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Adelaide Carraro Falência Das Elites PDF
Adelaide Carraro Falência Das Elites PDF
FALÊNCIA
DAS ELITES
a
(6 Edição)
1979
Prefácio
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formais, os planos autênticos de uma escritora que, em-
bora não desconheça suas limitações em alguns pontos da
criação artística, tem sabido ser verdadeira, quando lhe
apraz documentar o que tem visto na sociedade da qual
é um dos elementos. . . -
Assim, Adelaide Carraro, tendo conhecido um mun-
do despojado de consciência moral e jurídica — essencial-
mente — em valores de ordem, de lógica e de coesão
(como nos procurou revelar em " E U E O G O V E R N A -
D O R " ) — neste segundo livro reproduz uma nova forma
de t e m p o i n u m a n o na feição de um sanatório, onde as
doentes não podem destramar o nó cego de uma vida
que lhes deram, vida travada, muitas vezes, de frustrações,
de fraudes e de vícios.
Se todo assunto é assunto para o romancista — que
devemos dizer de um sanatório, em cujos habitantes a
doença, os transes de angústia, os olhos fundos de deses-
pero procedem de um mundo condenável, sem plenitude,
sem maravilhoso íntimo, estigmatizado, principalmente,
por uma consciência erogenética do sexo, de onde ressai
o e x í l i o a f e t i v o que o homem e a mulher do nosso tempo
tanto deploram, porém não podem superar?
C A R L O S BURLAMÁQUI K Ô P K E
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PÉ DE CONVERSA.
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Os que esperam encontrar, igualmente, neste livro,
uma obra literária de grandes méritos vão ficar
decepcionados.
É preciso que todos compreendam, sobretudo -os
críticos, que a mentalidade moderna não mais se adapta
àqueles padrões literários que consagraram os grandes e
inesquecíveis escritores do passado.
íí ,,
Afinal, o que transforma um livro num bes-seller ?
Algo, de urna forma ou de outra, deve necessaria-
mente prender o leitor, fazê-lo discutir a obra, recomen-
dá-la ou não, mas de certo modo despertar a curiosidade.
É impossível um livro ser por demais procurado
durante meses nas livrarias, esgotando edições sobre edi-
ções, manter-se durante quase um ano no primeiro posto
na preferência dos leitores, vencer todas as pesquisas de
mercado, e seu conteúdo ser vazio, não encerrar alguma
mensagem, algo que agrade sobremaneira ao público
ávido de emoções diferentes.
Dirá o crítico —- como, aliás, vários afirmaram —
que a pornografia, no Brasil, atrai o leitor, e por este
motivo volumes desse gênero agradam às massas. Nosso
público seria então inculto. Não saberia apreciar as
grandes obras literárias.
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E minha pergunta tem, obviamente, sua justifica-
tiva; seria o público leitor norte-americano inculto?
É lógico que o argumento válido para justificar o
sucesso de "EU E O GOVERNADOR", pelos críticos
brasileiros, deverá valer para justificar o sucesso de "Os
Insaciáveis", nos Estados Unidos da América do Norte.
Já houve, aliás, quem afirmasse que não há livros
pornográficos e sim leitores pornográficos. Pegue a
carapuça quem o desejar. . .
Fui muito combatida.
"FALÊNCIA DAS ELITES" irá redobrar esse
combate.
No primeiro livro toquei na chaga chamada política.
Neste livro mexerei num tumor muito mais sensível e
que, através dos tempos, sempre julgaram intocável: as
elites privilegiadas.
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todos os jornais brasileiros: "Não há racismo em nosso
país" .
Sem dúvida, não há racismo nos termos expressos
da lei, mas na realidade o negro é evitado, humilhado
e relegado, sob todos os aspectos. Esse sentimento é
muito mais acentuado no seio das elites.
O que relato, envolvendo personagens negros e bran-
cos, tem sido conservado em sigilo no âmago da nossa so-
ciedade. De certa união nasceu um filho que foi colocado
num asilo. Essa criança ignorará, para sempre quem são
seus pais. . . Estes são os gestos generosos, fraternais,
das elites. . .
Dos críticos literários não espero compreensão, nem
imparcialidade. Não posso pedir algo que, de antemão,
sei me será negado.
A compreensão eu somente a peço ao grande pú-
blico, o mesmo público humano e esclarecido que con-
sagrou minha primeira obra. e de tal maneira que hoje
já percorre o mundo, traduzida na Inglaterra, enquanto
que entendimentos estão sendo feitos com vários outros
países do velho continente.
ADELAIDE CARRARO
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I
No asfalto escaldante d a s r u a s de P i n d a m o n h a n g a b a ,
m e u s pés q u e i m a m d e n t r o d a s botas de meio-cano de
pelica preta. S i n t o um calor bravio percorrer todo o
m e u corpo. Não posso compreender como, em pleno
inverno, o sol possa estar t ã o a r d e n t e . Fiz m a l em vestir
o conjunto de n a p a . As calças de couro preto, b e m j u s t a s ,
m a l facilitam o meu a n d a r . Acho que estou bem extra-
vagante. Os olhares indiscretos que me a n a l i s a m me
d ã o c o n t a de que estou r e a l m e n t e c h a m a n d o a atenção.
No m e u íntimo, porém, sei que fiz u m a enorme besteira:
a Madre n ã o vai receber-me com essa roupa. O pior,
mesmo, é esse calor. Meu pescoço está todo m o l h a d o
e gotas de suor b r o t a m na m i n h a testa. Como esse
b o n d i n h o está d e m o r a n d o , m e u Deus! Lá em c i m a sei
q u e o clima vai ficando mais a m e n o e q u a n d o e n t r a r
m e s m o em Campos do Jordão, o frio me fará esquecer
esse suplício do asfalto de P i n d a m o n h a n g a b a .
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se os braços fossem esticados pelas j a n e l i n h a s do pe-
queno bonde aéreo. À direita, o u t r o p a n o r a m a : cadeia
após cadeia, até que estas se p e r c a m na infinidade de
matizes verdes, dourados, prateados, azulados e cinzen-
tos, j u n t a n d o - s e , lá no horizonte, ao anil do céu. À
esquerda, lá embaixo, pode-se ver o prado m o r r e r de
e n c o n t r o às á g u a s profundas do P a r a i b a . Como adoro
t u d o isto! Que s a u d a d e imensa sentia dessas paisagens
inesquecíveis e imorredouras!
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I n c r u s t a d o n u m c a n t o , à s o m b r a da m u r a l h a esme-
r a l d i n a d a s m o n t a n h a s que se e r g u e m i m p o n e n t e s , so-
branceiras, escondendo-se dos olhos dos t u r i s t a s , lá estava
o Sanatório S. Pedro, onde consegui c u r a r - m e da tuber-
culose, e que agora me esperava p a r a um estágio de
a l g u n s meses de repouso e recuperação.
O edifício de t r ê s p a v i m e n t o s t e m ao c e n t r o a m p l a
escadaria de m á r m o r e . Cerca de duzentos a p a r t a m e n t o s
p a r a doentes ricas e sessenta leitos p a r a indigentes, nos
porões. Fora, pouco d i s t a n t e do prédio c e n t r a l , h a v i a
u m a espécie d e motel p a r a p a r e n t e s das i n t e r n a d a s
ricas.
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na ante-sala. Envolvem-me, então, q u a t r o braços, e
m e u s ouvidos e s t a l a m com os gritos de Inês e Belinha:
— Salve a escritora! Vimos da janela que você
chegava. Há dias que estamos esperando S. Exa. A
Madre nos contou seu pedido p a r a repousar a q u i em
S. Pedro. Xiii! Como você está m o l h a d a , m e n i n a ! Veio
pelo m a t o , c o r t a n d o essa neblina horrível?
Olhei-as, rindo. Deixei-as perder o fôlego. Já sabia
que se a c h a v a m em S. Pedro. T i n h a m sofrido u m a
recaída. Eu as conhecera no tempo em que estivera
i n t e r n a d a . Depois ficamos j u n t a s em São Paulo, e
agora, entristecida, via que estavam n o v a m e n t e a t a c a d a s
dos pulmões. Inês pertencia à família tradicional. Ti-
n h a recursos. Belinha já era de outro padrão. Mas e r a m
as m e s m a s de sempre, alegres, esfuziantes, maliciosas.
Em meio a um t u r b i l h ã o de p e r g u n t a s , a i n d a me foi
possível explicar:
— Vim m e s m o p a r a descansar. E se querem saber,
encurtei o c a m i n h o passando pelo pereiral. Não quis
saltar em Abernéssia. Preferi a estaçãozinha próximo
do sanatório. Mas dei ordens p a r a que a b a g a g e m fosse
descarregada na Vila. A m a n h ã vou buscá-la e darei u m a
olhada pela velha t e r r a .
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A direção do Sanatório havia conseguido, do Go-
verno, a promessa de que transferiria, t e m p o r a r i a m e n t e ,
um médico da Secretaria da S a ú d e p a r a o Pronto-So-
corro. Esse médico ficaria à disposição, noite e dia,
das enfermas de S. Pedro. Q u a n d o fosse feita a admissão
do médico definitivo, o da Secretaria seria recambiado
p a r a a Capital. Em verdade, n ã o era fácil conseguir-se
um especialista que se sujeitasse a p e r m a n e c e r noite e
dia na solidão do S a n a t ó r i o S. Pedro, de Campos do
Jordão, ainda que com polpudos salários.
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ande com "negligé" t r a n s p a r e n t e — fui acrescentando,
ao mesmo tempo que ria e contava as proibições nos
dedos.
I r m ã F r a n c i s c a sorriu:
No c a m i n h o p a r a m e u a p a r t a m e n t o fui informada,
pela Belinha, que a m i n h a vizinha de q u a r t o era u m a
sofisticada m e n i n a , eleita, no a n o passado, "miss
Guarujá".
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p e n e t r a n d o com violência nos corredores de ladrilhos
vermelhos. Pulei, assustada, da c a m a .
Já me esquecera do sino que precedia à c o m u n h ã o
de todos os dias às seis h o r a s da m a n h ã . Agora ouvia
o p a d r e rezando, ao m e s m o t e m p o que levava a hóstia
a todos os a p a r t a m e n t o s dos doentes católicos. No m e u
t e m p o n ã o gozávamos desse direito. E r a considerada
indigente, e, nos porões, o p a d r e não ia. As doentes
t i n h a m que f r e q ü e n t a r a capela. Só os ricos podiam
receber o sacerdote no q u a r t o . . .
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t a n h a mais alta, os raios pálidos e indecisos de sol
t e n t a v a m atravessar a névoa plúmbea.
Não consegui ficar m u i t o t e m p o m e r g u l h a d a nos
meus pensamentos. A p o r t a do m e u q u a r t o se abriu
e Belinha e I n ê s e n t r a r a m , a g a s a l h a d a s em. grossas
mantas.
— Viemos aqui p a r a t o m a r café j u n t a s , Adelaide.
Vamos t a m b é m conversar um pouco. O n t e m o cansaço
a p r e n d e u m u i t o no q u a r t o . Você chegou a vê-lo depois
que lançou o livro?
— Inês, vim aqui p a r a descansar e esquecer todos
os acontecimentos que me afligiram depois que lancei
aquele maldito livro. Às vezes sinto profundo arrepen-
d i m e n t o de tê-lo feito. Recebi os piores insultos do
m u n d o . Muita gente n ã o m e compreendeu. Não, n ã o
quero falar de livros. Quero viver, tá bom?
— Mas, viu ou n ã o viu o governador depois do
livro?
— T a m b é m é m e n t i r a . E p a r a encerrar o a s s u n t o ,
vou r e l a t a r u m a p a s s a g e m ocorrida comigo na volta do
Rio de Janeiro, no interior do avião, logo após o lança-
m e n t o de m e u livro na G u a n a b a r a . Viajava em com-
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p a i n h a de u m a amiga e de um jornalista, que me ajudou
m u i t o no l a n ç a m e n t o da obra. E foi ele q u e m me
a p o n t o u um passageiro, sentado mais à frente:
— Adelaide, aquele é o Giacomo F r a n c o , d a s I n -
d ú s t r i a s Vigorelli. É amigo í n t i m o do seu d e c a n t a d o
governador.
Meu amigo jornalista n u n c a apreciou o personagem
do m e u livro, m a s era amigo de muitos amigos do go-
vernador. Fiz questão de conhecer o industrial. Feitas
as apresentações, ele trocou de l u g a r com m i n h a a m i g a
e fizemos toda a viagem conversando sobre o governador
de m e u livro.
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l i ç ã o . . . Um deles, me recordo bem, chamava-se José
Sabiá. Disse-me n ã o , porque já t i n h a toda a sua verba
pessoal comprometida com seus eleitores do bairro do
I p i r a n g a . De o u t r o n e m sei o nome. É simplesmente
um d e p u t a d o . . . . Bem que o Governador poderia ter
pago o colégio. Afinal ele está m i l i o n á r i o . . .
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Agradeci com um sorriso.
— Como é Adelaide, está gostando do Rio?
— É u m a cidade m a r a v i l h o s a m e n t e acolhedora,
deputado. Mas às vezes chego a ficar t o n t a . Vejo
t a n t o d e p u t a d o que chego a pensar que estou em Bra-
s í l i a . . . Acho que os p a r l a m e n t a r e s deveriam t r a b a l h a r
mais...
— Fazemos o que nos é possivel, moça. Brasília,
p a r a m i m , é como o Hospital do M a n d a q u i do seu livro
" E u e o Governador". É horrível t r a b a l h a r n a q u e l a
cidade. Você t a m b é m n ã o a g ü e n t a v a o M a n d a q u i ,
lembra-se?
— Mas eu pedi demissão, d e p u t a d o . Deixei m e u
l u g a r p a r a o u t r o que queria t r a b a l h a r e n ã o se impor-
tava com o a m b i e n t e .
Ele n ã o gostou de m i n h a resposta. Fechou o cenho.
O dr. Roberto Marinho, que a c o m p a n h a v a em silencio
nosso diálogo, quebrou seu m u t i s m o , rindo alto a n t e
m i n h a afirmativa.
T u d o isto me passou pela cabeça no i n s t a n t e em
q u e Giacomo F r a n c o me afirmava que ele era um dos
vários industriais de São P a u l o que ajudava o ex-gover-
nador, m e n s a l m e n t e , com u m a i m p o r t â n c i a em dinheiro
p a r a que pudesse viver. P a r a que, afinal, t a n t o sacrifício?
— Eis, aí, Belinha, o que me ocorreu l e m b r a r no
m o m e n t o em que você me falou que ele ficou milionário.
Vamos agora e n c e r r a r o a s s u n t o ?
U m a servente i n t e r r o m p e u definitivamente nosso
bate-papo. A Madre me c h a m a v a .
M i n h a conversa com ela n ã o foi longa. Pedi-lhe
desculpas pelos trajes e esclareci que m i n h a b a g a g e m
n ã o viera comigo.
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A Madre n ã o m u d a r a quase n a d a . Apenas mais
a l g u m a s r u g a s sulcavam o seu rosto, mesmo assim, só
no c a n t o dos olhos. A m e s m a pele b r a n c a , a m e s m a
voz p a u s a d a , carinhosa. O mesmo olhar meigo.
No princípio falou d e m o r a d a m e n t e sobre o meu
livro. Não a interrompi, em sinal de respeito. Recri-
minou-me, em p a r t e , e nossa conversa t e r m i n o u com
u m a notícia que me revoltou:
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Olhei-a e s p a n t a d a . Aquele destempero me pegou
desprevenida:
— O que é o "Jogo da Chave", Inês? Você está
ficando m a l u c a ? Odeia seus pais?
— Odeio-os, sim, Adelaide. Eles me l a r g a r a m . P e n -
s a r a m que o conforto, o dinheiro, o luxo exagerado, se-
r i a m suficientes p a r a me proteger. F u i criada com
babás e g o v e r n a n t a s . Fiz o que quis na infância e na
adolescência. Os resultados são horríveis. Jogo da
Chave, sim. E n t ã o n ã o sabe? Pois vários casais se
r e ú n e m com suas esposas em luxuosos a p a r t a m e n t o s no
G u a r u j á . Cada casal coloca a chave do seu respectivo
q u a r t o n u m vaso. Cada h o m e m tira u m a chave. O
fulano vai dormir com a m u l h e r cuja chave corresponde
ao q u a r t o . Há briga q u a n d o a coincidência faz com q u e
o esposo tire a chave do próprio aposento. Ele será,
então, obrigado a se deitar com a própria consorte, em
vez de ter a esposa do amigo! É u m a vergonha. Meus
pais a d o r a m , no fim de s e m a n a , participar desse jogo.
Meu pai se julga com m u i t a s o r t e . . . n u n c a retirou a
própria c h a v e . . .
25-
E r a u m a m o r e n a linda, cabelos longos, e m o l d u r a n d o
o rosto harmonioso, p r o f u n d a m e n t e branco. Seus olhos
negros t i n h a m p e s t a n a s longas. Os lábios c a r n u d o s e
o nariz levemente afilado ccmpletavam-lhe a beleza.
Alta, porém, m a g r a , m u i t o m a g r a . A doença fizera seus
estragos n a q u e l a corpo que deveria t e r sido perfeito.
E r a bem jovem. Filha de sírios, n u t r i a aversão por
negros, preconceito que h e r d o u da família. Seu pai,
presidente de conhecido clube da Paulicéia, já fizera a t é
um escândalo pelos jornais, q u a n d o proibira a e n t r a d a
de pessoa de cor n u m a festa beneficíente do próprio
clube.
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Trajava maravilhoso "negligé" azul. N u n c a vira,
então, coisa igual. Eu me sentia extasiada.
Inês riu e p e r g u n t o u :
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das festas beneficentes e nos fins de s e m a n a a r r a n j a v a
sempre um local p a r a descansar com amigos, onde n u n -
ca faltavam os jogos. O pai e r a do tipo que fazia
questão de fornecer cheques p a r a as casas de caridade
e instituições sociais, c o n t a n t o que essas notícias fossem
publicadas n a s colunas sociais dos jornais e que a insti-
tuição lhe desse um recibo várias vezes superior à im-
p o r t â n c i a doada. É que desse modo o b t i n h a um benefício
pessoal j u n t o ao I m p o s t o de R e n d a . . .
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— Luís, estou perdida! Estou sendo devorada por
dentro! C h a m a s me q u e i m a m a saem pela boca em
forma de sangue! Luís, fiquei tuberculosa! Socorra-me!
Pelo a m o r de Deus, socorra-me!
A princípio Luís se espantou. Depois, m a i s calmo,
procurou consolá-la, n ã o a c r e d i t a n d o n a s suspeitas da
noiva:
— Tolinha, você a i n d a é m u i t o m o ç a p a r a se deses-
perar t a n t o . Vamos a t é o m e u q u a r t o . Vai repousar
um pouco e verá como tudo passa. Vamos.
— Luís, eu vou morrer! Sei que vou morrer!
O jovem n ã o respondeu. Enlaçando-a, fê-la cami-
n h a r em direção ao seu aposento. Ao mesmo tempo,
com olhar frio, observava o seu aspecto. Ela estava
pálida, m o s t r a n d o grandes olheiras, respiração ofegante.
Um suor e s t r a n h o porejava de sua testa.
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Inês a b r i u os olhos e o encarou, compreendendo o
que ele queria. Não se defendeu. P e r m i t i u que Luís,
devagarinho, lhe tirasse a combinação, deixando-a so-
m e n t e com as peças m a i s í n t i m a s .
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— Você a g o r a será m i n h a m u l h e r , q u e r i d a !
I n ê s n ã o respondia. Limitou-se, com os olhos
semicerrados, a sacudir d e v a g a r i n h o a cabeça, n u m
gesto de a b a n d o n o .
A c a m a era u m a c h a g a m o n s t r u o s a , de um ver-
m e l h o escuro, quase preto.
— Inês, eu a a m o d e s e s p e r a d a m e n t e . . . Quero q u e
seja a m i n h a esposa!
S u a voz era rouca, pastosa, t r e m u l a . Inclinou-se
e beijou-a. Percorreu com seus lábios m o l h a d o s o pes-
coço fino, os seios erectos, com bicos túmidos, róseos,
da menina-moça.
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O j o v e m empalideceu e replicou mais violento:
— Pai? Sei lá se o f i l h o é m e u ?
E l a v a c i l o u , r e c u a n d o e e n c o s t a n d o - s e à p o r t a do
enorme armário embutido do apartamento.
A resposta de L u í s d e m o n s t r o u h a v e r , no seu í n t i m o ,
intensa irritação:
A r e s p o s t a d e I n ê s f o i u m d e s a b a f o c h e i o d e ódio.
T i r o u a a l i a n ç a d o dedo e j o g o u - a d e s a b r i d a m e n t e n o
resto de Luís. N u n c a mais o v i u .
H o j e o s e u ódio aos h o m e n s é t ã o v i o l e n t o q u e se
f a z f á c i l , c o m o o b j e t i v o de c o n t a m i n a r todos os r a p a z e s
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q u e d e l a se a p r o x i m a m . É b o n i t a , j o v e m , e se e s f o r ç a
p a r a n ã o s e c u r a r . N ã o q u e r n e m saber dos p a i s :
— Eles me t r a n s f o r m a r a m na m u l h e r devassa em
que me c o n v e r t i , nos m e u s 23 anos de idade!
33
II
34
de cascalhos, que d e m a n d a ao edifício, divisei um vulto
q u e fazia sinal, solicitando " c a r o n a " . Parei o carro e
vi que era um preto alto, moço ainda, e que me pedia
confirmação sobre o endereço do Sanatório S. Pedro.
