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preconceitos. ST 55
Giralda Seyferth
PPGAS – Depto. de Antropologia
Museu Nacional- UFRJ
clero que se exerceu sobre a escola e o lar. Na verdade, a seqüência de causa-efeito que
parte da igreja e do clero, passa pela mulher (ou, mais precisamente, pela mãe) e chega
à polonidade faz parte do senso comum discursivo das primeiras gerações de imigrantes
poloneses. O nacionalizador estava fazendo uma constatação que serve como
justificativa para uma intervenção nas instituições comunitárias, lembrando que ao final
do Estado Novo já estava sendo discutida a possibilidade de uma ação direta no domínio
doméstico, que não chegou a ser implementada.
Este é um bom exemplo de conflito entre princípios étnicos e nacionais,
relacionados a uma etnia considerada irredutível, enquistada – conforme termos comuns
nas décadas de 1930 e 1940 – epítetos aplicados de forma ainda mais corrosiva aos
teuto-brasileiros por causa da persistência (já na 4ª. geração) do uso da língua alemã,
reforçado por um sistema escolar particular e por publicações periódicas (jornais,
almanaques, revistas de natureza didática, etc) e ficcionais. Chegar até o lar era
prioridade dos nacionalizadores pois ali estava evidente o que Epstein denominou
“cultura íntima” – a mais persistente e menos visível – da qual surgem os diacríticos da
etnicidade, começando pela língua materna aprendida com as mães e avós. Veículo de
comunicação, a língua tornou-se um marcador da identidade coletiva para todos os
imigrantes e primeiras gerações de descendentes, particularmente no caso dos alemães
que, simbolicamente, equacionaram lar e pátria através do termo Heimat. Derivado de
lar (Heim), é o lugar por excelência da afirmação da identidade nacional desde os
tempos do romantismo (no início do século XIX). No Brasil, o uso da língua e seu
aprendizado em casa, tornou-se a base dos enunciados de uma identidade alemã-
brasileira (ou teuto-brasileira), verificada na literatura produzida em língua alemã (até
sua proibição durante a campanha de nacionalização) – na qual as mulheres autoras tem
tanto destaque quanto os homens -, nas matérias sobre a germanidade veiculadas em
jornais e outros periódicos, e mesmo em depoimentos mais atuais. Na perspectiva de
uma pátria associada ao lar (a tradução de Heimat para pátria tem limitações pois não
há um termo correspondente em português) é a comunidade étnica (ou a colônia, com
significado étnico-cultural mais do que territorial) que surge nos discursos identitários,
numa correspondência com as observações de Bethlem, pois sob muitos aspectos, a
personagem principal é a mulher que molda uma vida germânica marcada pela
conservação da língua e da cultura produzida pela imigração em terras brasileiras.
Kuder (1936/37) – num dos poucos trabalhos dedicados à literatura em língua alemã
produzida no Brasil – observou que um dos temas recorrentes nos textos ficcionais
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sobre as colônias é a “mulher alemã”, identificada como alguém que, no novo ambiente,
mantém a germanidade e a saudade (Deutschtum/Heimwech) mais do que o homem,
conduz o “lar alemão” e, ao contrário da “mulher brasileira”, trabalha, inclusive nas
atividades externas à casa. Nesse caso, a imagem da Kolonistenfrau é a chave para a
preservação dos valores nacionais trazidos pelos imigrantes. Essa imagem carregada de
símbolos relativos ao trabalho pioneiro e civilização também foi agregada às
representações da pequena burguesia colonial, observável no estudo sobre o papel da
mulher no Vale do Itajaí realizado por Renaux (1995).
As observações acima permitem introduzir duas questões subjacentes à idéia de
pertencimento comunitário próprio das situações interétnicas produzidas pela imigração:
o casamento preferencial endogâmico e a transmissão do estilo de vida e cultura de uma
geração para outra. A simbólica da colonização, em particular as representações sobre o
trabalho pioneiro, são os marcadores da identidade coletiva mais freqüentemente
acionados, inclusive no tempo presente. Aliás, o baixo índice de casamentos entre
descendentes de imigrantes e brasileiros, na década de 1930, nos três estados do sul, foi
convertido pelos nacionalizadores em mais um indicador das dificuldades de
assimilação, com base no estudo de Oliveira Vianna (1932) sobre imaginados
coeficientes de “fusibilidade” que teimavam em deixar os alienígenas brancos fora do
melting-pot nacional. Um tanto inconsolável, Oliveira Vianna observou no sul apenas o
“caldeamento” entre europeus – fato que para um adepto da tese do branqueamento do
povo brasileiro era um desastre e justificava a nacionalização.
