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ADELAIDE CARRARO

FALÊNCIA
DAS ELITES

a
(6 Edição)

Direitos autorais adquiridos por:

L. OREN - Editora e Distribuidora de Livros Ltda.

Rua Santo Antônio da Platina, 49 - S. Paulo

1979
Prefácio

Se, em todo criador, há — de fato — uma raiz


que no-lo explica, ninguém melhor do que o romancista
para nos mostrá-la!. . . Somente, através do seu conhe-
cimento, pode o leitor sentir que a obra, diante da qual
se encontra, começa a tornar-se operante, isto é, começa
a suscitar, nele, a vontade de descobrir as relações exis-
tentes entre o conteúdo ideológico e o conteúdo emocional
e as representações formais que correspondem a um e a
outro.
Nesta obra, de Adelaide Carraro, como em seu pri-
meiro livro — " E U E O G O V E R N A D O R " — a raiz, a
que nos referimos logo de início, está na preocupação
dessa jovem escritora de realizar-se num plano autobio-
gráfico, para o qual flui o tempo inumano que ela, pere-
grina de um sofrimento difuso de agonias, injustiças e
trevas, soube apreender para os seus livros.
Não procuremos ver, nestes, uma arquitetura de
conhecimentos e de fórmulas; funduras abissais; lingua-
gem transmissora de conceitos sutis; uma síntese com os
seus métodos próprios de composição! Neles, todavia,
para desespero daqueles que não fazem da vida um ato
de tolerância e de amor. há o sentimento de uma resis-
tência, toda marcada de estados intrínsecos individuais,
de teses e posições íntimas, de uma liberdade interior
que a escritora, visceralmente franca e desassombrada,
transforma num plano de convivência com o leitor. Daí
mostrarem seus dois livros, simples, diretos, sem atavios

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formais, os planos autênticos de uma escritora que, em-
bora não desconheça suas limitações em alguns pontos da
criação artística, tem sabido ser verdadeira, quando lhe
apraz documentar o que tem visto na sociedade da qual
é um dos elementos. . . -
Assim, Adelaide Carraro, tendo conhecido um mun-
do despojado de consciência moral e jurídica — essencial-
mente — em valores de ordem, de lógica e de coesão
(como nos procurou revelar em " E U E O G O V E R N A -
D O R " ) — neste segundo livro reproduz uma nova forma
de t e m p o i n u m a n o na feição de um sanatório, onde as
doentes não podem destramar o nó cego de uma vida
que lhes deram, vida travada, muitas vezes, de frustrações,
de fraudes e de vícios.
Se todo assunto é assunto para o romancista — que
devemos dizer de um sanatório, em cujos habitantes a
doença, os transes de angústia, os olhos fundos de deses-
pero procedem de um mundo condenável, sem plenitude,
sem maravilhoso íntimo, estigmatizado, principalmente,
por uma consciência erogenética do sexo, de onde ressai
o e x í l i o a f e t i v o que o homem e a mulher do nosso tempo
tanto deploram, porém não podem superar?

C A R L O S BURLAMÁQUI K Ô P K E

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PÉ DE CONVERSA.

No instante em que me sentei à máquina de escre-


ver para iniciar às primeiras páginas de FALÊNCIA DAS
ELITES, eu sabia a responsabilidade que assumia pe-
rante o enorme público que acompanhou, no meio de
imensa e até às vezes desconcertante polêmica, meu pri-
meiro livro, intitulado "EU E O GOVERNADOR".
Quando este não menos despretensioso trabalho
chegar às livrarias do meu país, o livro "EU E O GO-
VERNADOR" terá sido adquirido por cerca de cem mil
pessoas. Daí a responsabilidade que agora me perturba.
Ê o ônus do sucesso.
"FALÊNCIA DAS ELITES" causará um destes
resultados em minha vida: serei relegada totalmente ao
ostracismo ou me consagrarei perante o público que de-
vorou, durante meses, minha primeira obra.
Meu editor me disse que este livro, agora posto à
venda, tem sido procurado diariamente pelo grande
público. . .

Sei que há expectativa em torno dele.


Sei também que não posso decepcionar àqueles que
acreditam na minha pessoa como escritora moderna, que
foge da ficção e prefere retratar personagens reais, e his-
tórias verídicas, episódios que ainda estão bem vivos na
memória dessas figuras.
Talvez, por isto, não tivesse sido compreendida por
grande parte dos críticos literários.

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Os que esperam encontrar, igualmente, neste livro,
uma obra literária de grandes méritos vão ficar
decepcionados.
É preciso que todos compreendam, sobretudo -os
críticos, que a mentalidade moderna não mais se adapta
àqueles padrões literários que consagraram os grandes e
inesquecíveis escritores do passado.
íí ,,
Afinal, o que transforma um livro num bes-seller ?
Algo, de urna forma ou de outra, deve necessaria-
mente prender o leitor, fazê-lo discutir a obra, recomen-
dá-la ou não, mas de certo modo despertar a curiosidade.
É impossível um livro ser por demais procurado
durante meses nas livrarias, esgotando edições sobre edi-
ções, manter-se durante quase um ano no primeiro posto
na preferência dos leitores, vencer todas as pesquisas de
mercado, e seu conteúdo ser vazio, não encerrar alguma
mensagem, algo que agrade sobremaneira ao público
ávido de emoções diferentes.
Dirá o crítico —- como, aliás, vários afirmaram —
que a pornografia, no Brasil, atrai o leitor, e por este
motivo volumes desse gênero agradam às massas. Nosso
público seria então inculto. Não saberia apreciar as
grandes obras literárias.

Por que, então, o sucesso estrondoso de "Os Insaciá-


veis", de Harold Robbins, nos Estados Unidos? Seis
milhões de norte-americanos adquiriram esse livro, o que
significa que pelo menos trinta milhões de norte-ame-
ricanos devoraram aquela discutida obra.
Alguma coisa deve existir no livro, além das cenas
fortes. É evidente.

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E minha pergunta tem, obviamente, sua justifica-
tiva; seria o público leitor norte-americano inculto?
É lógico que o argumento válido para justificar o
sucesso de "EU E O GOVERNADOR", pelos críticos
brasileiros, deverá valer para justificar o sucesso de "Os
Insaciáveis", nos Estados Unidos da América do Norte.
Já houve, aliás, quem afirmasse que não há livros
pornográficos e sim leitores pornográficos. Pegue a
carapuça quem o desejar. . .
Fui muito combatida.
"FALÊNCIA DAS ELITES" irá redobrar esse
combate.
No primeiro livro toquei na chaga chamada política.
Neste livro mexerei num tumor muito mais sensível e
que, através dos tempos, sempre julgaram intocável: as
elites privilegiadas.

O médico negro desta obra, assim como a maioria


de seus personagens, é autêntico, de carne e osso. Vive
em São Paulo e o que relato de sua vida realmente
aconteceu.
As moças milionárias, internadas nos sanatórios
para tuberculose, também existem. Conheço-as pessoal-
mente e foi nosso convívio que permitiu narrar esta
história.
Por outro lado, o tom livre que procurei imprimir
nas páginas deste livro, não esconde uma verdade: as
elites têm nojo da miséria e dos pobres. Espezinham
as classes menos favorecidas e evitam o seu contato, como
se pertencessem a uma raça superior.
Denuncio, ainda, esta mentira que é apregoada por

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todos os jornais brasileiros: "Não há racismo em nosso
país" .
Sem dúvida, não há racismo nos termos expressos
da lei, mas na realidade o negro é evitado, humilhado
e relegado, sob todos os aspectos. Esse sentimento é
muito mais acentuado no seio das elites.
O que relato, envolvendo personagens negros e bran-
cos, tem sido conservado em sigilo no âmago da nossa so-
ciedade. De certa união nasceu um filho que foi colocado
num asilo. Essa criança ignorará, para sempre quem são
seus pais. . . Estes são os gestos generosos, fraternais,
das elites. . .
Dos críticos literários não espero compreensão, nem
imparcialidade. Não posso pedir algo que, de antemão,
sei me será negado.
A compreensão eu somente a peço ao grande pú-
blico, o mesmo público humano e esclarecido que con-
sagrou minha primeira obra. e de tal maneira que hoje
já percorre o mundo, traduzida na Inglaterra, enquanto
que entendimentos estão sendo feitos com vários outros
países do velho continente.

Em face desses não perdoarei, a mim mesma, se os


decepcionar com a "FALÊNCIA DAS ELITES".

ADELAIDE CARRARO

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I

No asfalto escaldante d a s r u a s de P i n d a m o n h a n g a b a ,
m e u s pés q u e i m a m d e n t r o d a s botas de meio-cano de
pelica preta. S i n t o um calor bravio percorrer todo o
m e u corpo. Não posso compreender como, em pleno
inverno, o sol possa estar t ã o a r d e n t e . Fiz m a l em vestir
o conjunto de n a p a . As calças de couro preto, b e m j u s t a s ,
m a l facilitam o meu a n d a r . Acho que estou bem extra-
vagante. Os olhares indiscretos que me a n a l i s a m me
d ã o c o n t a de que estou r e a l m e n t e c h a m a n d o a atenção.
No m e u íntimo, porém, sei que fiz u m a enorme besteira:
a Madre n ã o vai receber-me com essa roupa. O pior,
mesmo, é esse calor. Meu pescoço está todo m o l h a d o
e gotas de suor b r o t a m na m i n h a testa. Como esse
b o n d i n h o está d e m o r a n d o , m e u Deus! Lá em c i m a sei
q u e o clima vai ficando mais a m e n o e q u a n d o e n t r a r
m e s m o em Campos do Jordão, o frio me fará esquecer
esse suplício do asfalto de P i n d a m o n h a n g a b a .

Com que alegria entrei no velho bondinho! No-


vecentos m e t r o s de a l t u r a e meio c a m i n h o v e n c i d o . . .
Subindo m a i s novecentos m e t r o s estarei vendo t u d o o
que deixei há m a i s de dez anos. Já n ã o sinto m a i s
aquele calor sufocante. O vento frio passa pelas frestas
de m a d e i r a e me envolve. Sinto um arrepio sacudir
todo o m e u ser. As penedias das m o n t a n h a s se apro-
x i m a m . Mais além já posso divisar os maciços alcan-
tilados, azulecentes, que f o r m a m com os " s t r a t u s " , o céu
privilegiado de Campos do Jordão. Nas curvas tem-se
a impressão de que se pode até tocar n a s m o n t a n h a s ,

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se os braços fossem esticados pelas j a n e l i n h a s do pe-
queno bonde aéreo. À direita, o u t r o p a n o r a m a : cadeia
após cadeia, até que estas se p e r c a m na infinidade de
matizes verdes, dourados, prateados, azulados e cinzen-
tos, j u n t a n d o - s e , lá no horizonte, ao anil do céu. À
esquerda, lá embaixo, pode-se ver o prado m o r r e r de
e n c o n t r o às á g u a s profundas do P a r a i b a . Como adoro
t u d o isto! Que s a u d a d e imensa sentia dessas paisagens
inesquecíveis e imorredouras!

Meus olhos se perderam, no infinito. Por m o m e n t o s


esqueci a beleza que me cercava. Voltei a atenção, ines-
p e r a d a m e n t e , p a r a m i m m e s m a . Como me receberá a
Madre? Vou buscar em Campos do J o r d ã o o repouso
que m e u corpo reclama. Hoje volto com o u t r o aspecto
físico, embora m a g r a . Não irei p a r a os porões de indi-
gentes do S a n a t ó r i o S. Pedro. Será que o livro q u e
escrevi e no qual contei t a n t a s particularidades de m i n h a
vida, vai exercer influencia na solicitação que fiz à
Madre? Ela me c o m p r e n d e r á ou, no seu íntimo, m e u
m o r a l caiu m u i t o s pontos? Bem, de q u a l q u e r forma
t e n h o u m a bela a r m a n a s mãos: a s c a r t a s que recebi,
na m i n h a casa, em São Paulo, do frei Nelson B r u n n ,
de São João do Meriti. Ele leu o livro e me enviou
várias missivas de profundo conteúdo cristão. É o m e u
maior tesouro.

Os p e n s a m e n t o s foram cortados pela paisagem de


Campos do Jordão. Há d u a s h o r a s que viajava. Lá
se a c h a m os pinheirais, suas g r i m p a s e rochedos, suas
cascatas, suas frondosas pereiras, seus lagos, a orgia de
suas cores. Avisto a P e d r a do Baú, o Palácio Bela Vista.
Passo pelo Hotel Toriba, pelo Sanatório São Cristóvão.
E desço na p a r a d a dos " S a n a t o r i n h o s D. Leonor Mendes
de Barros".

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I n c r u s t a d o n u m c a n t o , à s o m b r a da m u r a l h a esme-
r a l d i n a d a s m o n t a n h a s que se e r g u e m i m p o n e n t e s , so-
branceiras, escondendo-se dos olhos dos t u r i s t a s , lá estava
o Sanatório S. Pedro, onde consegui c u r a r - m e da tuber-
culose, e que agora me esperava p a r a um estágio de
a l g u n s meses de repouso e recuperação.

O edifício de t r ê s p a v i m e n t o s t e m ao c e n t r o a m p l a
escadaria de m á r m o r e . Cerca de duzentos a p a r t a m e n t o s
p a r a doentes ricas e sessenta leitos p a r a indigentes, nos
porões. Fora, pouco d i s t a n t e do prédio c e n t r a l , h a v i a
u m a espécie d e motel p a r a p a r e n t e s das i n t e r n a d a s
ricas.

Os pinheirais que c i r c u n d a m o prédio gotejam orva-


lho, dobrando-se às fustigadas do vento. Um nevoeiro
frio, sorrateiro, branco-acinzentado, eleva-se do solo.
Acaricia-me como r o ç a g a n t e m a n t o de pelúcia. O ar de
Campos do J o r d ã o p e n e t r a em m e u s pulmões e eu o
aspiro às golfadas, n u m s e n t i m e n t o t e r n o de alegria e
a g r a d e c i m e n t o a Deus, por me conceder ver t u d o isto de
novo. Esgueiro-me e n t r e pereiras e pessegueiros floridos,
a fim de e n c u r t a r o c a m i n h o . Nas clareiras piso o
m u s g o e as violetas q u e f o r m a m um j a r d i m n a t u r a l
encantador. P e n e t r o na p e q u e n a avenida fronteira à
e n t r a d a do prédio. F r a g m e n t o s de pedras fazem c o m
que o b a r u l h o de m e u s passos seja percebido pelo jar-
dineiro Benedito, jovem preto, alto, forte, m a s sempre
cheirando a cachaça. Sempre tive medo do Benedito.
Seus olhos são baços e seus dentes, os poucos que res-
t a m , apodrecidos. No c a n t o da boca, o indefectível
cigarrinho de p a l h a a p a g a d o . Ele me reconheceu. C u m -
primentei-o com um sorriso tímido. Fujo do seu c o n t a t o .
Busquei a e s t r a d i n h a e piso os degraus. Giro suave-
m e n t e a m a ç a n e t a da g r a n d e p o r t a de vidro e p e n e t r o

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na ante-sala. Envolvem-me, então, q u a t r o braços, e
m e u s ouvidos e s t a l a m com os gritos de Inês e Belinha:
— Salve a escritora! Vimos da janela que você
chegava. Há dias que estamos esperando S. Exa. A
Madre nos contou seu pedido p a r a repousar a q u i em
S. Pedro. Xiii! Como você está m o l h a d a , m e n i n a ! Veio
pelo m a t o , c o r t a n d o essa neblina horrível?
Olhei-as, rindo. Deixei-as perder o fôlego. Já sabia
que se a c h a v a m em S. Pedro. T i n h a m sofrido u m a
recaída. Eu as conhecera no tempo em que estivera
i n t e r n a d a . Depois ficamos j u n t a s em São Paulo, e
agora, entristecida, via que estavam n o v a m e n t e a t a c a d a s
dos pulmões. Inês pertencia à família tradicional. Ti-
n h a recursos. Belinha já era de outro padrão. Mas e r a m
as m e s m a s de sempre, alegres, esfuziantes, maliciosas.
Em meio a um t u r b i l h ã o de p e r g u n t a s , a i n d a me foi
possível explicar:
— Vim m e s m o p a r a descansar. E se querem saber,
encurtei o c a m i n h o passando pelo pereiral. Não quis
saltar em Abernéssia. Preferi a estaçãozinha próximo
do sanatório. Mas dei ordens p a r a que a b a g a g e m fosse
descarregada na Vila. A m a n h ã vou buscá-la e darei u m a
olhada pela velha t e r r a .

O dr. W a l t e r n ã o estava mais no Sanatório. T i n h a


ido p a r a São Paulo. Agora as coisas ali h a v i a m m u d a d o
radicalmente.
— Até "negligé" de rendas podemos usar, m e n i n a !
— exclamava, Inês.
O sanatório estava com falta de médico. Nos casos
de emergência, o a t e n d i m e n t o vinha sendo feito pelo
facultativo do S-3, um pronto-socorro do Governo, até
q u e chegasse o novo tisiologista.

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A direção do Sanatório havia conseguido, do Go-
verno, a promessa de que transferiria, t e m p o r a r i a m e n t e ,
um médico da Secretaria da S a ú d e p a r a o Pronto-So-
corro. Esse médico ficaria à disposição, noite e dia,
das enfermas de S. Pedro. Q u a n d o fosse feita a admissão
do médico definitivo, o da Secretaria seria recambiado
p a r a a Capital. Em verdade, n ã o era fácil conseguir-se
um especialista que se sujeitasse a p e r m a n e c e r noite e
dia na solidão do S a n a t ó r i o S. Pedro, de Campos do
Jordão, ainda que com polpudos salários.

— Há um clima de g r a n d e expectativa, querida.


Todas desejam que o novo médico t e n h a olhos verdes,
seja alto, moreno, com ou sem bigodes, n ã o importa,
— informava Belinha, exibindo um riso malicioso.

Como sempre, a c h e g a d a de novo médico e r a um


a c o n t e c i m e n t o que a s s a n h a v a as moças, especialmente
depois que o doutor W a l t e r se casou com u m a d a s
internadas.

Não sei q u a n t o t e m p o ficamos, ali, na ante-sala,


conversando. Nem percebemos a aproximação da I r m ã
Francisca. E r a a secretária do Sanatório. Gorda, velha,
m a s simpática. Sempre severamente vestida de preto.
T i n h a , porém, p a r a todas nós, um defeito que nos ener-
vava: proibia t u d o e só sabia dizer " n ã o " aos nossos
pedidos.

E, q u a n d o chegou, foi d e m o n s t r a n d o que c o n t i n u a v a


a m e s m a de dez anos a t r á s :
— D. Adelaide, a s e n h o r a conhece bem o nosso
regulamento. . .

— "Não use calça comprida, não pinte o rosto, n ã o


use "base", n ã o use "laque", n ã o risque os olhos, n ã o

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ande com "negligé" t r a n s p a r e n t e — fui acrescentando,
ao mesmo tempo que ria e contava as proibições nos
dedos.
I r m ã F r a n c i s c a sorriu:

— ó t i m o . A s e n h o r a t e m excelente memória. Vá,


então, já, já, t i r a r essa r o u p a escandalosa. Onde já
se viu? Que falta de respeito! Seu a p a r t a m e n t o é o
n ú m e r o 1 da ala " B " . A Madre irá atendê-la somente
amanhã.

E se retirou com a m e s m a solenidade com q u e


entrara.
Olhamo-nos. Rimos baixinho.

— Virgem! C o n t i n u a com a dignidade de tia-avó


da R a i n h a da I n g l a t e r r a ! — acrescentei — olhando p a r a
Inês e Belinha.

— E solteirona! — g r i t a r a m as d u a s em coro, de-


baixo de u m a risada escandalosa.

J u n t a s saímos da ante-sala e p e n e t r a m o s n u m longo


corredor. A esmerada limpeza c h a m a v a a a t e n ç ã o .
Imensos " v i t r a u x " coloridos completavam a estética da-
quela ala do sanatório.

No c a m i n h o p a r a m e u a p a r t a m e n t o fui informada,
pela Belinha, que a m i n h a vizinha de q u a r t o era u m a
sofisticada m e n i n a , eleita, no a n o passado, "miss
Guarujá".

— Carrega comitiva, Adelaide. Trouxe babá, go-


v e r n a n t a , enfermeira especial e até um noivo a t i r a c o l o . . .

Cedo, pela m a n h ã , a b a d a l a d a fortíssima de um


sino, m a n e j a d o pela servente, envolveu todo o sanatório,

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p e n e t r a n d o com violência nos corredores de ladrilhos
vermelhos. Pulei, assustada, da c a m a .
Já me esquecera do sino que precedia à c o m u n h ã o
de todos os dias às seis h o r a s da m a n h ã . Agora ouvia
o p a d r e rezando, ao m e s m o t e m p o que levava a hóstia
a todos os a p a r t a m e n t o s dos doentes católicos. No m e u
t e m p o n ã o gozávamos desse direito. E r a considerada
indigente, e, nos porões, o p a d r e não ia. As doentes
t i n h a m que f r e q ü e n t a r a capela. Só os ricos podiam
receber o sacerdote no q u a r t o . . .

Iria receber Jesus como d a s o u t r a s vezes em q u e


estive no sanatório? A voz do p a d r e se fez alta, a t r a -
vessou a p o r t a do m e u a p a r t a m e n t o e extinguiu-se aos
poucos. Cristo passou pela m i n h a porta, m a s sem e n t r a r .
Senti u m a e s t r a n h a a n g ú s t i a oprimir o m e u coração.
Q u a n d o haveria de recebê-lo n o v a m e n t e ? Desde que
saí do sanatório, n u n c a m a i s o vira.

Envolvi-me no cobertor. Estava sem roupas. So-


m e n t e naquele dia iria buscar, na Vila, m i n h a s baga-
gens. Abri as p e r s i a n a s do g r a n d e q u a r t o de m e u
a p a r t a m e n t o e saí p a r a o terraço. T u d o como há dez ou
doze a n o s . . . Campos do J o r d ã o a m a n h e c e n d o frio-
r e n t a , invernosa, a zero grau. E m b o r a já fossem seis
horas a i n d a estava escuro. E r a sempre assim n a q u e l a
cidade gélida. Quedei-me na a m u r a d a do pequeno ter-
raço e esperei clarear t o t a l m e n t e o dia. Da treva já
começava a r e p o n t a r o b r a n c o da geada. De q u a n d o
em q u a n d o o silencio era quebrado por u m a tosse seca.
Tosses secas de tuberculosas r i c a s . . . As sonolentas
estrelas c o m e ç a r a m a empalidecer, q u a n d o a l u a ago-
nizava no f i r m a m e n t o . O nítido c o n t o r n o das árvores,
os roseirais sem flores, as ondulações da serrania, t u d o
se foi t o r n a n d o visível. Lá em cima, no c u m e da m o n -

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t a n h a mais alta, os raios pálidos e indecisos de sol
t e n t a v a m atravessar a névoa plúmbea.
Não consegui ficar m u i t o t e m p o m e r g u l h a d a nos
meus pensamentos. A p o r t a do m e u q u a r t o se abriu
e Belinha e I n ê s e n t r a r a m , a g a s a l h a d a s em. grossas
mantas.
— Viemos aqui p a r a t o m a r café j u n t a s , Adelaide.
Vamos t a m b é m conversar um pouco. O n t e m o cansaço
a p r e n d e u m u i t o no q u a r t o . Você chegou a vê-lo depois
que lançou o livro?
— Inês, vim aqui p a r a descansar e esquecer todos
os acontecimentos que me afligiram depois que lancei
aquele maldito livro. Às vezes sinto profundo arrepen-
d i m e n t o de tê-lo feito. Recebi os piores insultos do
m u n d o . Muita gente n ã o m e compreendeu. Não, n ã o
quero falar de livros. Quero viver, tá bom?
— Mas, viu ou n ã o viu o governador depois do
livro?

Pensei um pouco. Olhei-a bem, com fixidez, e fui


lacônica:
— Não, n u n c a . Nem por fotografias em jornais.
— Você n ã o a c h a que ele foi um covarde, r e n u n -
ciando?

Não. Não acho. Foi um ato de coragem. Ele sem-


pre foi corajoso.
— Mas t a m b é m ficou r i c o . . .

— T a m b é m é m e n t i r a . E p a r a encerrar o a s s u n t o ,
vou r e l a t a r u m a p a s s a g e m ocorrida comigo na volta do
Rio de Janeiro, no interior do avião, logo após o lança-
m e n t o de m e u livro na G u a n a b a r a . Viajava em com-

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p a i n h a de u m a amiga e de um jornalista, que me ajudou
m u i t o no l a n ç a m e n t o da obra. E foi ele q u e m me
a p o n t o u um passageiro, sentado mais à frente:
— Adelaide, aquele é o Giacomo F r a n c o , d a s I n -
d ú s t r i a s Vigorelli. É amigo í n t i m o do seu d e c a n t a d o
governador.
Meu amigo jornalista n u n c a apreciou o personagem
do m e u livro, m a s era amigo de muitos amigos do go-
vernador. Fiz questão de conhecer o industrial. Feitas
as apresentações, ele trocou de l u g a r com m i n h a a m i g a
e fizemos toda a viagem conversando sobre o governador
de m e u livro.

— Discordo de três coisas f u n d a m e n t a i s na sua obra,


Adelaide — disse-me, de repente. — O governador n ã o
fica de cuecas perto de n i n g u é m , pois t e m um sinal
m u i t o feio na a l t u r a do fígado. Não é tão fogoso assim
como você o descreve e depois ele n ã o sabe n a d a r . ..
Como é isso?
— Talvez t e n h a floreado um pouco. Nem sempre
é possível relatar-se t u d o como acontece. É preciso d a r
um certo s a b o r . .. Mas de u m a coisa esteja certo, eu
o conheço mais i n t i m a m e n t e do que o s e n h o r . ..