A princípio fiquei indecisa. Encarei-o mais de perto.
E s t a v a bem vestido. Notei algo de extraordinário nele:
irradiava simpatia. Apresentava olhos bondosos m a s
tristes, epiderme bem negra. S u a boca era formada
por traços delicados, quase idênticos ao contorno das
c r i a t u r a s b r a n c a s . Nela se desenhava um. rictus a m a r g o .
O h o m e m parecia, no íntimo, sofrer.
— Não...
— Atendente?. . . Enfermeiro?. . .
— Não... não... eu...
— O senhor é . . . é...
— E x a t a m e n t e , moça, sou o médico, o novo médico
que irá substituir, t e m p o r a r i a m e n t e , o doutor Walter.
— Médico?!!!
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Ele me interrompeu:
— Branco?
F i q u e i e m silêncio. E s t a v a r e a l m e n t e d e s a p o n t a d a .
P a r a m i m a q u i l o e r a u m episódio i n a u d i t o . N u n c a v i r á
um médico negro em sanatório de tuberculosas, prin-
cipalmente n u m hospital para milionárias. Isto iria
causar um rebuliço infernal. Já antevia os problemas
t e r r í v e i s q u e i r i a m ser c r i a d o s , dali a m i n u t o s . T e n t e i
r e m e d i a r a s i t u a ç ã o . M a s ele a p e n a s se l i m i t o u a i n d a -
g a r se no final da v e r e d a já se avistaria o sanatório.
Balancei a cabeça, em sinal a f i r m a t i v o . Insisti para
levá-lo. A g r a d e c e u - m e .
— Seu desapontamento t a m b é m me desconcertou,
senhorita. P r e f i r o a n d a r a pé. V o u m e d i t a n d o . A t é
c h e g a r a o edifício f o r m a r e i a l g u m p l a n o . Talvez o
melhor. T e n h o acertado mais do que errado, quando
p e n s o b a s t a n t e a n t e s d e t o m a r a decisão d e r r a d e i r a .
Desculpe-me, sim?
Afastou-se do m e u automóvel e seguiu em frente.
Demorei muito para dar partida no m e u carro.
F i q u e i a o l h a r o médico n e g r o , alto, elegantemente ves-
tido c o m u m terno moderno.
L i g u e i c m o t o r e passei p o r ele a t o d a a v e l o c i d a d e .
E s t a v a meio desnorteada.
Pelo espelhinho retrovisor vi que o médico n e g r o
p a r o u e f i c o u o l h a n d o o m e u a u t o m ó v e l , até o v e í c u l o
desaparecer n a p r i m e i r a c u r v a .
Na sua cabeça, decerto, ia um t u r b i l h ã o de pensa-
mentos tumultuosos, que se e n t r e c h o c a v a m . E s t a v a
v e r g a d o a o peso d e t e r r í v e l i n d e c i s ã o . O l h o u s e u r e l ó g i o .
E r a m quase q u a t r o h o r a s da tarde. F o i subindo a ve-
r e d a cercada de pinheirais e pereiras. P a r o u de súbito.
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Divisara dois meninos, pretos como ele, jogando bolinhas
de gude. Deixou sua m a l e t a no c h a o e aproximou-se
das crianças. C u m p r i m e n t o u - a s com um leve aceno de
mãos. Agachou-se e ficou a olhar o jogo. Seus olhos
p a r e c i a m perdidos. Pediu u m a das bolinhas. Segurou-a,
como faziam os m e n i n o s , t e n t a n d o a t i n g i r um dos bu-
racos a b e r t o s na terra. Viu a bolinha rolar. Ela foi
crescendo a n t e seus olhos e, no seu íntimo, ele reviu
o passado. De r e p e n t e foi t r a n s p o r t a d o p a r a a s u a
infância. Encontrou-se no t e r r e n o baldio, vizinho ao
casebre onde morava, n a q u e l a favela horrível!
37
n o m e : ficou sendo m e s m o Sebastião: Este dia está m a r -
cado p a r a sempre na m e m ó r i a de D. Malvina, sua m ã e .
Dito, seu esposo, foi assassinado, j u s t a m e n t e no dia do
n a s c i m e n t o de Tião. T i n h a ido à venda p a r a c o m p r a r
bebidas e festejar o acontecimento. Deparou u m a briga.
Foi separar os contendores e levou u m a facada na
barriga. Morreu a n t e s de chegar ao hospital.
38
m ã e e ela n ã o g o s t a q u e eu demore — explicou o
pretinho.
— B e m , ela j o g a b a r a l h o , p e n t e i a o cabelo, p i n t a
a s u n h a s , c o m p r a p r e s e n t e p r á m i m , f a z m u i t a coisa.
— E s e u p a i , ele t r a b a i a ?
— Papai é industrial.
— M e u pai é m o r r i d u . . . qui é industrial?
— N ã o sei. Papai tem fábrica. É fábrica muito
g r a n d e . E u j á estive lá.
F o i q u a n d o s u r g i u a b a b á d e C h i q u i n h o e foi u m
alvoroço.
Um preto no j a r d i m , conversando com o filho da
p a t r o a , era algo que d a v a m e s m o p a r a criar a m a i o r
b a l b ú r d i a possível. T i ã o sentiu-se em perigo e saiu
c o r r e n d o . C h i q u i n h o c o r r e u a t r á s dele.
— Volte, Tião! Volte! Nós somos amigos, volte!
C h i q u i n h o a v a n ç o u sobre o j a r d i n e i r o q u e t e n t a v a
a l c a n ç a r T i ã o . E s t e c o n s e g u i u p a s s a r pelo p o r t ã o e
desaparecer na r u a asfaltada.
M a s a a m i z a d e dos dois f i c o u selada p a r a s e m p r e .
T o d a s a s s e m a n a s eles s e v i a m . Na favela já sabiam
que T i ã o t i n h a u m amigo rico.
39
U m d i a T i ã o v o l t o u r a d i a n t e . F o r a c o n v i d a d o pelo
C h i q u i n h o p a r a i r à s u a festa d e a n i v e r s á r i o , u m a
r e u n i ã o c o m m u i t o bolo e doces à v o n t a d e .
E l e e s p e r a v a o s á b a d o c o m o se fosse o m a i o r dia
d a s u a v i d a . N a v é s p e r a desse d i a , à s d u a s h o r a s d a
m a d r u g a d a , T i ã o acordou assustado e correu para a sua
mãe:
D. M a l v i n a o l h o u p a r a o relógio impressionada,
pensando ter perdido m e s m o a hora. Z a n g o u - s e :
Tião deitou-se s e g u r a n d o o r e l ó g i o . E l e s ó p e n s a v a
n a festa, m a s n ã o sabia q u e s u a m ã e s e n t i a p r o f u n d a s
dores n o peito o q u e n ã o t i n h a d i n h e i r o p a r a i r a o
médico. A l g o a q u e i m a v a p o r d e n t r o , s e m q u e ela
soubesse o q u e fosse.
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— Mãe, vesti eu. O ponteiro g r a n d i já c h e g o lá
oncu a s e n h o r a f a l o q u e t a v a n a h o r a d e i r n a f e s t a .
— A p o s t u qui o C h i q u i n h o v a i gosta.
E m b r u l h o u - a s . a princípio devagar, n u m oedaço de
jornal velho. Depois meditou, enquanto r e s m u n g a v a :
— N u m faiz m a l , t a m b é m eu vô come u m a purção
di d o c i . . .
Desceu correndo o m o r r o , na maior velocidade,
tropeçando nas pedras. E s t a v a atrasado.
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A casa de C h i q u i n h o achava-se toda o r n a m e n t a d a .
Os j a r d i n s o s t e n t a v a m a r a m e s esticados d e á r v o r e e m
á r v o r e e neles se viam c e n t e n a s de bolas de gás pen-
d u r a d a s . No salão de festas, a mesa farta, comprida,
coberta de doces. Ao centro, o g r a n d e bolo de ani-
versário. Oito velinhas o enfeitavam. T i n h a formato
de moinho. Os salgadinhos e doces estavam espalhados
c o m a r t e por toda a mesa j u n c a d a de flores. Havia
a l g a z a r r a , provocada por um sem n ú m e r o de crianças
c o r r e n d o por todos os cantos. De i n s t a n t e , a i n s t a n t e ,
a u t o m ó v e i s de classe a t r a v e s s a v a m o portão, t r a z e n d o
p a r e n t e s e amigos da família de Chiquinho.
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ainda entrar, m a s o porteiro quase lhe bateu. Fugiu
p a r a l o n g e e foi-se a p r o x i m a n d o l e n t a m e n t e . P o s t o u - s e
na grade de ferro. De repente, avistou C h i q u i n h o perto
d a j a n e l a d o g r a n d e salão.
N a q u e l e i n s t a n t e , as d e z e n a s de c r i a n ç a s e a d u l t o s
c a n t a v a m a letra do " P a r a b é n s " . A voz do T i ã o não
c h e g o u até a j a n e l a . F i c o u e n c o s t a d o n a g r a d e até
q u a s e dez h o r a s d a n o i t e .
Só q u a n d o c h e g o u ao pé do m o r r o é q u e c o m e ç o u a
correr, g r i t a n d o , soluçando alto, c h a m a n d o a m ã e :
— Mãe! Mãe! N u m d e i x a r a m e u e n t r a n a casa
du Chiquinho!
M a s D . M a l v i n a n u n c a i r i a saber d o infortúnio de
seu f i l h i n h o . E l a e s t a v a m o r t a e m u i t a gente aperta-
va-se dentro do único c o m p a r t i m e n t o do casebre. Um
e n f a r t e v i t i m a r a - a , l o g o após a s a í d a do T i ã o para a
festa do m e n i n o rico.
Q u a t r o c í r i o s i l u m i n a v a m o i n t e r i o r d o tôsco b a r r a c o .
F o i a ú l t i m a l e m b r a n ç a que T i ã o teve de sua mãe.
D u r a n t e a l g u n s dias ele f i c o u n u m casebre v i z i n h o .
Q u e r i a m providenciar o internamento do menino no
J u i z a d o de Menores.
Certa manhã Tião saiu em direção à casa de
Chiquinho.
43
Foi encontrá-lo no m e s m o j a r d i m , b r i n c a n d o com
enorme bola de b o r r a c h a .
Ao vê-lo, C h i q u i n h o correu ao seu encontro. Re-
criminou-o porque n ã o fora à festa do seu aniversário.
— G a n h e i u m a porção de presentes e até um na-
vio g r a n d e , que a n d a na á g u a como se fosse de verdade.
Eu a i n d a vou lhe m o s t r a r .
Tião chorava:
— M a m ã e m o r r e u , Chiquinho. Eles q u e r e m mi
leva prô Juiz. N u m deixa Chiquinho. Deixa eu m o r á
com ocê, Chiquinho.
Havia t e r n u r a nos olhos de C h i q u i n h o :
— Tião, a g o r a n ã o dá p r á você e n t r a r . Vem de
noite, bem t a r d e , e eu escondo você aqui dentro.
Na h o r a do j a n t a r , Chiquinho já estava profunda-
m e n t e nervoso. Queria, a todo o i n s t a n t e , saber se
sua m ã e ia sair. Ela chegou a rir da insistência, sem,
contudo, a t i n a r com o que o m e n i n o desejava.
Às nove h o r a s da noite a pajem foi levá-lo à cama.
Ele pediu-lhe p a r a a p a g a r a luz, pois iria d o r m i r logo.
Não queria saber de e s t ó r i a s . . .
Só q u a n d o o silêncio cobriu toda a residência é
que C h i q u i n h o se levantou e foi, cautelosamente, até
o jardim. Lá estava Tião, com s u a t r o u x i n h a de roupas,
bem escondido entre as árvores.
F o r a m diretos p a r a o interior do palacete. Passaram,
a n t e s pela cozinha, onde Tião m a t o u a fome que
castigava seu estômago.
Só havia um l u g a r onde Tião podia ficar sem ser
descoberto: o porão. E foi p a r a onde Chiquinho o levou,
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r e c o m e n d a n d o - l h e q u e n ã o saísse d a l i a t é ele a r r a n j a r
u m a s o l u ç ã o p a r a o p r o b l e m a . T o d o s o s dias l h e l e v a r i a
comida.
O s dias i a m p a s s a n d o . C a d a v e z t o r n a v a - s e m a i s
d i f í c i l , p a r a o m e n i n o , a t i n g i r o p o r ã o c o m o p r a t o de
comida. T i ã o , por sua vez, já estava enjoado de ficar
tranficado naquele antro. T i n h a vontade de brincar nos
jardins. S e m t o m a r b a n h o , p o r v á r i o s dias, s e n t i a
terrível coceira no corpo. Sua r o u p i n h a estava m u i t a
suja. O p e n i c o c h e i o d e coco e r a o u t r o g r a n d e p r o -
blema. N e m todos o s dias C h i q u i n h o c o n s e g u i a a t r a -
v e s s a r a casa a t é o b a n h e i r o p a r a l i m p á - l o . O r e m é d i o
era ficar sentindo aquele cheiro danado. E r a o que mais
enjoava a Tião.
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tou-se, rápida, e e s c a n c a r o u a porta. T i ã o ficou parali-
sado, c o m os olhos esbugalhados. Quis falar, mas a
balbúrdia estava feita. A o s g r i t o s d a m u l h e r todos o s
criados a c u d i r a m . F o i u m corre-corre que s ó t e r m i n o u
c o m a chegada do comissário de menores, que l e v o u
T i ã o sob i n t e n s o c h o r o , g r i t a n d o p o r C h i q u i n h o .
— M e u f i l h o , p r e t o n ã o p r e s t a . T o d o s eles c r e s c e m
ladrões, m a t a m gente. E s q u e ç a esse m o l e q u e n o j e n t o .
N u n c a p e r m i t i r i a q u e v o c ê crescesse a o l a d o d e u m n e -
grinho. É u m a raça maldita. Papai do C é u não abençoa
os pretos, m e u filho.
O d e s t i n o , c o n t u d o , c o n t r a r i o u a v o n t a d e da m ã e
de C h i q u i n h o . O menino ficou dominado profunda-
m e n t e por u m a nostalgia que lhe t i r a v a , inclusive, a
vontade de se alimentar. Médicos f o r a m chamados.
Mas Chiquinho só queria ver Tião.
Os c o n s e l h o s m é d i c o s d o b r a r a m e a a d o ç ã o , após
u m a série d e d i f i c u l d a d e s , f o i f e i t a , m a s f i c o u t o t a l -
46
m e n t e proibida a e n t r a d a de Tião em q u a l q u e r depen-
dência do palacete. Moraria no porão, onde, inclusive,
teria que se a l i m e n t a r .
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s e r v i ç o s n o S a n a t ó r i o S . P e d r o , até a a d m i s s ã o d e f i n i t i v a
de um facultativo. Seria difícil e n c o n t r a r u m médico,
m e s m o c o m a oferta de polpudo ordenado, que se s u -
jeitasse a m o r a r n o s a n a t ó r i o e t r a n s f o r m á - l o n o s e u l a r .
E s s a dificuldade fizera c o m que o G o v e r n o corresse em
socorro do sanatório de milionárias tuberculosas, porque
o único médico existente no Pronto-Socorro não d a v a
conta do serviço.
T i ã o — h o j e d o u t o r S e b a s t i ã o de O l i v e i r a — v o l t o u
à realidade. Aquelas m i n ú s c u l a s bolinhas de v i d r o ,
m o m e n t a n e a m e n t e , o fizera recordar-se de um passado
m a r c a d o p o r h u m i l h a ç õ e s e dores i n d e l é v e i s . A c a r i c i o u
l e v e m e n t e a c a b e ç a dos dois n e g r i n h o s q u e a i n d a b r i n -
c a v a m c o m as bolinhas de gude e r u m o u , decidido, p a r a
o m a j e s t o s o edifício d o S a n a t ó r i o S . P e d r o . Ia digla-
d i a r - s e , ele o sabia, c o m o q u e h a v i a de m a i s r e p r e s e n -
t a t i v o n a s elites b r a s i l e i r a s : a s f i l h a s dos m i l i o n á r i o s q u e
h a v i a m , m e r c ê de suas vidas repletas de noitadas,
a d q u i r i d o a d e v a s t a d o r a peste b r a n c a .
48
de moças o esperava. T i n h a m às m ã o s r a m o s de flores
d e p e r e i r a . A l g u m a s e s t a v a m v e s t i d a s c o m o s e estivesse
p r o n t a s p a r a i r e m a u m a f e s t a . A m a i o r i a , pelo m e n o s ,
era constituída de moças bonitas.
A M a d r e t a m b é m e s t a v a n a escada.
H o u v e decepção à c h e g a d a d o h o m e m p r e t o .
— E s t a s f l o r e s e r a m d e s t i n a d a s a um h o m e m , a
um médico de verdade! T o m e . preto fedido! — E, ato
c o n t í n u o , a i n t e r n a d a a t i r o u - a s n o r o s t o d o dr. S e b a s t i ã o .
F o i i m i t a d a pelas d e m a i s m o ç a s q u e , n u m f r e n e s i
histério, inesperado, ao m e s m o tempo que v o m i t a v a m
impropérios em cima de impropérios, a t i r a v a m os ramos
de flores s o b r e o m é d i c o n e g r o .
E l e n ã o disse u m a p a l a v r a . N ã o f e z u m gesto d e
defesa. Olhava-as, estarrecido. V i a - s e o leve t r e m o r
d e seus lábios. H o u v e r e b u l i ç o , a M a d r e t e n t a n d o i m -
p e d i r o d e s t e m p e r o das m o ç a s . Voltaram-se para o
p r é d i o e e n t r a r a m aos tropeções. U m a , porém, ficou:
e r a u m a das m a i s l i n d a s i n t e r n a d a s , " m i s s G u a r u j á " .
O dr. Sebastião fitou-a e só teve t e m p o de balbuciar:
— Diana...!
Sim, era Diana, a i r m ã de Chiquinho, que ali
estava!
Diana, a m e n i n a que o odiou d u r a n t e quase toda
a sua infância e exigiu, q u a n d o moça, a expulsão de
Tião de sua casa. Ali estava, enferma, e seria s u a
paciente! Diana, s u a i r m ã de criação!
50
— Deus é t e s t e m u n h a de q u a n t o reprovo o que
aqui ocorreu, doutor. T e n t a r e i facilitar, o m á x i m o possí-
vel, a sua tarefa e sua presença neste sanatório —
respondeu, quase n u m m u r m ú r i o .
51
em que sua f a m í l i a se c h a f u r d a . V o c ê , D i a n a , pertence
a essa elite p u s t u l e n t a , f a l i d a , q u e v i v e n u m f a u s t o
a v i l t a n t e , e s p e z i n h a n d o t o d o s q u e estão e m s i t u a ç ã o
financeira inferior. E s q u e c e s e u tio, a q u e l e d e p u t a d o
f e d e r a l s í r i o - l i b a n ê s , q u e p a r a t e n t a r c o n s e g u i r ser
e m b a i x a d o r n o L í b a n o f o i o f e r e c e r s u a d i s t i n t a e bela
esposa a o p r e s i d e n t e d a R e p ú b l i c a ? Não tenho medo
de suas ameaças, n e m de s u a f a m í l i a e, p a r t i c u l a r m e n t e ,
d e s e u tio, q u e n u n c a m e f a r á n a d a . . . O negro que
a í e s t á é u m m é d i c o . V e n c e u pelos seus m é r i t o s . T e m
um passado do qual você j a m a i s poderá se igualar, n e m
v o c ê n e m essas p r o s t i t u t a z i n h a s d a sociedade, q u e n ã o
v e n d e m o c o r p o m a s p r a t i c a m atos m a i s abjetos q u e
a mais sórdita rameira! Sociedade que i n s t i t u i u o
a m a n t e como n o r m a , como c o n d u t a oficial da vida!
Sociedades c u j o s m e m b r o s f r e q ü e n t a m as boates e c l u b e s
n o t u r n o s a o l a d o d e esposas e a m a n t e s , n u m t r i o i n f a -
m a n t e , n u m a exibição desputadora de chifres como se
fossem u m o r n a m e n t o necessário, imprescindível para
se t e r l i v r e t r â n s i t o n e s s a sociedade p u r u l e n t a ! O fato
j á é p ú b l i c o , D i a n a . V o c ê é " m i s s G u a r u j á " , s i m , pois
é miss da t e r r a onde, segundo o cronista F l á v i o P o r t o ,
o famoso " D o n a Y a Y á " , se desenvolve a mais vergonhosa
das i n d ú s t r i a s : a d o " c o r n o l u x " ! " C o r n o l u x " ! E n t e n d e u .
Diana? "Cornolux"! E isto ele e s c r e v e u e m l e t r a d e
i m p r e n s a nos jornais p a r a os quais t r a b a l h a ! Você,
Diana, não é "miss G u a r u j á " , é "miss C o r n o " ! Veja
a g o r a a diferença que há entre o h o m e m negro, p o r é m
decente, probo, h u m a n o , que você acaba de espezinhar,
e a sua personalidade m á , falsa, despudorada, e m b o r a
coberta pela tez b r a n c a . . .
52
diálogo. Encarei-as a c i n t o s a m e n t e , como se todas fossem
culpadas. Virei as costas e entrei no m e u a p a r t a m e n t o .