A idéia de colônia é mais do que a apropriação da categoria oficial empregada
no jargão oficial para designar a ocupação do território com imigrantes europeus através
de núcleos e linhas onde cada família recebia um lote para cultivo. Sinônimo de
comunidade étnica, percebido na adjetivação pela nacionalidade de origem, ainda hoje
persistente, ressalta o passado pioneiro da ocupação territorial onde a figura de retórica
é o trabalho civilizatório que permitiu o florescimento da cultura onde só havia natureza
– trabalho familiar onde a figura feminina tem atividade na produção, como costuma ser
nas sociedades camponesas. Só que nas representações identitárias isso é tomado como
virtudes inata, própria do caráter nacional, no sentido weberiano de “honra étnica”,
produzindo atitudes condenatórias do casamento fora da “comunidade”. A definição
positiva da mulher trabalhadora e, principalmente, depositária dos valores “de origem”
tem como contrapartida a desqualificação da brasileira e, de forma menos radical, das
outras imigrantes/descendentes. Como mostrei em outro texto (Seyferth, 1993), a
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simbologia étnica encontra sua lógica nas diferenças produzidas no curso dos processos
imigratórios, que parecem dar veracidade a um imaginado ethos do trabalho eivado por
tinturas raciais. Por isso, no passado e no presente, os depoimentos sobre casamentos
preferenciais enfatizam as “qualidades” das mulheres da própria etnia, com referências à
aparência das casas, jardins, hortas (portanto, ao domínio doméstico) em oposição às
brasileiras, “sem origem”, que não trabalham, não tem dote, são desenraizadas. Os
preconceitos, portanto, impõem uma hierarquização, às vezes relacionados à noção de
raça (ou ausência dela, quando o referencial é a miscigenação). Eles não impedem os
casamentos, mas o cônjuge “sem origem” – isto é, que não tem ascendência imigrante –
é sempre o “outro”. De qualquer forma, a integração à sociedade brasileira ocorrida
paulatinamente nos últimos 50 anos, e o convívio mais sistemático com outros
compatriotas, não apagou as suposições de desigualdade sugeridas pelos estereótipos
que alimentam preconceitos: no limite, a cabocla, a “brasileirinha”, não tem “origem” e
jamais poderá passar aos filhos as qualidades da etnia. Aí está implícito que o
casamento estruturalmente desigual é aquele com uma mulher que, além de não ostentar
a mesma identidade étnica, vem de família que estava à margem da colonização
européia.
Finalmente, voltamos à questão da socialização, abordada no inicio, pois a
manutenção ou persistência de uma identidade culturalmente diferenciada de uma
geração para outra, nesse caso, passou ao âmbito das relações sociais primárias: lar e
amizade são seus referenciais empíricos, constantes nas falas dos atores sociais. Daí os
exercícios de retórica contrários aos casamentos com “outras”, percebidas através da
diferenciação cultural, comportamental e moral, particularmente quando se trata de
mulher identificada pela categoria “brasileira” de forma estereotipada. O casamento
preferencial tem gradações pois diversos grupos europeus compartilharam o processo
histórico de colonização e tem algo em comum que permite transformar a brasileira na
“outra” generalizada. Os símbolos significativos do pertencimento étnico associados ao
casamento mostram a persistência de valores culturais cuja transmissão é atribuída ao
papel socializador primário das mulheres.
Referências Bibliográficas:
BERGER, P. I. e LUCKMANN, T. (1976). A construção social da realidade.
Petrópolis, Vozes. 3ª. ed.
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BETHLEM, Hugo (1939). Vale do Itajaí (Jornadas de Civismo). Rio de Janeiro, José
Olympio.
PARSONS, Talcott (1975). “Some theoretical considerations on the nature and trends of
change of ethnicity”. In: GLAZER, N. e MOYNIHAN, D. P. (eds.) Ethnicity.
Theory and Experience. Cambridge, Mass., Harvard University Press.
VIANNA, Oliveira (1932). Raça e assimilação. São Paulo, Cia. Editora Nacional.
WILLEMS, Emílio. 1946. A aculturação dos alemães no Brasil. São Paulo, Cia. Ed.
Nacional, Brasília, INL.