Ele riu alto c h a m a n d o a a t e n ç ã o dos passageiros


vizinhos.
— Você o viu depois da r e n ú n c i a ? — p e r g u n t o u - m e
interessado.
— Não pessoalmente. Fiz c h e g a r às suas m ã o s
u m pedido p a r a que arranjasse u m colégio p a r a d u a s
crianças pobres. Decepcionou-me, pois me m a n d o u
p r o c u r a r dois deputados na Assembléia L e g i s l a t i v a . . .
Parece que a experiência do passado n ã o me serviu de

21
l i ç ã o . . . Um deles, me recordo bem, chamava-se José
Sabiá. Disse-me n ã o , porque já t i n h a toda a sua verba
pessoal comprometida com seus eleitores do bairro do
I p i r a n g a . De o u t r o n e m sei o nome. É simplesmente
um d e p u t a d o . . . . Bem que o Governador poderia ter
pago o colégio. Afinal ele está m i l i o n á r i o . . .

Giacomo F r a n c o espantou-se com esta m i n h a ú l t i m a


afirmativa:

— Adelaide, vou lhe c o n t a r algo. Você j u r a que


n ã o diz a n i n g u é m ? J u r a , mesmo? J u r a pela a l m a de
seu pai?

E a t o c o n t í n u o tirou do bolso um talão de cheques.


Abriu-o e me a p o n t o u um c a n h o t o .
— E s t á vendo esta i m p o r t â n c i a de c i n q ü e n t a mil
cruzeiros? Pois é a que dou todos os meses ao presi-
dente. Há m u i t o s amigos dele que fazem o mesmo.
F a z p a r t e de u m a combinação que a j u s t a m o s à revelia
dele. Q u e m lhe disse que ele está rico? É u m a injustiça!

Olhei d e m o r a d a m e n t e o industrial. Gostei da s u a


sinceridade. Achei-o mesmo b a s t a n t e simpático. Re-
cordei, naquele i n s t a n t e , que t o d a a honestidade do
Governador n ã o servira p a r a n a d a . Vi, com m e u s pró-
prios olhos, como o Hotel Serrador estava repleto de
deputados federais, q u a n d o lá estive h o s p e d a d a d u r a n t e
os dias que precederam a m i n h a T a r d e de Autógrafos,
na G u a n a b a r a . O Rio parecia Brasília. Lembrei-me,
ainda, da visita que fizera ao diretor do j o r n a l "O
Globo" e na sala estava o d e p u t a d o A r m a n d o Falcão.
Ele me olhava com curiosidade.

— Gostei do seu livro. Li-o de um só fôlego. Varei


u m a m a d r u g a d a inteira lendo — disse-me o p a r l a m e n t a r .

22
Agradeci com um sorriso.
— Como é Adelaide, está gostando do Rio?
— É u m a cidade m a r a v i l h o s a m e n t e acolhedora,
deputado. Mas às vezes chego a ficar t o n t a . Vejo
t a n t o d e p u t a d o que chego a pensar que estou em Bra-
s í l i a . . . Acho que os p a r l a m e n t a r e s deveriam t r a b a l h a r
mais...
— Fazemos o que nos é possivel, moça. Brasília,
p a r a m i m , é como o Hospital do M a n d a q u i do seu livro
" E u e o Governador". É horrível t r a b a l h a r n a q u e l a
cidade. Você t a m b é m n ã o a g ü e n t a v a o M a n d a q u i ,
lembra-se?
— Mas eu pedi demissão, d e p u t a d o . Deixei m e u
l u g a r p a r a o u t r o que queria t r a b a l h a r e n ã o se impor-
tava com o a m b i e n t e .
Ele n ã o gostou de m i n h a resposta. Fechou o cenho.
O dr. Roberto Marinho, que a c o m p a n h a v a em silencio
nosso diálogo, quebrou seu m u t i s m o , rindo alto a n t e
m i n h a afirmativa.
T u d o isto me passou pela cabeça no i n s t a n t e em
q u e Giacomo F r a n c o me afirmava que ele era um dos
vários industriais de São P a u l o que ajudava o ex-gover-
nador, m e n s a l m e n t e , com u m a i m p o r t â n c i a em dinheiro
p a r a que pudesse viver. P a r a que, afinal, t a n t o sacrifício?
— Eis, aí, Belinha, o que me ocorreu l e m b r a r no
m o m e n t o em que você me falou que ele ficou milionário.
Vamos agora e n c e r r a r o a s s u n t o ?
U m a servente i n t e r r o m p e u definitivamente nosso
bate-papo. A Madre me c h a m a v a .
M i n h a conversa com ela n ã o foi longa. Pedi-lhe
desculpas pelos trajes e esclareci que m i n h a b a g a g e m
n ã o viera comigo.

23
A Madre n ã o m u d a r a quase n a d a . Apenas mais
a l g u m a s r u g a s sulcavam o seu rosto, mesmo assim, só
no c a n t o dos olhos. A m e s m a pele b r a n c a , a m e s m a
voz p a u s a d a , carinhosa. O mesmo olhar meigo.
No princípio falou d e m o r a d a m e n t e sobre o meu
livro. Não a interrompi, em sinal de respeito. Recri-
minou-me, em p a r t e , e nossa conversa t e r m i n o u com
u m a notícia que me revoltou:

— Adelaide, acho-me no dever de lhe c o n t a r a


insistência do pedido das famílias das doentes p a r a que
n ã o a recebesse no Sanatório. Você sabe, todas as moças
daqui são filhas daquilo que podemos qualificar de elites.
Famílias católicas, de g r a n d e respeito. Sei que é d i g n a
de ficar entre nós. Por isso fingi ignorar t u d o e você
está aqui. Mas evite um c o n t a t o m u i t o prolongado com
as doentes. Por qualquer deslise dessas m a l u q u i n h a s as
famílias podem culpá-la. P r i n c i p a l m e n t e Inês e Belinha,
as m a i s levadas, porém moças inocentes.

Tive vontade de explodir ali mesmo. A Madre,


contudo, n ã o era culpada. Com c a l m a a p a r e n t e retornei
ao m e u a p a r t a m e n t o .

Inês a i n d a me esperava. Contei-lhe o pedido da


Madre.

A explosão, veio, então, da própria I n ê s :

— Sou u m a revoltada c o n t r a m i m m e s m a , Adelaide.


O falso p u d o r dos m e u s pais gerou esse ódio que hoje
sinto de m i m própria. Todos sabem da depravação dos
m e u s pais no G u a r u j á . É um dos casais que participa
do "Jogo da C h a v e " com vários outros. Hoje sou u m a
semidepravada, tendo a p e n a s 23 anos de idade. Os exem-
plos, eu os colhi na m i n h a própria casa.

24
Olhei-a e s p a n t a d a . Aquele destempero me pegou
desprevenida:
— O que é o "Jogo da Chave", Inês? Você está
ficando m a l u c a ? Odeia seus pais?
— Odeio-os, sim, Adelaide. Eles me l a r g a r a m . P e n -
s a r a m que o conforto, o dinheiro, o luxo exagerado, se-
r i a m suficientes p a r a me proteger. F u i criada com
babás e g o v e r n a n t a s . Fiz o que quis na infância e na
adolescência. Os resultados são horríveis. Jogo da
Chave, sim. E n t ã o n ã o sabe? Pois vários casais se
r e ú n e m com suas esposas em luxuosos a p a r t a m e n t o s no
G u a r u j á . Cada casal coloca a chave do seu respectivo
q u a r t o n u m vaso. Cada h o m e m tira u m a chave. O
fulano vai dormir com a m u l h e r cuja chave corresponde
ao q u a r t o . Há briga q u a n d o a coincidência faz com q u e
o esposo tire a chave do próprio aposento. Ele será,
então, obrigado a se deitar com a própria consorte, em
vez de ter a esposa do amigo! É u m a vergonha. Meus
pais a d o r a m , no fim de s e m a n a , participar desse jogo.
Meu pai se julga com m u i t a s o r t e . . . n u n c a retirou a
própria c h a v e . . .

Nos olhos de Inês n ã o havia u m a lágrima, m a s um


ódio frio, tenaz.

Eu tremia, atônita, com a confissão escandalosa.


Ela acrescentou:

— Adelaide, vamos sair e c a t a r t u r i s t a s por aí.


Quero beijá-los b a s t a n t e , transformá-los todos em tuber-
culosos! Adoro fingir-me de conquistada e a n d a r com
esses palhaços que vem aqui com ares de sedutores.
Í a m o s c h a m a r Belinha p a r a sair j u n t a s q u a n d o esta
entrou em c o m p a n h i a de Diana, m i n h a vizinha de q u a r t o ,
e que fora, no a n o passado, "miss G u a r u j á " .

25-
E r a u m a m o r e n a linda, cabelos longos, e m o l d u r a n d o
o rosto harmonioso, p r o f u n d a m e n t e branco. Seus olhos
negros t i n h a m p e s t a n a s longas. Os lábios c a r n u d o s e
o nariz levemente afilado ccmpletavam-lhe a beleza.
Alta, porém, m a g r a , m u i t o m a g r a . A doença fizera seus
estragos n a q u e l a corpo que deveria t e r sido perfeito.
E r a bem jovem. Filha de sírios, n u t r i a aversão por
negros, preconceito que h e r d o u da família. Seu pai,
presidente de conhecido clube da Paulicéia, já fizera a t é
um escândalo pelos jornais, q u a n d o proibira a e n t r a d a
de pessoa de cor n u m a festa beneficíente do próprio
clube.

Apertou m i n h a s m ã o s e senti que estava gelada.


S e u o l h a r vago e dúbio me causou apreensão.

Transferimos nosso passeio p a r a o período da t a r d e ,


q u a n d o seria mais fácil sairmos j u n t a s sem a Madre
perceber.

Em Abernéssia dei u m a s voltas p a r a rever conhe-


cidos. Tomei m a i s t a r d e um táxi e fui à Vila J a g u a r i b e
visitar u m a a m i g a casada e que já t i n h a dois filhos.
Despedi-me, na Vila, de I n ê s e Belinha.

Só à noite voltei ao Sanatório. Belinha já estava


deitada. Soube que I n ê s a i n d a n ã o regressara. Certa-
m e n t e passaria a noite fora.

Sentei-me e depois recostei-me nos travesseiros da


cama. Cerrei os olhos e comecei a pensar em Inês.

Conhecera-a, havia dez anos, m a i s ou menos. Nessa


época eu ocupava um q u a r t i n h o , lá no porão, e Inês,
curiosa, fora d a r u m a s voltinhas p a r a conhecer as indi-
gentes. Foi assim que me viu e ficamos amigas. U m a
a t r a ç ã o tão n o r m a l q u a n t o espontânea.

26
Trajava maravilhoso "negligé" azul. N u n c a vira,
então, coisa igual. Eu me sentia extasiada.

Inês riu e p e r g u n t o u :

— De onde você veio, m e n i n a ?

— Do "Asilo Casa da Criança e do T r a b a l h o " . Fica


na r u a H u m a i t á , 107, em São Paulo — respondi timi-
damente.
— Não t e n h a receio, Adelaide. È esse o seu nome,
n ã o é?

Com um aceno de cabeça, confirmei.

— Sou tão doente q u a n t o você. Não é só nos asilos


do governo que a tuberculose ataca. Em palacetes t a m -
bém. Ve? Você veste flanela e eu me cubro com peles
caríssimas. Você é órfã e eu t e n h o pais milionários.
Você n ã o é culta, n ã o t e m n a d a , e está aqui porque
a l g u é m se apiedou de sua pessoa e lhe m a n d a mensal-
m e n t e a l g u m dinheiro. Eu estudei nos melhores colégios,
c h e g a n d o mesmo a fazer curso na F r a n ç a . Nasci e vivo
d e n t r o da riqueza, fato que causaria inveja a m u i t a
gente. N u n c a me preocupei com dinheiro. T r a t o ape-
n a s d e gastá-lo. T e n h o t u d o isto, m a s . . . m a s a m b a s
possuímos algo em c o m u m , a g o r a . . . Somos t u b e r c u -
losas. Sou d o n a de t u d o , m a s d e n t r o de m i m n ã o
carrego n a d a .

Foi assim, que nasceu nossa amizade. Aos poucos


fui sabendo t u d o a seu respeito e, principalmente, a sua
g r a n d e desdita: o noivo.
I n ê s m o r a v a n u m soberbo palacete da r u a Peixoto
Gomide. T i n h a mais d u a s irmãs. Seus encontros com
os pais e r a m esporádicos. A m ã e cultivava a m a n i a

27
das festas beneficentes e nos fins de s e m a n a a r r a n j a v a
sempre um local p a r a descansar com amigos, onde n u n -
ca faltavam os jogos. O pai e r a do tipo que fazia
questão de fornecer cheques p a r a as casas de caridade
e instituições sociais, c o n t a n t o que essas notícias fossem
publicadas n a s colunas sociais dos jornais e que a insti-
tuição lhe desse um recibo várias vezes superior à im-
p o r t â n c i a doada. É que desse modo o b t i n h a um benefício
pessoal j u n t o ao I m p o s t o de R e n d a . . .

I n ê s buscou, no noivo, a válvula de escape p a r a a


solidão em que se via aprisionada.

O s i n t o m a da tuberculose foi u m a q u e n t u r a salgada,


ácida, na g a r g a n t a , que se espalhou pela boca. Q u a n d o
sentiu a saliva grossa, cuspiu. Horrorizada, enxergou
um s a n g u e preto, espêsso, que se espalhou lento, como
se fora azeite. Apavorada desceu as escadarias que da-
v a m p a r a o a n d a r térreo. Gritou pela m ã e , cheia de
ansiedade. Cruzou às t o n t a s com u m a dezena de cria-
dos. Seus pais, como sempre, não estavam em casa.
Foi à g a r a g e m e saiu depressa no seu carro, em direção
à m o r a d i a do noivo. T i n h a esperanças de encontrá-lo.
Eram. a p e n a s onze h o r a s da m a n h a . S u p u n h a que ele
n ã o teria saído de casa.

Luís residia n u m a bela m a n s ã o de dois pavimentos,


n o aristocrático bairro d o J a r d i m Europa. Inês nem
chegou a desligar a chave do carro. Largou-o à p o r t a
da residência de Luís e e n t r o u no prédio g r i t a n d o pelo
seu nome. Subiu as escadas, q u a n d o o avistou no a l t o
da escadaria do p a v i m e n t o superior. Atingiu estabana-
d a m e n t e o topo, percorrendo os d e g r a u s em lances
duplos, c h o r a n d o de modo convulsivo e lançou-se n o s
seus braços, sufocada por soluços:

28
— Luís, estou perdida! Estou sendo devorada por
dentro! C h a m a s me q u e i m a m a saem pela boca em
forma de sangue! Luís, fiquei tuberculosa! Socorra-me!
Pelo a m o r de Deus, socorra-me!
A princípio Luís se espantou. Depois, m a i s calmo,
procurou consolá-la, n ã o a c r e d i t a n d o n a s suspeitas da
noiva:
— Tolinha, você a i n d a é m u i t o m o ç a p a r a se deses-
perar t a n t o . Vamos a t é o m e u q u a r t o . Vai repousar
um pouco e verá como tudo passa. Vamos.
— Luís, eu vou morrer! Sei que vou morrer!
O jovem n ã o respondeu. Enlaçando-a, fê-la cami-
n h a r em direção ao seu aposento. Ao mesmo tempo,
com olhar frio, observava o seu aspecto. Ela estava
pálida, m o s t r a n d o grandes olheiras, respiração ofegante.
Um suor e s t r a n h o porejava de sua testa.

— Deve ser o calor, Inês. Vou ajudá-la a t i r a r o


vestido e os sapatos. Logo, logo, você há de melhorar.
Vai ver. . . Eu ficarei com você, n ã o se p r e o c u p e . . .

I n ê s deitou-se apenas de combinação. Luís recos-


tou-se ao seu lado, aproximando-se bem do seu corpo.
Segurou-lhe fortemente as mãos. Acariciou-a, depois,
com meiguice.

Um silêncio pesado envolvia o ambiente.


Gotículas de suor c o n t i n u a v a m a deslizar por todo
o corpo de I n ê s e sua respiração era cada vez mais
ofegante.

— Talvez seja a p e n a s um s i n t o m a sem maiores


conseqüências, m e u amor. Vamos t i r a r t a m b é m essa
combinação... Talvez assim o seu calor p a s s e . . .

29
Inês a b r i u os olhos e o encarou, compreendendo o
que ele queria. Não se defendeu. P e r m i t i u que Luís,
devagarinho, lhe tirasse a combinação, deixando-a so-
m e n t e com as peças m a i s í n t i m a s .

S u a m ã o m o r n a , ávida, a acariciava por inteiro.


Os olhos a r d e n t e s percorriam as c u r v a s voluptuosas de
Inês, nos seus belos e a p a r e n t e m e n t e viçosos dezesseis
anos de idade. Dedos ágeis, inquietos, sôfregos, retira-
r a m o seu "soutien" e viu, e n t ã o , u n s seios nédios,
arredondados, perturbadores. Beijou-os, luxurioso. Aca-
riciou as l i n h a s m a c i a s dos seus quadris, a c i n t u r a
t o r n e a d a , as coxas esbeltas e alvinitentes.

Luís, aos poucos, foi t a m b é m se despindo e, n u m


êxtase erótico, procurou puxá-la p a r a perto de si.

Inês sentiu o coração b a t e r descompassado. Fitou-o


com os olhos d e s m e s u r a d a m e n t e abertos.
— Não, — protestou Luís — n ã o t e n h a medo, sou
sincero, cuidarei m e s m o de você!

Ela sentiu s u a intenção. Virou-se e o abraçou


desesperadamente, p a r a pedir que n ã o a desrespeitasse.
Tossiu na a n g ú s t i a do m a l que por d e n t r o m i n a v a seu
corpo. A negativa morreu-lhe nos lábios. O sangue
esguichou m a i s u m a vez, e n c h a r c a n d o todo o peito do
rapaz.

Ele, como alucinado, deitou-se em cima de Inês.


S u a s n a r i n a s afiavam, dilatadas, e seus olhos esbra-
seados t i n h a m u m a fixidez e s t r a n h a . U m a dor a g u d a ,
dilacerante, fez com que ela gritasse. Nova golfada de
s a n g u e i n u n d o u s u a boca e, afogada na hemoptise, I n ê s
foi vigorosamente possuída pelo noivo. Ela c h o r a m i n -
gava, indefesa.

30
— Você a g o r a será m i n h a m u l h e r , q u e r i d a !
I n ê s n ã o respondia. Limitou-se, com os olhos
semicerrados, a sacudir d e v a g a r i n h o a cabeça, n u m
gesto de a b a n d o n o .

A c a m a era u m a c h a g a m o n s t r u o s a , de um ver-
m e l h o escuro, quase preto.
— Inês, eu a a m o d e s e s p e r a d a m e n t e . . . Quero q u e
seja a m i n h a esposa!
S u a voz era rouca, pastosa, t r e m u l a . Inclinou-se
e beijou-a. Percorreu com seus lábios m o l h a d o s o pes-
coço fino, os seios erectos, com bicos túmidos, róseos,
da menina-moça.

Inês fechou os olhos, p e n s a n d o .

— Ele será m e u marido.

U m a s e m a n a depois ela estava i n t e r n a d a no s a n a -


tório, à espera, d i a r i a m e n t e , da visita do noivo.
Esta visita aconteceu n u m a t a r d e de sol flamejante.
O sorriso desapareceu dos lábios de I n ê s q u a n d o
Luís chegou ao seu a p a r t a m e n t o , no Sanatório S. Pedro.
— Por que me c h a m o u ? Não leu m i n h a c a r t a ?
— Mas Luís, você enlouqueceu?
— Ora, Inês, p a r a que fazer cenas? Já deixei bem
esclarecido, na c a r t a que lhe enviei, por que n ã o posso
me casar com você.
— Luís, agora há um filho no m e u ventre! Você
será o pai. Você sabe disso!

31
O j o v e m empalideceu e replicou mais violento:

— Pai? Sei lá se o f i l h o é m e u ?

E l a v a c i l o u , r e c u a n d o e e n c o s t a n d o - s e à p o r t a do
enorme armário embutido do apartamento.

— V o c ê ficou louco m e s m o , L u i s . Desde que acon-


teceu aquilo conosco, eu v i m diretamente para o S a n a -
t ó r i o . N u n c a m a i s saí. C o m o pode c o m e t e r u m a o f e n s a
t o r p e c o m o esta?
— S i n t o m u i t o , I n ê s , m a s n ã o posso m e c a s a r c o m
você. O m e l h o r q u e v o c ê t e m a f a z e r é t i r a r essa
criança.
— O h ! L u í s , p e n s e n o s m e u s pais, n a m i n h a f a m í -
l i a , e m m i m , n a m i n h a i d a d e ! T e n h o a p e n a s dezesseis
anos!

A resposta de L u í s d e m o n s t r o u h a v e r , no seu í n t i m o ,
intensa irritação:

— O r a , vá pro inferno! Você se entregou porque


quis, porque era u m a garota fácil! E s t a v a , na reali-
d a d e , m o r r e n d o de v o n t a d e de ser p o s s u í d a e, a s s i m , se
v o c ê se e n t r e g o u a m i m , p o d e r á se e n t r e g a r a o u t r o s
h o m e n s que n ã o conheço?

A r e s p o s t a d e I n ê s f o i u m d e s a b a f o c h e i o d e ódio.
T i r o u a a l i a n ç a d o dedo e j o g o u - a d e s a b r i d a m e n t e n o
resto de Luís. N u n c a mais o v i u .

O filho não nasceu. F o i para São Paulo e, n u m a


m a t e r n i d a d e d a a v . P a u l i s t a , a b o r t o u . O s pais s o u b e r a m
esconder todo o escândalo. N ã o h o u v e sequer c o m e n -
tários.

H o j e o s e u ódio aos h o m e n s é t ã o v i o l e n t o q u e se
f a z f á c i l , c o m o o b j e t i v o de c o n t a m i n a r todos os r a p a z e s

32
q u e d e l a se a p r o x i m a m . É b o n i t a , j o v e m , e se e s f o r ç a
p a r a n ã o s e c u r a r . N ã o q u e r n e m saber dos p a i s :

— Eles me t r a n s f o r m a r a m na m u l h e r devassa em
que me c o n v e r t i , nos m e u s 23 anos de idade!

33
II

As i n t e r n a d a s foram avisadas de que o novo m é -


dico chegaria domingo. Na véspera, já havia um movi-
m e n t o febricitante, aquele mesmo que caracterizava a
ansiedade d a s moças que d i s p u t a r i a m mais t a r d e o
médico, n u m prélio amoroso cheio de lances pérfidos.

As jovens h a v i a m combinado que esperariam o


facultativo na escadaria de e n t r a d a do edifício, cada u m a
com um " b o u q u e t " de flores de pereira n a s mãos.
E foi r e a l m e n t e no domingo, cerca de dezesseis
horas, que o médico chegou.
Naquele dia fui à Vila n o v a m e n t e , a fim de visitar
m i n h a a m i g a Mercedes. Pedira o carro e m p r e s t a d o à
Belinha. Não sei por que, m a s n ã o desejava participar
da recepção ao novo médico. Achava deslealdade. Não
estava doente. Apenas b u s c a r a o sanatório p a r a repouso.
P r o c u r a r i a chegar à tarde, assim já estaria t e r m i n a d a
a h o m e n a g e m ao novo doutor do Sanatório.
Um vento gélido, n a q u e l a t a r d e de domingo, açoitava
Campos do Jordão. A neblina, adensando-se, já come-
ç a r a a cobrir os picos das m o n t a n h a s . Campos do
J o r d ã o era assim mesmo. U m a t a r d e ensolarada, de
repente, se t r a n s f o r m a v a n u m dia farrusquento, e logo
o russo(*) descia sobre a cordilheira, envolvendo t u d o .

Resolvi voltar ao sanatório. N u n c a é agradável


dirigir automóvel no meio do nevoeiro. Já na vereda

(•) Russo — palavra popular com que os moradores da cidade de


Campos do Jordão chamam o forte nevoeiro que. de repente, baixa
sobre todo o município.

34
de cascalhos, que d e m a n d a ao edifício, divisei um vulto
q u e fazia sinal, solicitando " c a r o n a " . Parei o carro e
vi que era um preto alto, moço ainda, e que me pedia
confirmação sobre o endereço do Sanatório S. Pedro.
A princípio fiquei indecisa. Encarei-o mais de perto.
E s t a v a bem vestido. Notei algo de extraordinário nele:
irradiava simpatia. Apresentava olhos bondosos m a s
tristes, epiderme bem negra. S u a boca era formada
por traços delicados, quase idênticos ao contorno das
c r i a t u r a s b r a n c a s . Nela se desenhava um. rictus a m a r g o .
O h o m e m parecia, no íntimo, sofrer.

Nas suas m ã o s estava u m a pequena mala.


Ao p e r g u n t a r - l h e o que p r e t e n d i a obter no Sanatório,
afirmou-me, p a r a espanto m e u , que iria t r a b a í h a r .
— Servente? — perguntei-lhe, curiosa.

— Não...
— Atendente?. . . Enfermeiro?. . .
— Não... não... eu...
— O senhor é . . . é...
— E x a t a m e n t e , moça, sou o médico, o novo médico
que irá substituir, t e m p o r a r i a m e n t e , o doutor Walter.

— Médico?!!!

Não consegui esconder m i n h a surpresa, misto de


estupor e medo. Parece que ele compreendeu o m e u
estado. A tristeza acentuou-se a i n d a m a i s nos seus
olhos.
— D o u t o r , — disse, quase n u m m u r m ú r i o — por
favor, desculpe-me, m a s . . . m a s . . . e u p e n s e i . . . que o
senhor f o s s e . . .