A p o r t a de m e u s aposentos a i n d a n ã o se fechara,
permitindo-me ouvir a breve e a m e a ç a d o r a explosão de
D i a n a que, de dedo em riste, vociferou:
— J u r o por t u d o que seja sagrado neste m u n d o
que ela e esse negro pestilento me p a g a r ã o bem caro
esses m i n u t o s a m a r g o s que acabo de passar!
53
— O q u e d i z de t u d o isso a n o s s a M a d r e ? — p e r -
g u n t e i à B e l i n h a , que não t i n h a sentimentos racistas.
— Sei l á . C o n f e s s o q u e n ã o m e a g r a d a m u i t o ser
e x a m i n a d a p o r u m n e g r o . M a s s e n ã o h á o u t r o jeito,
que me e x a m i n e , que me ausculte. Q u e r o é ficar c u r a d a .
N ã o t e n h o essas t e i m a s r i d í c u l a s . Mas parece-me que
a M a d r e está e m a p u r o s . N ã o sabe q u e decisão t o m a r .
H á m o ç a s q u e estão p r e c i s a n d o q u a s e q u e d i a r i a m e n t e
de assistência médico. S o u b e q u e ela j á a p e l o u p a r a
o médico do Pronto-Socorro do Estado, m a n d o u chamá-lo.
Revoltei-me:
— E ela p o d e r i a e n f r e n t a r as nossas f a m í l i a s ?
C a l c u l e o e s c â n d a l o q u e isto v a i p r o d u z i r q u a n d o nossos
pais s o u b e r e m q u e e s t a m o s s e n d o e x a m i n a d a s p o r u m
negro! O s a n a t ó r i o v a i se e s v a z i a r da n o i t e p a r a o
d i a . A M a d r e sabe disso. E l a n ã o q u e r a b a l a r a t r a -
dição de S. P e d r o e q u a n d o for interpelada, v a i precisar
p r o v a r q u e está t o m a n d o " e n é r g i c a s " p r o v i d ê n c i a s p a r a
a f a s t a r o d o u t o r n e g r o d o nosso c o n v í v i o .
Q u a n t o a o m é d i c o , este a l h e o u - s e , v o l u n t a r i a m e n t e ,
das e n f e r m a s das elites. P a s s o u a d e d i c a r - s e , c o m e s m e r o ,
à s i n d i g e n t e s , q u e e m n ú m e r o d e sessenta n ã o c r i a r a m
muitos problemas. M a s , m e s m o e n t r e elas, e x i s t i a m
a l g u m a s que d e m o n s t r a v a m nojo, sentimento de repulsa.
Solidarizaram-se c o m as doentes ricas que ao t o m a r e m
conhecimento, passaram a freqüentar mais assidua-
m e n t e o s porões, d e m o n s t r a n d o u m a f a l s a a m i z a d e
à q u e l a s q u e t a m b é m se n e g a v a m a ser a t e n d i d a s p e l o
médico n e g r o . D i a n a , por seu t u r n o , fez o possível p a r a
que as sessenta indigentes cerrassem fileiras c o m as
54
duzentas enfermas milionárias. Não logrou êxito, mas
c o n s e g u i u m u i t a adesão.
— D i s c o r d o , m i n h a a m i g a . F e l i z m e n t e isto q u e a í
e s t á r e p r e s e n t a a m i n o r i a das elites. A g r a n d e p a r t e é
composta de c r i a t u r a s de caráter. Pode estar certa de
q u e a m a i o r i a das m o ç a s deste s a n a t ó r i o n ã o c o m p a r -
t i l h a das a m b i ç õ e s e das posições r a d i c a i s de a l g u m a s
p o u c a s j o v e n s , c a p i t a n e a d a s pela m i n h a i r m ã d e c r i a ç ã o ,
que é D i a n a . Estão influenciadas. Os bons, Adelaide,
a i n d a s o b r e p u j a m , e m n ú m e r o e ações, o s m a u s . Q u e
seria do m u n d o se apenas existissem criaturas insensatas
como Diana?
— C o m o e x p l i c a , e n t ã o , essa s o l i d a r i e d a d e q u e o
i m p e d i u d e e x a m i n a r u m a s ó d o e n t e dos q u a r t o s e
apartamentos?
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o nosso íntimo. É e v i d e n t e q u e no seio das classes
m a i s f a v o r e c i d a s esse falso p u d o r é m a i s a c e n t u a d o ,
m a s n e m p o r isso d e i x a d e e x i s t i r t a m b é m n a s classes
necessitadas. V e j a o s e x e m p l o s q u e pode c o l h e r e m
m e i o às i n d i g e n t e s . C e r c a de 20 m o ç a s , das m a i s p o b r e s ,
s o l i d a r i z a r a m - s e c o m a s colegas r i c a s . A s o u t r a s 40,
c o n t u d o , aliaram-se a m i m e t e n t a m convencer as demais
d o e r r o q u e c o m e t e m . A l g u m a s c e d e r ã o . O u t r a s per-
m a n e c e r ã o n a s posições i n i c i a i s , m a i s p o r a m b i ç ã o .
P e n s a m que terão a l g u m a r e c o m p e n s a . . . Muito pou-
cas a d e r i r a m p o r c o n v i c ç ã o . . . M i n h a cara Adelaide,
v o c ê p r e c i s a c o n h e c e r m e l h o r o ser h u m a n o .
E , nessa m e s m a n o i t e , t e v e i n í c i o o g r a n d e p e s a d e l o
que iria t o r n a r insuportável a v i d a do dr. Sebastião
dentro do Sanatório S. Pedro, em Campos do Jordão.
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III
Na saleta de p l a n t ã o do S a n a t ó r i o , a c a m p a i n h a
tocou repetidas vezes, revelando o nervosismo de q u e m
c h a m a v a . O q u a d r o i n d i c a v a q u e no a p a r t a m e n t o n.° 2,
da A l a " B " , a l g u é m pedia auxílio. A enfermeira olhou
o r e l ó g i o . E r a m d u a s h o r a s d a m a n h ã . S o n o l e n t a , le-
vantou-se lentamente para atender ao chamado.
— Se n ã o for suco de l a r a n j a , é um fingimento-
qualquer, t e n h o certeza, — foi r e s m u n g a n d o , e n q u a n t o
c a m i n h a v a pelo l o n g o c o r r e d o r a t a p e t a d o .
A e n f e r m a era Diana.
A e n f e r m e i r a , s u r p r e s a , a r r e g a l o u os o l h o s :
— O médico negro?
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tei-me e, a despeito do frio que caía sobre o Sanatório,
a b r i a p o r t a de vidro que dava p a r a o terraço. Bem
a g a s a l h a d a , pulei o pequeno m u r o que separava a va-
r a n d a de m e u a p a r t a m e n t o do de Diana. Espreitei pela
vidraça. C h e g a r a a tempo de ouvir a e s t r a n h a solicitação.
Meu coração pulsava rápido. Estaria r e a l m e n t e
passando m a l a pretensiosa Diana? Meus p e n s a m e n t o s
foram interrompidos pela e n t r a d a do doutor Sebastião
no a p a r t a m e n t o da jovem.
Ele ficou encostado na p o r t a que se fechará a t r á s
de si. Seus lábios, um pouco trêmulos, d e m o n s t r a v a m
um nervosismo que sua voz em vão t e n t a v a esconder.
— Às ordens, senhorita — disse, então, respeitosa-
mente.
Suas m ã o s s e g u r a v a m , inquietas, o estetoscópio
p e n d u r a d o de seu pescoço. Os olhos e s t a v a m fixos nos
d e Diana.
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f o r m a s . O s seios e m p i n a d o s , a r f a n t e s , q u a s e à m o s t r a ,
n u m decote a t r e v i d o , e r a m u m a t e n t a ç ã o .
— A d o r é a q u i , r e f l e t e a q u i — disse ela, c o l o c a n d o a
p o n t a do s e u dedo i n d i c a d o r sobre o seio d i r e i t o , ao
m e s m o t e m p o que o l h a v a o médico c o m certo desdém,
c o n s e r v a n d o u m s o r r i s o m a r o t o n o c a n t o dos lábios.
O t r e m e r das m ã o s do dr. S e b a s t i ã o a c e n t u o u - s e
visivelmente. Na sua testa l a r g a o suor afluía, demons-
trando a forte emotividade que o acometera.
— A c h o m e l h o r a senhorita cobrir-se. S e u estado
n ã o d e v e ser b o m . O o r g a n i s m o pode e s t a r p r e d i s p o s t o
a u m a p n e u m o n i a — t a r t a m u d e o u o dr. Sebastião,
c o m o que buscando u m a saída p a r a a situação em que,
d e r e p e n t e se, v i a e n v o l v i d o .
D i a n a fingiu não ouvir a ponderação. Suspirou
demonstrando contrariedade.
O estetoscópio f o i colocado sobre o seio p a l p i t a n t e
d a bela e n f e r m a . S u a m ã o s e g u r o u o p u l s o d o m é d i c o
e o apertou. Os d e n t e s de D i a n a m o r d i s c a r a m seus
p r ó p r i o s lábios, c o m p r i m i n d o - o s c o m o se estivesse
possessa. L e v a n t o u u m a p e r n a e o "negligé" a b r i u - s e ,
exibindo u m a coxa amorenada, roliça, tentadora.
O dr. S e b a s t i ã o r e c o l h e u - s e , r á p i d o , e se a f a s t o u ,
espantado. D i a n a sentou-se na c a m a e apoiada nos
b r a ç o s esticados, f i c o u s e m i - i n c l i n a d a , c o m u m s o r r i s o
c í n i c o a f l o r a n d o aos lábios. O s olhos b r i l h a n t e s f i t a -
v a m - n o i n t e r r o g a t i v a m e n t e . O s seios e s t a v a m quase à
mostra. C o n t i n u o u com a perna encolhida, deixando,
d e p r o p ó s i t o , seu v e n t r e a p a r e c e r .
— Desde que você c h e g o u aqui, t e n h o me m o r t i -
f i c a d o p a r a e n c o n t r a r u m a j u s t i f i c a t i v a p a r a esse ó d i o
que me corrói as e n t r a n h a s . R e l e m b r o , de segundo a
59
segundo, a m i n h a infância. C h e g u e i à c o n c l u s ã o de
que o a m a v a . Há mais de u m a semana v e n h o lutando
c o n t r a o a b s u r d o desse m e u r a c i o c i n i o . Hoje, final-
m e n t e , d e d u z i q u e n ã o é a m o r : é desejo! Sim, Tião,
eu o desejo c a r n a l m e n t e , t a n t o q u a n t o o odeio p o r ser
n e g r o ! E , v o c ê T i ã o , v a i ser m e u , i n t e i r i n h o m e u , h o j e ,
aqui, neste a p a r t a m e n t o , nesta c a m a !
O dr. S e b a s t i ã o r e c u o u a t ô n i t o :
— M e n i n a , você enlouqueceu? O q u e está q u e -
rendo?
D i a n a a u m e n t o u o seu sorriso despudorado, p e r t u r -
b a d o r , e f i n a l m e n t e disse a l t o :
— T i ã o , eu sei q u e a v o c ê é d i f í c i l a c r e d i t a r . M a s
concluí que é u m a experiência à qual me devo submeter.
T a l v e z o ó d i o , o asco q u e s e m p r e d e m o n s t r e i n u t r i r p o r
v o c ê , t e r m i n e m c o m esse a c o n t e c i m e n t o . O u t r o d i a u m a
v a q u i n h a , que se hospeda aqui ao lado, p r o c u r o u definir
a sociedade em q u e v i v o c o m o a q u e e n d e u s a o a m a n t e
como um elemento necessário, de absoluta i m p o r t â n c i a ,
p a r a todas as m u l h e r e s q u e d e s e j a m p e r t e n c e r à elite.
A m a n h ã s e r e i esposa d e a l g u é m . T e r e i , assim, m e u
m a r i d o , e l o g o p r e c i s a r e i do a d o r n o . . . p o r q u e já n ã o
posso a d q u i r i r , a g o r a , o m e u a m a n t e ? Será mais um
a r g u m e n t o p a r a ela, a í d o l a d o , n o s c o m b a t e r , q u a n d o
s o u b e r desse f a t o . E l a l o g o i r i a c o m e n t a r : t a m b é m a s
n o i v a s t r a e m seus n o i v o s e t ê m seus " a m a n t e z i n h o s " .
E n o m e u caso o p r a z e r d a q u e l a c a d e l a seria t o d o
especial, p o r q u e e u t e r i a c o m o a m a n t e u m n e g r o . . .
O dr. Sebastião l e v o u s u a m ã o , n e r v o s a m e n t e , à
garganta. Um calor lhe q u e i m a v a todo por d e n t r o e
um gosto acre assomou à s u a boca. O suor a u m e n t o u
bastante em seu rosto. Sentia-se que l u t a v a c o n t r a o
desejo q u e j á o a t o r m e n t a v a d e l i r a n t e m e n t e .
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D i a n a , que fizera u m a pequena pausa p a r a ironizar,
com olhar buliçoso, o pobre médico, c o n t i n u o u , c a l m a ,
indiferente, ao estado do facultativo preto:
— Venha, Tião. . .
— N ã o . . . N ã o . . . D i a n a . . . nos v a m o s . . . v a m o s
fazer u m a loucura que talvez n u n c a mais t e n h a con-
s e r t o .. .
— Eu o q u e r o , T i ã o , n e m . q u e seja a ú l t i m a coisa
que faça na v i d a !
H o u v e u m p r i n c í p i o d e l u t a e n t r e o s dois. O mé-
dico, mais assustado ainda, a p e r t o u os pulsos de D i a n a
e, c o m a m ã o direita, deu-lhe ruidosa bofetada.
Chorando, c o n v u l s i v a m e n t e , ela a t i r o u - s e sobre a
cama:
61
e saiu apressado do a p a r t a m e n t o . C o m um lenço as
m à o s e n x u g a v a n e r v o s a m e n t e o pescoço m o l h a d o d e
suor. Seus pensamentos e s t a v a m de tal modo t o r t u r a n d o
sua cabeça que n ã o sentiu que várias portas, à sua
passagem, se f e c h a v a m devagarinho.
N o t e r r a ç o m a l m e p o d i a m a n t e r e m pé. U m t r e m o r
e s t r a n h o t o m a r a c o n t a d e t o d o o m e u ser. N ã o p o d i a
c o m p r e e n d e r a q u i l o a q u e a c a b a r a d e assistir. A l g o a l i
estava errado. Lentamente retornei ao m e u aparta-
m e n t o e d u r a n t e m u i t o tempo fiquei c o m os olhos
abertos, recostada e m m i n h a c a m a , buscando u m a res-
posta p a r a a interrogação que m a r t e l a v a m i n h a cabeça.
* * *
62
m a r a café no quarto. A leitura seria a f u g a ideal p a r a
o estado de a l m a em que me e n c o n t r a v a .
M i n h a solidão n ã o m e a c o m p a n h o u m u i t o t e m p o .
A f i g u r a de I n ê s o c u p a v a t o d a a p o r t a de e n t r a d a
do meu apartamento.
V e l h a a m i g a , de certa f o r m a , a recebi c o m alegria.
E foi n e l a q u e e x t r a v a s e i m e u d e s a p o n t a m e n t o pelo q u e
assistira na véspera. C o n t e i - l h e t u d o , c o m todos o s
pormenores que a m i n h a m e m ó r i a permitiu. Precisava
desse d i á l o g o . Q u e r i a saber a s c o n c l u s õ e s q u e I n ê s t e r i a
ante o estranho sucedido pela m a d r u g a d a no Sanatório
S. P e d r o .
63
comigo. Os acontecimentos que m a r c a r a m a c h e g a d a
ao S a n a t ó r i o do doutor Sebastião nos t r a n s f o r m a r a m
definitivamente em inimigas irreconciliáveis.
O caso Diana-Dr. Sebastião estava criado. Só o
f u t u r o iria d e m o n s t r a r o que essa aliança produziria
na vida do Sanatório.
De u m a coisa eu estava certa: daquele dia em
d i a n t e D i a n a seria alvo da m a i s indiscreta d a s espio-
n a g e n s , d a p a r t e d a maioria das moças i n t e r n a d a s n o
Sanatório S. Pedro.
Após o almoço resolvi visitar as indigentes. Havia
a l g u m tempo, t r a v a r a amizade com u m a d a s enfermas
pobres e, aos poucos fui conhecendo s u a história revol-
t a n t e . Desse dia em d i a n t e passei a visitá-la assidua-
m e n t e , p r o c u r a n d o dar-lhe o conforto moral de que
necessitava.
A n a Maria era o seu nome. T i n h a traços belos.
Seus cabelos, bem negros, e r a m compridos, sedosos. Os
olhos, grandes, revelavam a m a r g u r a , decepção. Não
r a r a s vezes, lampejos de ódio m a l conseguiam esconder
a revolta de que seu í n t i m o estava t o m a d o . Inegavel-
m e n t e Ana Maria fora, a n t e s de a tuberculose destruir-lhe
a saúde, u m a jovem a t r a e n t e . G a n h a r a a terrível
moléstia n a prostituição.
Passava h o r a s conversando com Ana Maria. Às
vezes n ã o falávamos. P e r m a n e c í a m o s com o o l h a r per-
dido, a b a t i d a s pelos p e n s a m e n t o s que vez por o u t r a nos
envolviam.
Naquela t a r d e , ali, s e n t a d a na c a m a , ao lado de
A n i n h a , eu, m e n t a l m e n t e , revivia todos os lances de s u a
vida passada, que colimaram na tuberculose e na sua
i n t e r n a ç ã o , como indigente, nos porões do Sanatório
S. Pedro.
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A n i n h a n u n c a p r e s t a r a atenção aos seios que
possuía, volumosos, rijos, p a r a a sua c i n t u r a delgada,
aos seus q u a d r i s largos. Foi preciso um t e m p o r a l fus-
tigador que a pegou no meio de u m a corrida p a r a a
casa da fazenda. Só assim percebeu que era u m a
m u l h e r já feita, em plena posse dos seus a t r i b u t o s físicos,
que produzia apetites nos homens.
— V e n h a cá, m e n i n a .
Ana Maria aproximou-se, rindo, m a s respeitosa.
— N u n c a t i n h a n o t a d o como você é bonita. E
como já está moça! Quer ir p a r a São Paulo? Posso
lhe conseguir um bom e m p r e g o . .
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confiança da jovem. Ardilosamente foi criando, em s u a
cabecinha i n g ê n u a , os desejos miríficos da cidade-grande.
O abstáculo sempre crescente, criado pela m ã e de Ana
Maria, impedia, contudo, que o "seo" Tòzinho concre-
tizasse os sonhos que acalentava em relação à moça.
N u m a sexta-feira o p a t r ã o se despediu dos empre-
gados. Ia r e t o r n a r a São Paulo e todos viram seu carro
de luxo desaparecer na curva da e s t r a d a de t e r r a batida.
Tudo, porém, fazia p a r t e de um plano a s t u t o , conca-
t e n a d o por Tòzinho, em conluio com a própria Ana
Maria: u m a fuga da jovem seria simulada e assim ele
a levaria p a r a São Paulo. Q u a n d o sua m ã e buscasse
o auxílio do p a t r ã o , este prometeria logo localizá-la e,
assim, iria levando a velha senhora, até que ela m e s m a
desistisse da busca p a r a localizar a filha f u j o n a . . .
66
Tòzinho a deixou n a q u i l o que ele c h a m a v a "chá-
c a r a " , aos cuidados de u m a e m p r e g a d a de pouca idade,
m a s que se m o s t r a v a atenciosa ao extremo.
Ana M a r i a t e m verdadeiro h o r r o r de l e m b r a r os
acontecimentos d a q u e l a t a r d e que acabou, p a r a ela, nos
porões do Sanatório S. Pedro, de Campos do Jordão.
A e m p r e g a d a esquecera de fechar a p o r t a à chave.
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Os risos, as g a r g a l h a d a s , os gritos, o vozerio de h o m e n s
e m u l h e r e s a t i n g i a m o q u a r t o de A n a Maria e desper-
t a v a m a sua curiosidade. Abriu l e n t a m e n t e a p o r t a e
percorreu o corredor semi-escuro. Do topo da escada
ela pôde ver as cenas que a s u r p r e e n d e r a m . F o r m a n d o
um semicírculo no amplo salão, várias m e n i n a s e s t a v a m
totalmente nuas. Ao lado de cada u m a , via-se um
h o m e m , a l g u n s j á idosos, n u m a promiscuidade que n u n -
ca a sua origem rústica poderia i m a g i n a r . O "seo" Tò-
zinho estava sentado n u m a poltrona, vestido a p e n a s de
cuecas, rindo d e s b r a g a d a m e n t e . Nas suas m ã o s u m a
seringa de injeção. Só mais t a r d e soube ela que aquilo
era u m a das modalidades de que viciados em tóxicos
se valiam p a r a saciar os seus desejos. O u t r o s aspiravam,
n a s u n h a s ou em pequenos canudos, um pó que lhe
parecia talco. Havia m a i s m u l h e r e s que h o m e n s , quase
n u m a proporção d e três p a r a u m .
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A l g u n s casais, depois, p a s s a r a m a p r o c u r a r o s q u a r -
tos c u j a s p o r t a s d a v a m p a r a o a m p l o salão. A m a i o r i a ,
c o n t u d o , f i c o u n a p r o m i s c u i d a d e . F o i q u a n d o u m deles
d i v i s o u A n a M a r i a n o t o p o d a escada. Ao grito do
p r i m e i r o s o m o u - s e u m a i n f i n i d a d e d e o u t r o s : todos
apontando para A n i n h a .
