesse sentido, muito sincera, eu acho que ele tem um determinado
valor e deve ter porque eu sou uma escritora brasileira, quando mais não seja, porque faz
parte de uma memória nossa, da Academia, de escritores, de escritores do meu tempo, já
está no meu testamento...risos... certas orientações, pra você ver como eu estou sendo
sincera.

M – Eu tenho uma pergunta aqui, que é mais ou menos isso que a senhora falou, a
senhora pode complementar: Que funções a senhora atribui para o seu arquivo?
Agora e no futuro?

NP – Não sei. Eu espero que ele seja útil, não só em relação a alguém que possa vir a me
estudar ou que se interesse por alguma coisa minha, não é? Ou pela presidência da...eu
tenho o arquivo da presidência do centenário (ABL), como eu lhe disse, eu tenho peças
com um valor pra mim e para os companheiros do meu tempo, porque, eu tenho, por

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exemplo, pra eu lhes dar uma idéia, tem inúmera fotografias de Clarice Lispector, bilhetes
dela, que ela foi me dando no leito de morte dela, não é isso? Eu tenho coisas muito
privadas, mas eu nunca dei pra ninguém, tanto que muita gente dizia: Você devia escrever
a biografia, ou algum sobre...Clarice, eu digo: Não escrevo, porque eu sei demais da vida
dos meus amigos, eu sou de uma lealdade, eu jamais vou me arriscar a dizer aquilo que eu
recebi em confiança, não é? Eu não sei o que vai acontecer, mas aí está, alguma coisa há de
acontecer, que é por isso que eu guardo, senão, eu não guardaria, eu queimaria tudo, não é
verdade? Mas, também, se não fizerem nada, paciência!, a minha parte eu fiz, que era
quase me tornar uma amanuense... risos....mais do que uma escritora...risos...não é verdade?
Então, muito bem, mas enfim, eu amo, eu amo o papel, eu amo o documento, eu tenho o
maior respeito, entendeu? Alguém me falou... Quem foi? que alguém me falou que há uns
documentos preciosos não sei aonde, eu já me... meu impulso é conseguir levantar um
dinheiro com pessoas e comprar, eu sou assim, tal o amor que eu tenho à documentação e
como eu lamento que o Brasil não é respeitoso com os papéis, mas eu sou altamente
respeitosa com os papéis, porque eu me formei com eles, eu devo tudo aos papéis, aos
livros, né? A vida me chegou muito através dos papéis, dos livros, não é? Então, eu tenho
que zelar por eles.

M – De uns anos pra cá, eu acho até que a consciência em relação à memória, a
preservação dos documentos está mudando né? As pessoas estão tendo mais atenção,
agora.

NP – É. Porque, antigamente, a tarefa das famílias, após o óbito, a morte do parente, do


dono dos livros, ou dono dos papéis, era destruir tudo, era assim como se... era uma coisa
impressionante, eram antropofágicos, comiam todos os papéis, jogando fora, queimando
tudo, rasgando tudo, era o papel da família, era rasgar papéis.

M – Quais são suas expectativas e planos em relação a preservação do seu arquivo?


Que destinação a senhora vai dar ele, a senhora chegou a comentar que tem alguma
orientação no testamento.

NP – Olha, eu deveria me definir, quer dizer, de qualquer modo, se eu não me definir a


tempo, a pessoa que foi designada para definir, vai ter que tomar uma decisão. O problema,

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eu espero, que seja a minha preferência é que tudo meu fique aqui no Brasil, mas não sei o
que vai acontecer, não é? Porque nós somos tão descuidados, tão desinteressados que eu
não sei se vai interessar a alguém, não é? E não estarei aqui pra organizar pós-
mortem...risos... eu sou uma mulher que organizo, mas há um limite, morreu... uma vez
que eu indo embora, meu bem, não tenho nada a ver com isso, façam o que quiserem, não
posso cuidar dos vivos já não fazendo parte deles.

M – O arquivo da Academia tem muitos arquivos pessoais....

NP – Já, muitos.....

M - o seu é bem grande, não sei se isso já impediria....

NP – Mas eu nunca cogitei, e é muito interessante, o que me dá isenção, porque eu criei o


Centro de Memória, pensando nos interesses da casa e não num possível interesse meu no
futuro, tanto que a Academia não está nos meus projetos, não esteve até hoje.

M - Então, D. Nélida, essa era a minha entrevista, eu gostaria de agradecer mais uma
vez. Está aberto, se a senhora quiser deixar alguma mensagem, falar mais alguma
coisa sobre o arquivo, que eu não tenha colocado no meu roteiro.

NP – É, talvez, eu me pergunto, até que ponto eu me esquivo de conviver com o arquivo,


além do fato de eu não ter tempo, porque só o que eu tenho lá em cima onde moro, os
deveres, as tarefas, os papéis, é alguma coisa sufocante de tanto trabalho, de tantos
envolvimentos, mas eu me pergunto às vezes até que ponto eu não quero tocar nesse
arquivo enorme, pra não reviver o que já passou... o que já é passado, porque esse arquivo
de algum modo, declara em voz alta, ou em surdina para mim, o quanto eu trabalhei pra
poder aprender escrever três linhas, ou quatro linhas, o esforço que eu fiz, para não perecer
numa sociedade em que é tão difícil ser escritor, em que você é convocado todo o tempo a
desistir, uma frase que eu digo muito, sempre os jovens repetem: Você é convocado todos
os dias pra desistir, e no entanto, eu ao longo desses anos todos, eu disse: Eu não desisto!!!
(Enfaticamente), não adianta bater na minha porta, que eu continuo. Então, eu acho
também que tem muito a ver, a história de uma vida em minúcias, em que você muitas

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vezes deve se esquivar, por isso, que talvez tenha sido interessante publicar esse livro de
memórias que eu publiquei agora, Coração Andarilho, mas enfim, isso é uma cogitação,
esse arquivo não me atormenta, não me faz sofrer, não me cobra mais do que eu posso lhe
dar, já preservando os papéis, eu não tenho angústia quanto ao futuro dele, gostaria que ele
pudesse servir a uma pequena comunidade, mas não me cabe mais responder por alguma
coisa que talvez, estará fora do meu alcance, mas não me arrependo, se isso, eu talvez devo
acrescentar, não me arrependo o fato de ter guardado modestamente meus papéis, ter
trazido da Europa, envelopes e envelopes de coisas que eu gostava de coisas que eu via, o
teatro, tudo isso, as provas...pequenas provas da minha existência, porque a existência mais
profunda não tem documento.

M – Muito obrigada!

NP – Obrigada!

[Final da entrevista]

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