35
Ele me interrompeu:

— Branco?
F i q u e i e m silêncio. E s t a v a r e a l m e n t e d e s a p o n t a d a .
P a r a m i m a q u i l o e r a u m episódio i n a u d i t o . N u n c a v i r á
um médico negro em sanatório de tuberculosas, prin-
cipalmente n u m hospital para milionárias. Isto iria
causar um rebuliço infernal. Já antevia os problemas
t e r r í v e i s q u e i r i a m ser c r i a d o s , dali a m i n u t o s . T e n t e i
r e m e d i a r a s i t u a ç ã o . M a s ele a p e n a s se l i m i t o u a i n d a -
g a r se no final da v e r e d a já se avistaria o sanatório.
Balancei a cabeça, em sinal a f i r m a t i v o . Insisti para
levá-lo. A g r a d e c e u - m e .
— Seu desapontamento t a m b é m me desconcertou,
senhorita. P r e f i r o a n d a r a pé. V o u m e d i t a n d o . A t é
c h e g a r a o edifício f o r m a r e i a l g u m p l a n o . Talvez o
melhor. T e n h o acertado mais do que errado, quando
p e n s o b a s t a n t e a n t e s d e t o m a r a decisão d e r r a d e i r a .
Desculpe-me, sim?
Afastou-se do m e u automóvel e seguiu em frente.
Demorei muito para dar partida no m e u carro.
F i q u e i a o l h a r o médico n e g r o , alto, elegantemente ves-
tido c o m u m terno moderno.
L i g u e i c m o t o r e passei p o r ele a t o d a a v e l o c i d a d e .
E s t a v a meio desnorteada.
Pelo espelhinho retrovisor vi que o médico n e g r o
p a r o u e f i c o u o l h a n d o o m e u a u t o m ó v e l , até o v e í c u l o
desaparecer n a p r i m e i r a c u r v a .
Na sua cabeça, decerto, ia um t u r b i l h ã o de pensa-
mentos tumultuosos, que se e n t r e c h o c a v a m . E s t a v a
v e r g a d o a o peso d e t e r r í v e l i n d e c i s ã o . O l h o u s e u r e l ó g i o .
E r a m quase q u a t r o h o r a s da tarde. F o i subindo a ve-
r e d a cercada de pinheirais e pereiras. P a r o u de súbito.

36
Divisara dois meninos, pretos como ele, jogando bolinhas
de gude. Deixou sua m a l e t a no c h a o e aproximou-se
das crianças. C u m p r i m e n t o u - a s com um leve aceno de
mãos. Agachou-se e ficou a olhar o jogo. Seus olhos
p a r e c i a m perdidos. Pediu u m a das bolinhas. Segurou-a,
como faziam os m e n i n o s , t e n t a n d o a t i n g i r um dos bu-
racos a b e r t o s na terra. Viu a bolinha rolar. Ela foi
crescendo a n t e seus olhos e, no seu íntimo, ele reviu
o passado. De r e p e n t e foi t r a n s p o r t a d o p a r a a s u a
infância. Encontrou-se no t e r r e n o baldio, vizinho ao
casebre onde morava, n a q u e l a favela horrível!

— Tião é a s u a vez. Vê se dá a "esteca" agora e


nois g a n h a u jogu.
Tião, com s u a calcinha rota, cor de t e r r a , a c e r t o u
na bolinha de gude do c o m p a n h e i r o e g a n h o u m a i s u m a
p e q u e n i n a bola de vidro. Pegou-a, correndo, e fugiu
p a r a o interior do seu casebre. M e r g u l h o u direto de-
baixo da c a m a e p u x o u um saquinho, virando-o sobre
a c a m a . Dezenas de bolinhas multicoloridas s u r g i r a m .
E r a m toda a sua alegria, o seu m a i o r divertimento, seu
m a i s precioso brinquedo. De m ã o s espalmadas, segu-
rava-as, sorrindo, e as deixava cair u m a s sobre as
outras.
Um sol a b r a s a d o r caía sobre t o d a a favela, g e r a n d o
sombras n e g r a s n a t e r r a escaldante. E r a m centenas,
quase u m m i l h a r d e casebres d e t á b u a s , todas rústicas,
desconjuntadas, salpicando o morro, perdendo-se n a s
encostas.
Lá embaixo, a cidade-grande, colorida, luminosa,
sonho de todos os h a b i t a n t e s da favela.
Tião nasceu no dia de São Sebastião, daí a origem
do seu nome. S u a m ã e , lavadeira de roupa de gente
da c i d a d e , era devota do santo. N ã o poderia ter outro

37
n o m e : ficou sendo m e s m o Sebastião: Este dia está m a r -
cado p a r a sempre na m e m ó r i a de D. Malvina, sua m ã e .
Dito, seu esposo, foi assassinado, j u s t a m e n t e no dia do
n a s c i m e n t o de Tião. T i n h a ido à venda p a r a c o m p r a r
bebidas e festejar o acontecimento. Deparou u m a briga.
Foi separar os contendores e levou u m a facada na
barriga. Morreu a n t e s de chegar ao hospital.

— ô! Mininu, vai e n t r e g a a ropa. Já é q u a t r u hora.


— P ê r a um poco, mãe. Tô g u a r d a n d u as bolinha
de gude.
E r a s e m p r e assim. Na hora de descer p a r a a cidade
Tião inventava mil e u m a desculpas, a fim de n ã o
p a r a r de b r i n c a r com suas bolinhas de vidro. Só à
noite sossegava, porque a m ã e lhe contava as tais esto-
r i n h a s de fada que ele t a n t o adorava. T i n h a cinco
anos e sempre que ia à cidade. Ao ver a l g u m a moça
loura, afirmava, ao voltar p a r a casa, que e n x e r g a r a u m a
fada.
E foi nessas a n d a n ç a s , levando a t r o u x a de r o u p a
na cabeça, que conheceu o Chiquinho, que m o r a v a
n u m a das mais belas casas que já vira. Sua m ã e lavava
r o u p a p a r a u m a vizinha da casa de Chiquinho.

O garoto era filho de u m a familia de origem síria.


T i n h a u m a i r m ã de n o m e Diana, dois anos m a i s nova.
Chico contava sete anos e D i a n a cinco a n i n h o s .
Tião já havia e n t r e g u e a r o u p a e passou pelas
grades que cercavam o vasto j a r d i m da fidalga m a n s ã o .

C h i q u i n h o jogava bola sozinho. Viu Tião, apro-


ximou-se dele. Convidou-o p a r a e n t r a r no j a r d i m e
com ele jogar bola.
— T e n h u que ir p r á casa. Já entreguei a ropa da

38
m ã e e ela n ã o g o s t a q u e eu demore — explicou o
pretinho.

— Sua mãe lava roupa? — p e r g u n t o u Chico, meio


admirado.

— A mãe lava. E a sua, t a m b é m lava?


— Não, m i n h a mãe t e m muitos empregados. Ela
não faz nada.

— N e m varre o quintal, nem arruma a cama?


I n t ã o q u i é q u i ela f a i z ?

— B e m , ela j o g a b a r a l h o , p e n t e i a o cabelo, p i n t a
a s u n h a s , c o m p r a p r e s e n t e p r á m i m , f a z m u i t a coisa.
— E s e u p a i , ele t r a b a i a ?
— Papai é industrial.
— M e u pai é m o r r i d u . . . qui é industrial?
— N ã o sei. Papai tem fábrica. É fábrica muito
g r a n d e . E u j á estive lá.
F o i q u a n d o s u r g i u a b a b á d e C h i q u i n h o e foi u m
alvoroço.
Um preto no j a r d i m , conversando com o filho da
p a t r o a , era algo que d a v a m e s m o p a r a criar a m a i o r
b a l b ú r d i a possível. T i ã o sentiu-se em perigo e saiu
c o r r e n d o . C h i q u i n h o c o r r e u a t r á s dele.
— Volte, Tião! Volte! Nós somos amigos, volte!
C h i q u i n h o a v a n ç o u sobre o j a r d i n e i r o q u e t e n t a v a
a l c a n ç a r T i ã o . E s t e c o n s e g u i u p a s s a r pelo p o r t ã o e
desaparecer na r u a asfaltada.
M a s a a m i z a d e dos dois f i c o u selada p a r a s e m p r e .
T o d a s a s s e m a n a s eles s e v i a m . Na favela já sabiam
que T i ã o t i n h a u m amigo rico.

39
U m d i a T i ã o v o l t o u r a d i a n t e . F o r a c o n v i d a d o pelo
C h i q u i n h o p a r a i r à s u a festa d e a n i v e r s á r i o , u m a
r e u n i ã o c o m m u i t o bolo e doces à v o n t a d e .

E l e e s p e r a v a o s á b a d o c o m o se fosse o m a i o r dia
d a s u a v i d a . N a v é s p e r a desse d i a , à s d u a s h o r a s d a
m a d r u g a d a , T i ã o acordou assustado e correu para a sua
mãe:

— Acorda, mãe! Acorda! Tá na h o r a da festa!

D. M a l v i n a o l h o u p a r a o relógio impressionada,
pensando ter perdido m e s m o a hora. Z a n g o u - s e :

— Q u i festa, qui nada, m i n i n u ! A i n d a n u m t á n a


h o r a , n ã o . A f e s t a é só à t a r d e , d i a b i n h u . A i n d a f a r t a
muitu tempu.

— Q u i tempu, mãe, diz! Qui tempu!

— ó i a , diabu, só vai p r á festa q u a n d u o p u n t e i r u


g r a n d i d u r i l o g i u t i v e n u m doze e u p i q u e n u n o q u a t r u .
A g o r a dormi diabu, si não tu apanha!

Tião deitou-se s e g u r a n d o o r e l ó g i o . E l e s ó p e n s a v a
n a festa, m a s n ã o sabia q u e s u a m ã e s e n t i a p r o f u n d a s
dores n o peito o q u e n ã o t i n h a d i n h e i r o p a r a i r a o
médico. A l g o a q u e i m a v a p o r d e n t r o , s e m q u e ela
soubesse o q u e fosse.

D u r a n t e o dia brincou c o m o relógio perto. Não


v i a o i n s t a n t e de os p o n t e i r o s f o r m a r e m a f i g u r a q u e
a m ã e lhe ensinara. Nesse d i a ele n ã o i r i a e n t r e g a r
roupa. A m ã e o d e i x a r a p r e p a r a r - s e p a r a a f e s t a do
C h i q u i n h o , d a q u a l ele f a l a v a h á m a i s d e u m a s e m a n a ,
n u m a a n s i e d a d e c r e s c e n t e , c o m o se o a n i v e r s á r i o fosse
o dele. T o d o s seus a m i g u i n h o s s a b i a m q u e ele ia à
casa do a m i g o r i c o e s e n t i a m - s e i n v e j o s o s .

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— Mãe, vesti eu. O ponteiro g r a n d i já c h e g o lá
oncu a s e n h o r a f a l o q u e t a v a n a h o r a d e i r n a f e s t a .

D. M a l v i n a estava recostada na cama. Levantou-se


c e m dificuldade, mas sorrindo, devido a alegria do filho.
N ã o n o t o u q u e seus s a p a t i n h o s e s t a v a m r o t o s e q u e
u m dos dedos a p a r e c i a . N e m v i u q u e a c a l c i n h a , e m b o r a
limpa, t i n h a u m r e m e n d o d e c o r d i f e r e n t e . P o s u m a
g r a v a t i n h a na camisa l i m p a e seu filho p a r t i u , descendo
o m o r r o c o m a s a t i s f a ç ã o e s t a m p a d a no r o s t o .

Lá embaixo, porém, os amigos gritaram, em t e m


galhofeiro:

— E o presenti, Tião? Q u e m n u m leva presenti


e m festa d e a n i v e r s a r i u n u m c o m i doce!

T i ã o parou, embaraçado. E r a verdade. N e m pen-


sara que deveria dar um presente ao seu amigo. Mas
o que? V o l t o u c a b i s b a i x o p a r a s u a casa. F o i m a t u t a n d o
pelo c a m i n h o e de r e p e n t e s a i u c o r r e n d o . L e m b r a r a - s e ,
e n f i m . R u m o u d i r e t o até d e b a i x o d a c a m a o n d e p e g o u
o saquinho contendo suas adoradas bolinhas multicolo-
ridas. P a r o u , e m pé, c o m o q u e m e d i t a n d o . Soltou-as
de n o v o na c a m a e acariciou-as demoradamente. Seus
o l h o s d e n o t a v a m indeciso. P a r e c i a n ã o t e r c o r a g e m
para tomar a atitude definitiva. Suspirou profunda-
mente:

— A p o s t u qui o C h i q u i n h o v a i gosta.
E m b r u l h o u - a s . a princípio devagar, n u m oedaço de
jornal velho. Depois meditou, enquanto r e s m u n g a v a :
— N u m faiz m a l , t a m b é m eu vô come u m a purção
di d o c i . . .
Desceu correndo o m o r r o , na maior velocidade,
tropeçando nas pedras. E s t a v a atrasado.

41
A casa de C h i q u i n h o achava-se toda o r n a m e n t a d a .
Os j a r d i n s o s t e n t a v a m a r a m e s esticados d e á r v o r e e m
á r v o r e e neles se viam c e n t e n a s de bolas de gás pen-
d u r a d a s . No salão de festas, a mesa farta, comprida,
coberta de doces. Ao centro, o g r a n d e bolo de ani-
versário. Oito velinhas o enfeitavam. T i n h a formato
de moinho. Os salgadinhos e doces estavam espalhados
c o m a r t e por toda a mesa j u n c a d a de flores. Havia
a l g a z a r r a , provocada por um sem n ú m e r o de crianças
c o r r e n d o por todos os cantos. De i n s t a n t e , a i n s t a n t e ,
a u t o m ó v e i s de classe a t r a v e s s a v a m o portão, t r a z e n d o
p a r e n t e s e amigos da família de Chiquinho.

Foi em meio a esse b u r b u r i n h o que Tião chegou


j u n t o ao portão de ferro do rico palacete de Chiquinho.
Fez m e n ç ã o de e n t r a r . Foi b a r r a d o pelo porteiro
carrancudo.

— Onde pensa que vai, moleque? Saia! Olhe o


carro!
O u t r a fina limousine estava c h e g a n d o à residência
d o s Hadads.
— Mais, moçu, eu fui convidadu pelu C h i q u i n h o !
Trouxe até o presenti d e l e . . . — E Tião levantou o pe-
queno e m b r u l h o , exibindo-o orgulhosamente.
— Você está maluco, garoto! E n t ã o o " s e u " Jorge
iria deixá-lo e n t r a r na casa dele como convidado do
filho? Vá embora, vá, a n t e s que eu c h a m e um g u a r d a !
Vá!
Tião se afasta com as m ã o z i n h a s postas a t r á s , aper-
t a n d o nervosamente o presente que iria dar ao compa-
nheiro.
Vai assistindo à chegada dos amigos e parentes, do
amiguinho. U m a a n g ú s t i a seca s u a g a r g a n t a . T e n t a

42
ainda entrar, m a s o porteiro quase lhe bateu. Fugiu
p a r a l o n g e e foi-se a p r o x i m a n d o l e n t a m e n t e . P o s t o u - s e
na grade de ferro. De repente, avistou C h i q u i n h o perto
d a j a n e l a d o g r a n d e salão.

— Chiquinho! Chiquinho, v e m cá! C h i q u i n h o , sou


eu, c Tião! V e m cá, C h i q u i n h o !

N a q u e l e i n s t a n t e , as d e z e n a s de c r i a n ç a s e a d u l t o s
c a n t a v a m a letra do " P a r a b é n s " . A voz do T i ã o não
c h e g o u até a j a n e l a . F i c o u e n c o s t a d o n a g r a d e até
q u a s e dez h o r a s d a n o i t e .

V i u , um por u m , os convidados sairem. Depois as


l u z e s s e a p a g a r a m . A f e s t a t e r m i n a r a . D o s seus o l h o s
a l g u m a s l á g r i m a s q u e n t e s , grossas, d e s l i z a v a m pelas
faces. S u a idade j a m a i s l h e p e r m i t i r i a c o m p r e e n d e r a
m e n t a l i d a d e das elites.

Só q u a n d o c h e g o u ao pé do m o r r o é q u e c o m e ç o u a
correr, g r i t a n d o , soluçando alto, c h a m a n d o a m ã e :
— Mãe! Mãe! N u m d e i x a r a m e u e n t r a n a casa
du Chiquinho!

M a s D . M a l v i n a n u n c a i r i a saber d o infortúnio de
seu f i l h i n h o . E l a e s t a v a m o r t a e m u i t a gente aperta-
va-se dentro do único c o m p a r t i m e n t o do casebre. Um
e n f a r t e v i t i m a r a - a , l o g o após a s a í d a do T i ã o para a
festa do m e n i n o rico.
Q u a t r o c í r i o s i l u m i n a v a m o i n t e r i o r d o tôsco b a r r a c o .
F o i a ú l t i m a l e m b r a n ç a que T i ã o teve de sua mãe.
D u r a n t e a l g u n s dias ele f i c o u n u m casebre v i z i n h o .
Q u e r i a m providenciar o internamento do menino no
J u i z a d o de Menores.
Certa manhã Tião saiu em direção à casa de
Chiquinho.

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Foi encontrá-lo no m e s m o j a r d i m , b r i n c a n d o com
enorme bola de b o r r a c h a .
Ao vê-lo, C h i q u i n h o correu ao seu encontro. Re-
criminou-o porque n ã o fora à festa do seu aniversário.
— G a n h e i u m a porção de presentes e até um na-
vio g r a n d e , que a n d a na á g u a como se fosse de verdade.
Eu a i n d a vou lhe m o s t r a r .

Tião chorava:
— M a m ã e m o r r e u , Chiquinho. Eles q u e r e m mi
leva prô Juiz. N u m deixa Chiquinho. Deixa eu m o r á
com ocê, Chiquinho.
Havia t e r n u r a nos olhos de C h i q u i n h o :
— Tião, a g o r a n ã o dá p r á você e n t r a r . Vem de
noite, bem t a r d e , e eu escondo você aqui dentro.
Na h o r a do j a n t a r , Chiquinho já estava profunda-
m e n t e nervoso. Queria, a todo o i n s t a n t e , saber se
sua m ã e ia sair. Ela chegou a rir da insistência, sem,
contudo, a t i n a r com o que o m e n i n o desejava.
Às nove h o r a s da noite a pajem foi levá-lo à cama.
Ele pediu-lhe p a r a a p a g a r a luz, pois iria d o r m i r logo.
Não queria saber de e s t ó r i a s . . .
Só q u a n d o o silêncio cobriu toda a residência é
que C h i q u i n h o se levantou e foi, cautelosamente, até
o jardim. Lá estava Tião, com s u a t r o u x i n h a de roupas,
bem escondido entre as árvores.
F o r a m diretos p a r a o interior do palacete. Passaram,
a n t e s pela cozinha, onde Tião m a t o u a fome que
castigava seu estômago.
Só havia um l u g a r onde Tião podia ficar sem ser
descoberto: o porão. E foi p a r a onde Chiquinho o levou,

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r e c o m e n d a n d o - l h e q u e n ã o saísse d a l i a t é ele a r r a n j a r
u m a s o l u ç ã o p a r a o p r o b l e m a . T o d o s o s dias l h e l e v a r i a
comida.

— Mas C h i q u i n h o como é qui v o u nu banheiro?

O garoto pensou durante algum tempo:

— Eu lhe levo um penico. P r o n t o , tá resolvido.

O s dias i a m p a s s a n d o . C a d a v e z t o r n a v a - s e m a i s
d i f í c i l , p a r a o m e n i n o , a t i n g i r o p o r ã o c o m o p r a t o de
comida. T i ã o , por sua vez, já estava enjoado de ficar
tranficado naquele antro. T i n h a vontade de brincar nos
jardins. S e m t o m a r b a n h o , p o r v á r i o s dias, s e n t i a
terrível coceira no corpo. Sua r o u p i n h a estava m u i t a
suja. O p e n i c o c h e i o d e coco e r a o u t r o g r a n d e p r o -
blema. N e m todos o s dias C h i q u i n h o c o n s e g u i a a t r a -
v e s s a r a casa a t é o b a n h e i r o p a r a l i m p á - l o . O r e m é d i o
era ficar sentindo aquele cheiro danado. E r a o que mais
enjoava a Tião.

E , u m dia, q u a n d o C h i q u i n h o teve d e sair, e m c o m -


p a n h i a d a p a j e m , T i ã o r e s o l v e u d a r u m g i r o pelo
palacete.
V i s i t o u p r i m e i r o o s salões d o a n d a r t é r r e o . D e s l u m -
b r o u - s e c o m as e s t á t u a s , os q u a d r o s , a l a r e i r a , o g r a n d e
relógio de parede, os tapetes magníficos. S u b i u as
escadas, s e g u i n d o pelo c o r r e d o r , q u a n d o d e p a r o u u m a
porta entreaberta. A b r i u - a um pouco mais e divisou a
m ã e d e C h i q u i n h o p e n t e a n d o o s l o n g o s cabelos l o i r o s ,
que tanto impressionaram a T i ã o :
— U m a f a d a ! . . . — e x c l a m o u , pondo as m ã o z i n h a s
n o s lábios.
A m ã e d e C h i q u i n h o , p o r é m , v i u T i ã o pelo e s p e l h o .
V i r o u - s e com os olhos pregados no pretinho. Levan-

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tou-se, rápida, e e s c a n c a r o u a porta. T i ã o ficou parali-
sado, c o m os olhos esbugalhados. Quis falar, mas a
balbúrdia estava feita. A o s g r i t o s d a m u l h e r todos o s
criados a c u d i r a m . F o i u m corre-corre que s ó t e r m i n o u
c o m a chegada do comissário de menores, que l e v o u
T i ã o sob i n t e n s o c h o r o , g r i t a n d o p o r C h i q u i n h o .

Na hora do jantar, quando Chiquinho logrou alcan-


ç a r o p o r ã o c o m o p r a t o de c o m i d a , d e s c o b r i u o que
acontecera ao seu a m i g u i n h o :

— P o r q u e v o c ê f e z isto, mamãe? Ele é m e u


amigo. D e i x a ele m o r a r a q u i . A m ã e dele m o r r e u .

— M e u f i l h o , p r e t o n ã o p r e s t a . T o d o s eles c r e s c e m
ladrões, m a t a m gente. E s q u e ç a esse m o l e q u e n o j e n t o .
N u n c a p e r m i t i r i a q u e v o c ê crescesse a o l a d o d e u m n e -
grinho. É u m a raça maldita. Papai do C é u não abençoa
os pretos, m e u filho.
O d e s t i n o , c o n t u d o , c o n t r a r i o u a v o n t a d e da m ã e
de C h i q u i n h o . O menino ficou dominado profunda-
m e n t e por u m a nostalgia que lhe t i r a v a , inclusive, a
vontade de se alimentar. Médicos f o r a m chamados.
Mas Chiquinho só queria ver Tião.

Na visita que os pais f i z e r a m ao J u i z a d o de Me-


n o r e s f i c o u p a t e n t e q u e ele n ã o p e r m i t i r i a " a l u g a r " o
p r e t i n h o apenas p a r a salvar o filho.

— Adotem, é a única solução — asseverou o


magistrado.

F o i um escândalo. O sr. J o r g e a l i m e n t a v a idêntica


aversão por negros e h a v i a ainda a sua filhinha D i a n a ,
que t i n h a pavor de pretos.

Os c o n s e l h o s m é d i c o s d o b r a r a m e a a d o ç ã o , após
u m a série d e d i f i c u l d a d e s , f o i f e i t a , m a s f i c o u t o t a l -

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m e n t e proibida a e n t r a d a de Tião em q u a l q u e r depen-
dência do palacete. Moraria no porão, onde, inclusive,
teria que se a l i m e n t a r .

Chiquinho, porém, podia vê-lo sempre.

A bela D i a n a cresceu odiando Tião. N u n c a cruzou


com ele e fazia questão de obrigá-lo a ver que t i n h a
nojo dele.
Mas o órfão dedicou-se com. afinco aos estudos.
Q u a n d o Tião fez dezoito anos, embora soubesse q u e
C h i q u i n h o e ele e r a m amigos inseparáveis, a u t ê n t i c o s
irmãos de criação, o sr. Jorge expulsou-o de casa, a
pedido de sua filha D i a n a e da esposa.

Alegaram que ele já era maior de idade e q u e po-


deria t r a b a l h a r p a r a o seu sustento. Houve violenta
briga e n t r e Chiquinho e seus pais, por motivo dessa
decisão impiedosa.

Tião compreendera que se t r a n s f o r m a r a no p ô m o


de discórdia da família milionária, cuja maioria de
i n t e g r a n t e s j a m a i s o reconheceria como ser h u m a n o .
E r a negro. T i n h a que sair daquele a m b i e n t e .

Tião foi p a r a a F a c u l d a d e de Medicina e, aos 24


anos, tirava o diploma, no exato dia em que recebeu
u m a notícia que quase o prostrou: Chiquinho, seu i r m ã o
de criação, a q u e m devia tudo o que possuía em c u l t u r a ,
perecera n u m desastre aéreo entre Rio e São Paulo.

N u n c a mais voltou ao Palacete da r u a H o n d u r a s .


N u n c a mais vira a família Hadad, com seus preconceitos
e seu racismo i n t r a n s i g e n t e .
E r a médico do Governo do Estado e, agora, fora
designado p a r a t r a b a l h a r no Pronto-Socorro da Secre-
t a r i a da Saúde, em Campos do Jordão, m a s p r e s t a n d o

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s e r v i ç o s n o S a n a t ó r i o S . P e d r o , até a a d m i s s ã o d e f i n i t i v a
de um facultativo. Seria difícil e n c o n t r a r u m médico,
m e s m o c o m a oferta de polpudo ordenado, que se s u -
jeitasse a m o r a r n o s a n a t ó r i o e t r a n s f o r m á - l o n o s e u l a r .
E s s a dificuldade fizera c o m que o G o v e r n o corresse em
socorro do sanatório de milionárias tuberculosas, porque
o único médico existente no Pronto-Socorro não d a v a
conta do serviço.

T i ã o — h o j e d o u t o r S e b a s t i ã o de O l i v e i r a — v o l t o u
à realidade. Aquelas m i n ú s c u l a s bolinhas de v i d r o ,
m o m e n t a n e a m e n t e , o fizera recordar-se de um passado
m a r c a d o p o r h u m i l h a ç õ e s e dores i n d e l é v e i s . A c a r i c i o u
l e v e m e n t e a c a b e ç a dos dois n e g r i n h o s q u e a i n d a b r i n -
c a v a m c o m as bolinhas de gude e r u m o u , decidido, p a r a
o m a j e s t o s o edifício d o S a n a t ó r i o S . P e d r o . Ia digla-
d i a r - s e , ele o sabia, c o m o q u e h a v i a de m a i s r e p r e s e n -
t a t i v o n a s elites b r a s i l e i r a s : a s f i l h a s dos m i l i o n á r i o s q u e
h a v i a m , m e r c ê de suas vidas repletas de noitadas,
a d q u i r i d o a d e v a s t a d o r a peste b r a n c a .