— N ã o t o q u e m nessa m e n i n a ! A i n d a n ã o pode
p a r t i c i p a r das b r i n c a d e i r a s ! V o l t e m , c a n a l h a s ! V o l t e m !
S u a v o z d e s a p a r e c e u e m m e i o d a t r o p e l i a d e pés
subindo precipitadamente, como se um bando de loucos
buscasse a l g u m a v í t i m a . E r a a m a i s h o r r e n d a m a t i l h a
d e lobos a t r á s d e u m a p r e s a . O "seo" Tòzinho não
c o n s e g u i u i m p e d i r a a v a l a n c h a de bestas e s f a i m a d a s e
A n i n h a f i c o u e n t r e g u e à s a n h a dos t o x i c ô m a n o s q u e a
atacaram.
E m p o u c o s m i n u t o s o v e s t i d o f o i feito e m f r a n g a l h o s .
S e u s seios d u r o s , e m p i n a d o s , m o r e n o s , s a l t a r a m n u m
c o n v i t e à v o r a c i d a d e dos c o c a i n ô m a n o s , m o r f i n ô m a n o s e
até m a c o n h e i r o s q u e a c e r c a r a m . Dois, três, quatro.
N ã o s o u b e até h o j e q u a n t o s d e l a s e s e r v i r a m . R e c o r -
da-se, a p e n a s , q u e g r i t a v a m u i t o , pedia s o c o r r o , c h a m a v a
p o r s u a m ã e , n u m desespero m ó r b i d o . Foi levada e
a t a d a a u m a m e s a d e p a r t o q u e n ã o soube c o m o a p a -
r e c e u , e lá t o r n o u - s e p a s t o de t o d a a d e g r a d a ç ã o s e x u a l
que se possa i m a g i n a r .
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m o r r e u na sua g a r g a n t a . Perdeu os sentidos p a r a ape-
n a s recobrá-los, p a l i d a m e n t e , n u m hospital público.
A m e n i n a inexperiente e i n g ê n u a de G a r ç a dera o
primeiro passo p a r a a prostituição.
Na época, o fato foi um escândalo. Bem mais t a r d e ,
A n a Maria veio a saber, com pormenores, o que ocorrera.
Houvera d e n ú n c i a e a polícia a c o m p a n h a d a de comissá-
rios de menores, e n f r e n t a n d o a m a t i l h a de cães ferozes,
invadira a ilha, p r e n d e n d o todos. Descobriu-se, e n t ã o ,
que as b a c a n a i s e r a m a característica daquele logradouro.
O dono, " s e u " Tòzinho — era um a n o r m a l , um t a r a d o ,
i m p o t e n t e , n ã o participava d i r e t a m e n t e do c o n t a t o com
as jovens: comprazia-se, deliciava-se, a p e n a s assistindo
aos atos que os outros p r a t i c a v a m . E r a tão sádico que
n ã o p e r m i t i a a e n t r a d a , na ilha, de h o m e m desacom-
p a n h a d o de m u l h e r . P a r a os que t r a z i a m moças havia
u m a t a x a : com u m a a p e n a s o h o m e m pagava u m preço
alto p a r a ingressar na ilha, cerca de dez mil cruzeiros.
Com d u a s , o preço caía p a r a a m e t a d e e com q u a t r o
só p a g a v a mil cruzeiros. D u r a n t e a b a c a n a l os cães
ficavam soltos p a r a impedir a e n t r a d a de q u a l q u e r
curioso. No a n d a r superior da m a n s ã o havia um q u a r t o
imenso, que pertencia ao "seo" Tòzinho. No assoalho
existiam vários pequenos furos q u e d a v a m p a r a os
q u a r t o s térreos, disfarçados, no teto, em respiradores.
E r a u m a das diversões prediletas do " s e u " Tòzinho:
contemplava pelos buracos as cenas que os casais prati-
cavam nos q u a r t o s .
70
detidas na ocasião fossem menores.
E foi assim, e x a t a m e n t e assim, que a I l h a do Sabiá,
em São Paulo, d u r a n t e a l g u m tempo, foi a s s u n t o das
p á g i n a s policiais dos jornais. Mas até à i m p r e n s a o
financeiro poder oculto do " s e u " Tòzinho fez calar.
71
Maria, é b a r b a r a m e n t e egoísta, cruel. Causa-me pro-
fundo ódio vê-la a t i r a d a nessa cama, vítima inocente,
p u r a , da elite desbragada. Vítima de um h o m e m de
q u a r e n t a anos de idade, que usou do poder de seu di-
nheiro p a r a n ã o p a g a r o crime que cometeu. Do e s t u p r o
você foi p a r a a m á x i m a degradação da c r i a t u r a h u m a n a :
a prostituição. Esta lhe deu a tuberculose, que aos
poucos suga a sua vida. Ele foi tirar você da ilusão,
do brinquedo de roda, da ciranda, do pregador, do jogo
de a m a r e l i n h a , a cabra-cega. Vai ver que a I l h a do
Sabiá c o n t i n u a até hoje palco de cenas t ã o d e g r a d a n t e s
q u a n t o aquela que a vitimou. E a policia n ã o vai
m a i s lá. Já t e m o preço do seu s i l ê n c i o . . .
72
crianças que e s t a v a m sendo e s t u p r a d a s , m a s s a c r a d a s ,
por um r e p r e s e n t a n t e d a s elites. E Jesus, mesmo
assim, a i n d a abria seus braços p a r a Capivari, a Vila
m a i s linda de Campos do Jordão. Algo, r e p e n t i n a m e n t e ,
invadiu a m i n h a alma. U m a coisa m o r n a , aos poucos,
foi-se t o r n a n d o q u e n t e d e n t r o de m i m . Mais q u e n t e ,
mais quente, foi fervendo até explodir, e, com. m e u s
p u n h o s cerrados, socava, desvairadamente, a cruz de
Cristo!
73
IV
As c a m a d a s de n u v e n s i a m desaparecendo do céu
e pedaços de azul, entremeados de fogo, i a m surgindo,
a n u n c i a n d o o fim da borrasca, que d u r a n t e h o r a s desa-
b a r a sobre Campos do Jordão. Parecia que a Suíça
brasileira ia se t o r n a n d o toda a m a r e l a d a . No verde
lavado pela e n x u r r a d a , refletia-se a cor d o u r a d a que se
espraiava por todo o firmamento.
Estava exausta. O vestido molhado g r u d a v a em
m e u corpo. E x t e n u a d a , física e espiritualmente, dei-
tei-me de costas na relva dourada. Não sentia coragem
p a r a fazer o longo c a m i n h o de volta até o Sanatório.
Q u a n d o percorrera os oito quilômetros até o Morro do
Elefante, n ã o os sentira. Estava fora de m i m , com
m e u s raciocínios n u m frenético jogo de acontecimentos
m i s t u r a d o s com o ódio que, de repente de m i m se apos-
s a r a pelas ingratidões desse m u n d o materializado em
que vivemos; a vida que u n s poucos privilegiados gozam,
que somente sobrevivem espezinhando o próximo, sufo-
c a n d o as possibilidades dos menos favorecidos.
Não sei q u a n t o t e m p o fiquei, assim, m e r g u l h a d a
e m seus próprios p e n s a m e n t o s , n u m t u r b i l h ã o casca-
t e a n t e , sem ritmo, sem concatenação. Q u a n d o me le-
vantei n o v a m e n t e , j á t i n h a deliberado n ã o dormir
a q u e l a noite no Sanatório. Iria p a r a a casa de Mercedes,
na Vila J a g u a r i b e .
Nosso encontro foi coberto de p e r g u n t a s , princi-
p a l m e n t e pelo estado em q u e me encontrava. Depois
de um c h á q u e n t e e reconfortante fui me deitar.
74
No dia seguinte saí com G r a c i n h a , filha de Mer-
cedes, de a p e n a s cinco a n o s de idade. F u i ajudá-la a
c a t a r ovinhos de pedregulho: a Prefeitura de Campos
do J o r d ã o c o s t u m a cobrir as r u a s da cidade desses seixos
p a r a substituir o asfalto. Dei um longo passeio com
G r a c i n h a , passando pelo PS-3, onde conversei d e m o r a d a -
m e n t e com o dr. Pedro, responsável pelo Pronto-Socorro.
O t e m a do nosso bate-papo, como n ã o podia deixar de
ser, fora o médico negro.
75
n ã o me passara sequer pela cabeça qualquer coisa, a
n ã o ser pedir o seu auxílio em favor do dr. Sebastião.
Achava g r a ç a estar, n a q u e l e i n s t a n t e , a p e n s a r na possi-
bilidade de ocorrer qualquer coisa i n t i m a com o médico
do PS-3.
G r a d u a l m e n t e a noite ia se a n u n c i a n d o . Da cla-
ridade, s o m b r a s a p a r e c i a m e cobriam tudo, magica-
mente. As estrelas b r i l h a v a m e a lua espargia u m a
pálida e esverdeada luz por toda Campos do Jordão.
O complexo dessa beleza, que só Campos do J o r d ã o
possui, eu o ia absorvendo com a m i n h a alma, m e u s
olhos, m i n h a m e n t e . Logo mais, m e u s olhos e s t a v a m
pregados na a g u l h a do velocímetros, sorrindo por poder
sentir aquele vento gelado b a t e n d o em m e u rosto,
fustigando m e u olhos a t é as l á g r i m a s escorrerem. Eu
ia p e n s a n d o n a s brincadeiras ocorridas e n t r e Mercedes,
eu e G r a c i n h a , envolvendo o simpático dr. Pedro.
— Ao "Véu da Noiva".
76
digo em Campos do J o r d ã o ! Aqui existe um pedaço
d e cada p a í s . . .
77
deixa de ser u m a d e r r o t a fragorosa a n t e a prepotência
de a l g u m a s poucas jovens p e t u l a n t e s , desabridas, e que
mereciam, n a verdade, u m sério corretivo.
— Não é t a n t o assim, Adelaide. Nem acredito no
fanatismo racial dessas jovens. Até o m o m e n t o , na rea-
lidade, elas n ã o p r e c i s a r a m de sérios cuidados médicos,
desde que o dr. Sebastião chegou. Assim que um caso
m a i s grave aparecer, t e n h o certeza, n ã o p e n s a r ã o n a
cor da pele do médico. Desejarão obter a c u r a ou mi-
n o r a r o sofrimento. T u d o , p a r a m i m , n ã o passa de
irritação m o m e n t â n e a , criada com a decepção de q u e m
esperava um médico bonitão, agradável, a fim de a m e -
n i z a r a s a g r u r a s n a t u r a i s d e u m sanatório d e tuberculosos
e d e p a r a m com u m n e g r o . . .
78
— Não basta, doutor Pedro. Li, em c e r t a obra, a
afirmação ae que a "sociedade que encoraja o a m o r
livre e a homossexualidade n ã o p e r m a n e c e r á , por m u i t o
tempo, a m o r a d a dos h o m e n s livres". Quer verdade
mais c h o c a n t e do que essa? A exploração dos m e n o s
a f o r t u n a d o s pelas elites chega a ser u m a abjeção. P a r a
m i m a elite é um facho de luz cercado de escuridão
por todos os lados. A luz n ã o se preocupa com o que
há na escuridão. Ao contrário, explora-a como pode.
Mas q u a n d o alguém, na treva, t e n t a aparecer nesse foco
de luz, sobre as conseqüências de s u a petulância. Não
seria o que está acontecendo com o dr. Sebastião? Se
n ã o é, por que, e n t ã o , essa d e s p u d o r a d a m e n t i r a de
q u e no Brasil n ã o se c u l t u a o racismo? É u m a b u r l a
desprezível, porque o negro sofre todos os horrores,
todas as restrições, da p a r t e das elites. Qual o g r a n d e
clube de elite que aceita o negro? Pode me a p o n t a r
um oficial de M a r i n h a de G u e r r a que seja de cor?
— Concordo, Adelaide, que a sociedade m o d e r n a
está confundindo liberdade com licenciosidade. P a r a
mim, porém, isto é a minoria. E . . .
— Desculpe-me interrompê-lo, dr. Pedro. É a mi-
noria, porque os ricos r e a l m e n t e são a minoria no
m u n d o , ora! As classes m e n o s favorecidas r e p r e s e n t a m
a maioria absoluta, sim. São poucos, dr. Pedro, m u i t o
poucos, os ricos que e n t e n d e m os pobres. A Bíblia já
nos ensinou que n i n g u é m pode servir a dois senhores,
porque ou odiará a um e a m a r á o outro, ou dedicar-se-á
a um e desprezará o outro. Sim, n ã o podemos servir a
Deus e às riquezas. A juventude, hoje, entrega-se às
libações de t o d a a espécie. De quem é a culpa? Dos
pais, sem dúvida, que propiciam aos filhos os exemplos
m a i s torpes de libertinagem. Na sociedade é chique a
m u l h e r casada ter um a m a n t e . A boate Oásis, em São
79
Paulo, recebe, quase toda a s e m a n a , famosa d a m a da
sociedade p a u l i s t a que j a n t a , passa várias h o r a s n a q u e l e
local, assiste aos "shows", tendo como a c o m p a n h a n t e s
o esposo e o a m a n t e . Todos sabem disso e o m a r i d o
também... Ao t e m p o em que existia em São P a u l o
aquele c a b a r e t "O. K.", na avenida I p i r a n g a , essa mes-
ma d a m a se comprazia em ir à q u e l a casa n o t u r n a em
c o m p a n h i a de três ou q u a t r o pederastas passivos, fa-
zendo ela e os anormais, um espetáculo extra no interior
do c a b a r e t . . . E a hipocrisia é de t a l ordem, que toda
a sociedade c u m p r i m e n t a a d a m a , o esposo e o a m a n t e .
A m u l h e r é citada com todo o respeito pelas colunas
sociais dos jornais. Quase sempre ela está liderando
movimentos filantrópicos e a I m p r e n s a cita seu nome,
exibe sua fotografia com o r g u l h o . . .
— Há profunda verdade no que você afirma, m i n h a
c a r a Adelaide, m a s quero lhe dizer que sou contrário
àquele dogma de que a " c r i a t u r a é um a n i m a l a q u e m
foi dado um verniz de civilização". E n t e n d o haver exa-
gero nesse ódio que você n u t r e pelas elites. Acredito
na existência de m a u s progenitores, péssimos patrões,
violências sexuais bem mais a c e n t u a d a s no círculo dos
ricos do que e n t r e os pobres. Mas, mesmo n a s elites,
é a minoria que age assim. Há m u i t o mais compreensão,
m u i t o mais seres identificados com Deus do que aqueles
que, agindo como você afirma, são p r o f u n d a m e n t e
materializados.
80
g a s t a m t a n t o t e m p o a f a z e r p r o m e s s a s q u e , depois, l h e s
íalta o tempo para as c u m p r i r e m . . . V o u lhe contar o
que o c o r r e u , na semana passada, no Sanatório, assim
t e r á u m a i d é i a m a i s c l a r a d o d e s p o t i s m o das elites. E u
estava no m e u a p a r t a m e n t o q u a n d o recebi a visita de
unia indigente. Sabe D e u s lá o que fez aquela m e n i n a
p a r a a t i n g i r a ala dos m i l i o n á r i o s do S a n a t ó r i o S. P e d r o ,
pois n ã o i g n o r a v a q u e é e x p r e s s a m e n t e p r o i b i d o , aos
p o b r e s , sair dos p o r õ e s e e n t r a r n a " a l a das p r i v i l e g i a -
das"... L ú c i a é o n o m e desta c r i a t u r a e s e u p e d i d o
h u m i l d e era em favor do pai. Desejava que eu inter-
cedesse, c o m o pudesse, j u n t o aos políticos, p a r a q u e s e u
p a i fosse n o m e a d o f u n c i o n á r i o p ú b l i c o . Ele era moto-
r i s t a d e u m a das e m p r e s a s q u e e x p l o r a m o s e r v i ç o d e
transporte de passageiros, em automóveis, entre São
Paulo e Santos. São os famosos " e x p r e s s i n h o s " . No
meu quarto se encontrava Patricia, u m a sobrinha do
p a t r ã o de L ú c i a , que ficou em silêncio, r i n d o ironica-
m e n t e das q u e i x a s q u e a i n d i g e n t e m e f a z i a . S e n t a d a ,
e n v o l v i d a n u m "peignoir" d e n y l o n a c o l c h o a d o , c o m o s
pés p r o t e g i d o s p o r c h i n e l i n h a s d e p e l i c a f o r r a d a d e l ã ,
ela f o r m a v a u m g r a n d e c o n t r a s t e c o m o l e v e v e s t i d o
de chita da modesta Lúcia.
— Os e m p r e g a d o s , j o v e m L ú c i a — disse P a t r í c i a ,
i n t e r r o m p e n d o suas l a m ú r i a s — são i n s a c i á v e i s . Não
c o m p r e e n d e m q u e , s e m a e x i s t ê n c i a dos p a t r õ e s , n ã o
e x i s t i r i a m os e m p r e g o s . . . Os pobres, m e n i n a , existem,
p o r q u e os ricos r e p a r t e m o m u i t o q u e t ê m . . . É o c é u
de q u e m o g a n h a e a t e r r a , de q u e m a a p a n h a . .. As
leis t r a b a l h i s t a s nos dias de h o j e , no B r a s i l , é q u e c r i a m
esses p r o b l e m a s p a r a o s o p e r á r i o s . Cada vez exigem
m a i s . E se os e m p r e g a d o r e s f o s s e m a t e n d e r a t o d a s as
e x i g ê n c i a s de seus e m p r e g a d o s , i r i a m l o g o à f a l ê n c i a .
É o q u e o c o r r e c o m os m o t o r i s t a s q u e t r a b a l h a m na
81
empresa de titio. Estão sempre se queixando da vida.
N u n c a estão satisfeitos. Um filósofo já disse que a t r á s
da p o r t a do pobre, toda a vileza se esconde e que m u i t o s
miseráveis que pedem, são miseráveis u n i c a m e n t e por
pedirem.
— Seria m u i t o bom se t u d o o que a senhora está
dizendo fosse verdade. Os ricos, d. Patrícia, n ã o re-
p a r t e m o que t ê m com os pobres. Não, mil vezes n ã o .
E o que seria da empresa de seu tio, se n ã o fossem os
motoristas? Respondo p a r a a s e n h o r a que, sem a exis-
tência de operários, n ã o existiriam t a m b é m as fábricas.
P o r t a n t o , um depende do outro. Sozinhos n ã o sobrevi-
vem. Isto é lógico, t ã o evidente, que n ã o deve n e m
prevalecer como a r g u m e n t o . O que a senhora n ã o quer
reconhecer é que os patrões, do tipo do seu tio, r o u b a m
o suor de seu s e m e l h a n t e p a r a enriquecerem. Meu pai,
d. Patrícia, g a n h a o salário m í n i m o da empresa de seu
tio. T r a b a l h a das 7,00 h. da m a n h ã às 21,00 h., sem
direito a extraordinário. Q u a n d o os carros encrecam em
Santos, meu pai dorme na própria g a r a g e m da empresa.
O empregado que m o r a em Santos ao ter o seu veículo
um defeito q u a l q u e r em S. Paulo, t a m b é m é obrigado
a dormir na garagem, na Capital. Não t e m p a u s a p a r a
se a l i m e n t a r e embora t r a b a l h a n d o na h o r a de almoço
e de j a n t a n ã o recebe diária de alimentação. No fim
do a n o o seu tio fornece o envelope de p a g a m e n t o refe-
rente ao 13.° salário como sendo salário total, m a s
contém a p e n a s a metade. Todos são obrigados, contudo,
a assinar recibos de i m p o r t â n c i a s equivalentes ao salário
integral. Foi assim, D. Patrícia, que seu tio se tornou
rico, riquíssimo, escravizando, explorando, r o u b a n d o seus
empregados!
82
T r a b a l h o ? Meu tio, c e r t a m e n t e , seria c h a m a d o à a t e n ç ã o
por esses a b u s o s . . .
Havia u m a ironia ofensiva nessas palavras de Pa-
trícia. Mas Lúcia n ã o se a m e d r o n t o u :
— Porque seu tio, c o n t r a r i a n d o as leis, t a m b é m n ã o
registra seus empregados.
— E por que estes n ã o vão reclamar, e n t ã o , onde
há leis p a r a eles?
— Porque seu tio afirma que t e m dinheiro suficiente
p a r a c o m p r a r a J u s t i ç a , além de a m e a ç a r demitir ime-
diatamente o reclamante. E há mais, d. Patrícia: os
patrões se e n t e n d e m entre si. Todas as p o r t a s d a s demais
empresas de t r a n s p o r t e se fecharão p a r a aquele motorista
que r e c l a m a r na J u s t i ç a do T r a b a l h o . É u m a a u t ê n t i c a
m a ç o n a r i a . E, depois, a J u s t i ç a demora anos p a r a
decidir um processo desse gênero. Do que viverá o
empregado e n q u a n t o espera?
83
Meu sossego, contudo, n ã o d u r o u m a i s do que
a l g u n s m i n u t o s . Todo o sanatório estava em polvorosa.
Havia um corre-corre, m u r m ú r i o s . As I r m ã s m a l se
e n t e n d i a m a n t e a situação aflitiva em que e s t a v a m
enredadas.
No corredor de acesso ao m e u a p a r t a m e n t o havia
um tropel incessante de doentes, enfermeiras e I r m ã s .