C h e g u e i ao pé da escadaria, anunciei às moças que


o médico já v i n h a . D e m o r a v a porque resolvera fazer
o trajeto da estaçãozinha do Sanatório D. Leonor
M e n d e s de B a r r o s , até o s a n a t ó r i o , a pé.
A l g u m a s m e p e r g u n t a r a m c o m o ele e r a . Esqui-
vei-me de tecer qualquer comentário. E s p e r a v a a pior
das reações. F u i p a r a a a n t e - s a l a . N ã o q u e r i a , d e
f o r m a a l g u m a , assistir à s c e n a s q u e daí a a l g u n s m i -
nutos, sabia, i r i a m se desenrolar. F u i à janela. N ã o
c o n s e g u i , p o r m a i s q u e dissesse " n ã o " a m i m m e s m a ,
evitar v e r a c h e g a d a do dr. Sebastião. E, lá na ú l t i m a
c u r v a , ele a p a r e c e u . N a e s c a d a , pelo m e n o s u m a d e z e n a

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de moças o esperava. T i n h a m às m ã o s r a m o s de flores
d e p e r e i r a . A l g u m a s e s t a v a m v e s t i d a s c o m o s e estivesse
p r o n t a s p a r a i r e m a u m a f e s t a . A m a i o r i a , pelo m e n o s ,
era constituída de moças bonitas.

A M a d r e t a m b é m e s t a v a n a escada.

H o u v e decepção à c h e g a d a d o h o m e m p r e t o .

E s p e r a v a m um médico elegante, simpático, e por


isso o n e r v o s i s m o a u m e n t a v a . . .

T i ã o , contudo, foi até o pé da escada:


— Boa tarde, moças. Eu sou o n o v o médico do
Sanatório. M e u n o m e é Sebastião de O l i v e i r a .

U m m u r m ú r i o teve início. N o rosto d e cada u m a


e s t a v a e s t a m p a d o o m i s t o de d e s c r e n ç a e n o j o .

— N e g r o sujo, em m e u corpo suas mãos n u n c a


t o c a r ã o ! — e x c l a m o u u m a das i n t e r n a d a s , v i o l e n t a -
mente.

— E s t a s f l o r e s e r a m d e s t i n a d a s a um h o m e m , a
um médico de verdade! T o m e . preto fedido! — E, ato
c o n t í n u o , a i n t e r n a d a a t i r o u - a s n o r o s t o d o dr. S e b a s t i ã o .

F o i i m i t a d a pelas d e m a i s m o ç a s q u e , n u m f r e n e s i
histério, inesperado, ao m e s m o tempo que v o m i t a v a m
impropérios em cima de impropérios, a t i r a v a m os ramos
de flores s o b r e o m é d i c o n e g r o .

E l e n ã o disse u m a p a l a v r a . N ã o f e z u m gesto d e
defesa. Olhava-as, estarrecido. V i a - s e o leve t r e m o r
d e seus lábios. H o u v e r e b u l i ç o , a M a d r e t e n t a n d o i m -
p e d i r o d e s t e m p e r o das m o ç a s . Voltaram-se para o
p r é d i o e e n t r a r a m aos tropeções. U m a , porém, ficou:
e r a u m a das m a i s l i n d a s i n t e r n a d a s , " m i s s G u a r u j á " .
O dr. Sebastião fitou-a e só teve t e m p o de balbuciar:
— Diana...!
Sim, era Diana, a i r m ã de Chiquinho, que ali
estava!
Diana, a m e n i n a que o odiou d u r a n t e quase toda
a sua infância e exigiu, q u a n d o moça, a expulsão de
Tião de sua casa. Ali estava, enferma, e seria s u a
paciente! Diana, s u a i r m ã de criação!

E n q u a n t o seus p e n s a m e n t o s corriam, assim, céleres,


buscando i m a g e n s e soluções, n ã o notou que D i a n a
descia l e n t a m e n t e as escadas. Chegou a a l g u n s centí-
metros do doutor Sebastião:

— Porco! Prefiro m o r r e r a vê-lo e n t r a r sequer no


meu quarto!
E após fitá-lo, com r a n c o r visível e s t a m p a d o nos
olhos, D i a n a cuspiu-lhe em pleno rosto!

Eu me a c h a v a estática a t r á s do vidro da janela da


ante-sala. Abri a p o r t a e apareci no topo da escada.
O doutor Sebastião olhou-me e vi que seus olhos esta-
v a m marejados de lágrimas. A Madre, nervosa, esfre-
gava as mãos e n ã o conseguia a r t i c u l a r u m a só palavra.

Desci, bem devagar, a escada. Estendi-lhe as mães.


— Venha doutor. Serei sua amiga. Nem todas são
como Diana. As o u t r a s foram levadas a fazer o que na
realidade n ã o t i n h a m intenção de praticar.
— Obrigado, moça. Enfrentarei essa oposição a t é
onde for possível. — E voltando-se p a r a a Madre, pe-
diu-lhe a mão, beijando-a respeitosamente. — Seremos
amigos t a m b é m Madre? Sei o que a m i n h a cor repre-
senta p a r a as elites. Terei o seu apoio?

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— Deus é t e s t e m u n h a de q u a n t o reprovo o que
aqui ocorreu, doutor. T e n t a r e i facilitar, o m á x i m o possí-
vel, a sua tarefa e sua presença neste sanatório —
respondeu, quase n u m m u r m ú r i o .

Pedindo-lhe licença, saiu com o médico, levando-o


p a r a os aposentos que lhe foram designados.
Um furor, de repente, apossou-se de mim. Voltei-me
rápida e subi correndo as escadas, em. direção à ala
dos a p a r t a m e n t o s . Encontrei a i n d a a l g u m a s moças
r e u n i d a s no corredor, c o m e n t a n d o o ocorrido. A mais
exaltada era D i a n a :
— Conheço há m u i t o esse negro, É p e t u l a n t e .
T u d o o que t e m deve a m e u pai, inclusive os estudos.
Morava nos porões de m i n h a casa. M i n h a m ã e o expul-
sou. T e n h o ódio dele:
I n t e r r o m p i , enérgica:
— O que é que vocês p e n s a m que são. E você
Diana? Não tem. o m í n i m o pudor? Seu dinheiro
c o m p r a r i a t u d o o que você quisesse na vida?
P o r t a s se a b r i r a m e várias o u t r a s doentes c o r r e r a m
p a r a o local onde estávamos discutindo.
Diana, foi m o r d a z :
— Olhe aqui, s u a cadelinha, você que se prostituiu
como contou n u m livro, n ã o tem m o r a l p a r a chegar
perto de m i m !
Senti o s a n g u e invadir-me a cabeça. M i n h a s t ê m -
poras c o m e ç a r a m a latejar e a resposta se r e s u m i u na
violenta bofetada que lhe desferi!
— D e s g r a ç a d a — acrescentei, perdendo t o t a l m e n t e
a c o m p o s t u r a — Conheço a sua história, v a g a b u n d i n h a !
O dinheiro que você t e m n ã o consegue cobrir a l a m a

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em que sua f a m í l i a se c h a f u r d a . V o c ê , D i a n a , pertence
a essa elite p u s t u l e n t a , f a l i d a , q u e v i v e n u m f a u s t o
a v i l t a n t e , e s p e z i n h a n d o t o d o s q u e estão e m s i t u a ç ã o
financeira inferior. E s q u e c e s e u tio, a q u e l e d e p u t a d o
f e d e r a l s í r i o - l i b a n ê s , q u e p a r a t e n t a r c o n s e g u i r ser
e m b a i x a d o r n o L í b a n o f o i o f e r e c e r s u a d i s t i n t a e bela
esposa a o p r e s i d e n t e d a R e p ú b l i c a ? Não tenho medo
de suas ameaças, n e m de s u a f a m í l i a e, p a r t i c u l a r m e n t e ,
d e s e u tio, q u e n u n c a m e f a r á n a d a . . . O negro que
a í e s t á é u m m é d i c o . V e n c e u pelos seus m é r i t o s . T e m
um passado do qual você j a m a i s poderá se igualar, n e m
v o c ê n e m essas p r o s t i t u t a z i n h a s d a sociedade, q u e n ã o
v e n d e m o c o r p o m a s p r a t i c a m atos m a i s abjetos q u e
a mais sórdita rameira! Sociedade que i n s t i t u i u o
a m a n t e como n o r m a , como c o n d u t a oficial da vida!
Sociedades c u j o s m e m b r o s f r e q ü e n t a m as boates e c l u b e s
n o t u r n o s a o l a d o d e esposas e a m a n t e s , n u m t r i o i n f a -
m a n t e , n u m a exibição desputadora de chifres como se
fossem u m o r n a m e n t o necessário, imprescindível para
se t e r l i v r e t r â n s i t o n e s s a sociedade p u r u l e n t a ! O fato
j á é p ú b l i c o , D i a n a . V o c ê é " m i s s G u a r u j á " , s i m , pois
é miss da t e r r a onde, segundo o cronista F l á v i o P o r t o ,
o famoso " D o n a Y a Y á " , se desenvolve a mais vergonhosa
das i n d ú s t r i a s : a d o " c o r n o l u x " ! " C o r n o l u x " ! E n t e n d e u .
Diana? "Cornolux"! E isto ele e s c r e v e u e m l e t r a d e
i m p r e n s a nos jornais p a r a os quais t r a b a l h a ! Você,
Diana, não é "miss G u a r u j á " , é "miss C o r n o " ! Veja
a g o r a a diferença que há entre o h o m e m negro, p o r é m
decente, probo, h u m a n o , que você acaba de espezinhar,
e a sua personalidade m á , falsa, despudorada, e m b o r a
coberta pela tez b r a n c a . . .

C o m os olhos desmedidamente abertos, D i a n a me


f i t a v a v o m i t a n d o ódio, t r ê m u l a .
As demais doentes não quiseram participar do b r u t a l

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diálogo. Encarei-as a c i n t o s a m e n t e , como se todas fossem
culpadas. Virei as costas e entrei no m e u a p a r t a m e n t o .

A p o r t a de m e u s aposentos a i n d a n ã o se fechara,
permitindo-me ouvir a breve e a m e a ç a d o r a explosão de
D i a n a que, de dedo em riste, vociferou:
— J u r o por t u d o que seja sagrado neste m u n d o
que ela e esse negro pestilento me p a g a r ã o bem caro
esses m i n u t o s a m a r g o s que acabo de passar!

V a g a r o s a m e n t e , quase sem n e n h u m comentário, a s


enfermas foram t a m b é m se retirando, buscando, cada
u m a , seus a p a r t a m e n t o s .

D i a n a , a princípio lerda, apressou seus passos.


Abriu e fechou violentamente a porta, provocando um
estrondo no longo e a m p l o corredor do S a n a t ó r i o
S. Pedro.
— T e n h o que a r q u i t e t a r algo p a r a destruir esse
preto indecente! — m u r m u r o u entre dentes, sem c e r r a r
os olhos, despendendo chispas de r a n c o r d a s belas e
n e g r a s pupilas..

E r a m sete h o r a s de u m a m a n h ã bem fria, em


Campos do Jordão. O médico negro estava na sala de
consultas, que lhe fora designada p a r a a t e n d e r às
doentes. Não houve consulta. As enfermas se n e g a v a m
a ser e x a m i n a d a s pelo dr. Sebastião. Algumas, m a i s
radicais que o u t r a s , se p o s t a r a m n a s imediações da sala
e i m p e d i a m que a l g u é m se aproximasse. O livro de
consultas sobre a pequena m e s a do salão t a m b é m estava
em branco.
As doentes do p u l m ã o do Sanatório S. Pedro h a v i a m
decretado a "greve do Kock".

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— O q u e d i z de t u d o isso a n o s s a M a d r e ? — p e r -
g u n t e i à B e l i n h a , que não t i n h a sentimentos racistas.
— Sei l á . C o n f e s s o q u e n ã o m e a g r a d a m u i t o ser
e x a m i n a d a p o r u m n e g r o . M a s s e n ã o h á o u t r o jeito,
que me e x a m i n e , que me ausculte. Q u e r o é ficar c u r a d a .
N ã o t e n h o essas t e i m a s r i d í c u l a s . Mas parece-me que
a M a d r e está e m a p u r o s . N ã o sabe q u e decisão t o m a r .
H á m o ç a s q u e estão p r e c i s a n d o q u a s e q u e d i a r i a m e n t e
de assistência médico. S o u b e q u e ela j á a p e l o u p a r a
o médico do Pronto-Socorro do Estado, m a n d o u chamá-lo.

Revoltei-me:

— Mas a Madre não devia proceder assim! Ela


deve insistir. I s t o é confessar-se d e r r o t a d a !

— E ela p o d e r i a e n f r e n t a r as nossas f a m í l i a s ?
C a l c u l e o e s c â n d a l o q u e isto v a i p r o d u z i r q u a n d o nossos
pais s o u b e r e m q u e e s t a m o s s e n d o e x a m i n a d a s p o r u m
negro! O s a n a t ó r i o v a i se e s v a z i a r da n o i t e p a r a o
d i a . A M a d r e sabe disso. E l a n ã o q u e r a b a l a r a t r a -
dição de S. P e d r o e q u a n d o for interpelada, v a i precisar
p r o v a r q u e está t o m a n d o " e n é r g i c a s " p r o v i d ê n c i a s p a r a
a f a s t a r o d o u t o r n e g r o d o nosso c o n v í v i o .

Q u a n t o a o m é d i c o , este a l h e o u - s e , v o l u n t a r i a m e n t e ,
das e n f e r m a s das elites. P a s s o u a d e d i c a r - s e , c o m e s m e r o ,
à s i n d i g e n t e s , q u e e m n ú m e r o d e sessenta n ã o c r i a r a m
muitos problemas. M a s , m e s m o e n t r e elas, e x i s t i a m
a l g u m a s que d e m o n s t r a v a m nojo, sentimento de repulsa.
Solidarizaram-se c o m as doentes ricas que ao t o m a r e m
conhecimento, passaram a freqüentar mais assidua-
m e n t e o s porões, d e m o n s t r a n d o u m a f a l s a a m i z a d e
à q u e l a s q u e t a m b é m se n e g a v a m a ser a t e n d i d a s p e l o
médico n e g r o . D i a n a , por seu t u r n o , fez o possível p a r a
que as sessenta indigentes cerrassem fileiras c o m as

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duzentas enfermas milionárias. Não logrou êxito, mas
c o n s e g u i u m u i t a adesão.

S o m e n t e consegui avistar-me c o m o doutor Sebastião


n a t a r d e d o o u t r o d o m i n g o , q u a n d o o localizei s e n t a d o
n o b a n c o dos j a r d i n s i n t e r n o s d o S a n a t ó r i o . Estava
cabisbaixo. Sentiu m i n h a aproximação e olhou-m?
ternamente:

— V a i acabar criando u m a situação insustentável


p a r a você m e s m a aqui d e n t r o , Adelaide.
— E n f r e n t o o risco, doutor. Sinto u m a revolta
a p e r t a r o m e u c o r a ç ã o . S e r á l í c i t o q u e s ó p o r q u e essas
jovens f o r a m protegidas pela f o r t u n a , possuindo u m a
s i t u a ç ã o p r i v i l e g i a d a , d e v a m ser c o n s i d e r a d a s a e n c a r -
nação d a própria grandeza? N ã o h a v e r á u m resquício
d e s e n t i m e n t o n o r e c a n t o m a i s o c u l t o d o e s p í r i t o dessas
m o ç a s ? P o r q u e t o d a a elite é a s s i m , p o d r e , e s t ú p i d a ,
desumana, insensível, doutor?

— D i s c o r d o , m i n h a a m i g a . F e l i z m e n t e isto q u e a í
e s t á r e p r e s e n t a a m i n o r i a das elites. A g r a n d e p a r t e é
composta de c r i a t u r a s de caráter. Pode estar certa de
q u e a m a i o r i a das m o ç a s deste s a n a t ó r i o n ã o c o m p a r -
t i l h a das a m b i ç õ e s e das posições r a d i c a i s de a l g u m a s
p o u c a s j o v e n s , c a p i t a n e a d a s pela m i n h a i r m ã d e c r i a ç ã o ,
que é D i a n a . Estão influenciadas. Os bons, Adelaide,
a i n d a s o b r e p u j a m , e m n ú m e r o e ações, o s m a u s . Q u e
seria do m u n d o se apenas existissem criaturas insensatas
como Diana?

— C o m o e x p l i c a , e n t ã o , essa s o l i d a r i e d a d e q u e o
i m p e d i u d e e x a m i n a r u m a s ó d o e n t e dos q u a r t o s e
apartamentos?

— U m falso p u d o r , d e s p e r t a d o pelos e x e m p l o s das


criaturas más. Às vezes fazemos aquilo que c o n t r a r i a

55
o nosso íntimo. É e v i d e n t e q u e no seio das classes
m a i s f a v o r e c i d a s esse falso p u d o r é m a i s a c e n t u a d o ,
m a s n e m p o r isso d e i x a d e e x i s t i r t a m b é m n a s classes
necessitadas. V e j a o s e x e m p l o s q u e pode c o l h e r e m
m e i o às i n d i g e n t e s . C e r c a de 20 m o ç a s , das m a i s p o b r e s ,
s o l i d a r i z a r a m - s e c o m a s colegas r i c a s . A s o u t r a s 40,
c o n t u d o , aliaram-se a m i m e t e n t a m convencer as demais
d o e r r o q u e c o m e t e m . A l g u m a s c e d e r ã o . O u t r a s per-
m a n e c e r ã o n a s posições i n i c i a i s , m a i s p o r a m b i ç ã o .
P e n s a m que terão a l g u m a r e c o m p e n s a . . . Muito pou-
cas a d e r i r a m p o r c o n v i c ç ã o . . . M i n h a cara Adelaide,
v o c ê p r e c i s a c o n h e c e r m e l h o r o ser h u m a n o .

— Tentarei adquirir maior compreensão e vou


ajudá-lo no que puder. E s t á b e m assim?

O médico s o r r i u . F o i a ú l t i m a vez que o vi c o m


esse s o r r i s o q u e r e v e l a v a c o n f i a n ç a .

E , nessa m e s m a n o i t e , t e v e i n í c i o o g r a n d e p e s a d e l o
que iria t o r n a r insuportável a v i d a do dr. Sebastião
dentro do Sanatório S. Pedro, em Campos do Jordão.

56
III

Na saleta de p l a n t ã o do S a n a t ó r i o , a c a m p a i n h a
tocou repetidas vezes, revelando o nervosismo de q u e m
c h a m a v a . O q u a d r o i n d i c a v a q u e no a p a r t a m e n t o n.° 2,
da A l a " B " , a l g u é m pedia auxílio. A enfermeira olhou
o r e l ó g i o . E r a m d u a s h o r a s d a m a n h ã . S o n o l e n t a , le-
vantou-se lentamente para atender ao chamado.
— Se n ã o for suco de l a r a n j a , é um fingimento-
qualquer, t e n h o certeza, — foi r e s m u n g a n d o , e n q u a n t o
c a m i n h a v a pelo l o n g o c o r r e d o r a t a p e t a d o .

A e n f e r m a era Diana.

— Q u e r o que você c h a m e o doutor — ordenou,


mal-humorada, à enfermeira.
— D o n a D i a n a , t a l v e z e u possa a t e n d ê - l a . O m é -
dico do P r o n t o - S o c o r r o f i c a r á a b o r r e c i d o se o c h a m a r m o s
p a r a a l g o q u e n ã o seja r e a l m e n t e i m p o r t a n t e . Além
disso, t e n h o de ir a t é à cidade.

— Não quero o doutor Pedro. M a n d e v i r até a q u i


o d o u t o r Sebastião.

A e n f e r m e i r a , s u r p r e s a , a r r e g a l o u os o l h o s :
— O médico negro?

— S i m , o doutor Sebastião. E n t e n d e u bem?

D i a n a encarou-a, com ar feroz.

U m s o m indistinto d e vozes h a v i a m e acordado.


D i a n a sempre m e c a u s a v a desusado interesse. L e v a n -

57
tei-me e, a despeito do frio que caía sobre o Sanatório,
a b r i a p o r t a de vidro que dava p a r a o terraço. Bem
a g a s a l h a d a , pulei o pequeno m u r o que separava a va-
r a n d a de m e u a p a r t a m e n t o do de Diana. Espreitei pela
vidraça. C h e g a r a a tempo de ouvir a e s t r a n h a solicitação.
Meu coração pulsava rápido. Estaria r e a l m e n t e
passando m a l a pretensiosa Diana? Meus p e n s a m e n t o s
foram interrompidos pela e n t r a d a do doutor Sebastião
no a p a r t a m e n t o da jovem.
Ele ficou encostado na p o r t a que se fechará a t r á s
de si. Seus lábios, um pouco trêmulos, d e m o n s t r a v a m
um nervosismo que sua voz em vão t e n t a v a esconder.
— Às ordens, senhorita — disse, então, respeitosa-
mente.
Suas m ã o s s e g u r a v a m , inquietas, o estetoscópio
p e n d u r a d o de seu pescoço. Os olhos e s t a v a m fixos nos
d e Diana.

— Eu estou r e a l m e n t e me sentindo mal. U m a dor


a g u d a me q u e i m a todo o peito. Talvez pudesse esperar
até a m a n h ã . Preferi, contudo, chamá-lo. Quero falar
com você.

O doutor se aproximou l e n t a m e n t e da cama.


— Precisa falar neste i n s t a n t e ?
— Sim, já, agora, aqui, no m e u a p a r t a m e n t o !
A voz era imperativa. Seu tom, incisivo, parecia
n ã o a d m i t i r réplicas.
— Examine-me primeiro e depois conversaremos.
E, da palavra ao ato, a r r a n c o u com ligeireza as
cobertas de cima do seu corpo. Um "negligé" leve,
t r a n s p a r e n t e , vaporoso, deixava ver quase todas as suas

58
f o r m a s . O s seios e m p i n a d o s , a r f a n t e s , q u a s e à m o s t r a ,
n u m decote a t r e v i d o , e r a m u m a t e n t a ç ã o .
— A d o r é a q u i , r e f l e t e a q u i — disse ela, c o l o c a n d o a
p o n t a do s e u dedo i n d i c a d o r sobre o seio d i r e i t o , ao
m e s m o t e m p o que o l h a v a o médico c o m certo desdém,
c o n s e r v a n d o u m s o r r i s o m a r o t o n o c a n t o dos lábios.
O t r e m e r das m ã o s do dr. S e b a s t i ã o a c e n t u o u - s e
visivelmente. Na sua testa l a r g a o suor afluía, demons-
trando a forte emotividade que o acometera.
— A c h o m e l h o r a senhorita cobrir-se. S e u estado
n ã o d e v e ser b o m . O o r g a n i s m o pode e s t a r p r e d i s p o s t o
a u m a p n e u m o n i a — t a r t a m u d e o u o dr. Sebastião,
c o m o que buscando u m a saída p a r a a situação em que,
d e r e p e n t e se, v i a e n v o l v i d o .
D i a n a fingiu não ouvir a ponderação. Suspirou
demonstrando contrariedade.
O estetoscópio f o i colocado sobre o seio p a l p i t a n t e
d a bela e n f e r m a . S u a m ã o s e g u r o u o p u l s o d o m é d i c o
e o apertou. Os d e n t e s de D i a n a m o r d i s c a r a m seus
p r ó p r i o s lábios, c o m p r i m i n d o - o s c o m o se estivesse
possessa. L e v a n t o u u m a p e r n a e o "negligé" a b r i u - s e ,
exibindo u m a coxa amorenada, roliça, tentadora.
O dr. S e b a s t i ã o r e c o l h e u - s e , r á p i d o , e se a f a s t o u ,
espantado. D i a n a sentou-se na c a m a e apoiada nos
b r a ç o s esticados, f i c o u s e m i - i n c l i n a d a , c o m u m s o r r i s o
c í n i c o a f l o r a n d o aos lábios. O s olhos b r i l h a n t e s f i t a -
v a m - n o i n t e r r o g a t i v a m e n t e . O s seios e s t a v a m quase à
mostra. C o n t i n u o u com a perna encolhida, deixando,
d e p r o p ó s i t o , seu v e n t r e a p a r e c e r .
— Desde que você c h e g o u aqui, t e n h o me m o r t i -
f i c a d o p a r a e n c o n t r a r u m a j u s t i f i c a t i v a p a r a esse ó d i o
que me corrói as e n t r a n h a s . R e l e m b r o , de segundo a

59
segundo, a m i n h a infância. C h e g u e i à c o n c l u s ã o de
que o a m a v a . Há mais de u m a semana v e n h o lutando
c o n t r a o a b s u r d o desse m e u r a c i o c i n i o . Hoje, final-
m e n t e , d e d u z i q u e n ã o é a m o r : é desejo! Sim, Tião,
eu o desejo c a r n a l m e n t e , t a n t o q u a n t o o odeio p o r ser
n e g r o ! E , v o c ê T i ã o , v a i ser m e u , i n t e i r i n h o m e u , h o j e ,
aqui, neste a p a r t a m e n t o , nesta c a m a !
O dr. S e b a s t i ã o r e c u o u a t ô n i t o :
— M e n i n a , você enlouqueceu? O q u e está q u e -
rendo?
D i a n a a u m e n t o u o seu sorriso despudorado, p e r t u r -
b a d o r , e f i n a l m e n t e disse a l t o :
— T i ã o , eu sei q u e a v o c ê é d i f í c i l a c r e d i t a r . M a s
concluí que é u m a experiência à qual me devo submeter.
T a l v e z o ó d i o , o asco q u e s e m p r e d e m o n s t r e i n u t r i r p o r
v o c ê , t e r m i n e m c o m esse a c o n t e c i m e n t o . O u t r o d i a u m a
v a q u i n h a , que se hospeda aqui ao lado, p r o c u r o u definir
a sociedade em q u e v i v o c o m o a q u e e n d e u s a o a m a n t e
como um elemento necessário, de absoluta i m p o r t â n c i a ,
p a r a todas as m u l h e r e s q u e d e s e j a m p e r t e n c e r à elite.
A m a n h ã s e r e i esposa d e a l g u é m . T e r e i , assim, m e u
m a r i d o , e l o g o p r e c i s a r e i do a d o r n o . . . p o r q u e já n ã o
posso a d q u i r i r , a g o r a , o m e u a m a n t e ? Será mais um
a r g u m e n t o p a r a ela, a í d o l a d o , n o s c o m b a t e r , q u a n d o
s o u b e r desse f a t o . E l a l o g o i r i a c o m e n t a r : t a m b é m a s
n o i v a s t r a e m seus n o i v o s e t ê m seus " a m a n t e z i n h o s " .
E n o m e u caso o p r a z e r d a q u e l a c a d e l a seria t o d o
especial, p o r q u e e u t e r i a c o m o a m a n t e u m n e g r o . . .

O dr. Sebastião l e v o u s u a m ã o , n e r v o s a m e n t e , à
garganta. Um calor lhe q u e i m a v a todo por d e n t r o e
um gosto acre assomou à s u a boca. O suor a u m e n t o u
bastante em seu rosto. Sentia-se que l u t a v a c o n t r a o
desejo q u e j á o a t o r m e n t a v a d e l i r a n t e m e n t e .

60
D i a n a , que fizera u m a pequena pausa p a r a ironizar,
com olhar buliçoso, o pobre médico, c o n t i n u o u , c a l m a ,
indiferente, ao estado do facultativo preto:

— N ã o será u m a experiência inédita para m i m . Já


fui possuída por m e u n o i v o . . .

D i a n a levantou-se. quase totalmente n u a :

— Venha, Tião. . .

— N ã o . . . N ã o . . . D i a n a . . . nos v a m o s . . . v a m o s
fazer u m a loucura que talvez n u n c a mais t e n h a con-
s e r t o .. .

D i a n a c o n t i n u o u c o m seu sorriso cínico e a p r o x i -


mou-se vagarosamente do médico negro. Seus braços
l o n g o s e n v o l v e r a m - n o pelo pescoço e se c o l o u ao c o r p o
do j o v e m e apavorado médico.

N u m último esforço ele a empurrou, desvenci-


lhando-se:

— Você é m i n h a i r m ã de criação, D i a n a ! Não


posso! N ã o posso! N ã o seja l o u c a , D i a n a !

— Eu o q u e r o , T i ã o , n e m . q u e seja a ú l t i m a coisa
que faça na v i d a !
H o u v e u m p r i n c í p i o d e l u t a e n t r e o s dois. O mé-
dico, mais assustado ainda, a p e r t o u os pulsos de D i a n a
e, c o m a m ã o direita, deu-lhe ruidosa bofetada.
Chorando, c o n v u l s i v a m e n t e , ela a t i r o u - s e sobre a
cama:

— Porco! Porco! Negro imundo! Saia daqui! V a i


embora, T i ã o , porque eu acabo c o m a sua v i d a ! Eu
o mato, T i ã o !
Os olhos do D r . Sebastião b r u x u l e a r a m . Virou-se

61
e saiu apressado do a p a r t a m e n t o . C o m um lenço as
m à o s e n x u g a v a n e r v o s a m e n t e o pescoço m o l h a d o d e
suor. Seus pensamentos e s t a v a m de tal modo t o r t u r a n d o
sua cabeça que n ã o sentiu que várias portas, à sua
passagem, se f e c h a v a m devagarinho.

Muitas enfermas souberam do encontro daquela


noite.

N o t e r r a ç o m a l m e p o d i a m a n t e r e m pé. U m t r e m o r
e s t r a n h o t o m a r a c o n t a d e t o d o o m e u ser. N ã o p o d i a
c o m p r e e n d e r a q u i l o a q u e a c a b a r a d e assistir. A l g o a l i
estava errado. Lentamente retornei ao m e u aparta-
m e n t o e d u r a n t e m u i t o tempo fiquei c o m os olhos
abertos, recostada e m m i n h a c a m a , buscando u m a res-
posta p a r a a interrogação que m a r t e l a v a m i n h a cabeça.

* * *

Levantei-me b e m tarde e o m e u rosto refletia a


noite m a l dormida. F u i direto ao corredor, onde se
encontrava o grande livro-consulta. N e n h u m a assinatura.
N i n g u é m ainda se a v e n t u r a r a a pedir oficialmente u m a
entrevista ao médico negro. C h e g a r a a acreditar que
D i a n a finalmente resolvera render-se e sua assinatura,
certamente, acabaria com a onda racista que infestava
o S a n a t ó r i o . S u a posição i n t r a n s i g e n t e é q u e d a v a
m a r g e m ao r e c u o geral. N a s suas mãos, todas sabiam,
estava a liderança do repúdio ao médico negro. T u d o ,
em verdade, não passava mesmo de influência. E n g a -
nara-me mais u m a vez. A "greve do K o c k " continuava
a todo vapor no Sanatório S. Pedro.

Voltei para o apartamento. O dia a m a n h e c e r á


c h o v e n d o torrencialmente. N ã o consegui esconder m e u
aborrecimento e preferi evitar qualquer encontro. T o -

62
m a r a café no quarto. A leitura seria a f u g a ideal p a r a
o estado de a l m a em que me e n c o n t r a v a .

M i n h a solidão n ã o m e a c o m p a n h o u m u i t o t e m p o .

A f i g u r a de I n ê s o c u p a v a t o d a a p o r t a de e n t r a d a
do meu apartamento.
V e l h a a m i g a , de certa f o r m a , a recebi c o m alegria.
E foi n e l a q u e e x t r a v a s e i m e u d e s a p o n t a m e n t o pelo q u e
assistira na véspera. C o n t e i - l h e t u d o , c o m todos o s
pormenores que a m i n h a m e m ó r i a permitiu. Precisava
desse d i á l o g o . Q u e r i a saber a s c o n c l u s õ e s q u e I n ê s t e r i a
ante o estranho sucedido pela m a d r u g a d a no Sanatório
S. P e d r o .

— V i r g e m , Adelaide! Já pensou que " b o m b a " vai


ser q u a n d o isso c o r r e r e n t r e a s m e n i n a s ? D i a n a a m a n t e
do médico negro! N ã o é u m a delícia?
— N ã o me interessa a repercussão, Inês. Quero
s a b e r o q u e v o c ê p e n s a do f a t o . N ã o é e s t r a n h o q u e
j u s t a m e n t e ela, q u e m a n i f e s t o u t a n t a a v e r s ã o pelo d r .
Sebastião, v á , agora, tentar t r a n s f o r m á - l o e m a m a n t e ?
— C o m q u e n ã o me c o n f o r m o . A d e l a i d e , é o d o u t o r
ter f u g i d o e n ã o a t e n d e r a o desejo d a m a l u q u i n h a . N ã o
sei, n ã o , m a s s e r á q u e ele v a i t e r o u t r a o p o r t u n i d a d e ?
E I n ê s c a i u em g o s t o s a e l e v i a n a g a r g a l h a d a .
Nosso bate-papo d u r o u até a h o r a do almoço.
S a í m o s j u n t a s . E , n o g r a n d e salão, v i q u e a o c o r r ê n c i a
da m a d r u g a d a já não era segredo. H o u v e r a coincidência:
D i a n a e n t r a r a no refeitório j u n t a m e n t e comigo e Inês.
U m m u r m ú r i o seguiu-se a o olhar coletivo que era
dirigido à ex-miss G u a r u j á .

E l a me fitou demoradamente. Seu olhar asqueroso


parecia que ia me fulminar. D i a n a n u n c a mais falara

63
comigo. Os acontecimentos que m a r c a r a m a c h e g a d a
ao S a n a t ó r i o do doutor Sebastião nos t r a n s f o r m a r a m
definitivamente em inimigas irreconciliáveis.
O caso Diana-Dr. Sebastião estava criado. Só o
f u t u r o iria d e m o n s t r a r o que essa aliança produziria
na vida do Sanatório.
De u m a coisa eu estava certa: daquele dia em
d i a n t e D i a n a seria alvo da m a i s indiscreta d a s espio-
n a g e n s , d a p a r t e d a maioria das moças i n t e r n a d a s n o
Sanatório S. Pedro.
Após o almoço resolvi visitar as indigentes. Havia
a l g u m tempo, t r a v a r a amizade com u m a d a s enfermas
pobres e, aos poucos fui conhecendo s u a história revol-
t a n t e . Desse dia em d i a n t e passei a visitá-la assidua-
m e n t e , p r o c u r a n d o dar-lhe o conforto moral de que
necessitava.
A n a Maria era o seu nome. T i n h a traços belos.
Seus cabelos, bem negros, e r a m compridos, sedosos. Os
olhos, grandes, revelavam a m a r g u r a , decepção. Não
r a r a s vezes, lampejos de ódio m a l conseguiam esconder
a revolta de que seu í n t i m o estava t o m a d o . Inegavel-
m e n t e Ana Maria fora, a n t e s de a tuberculose destruir-lhe
a saúde, u m a jovem a t r a e n t e . G a n h a r a a terrível
moléstia n a prostituição.
Passava h o r a s conversando com Ana Maria. Às
vezes n ã o falávamos. P e r m a n e c í a m o s com o o l h a r per-
dido, a b a t i d a s pelos p e n s a m e n t o s que vez por o u t r a nos
envolviam.
Naquela t a r d e , ali, s e n t a d a na c a m a , ao lado de
A n i n h a , eu, m e n t a l m e n t e , revivia todos os lances de s u a
vida passada, que colimaram na tuberculose e na sua
i n t e r n a ç ã o , como indigente, nos porões do Sanatório
S. Pedro.

64
A n i n h a n u n c a p r e s t a r a atenção aos seios que
possuía, volumosos, rijos, p a r a a sua c i n t u r a delgada,
aos seus q u a d r i s largos. Foi preciso um t e m p o r a l fus-
tigador que a pegou no meio de u m a corrida p a r a a
casa da fazenda. Só assim percebeu que era u m a
m u l h e r já feita, em plena posse dos seus a t r i b u t o s físicos,
que produzia apetites nos homens.

O terreiro em frente à sede da fazenda São Manuel


era largo. Na v a r a n d a , c a l m a m e n t e , "seo" Tôzinho
fumava seu cachimbo, observando a corrida de Ana
Maria.

Chegou com o vestido de chita pregado no corpo.


Pobre, sem n e n h u m recurso, não usava "soutiens". Ao
ver o p a t r ã o , sorriu i n o c e n t e m e n t e :
— P u x a , que c h u v a r a d a , "seo" Tòzinho!

— V e n h a cá, m e n i n a .
Ana Maria aproximou-se, rindo, m a s respeitosa.
— N u n c a t i n h a n o t a d o como você é bonita. E
como já está moça! Quer ir p a r a São Paulo? Posso
lhe conseguir um bom e m p r e g o . .

— Acho que a m a m ã e n ã o deixa, "seo" Tòzinho.


Gostaria, sim.
Fez u m a pausa, fugiu do seu olhar e pediu h u m i l d e :
— O senhor dá licença? Tô m u i t o moiada e t e n h o
medo de me r e s f r i a r . . .
O p a t r ã o acenou a f i r m a t i v a m e n t e com. a cabeça e
foi a c o m p a n h a n d o a m e n i n a com os olhos babosos de
sensualidade.
O destino de Ana Maria já estava t r a ç a d o . Daquele
dia em diante, de modo melífluo, foi conquistando a

65
confiança da jovem. Ardilosamente foi criando, em s u a
cabecinha i n g ê n u a , os desejos miríficos da cidade-grande.
O abstáculo sempre crescente, criado pela m ã e de Ana
Maria, impedia, contudo, que o "seo" Tòzinho concre-
tizasse os sonhos que acalentava em relação à moça.
N u m a sexta-feira o p a t r ã o se despediu dos empre-
gados. Ia r e t o r n a r a São Paulo e todos viram seu carro
de luxo desaparecer na curva da e s t r a d a de t e r r a batida.
Tudo, porém, fazia p a r t e de um plano a s t u t o , conca-
t e n a d o por Tòzinho, em conluio com a própria Ana
Maria: u m a fuga da jovem seria simulada e assim ele
a levaria p a r a São Paulo. Q u a n d o sua m ã e buscasse
o auxílio do p a t r ã o , este prometeria logo localizá-la e,
assim, iria levando a velha senhora, até que ela m e s m a
desistisse da busca p a r a localizar a filha f u j o n a . . .

O plano funcionou sem q u a l q u e r senão e A n i n h a


foi conhecer as atrações da cidade-grande, cheia de
colorido, tão d e c a n t a d a pelo p a t r ã o . Este parecia gostar
da m o ç a . . .

A viagem fora feita no próprio automóvel de Tò-


zinho, que a ficara esperando na Vila que antecede a
cidade de Garça.

A n a Maria foi levada p a r a u m a pequena ilha si-


t u a d a n a represa d e S a n t o Amaro, n a a l t u r a d a cidade
de S a n t o André, bem próxima à Capital do Estado.
A n i n h a c h e g a r a com Tòzinho, ao anoitecer. La-
dridos de cães c o n s t i t u í r a m u m a recepção que apavorou
a i n c a u t a jovem.

P a l a v r a s de carinho, a t e n ç ã o esmerada, sorrisos


reconfortantes, foram suficientes p a r a criar m a i s con-
fiança no espírito i m a t u r o de A n i n h a .

66
Tòzinho a deixou n a q u i l o que ele c h a m a v a "chá-
c a r a " , aos cuidados de u m a e m p r e g a d a de pouca idade,
m a s que se m o s t r a v a atenciosa ao extremo.

— Fique t r a n q ü i l a . Logo voltarei. O emprego


demora um pouco ainda. Você ficará hospedada aqui.
Concorda? — foram as blandiciosas palavras de Tòzinho
ao se despedir da moça.

Os dias foram correndo e Tòzinho aparecia u m a


vez por s e m a n a na ilha. Os cuidados e as atenções
p a r a a ex-empregada foram, despertando um s e n t i m e n t o
de t e r n u r a no coração da m o c i n h a . E m b o r a n ã o saísse
da ilha, t i n h a a liberdade de a n d a r pelo terreno. Os
cães, na p a r t e do dia, ficavam presos, e às seis h o r a s
da t a r d e e r a m soltos. Ana, assustada, trancava-se na
casa, u m a a u t ê n t i c a m a n s ã o , onde n ã o faltavam con-
forto, luxo e boa comida, que lhe era servida pela jovem
empregada.

Algumas vezes Ana Maria recebia ordens da serviçal


p a r a ficar no q u a r t o e lá era t r a n c a d a . E s t r a n h a v a a
d e t e r m i n a ç ã o , q u a n t o mais que nesses dias ouvia g r a n d e
a l g a z a r r a nos salões térreos da m a n s ã o . Não r a r a s
vezes reconhecia a voz do p a t r ã o , principalmente
a sua g a r g a l h a d a escandalosa. T u d o era m u i t o singular
e Ana Maria n ã o compreendia porque n ã o podia assistir,
embora n ã o participando, a essas ruidosas festas q u e
Tòzinho, quase todas as s e m a n a s , organizava na ilha.

Ana M a r i a t e m verdadeiro h o r r o r de l e m b r a r os
acontecimentos d a q u e l a t a r d e que acabou, p a r a ela, nos
porões do Sanatório S. Pedro, de Campos do Jordão.
A e m p r e g a d a esquecera de fechar a p o r t a à chave.

67
Os risos, as g a r g a l h a d a s , os gritos, o vozerio de h o m e n s
e m u l h e r e s a t i n g i a m o q u a r t o de A n a Maria e desper-
t a v a m a sua curiosidade. Abriu l e n t a m e n t e a p o r t a e
percorreu o corredor semi-escuro. Do topo da escada
ela pôde ver as cenas que a s u r p r e e n d e r a m . F o r m a n d o
um semicírculo no amplo salão, várias m e n i n a s e s t a v a m
totalmente nuas. Ao lado de cada u m a , via-se um
h o m e m , a l g u n s j á idosos, n u m a promiscuidade que n u n -
ca a sua origem rústica poderia i m a g i n a r . O "seo" Tò-
zinho estava sentado n u m a poltrona, vestido a p e n a s de
cuecas, rindo d e s b r a g a d a m e n t e . Nas suas m ã o s u m a
seringa de injeção. Só mais t a r d e soube ela que aquilo
era u m a das modalidades de que viciados em tóxicos
se valiam p a r a saciar os seus desejos. O u t r o s aspiravam,
n a s u n h a s ou em pequenos canudos, um pó que lhe
parecia talco. Havia m a i s m u l h e r e s que h o m e n s , quase
n u m a proporção d e três p a r a u m .

Com. o "seu" Tòzinho n ã o havia n e n h u m a m u l h e r .


Algumas pareciam m e n i n a s de quatorze ou no m á x i m o
quinze anos: a sua idade!

N u m canto, u m a radiovitrola trazia p a r a o a m b i e n t e


as melodias mais violentas e e s t r a n h a s , ritmos modernos
que A n a Maria ainda n ã o conhecia. Com o coração
b a t e n d o aceleradamente, olhos esbugalhados, lábios
entreabertos, t e n t a n d o balbuciar algo sem o conseguir,
com as mãos t r ê m u l a s encostadas nos lábios, A n a Maria
contemplava, estarrecida, um dos casais d a n ç a n d o no
meio do círculo, e n q u a n t o os demais b a t i a m frenetica-
m e n t e a s mãos, n u m a c o m p a n h a m e n t o a l u c i n a n t e d a
melodia m o d e r n a que invadia toda a m a n s ã o da ilha.
E r a u m a b a c a n a l grotesca, i m u n d a , e que assustava a
caipirinha de G a r ç a que n e m c h e g a r a a conhecer a
cidade-grande.

68
A l g u n s casais, depois, p a s s a r a m a p r o c u r a r o s q u a r -
tos c u j a s p o r t a s d a v a m p a r a o a m p l o salão. A m a i o r i a ,
c o n t u d o , f i c o u n a p r o m i s c u i d a d e . F o i q u a n d o u m deles
d i v i s o u A n a M a r i a n o t o p o d a escada. Ao grito do
p r i m e i r o s o m o u - s e u m a i n f i n i d a d e d e o u t r o s : todos
apontando para A n i n h a .

Aterrorizada, A n a Maria gritou e correu estabana-


d a m e n t e pelo c o r r e d o r , p r o c u r a n d o a l c a n ç a r o s e u q u a r -
to. T e v e a i n d a t e m p o d e o u v i r a v o z d o " s e o " T ò z i n h o ,
gritando:

— N ã o t o q u e m nessa m e n i n a ! A i n d a n ã o pode
p a r t i c i p a r das b r i n c a d e i r a s ! V o l t e m , c a n a l h a s ! V o l t e m !

S u a v o z d e s a p a r e c e u e m m e i o d a t r o p e l i a d e pés
subindo precipitadamente, como se um bando de loucos
buscasse a l g u m a v í t i m a . E r a a m a i s h o r r e n d a m a t i l h a
d e lobos a t r á s d e u m a p r e s a . O "seo" Tòzinho não
c o n s e g u i u i m p e d i r a a v a l a n c h a de bestas e s f a i m a d a s e
A n i n h a f i c o u e n t r e g u e à s a n h a dos t o x i c ô m a n o s q u e a
atacaram.

E m p o u c o s m i n u t o s o v e s t i d o f o i feito e m f r a n g a l h o s .
S e u s seios d u r o s , e m p i n a d o s , m o r e n o s , s a l t a r a m n u m
c o n v i t e à v o r a c i d a d e dos c o c a i n ô m a n o s , m o r f i n ô m a n o s e
até m a c o n h e i r o s q u e a c e r c a r a m . Dois, três, quatro.
N ã o s o u b e até h o j e q u a n t o s d e l a s e s e r v i r a m . R e c o r -
da-se, a p e n a s , q u e g r i t a v a m u i t o , pedia s o c o r r o , c h a m a v a
p o r s u a m ã e , n u m desespero m ó r b i d o . Foi levada e
a t a d a a u m a m e s a d e p a r t o q u e n ã o soube c o m o a p a -
r e c e u , e lá t o r n o u - s e p a s t o de t o d a a d e g r a d a ç ã o s e x u a l
que se possa i m a g i n a r .

Nisto divisou, na porta do quarto onde era violen-


t a d a , o c o r p o a l t o e r o b u s t o de um p o l i c i a l .
— Polícia, socorro! Socorro! — foi o apelo que

69
m o r r e u na sua g a r g a n t a . Perdeu os sentidos p a r a ape-
n a s recobrá-los, p a l i d a m e n t e , n u m hospital público.
A m e n i n a inexperiente e i n g ê n u a de G a r ç a dera o
primeiro passo p a r a a prostituição.
Na época, o fato foi um escândalo. Bem mais t a r d e ,
A n a Maria veio a saber, com pormenores, o que ocorrera.
Houvera d e n ú n c i a e a polícia a c o m p a n h a d a de comissá-
rios de menores, e n f r e n t a n d o a m a t i l h a de cães ferozes,
invadira a ilha, p r e n d e n d o todos. Descobriu-se, e n t ã o ,
que as b a c a n a i s e r a m a característica daquele logradouro.
O dono, " s e u " Tòzinho — era um a n o r m a l , um t a r a d o ,
i m p o t e n t e , n ã o participava d i r e t a m e n t e do c o n t a t o com
as jovens: comprazia-se, deliciava-se, a p e n a s assistindo
aos atos que os outros p r a t i c a v a m . E r a tão sádico que
n ã o p e r m i t i a a e n t r a d a , na ilha, de h o m e m desacom-
p a n h a d o de m u l h e r . P a r a os que t r a z i a m moças havia
u m a t a x a : com u m a a p e n a s o h o m e m pagava u m preço
alto p a r a ingressar na ilha, cerca de dez mil cruzeiros.
Com d u a s , o preço caía p a r a a m e t a d e e com q u a t r o
só p a g a v a mil cruzeiros. D u r a n t e a b a c a n a l os cães
ficavam soltos p a r a impedir a e n t r a d a de q u a l q u e r
curioso. No a n d a r superior da m a n s ã o havia um q u a r t o
imenso, que pertencia ao "seo" Tòzinho. No assoalho
existiam vários pequenos furos q u e d a v a m p a r a os
q u a r t o s térreos, disfarçados, no teto, em respiradores.
E r a u m a das diversões prediletas do " s e u " Tòzinho:
contemplava pelos buracos as cenas que os casais prati-
cavam nos q u a r t o s .

A prisão, porém, foi efêmera. Todos pertenciam, à


elite. N i n g u é m ficou r e a l m e n t e preso. O escândalo
foi abafado. O processo na polícia está até hoje enga-
vetado, pois " s e u " Tòzinho, em face da imensa fortuna,
t i n h a m u i t a influência, embora a maioria das m e n i n a s

70
detidas na ocasião fossem menores.
E foi assim, e x a t a m e n t e assim, que a I l h a do Sabiá,
em São Paulo, d u r a n t e a l g u m tempo, foi a s s u n t o das
p á g i n a s policiais dos jornais. Mas até à i m p r e n s a o
financeiro poder oculto do " s e u " Tòzinho fez calar.

Voltei a m i m e deparei Ana Maria me fitando com


olhos molhados de l á g r i m a s .

— O que você estava pensando, Adelaide? Chamei-a


várias vezes e n ã o me a t e n d e u !
— Na sua história, A n i n h a . Recapitulei-a t o d i n h a
nestes m i n u t o s em que m i n h a m e n t e fugiu deste Sa-
natório. S u a vida p a s s a d a me c a u s a profunda revolta.
— As c a m a d a s m a i s a b a s t a d a s são assim mesmo,
Adelaide. Corrompem, porque a c r e d i t a m na i m p u n i d a d e .
Não há lei, n ã o há polícia, n ã o há justiça. Nada os
alcança. São os "todo poderosos" que se t o r n a m ina-
tingíveis.
— É verdade sim, m i n h a querida Aninha. As elites
se livram do crime mais abominável porque p a g a m um
preço bem alto pela liberdade, pelo a c o m o d a m e n t o de
seus processos. As elites estão falidas, Aninha. Possuem
nome, prestígio, t u d o o que as t o r n a inalcansáveis pelo
Poder Público, que se inclina a n t e o dinheiro vil com
que c o m p r a m seu sossego, a i n d a que isto custe o deses-
pero d e toda u m a comunidade. Q u a n d o m a t a m a s suas
a m a n t e s , d e n t r o de s u a s próprias mansões, conseguem
" p r o v a r " até que foi "suicídio" e a J u s t i ç a dos h o m e n s
acredita, absolvendo esses assassinos! Se as elites t r a -
b a l h a s s e m pelos seus semelhantes, como t r a b a l h a m p a r a
si próprias, n ã o teríamos a v e r g o n h a das estatísticas, a
a t e s t a r e m que o índice de mortalidade infantil, em
nosso Brasil, é o m a i s elevado do m u n d o . A elite, Ana

71
Maria, é b a r b a r a m e n t e egoísta, cruel. Causa-me pro-
fundo ódio vê-la a t i r a d a nessa cama, vítima inocente,
p u r a , da elite desbragada. Vítima de um h o m e m de
q u a r e n t a anos de idade, que usou do poder de seu di-
nheiro p a r a n ã o p a g a r o crime que cometeu. Do e s t u p r o
você foi p a r a a m á x i m a degradação da c r i a t u r a h u m a n a :
a prostituição. Esta lhe deu a tuberculose, que aos
poucos suga a sua vida. Ele foi tirar você da ilusão,
do brinquedo de roda, da ciranda, do pregador, do jogo
de a m a r e l i n h a , a cabra-cega. Vai ver que a I l h a do
Sabiá c o n t i n u a até hoje palco de cenas t ã o d e g r a d a n t e s
q u a n t o aquela que a vitimou. E a policia n ã o vai
m a i s lá. Já t e m o preço do seu s i l ê n c i o . . .

— Não a d i a n t a bater nessa tecla. Adelaide. Sei


que vou m o r r e r brevemente. Em q u a l q u e r desses fol-
guedos de criança, a que você se refere, ficou a m i n h a
ilusão de menina-moça, m i n h a a l m a de boneca, o m e u
a m o r a Deus, ao próximo. M i n h a m ã e m o r r e u e n e m
sei q u a n d o n e m de que maneira. Foi o próprio Tòzinho
quem me notificou o fato. Não somos a p a l m a t ó r i a
do m u n d o , Adelaide.