84
Q u a n d o ele chegasse, talvez já fosse t a r d e e por isso
saí às pressas do a p a r t a m e n t o de Nair e me dirigi aos
aposentos do dr. Sebastião. Alguma coisa, efetivamente,
deveria ser feita a n t e s que fosse t a r d e .
— Dr. Sebastião, o senhor n ã o se pode dar assim
por vencido. U m a vida está em perigo. Algo t e m de
ser providenciado, custe o que custar. Um médico n ã o
deve sujeitar-se aos caprichos do d o e n t e . . .
— Jovem, eu fiz t u d o p a r a e n t r a r naquele a p a r t a -
m e n t o . Não logrei êxito n a s m i n h a s tentativas. Não
posso forçar u m a situação que contribuirá p a r a a m o r t e
daquela infeliz. Os nervos dessa m o c i n h a ficam de tal
forma excitados q u a n d o e n t r o no seu q u a r t o , que a
hemoptise volta i m e d i a t a m e n t e . Retirei-me no terceiro
a t a q u e , deixando a l g u m a s instruções com as enfermeiras,
e n q u a n t o se t e n t a localizar o dr. Pedro.
— Será mesmo imprescindível a presença ao lado
de Nair, p a r a os remédios serem ministrados? O senhor
n ã o poderia das instruções aos enfermeiros, no corredor?
E se n ã o localizarem o dr. Pedro, ela vai m o r r e r assim,
sem n e n h u m t r a t a m e n t o , sem n e n h u m a assistência
médica?
A energia e a decisão de m i n h a voz fizeram com
que o dr. Sebastião se levantasse. Não n o t a r a a m i n h a
rudeza. Apenas a c h a r a m i n h a idéia p l e n a m e n t e exe-
qüível e p u x a n d o - m e b r u s c a m e n t e pelo braço, ordenou,
peremptório:
— Vamos, Adelaide. Vamos salvar aquela delin-
q ü e n t e social! Vamos! Apresse-se!
A e n t r a d a do médico negro no corredor foi recebida
com um gelado silêncio que de r e p e n t e envolveu t u d o .
O dr. Sebastião ficou no corredor, ao lado da p o r t a
85
do a p a r t a m e n t o de Nair, e n q u a n t o eu entrava, estaba-
n a d a , n o interior d o q u a r t o , c h a m a n d o a p r e s s a d a m e n t e
u m a das enfermeiras.
No i n s t a n t e em que a assistente saia p a r a conversar
com o dr. Sebastião, procurei a c a l m a r Nair:
— Fique t r a n q ü i l a . O dr. Pedro já vem correndo
a t é aqui. Ele deu instruções à Madre p a r a que fossem
t r a n s m i t i d a s às enfermeiras. Fique imóvel, sossegada,
que t u d o vai d a r certo.
M i n h a m e n t i r a c a u s a r a a l g u m efeito. Os olhos de
Nair a p r e s e n t a r a m u m brilho d e esperança, e n q u a n t o
as lágrimas escorriam pelas faces. De fato, a esperança
é o sonho dos que estão acordados, o único bem c o m u m
a todas as c r i a t u r a s h u m a n a s . N u n c a Deus fecha u n i a
p o r t a sem abrir o u t r a .
Pouco depois a enfermeira e n t r a v a apressada no
a p a r t a m e n t o . U m a injeção de coaguleno, de imediato,
foi aplicada. Com o auxílio da o u t r a enfermeira, os
braços de Nair foram colocados em posição vertical e
sobre seu peito p u s e r a m u m a bolsa com g r a n d e q u a n t i -
dade de gelo. Alguns pedaços, b e m pequenos, foram
postos em sua boca e, a pedido da enfermeira, Nair foi
deglutindo a á g u a solidificada. A operação repetiu-se
d u r a n t e meia hora, até a enferma cair em profundo
sono. O médico negro e n t r o u , e n t ã o , no q u a r t o de Nair:
86
V i r o u - s e , i n o p i n a d a m e n t e , f e c h o u a p o r t a a t r á s de si
e c a m i n h o u pelo c o r r e d o r , f i t a d o p o r m a i s d e u m d e z e n a
de moças que a g u a r d a v a m os resultados da intervenção
do m é d i c o e p r o c u r a v a m ler em suas feições se os
r e m e d i o s p o r ele m i n i s t r a d o s s u r t i a m e f e i t o .
O médico negro, ao entrar no a p a r t a m e n t o de Nair,
p i s a r a , sem. p e r c e b e r , n u m a p o ç a d e s a n g u e . E l e p a s s o u
f i r m e , d i s t a n t e , e n t r e a s e n f e r m a s das elites. N o t a p e t e
c l a r o f o i f i c a n d o a m a r c a r u b r a d e seus sapatos. N ã o
h o u v e u m m u r m ú r i o , a n t e s o u depois d e s u a p a s s a g e m .
N o f i m d o c o r r e d o r , ele s e v o l t o u . P a r o u d u r a n t e a l g u m
t e m p o . O l h o u u m a p o r u m a e , depois, l e v a n t a n d o l e n t a -
mente um braço, ordenou categórico, violento, fora de si:
87
V
O l h e i o D r . Sebastião a d m i r a d a e ao m e s m o t e m p o
decepcionada:
— N ã o a c r e d i t o nessas i n t e r f e r ê n c i a s p o l í t i c a s , D r .
Sebastião. P e r m i t a - m e , mais u m a v e z , discordar d a sua
decisão, m a s o s e n h o r n ã o pode e n ã o se d e v e d a r p o r
v e n c i d o . M a i s v a l e e s p e r a n ç a b o a , q u e r u i m posse. N ó s
d e v e m o s l u t a r pelo q u e é c e r t o q u a n d o l o b r i g a m o s possi-
bilidades d e v e n c e r s e m c r e s c i m e n t o das dissensões.
Desistir agora é u m a estultícia. Q u a n d o se convencer
que e r r o u em não se defender na h o r a mais fácil, vai
v e r i f i c a r q u e a s d i f i c u l d a d e s c o n t r a seus anseios d o b r a -
r a m a tal ponto que só há u m a m í n i m a parcela p a r a
se a l c a n ç a r a v i t ó r i a .
— M a s a pessoa c o m q u e m v o u f a l a r n a G u a n a b a r a
é a e x - P r i m e i r a D a m a do E s t a d o de P e r n a m b u c o . É
criatura realmente influente. T e n h o que aproveitar o
m o m e n t o p o r q u e ela se e n c o n t r a no R i o a passeio e
88
logo r e t o r n a r á p a r a o n o r t e . S e r á m a i s d i f í c i l p a r a m i m
v i a j a r até o R e c i f e . P o r q u e h a v e r i a de c o n t i n u a r a
p i s a r e m e s p i n h o s , s e h á a possibilidade d e t r a n s f o r -
m á - l o s e m pétalas? N ã o , A d e l a i d e , n ã o s o u p a l m a t ó r i a
do m u n d o . T o d o o tempo que t e n h o disponível dedico-o
aos estudos. A m e d i c i n a é um p r o g r e s s o i n c e s s a n t e .
V o c ê ficou a d m i r a d a por saber que me utilizo de gelo
para estancar u m a hemoptise. É o método moderno.
E acredito, não aprendi nos bancos da Faculdade. N ã o
posso d e s p e r d i ç a r m e u t e m p o c o m essas t o l i n h a s e seus
preconceitos radicalizados. Os líderes negros do Brasil
— se é q u e eles e x i s t e m — q u e t r a t e m de f a z ê - l o . P o r
m i m , confesso-me derrotado. Essas jovens milionárias
me v e n c e r a m m e s m o . O que o c o r r e u a s e m a n a passada,
c o m aquela moça, Nair, foi a gota d á g u a que e n t o r n o u
o m e u copo c h e i o de e s p e r a n ç a s .
— Pois b e m , D r . Sebastião. O senhor v a i falar c o m
a ex-Primeira D a m a do Estado de Pernambuco. V a i
perder o seu tempo. C o n h e ç o aquela senhora e m u i t a
coisa a s e u respeito. N a d a l h e d i r e i , p o r h o r a . D ê - m e
o p r a z o necessário p a r a pedir a v i n d a , aqui, a C a m p o s
d o J o r d ã o , d e u m a m i g o q u e f o i a m a n t e dessa s e n h o r a ,
p o r i m p o s i ç ã o dela m e s m a . T e l e f o n a r e i , a i n d a h o j e , <
1
só depois de o u v i - l o , o s e n h o r t o m a r á a decisão fina ..
Combinados?
O D r . Sebastião suspirou, olhou-me longamente,
s o r r i u e depois d e d a r u m t a p i n h a e m m e u o m b r o ,
murmurou:
— Combinados.
89
S e m p r o t o c o l o s e x a g e r a d o s , f o r a m feitas a s a p r e s e n -
tações e nosso l o n g o b a t e - p a p o f o i l e v a d o e m m e u p r ó -
p r i o a p a r t a m e n t o , n o p e r i o d o d a n o i t e , q u a n d o o silencio
d o m i n a v a as dependências do Sanatório.
— S e r i a essa espécie de g e n t e q u e i r i a l i g a r - m e se
aceitasse a a p r e s e n t a ç ã o de m e u a m i g o à e x - P r i m e i r a
D a m a do Estado de Pernambuco? — p e r g u n t o u , meio
assombrado, o D r . Sebastião.
90
ta-lhes sempre, c o n t u d o , o prestígio dinheiro, que no
B r a s i l c o n t i n u a s e n d o a h o n r a , a p a l a v r a , a decisão dos
n e g o c i s t a s e políticos, n u m a c o r r u p ç ã o m o r a l q u e c h e g a
a c a u s a r asco. A p r o v e i t a n d o a f r a s e de um l i t e r a t o
f r a n c ê s , p o d e m o s d i z e r q u e " p o r d i n h e i r o eles são c a -
p a z e s d e t u d o , até m e s m o d e c o m e t e r u m a boa a ç ã o . . . "
Na época em que a conheci, eu estava ligado ao g o v e r n o
Juscelino, através de um general do Exército de quem
e u e r a u m a espécie d e s e c r e t á r i o p a r t i c u l a r .
— Q u e m e r a o general? — quis saber, curiosa.
— N ã o v e m a o caso n o m e s , A d e l a i d e . M a s m u i t a
d e v a s s i d ã o a p r e n d i c o m esse g e n e r a l . H a v i a n o i t e s , e m
Brasília, que eu ia buscar candidatas a emprego p a r a
p a s s a r a n o i t e c o m esse m i l i t a r . B a c a n a i s v e r g o n h o s o s
t i n h a m lugar nos apartamentos da Capital Federal. A
maneira como o general era correspondido no amor que
p l e i t e a v a dessa o u d a q u e l a j o v e m c a n d i d a t a a o s e r v i ç o
p ú b l i c o , s i g n i f i c a r i a a a d m i s s ã o ou o d i s f a r c e da p a r t e
dele d u r a n t e meses a fio, até q u e a m o ç a , d e s i l u d i d a ,
acabasse d e s i s t i n d o . S ã o i n c o n t á v e i s as r e u n i õ e s desse
t i p o q u e l e v á v a m o s a efeito n o s a p a r t a m e n t o s d a S u p e r -
Q u a d r a 208, d e B r a s í l i a . Muitos ministros de Estado
q u e a í e s t ã o , g r i t a n d o pela m o r a l i z a ç ã o a d m i n i s t r a t i v a ,
pelo b o n s c o s t u m e s n o s e r v i ç o p ú b l i c o , r e v e l a r a m - s e
e x í m i o s p a r t i c i p a n t e s desses b a c a n a i s , o n d e n ã o f a l t o u
sequer o c o n d i m e n t o mais necessário: barbitúricos e tó-
x i c o s de t o d a a n a t u r e z a . Às v e z e s esses e n c o n t r o s
o c o r r i a m nos apartamentos do Brasília Palace Hotel, que
n o p r i n c í p i o e r a o h o t e l " k a r " , d a C a p i t a l F e d e r a l . Nesse
caso o g o v e r n o e r a q u e m p a g a v a a s f a r r a s , a s o r g i a s
s e x u a i s d e seus m i n i s t r o s . . .
— M a s q u e n o j e i r a , sr. A u r é l i o ! — i n t e r r o m p e u o
D r . Sebastião, d e m o n s t r a n d o m a l acreditar no que ouvia.
— Era muito pequeno em posição, doutor, para
91
saber t o d a a p o d r i d ã o s e x u a l q u e c o r r i a pelos b a s t i d o r e s
do g o v e r n o f e d e r a l , e às c u s t a s dos c o f r e s p ú b l i c o s . M a s
o p o u c o q u e sei d á p a r a e s c a n d a l i z a r o pais i n t e i r o . K a
n o R i o , i n c l u s i v e , u m local q u e o s " g r a n d e s " c o n h e c e m
pela denominação de " a p a r t a m e n t o presidencial". F i c a
n u m dos m a i s f a m o s o s h o t é i s d o B r a s i l . T u d o o que
ali é g a s t o , é p a g o pelo I n s t i t u t o B r a s i l e i r o do C a f é .
E r a u m . dos p o u c o s l u g a r e s a o n d e o p r ó p r i o P r e s i d e n t e
d a R e p ú b l i c a c o m p a r e c i a . A l i á s , diga-se d e p a s s a g e m ,
q u e o p r e s i d e n t e t i n h a u m f a m o s o p i a n i s t a das noites
cariocas, c u j a ú n i c a f u n ç ã o j u n t o ao Chefe da Nação,
e r a o d e c o n s e g u i r d e t e r m i n a d o s tipos d e m u l h e r e s . À s
v e z e s esse p i a n i s t a cedia a p r ó p r i a r e s i d ê n c i a p a r a o
Presidente ter encontros amorosos c o m as pequenas que
l h e e r a m c o n s e g u i d a s p o r esta espécie d e " s e c r e t á r i o
s e x u a l " do Presidente da República. O "apartamento
p r e s i d e n c i a l " é f a m o s o n a s h o s t e s p o l í t i c a s . Nesse l o c a l ,
em meio a um ambiente carregado de sexo, t r a m a v a m - s e
as mais grossas safadezas. As m u l h e r e s , ali, f u n c i o n a -
v a m a s s i m c o m o u m a espécie d e a u x í l i o p a r a a o b t e n ç ã o
de favores j u n t o ao B a n c o do Brasil e cargos altamente
remunerados no Exterior. E r a m a u t ê n t i c a s espiãs, a
s e r v i ç o de d e s í g n i o s t o r p e s e interesses i n c o n f e s s á v e i s .
D i f i c i l m e n t e u m h o m e m n e g a a l g u m a coisa à m u l h e r
q u a n d o e s t á c o m esta n a c a m a , r e c e b e n d o s u a s c a r í c i a s . .
C o n h e ç o m u i t a g e n t e boa q u e a n d a p o r aí, a r r o t a n d o
a u t o r i d a d e , m a s q u e c o n s e g u i u c h e g a r a essa p o s i ç ã o
f a z e n d o c o m q u e a p r ó p r i a esposa f r e q ü e n t a s s e o " a p a r -
t a m e n t o p r e s i d e n c i a l " e pleiteasse esse o u a q u e l e f a v o r
visando benefício p e s s o a l . . . E a e x - P r i m e i r a D a m a de
P e r n a m b u c o f o i , n a s p o u c a s v e z e s q u e esteve n o R i o ,
u m a grande freqüentadora do "apartamento presiden-
c i a l " . H i s t é r i c a a o e x t r e m o , s ó a t e n d i a aos pedidos
depois d e s a t i s f e i t a n o s e x o . P a r a isso b a s t a v a o h o m e m
lhe a g r a d a r . . . F o i o que ocorreu comigo. M i n h a missão
92
j u n t o à então P r i m e i r a D a m a de P e r n a m b u c o , era a de
e n t r e g a r - l h e , p e s s o a l m e n t e , u m a c o r r e s p o n d ê n c i a d o ge-
n e r a l de q u e m eu era secretário particular. N ã o poderia
h a v e r t e s t e m u n h a s n a e n t r e g a dessa m i s s i v a . F u i r e c e -
bido e m s u a s a l a , n o P a l á c i o das P r i n c e s a s , u m a s t r ê s
v e z e s , e a p r e s e n ç a de e s t r a n h o s me i m p e d i a de f a z e r - l h e
a entrega. E l a já me esperava como enviado do general.
Não e n t e n d i a , e n t ã o , p o r q u e m e f a z i a e n t r a r e m s e u
gabinete de t r a b a l h o sabendo da reserva que o assunto
e x i g i a . Q u a n d o , f i n a l m e n t e , f i c a m o s a sós na s a l a , o
c a r i n h o com que me t r a t o u , causou-me certo espanto.
L e u a c a r t a n a m i n h a f r e n t e . À s vezes i n t e r r o m p i a
a leitura e me o l h a v a d e m o r a d a m e n t e , sorrindo de m a -
neira significativa.
Sentado à sua frente, j u n t o da mesa de trabalho,
h a v i a entre nós u m silêncio desconcertante. E u estalava
os dedos n e r v o s a m e n t e e p r o c u r a v a p e r d e r o o l h a r pela
j a n e l a a f o r a . ..
T e r m i n a d a a l e i t u r a d a c a r t a , ela a g u a r d o u n o
p r ó p r i o seio e m e o l h a n d o f i x a m e n t e , c r u z o u o s b r a ç o s
sobre a m e s a . Q u e b r o u o s i l ê n c i o q u e d o m i n a v a t o d a
a ampla sala:
— Pois b e m A u r é l i o . O caso me i n t e r e s s a s i m .
T u , n a t u r a l m e n t e , sabes o c o n t e ú d o dessa c o r r e s p o n -
d ê n c i a , pois n ã o ?
F i z um aceno a f i r m a t i v o c o m a cabeça, sem,
contudo, articular u m a só palavra.
— ó t i m o , isto r e v e l a q u e o g e n e r a l t e m p l e n a c o n -
fiança em ti, m e u caro A u r é l i o . P o r é m não te darei
n e n h u m a resposta a g o r a . E s p e r o v e r - t e e m d e t e r m i n a d o
local h o j e à noite, q u a n d o c o n v e r s a r e m o s m e l h o r . O n d e
0
t u estás h o s p e d a d o
93
— Hotel Boa Viagem, m a d a m e — respondi lacóni-
camente.
— Meu chofer irá buscar-te à noite. Não saias de
teu a p a r t a m e n t o a t é chegar m e u enviado. Está certo,,
simpático?
Procurei sorrir, agradecendo a intimidade do t e r m o .
Na verdade eu estava apavorado, n ã o só pelo que via
de insinuação nos olhos da Primeira D a m a , como prin-
cipalmente, pelo conteúdo daquela missiva que envolvia
um negócio por demais espúrio. Sabia, pela experiência,
que se o escândalo contido n a q u e l a c a r t a estourasse, o
atingido seria eu, o lado mais fraco. Estava sendo o
intermediário d e u m a t r a n s a ç ã o que, e m principio, m e
enojava e por fim me atirava na senda do crime!
Assim, ao me despedir daquela senhora, m e u co-
ração estava a m a r g u r a d o e a preocupação d o m i n a v a
todos os m e u s p e n s a m e n t o s . Cheguei a ter ímpetos de
deixar Recife às pressas e n u n c a mais pisar no Palácio
das Princesas. Arrependo-me até hoje, de n ã o o ter
feito n a q u e l a t a r d e . . .
Somente cheguei ao hotel às nove h o r a s e, lá. já
estava u m a limousine p r e t a do governo do Estado à
m i n h a espera.
Fiquei com raiva. E r a u m a perseguição a que n ã o
me resignava. Fi-lo esperar quase u m a hora. Aleguei
que ia t o m a r b a n h o e depois j a n t a r . O m o t o r i s t a n ã o
se m o s t r o u aborrecido. Respondeu-me simplesmente q u e
n ã o t i n h a m u i t a pressa, pois só às dez da noite é q u e
eu seria levado à presença da Primeira D a m a . O c a r r o
estava ali a p e n a s à m i n h a disposição, inclusive p a r a me
levar aos r e s t a u r a n t e que escolhesse.
E r a precisamente dez h o r a s q u a n d o entrei, m a c a m -
búzio, no automóvel negro da Primeira D a m a do Estado.
94
Na m i n h a cabeça um torvelinho de p e n s a m e n t o s fervi-
lhava. Não notei m u i t o o percurso seguido pelo carro.
Verifiquei, apenas, que c a m i n h á v a m o s quase sempre
paralelo às p r a i a s e nosso destino parecia ser mesmo
Boa Viagem., onde p a r a m o s na a l t u r a de i m p o n e n t e
prédio de a p a r t a m e n t o s .
Na e n t r a d a do edifício um porteiro recebeu-me
amistoso, o que me causou certa estranheza. Acompa-
n h o u - m e a t é o a p a r t a m e n t o , onde, logo após e n t r a r ,
senti que t r a n c a v a m a p o r t a por fora. O fato n ã o me
causou surpresa. Esperava isto. Mas a c o n s u m a ç ã o da
medida me irritou mais ainda, pois era inegável que eu
estava p r a t i c a m e n t e prisioneiro n o a p a r t a m e n t o d a
P r i m e i r a D a m a do Estado de P e r n a m b u c o !
A luxuosa residência estava vazia. Também não
me surpreendi. Faria, com toda certeza, p a r t e dos planos
traçados pela i m p u d i c a senhora.