Não lhe respondi. Levantei-me, silenciosa. Saí do


S a n a t ó r i o sem sentir e caminhei pela chuva, que caía
torrencialmente. F u i subindo e descendo morros. Passei
pelas pereiras e pessegueiros em flor. Meus pés afun-
d a v a m na relva molhada. Não sentia a chuva, os
trovões, cada vez mais fortes. Não via os relâmpagos
estremecendo o céu sombrio, caliginoso. Vi-me, de re-
pente, no Morro do Elefante. A cruz cinzenta, de braços
abertos, parecia abençoar Capivari, a bela e privilegiada
Vila das elites. Os braços abertos da cruz significaram
a generosidade de Jesus, e Jesus no Madeiro p a r a salvar
o m u n d o . Mas n ã o salvou Aninha, n ã o salvou aquelas

72
crianças que e s t a v a m sendo e s t u p r a d a s , m a s s a c r a d a s ,
por um r e p r e s e n t a n t e d a s elites. E Jesus, mesmo
assim, a i n d a abria seus braços p a r a Capivari, a Vila
m a i s linda de Campos do Jordão. Algo, r e p e n t i n a m e n t e ,
invadiu a m i n h a alma. U m a coisa m o r n a , aos poucos,
foi-se t o r n a n d o q u e n t e d e n t r o de m i m . Mais q u e n t e ,
mais quente, foi fervendo até explodir, e, com. m e u s
p u n h o s cerrados, socava, desvairadamente, a cruz de
Cristo!

— Jesus! Jesus, você está aí pregado! Eu estou


vendo! O s a n g u e corre do seu rosto e de s u a s mãos,
dos seus flancos, de seus pés! Eles crucificaram você,
Jesus! B a t e r a m no seu corpo, m a s s a c r a r a m seus ideais!
F o r a m eles, os donos das elites, Jesus! E, agora, eles
s a n g r a m , m a s s a c r a m , espezinham t a m b é m a s crianças!
Jesus, n ã o olhe p a r a Capivari! Não! Não! Não olhe!
Não olhe p a r a eles, olhe p a r a nós, que somos pobres
e o amamos verdadeiramente!

Meus apelos, em forma de gritos estridentes, e r a m


a c o m p a n h a d o s de repetidos m u r r o s que dava na cruz!
Meus p u n h o s s a n g r a v a m e, na minha- m e n t e , eu con-
tinuava a imaginar, a ver Jesus, ali pregado, como se
estivesse abençoando a linda Capivari!
Sem o saber, a n d a r a quase oito quilômetros. M i n h a s
lágrimas, a dor que s e n t i a nos braços, n a s mãos, foram
me trazendo, l e n t a m e n t e , à realidade. Caí em mim.
Senti, mentalizei a m i n h a heresia. Abracei-me à cruz,
n u m p r a n t o copioso, sincopado de soluços. Grudei-me
à cruz como buscando u m a salvação e fui escorregando,
v a g a r o s a m e n t e , até m i n h a cabeça encostar aos pés do
S a n t o Lenho:
— Perdão, Senhor! Mil vezes perdão! Eu n ã o
sabia o que estava fazendo!

73
IV

As c a m a d a s de n u v e n s i a m desaparecendo do céu
e pedaços de azul, entremeados de fogo, i a m surgindo,
a n u n c i a n d o o fim da borrasca, que d u r a n t e h o r a s desa-
b a r a sobre Campos do Jordão. Parecia que a Suíça
brasileira ia se t o r n a n d o toda a m a r e l a d a . No verde
lavado pela e n x u r r a d a , refletia-se a cor d o u r a d a que se
espraiava por todo o firmamento.
Estava exausta. O vestido molhado g r u d a v a em
m e u corpo. E x t e n u a d a , física e espiritualmente, dei-
tei-me de costas na relva dourada. Não sentia coragem
p a r a fazer o longo c a m i n h o de volta até o Sanatório.
Q u a n d o percorrera os oito quilômetros até o Morro do
Elefante, n ã o os sentira. Estava fora de m i m , com
m e u s raciocínios n u m frenético jogo de acontecimentos
m i s t u r a d o s com o ódio que, de repente de m i m se apos-
s a r a pelas ingratidões desse m u n d o materializado em
que vivemos; a vida que u n s poucos privilegiados gozam,
que somente sobrevivem espezinhando o próximo, sufo-
c a n d o as possibilidades dos menos favorecidos.
Não sei q u a n t o t e m p o fiquei, assim, m e r g u l h a d a
e m seus próprios p e n s a m e n t o s , n u m t u r b i l h ã o casca-
t e a n t e , sem ritmo, sem concatenação. Q u a n d o me le-
vantei n o v a m e n t e , j á t i n h a deliberado n ã o dormir
a q u e l a noite no Sanatório. Iria p a r a a casa de Mercedes,
na Vila J a g u a r i b e .
Nosso encontro foi coberto de p e r g u n t a s , princi-
p a l m e n t e pelo estado em q u e me encontrava. Depois
de um c h á q u e n t e e reconfortante fui me deitar.

74
No dia seguinte saí com G r a c i n h a , filha de Mer-
cedes, de a p e n a s cinco a n o s de idade. F u i ajudá-la a
c a t a r ovinhos de pedregulho: a Prefeitura de Campos
do J o r d ã o c o s t u m a cobrir as r u a s da cidade desses seixos
p a r a substituir o asfalto. Dei um longo passeio com
G r a c i n h a , passando pelo PS-3, onde conversei d e m o r a d a -
m e n t e com o dr. Pedro, responsável pelo Pronto-Socorro.
O t e m a do nosso bate-papo, como n ã o podia deixar de
ser, fora o médico negro.

O dr. Pedro era u m a figura simpática. Alto, moço


ainda, apesar dos poucos cabelos brancos que lhe despon-
t a v a m n a s t ê m p o r a s . T i n h a um sorriso c o n t a g i a n t e e
seu o l h a r infundia confiança. Eu n ã o gostava m u i t o
das espessura exagerada de suas sobrancelhas, que se
c r u z a v a m n a a l t u r a d o nariz.

Ele já sabia da m i n h a presença em Campos do


J o r d ã o e n ã o escondeu a satisfação que teve em. me
conhecer pessoalmente.

E r a sabedor dos problemas que afligiam a Madre,


no Sanatório. M a r c a m o s um encontro p a r a a noite,
onde j u n t o s deliberaríamos sobre a m a n e i r a pela q u a l
devíamos a j u d a r a Madre a resolver o impasse em que
se via envolvida.

G r a c i n h a , apesar de seus cinco a n i n h o s , estivera o


t e m p o todo com os olhos pregados em m i m e no doutor
Pedro. Foi difícil convencê-la de que o médico n ã o
era m e u n a m o r a d o . Fez j u n t o a Mercedes a m e s m a
fofoca, que logo foi i m i t a d a por m i n h a amiga, que
passou a fazer insinuações irônicas.
Respondi com piadas picantes, m a s a zombaria de
Mercedes ficou funcionando em m i n h a m e n t e como
pequenas cutiladas. Q u a n d o p r o c u r a r a o doutor Pedro,

75
n ã o me passara sequer pela cabeça qualquer coisa, a
n ã o ser pedir o seu auxílio em favor do dr. Sebastião.
Achava g r a ç a estar, n a q u e l e i n s t a n t e , a p e n s a r na possi-
bilidade de ocorrer qualquer coisa i n t i m a com o médico
do PS-3.

G r a d u a l m e n t e a noite ia se a n u n c i a n d o . Da cla-
ridade, s o m b r a s a p a r e c i a m e cobriam tudo, magica-
mente. As estrelas b r i l h a v a m e a lua espargia u m a
pálida e esverdeada luz por toda Campos do Jordão.
O complexo dessa beleza, que só Campos do J o r d ã o
possui, eu o ia absorvendo com a m i n h a alma, m e u s
olhos, m i n h a m e n t e . Logo mais, m e u s olhos e s t a v a m
pregados na a g u l h a do velocímetros, sorrindo por poder
sentir aquele vento gelado b a t e n d o em m e u rosto,
fustigando m e u olhos a t é as l á g r i m a s escorrerem. Eu
ia p e n s a n d o n a s brincadeiras ocorridas e n t r e Mercedes,
eu e G r a c i n h a , envolvendo o simpático dr. Pedro.

E o facultativo i n t e r r o m p e u o belo silêncio que nos


embevecia.

— Foi gentil em aceitar o convite p a r a passearmos


à noite. Sinto-me feliz em poder dispor de a l g u m a s
h o r a s p a r a sentir, de perto, a beleza de Campos do
J o r d ã o e a i n d a desfrutar s u a c o m p a n h i a .

— Aonde iremos? — perguntei, lacônica, m a s suave-


mente.

— Ao "Véu da Noiva".

— A essa h o r a ? Não seria i m p r u d ê n c i a ?


— P a r a m i m é o l u g a r m a i s belo desta cidade.
Ver o que é lindo, inesquecível, n u n c a é i m p r u d e n t e .
Adoro a presença da n a t u r e z a . E como Deus foi pró-

76
digo em Campos do J o r d ã o ! Aqui existe um pedaço
d e cada p a í s . . .

Sorri, sem resposta. O carro disparava pela pe-


q u e n a e s t r a d a até a cascata, que era o nosso destino.
Pelo c a m i n h o de cerca cobertas de flores, de árvores
a i n d a úmidas, copadas, p r o j e t a n d o s u a sombra convi-
dativa, apesar do frio que cobria Campos, depois a
Colônia de Férias dos Funcionários Públicos, Refúgio
Alpino. Mais embaixo toda a Vila Inglêsa onde os raios
da lua, sobre os ciprestes molhados refulgiam n u m a
visão fantástica, acolhedora. O luar, os silvos dos grilos,
o coaxar de r ã s e o b o r b u l h a r da cascata, d e m o n s t r a v a m
que o "Véu da Noiva" estava próximo.

— Você teria m e d o de sentar-se, ali, na borda da


cascata?
Ele c a m i n h o u na m i n h a frente e p a r o u bem perto
da queda d'água. Sentamo-nos sobre as pedras e fica-
mos com os pés b a l a n ç a n d o sobre o precipício. As á g u a s
b r a n q u i n h a s , espumosas, p a r e c i a m desprender-se d e u m a
g r a n d e grinalda de p l a n t a s mescladas de um verde cor
de esmeralda e do negro da noite. As árvores, apesar
de esguias, n ã o impediam a lua de cobrir toda a cascata.
Acariciado pelo l u a r e pelo veludo da noite, o "Véu'
corria, b o r b u l h a n t e , impetuoso, p a r a se desfazer, b a r u -
lhento, lá embaixo, de encontro aos g r a n d e s rochedos,
p a r a mais a d i a n t e formar o d i m i n u t o , r o m â n t i c o , quase
insignificante riozinho que e n c o n t r á r a m o s na subida, e
que ia sumir, sabe Deus o n d e . . .

— O que mais t e m me irritado, dr. Pedro, é a


fraqueza da Madre que, a t e n d e n d o à pressão das inter-
n a d a s , aconselhou o doutor Sebastião a solicitar t r a n s -
ferência n o v a m e n t e p a r a São Paulo. E ele, s e g u n d o
me disse, parece que a t é já escreveu o pedido. Isto n ã o

77
deixa de ser u m a d e r r o t a fragorosa a n t e a prepotência
de a l g u m a s poucas jovens p e t u l a n t e s , desabridas, e que
mereciam, n a verdade, u m sério corretivo.
— Não é t a n t o assim, Adelaide. Nem acredito no
fanatismo racial dessas jovens. Até o m o m e n t o , na rea-
lidade, elas n ã o p r e c i s a r a m de sérios cuidados médicos,
desde que o dr. Sebastião chegou. Assim que um caso
m a i s grave aparecer, t e n h o certeza, n ã o p e n s a r ã o n a
cor da pele do médico. Desejarão obter a c u r a ou mi-
n o r a r o sofrimento. T u d o , p a r a m i m , n ã o passa de
irritação m o m e n t â n e a , criada com a decepção de q u e m
esperava um médico bonitão, agradável, a fim de a m e -
n i z a r a s a g r u r a s n a t u r a i s d e u m sanatório d e tuberculosos
e d e p a r a m com u m n e g r o . . .

— Discordo. Acho que n ã o conhece o que é a vida


de cada u m a dessas moças a c o s t u m a d a s à "dolce vita",
m i s t u r a n d o n u m c a d i n h o espúrio, a liberdade cem a
licenciosidade. É u m a elite sexo-maníaca, devotada,
preocupada, absorvida, pelo dinheiro, c o n t a m i n a d a pelo
álcool, jogo, egoísmo, e querendo dar a t u d o isto um
aspecto, u m a a p a r ê n c i a n o r m a l . Os ricos dr. Pedro,
n ã o c o m p r e e n d e r a m a i n d a que Deus, ao dar às c r i a t u r a s
h u m a n a s dois ouvidos e u m a boca, quis, implicitamente,
recomendar-lhes ouvir m a i s do que falar. Os ricos a g e m
ao contrário, falam m u i t o mais do que ouvem. Nós,
menos favorecidos pelo bafejo da fortuna, ouvimos mais,
m u i t o m a i s do que c o m u m e n t e se imagina. Espreita-
mos s e m p r e . . . e . . . g u a r d a m o s e m nosso â m a g o
essas injustiças, essas diferenças aviltantes, esses abusos
covardes dos poderosos sobre os d e s p r o v i d o s . . .

— Mas eles t ê m algo que você parece n ã o possuir,


Adelaide: confiança n u m a filosofia que lhes falta. Eles
cȐem em Deus.

78
— Não basta, doutor Pedro. Li, em c e r t a obra, a
afirmação ae que a "sociedade que encoraja o a m o r
livre e a homossexualidade n ã o p e r m a n e c e r á , por m u i t o
tempo, a m o r a d a dos h o m e n s livres". Quer verdade
mais c h o c a n t e do que essa? A exploração dos m e n o s
a f o r t u n a d o s pelas elites chega a ser u m a abjeção. P a r a
m i m a elite é um facho de luz cercado de escuridão
por todos os lados. A luz n ã o se preocupa com o que
há na escuridão. Ao contrário, explora-a como pode.
Mas q u a n d o alguém, na treva, t e n t a aparecer nesse foco
de luz, sobre as conseqüências de s u a petulância. Não
seria o que está acontecendo com o dr. Sebastião? Se
n ã o é, por que, e n t ã o , essa d e s p u d o r a d a m e n t i r a de
q u e no Brasil n ã o se c u l t u a o racismo? É u m a b u r l a
desprezível, porque o negro sofre todos os horrores,
todas as restrições, da p a r t e das elites. Qual o g r a n d e
clube de elite que aceita o negro? Pode me a p o n t a r
um oficial de M a r i n h a de G u e r r a que seja de cor?
— Concordo, Adelaide, que a sociedade m o d e r n a
está confundindo liberdade com licenciosidade. P a r a
mim, porém, isto é a minoria. E . . .
— Desculpe-me interrompê-lo, dr. Pedro. É a mi-
noria, porque os ricos r e a l m e n t e são a minoria no
m u n d o , ora! As classes m e n o s favorecidas r e p r e s e n t a m
a maioria absoluta, sim. São poucos, dr. Pedro, m u i t o
poucos, os ricos que e n t e n d e m os pobres. A Bíblia já
nos ensinou que n i n g u é m pode servir a dois senhores,
porque ou odiará a um e a m a r á o outro, ou dedicar-se-á
a um e desprezará o outro. Sim, n ã o podemos servir a
Deus e às riquezas. A juventude, hoje, entrega-se às
libações de t o d a a espécie. De quem é a culpa? Dos
pais, sem dúvida, que propiciam aos filhos os exemplos
m a i s torpes de libertinagem. Na sociedade é chique a
m u l h e r casada ter um a m a n t e . A boate Oásis, em São

79
Paulo, recebe, quase toda a s e m a n a , famosa d a m a da
sociedade p a u l i s t a que j a n t a , passa várias h o r a s n a q u e l e
local, assiste aos "shows", tendo como a c o m p a n h a n t e s
o esposo e o a m a n t e . Todos sabem disso e o m a r i d o
também... Ao t e m p o em que existia em São P a u l o
aquele c a b a r e t "O. K.", na avenida I p i r a n g a , essa mes-
ma d a m a se comprazia em ir à q u e l a casa n o t u r n a em
c o m p a n h i a de três ou q u a t r o pederastas passivos, fa-
zendo ela e os anormais, um espetáculo extra no interior
do c a b a r e t . . . E a hipocrisia é de t a l ordem, que toda
a sociedade c u m p r i m e n t a a d a m a , o esposo e o a m a n t e .
A m u l h e r é citada com todo o respeito pelas colunas
sociais dos jornais. Quase sempre ela está liderando
movimentos filantrópicos e a I m p r e n s a cita seu nome,
exibe sua fotografia com o r g u l h o . . .
— Há profunda verdade no que você afirma, m i n h a
c a r a Adelaide, m a s quero lhe dizer que sou contrário
àquele dogma de que a " c r i a t u r a é um a n i m a l a q u e m
foi dado um verniz de civilização". E n t e n d o haver exa-
gero nesse ódio que você n u t r e pelas elites. Acredito
na existência de m a u s progenitores, péssimos patrões,
violências sexuais bem mais a c e n t u a d a s no círculo dos
ricos do que e n t r e os pobres. Mas, mesmo n a s elites,
é a minoria que age assim. Há m u i t o mais compreensão,
m u i t o mais seres identificados com Deus do que aqueles
que, agindo como você afirma, são p r o f u n d a m e n t e
materializados.

— Doutor Pedro, n i n g u é m é forçado a fazer aquilo


que n ã o quer. Veja a política, por exemplo. O h o m e m
público brasileiro n ã o deseja compreender que se foi
eleito deve servir o povo, a sua vida p a r t i c u l a r deixa de
ser, t a m b é m , a s s u n t o exclusivamente seu. T u d o nele
t e m de ser público. E eu, dr. Pedro, t e n h o u m a a m a r g a
experiência com os políticos da m i n h a t e r r a . . . Eles

80
g a s t a m t a n t o t e m p o a f a z e r p r o m e s s a s q u e , depois, l h e s
íalta o tempo para as c u m p r i r e m . . . V o u lhe contar o
que o c o r r e u , na semana passada, no Sanatório, assim
t e r á u m a i d é i a m a i s c l a r a d o d e s p o t i s m o das elites. E u
estava no m e u a p a r t a m e n t o q u a n d o recebi a visita de
unia indigente. Sabe D e u s lá o que fez aquela m e n i n a
p a r a a t i n g i r a ala dos m i l i o n á r i o s do S a n a t ó r i o S. P e d r o ,
pois n ã o i g n o r a v a q u e é e x p r e s s a m e n t e p r o i b i d o , aos
p o b r e s , sair dos p o r õ e s e e n t r a r n a " a l a das p r i v i l e g i a -
das"... L ú c i a é o n o m e desta c r i a t u r a e s e u p e d i d o
h u m i l d e era em favor do pai. Desejava que eu inter-
cedesse, c o m o pudesse, j u n t o aos políticos, p a r a q u e s e u
p a i fosse n o m e a d o f u n c i o n á r i o p ú b l i c o . Ele era moto-
r i s t a d e u m a das e m p r e s a s q u e e x p l o r a m o s e r v i ç o d e
transporte de passageiros, em automóveis, entre São
Paulo e Santos. São os famosos " e x p r e s s i n h o s " . No
meu quarto se encontrava Patricia, u m a sobrinha do
p a t r ã o de L ú c i a , que ficou em silêncio, r i n d o ironica-
m e n t e das q u e i x a s q u e a i n d i g e n t e m e f a z i a . S e n t a d a ,
e n v o l v i d a n u m "peignoir" d e n y l o n a c o l c h o a d o , c o m o s
pés p r o t e g i d o s p o r c h i n e l i n h a s d e p e l i c a f o r r a d a d e l ã ,
ela f o r m a v a u m g r a n d e c o n t r a s t e c o m o l e v e v e s t i d o
de chita da modesta Lúcia.

— Os e m p r e g a d o s , j o v e m L ú c i a — disse P a t r í c i a ,
i n t e r r o m p e n d o suas l a m ú r i a s — são i n s a c i á v e i s . Não
c o m p r e e n d e m q u e , s e m a e x i s t ê n c i a dos p a t r õ e s , n ã o
e x i s t i r i a m os e m p r e g o s . . . Os pobres, m e n i n a , existem,
p o r q u e os ricos r e p a r t e m o m u i t o q u e t ê m . . . É o c é u
de q u e m o g a n h a e a t e r r a , de q u e m a a p a n h a . .. As
leis t r a b a l h i s t a s nos dias de h o j e , no B r a s i l , é q u e c r i a m
esses p r o b l e m a s p a r a o s o p e r á r i o s . Cada vez exigem
m a i s . E se os e m p r e g a d o r e s f o s s e m a t e n d e r a t o d a s as
e x i g ê n c i a s de seus e m p r e g a d o s , i r i a m l o g o à f a l ê n c i a .
É o q u e o c o r r e c o m os m o t o r i s t a s q u e t r a b a l h a m na

81
empresa de titio. Estão sempre se queixando da vida.
N u n c a estão satisfeitos. Um filósofo já disse que a t r á s
da p o r t a do pobre, toda a vileza se esconde e que m u i t o s
miseráveis que pedem, são miseráveis u n i c a m e n t e por
pedirem.
— Seria m u i t o bom se t u d o o que a senhora está
dizendo fosse verdade. Os ricos, d. Patrícia, n ã o re-
p a r t e m o que t ê m com os pobres. Não, mil vezes n ã o .
E o que seria da empresa de seu tio, se n ã o fossem os
motoristas? Respondo p a r a a s e n h o r a que, sem a exis-
tência de operários, n ã o existiriam t a m b é m as fábricas.
P o r t a n t o , um depende do outro. Sozinhos n ã o sobrevi-
vem. Isto é lógico, t ã o evidente, que n ã o deve n e m
prevalecer como a r g u m e n t o . O que a senhora n ã o quer
reconhecer é que os patrões, do tipo do seu tio, r o u b a m
o suor de seu s e m e l h a n t e p a r a enriquecerem. Meu pai,
d. Patrícia, g a n h a o salário m í n i m o da empresa de seu
tio. T r a b a l h a das 7,00 h. da m a n h ã às 21,00 h., sem
direito a extraordinário. Q u a n d o os carros encrecam em
Santos, meu pai dorme na própria g a r a g e m da empresa.
O empregado que m o r a em Santos ao ter o seu veículo
um defeito q u a l q u e r em S. Paulo, t a m b é m é obrigado
a dormir na garagem, na Capital. Não t e m p a u s a p a r a
se a l i m e n t a r e embora t r a b a l h a n d o na h o r a de almoço
e de j a n t a n ã o recebe diária de alimentação. No fim
do a n o o seu tio fornece o envelope de p a g a m e n t o refe-
rente ao 13.° salário como sendo salário total, m a s
contém a p e n a s a metade. Todos são obrigados, contudo,
a assinar recibos de i m p o r t â n c i a s equivalentes ao salário
integral. Foi assim, D. Patrícia, que seu tio se tornou
rico, riquíssimo, escravizando, explorando, r o u b a n d o seus
empregados!

— Se é verdade t u d o o que diz, por que seu pai


e os demais motoristas n ã o p r o c u r a m a J u s t i ç a do

82
T r a b a l h o ? Meu tio, c e r t a m e n t e , seria c h a m a d o à a t e n ç ã o
por esses a b u s o s . . .
Havia u m a ironia ofensiva nessas palavras de Pa-
trícia. Mas Lúcia n ã o se a m e d r o n t o u :
— Porque seu tio, c o n t r a r i a n d o as leis, t a m b é m n ã o
registra seus empregados.
— E por que estes n ã o vão reclamar, e n t ã o , onde
há leis p a r a eles?
— Porque seu tio afirma que t e m dinheiro suficiente
p a r a c o m p r a r a J u s t i ç a , além de a m e a ç a r demitir ime-
diatamente o reclamante. E há mais, d. Patrícia: os
patrões se e n t e n d e m entre si. Todas as p o r t a s d a s demais
empresas de t r a n s p o r t e se fecharão p a r a aquele motorista
que r e c l a m a r na J u s t i ç a do T r a b a l h o . É u m a a u t ê n t i c a
m a ç o n a r i a . E, depois, a J u s t i ç a demora anos p a r a
decidir um processo desse gênero. Do que viverá o
empregado e n q u a n t o espera?

— Ora, então, n ã o é m e u tio quem n ã o presta.


Ele n ã o t e m c u l p a se a Justiça, além de venal, é
morosa...

— N i n g u é m seria culpado, se bastasse negar, e


n i n g u é m seria inocente, se bastasse acusar. Eu sei disto.
M a s t a m b é m sei que se a consciência às vezes fala, o
interesse sempre grita. O p a t r ã o injusto comete dois
crimes: pela ação e pelo exemplo, esquecendo-se de que
o h o m e m n ã o é propriedade do h o m e m .

Q u a n d o cheguei ao Sanatório, passava das dez h o r a s


da noite. O desabafo que tivera j u n t o ao dr. Pedro,
de certa forma me fizera bem e já me sentia com mais
coragem p a r a enfrentar as dissensões que m a r c a v a m a
vida hodierna daquele sanatório de falsas p u r i t a n a s .

83
Meu sossego, contudo, n ã o d u r o u m a i s do que
a l g u n s m i n u t o s . Todo o sanatório estava em polvorosa.
Havia um corre-corre, m u r m ú r i o s . As I r m ã s m a l se
e n t e n d i a m a n t e a situação aflitiva em que e s t a v a m
enredadas.
No corredor de acesso ao m e u a p a r t a m e n t o havia
um tropel incessante de doentes, enfermeiras e I r m ã s .