95
onde havia até u m a pequena h a r p a . T r ê s maravilhosos
e estonteantes q u a r t o s de dormir. Um deles — o prin-
cipal e maior — possuia móveis antiquissimos e a
c a m a de casal, ao centro, lembrava aqueles móveis
franceses da Idade Média, com aquela cobertura de
m a d e i r a e as r e n d a s em forma de cortina, protegendo
a pessoa dos insetos. Havia um discreto e fino perfume
p a i r a n d o na alcova que m e u curioso olhar devassava.
Ao abrir u m a p o r t a que dava p a r a o interior desse
dormitório, deparei com o banheiro privativo, todo for-
m a d o de azulejos cor de rosa. A banheira, em forma
de piscina, era um convite ao b a n h o . T a m b é m todo o
a m b i e n t e estava perfumado.
Voltei ao g r a n d e salão e abri as imensas janelas
q u e d a v a m p a r a u m a das mais belas e selvagens praia
do Brasil: Boa Viagem, com sua areia branca-averme-
l h a d a e leve como talco. A noite estava com u m a l u a
maravilhosa e seus raios t o r n a v a m mais alva a areia
m a c i a daquele aprazível recanto.
Não recordava, bem, o n ú m e r o do a n d a r em que
me encontrava, m a s , dali, via perfeitamente os pares
amorosos passeando pela praia e a i n d a a l g u n s casais
afoitos sentados na areia, quase j u n t o da água. Senti
inveja e vontade de descer p a r a a n d a r descalço n a q u e l a
areia suave, aveludada, convidativa. Fugi com m e u
o l h a r da praia e avancei pelo m a r onde o m a r colidia,
violento na longa paredes de recifes e quebrando toda
a força das á g u a s impedia que a ressaca atingisse a
avenida asfaltada. Olhei pelo m a t o que permanece entre
a praia e o asfalto, como n u m desafio p e r m a n e n t e a
desídia dos governos municipais. Acho que todos os
prefeitos do Brasil deveriam visitar as praias de Santos
p a r a que observassem como o h o m e m pode a p r i m o r a r
a beleza n a t u r a l das p r a i a s construindo os m a i s belos
96
jardins, completando, como n u m retoque ousado, a
m o l d u r a que têm o privilégio de t e r e m o m a r como
atração turística.
Não havia jantado. Fiquei pensando no " M a x i m ' s " ,
o restaurante existente na praia de B o a V i a g e m , e onde
se c o m e a m e l h o r e m a i s g o s t o s a l a g o s t a do m u n d o .
Voltei-me para u m a poltrona. Sentia u m a terrível
s e n s a ç ã o d e solidão, q u e m e i r r i t a v a a c a d a m i n u t o .
V o l t a e meia olhava, c o m r a i v a , o imenso relógio de
pé, que embelezava u m c a n t o d a g r a n d e sala. Seu
i m p e r t u r b á v e l t i q u e - t a q u e e n t r a v a pelos m e u s o u v i d o s e
f u n c i o n a v a como verdadeiro m a r t e l o . J á p a s s a v a m das
11,30 da n o i t e e me s e n t i a p e r d i d o n a q u e l e e n o r m e
apartamento.
F i q u e i pensando naquele fausto em que me e n c o n -
t r a v a e m e r e c o r d a v a das c o n d i ç õ e s d e m i s é r i a t o t a l
e m q u e v i v i a m o s c o l o n o s d a P r i m e i r a D a m a n o s seus
canaviais. E r a através do suor daqueles infelizes, da
e x p l o r a ç ã o v i l d e seu t r a b a l h o q u e a P r i m e i r a D a m a
c o n q u i s t a r a prestígio político e financeiro. O s u o r dos
camponeses pernambucanos t a m b é m serviam para m o -
b i l i a r belas e r i q u í s s i m a s " g a r ç o n i è r e s " c o m o a q u e l a e m
que me encontrava.
P r o c u r e i u m a rádio-vitrola, que logo encontrei.
V a s c u l h e i a l g u m a s e s t a n t e s e a p a n h e i a l g u n s discos.
A m ú s i c a suave que logo i n v a d i u o ambiente me
t r o u x e u m conforto espiritual.
E s t a v a p r e p a r a n d o o u t r a dose d e u í s q u e , q u a n d o
o u v i a f e c h a d u r a da porta mexer-se. F i n a l m e n t e o sin-
g u l a r episódio ia t e r c o m e ç o . A e s p e r a se p r o l o n g a r a
por longas horas: já atingíramos a meia-noite.
— Cansaste de esperar, m e u Aurélio? Sinto. T i v e
que participar de u m a recepção que não estava no pro-
97
g r a m a . O governador foi à Brasilia e nessas condições
m e u s compromissos sempre dobram. É u m a c h a t e a ç ã o ,
sem limites e t u d o sempre envolvendo esses malditos
açudes que dão m a r g e m a toda sorte de exploração
política. Estou exausta!
Quis ser simpático:
— Em absoluto, m i n h a senhora. Eu vim à Recife
p a r a servi-la e esperá-la, será sempre um prazer
imenso...
— Ah! És t a m b é m g a l a n t e a d o r ? Melhor, gosto
m a i s a s s i m . . . T u esperas u m pouco que vou t r o c a r d e
roupas.
E a i n d a de d e n t r o do q u a r t o , gritou p a r a m i m :
— Aurélio, adoro uísque. P r e p a r a u m a dose p a r a
m i m . Gosto puro, com m u i t o gelo. Vou já, já.
Ao r e t o r n a r vi que vestia um "pegnoir" azulado,
todo almofadado. E n t r e os dedos um cigarro de filtro.
Dirigiu-e direto p a r a a vitrola.
— Que m ú s i c a c h a t a que tu escolheste, Aurélio.
Não se c o a d u n a com o m o m e n t o . . . Não achas? T e n h o
u n s magníficos discos de R a y Connif. São a m e r i c a n o s
autênticos. É o g r a n d e sucesso do m o m e n t o nos Estados
Unidos, m a s t o t a l m e n t e desconhecidos aqui no Brasil.
São q u a t r o a p e n a s : tudo o que ele gravou. Escuta, vê
que inesquecível orquestra-coro! Q u a n d o isto for lan-
çado aqui vai ser um s u c e s s ã o . . . Ganhei-os de um
amigo que veio r e c e n t e m e n t e da América.
V e j a m o s . . . é . . . isso m e s m o . . . a q u i n t a faixa do
lado " A " . . .
Quedei-me à escuta e logo as primeiras n o t a s de
" S e n t i m e n t a l J o u r n e y " , invadiram, e m r i t m o crescente,
o salão em que nos e n c o n t r á v a m o s .
98
— O nome do "long-play" é 'S W o n d e r f u l . . . n ã o
é mesmo interessante, diferente? E s t a é a primeira
gravação dele. . .
99
— É. .. m a s a senhora n e m calcula como estou
cansado...
— ó t i m o , m e u filho. Temos aqui a mais macia
das c a m a s do Estado de P e r n a m b u c o . . . Tu poderás
dormir t r a n q ü i l o . . . n u m a m b i e n t e a r o m a t i z a d o . . .
Que tal?
Pulei, assustado:
— Dormir? Aqui?
— Ora! O que há de a n o r m a l nisso, h o m e m ? Tu
t e n s a l g u é m que te está esperando lá no hotel? Tu
a c h a s aquela imundícia de hotel melhor que este a p a r t a -
mento?
100
d e q u i n z e dias, t e m p o e x a t o e m q u e f i q u e i s e u a m a n t e ,
s a t i s f a z e n d o - a em todos os c a p r i c h o s . . .
O dr. S e b a s t i ã o o u v i r a o r e l a t o d e A u r é l i o c o m u m a
expressão de desanimo estampada nos olhos. N ã o c o n -
seguia compreender como a devassidão m i n a v a assim
os b a s t i d o r e s políticos e sociais deste país. L i m i t o u - s e a
perguntar:
— E o s e n h o r v o l t o u a v ê - l a , depois de t u d o isso?
— A l g u m a s vezes s e m , p o r é m , falar-lhe. F o i em
a l g u m a s solenidades p o l í t i c a s i m p o r t a n t e s o c o r r i d a s e m
Brasília ou no Rio. É u m a f i g u r a bem apagada hoje.
S e u esposo c o n t i n u a na p o l í t i c a e p r a t i c a m e n t e é ele
q u e m m a n o b r a t o d o o P a r t i d o d o q u a l é u m dos d i r i -
g e n t e s m á x i m o s e m e m b r o dos m a i s i n f l u e n t e s e m t o d a
aquela região. E l a deve continuar, presentemente a di-
r i g i r os canaviais que possui por todo o interior de
P e r n a m b u c o . E u n u n c a m a i s a e s q u e c i , pois s ó e u
m e s m o sei o q u e passei n a q u e l a n o i t e e n o s dias s e g u i n -
tes, a o l a d o dessa m a d a m e . E l a , p o r é m , já deve ter
m e esquecido. É l ó g i c o . . .
Interrompi a conversa entre o dr. Sebastião e
Aurélio, para perguntar:
— A u r é l i o , t o d a s as v e z e s q u e o u ç o essa h i s t ó r i a ,
v o c ê s e m p r e se n e g a a d i z e r o c o n t e ú d o d a q u e l a f a m o s a
carta do general à P r i m e i r a D a m a de P e r n a m b u c o .
P o r que? P o d e r i a d i z ê - l o a g o r a ? F a z t a n t o t e m p o , a c h o
que não t e m mais importância.
— De fato, faz m u i t o tempo. Contudo, não deixa
d e ser u m a r e v e l a ç ã o p e r i g o s a . . .
— G o s t a r i a t a m b é m de saber, senhor Aurélio —
a p a r t e o u o dr. S e b a s t i ã o .
— T o d a s as s e m a n a s — i n f o r m o u , e n t ã o , A u r é l i o —
partia p a r a a Bolívia um avião da F A B , em serviço
101
n o r m a l do Ministério da Aeronáutica. O percurso fazia
p a r t e da linha do COMTA. Às vezes a viagem era feita
quinzenalmente. O fato é que, n u m a dessas viagens,
seguia, a bordo, um alto funcionário do Governo, com
passaporte diplomático, que p e r m a n e c i a a l g u n s dias em
La Paz e r e t o r n a v a ao Brasil. Sua missão era buscar
cocaína!
A n t e nossa expressão de espanto, Aurélio esclareceu:
— A Primeira D a m a n ã o era viciada, n ã o . Mas
t i n h a amigos m u i t o bem postos n a sociedade p e r n a m -
b u c a n a , assim como o general os t i n h a em Brasília e
Rio, que o eram.. Seria por demais arriscado adquirir
o pó d a s mãos de traficantes. Avião militar n u n c a é
revistado. E a i n d a que o fosse, as m a l a s de q u e m
possuir passaporte vermelho t e m imunidades. Não po-
dem ser abertas. Daí a facilidade. O que o general,
t a m b é m viciado, p e r g u n t a v a à m a d a m e , n a q u e l a c a r t a ,
era a q u a n t i d a d e de que necessitava, porque estava p a r a
ir até a Bolívia no avião da Força Aérea, o alto funcio-
nário do Itamarati.
— Mas, Aurélio, você acredita que a FAB fizesse
tráfico de entorpecentes? — perguntei, abismada.
— É lógico que n ã o , Adelaide. Os militares eram,
no caso, a u t ê n t i c o s inocentes-úteis. Um funcionário com
passaporte diplomático sempre foi recebido com o maior
respeito pelos oficiais aviadores que s u p u n h a m , como era
n a t u r a l , que o m e s m o fosse a La Paz com a l g u m a a l t a
missão do Governo Federal. Não t i n h a m a m e n o r parti-
cipação nesse tráfico vergonhoso, e, se a i n d a ocorre o
presente fato, posso assegurar que i g n o r a m completa-
mente.
— A FAB, no Exterior, só faz l i n h a p a r a a Bolívia?
— inquiriu o dr. Sebastião.
102
— Não, t e m l i n h a s p a r a o u t r o s países, e n t r e eles
o P a r a g u a i , por exemplo. M a s isto n ã o vem ao caso.
O interesse na Bolívia n ã o era a cocaína boliviana. Rico
viciado n ã o aceita esse tipo de pó. Só se utiliza, só
se satisfaz com a alemã, cuja m a r c a é "Merck". Há
facilidades de se obter esse tipo na Bolívia. Olhe, doutor,
m u i t a gente boa da G u a n a b a r a e de São P a u l o recebia
esse pó, que vinha da Bolívia, através dos aviões da
F o r ç a Aérea Brasileira. O general se encarregava de
distribuir a l g u m a s p a r t e s em Brasília. Eu, às vezes,
e n t r e g a v a no Rio e até em São Paulo. Porém, quase
sempre, os interessados b u s c a v a m d i r e t a m e n t e no a p a r t a -
m e n t o do general, na Capital Federal.
103
VI
104
n u m a das poltronas do ônibus da Viação Cometa, per-
correndo, ao lado de Belinha, a sempre perigosa Via
D u t r a , em d e m a n d a do Rio de Janeiro.
Belinha preferiu utilizar-se do ônibus por ter ficado
com receio de enfrentar a e s t r a d a com seu automóvel.
— Pois é isso mesmo, Adelaide — dizia-me m a l i -
ciosa, Belinha. — Todos os anos se celebra, ali u m a
festa especial. É difícil eu perdê-la. Sempre há a novi-
dade da presença de a l g u é m de fama internacional.
Desta feita é o dono da boate q u e m vem vindo com
u m a bela a r t i s t a de Hollywood p e n d u r a d a no seu
Draço...
105
comprou o ú l t i m o a n d a r . Ligou os dois a p a r t a m e n t o s
i n t e r n a m e n t e e ali instalou u m a boate p a r t i c u l a r , cujo
ingresso é dos mais difíceis, pois só q u e m é de s u a s
estreitas relações pode desfrutar dos grotescos b a c a n a i s
q u e vez por o u t r a , são levadas a efeito n a q u e l e a n t r o .
A i n a u g u r a ç ã o foi das mais c o m e n t a d a s na socie-
dade carioca. A m a i o r p a r t e por ouvir dizer, pois poucos
são os "privilegiados" que a f r e q ü e n t a m . . . Nessa festa
resolveu-se d e n o m i n a r a boate " B o c e t i n h a de Ouro". Há
um famoso cronista social do Rio que conhece todos os
pormenores das festas que são realizadas no famoso
edifício da R u a Domingos Ferreira.
106
estado? Você vai piorar, Belinha. Olhe o que estou
lhe dizendo!
— O que se leva dessa vida é o que se goza e n ã o
o que se deixa, Adelaide.
107
ela voltou p a r a os Estados Unidos, quis passar a i n d a
a l g u n s dias no Rio, m a s o milionário traído, que a h a v i a
trazido ao Brasil, organizou u m a p a s s e a t a onde várias
faixas e cartazes a convidavam a deixar o Brasil, quali-
ficando-a de reles r a m e i r a . Foi um escândalo que teve
repercussão fora das fronteiras do Brasil. Você n ã o se
recorda?
— Agora estou ligando um fato ao outro — respondi,
com ar pensativo, como q u e m p e r s c r u t a o passado, pro-
c u r a n d o lembrar-se de um fato que na época foi notório.
108
O l h a n d o através do vidro da j a n e l a do t r e m que
e m o l d u r a v a o negror da noite, s e n t i a u m a terrível
sensação e experimentava u m a dor a g u d a em m e u peito,
a o saber que naquele i n s t a n t e , n a l o n g i n q u a Copacabana,
Belinha se e n t r e g a v a aos excessos de u m a noite de orgia
sexual, na mais torpe d a s depravações. Procurei esque-
cer aqueles fatos que c a u s a v a m revolta à a l m a , pales-
t r a n d o com a doente que me fazia c o m p a n h i a n a q u e l a
cabine confortável do " S a n t a Cruz." Este corria veloz
sobre os trilhos, r u m o a P i n d a m o n h a n g a b a . O estado
de Cláudia era deveras grave. Escolhera aquele meio
de locomoção como o m e l h o r p a r a a sua saúde. O t r e m
d e aço n ã o p á r a , n o r m a l m e n t e , e m P i n d a m o n h a n g a b a .
A ú n i c a p a r a d a é em Cruzeiro, depois direto p a r a São
Paulo. P o r é m consegui, da a l t a direção da C e n t r a l do
Brasil, a q u e l a p a r a d a especial, por c a u s a da doente que
eles conduziam. Foi u m a l u t a de dois dias p a r a b u s c a r
essa autorização, m a s no final l o g r a r a êxito. Levara
a o diretor d a C e n t r a l u m a c a r t a d o Ministro d a S a ú d e
e aquele resolvera, e n t ã o , a t e n d e r m e u pedido.
Olhei-a e pedi:
109
— Conte-me o que se passou com você Cláudia.
Estou vivamente interessada em conhecer a suas his-
tória.
— Eu, mais do que n i n g u é m , Adelaide, precisava
da a j u d a de pessoas influentes p a r a obter m i n h a inter-
n a ç ã o n u m sanatório de tuberculosos. A c h a p a radio-
gráfica a c u s a r a a existência de p e q u e n i n a m a n c h a
cinzenta no p u l m ã o esquerdo. Ela poderia agravar-se,
se n ã o t e n t a s s e a cura. E essa c u r a , n a q u e l a m a l d i t a
t a r d e ensolarada, n a avenida Atlântica, veio n a forma
de um alto funcionário do IBC, que ocupava, como res-
ponsável, a "suite presidencial" de famoso hotel carioca.
Ia atravessar a avenida Atlântica, q u a n d o o c a r r o preto,
c h a p a oficial, e o e m b l e m a verde-amarelo no parabrisa,
p a r o u b e m n a m i n h a frente.
110
quinhos, e b r i l h a v a m q u a n d o ele se a p r e s e n t o u a m i m .
A doença, efetivamente, a i n d a n ã o t i n h a feito q u a l q u e r
estrago d e maior m o n t a e m m e u organismo.
— Meu n o m e é Oswalco. .. e o seu?
— Cláudia.
— Bonito n o m e . . . é até sugestivo. Carioca?
— Sou, e o s e n h o r ?
— Do P a r a n á , m a i s precisamente de L o n d r i n a . Sou
casado e t e n h o cinco filhos, um dos quais e s t u d a n u m
colégio de J a c a r è z i n h o . A t u a l m e n t e t r a b a l h o no IBC.
Você conhece o P a r a n á ?
— Não, n u n c a estive lá, m a s gostaria i m e n s a m e n t e
de conhecê-lo. Ainda n ã o fui a São Paulo, que é tão
p e r t i n h o do Rio!
111
ser borrasca, espinho, tristeza, n u m a vertigem inespe-
r a d a , tenebrosa. A noite espêssa, cheia de morcegos,
sem esperanças, abateu-se sobre m i m e me reduziu ab
estado em que me encontro: 24 anos de idade e 32 quilos
de peso, com dois pulmões perfurados de cavernas,
reduzidos à c i n q ü e n t a por cento do seu volume, e exíguas
esperanças de sobrevivência...
Grossas l á g r i m a s começaram, a m o l h a r o rosto de
Cláudia. Quis confortá-la com palavras e gestos cari-
nhosos. Obriguei-a a descansar um pouco, q u a n d o a
tosse seca voltou a atacá-la, n u m acesso que bem revelava
como seu organismo se encontrava.
— É r a m o s q u a t r o jovens. Todas buscando, como
eu, um favor dos poderosos que íamos visitar e com eles
passar u m a s horas, — prosseguiu Cláudia.
U m a dela sabia vários idiomas e ambicionava alcan-
çar u m a colocação no Exterior, através do próprio IBC.
A o u t r a buscava auxilio político p a r a i n t e r n a r um
irmãozinho r e t a r d a d o m e n t a l e a terceira, funcionária
do DCT, queria ser transferida p a r a São Paulo.
Oswaldo achava-se no amplo salão de recepção, à
nossa espera. Confesso que me senti m a l a n t e o luxo
exagerado que se via no famoso hotel de Copacabana.
T ã o logo ele me reconheceu, foi ao m e u encontro, sorri-
d e n t e . Fomos p a r a o a n d a r superior, onde se fizeram
as apresentações. Assustamo-nos: e r a m nove h o m e n s ,
a l g u n s já idosos. Senti que h a v i a decepção nos olhos
da maioria pelo n ú m e r o de m o ç a s : q u a t r o p a r a nove
h o m e n s ! M a s que fazer! Não p u d e r a conseguir nove
coleguinhas. Mesmo essas q u a t r o moças fora um t r a -
b a l h ã o p a r a convencê-las.
112
"apartamento-presidencial'. S u b i m o s e m q u a t r o casais
e os demais cinco h o m e n s f i c a r a m no bar do hotel,
t o m a n d o a l g u m a bebida.
F i c a m o s bebendo e comendo alguns salgadinhos que
o garçon trouxera, durante mais de u m a hora. Todas
n o s e s t á v a m o s altas. O s h o m e n s n ã o e s c o n d i a m a ale-
g r i a a r t i f i c i a l p r o v o c a d a pelo excesso d o álcool. Na
m e s i n h a d e c a b e c e i r a d e u m a das c a m a s h a v i a u m r á d i o
embutido. L i g a d o , fez p e n e t r a r n o a m b i e n t e s e n s u a l
melodia. J u n t o s , os quatros pares ensaiaram os pri-
m e i r o s passos d e d a n ç a q u e e n v o l v i a o a p a r t a m e n t o
presidencial do mais famoso hotel do R i o de J a n e i r o .
E nesse enleio p r ó p r i o d o a m b i e n t e e m q u e v i v í a m o s
àquela hora, n e m notamos quando os cinco companheiros
de Oswaldo chegaram também no apartamento. Sen-
t i m o s a p r e s e n ç a deles q u a n d o a v o z e n r o l a d a de um
anunciou:
— T a m b é m queremos brincar. . .