Nair, u m a jovem filha de fazendeiros de Mogi-Mirim,


estava acometida de hemoptise. Três a t a q u e s seguidos
já se t r a n s f o r m a v a m n u m p r e n ú n c i o de morte. Todas
as enfermeiras, bem como a Madre e as I r m ã s , t e n t a r a m
localizar o dr. Pedro e n i n g u é m soubera informar onde
ele se encontrava. Nair, moça de racismo a r r a i g a d o ,
negava-se a ser assistida pelo dr. Sebastião. D u a s enfer-
m e i r a s no interior do a p a r t a m e n t o da doente aten-
d i a m - n a como era possível, sem obterem êxito.
Dirigi-me, apressada, até o q u a r t o de Nair, e abri
l e n t a m e n t e a porta. Recostada em diversos travesseiros,
com os olhos semicerrados, n u m a a t i t u d e impressionante
de total prostração física, Nair se assemelhava a um
cadáver. Olheiras profundas, u m a tez lívida, acinzen-
t a d a , e o horrível espetáculo do s a n g u e esborrifado por
todos os cantos do a p a r t a m e n t o . Os alvos lençóis de
linho e s t a v a m c o m p l e t a m e n t e tisnados. O m e s m o ocorria
com os aventais brancos das d u a s enfermeiras, que n ã o
escondiam o pavor de que estavam acometidas.
N u m relance compreendi toda a extensão do d r a m a
que envolvia Nair, o Sanatório e seus responsáveis.
N i n g u é m poderia ter encontrado o dr. Pedro. No i n s t a n t e
em que a hemoptise a t a c a v a aquela infeliz, o médico
do PS-3 se e n c o n t r a v a ao m e u lado, na cascata "Véu
da Noiva".
A p r o c u r a do dr. Pedro continuou ininterrupta.

84
Q u a n d o ele chegasse, talvez já fosse t a r d e e por isso
saí às pressas do a p a r t a m e n t o de Nair e me dirigi aos
aposentos do dr. Sebastião. Alguma coisa, efetivamente,
deveria ser feita a n t e s que fosse t a r d e .
— Dr. Sebastião, o senhor n ã o se pode dar assim
por vencido. U m a vida está em perigo. Algo t e m de
ser providenciado, custe o que custar. Um médico n ã o
deve sujeitar-se aos caprichos do d o e n t e . . .
— Jovem, eu fiz t u d o p a r a e n t r a r naquele a p a r t a -
m e n t o . Não logrei êxito n a s m i n h a s tentativas. Não
posso forçar u m a situação que contribuirá p a r a a m o r t e
daquela infeliz. Os nervos dessa m o c i n h a ficam de tal
forma excitados q u a n d o e n t r o no seu q u a r t o , que a
hemoptise volta i m e d i a t a m e n t e . Retirei-me no terceiro
a t a q u e , deixando a l g u m a s instruções com as enfermeiras,
e n q u a n t o se t e n t a localizar o dr. Pedro.
— Será mesmo imprescindível a presença ao lado
de Nair, p a r a os remédios serem ministrados? O senhor
n ã o poderia das instruções aos enfermeiros, no corredor?
E se n ã o localizarem o dr. Pedro, ela vai m o r r e r assim,
sem n e n h u m t r a t a m e n t o , sem n e n h u m a assistência
médica?
A energia e a decisão de m i n h a voz fizeram com
que o dr. Sebastião se levantasse. Não n o t a r a a m i n h a
rudeza. Apenas a c h a r a m i n h a idéia p l e n a m e n t e exe-
qüível e p u x a n d o - m e b r u s c a m e n t e pelo braço, ordenou,
peremptório:
— Vamos, Adelaide. Vamos salvar aquela delin-
q ü e n t e social! Vamos! Apresse-se!
A e n t r a d a do médico negro no corredor foi recebida
com um gelado silêncio que de r e p e n t e envolveu t u d o .
O dr. Sebastião ficou no corredor, ao lado da p o r t a

85
do a p a r t a m e n t o de Nair, e n q u a n t o eu entrava, estaba-
n a d a , n o interior d o q u a r t o , c h a m a n d o a p r e s s a d a m e n t e
u m a das enfermeiras.
No i n s t a n t e em que a assistente saia p a r a conversar
com o dr. Sebastião, procurei a c a l m a r Nair:
— Fique t r a n q ü i l a . O dr. Pedro já vem correndo
a t é aqui. Ele deu instruções à Madre p a r a que fossem
t r a n s m i t i d a s às enfermeiras. Fique imóvel, sossegada,
que t u d o vai d a r certo.
M i n h a m e n t i r a c a u s a r a a l g u m efeito. Os olhos de
Nair a p r e s e n t a r a m u m brilho d e esperança, e n q u a n t o
as lágrimas escorriam pelas faces. De fato, a esperança
é o sonho dos que estão acordados, o único bem c o m u m
a todas as c r i a t u r a s h u m a n a s . N u n c a Deus fecha u n i a
p o r t a sem abrir o u t r a .
Pouco depois a enfermeira e n t r a v a apressada no
a p a r t a m e n t o . U m a injeção de coaguleno, de imediato,
foi aplicada. Com o auxílio da o u t r a enfermeira, os
braços de Nair foram colocados em posição vertical e
sobre seu peito p u s e r a m u m a bolsa com g r a n d e q u a n t i -
dade de gelo. Alguns pedaços, b e m pequenos, foram
postos em sua boca e, a pedido da enfermeira, Nair foi
deglutindo a á g u a solidificada. A operação repetiu-se
d u r a n t e meia hora, até a enferma cair em profundo
sono. O médico negro e n t r o u , e n t ã o , no q u a r t o de Nair:

— D a q u i a u m a h o r a tirem o gelo de cima do peito.


F i q u e m a noite toda ao seu lado, m a n t e n d o - a sempre
nessa posição. A hemoptise foi detida. Esta moça
salvou-se.

Olhou depois, d e m o r a d a m e n t e , p a r a mim, e quase


n u m m u r m ú r i o m e disse:
— Obrigado, Adelaide. Essa moça deve-lhe a vida.

86
V i r o u - s e , i n o p i n a d a m e n t e , f e c h o u a p o r t a a t r á s de si
e c a m i n h o u pelo c o r r e d o r , f i t a d o p o r m a i s d e u m d e z e n a
de moças que a g u a r d a v a m os resultados da intervenção
do m é d i c o e p r o c u r a v a m ler em suas feições se os
r e m e d i o s p o r ele m i n i s t r a d o s s u r t i a m e f e i t o .
O médico negro, ao entrar no a p a r t a m e n t o de Nair,
p i s a r a , sem. p e r c e b e r , n u m a p o ç a d e s a n g u e . E l e p a s s o u
f i r m e , d i s t a n t e , e n t r e a s e n f e r m a s das elites. N o t a p e t e
c l a r o f o i f i c a n d o a m a r c a r u b r a d e seus sapatos. N ã o
h o u v e u m m u r m ú r i o , a n t e s o u depois d e s u a p a s s a g e m .
N o f i m d o c o r r e d o r , ele s e v o l t o u . P a r o u d u r a n t e a l g u m
t e m p o . O l h o u u m a p o r u m a e , depois, l e v a n t a n d o l e n t a -
mente um braço, ordenou categórico, violento, fora de si:

— A ópera terminou, jovens! V o l t e m p a r a seus


quartos! Vamos, voltem, já! J á ! É u m a ordem! Voltem!
N ã o h o u v e réplica. O silêncio foi total. A o s poucos
cada u m a ia abrindo a p o r t a de seu a p a r t a m e n t o e
desaparecendo. Elas s e n t i r a m , naquele instante, que o
médico negro as derrotara.
O dr. S e b a s t i ã o f i c o u , n ã o sei q u a n t o t e m p o , de pé,
no f i m do corredor. O l h a v a o c a m i n h o totalmente vazio,
c o m aqueles r a s t r o s d e s a n g u e m a r c a n d o o tapete.
V o l t o u - s e e l e n t a m e n t e se d i r i g i u aos seus a p o s e n t o s .
A b r i u a p o r t a , f e c h a n d o - a l o g o em s e g u i d a e a t i r o u - s e à
c a m a . vestido. De bruços, apertando a cabeça no t r a -
v e s s e i r o , c h o r o u , d e m o d o c o n v u l s i v o , aos a r r a n c o s .
O médico n e g r o parecia que estivera participando
de u m a batalha, cuja vitória se lhe assemelhava a u m a
derrota í n t i m a , a qual acabou de prostrá-lo, p r o f u n d a -
m e n t e abalado. C h e g a r a à conclusão de que q u e m pa-
d e c e u , v e n c e u , e q u e a c o r a g e m é a f o r ç a de r e s i s t i r e
de sofrer, e que os olhos que não c h o r a m , n ã o sabem
v e r a beleza e f e a l d a d e do m u n d o .

87
V

— Adelaide, creio que já solucionei m e u problema.


U m p o l í t i c o , q u e está p a s s a n d o u m a s f é r i a s a q u i e m
C a m p o s do J o r d ã o , fez u m a c a r t a de apresentação a
u m a pessoa q u e está p a s s a n d o u n s dias n a G u a n a b a r a .
V o u até a o R i o e , s e t u d o d e r c e r t o , s a i r e i p a r a s e m p r e
de São Paulo. Pedirei, inclusive, demissão do cargo que
exerço na Secretaria da Saúde.

C o n v e r s á v a m o s nos jardins internos do Sanatório.


E r a u m a tarde ensolarada de domingo. H a v i a , porém,
u m a r z i n h o f r i o q u e o sol n ã o c o n s e g u i a e s q u e n t a r .

O l h e i o D r . Sebastião a d m i r a d a e ao m e s m o t e m p o
decepcionada:

— N ã o a c r e d i t o nessas i n t e r f e r ê n c i a s p o l í t i c a s , D r .
Sebastião. P e r m i t a - m e , mais u m a v e z , discordar d a sua
decisão, m a s o s e n h o r n ã o pode e n ã o se d e v e d a r p o r
v e n c i d o . M a i s v a l e e s p e r a n ç a b o a , q u e r u i m posse. N ó s
d e v e m o s l u t a r pelo q u e é c e r t o q u a n d o l o b r i g a m o s possi-
bilidades d e v e n c e r s e m c r e s c i m e n t o das dissensões.
Desistir agora é u m a estultícia. Q u a n d o se convencer
que e r r o u em não se defender na h o r a mais fácil, vai
v e r i f i c a r q u e a s d i f i c u l d a d e s c o n t r a seus anseios d o b r a -
r a m a tal ponto que só há u m a m í n i m a parcela p a r a
se a l c a n ç a r a v i t ó r i a .

— M a s a pessoa c o m q u e m v o u f a l a r n a G u a n a b a r a
é a e x - P r i m e i r a D a m a do E s t a d o de P e r n a m b u c o . É
criatura realmente influente. T e n h o que aproveitar o
m o m e n t o p o r q u e ela se e n c o n t r a no R i o a passeio e

88
logo r e t o r n a r á p a r a o n o r t e . S e r á m a i s d i f í c i l p a r a m i m
v i a j a r até o R e c i f e . P o r q u e h a v e r i a de c o n t i n u a r a
p i s a r e m e s p i n h o s , s e h á a possibilidade d e t r a n s f o r -
m á - l o s e m pétalas? N ã o , A d e l a i d e , n ã o s o u p a l m a t ó r i a
do m u n d o . T o d o o tempo que t e n h o disponível dedico-o
aos estudos. A m e d i c i n a é um p r o g r e s s o i n c e s s a n t e .
V o c ê ficou a d m i r a d a por saber que me utilizo de gelo
para estancar u m a hemoptise. É o método moderno.
E acredito, não aprendi nos bancos da Faculdade. N ã o
posso d e s p e r d i ç a r m e u t e m p o c o m essas t o l i n h a s e seus
preconceitos radicalizados. Os líderes negros do Brasil
— se é q u e eles e x i s t e m — q u e t r a t e m de f a z ê - l o . P o r
m i m , confesso-me derrotado. Essas jovens milionárias
me v e n c e r a m m e s m o . O que o c o r r e u a s e m a n a passada,
c o m aquela moça, Nair, foi a gota d á g u a que e n t o r n o u
o m e u copo c h e i o de e s p e r a n ç a s .
— Pois b e m , D r . Sebastião. O senhor v a i falar c o m
a ex-Primeira D a m a do Estado de Pernambuco. V a i
perder o seu tempo. C o n h e ç o aquela senhora e m u i t a
coisa a s e u respeito. N a d a l h e d i r e i , p o r h o r a . D ê - m e
o p r a z o necessário p a r a pedir a v i n d a , aqui, a C a m p o s
d o J o r d ã o , d e u m a m i g o q u e f o i a m a n t e dessa s e n h o r a ,
p o r i m p o s i ç ã o dela m e s m a . T e l e f o n a r e i , a i n d a h o j e , <
1
só depois de o u v i - l o , o s e n h o r t o m a r á a decisão fina ..
Combinados?
O D r . Sebastião suspirou, olhou-me longamente,
s o r r i u e depois d e d a r u m t a p i n h a e m m e u o m b r o ,
murmurou:
— Combinados.

Aurélio era um velho a m i g o que n u n c a deixou do


a t e n d e r aos m e u s apelos. Q u a t r o dias após o m e u tele-
f o n e m a , ele c h e g a v a s o r r i d e n t e , a l e g r e c o m o s e m p r e , a o
Sanatório São Pedro.

89
S e m p r o t o c o l o s e x a g e r a d o s , f o r a m feitas a s a p r e s e n -
tações e nosso l o n g o b a t e - p a p o f o i l e v a d o e m m e u p r ó -
p r i o a p a r t a m e n t o , n o p e r i o d o d a n o i t e , q u a n d o o silencio
d o m i n a v a as dependências do Sanatório.

— M e u primeiro contato com a então Primeira


D a m a d e P e r n a m b u c o — f a l o u A u r é l i o — n ã o f o i dos
m a i s felizes. E r a m u l h e r difícil. Seu nome infundia
respeito e t a m b é m medo. Ligada à velha oligarquia
que, h a v i a anos, d o m i n a v a a politica p e r n a m b u c a n a e
ate m e s m o b r a s i l e i r a , t i n h a p r e s t í g i o s u f i c i e n t e p a r a
t o m a r posições, a i n d a q u e estas f o s s e m a s m a i s d u v i -
dosas. S e u esposo v i v e u a v i d a i n t e i r a , e m t o d o o n o r -
deste, v a l e n d o - s e d o p r e s t í g i o d a p r ó p r i a esposa e t a l v e z
isso, o u s o m e n t e isso, l h e t e r i a p e r m i t i d o g a l g a r a posição
de governador do Estado. C a u s a - m e , na verdade, até
n á u s e a s f a l a r t a n t o dessa m u l h e r c o m o d e s e u esposo
q u e até h o j e f a z e m o s j o g o s políticos m a i s s ó r d i d o s . S e u
p a r t i d o , aliás, é o de e s p i n h a m a i s f l e x í v e l de t o d a s as
greis políticas do Brasil. F a z qualquer negócio, por mais
e s p ú r i o q u e seja, desde q u e r e p r e s e n t e isto posição e a t é
s o b r e v i v ê n c i a . O P a r t i d o n e g o c i a a cabeça de c o m p a -
n h e i r o s c o m o q u e m escolhe g a d o n u m c u r r a l . . .

— S e r i a essa espécie de g e n t e q u e i r i a l i g a r - m e se
aceitasse a a p r e s e n t a ç ã o de m e u a m i g o à e x - P r i m e i r a
D a m a do Estado de Pernambuco? — p e r g u n t o u , meio
assombrado, o D r . Sebastião.

— Indubitavelmente, m e u caro doutor. A Adelaide


c o n h e c e p a r t i c u l a r i d a d e s dessa s e n h o r a p o r q u e e u l h a s
c o n t e i . E n ã o g u a r d o s e g r e d o m e s m o . A c h o q u e o des-
p u d o r dessa c a m b a d a é d e t a l o r d e m , q u e d e v e c o n t a r
t o d a s as s u a s s u j e i r a s a t o d o o m u n d o . Só a s s i m o p o v o
ficará sabendo e em tempo h a v e r á de repudiá-los,
q u a n d o p l e i t e a r e m n o v a m e n t e posições d o m a n d o . R e s -

90
ta-lhes sempre, c o n t u d o , o prestígio dinheiro, que no
B r a s i l c o n t i n u a s e n d o a h o n r a , a p a l a v r a , a decisão dos
n e g o c i s t a s e políticos, n u m a c o r r u p ç ã o m o r a l q u e c h e g a
a c a u s a r asco. A p r o v e i t a n d o a f r a s e de um l i t e r a t o
f r a n c ê s , p o d e m o s d i z e r q u e " p o r d i n h e i r o eles são c a -
p a z e s d e t u d o , até m e s m o d e c o m e t e r u m a boa a ç ã o . . . "
Na época em que a conheci, eu estava ligado ao g o v e r n o
Juscelino, através de um general do Exército de quem
e u e r a u m a espécie d e s e c r e t á r i o p a r t i c u l a r .
— Q u e m e r a o general? — quis saber, curiosa.
— N ã o v e m a o caso n o m e s , A d e l a i d e . M a s m u i t a
d e v a s s i d ã o a p r e n d i c o m esse g e n e r a l . H a v i a n o i t e s , e m
Brasília, que eu ia buscar candidatas a emprego p a r a
p a s s a r a n o i t e c o m esse m i l i t a r . B a c a n a i s v e r g o n h o s o s
t i n h a m lugar nos apartamentos da Capital Federal. A
maneira como o general era correspondido no amor que
p l e i t e a v a dessa o u d a q u e l a j o v e m c a n d i d a t a a o s e r v i ç o
p ú b l i c o , s i g n i f i c a r i a a a d m i s s ã o ou o d i s f a r c e da p a r t e
dele d u r a n t e meses a fio, até q u e a m o ç a , d e s i l u d i d a ,
acabasse d e s i s t i n d o . S ã o i n c o n t á v e i s as r e u n i õ e s desse
t i p o q u e l e v á v a m o s a efeito n o s a p a r t a m e n t o s d a S u p e r -
Q u a d r a 208, d e B r a s í l i a . Muitos ministros de Estado
q u e a í e s t ã o , g r i t a n d o pela m o r a l i z a ç ã o a d m i n i s t r a t i v a ,
pelo b o n s c o s t u m e s n o s e r v i ç o p ú b l i c o , r e v e l a r a m - s e
e x í m i o s p a r t i c i p a n t e s desses b a c a n a i s , o n d e n ã o f a l t o u
sequer o c o n d i m e n t o mais necessário: barbitúricos e tó-
x i c o s de t o d a a n a t u r e z a . Às v e z e s esses e n c o n t r o s
o c o r r i a m nos apartamentos do Brasília Palace Hotel, que
n o p r i n c í p i o e r a o h o t e l " k a r " , d a C a p i t a l F e d e r a l . Nesse
caso o g o v e r n o e r a q u e m p a g a v a a s f a r r a s , a s o r g i a s
s e x u a i s d e seus m i n i s t r o s . . .
— M a s q u e n o j e i r a , sr. A u r é l i o ! — i n t e r r o m p e u o
D r . Sebastião, d e m o n s t r a n d o m a l acreditar no que ouvia.
— Era muito pequeno em posição, doutor, para

91
saber t o d a a p o d r i d ã o s e x u a l q u e c o r r i a pelos b a s t i d o r e s
do g o v e r n o f e d e r a l , e às c u s t a s dos c o f r e s p ú b l i c o s . M a s
o p o u c o q u e sei d á p a r a e s c a n d a l i z a r o pais i n t e i r o . K a
n o R i o , i n c l u s i v e , u m local q u e o s " g r a n d e s " c o n h e c e m
pela denominação de " a p a r t a m e n t o presidencial". F i c a
n u m dos m a i s f a m o s o s h o t é i s d o B r a s i l . T u d o o que
ali é g a s t o , é p a g o pelo I n s t i t u t o B r a s i l e i r o do C a f é .
E r a u m . dos p o u c o s l u g a r e s a o n d e o p r ó p r i o P r e s i d e n t e
d a R e p ú b l i c a c o m p a r e c i a . A l i á s , diga-se d e p a s s a g e m ,
q u e o p r e s i d e n t e t i n h a u m f a m o s o p i a n i s t a das noites
cariocas, c u j a ú n i c a f u n ç ã o j u n t o ao Chefe da Nação,
e r a o d e c o n s e g u i r d e t e r m i n a d o s tipos d e m u l h e r e s . À s
v e z e s esse p i a n i s t a cedia a p r ó p r i a r e s i d ê n c i a p a r a o
Presidente ter encontros amorosos c o m as pequenas que
l h e e r a m c o n s e g u i d a s p o r esta espécie d e " s e c r e t á r i o
s e x u a l " do Presidente da República. O "apartamento
p r e s i d e n c i a l " é f a m o s o n a s h o s t e s p o l í t i c a s . Nesse l o c a l ,
em meio a um ambiente carregado de sexo, t r a m a v a m - s e
as mais grossas safadezas. As m u l h e r e s , ali, f u n c i o n a -
v a m a s s i m c o m o u m a espécie d e a u x í l i o p a r a a o b t e n ç ã o
de favores j u n t o ao B a n c o do Brasil e cargos altamente
remunerados no Exterior. E r a m a u t ê n t i c a s espiãs, a
s e r v i ç o de d e s í g n i o s t o r p e s e interesses i n c o n f e s s á v e i s .
D i f i c i l m e n t e u m h o m e m n e g a a l g u m a coisa à m u l h e r
q u a n d o e s t á c o m esta n a c a m a , r e c e b e n d o s u a s c a r í c i a s . .
C o n h e ç o m u i t a g e n t e boa q u e a n d a p o r aí, a r r o t a n d o
a u t o r i d a d e , m a s q u e c o n s e g u i u c h e g a r a essa p o s i ç ã o
f a z e n d o c o m q u e a p r ó p r i a esposa f r e q ü e n t a s s e o " a p a r -
t a m e n t o p r e s i d e n c i a l " e pleiteasse esse o u a q u e l e f a v o r
visando benefício p e s s o a l . . . E a e x - P r i m e i r a D a m a de
P e r n a m b u c o f o i , n a s p o u c a s v e z e s q u e esteve n o R i o ,
u m a grande freqüentadora do "apartamento presiden-
c i a l " . H i s t é r i c a a o e x t r e m o , s ó a t e n d i a aos pedidos
depois d e s a t i s f e i t a n o s e x o . P a r a isso b a s t a v a o h o m e m
lhe a g r a d a r . . . F o i o que ocorreu comigo. M i n h a missão

92
j u n t o à então P r i m e i r a D a m a de P e r n a m b u c o , era a de
e n t r e g a r - l h e , p e s s o a l m e n t e , u m a c o r r e s p o n d ê n c i a d o ge-
n e r a l de q u e m eu era secretário particular. N ã o poderia
h a v e r t e s t e m u n h a s n a e n t r e g a dessa m i s s i v a . F u i r e c e -
bido e m s u a s a l a , n o P a l á c i o das P r i n c e s a s , u m a s t r ê s
v e z e s , e a p r e s e n ç a de e s t r a n h o s me i m p e d i a de f a z e r - l h e
a entrega. E l a já me esperava como enviado do general.
Não e n t e n d i a , e n t ã o , p o r q u e m e f a z i a e n t r a r e m s e u
gabinete de t r a b a l h o sabendo da reserva que o assunto
e x i g i a . Q u a n d o , f i n a l m e n t e , f i c a m o s a sós na s a l a , o
c a r i n h o com que me t r a t o u , causou-me certo espanto.

L e u a c a r t a n a m i n h a f r e n t e . À s vezes i n t e r r o m p i a
a leitura e me o l h a v a d e m o r a d a m e n t e , sorrindo de m a -
neira significativa.
Sentado à sua frente, j u n t o da mesa de trabalho,
h a v i a entre nós u m silêncio desconcertante. E u estalava
os dedos n e r v o s a m e n t e e p r o c u r a v a p e r d e r o o l h a r pela
j a n e l a a f o r a . ..
T e r m i n a d a a l e i t u r a d a c a r t a , ela a g u a r d o u n o
p r ó p r i o seio e m e o l h a n d o f i x a m e n t e , c r u z o u o s b r a ç o s
sobre a m e s a . Q u e b r o u o s i l ê n c i o q u e d o m i n a v a t o d a
a ampla sala:

— Pois b e m A u r é l i o . O caso me i n t e r e s s a s i m .
T u , n a t u r a l m e n t e , sabes o c o n t e ú d o dessa c o r r e s p o n -
d ê n c i a , pois n ã o ?
F i z um aceno a f i r m a t i v o c o m a cabeça, sem,
contudo, articular u m a só palavra.

— ó t i m o , isto r e v e l a q u e o g e n e r a l t e m p l e n a c o n -
fiança em ti, m e u caro A u r é l i o . P o r é m não te darei
n e n h u m a resposta a g o r a . E s p e r o v e r - t e e m d e t e r m i n a d o
local h o j e à noite, q u a n d o c o n v e r s a r e m o s m e l h o r . O n d e
0
t u estás h o s p e d a d o

93
— Hotel Boa Viagem, m a d a m e — respondi lacóni-
camente.
— Meu chofer irá buscar-te à noite. Não saias de
teu a p a r t a m e n t o a t é chegar m e u enviado. Está certo,,
simpático?
Procurei sorrir, agradecendo a intimidade do t e r m o .
Na verdade eu estava apavorado, n ã o só pelo que via
de insinuação nos olhos da Primeira D a m a , como prin-
cipalmente, pelo conteúdo daquela missiva que envolvia
um negócio por demais espúrio. Sabia, pela experiência,
que se o escândalo contido n a q u e l a c a r t a estourasse, o
atingido seria eu, o lado mais fraco. Estava sendo o
intermediário d e u m a t r a n s a ç ã o que, e m principio, m e
enojava e por fim me atirava na senda do crime!
Assim, ao me despedir daquela senhora, m e u co-
ração estava a m a r g u r a d o e a preocupação d o m i n a v a
todos os m e u s p e n s a m e n t o s . Cheguei a ter ímpetos de
deixar Recife às pressas e n u n c a mais pisar no Palácio
das Princesas. Arrependo-me até hoje, de n ã o o ter
feito n a q u e l a t a r d e . . .
Somente cheguei ao hotel às nove h o r a s e, lá. já
estava u m a limousine p r e t a do governo do Estado à
m i n h a espera.
Fiquei com raiva. E r a u m a perseguição a que n ã o
me resignava. Fi-lo esperar quase u m a hora. Aleguei
que ia t o m a r b a n h o e depois j a n t a r . O m o t o r i s t a n ã o
se m o s t r o u aborrecido. Respondeu-me simplesmente q u e
n ã o t i n h a m u i t a pressa, pois só às dez da noite é q u e
eu seria levado à presença da Primeira D a m a . O c a r r o
estava ali a p e n a s à m i n h a disposição, inclusive p a r a me
levar aos r e s t a u r a n t e que escolhesse.
E r a precisamente dez h o r a s q u a n d o entrei, m a c a m -
búzio, no automóvel negro da Primeira D a m a do Estado.