H o u v e , d e i n í c i o , u m a e u f o r i a . O s o l h o s dos c i n c o
h o m e n s e s t a v a m v í t r e o s , i n d i c a n d o a l t a d o s a g e m alcóoli-
cas. O s n o v o s i n d i v í d u o s n o s c e r c a r a m n u m a r o d a v i v a
e aos g r i t o s a l e g r e s i a m f o r ç a n d o a r e t i r a d a de nossas
roupas. A resistência que poderíamos oferecer era mí-
n i m a e em poucos as q u a t r o e s t a v a m c o m p l e t a m e n t e
nuas no apartamento presidencial.
C o m e ç a m o s a ser j o g a d a s u m a a u m a c o n t r a o s
homens. Um tal de Carlos gritou que ia começar o
futebol e n u n c a i m a g i n á r a m o s que nós seríamos a bola
c o m que os nove tarado se i a m divertir. O primeiro
p o n t a p é q u e s e n t i n a s costas, v i o l e n t o , a t e r r o r i z a n t e ,
jogou-me na direção de Oswaldo que, sorrindo, me re-
c e b e u e c o m u m esforço h e r c ú l e o a t i r o u - m e p a r a o a r ,
fazendo-me estatelar no chão atapetado, de pernas
113
abertas, n u m a a t i t u d e lasciva que levou todo m u n d o ao
riso bestial, escancarado. Sem a i n d a ter-me refeito do
susto inicial, senti, de repente, um deles sobre m i m , na
t e n t a t i v a de possuir-me violentamente. Rolamos pelo
chão, a n t e a resistência que passei a oferecer. E n q u a n t o
isso, as demais c o m p a n h e i r a s sofriam as m e s m a s b r u -
talidades no c h a m a d o jogo de futebol em que i n v o l u n t a -
r i a m e n t e nos t r a n s f o r m á r a m o s . Divertimento sádico,
no qual nossas l a m ú r i a s , nossas queixas, nossos peque-
nos gritos de dor, c o n t r i b u í a m p a r a maior alegria dos
perversos que nos a t a c a v a m .
114
"via crucis" c o n t i n u o u d u r a n t e três anos e somente
hoje consegui, m u i t o t a r d e , o repouso de um hospital.
A n a r r a t i v a de Cláudia t e r m i n o u em choro excitado,
violento, t r ê m u l o .
* * *
115
c o n t r a a luz da janela, sacudia negativamente. Virou-se,
depois, p a r a m i m , e o m e n e i o do c o r p o , o s i l ê n c i o q u e
i m p ô s ao a m b i e n t e e a t r i s t e z a de seus o l h o s , f i z e r a m - m e
c o m p r e e n d e r q u e C l á u d i a e r a u m caso s e m e s p e r a n ç a s .
— É d i f í c i l de p r o g n o s t i c a r . É certo, p o r é m que
n o p r i m e i r o a t a q u e d e h e m o p t i s e ela n ã o r e s i s t i r á . V e i o
m u i t o tarde para o hospital. ..
A s f a r r a s d o a p a r t a m e n t o p r e s i d e n c i a l são a t é h o j e
p a g a s pelos c o f r e s p ú b l i c o s . . .
116
VII
Fiz-me de incrédula:
— T o d o o s a n a t ó r i o s a b e r i a disso se fosse v e r d a d e ,
Inês.
— N ã o t e n h o a l í n g u a solta, o r a ! Recorda-se q u a n -
d o v o c ê m e c o n t o u o q u e o c o r r e r a e n t r e o s dois n a q u e l a
n o i t e , n o i n t e r i o r d o a p a r t a m e n t o dela? N a d a disse a
n i n g u é m , m a s o fato é que todo m u n d o sabia, no dia
seguinte. A discussão em v o z alta despertou as v i z i n h a s
e todas v i r a m q u a n d o o T i ã o saiu do a p a r t a m e n t o de
Diana. A c h o q u e o f a t o s e r v i u de lição e a g o r a eles
se e n c o n t r a m fora do prédio, na Casa de Hóspedes. N ã o
acredito que u m a m u l h e r b r a n c a se vá submeter a um
n e g r o p o r u m s i m p l e s c a p r i c h o . O u ele é gostoso m e s -
m o . . . o u ela g o s t a dele. A c a b o u - s e , p r o n t o . É isso s i m ,
queira ou não queira, sua palhaça!
117
— Bem, m a s o que quero combinar com você é
o u t r a coisa. Hoje é o baile de a b e r t u r a da t e m p o r a d a
no Grande Hote. ..
— . . . m a s . . . m a s . . . e u m e informei e descobri q u e
com um jeitinho a gente e n t r a com q u a l q u e r t r a j e . . .
M u i t a gente vai com traje sem ser a r i g o r . . . T á ?
118
negativa. Quis saber p a r a que era o atestado. Disse-lhe
a verdade a aí, e n t ã o piorou. Não deu mesmo. P a r a
você ele disse que n ã o havia inconveniente a l g u m porque
sabia que estava aqui a p e n a s p a r a repouso. É um c h a t o ,
tá?
Sorri satisfeita pela decisão do dr. Sebastião em
ter-se negado a falsificar um atestado.
— Vou sim, s u a c h a t a !
* * *
119
— N u m a casa de campo, na Vila, perto do Tenis
Clube.
120
da avenida a p e d r e g u l h a d a , porém, o motor do automóvel
enguiçou e parou, em definitivo. I n ê s soltou u m a p r a g a :
— Vai ver que este desgraçado t a m b é m está t u b e r -
culoso!
T e n t a m o s colocar o veículo em movimento, sem
êxito.
121
— Upa! Q u e m será?
Dois vultos a c a b a v a m de deixar a Casa de Hóspedes
e se dirigiam p a r a o edifício do Sanatório. Voltaram-se
q u a n d o ouviram o b a r u l h o de nossos pés nos pedre-
gulhos. C o r r e r a m rápidos a t é o barracão-depósito de
l e n h a s e desapareceram no escuro.
T u d o aconteceu n u m a fração de m i n u t o s . Inês e
eu ficamos imóveis. Não sabíamos se retrocedíamos ou
continuávamos.
— É o Tião com a miss G u a r u j á , Adelaide! Juro
q u e é!
— Eu vi t a m b é m , I n ê s ! Eu acho que são eles, sim!
Vamos c o n t i n u a r . Passaremos fingindo que n a d a vimos.
Fechei os olhos e mordisquei os lábios, t o m a d a pelo
ódio, q u a n d o passei em frente ao b a r r a c ã o de lenhas.
T i ã o fora m e s m o vencido pela i n s i n u a n t e e m o r d a z
Diana!
* * *
122
q u a n d o se certificou de que n i n g u é m ouvira o b a r u l h o
que fizera p a r a abrir a porta, saiu decidida. Vestia u m a
capa de c h u v a que cobria seu "peignoir" de nylon esto-
fado. Calçava u m a s sapatilhas silenciosas. Foi indo
l e n t a m e n t e pelo corredor, voltando-se a todo i n s t a n t e ,
p a r a ver se a observavam. Ao certificar-se de que podia
a n d a r t r a n q ü i l a , n ã o m a i s voltou a cabeça.
123
Nos seus olhos, porém, havia um brilho esquisito,
assemelhando-se a desdém. Efetivamente, n ã o infun-
d i a m confiança.
D i a n a sentou-se na c a m a , ao lado do médico negro.
— Não a d i a n t a você fugir de m i m , Tião. Eu virei
procurá-lo, de qualquer forma. Serei sua a m a n t e , a
qualquer preço. Estou decidida. Não vou t e r m i n a r a
" o n d a " c o n t r a você porque já a n d a m desconfiadas de
nós dois. Este m e u gesto seria a confirmação do que
p e n s a m a nosso respeito. .. Certo?
124
T i ã o i n q u i r i u - a c o m o s olhos.
— M e u n o i v o n ã o está a q u i . J á d i s p e n s e i a s m i n h a s
a c o m p a n h a n t e s , m a s a p e n a s p o r u n s dias, a f i m d e
m a n t e r a residência em m i n h a s mãos. V a m o s para lá
de m a d r u g a d a . Saímos daqui à meia-noite, no m á x i m o
u m a h o r a , e voltamos às duas ou três horas da m a n h ã .
N i n g u é m poderá desconfiar de m i n h a saída. Quase
todas as e n f e r m a s p r a t i c a m fugas à noite, p a r a i r e m
a m a r na cidade. .. Q u e tal o plano?
— N ã o sei, l o u c u r a , p u r a l o u c u r a . . . — tartamu-
d e o u o dr. S e b a s t i ã o .
E D i a n a e x i b i a , c o m o s e fosse u m t r o f é u , a c h a v e
da residência de hóspedes do S a n a t ó r i o S. Pedro.
125
— "Não, n ã o pode ser. Ela n ã o teria coragem!
Mas o que t e r á ido fazer no q u a r t o dele? Os m i n u t o s
em que lá ficou n ã o d a v a m p a r a n a d a . . . "
126
Ele q u e desejava ver o t e m p o paralisado, sentia que o
relógio corria m a i s do que o n o r m a l . Logo seria u m a
h o r a d a m a n h ã e n ã o sentia coragem suficiente p a r a
atravessar a p o r t a do edifício e e n t r a r na Casa de
Hóspedes.
E seus p e n s a m e n t o s se volatilizavam, q u e i m a v a m - l h e
o cérebro, n u m a t o r t u r a d e s u m a n a .
127
Mas, de repente, ele se encolheu todo, como que
p r o c u r a n d o se ocultar. Seus olhos abriram-se, exagera-
damente. Lá estava ela, dirigindo-se p a r a a Casa de
Hóspedes! Sim, D i a n a n ã o iria faltar ao encontro!
Agora, a decisão dependia dele: ir ou n ã o ir, eis a dúvida
que o martirizava.
Lá fora a c h u v i n h a m i ú d a a u m e n t a r a . Um vento
frio gelava os ossos. O dr. Sebastião esfregou as mãos
espalmadas, b u s c a n d o aquecer-se. Sondou, demorada-
m e n t e , todo o pátio que se limitava com o Sanatório.
Deslocou-se rápido a t é u m a das árvores e olhou o prédio,
pesquisando-o cautelosamente. Q u a n d o se certificou de
que n i n g u é m o havia visto, é que se dirigiu, resoluto,
p a r a a Casa de Hóspedes.
S u a s m ã o s t r e m e r a m , visivelmente, ao girar a m a -
çaneta.
Abriu a p o r t a e e n t r o u rápido, m e r g u l h a n d o em
total escuridão. O nervosismo a u m e n t o u . Passou a
língua pelos lábios ressequidos.
128
E u m a luz de l a n t e r n a de m ã o se acendeu, ilumi-
n a n d o a p e n a s a p a s s a g e m p a r a o dr. Sebastião c a m i n h a r .
D i a n a prosseguiu:
— Gosta?...
129
na semi-escuridão que se fizera no aposento com o pe-
queno facho de luz oriundo da cama.
O dr. Sebastião i n t e r r o m p e u - a :
— Diana...
130
pretensioso! Você vai agora decidir: ou me possui ou
compra u m a inimiga irreconciliável p a r a sempre!
Virou-se, enraivecido, e t o m o u o r u m o da p o r t a de
saída da Casa de Hóspedes.
131
contro com D i a n a , na Casa de Hóspedes, tivera u m a
testemunha: Inês!
Ela vira q u a n d o D i a n a saíra, pouco depois, soltando
imprecações, batendo, com violência, os pés nos pedre-
gulhos.
* * *
132
quela noite, a urna h o r a da m a n h ã , esperava-o na Casa
de Hóspedes:
Tião,
133
E r a m m a i s d e d u a s e meia d a m a n h ã q u a n d o a m b o s
s a í r a m , a m u a d o s um com o outro. Lentos, silenciosos,
c a m i n h a v a m em direção ao prédio do Sanatório, pró-
ximo à s árvores frondosas. Nisto ouviram u m m u r m ú r i o
de vozes e o r u í d o de pisadas nos p e d r e g u l h o s .
As d u a s pessoas p a s s a r a m r e n t e s ao b a r r a c ã o .
O l h a r a m , displicentemente, p a r a o seu interior. Não
p a r a r a m e s e g u i r a m p a r a o prédio do Sanatório.
134
— Além de negro, é covarde! — respondeu, com
rancor, a bela Diana. — Vamos, vamos embora negro!
135
VIII
136
Passo F u n d o é u m a cidade s i t u a d a na região do
Vale do Rio J a c u í . E m b o r a o município t e n h a um terri-
tório plano, é servido, t a m b é m , por i n ú m e r o s rios e
ribeirões. Belos e m a n s o s lagos são formados por esses
rios, em locais ermos, agradáveis, convidativos. Lília
sabia de um desses lugares e lá ia sempre com s u a
a m i g a n a s t a r d e s m a i s quentes e ensolaradas. No v e r ã o
o município de Passo F u n d o chega a ter u m a t e m p e -
r a t u r a de 40 g r a u s à sombra.
M u d a s , e s p a n t a d a s , n u m a situação p r a t i c a m e n t e
sem saída, a m b a s n ã o responderam. Ele insistiu:
137
m ã o direita começou a rodar u m a das peças í n t i m a s de
u m a delas, p e r g u n t a n d o , desaforado:
— De q u e m é esta?
— Saia daí, saia! Vá embora! Vá! — g r i t a r a m as
d u a s moças, já revelando nervosismo na voz.
— Só se p r o m e t e r e m se e n c o n t r a r comigo hoje à
noite.
Lília adiantou-se, rápida, feliz pela proposta que
talvez fizesse com que o h o m e m fosse embora:
— Aceitamos, sim. Agora vá embora. P u x a , como
o s e n h o r é teimoso!
— E n c o n t r o sim, ordinário!
— Não, n ã o ! Assim com raiva n ã o quero. E olhem,
n ã o t e n t e m m e e n g a n a r . Vejam n a s m i n h a s mãos.
E, i m p r u d e n t e , exibiu como troféu g a n h o na b a t a l h a ,
u m a m á q u i n a fotográfica. — T e n h o ó t i m a s poses de
vocês a q u i d e n t r o ! — explicou, vitorioso.
— O senhor é um desavergonhado! — desabafou,
Lília.
Ele se levantou, rindo, e a c e n a n d o lembrou:
— Até a noite, no Largo.
* * *
138
Na s u n t u o s i d a d e do gabinete de t r a b a l h o do presi-
d e n t e da g r a n d e i n d ú s t r i a siderúrgica, os dois h o m e n s
conversavam, t r a ç a n d o planos financeiros, indiferentes
ao calor q u e reinava lá fora, na bela avenida que cortava
a capital de n o r t e a sul. O ar condicionado dava ao
a m b i e n t e aquele frescor convidativo, a t é m e s m o aca-
riciante.
— É um golpe fabuloso, presidente. Aplica-se rela-
t i v a m e n t e pouco e os lucros s u r g i r ã o quase sem t r a b a l h o
n e n h u m , nos b a s t i d o r e s . . . g a n h a - s e fábulas!
Q u e m assim falava era u m h o m e m d e e s t a t u r a
média, de a p a r ê n c i a simpática, t r a j a n d o vistoso t e r n o de
c a m b r a i a de linho. Seus olhos miúdos, q u e se a b r i a m
e se fechavam nervosamente, diziam que estava excitado
pelo negócio que t r a t a v a com o dirigente da g r a n d e
indústria.
O h o m e m de e s t a t u r a m e d i a n a era u m a espécie de
diretor-secretário executivo da presidência de u m a d a s
maiores siderúrgicas do país. E r a m amigos íntimos,
inclusive colegas de farras, e nessa amizade, evidente-
m e n t e , e n t r a v a o dinheiro da empresa, dinheiro q u e
c a d a vez m a i s fortalecia a fortuna do secretariozinho.
139
a r r i s c a n d o e às vezes há correrias. Há a t é r u m o r e s de
grossa p i c a r e t a g e m nesse negócio e n ã o podemos nos
e n t r e g a r n a s m ã o s de q u e m pode, a m a n h ã , sem o m e n o r
escrúpulo, nos denunciar. Isto, velho, dá cadeia! Lem-
bra-se do " e s t o u r o " d a q u e l a firma estrangeira, lá em
São Paulo? Caiu a t é na concordata.
140
— Bem, p r e p a r e os planos de l a n ç a m e n t o . Quero
s e n t i r a aceitação e depois darei a p a l a v r a final —
sentenciou o presidente.
E depois, saboreando um cafezinho, p a s s a r a m a
conversar sobre o a s s u n t o predileto dos dois: a I l h a d a s
Pombas.
E r a u m a ilha u m pouco a f a s t a d a d o t u m u l t o d a
Capital e onde os milionários de Pôrto Alegre a d o r a v a m
passar os fins de s e m a n a , local quase s a g r a d o dos ricos
e onde a classe m é d i a e os pobres, em geral, n ã o t i n h a m
m e n o r possibilidade de acesso.
141
sição dessas pedras. N e n h u m a delas foi ali colocada
pela m ã o d o h o m e m , m a s todas s e a c h a m inclinadas n a
direção norte. Comenta-se que o vento fortíssimo, q u e
c o n s t a n t e m e n t e sopra na I l h a d a s Pombas, teria feito
com que as pedras, depois de certo tempo, se i n c l i n a s s e m
n a q u e l a direção.
Há a i n d a u m a p e q u e n a capela, também toda f o r m a d a
de pedra, possuindo um ar lírico, r o m â n t i c o .
As pedras, quase todas de cor clara, quase b r a n c a ,
é que fornecem o aspecto a t r a e n t e da Ilha, devendo ser
esta a origem do seu n o m e .
Do alto do g r a n d e prédio construído pelo gênio
Niemayer, tem-se u m a visão p a n o r â m i c a da I l h a d a s
Pombas. É algo indescritível pela beleza que a p r e s e n t a :
um vale imenso, de m a i s de cem quilômetros, esten-
dendo-se a t r a v é s das paredes de vidro, n u m espetáculo
de imponência que nos enche de a d m i r a ç ã o e poesia.
142
t e r m o , no que diz respeito ao dinheiro. É r a r a a m a n -
são que ali t e n h a c u s t a d o menos de 100 milhões de
cruzeiros, havendo a l g u m a s que u l t r a p a s s a r a m 250
milhões!
É em tal l u g a r que se r e ú n e m os banqueiros, os
industriais, os altos comerciantes, os políticos de s i t u a ç ã o
financeira invejável!
A I l h a das P o m b a s em t u d o se assemelha a um
paraíso terrestre, exclusivamente criado por Deus p a r a
os ricos, p a r a os multimilionários, e t o t a l m e n t e vedado
aos pobres.
143
O i n d u s t r i a l era um h o m e m riquíssimo. D o m i n a n d o
u m a d a s maiores siderúrgicas d o país, possuía a i n d a , n a
região de Bagé, no sul-leste do Rio G r a n d e do Sul, gran-
des fazendas onde a l g u m a s c e n t e n a s de operários t r a -
balhavam. O dinheiro l h e v i n h a fácil. Dedicava-se
t a m b é m à p e c u á r i a possuindo cerca de 20 mil cabeças
d e gado. E r a , porém, d e u m a g a n â n c i a sem limites e m
se t r a t a n d o de dinheiro. P a r t i c i p a v a de q u a l q u e r nego-
c i a t a desde que esta lhe rendesse m a i s a l g u n s milhões
e x t r a s . P r o c u r a , e n t r e t a n t o , sempre fugir da responsa-
bilidade: o diretor-secretário, geralmente, era q u e m assu-
m i a o ô n u s dos problemas m a i s graves, p r i n c i p a l m e n t e
q u a n d o estes a m e a ç a v a m vir a público.
144
na casa, g e r a l m e n t e de madeira, da moça. Exibia seu
poderio econômico, a g u ç a v a a cupidez da m ã e (quase
sempre as m e n i n a s n ã o t i n h a pai) e acabava levando a
m e n i n a p a r a P ô r t o Alegre. P a r a a l c a n ç a r esse objetivo
fazia u m a a u t ê n t i c a c o m p r a : deixava largas i m p o r t â n -
cias financeiras j u n t o a familia e levava a g a r o t a pro-
m e t e n d o u m a vida de fausto p a r a a m e s m a . Na maioria
dos casos as m o c i n h a s n ã o t i n h a m mais do que quinze
a n o s de idade! O c a n a l h a " c o m p r a v a " a " c a r n e b r a n c a "
que m a i s lhe apetecia, t r a n s f o r m a v a a inexperiente me-
n i n a em s u a a m a n t e d u r a n t e a l g u n s meses e depois a
e n c a m i n h a v a a a l g u m a a m i g a que se encarregava de
colocá-la em casas de prostituição da própria Capital!
145
a solução dos problemas econômicos, n u m f u t u r o n ã o
m u i t o remoto. A jovem se e n c o n t r a v a com o n a m o r a d o
rico quase forçada pela ambiciosa g e n i t o r a .
146
Lília t a m b é m foi convenientemente conquistada e
depois de sua m ã e receber trezentos mil cruzeiros, deixou
s u a cidade n a t a l , sua vida p a c a t a e ingressou no falso
fausto que o miliardário industrial lhe propiciava. Com
o t e m p o se a c o s t u m o u com as g r a n d e s b a c a n a i s da I l h a
das P o m b a s , onde ela passou a conhecer o mais luxuoso
l u p a n a s de P o r t o Alegre.
M a r g a r e t h , e n t r e t a n t o , era o segredo m a n t i d o p a r a
seu amigo íntimo.
147
O p a r t o ocorreu na própria m a n s ã o , tendo o auxílio
de médicos e p a r t e i r a s vindos especialmente do Rio.
148
venda dos títulos estava começando a criar embaraços
p a r a a empresa. Havia falta de dinheiro e os venci-
m e n t o s estavam sendo protelados, diariamente. Nos
meios econômicos já h a v i a m r u m o r e s de " c o n c o r d a t a "
da g r a n d e siderúrgica. Os bancos iniciavam u m a série
de restrições creditícias.
— Quer dizer q u e . . .
149
— Mas eu vou ficar na miséria se fizer isso! Vou
ficar a r r u i n a d o !
150
Foi q u a n d o aconteceu o que n e n h u m dos dois espe-
r a v a : Lília compareceu à polícia e denunciou o presidente
da g r a n d e i n d ú s t r i a como corruptor de menores. Ela
era a p e n a s u m a das i n ú m e r a s vítimas!
151
A m ã e da jovem levantou-se, nervosa. Queria saber
dos pormenores e q u a n d o ele aventou a possibilidade
de ter que vender a luxuosa m a n s ã o e m u d a r - s e p a r a
o interior, a fim de recomeçar a vida, a velha e inte-
resseira s e n h o r a explodiu:
— Você está maluco? E a repercussão desse gesto?
Esquece-se que temos a g i t a d a vida social? Você n ã o
t e m amigos? T e m , sim! E u sei que t e m ! Peça dinheiro
emprestado a eles!
152
— Eureca! Descobri a saída! Descobri!
N u m a caixa que m a n t i n h a c u i d a d o s a m e n t e g u a r d a d a
no interior de um dos a r m á r i o s de seu q u a r t o , tirou
vários envelopes, e gritou, vitorioso:
E e r a m r e a l m e n t e quinze h o r a s q u a n d o , p a r a e s p a n t o
da maioria dos funcionários do gabinete, o presidente
mandou entrar o s e u ex-secretário, o homem que dera
153
um desfalque de mais de três bilhões de cruzeiros, quase,
levara a empresa à falência!
— Qual é o seu preço, c a n a l h a ? — vociferou o
presidente, t ã o logo seu ex-secretário e n t r o u na Sala.
— Calma, h o m e m ! O que é isto? Deixa-me olhar
essa sala de tão g r a t a s recordações! Confesso que estava
com s a u d a d e disso tudo! Pensei que n u n c a mais
entraria aqui. ..
Havia u m a ironia e n e r v a n t e na voz e nos gestos
do ex-secretário.
O a m b i e n t e estava pesado.
154
— Trezentos milhões!
— Você está ficando louco! É muito!
— Trezentos milhões de cruzeiros! Quer que eu
repita, m a i s u m a vez? Quero trezentos milhões de
cruzeiros!
Houve u m silêncio sepulcral na ampla sala da
presidência.
O presidente olhou-o, rancoroso. Seus dedos t r e -
m i a m , d e m o n s t r a n d o a profunda t e n s ã o nervosa de que
estava acometido. F i n a l m e n t e declarou:
— Dou a m e t a d e !
— E n t ã o , a t é logo. M a n d a r e i fazer as revistas e
as distribuirei por toda P ô r t o Alegre, além de e n t r e g á - l a s
à Lília p a r a que ela anexe ao processo que já está no
fórum. Há a i n d a um texto que n ã o foi composto e
que t o r n a r á a I l h a das P o m b a s o l u g a r m a i s famoso
do Brasil!
155
— Sem pazes! Sem r e t o r n o a q u a l q u e r vislumbre
de amizade! — gritou, mais nervoso ainda, o presidente,
t e n t a n d o impedir que o moço continuasse.
— Calma! Calma, h o m e m ! Deixe - m e c o n c l u i r ,
depois você responde, ora!
156
a um mês. Não seria possível esperar mais, em virtude
do estado da noiva: dois meses quase de gravidez!
* * *
— Não me casarei vestida de noiva, m a m ã e ! Isto
é u m a afronta a Deus! Não sou virgem e já t e n h o
quase dois filhos! Não, m a m ã e , t e n h o a t é v e r g o n h a
de p e n s a r nisto!
— M a m ã e , n ã o posso!
157
Um longo m u r m u r i o correu por toda a nave da
igreja q u a n d o a bela M a r g a r e t h e n t r o u no templo e
desfilou, meiga, corada, pelo corredor, em direção ao
altar.
D i a n t e do altar, os olhos tristes da moça encararam
a i m a g e m de Jesus e d u a s l á g r i m a s p r i n c i p i a r a m a se
formar no c a n t o dos olhos.
Eia estava toda de branco, com um enorme véu e
a grinalda onde n ã o f a l t a v a m o s . pequenos r a m o s de
laranjeiras, indicando pureza!
Ali estava ela, representando a c a s t i d a d e p e r a n t e o
a l t a r de Cristo, tendo um filho no ventre de quase t r ê s
meses!
Seus olhos e s t a v a m tristes, porém ela conseguiu
sorrir p a r a a m u l t i d ã o de fotógrafos que se acotovelava,
a t r á s do sacerdote que abençoava o casal. E foi com
esse sorriso luminoso que ela saiu na capa de várias
revistas i m p o r t a n t e s do país!
Q u a n d o a siderúrgica, lá está ela, i m p o n e n t e , repre-
s e n t a n d o o poder econômico imbatível! Ela se recuperou
t o t a l m e n t e . Todas as moças r e t i r a r a m a queixa c o n t r a
o g r a n d e industrial e Lilia teve um t r a t a m e n t o especial.
C o n t i n u o u a freqüentar a sociedade, m a s a sua vida de
devassidão lhe afetou os pulmões e hoje se e n c o n t r a v a
i n t e r n a d a n u m rico sanatório p a r a tuberculosas, e m
Campos do J o r d ã o .
Mas q u e m quiser conhecer maiores detalhes desse
escândalo que abalou a sociedade r i o g r a n d i n a pode en-
c o n t r a r no F ó r u m de Pôrto Alegre o volumoso processo,
arquivado, é verdade, m a s como d o c u m e n t o da g r a n d e
devassidão que há nos bastidores das elites, que t e i m a
em se a p r e s e n t a r com u m a capa de austeridade que é
a pior prova de sua falsidade.
158
IX
159
Saíra às escondidas do Sanatório. Não queria q u e
a Madre tomasse conhecimento de que me e n c o n t r a v a
fora. Se houvesse a coincidência com a saída de a l g u m a
enferma, c e r t a m e n t e as discussões recrudesceriam.
160
impiedosa, sincopada de trovões assustadores e relâm-
pagos m a i s terríveis ainda.
161
A pessoa com q u e m ela falava p u x o u um Cigarro e
j u n t a n d o a s d u a s m ã o s e m forma d e concha, p a r a evitar
o vento, riscou o fósforo.
A c h u v a começou a a p e r t a r n o v a m e n t e e o b a r u l h o
ensurdecedor dos pingos d ' á g u a , t a m b o r i l a n d o sobre o
t e l h a d o de zinco, voltou a invadir todo o depósito de
lenha. Relâmpagos z e b r a r a m o céu negro, n u m espe-
táculo apavorante.
162
de tosse, que e r a m abafados pelo b a r u l h o da c h u v a
caindo no t e l h a d o do depósito de l e n h a s .
Os relâmpagos i l u m i n a v a m r e p e t i d a m e n t e aquela
cena tétrica e eu me sentia desfalecer de pavor.
— Mata! Mata!
163
tivesse passado de a n g u s t i a n t e pesadelo. Fui-me a r r a s -
t a n d o pelas pilhas e emergi n a b e i r a d a com os olhos
fixos no chão, p a r a logo em seguida dar um grito de .
desespero!
164
Abri os olhos pela m a n h ã , com I n ê s me sacudindo:
— Acorde, m u l h e r ! Acorde!
165
F u i até o terraço, a t r a í d a pelos m u r m u r i o s que vi-
n h a m do pátio central, em frente do Sanatório.
166
m i ú d o despontou no c a n t o de m e u s lábios. Retornei
aos m e u s aposentos e p e r g u n t e i , com ar ingênuo, a I n ê s :
— Presa? — I n t e r r o m p i .
167
vimos n a q u e l a noite em que fomos ao baile de a b e r t u r a
da temporada, no G r a n d e Hotel. E, olhe, eles conheciam,
t a m b é m o depósito de lenhas, porque, q u a n d o nos viram,
correram p a r a lá. Lembra-se?
168
que fazer com as m ã o s algemadas. Fiquei profunda-
m e n t e chocada com o seu aspecto. As costas e s t a v a m
arqueadas, como sob a carga de t r e m e n d o peso.
169
— Reconhece esta camisa? — vociferava o policial
exibindo a vestimenta ao médico desconsolado.
— Sim, é m i n h a , sim! Mas j u r o que n ã o sei como
ela foi p a r a r naquele lugar. Não m a t e i n i n g u é m ! J u r o
que estou inocente! J u r o !
A negativa, os protestos de inocência do médico
negro, só serviam p a r a i r r i t a r mais a i n d a a a u t o r i d a d e
policial. P a r a o delegado de Campos do J o r d ã o aquilo
era um crime esclarecido e cujas provas n ã o d a v a m
m a r g e m a q u a l q u e r dúvida. A peça policial, contudo,
n ã o t i n h a o d o c u m e n t o básico, decisivo; a confissão
do réu!
170
Sem resposta da copeira, resolvera levantar-se e ela
m e s m a , pessoalmente, dirigir-se à copa e t o m a r o leite.
171
com a cabeça esfacelada! Ao seu lado estava a a r m a
do crime, u m a enorme a c h a de madeira!
D i a n a ao ser submetida a interrogatório pelo dele-
gado, que queria saber qual a razão que a levava a
desconfiar do médico negro, após vê-lo sujo de sangue,
molhado pela chuva e que relação poderia existir e n t r e
ela e seu noivo, foi mais explícita no seu depoimento:
— O dr. Sebastião me a m a v a . Queria me possuir
a qualquer preço. Foi m e u i r m ã o de c r i a ç ã o e d e s d e
t e n r a idade a l i m e n t a essa pretensão absurda. Devoto-lhe
ódio total, até que u m a noite ele me convenceu a rece-
bê-lo na Casa de Hóspedes, onde t r a t a r i a comigo sobre
um a s s u n t o de vida ou de morte. Assustei-me, e às
escondidas das demais enfermas, fui ter com. o médico
naquele local, único que n ã o p e r m i t i a t e s t e m u n h a s que
pudessem me desmoralizar. Pois bem, neste local, sr.
delegado, fui a t a c a d a e violentada pelo médico, que me
possuiu à força. Não podia dizer isso a n i n g u é m do
Sanatório, mesmo porque n ã o me acreditariam. Pensa-
r i a m logo que eu fora n o r m a l m e n t e a t é à Casa de Hós-
pedes e me e n t r e g a r a àquele i m u n d o ! Esperei e n t ã o
m e u noivo chegar p a r a lhe r e l a t a r o ocorrido e p a r a
que ele, às escondidas, sem escândalo, tomasse as provi-
dências necessárias, pois o Sanatório S. Pedro, além de
ter um. médico preto, este era t a r a d o , a t a c a n d o as enfer-
m a s como um débil m e n t a l ! Ele é um sexo-maníaco,
doutor! No dia do crime, à tarde, houve violenta alte-
ração e n t r e m e u noivo e o dr. Sebastião, no interior
da Casa de Hóspedes. Eu estava presente. Eles ficaram
de se e n c o n t r a r à noite q u a n d o , decidiriam as posições.
Em princípio ficara acertado que o dr. Sebastião, no
dia seguinte mesmo, iria embora do Sanatório. A po-
sição de a n t a g o n i s m o da maioria absoluta das enfermas
era u m a justificativa que n ã o despertaria qualquer sus-
172
peita, mesmo d i a n t e da sua decisão precipitada. Daí a
m i n h a certeza de que algo acontecera e n t r e os dois
q u a n d o vi as vestes e n s a n g ü e n t a d a s do dr. Sebastião. O
resto o senhor já sabe. Corri p a r a o prédio, acordei a
Madre, e às q u a t r o e pouco da m a n h ã os senhores che-
g a r a m ao Sanatório. F u i prêsa logo de início como
suspeita, por e s t a r e m m i n h a s vestes sujas de s a n g u e .
O que era n a t u r a l . Eu descobrira o cadáver de m e u
noivo. Abraçara-o, desesperada, n ã o a c r e d i t a n d o que o
m e s m o estivesse m o r t o .
* * *
173
c o m e ç a r a m a me a t o r m e n t a r . Não t i n h a mais paz de
espírito. Já h a v i a combinado com a Madre que iria
m e s m o embora. O crime é que me segurou m a i s tempo.
Comecei a a l i m e n t a r a idéia de sair i m e d i a t a m e n t e do
S a n a t ó r i o e ir a São Paulo. Ficaria a l g u n s dias na
Paulicéia e depois d e t o r n a r i a a Campos do J o r d ã o p a r a
visitar o dr. Sebastião. Ainda n ã o a d q u i r i r a c o r a g e m
p a r a fazê-lo. Não sabia como encará-lo. Aquelas m ã o s
acendendo o cigarro na escuridão do depósito de l e n h a s ,
e o b a r u l h o ensurdecedor da c h u v a caindo no t e t o de
zinco do depósito, q u e i m a v a m - m e o cérebro.
174
participado do mesmo. Se pelo menos n ã o utilizara a
a r m a assassina, sem dúvida ela encorajara o criminoso.
E r a , p o r t a n t o , co-autora! Por m a i s que fugisse dessa
decisão, m e u s p e n s a m e n t o s s e m p r e m e t r a z i a m p a r a essa
situação de fato: fora t e s t e m u n h a ocular do crime!
* * *
175
Virou-se p a r a mim. Seus olhos estavam injetados,
terríveis:
176
ciai e c e r t a m e n t e só na J u s t i ç a seria nomeado um
causídico "ad hoc".
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E foi t o m a d o por esses p e n s a m e n t o s que o delegado
de Campos do Jordão, tendo ao seu lado o escrivão,
chegou ao Sanatório S. Pedro, p a r a t o m a r novas decla-
rações de Diana.
Contudo, n ã o foi n a q u e l a tarde que a polícia con-
seguiu ouvir a jovem.
Um fato inesperado voltava, n o v a m e n t e , a modificar
a feição do inquérito: D i a n a estava grávida! Grávida
do médico negro do Sanatório! Médico que assassinara
seu noivo e já estava preso há q u a t r o meses na cadeia
da cidade, a g u a r d a n d o a conclusão do inquérito policial
p a r a ser julgado pela J u s t i ç a e p u r g a r seu hediondo
crime na Penitenciária do Estado!
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— Que se faça u m a operação! Há u m a justificativa!
Sou tuberculosa, doutor! Tuberculosa! Meu estado de
saúde n ã o a g ü e n t a r i a um p a r t o ! O senhor sabe disso!
179
XI
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— "Não a d i a n t a m a i s a r g u m e n t a r , m e u Deus!
T u d o foi mesmo c u i d a d o s a m e n t e p r e p a r a d o p a r a me in-
criminar. Vou ser condenado por essa h i d r a de mil
cabeças que é a elite!"
181
ódio, ao contrário, e m a n a v a m piedade. E foi com a voz
e m b a r g a d a pelo s e n t i m e n t o de t e r n u r a , compaixão, e,
sobretudo, religiosidade, que m u r m u r o u :
— Deus, Nosso Pai, senhor Jorge que perdoe t a n t a
heresia. O senhor dr,. Jorge, c e r t a m e n t e , n ã o sabe a
dívida espiritual que está adquirindo a o a n u n c i a r u m
propósito tão desalmado. Com s u a licença, p r e c i s o t r a t a r
de m e u s afazeres.
Com p o s t u r a , respeito, inclinou-se, E saiu, a p a r e n -
t a n d o a calma que o m o m e n t o exigia,
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— P e r d o a i - m e , S e n h o r , m a s n ã o está e m m i m t o m a r
o u t r a decisão. M e u e s p í r i t o é a s s i m m e s m o , i n t o l e r á v e l ,
doentio! N ã o poderei agir de o u t r a m a n e i r a , J e s u s ! "
E c o m essa f i x i d e z d e p e n s a m e n t o , l e v a n t o u - s e r á -
pido, dirigindo-se p a r a o a p a r t a m e n t o onde a filha
estava internada.
A m o ç a a s s u s t o u - s e c o m a e n t r a d a r e p e n t i n a do
seu p a i . E l a , n a v e r d a d e , e s t a v a h a v i a m u i t o e s p e r a n d o
esse e n c o n t r o . S e m p r e q u e n e l e p e n s a v a , u m t r e m o r a
p e r c o r r i a p o r i n t e i r o . S e n t i a - s e a p a v o r a d a a n t e a possi-
b i l i d a d e de t e r q u e e n f r e n t a r o p a i .
O sr. J o r g e f e c h o u , d e v a g a r i n h o , a p o r t a a t r á s de
si. O l h o u sua filha demoradamente. Ele parecia que
ia f r a q u e j a r a n t e os p r o p ó s i t o s q u e o t r o u x e r a m até a l i .
M a s , de r e p e n t e , e n r i j e c e u o o l h a r e f a l o u á s p e r o e d e c i -
dido c o m a j o v e m :
O sr. J o r g e v o l t o u - s e t ã o r á p i d o q u a n t o e n t r a r a e
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s a i u , a g i t a d o , b a t e n d o v i o l e n t a m e n t e a porta, desapare-
c e n d o e m p o u c o s s e g u n d o s pelo i m e n s o c o r r e d o r d a ala
"b", do S a n a t ó r i o S. P e d r o .
O delegado de polícia de C a m p o s do J o r d ã o c h e g o u
a tornar-se impertinente. Queria, a qualquer custo,
o u v i r D i a n a . O processo estava parado, sofrendo solução
de continuidade. As ordens médicas, p o r é m , e r a m t a x a -
tivas. A m o ç a estava p r o f u n d a m e n t e debilitada, e n t r e g u e
a u m a prostração geral, sem ânimo para nada. O choque
d a decisão d o p a i a c a b a r a p o r a r r a s t á - l a à obsessão d o
suicídio! U m a polícia f e m i n i n a foi posta no interior do
a p a r t a m e n t o d e D i a n a , n u m c o n t í n u o r e v e z a m e n t o , por
determinação do delegado e total exigência médica.
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Nesse ínterim, o advogado c o n t i n u a v a suas inves-
tigações p a r a l e v a n t a r os passos de D i a n a nos dias q u e
precederam ao crime, na vã esperança de e n c o n t r a r algo
que pudesse inocentar o dr. Sebastião.
* * *
E r a m 10,00 h o r a s de u m a m a n h ã friorenta e c h u -
vosa, q u a n d o o filho de D i a n a nasceu: um m e n i n o pe-
sando pouco m e n o s de três quilos e com a pele t o t a l -
mente pretinha!
Visitei D i a n a n a q u e l a t a r d e .
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abriam-se d e s m e s u r a d a m e n t e . Os pulmões pareciam n ã o
receber o oxigênio suficiente.
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— É o remorso, doutor, é o remorso que me t r a z
a t é aqui! Quero pagar, sim, pelo crime que cometi,
doutor! Vim aqui p a r a c o n t a r t u d o prô senhor!
E Dito, o ex-jardineiro do S a n a t ó r i o S. Pedro, fez
a completa confissão do crime que p r a t i c a r a , n a q u e l a
chuvosa noite, d e n t r o do depósito de l e n h a !
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— No m í n i m o 25 anos! — foi a resposta simples do
delegado de polícia.
* * *
Ao seu s e p u l t a m e n t o c o m p a r e c e r a m a p e n a s q u a t r o
pessoas: a Madre, a I r m ã Francisca, eu e o dr. Sebastião.
Havia um m u t i s m o c h o c a n t e e n q u a n t o o ataúde
descia à s e p u l t u r a .
A Madre explicou:
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O dr. Sebastião ficou longo tempo olhando o enve-
lope, sem coragem para abri-lo.
"Meu Tião,
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O dr. S e b a s t i ã o n ã o c h o r o u , m a s s u a f r a s e até h o j e
martela meus ouvidos:
* * *
D i a n a f o r a a l é m n a s suas cartas. U m a o u t r a , a c h a d a
e n t r e seus p e r t e n c e s , e s t a v a dirigida ao delegado de po-
lícia na qual fazia completa confissão do seu c r i m e e
i n c l u s i v e esclarecia o caso das r o u p a s e n s a n g ü e n t a d a s do
dr. S e b a s t i ã o ;
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provou que eles n ã o a h a v i a m perdoado, n e m depois
de m o r t a !
* * *
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— Pelo menos isto eu g u a r d a r e i como l e m b r a n ç a
dela...
P u x o u - m e ligeiro e a passos largos nos d i r i g i m o s
p a r a o automóvel.
Meu coração confrangeu-se, q u a n d o , s e n t a d a ao seu
lado, divisei-o m e r g u l h a d o n a q u e l a m o d o r r a introspectiva.
Procurei interromper-lhe OS p e n s a m e n t o s :
— O Governador n ã o deveria ter assinado a sua
transferência porque o Sanatório S. Pedro está em. Cam-
pos do Jordão, que está d e n t r o de São P a u l o e São
P a u l o está d e n t r o do Brasil. O Brasil dr. Sebastião,
t a m b é m é dos negros.
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