94
Na m i n h a cabeça um torvelinho de p e n s a m e n t o s fervi-
lhava. Não notei m u i t o o percurso seguido pelo carro.
Verifiquei, apenas, que c a m i n h á v a m o s quase sempre
paralelo às p r a i a s e nosso destino parecia ser mesmo
Boa Viagem., onde p a r a m o s na a l t u r a de i m p o n e n t e
prédio de a p a r t a m e n t o s .
Na e n t r a d a do edifício um porteiro recebeu-me
amistoso, o que me causou certa estranheza. Acompa-
n h o u - m e a t é o a p a r t a m e n t o , onde, logo após e n t r a r ,
senti que t r a n c a v a m a p o r t a por fora. O fato n ã o me
causou surpresa. Esperava isto. Mas a c o n s u m a ç ã o da
medida me irritou mais ainda, pois era inegável que eu
estava p r a t i c a m e n t e prisioneiro n o a p a r t a m e n t o d a
P r i m e i r a D a m a do Estado de P e r n a m b u c o !
A luxuosa residência estava vazia. Também não
me surpreendi. Faria, com toda certeza, p a r t e dos planos
traçados pela i m p u d i c a senhora.

Na a m p l a sala-living vi, sobre a mesa, g a r r a f a s de


uísque, c a ç a m b a a t o p e t a d a de gelo, u m a s garrafas de
soda e g u a r a n á .
N u n c a a bebida viera tão a propósito. Estava com
a g a r g a n t a seca, devido ao nervosismo que se apossara
de m i m .

Preparei u m a dose dupla, um pouco de soda e,


após colocar três p e d r a s g r a n d e s de gelo, fui conhecer
as dependências da luxuosa m o r a d i a da Primeira D a m a
de P e r n a m b u c o .

Deslumbrei-me com o bom gosto. Além da sala-


living, o s t e n t a n d o custosas t a p e ç a r i a s e belos quadros,
lustres r i c a m e n t e adornados, móveis funcionais e finos,
o a p a r t a m e n t o t i n h a u m a sala de j a n t a r de dimensões
regulares, mobiliado a gosto, u m a s a l i n h a de m ú s i c a

95
onde havia até u m a pequena h a r p a . T r ê s maravilhosos
e estonteantes q u a r t o s de dormir. Um deles — o prin-
cipal e maior — possuia móveis antiquissimos e a
c a m a de casal, ao centro, lembrava aqueles móveis
franceses da Idade Média, com aquela cobertura de
m a d e i r a e as r e n d a s em forma de cortina, protegendo
a pessoa dos insetos. Havia um discreto e fino perfume
p a i r a n d o na alcova que m e u curioso olhar devassava.
Ao abrir u m a p o r t a que dava p a r a o interior desse
dormitório, deparei com o banheiro privativo, todo for-
m a d o de azulejos cor de rosa. A banheira, em forma
de piscina, era um convite ao b a n h o . T a m b é m todo o
a m b i e n t e estava perfumado.
Voltei ao g r a n d e salão e abri as imensas janelas
q u e d a v a m p a r a u m a das mais belas e selvagens praia
do Brasil: Boa Viagem, com sua areia branca-averme-
l h a d a e leve como talco. A noite estava com u m a l u a
maravilhosa e seus raios t o r n a v a m mais alva a areia
m a c i a daquele aprazível recanto.
Não recordava, bem, o n ú m e r o do a n d a r em que
me encontrava, m a s , dali, via perfeitamente os pares
amorosos passeando pela praia e a i n d a a l g u n s casais
afoitos sentados na areia, quase j u n t o da água. Senti
inveja e vontade de descer p a r a a n d a r descalço n a q u e l a
areia suave, aveludada, convidativa. Fugi com m e u
o l h a r da praia e avancei pelo m a r onde o m a r colidia,
violento na longa paredes de recifes e quebrando toda
a força das á g u a s impedia que a ressaca atingisse a
avenida asfaltada. Olhei pelo m a t o que permanece entre
a praia e o asfalto, como n u m desafio p e r m a n e n t e a
desídia dos governos municipais. Acho que todos os
prefeitos do Brasil deveriam visitar as praias de Santos
p a r a que observassem como o h o m e m pode a p r i m o r a r
a beleza n a t u r a l das p r a i a s construindo os m a i s belos

96
jardins, completando, como n u m retoque ousado, a
m o l d u r a que têm o privilégio de t e r e m o m a r como
atração turística.
Não havia jantado. Fiquei pensando no " M a x i m ' s " ,
o restaurante existente na praia de B o a V i a g e m , e onde
se c o m e a m e l h o r e m a i s g o s t o s a l a g o s t a do m u n d o .
Voltei-me para u m a poltrona. Sentia u m a terrível
s e n s a ç ã o d e solidão, q u e m e i r r i t a v a a c a d a m i n u t o .
V o l t a e meia olhava, c o m r a i v a , o imenso relógio de
pé, que embelezava u m c a n t o d a g r a n d e sala. Seu
i m p e r t u r b á v e l t i q u e - t a q u e e n t r a v a pelos m e u s o u v i d o s e
f u n c i o n a v a como verdadeiro m a r t e l o . J á p a s s a v a m das
11,30 da n o i t e e me s e n t i a p e r d i d o n a q u e l e e n o r m e
apartamento.
F i q u e i pensando naquele fausto em que me e n c o n -
t r a v a e m e r e c o r d a v a das c o n d i ç õ e s d e m i s é r i a t o t a l
e m q u e v i v i a m o s c o l o n o s d a P r i m e i r a D a m a n o s seus
canaviais. E r a através do suor daqueles infelizes, da
e x p l o r a ç ã o v i l d e seu t r a b a l h o q u e a P r i m e i r a D a m a
c o n q u i s t a r a prestígio político e financeiro. O s u o r dos
camponeses pernambucanos t a m b é m serviam para m o -
b i l i a r belas e r i q u í s s i m a s " g a r ç o n i è r e s " c o m o a q u e l a e m
que me encontrava.
P r o c u r e i u m a rádio-vitrola, que logo encontrei.
V a s c u l h e i a l g u m a s e s t a n t e s e a p a n h e i a l g u n s discos.
A m ú s i c a suave que logo i n v a d i u o ambiente me
t r o u x e u m conforto espiritual.
E s t a v a p r e p a r a n d o o u t r a dose d e u í s q u e , q u a n d o
o u v i a f e c h a d u r a da porta mexer-se. F i n a l m e n t e o sin-
g u l a r episódio ia t e r c o m e ç o . A e s p e r a se p r o l o n g a r a
por longas horas: já atingíramos a meia-noite.
— Cansaste de esperar, m e u Aurélio? Sinto. T i v e
que participar de u m a recepção que não estava no pro-

97
g r a m a . O governador foi à Brasilia e nessas condições
m e u s compromissos sempre dobram. É u m a c h a t e a ç ã o ,
sem limites e t u d o sempre envolvendo esses malditos
açudes que dão m a r g e m a toda sorte de exploração
política. Estou exausta!
Quis ser simpático:
— Em absoluto, m i n h a senhora. Eu vim à Recife
p a r a servi-la e esperá-la, será sempre um prazer
imenso...
— Ah! És t a m b é m g a l a n t e a d o r ? Melhor, gosto
m a i s a s s i m . . . T u esperas u m pouco que vou t r o c a r d e
roupas.
E a i n d a de d e n t r o do q u a r t o , gritou p a r a m i m :
— Aurélio, adoro uísque. P r e p a r a u m a dose p a r a
m i m . Gosto puro, com m u i t o gelo. Vou já, já.
Ao r e t o r n a r vi que vestia um "pegnoir" azulado,
todo almofadado. E n t r e os dedos um cigarro de filtro.
Dirigiu-e direto p a r a a vitrola.
— Que m ú s i c a c h a t a que tu escolheste, Aurélio.
Não se c o a d u n a com o m o m e n t o . . . Não achas? T e n h o
u n s magníficos discos de R a y Connif. São a m e r i c a n o s
autênticos. É o g r a n d e sucesso do m o m e n t o nos Estados
Unidos, m a s t o t a l m e n t e desconhecidos aqui no Brasil.
São q u a t r o a p e n a s : tudo o que ele gravou. Escuta, vê
que inesquecível orquestra-coro! Q u a n d o isto for lan-
çado aqui vai ser um s u c e s s ã o . . . Ganhei-os de um
amigo que veio r e c e n t e m e n t e da América.
V e j a m o s . . . é . . . isso m e s m o . . . a q u i n t a faixa do
lado " A " . . .
Quedei-me à escuta e logo as primeiras n o t a s de
" S e n t i m e n t a l J o u r n e y " , invadiram, e m r i t m o crescente,
o salão em que nos e n c o n t r á v a m o s .

98
— O nome do "long-play" é 'S W o n d e r f u l . . . n ã o
é mesmo interessante, diferente? E s t a é a primeira
gravação dele. . .

Ela sentou-se ao m e u lado de tal m a n e i r a que com-


preendi, finalmente, o que ela r e a l m e n t e desejava e
confesso que essa possibilidade me fez gelar o s a n g u e
n a s veias. C e r t a m e n t e e u n ã o teria c o r a g e m . . . n ã o
teria mesmo! E r a a P r i m e i r a D a m a do Estado! Sabia,
sim, os horrores que diziam dela, à boca pequena, nos
bastidores da a l t a política. Mas daí ser eu um d e l e s . . .
n ã o , positivamente isto n ã o estava no m e u p r o g r a m a !

Quis levar a conversa p a r a o u t r o r u m o :


— A senhora vai afinal me d a r a resposta p a r a o
general a i n d a hoje? P r o g r a m e i r e t o r n a r a Brasília a m a -
n h ã cedo. Ele deseja que s u a c a r t a seja t a m b é m no
m e s m o estilo da dele: t u d o por metáforas, m a s n ã o
esquecendo o n ú m e r o que é o principal. O avião da
FAB vai p a r t i r a i n d a esta s e m a n a . . .
— Não te preocupes com o general. A m a n h ã tele-
fonarei p a r a ele e, conforme for, darei a resposta que
ele deseja pelo próprio telefone. Q u a n t o a ti, Aurélio,
n ã o t e n h a s pressa de r e t o r n a r à Brasília. O general,
t e n h o certeza, te dispensará por mais a l g u n s d i a s . . . É
só eu p e d i r . . .
— S e i . . . s e i . . . m a s é q u e . . . eu t e n h o outros
compromissos particulares e eu já estou há muitos dias
em Recife. Estava previsto que eu voltaria no dia se-
guinte. A s e n h o r a c o m p r e e n d e . . .
— N e n h u m compromisso pode ser mais i m p o r t a n t e
do que eu, pelo m e n o s neste i n s t a n t e . Concordas?
Sorri um t a n t o sorumbático e a r g u m e n t e i , b u s c a n d o
u m a saída p a r a a s i t u a ç ã o incomoda:

99
— É. .. m a s a senhora n e m calcula como estou
cansado...
— ó t i m o , m e u filho. Temos aqui a mais macia
das c a m a s do Estado de P e r n a m b u c o . . . Tu poderás
dormir t r a n q ü i l o . . . n u m a m b i e n t e a r o m a t i z a d o . . .
Que tal?
Pulei, assustado:
— Dormir? Aqui?
— Ora! O que há de a n o r m a l nisso, h o m e m ? Tu
t e n s a l g u é m que te está esperando lá no hotel? Tu
a c h a s aquela imundícia de hotel melhor que este a p a r t a -
mento?

— Mas, m i n h a senhora, e o governador? Ele pode


chegar a qualquer m o m e n t o !

— Deixa de bobagens. Em primeiro l u g a r o gover-


n a d o r está em Brasília, m u i t o preocupado em conseguir
verbas federais p a r a os açudes e só r e t o r n a r á no fim
da semana. Em segundo, o governador n ã o m o r a aqui.
Reside no Palácio. Ele n ã o sabe da existência deste
local. E n t e n d e s t e , seu bobinho?

Q u a n d o nos levantamos em direção ao q u a r t o , vi


que todo o esforço que fizesse seria inútil. Estava ner-
voso demais p a r a fazer ou receber carinhos de q u a l q u e r
m u l h e r , e p r i n c i p a l m e n t e da Primeira D a m a do
Estado...

E foi r e a l m e n t e o que ocorreu p a r a desespero t o t a l


da m a d a m e , que estava n u m histerismo animalesco.
De n a d a , contudo, serviu m i n h a impotência da
primeira noite. Ela usou seu prestígio, q u e n ã o era
mesmo pequeno: o general, a t e n d e n d o ao pedido da Pri-
meira D a m a , me obrigou a p e r m a n e c e r em Recife cerca

100
d e q u i n z e dias, t e m p o e x a t o e m q u e f i q u e i s e u a m a n t e ,
s a t i s f a z e n d o - a em todos os c a p r i c h o s . . .
O dr. S e b a s t i ã o o u v i r a o r e l a t o d e A u r é l i o c o m u m a
expressão de desanimo estampada nos olhos. N ã o c o n -
seguia compreender como a devassidão m i n a v a assim
os b a s t i d o r e s políticos e sociais deste país. L i m i t o u - s e a
perguntar:
— E o s e n h o r v o l t o u a v ê - l a , depois de t u d o isso?
— A l g u m a s vezes s e m , p o r é m , falar-lhe. F o i em
a l g u m a s solenidades p o l í t i c a s i m p o r t a n t e s o c o r r i d a s e m
Brasília ou no Rio. É u m a f i g u r a bem apagada hoje.
S e u esposo c o n t i n u a na p o l í t i c a e p r a t i c a m e n t e é ele
q u e m m a n o b r a t o d o o P a r t i d o d o q u a l é u m dos d i r i -
g e n t e s m á x i m o s e m e m b r o dos m a i s i n f l u e n t e s e m t o d a
aquela região. E l a deve continuar, presentemente a di-
r i g i r os canaviais que possui por todo o interior de
P e r n a m b u c o . E u n u n c a m a i s a e s q u e c i , pois s ó e u
m e s m o sei o q u e passei n a q u e l a n o i t e e n o s dias s e g u i n -
tes, a o l a d o dessa m a d a m e . E l a , p o r é m , já deve ter
m e esquecido. É l ó g i c o . . .
Interrompi a conversa entre o dr. Sebastião e
Aurélio, para perguntar:
— A u r é l i o , t o d a s as v e z e s q u e o u ç o essa h i s t ó r i a ,
v o c ê s e m p r e se n e g a a d i z e r o c o n t e ú d o d a q u e l a f a m o s a
carta do general à P r i m e i r a D a m a de P e r n a m b u c o .
P o r que? P o d e r i a d i z ê - l o a g o r a ? F a z t a n t o t e m p o , a c h o
que não t e m mais importância.
— De fato, faz m u i t o tempo. Contudo, não deixa
d e ser u m a r e v e l a ç ã o p e r i g o s a . . .
— G o s t a r i a t a m b é m de saber, senhor Aurélio —
a p a r t e o u o dr. S e b a s t i ã o .
— T o d a s as s e m a n a s — i n f o r m o u , e n t ã o , A u r é l i o —
partia p a r a a Bolívia um avião da F A B , em serviço

101
n o r m a l do Ministério da Aeronáutica. O percurso fazia
p a r t e da linha do COMTA. Às vezes a viagem era feita
quinzenalmente. O fato é que, n u m a dessas viagens,
seguia, a bordo, um alto funcionário do Governo, com
passaporte diplomático, que p e r m a n e c i a a l g u n s dias em
La Paz e r e t o r n a v a ao Brasil. Sua missão era buscar
cocaína!
A n t e nossa expressão de espanto, Aurélio esclareceu:
— A Primeira D a m a n ã o era viciada, n ã o . Mas
t i n h a amigos m u i t o bem postos n a sociedade p e r n a m -
b u c a n a , assim como o general os t i n h a em Brasília e
Rio, que o eram.. Seria por demais arriscado adquirir
o pó d a s mãos de traficantes. Avião militar n u n c a é
revistado. E a i n d a que o fosse, as m a l a s de q u e m
possuir passaporte vermelho t e m imunidades. Não po-
dem ser abertas. Daí a facilidade. O que o general,
t a m b é m viciado, p e r g u n t a v a à m a d a m e , n a q u e l a c a r t a ,
era a q u a n t i d a d e de que necessitava, porque estava p a r a
ir até a Bolívia no avião da Força Aérea, o alto funcio-
nário do Itamarati.
— Mas, Aurélio, você acredita que a FAB fizesse
tráfico de entorpecentes? — perguntei, abismada.
— É lógico que n ã o , Adelaide. Os militares eram,
no caso, a u t ê n t i c o s inocentes-úteis. Um funcionário com
passaporte diplomático sempre foi recebido com o maior
respeito pelos oficiais aviadores que s u p u n h a m , como era
n a t u r a l , que o m e s m o fosse a La Paz com a l g u m a a l t a
missão do Governo Federal. Não t i n h a m a m e n o r parti-
cipação nesse tráfico vergonhoso, e, se a i n d a ocorre o
presente fato, posso assegurar que i g n o r a m completa-
mente.
— A FAB, no Exterior, só faz l i n h a p a r a a Bolívia?
— inquiriu o dr. Sebastião.

102
— Não, t e m l i n h a s p a r a o u t r o s países, e n t r e eles
o P a r a g u a i , por exemplo. M a s isto n ã o vem ao caso.
O interesse na Bolívia n ã o era a cocaína boliviana. Rico
viciado n ã o aceita esse tipo de pó. Só se utiliza, só
se satisfaz com a alemã, cuja m a r c a é "Merck". Há
facilidades de se obter esse tipo na Bolívia. Olhe, doutor,
m u i t a gente boa da G u a n a b a r a e de São P a u l o recebia
esse pó, que vinha da Bolívia, através dos aviões da
F o r ç a Aérea Brasileira. O general se encarregava de
distribuir a l g u m a s p a r t e s em Brasília. Eu, às vezes,
e n t r e g a v a no Rio e até em São Paulo. Porém, quase
sempre, os interessados b u s c a v a m d i r e t a m e n t e no a p a r t a -
m e n t o do general, na Capital Federal.

Nossa conversa se prolongou a i n d a d u r a n t e m u i t o


tempo. Q u a n d o Aurélio saiu do Sanatório, o dr. Sebastião
decidiu: n ã o iria p r o c u r a r a ex-Primeira D a m a de Per-
n a m b u c o sob a r g u m e n t o algum. Desistira da apresen-
t a ç ã o do amigo político. E, q u a n d o ainda estávamos
na sala-de-espera do Sanatório, logo após Aurélio sair,
na m i n h a frente, rasgou em vários pedaços a missiva
que lhe serviria, n a G u a n a b a r a , d e t r a m p o l i m p a r a u m
excelente cargo público.

— O que vai fazer, e n t ã o , doutor? — p e r g u n t e i .


— Não sei, Adelaide. Mas de u m a forma ou de
o u t r a preciso sair deste Sanatório. Algo está ocorrendo
comigo que me faz t o m a r essa decisão. É t ã o grave
que n ã o posso lhe dizer. Nem t e n h o mesmo c o r a g e m . . .
Olhei-o, querendo obter u m a confirmação p a r a a
duvida que logo me veio à m e n t e : Diana! Sim, o m é -
dico negro teria se a m a s i a d o com a ex-miss G u a r u j á ,
s u a i r m ã de criação, a lider da "greve do Kock", q u e
há quase um m e s assolava o S a n a t ó r i o São Pedro, de
Campos do Jordão?

103
VI

M i n h a estada em S. Pedro estava quase no fim e


logo r e t o r n a r i a a São Paulo. Havia recebido u m a c a r t a
de u m a a m i g a do Rio, que me pleiteava interferência na
sentido de conseguir o i n t e r n a m e n t o de u m a jovem de
n o m e Cláudia. Seu estado era grave e requeria imediato
t r a t a m e n t o . Conversei l o n g a m e n t e com a Madre e con-
segui a vaga existente, devido à u m a a l t a que o dr.
Sebastião havia dado logo no começo da s e m a n a . Eu
teria que ir ao Rio p a r a a j u d a r o t r a n s p o r t e da moça
a t é o Sanatório S. Pedro.

Belinha t a m b é m havia obtido licença de u m a s e m a n a


e estava prestes a e m b a r c a r p a r a o Rio.

Q u a n d o lhe p e r g u n t e i o que ia fazer na ex-Capital,


mostrou-se misteriosa, pondo o dedo indicador sobre os
lábios:

— P s i u . . . n ã o fale alto. Nós vamos viajar j u n t a s


e no c a m i n h o lhe conto. Tapeei a Madre e disse que
m e u s pais se e n c o n t r a m no Rio e ela me deixou ir. O
dr. Pedro afiançou à Madre que estou quase c u r a d a e
que u m a s e m a n a n o Rio n ã o irá alterar m e u estado
de saúde. Agora, caluda! No ô n i b u s conversaremos,
o. k?

Achei graça naquele mistério todo, m a s me con-


formei, apesar da curiosidade n a t u r a l que se apossara
de m i m .

Dois dias depois vi-me confortavelmente s e n t a d a

104
n u m a das poltronas do ônibus da Viação Cometa, per-
correndo, ao lado de Belinha, a sempre perigosa Via
D u t r a , em d e m a n d a do Rio de Janeiro.
Belinha preferiu utilizar-se do ônibus por ter ficado
com receio de enfrentar a e s t r a d a com seu automóvel.
— Pois é isso mesmo, Adelaide — dizia-me m a l i -
ciosa, Belinha. — Todos os anos se celebra, ali u m a
festa especial. É difícil eu perdê-la. Sempre há a novi-
dade da presença de a l g u é m de fama internacional.
Desta feita é o dono da boate q u e m vem vindo com
u m a bela a r t i s t a de Hollywood p e n d u r a d a no seu
Draço...

— O que acho esquisito, Belinha, é o n o m e dessa


boate. É u m a imoralidade c h o c a n t e !
— Belinha riu e repetiu o nome da casa n o t u r n a :
— "Bocetinha de Ouro", quer nome m a i s apro-
priado?

Olhei, assustada, pelos lados, c h a m a n d o s u a a t e n ç ã o :


— Fale baixo, m e n i n a ! Quer que os outros o u ç a m ,
sua m a l u c a ?

Mas a verdade era essa m e s m a . Um milionário


carioca, que n ã o r a r a s vezes é m a n c h e t e de jornais pelos
seus "casos" amorosos internacionais, m o n t o u u m a b o a t e
p a r t i c u l a r n u m dos a n d a r e s d e u m edifício d e a p a r t a -
m e n t o na r u a Domingos Ferreira, em Copacabana. A
e n t r a d a do prédio é r e a l m e n t e pela Domingos Ferreira,
m a s h á u m a passagem s u b t e r r â n e a que d á acesso p a r a
avenida Atlântica, permitindo, assim, que seus moradores
t e n h a m fácil meio à praia. Nesse prédio, que t e m a p e -
n a s dois a p a r t a m e n t o s por a n d a r , o milionário carioca

105
comprou o ú l t i m o a n d a r . Ligou os dois a p a r t a m e n t o s
i n t e r n a m e n t e e ali instalou u m a boate p a r t i c u l a r , cujo
ingresso é dos mais difíceis, pois só q u e m é de s u a s
estreitas relações pode desfrutar dos grotescos b a c a n a i s
q u e vez por o u t r a , são levadas a efeito n a q u e l e a n t r o .
A i n a u g u r a ç ã o foi das mais c o m e n t a d a s na socie-
dade carioca. A m a i o r p a r t e por ouvir dizer, pois poucos
são os "privilegiados" que a f r e q ü e n t a m . . . Nessa festa
resolveu-se d e n o m i n a r a boate " B o c e t i n h a de Ouro". Há
um famoso cronista social do Rio que conhece todos os
pormenores das festas que são realizadas no famoso
edifício da R u a Domingos Ferreira.

Agora, a n u a l m e n t e , há a festa de aniversário q u e


s e m p r e é coroada com a presença de a l g u é m de f a m a
internacional.
E r a p a r a essa festa que Belinha se dirigia, após t e r
ludibriado a boa fé da Madre.
O e n t u s i a s m o de Belinha era até imoral:
— O local é b a c a n é r r i m o , Adelaide. Você precisa
conhecer p a r a poder acreditar. A e n t r a d a é u m a só e
o n o m e da boate, lá está, em gás neon, f o r m a n d o um
desenho convidativo, no interior da saleta de acesso às
demais dependências. No interior, porém, há u m a di-
visão especial. O lado í m p a r é destinado à boate onde
se brinca, se d a n ç a e se faz a l g u m a s libertinagens sem
maiores conseqüências. O lado p a r é especial. Chama-se
" c o m p a r t i m e n t o dos sem a l m a " . Q u a n d o ali se e n t r a ,
se p e n d u r a a a l m a , simbolicamente, n u m cabide dourado,
Despe-se de t o d a e q u a l q u e r vestimenta e se participa
de todas as exigências sexuais que o a m b i e n t e devasso
impõe.

— Você é u m a m a l u q u i n h a . Esquece-se do seu

106
estado? Você vai piorar, Belinha. Olhe o que estou
lhe dizendo!
— O que se leva dessa vida é o que se goza e n ã o
o que se deixa, Adelaide.

— Se há t a n t a exigência p a r a se e n t r a r lá, como é


q u e você o conseguiu?

— P a p a i é m u i t o amigo do nosso caro miliardário.


Ele t a m b é m freqüentava a boate. E, q u a n d o m e u s pais
foram à Europa, fui em c o m p a n h i a de um dos freqüen-
tadores. A primeira vez cheguei a perder o r e b o l a d o . . .
O " c o m p a r t i m e n t o dos sem a l m a " é escuro, iluminado
p a r c a m e n t e pela luz de d u a s velas. E, n u a como Deus
m e m a n d o u a o m u n d o , entrei n u m a sala q u e s ó q u a n d o
m i n h a vista se a c o s t u m o u bem, notei que era a m p l a ,
f i n a m e n t e decorada, com móveis dourados, e um ar per-
fumado e acolhedor. Aparelhos de ar condicionado eli-
m i n a v a m com rapidez a fumaça dos cigarros. O local
se assemelhava, pela a p a r ê n c i a e posição dos vários
casais, a a u t ê n t i c a b a c a n a l r o m a n a dos t e m p o s de Nero.
O n ú m e r o de h o m e n s idosos é o q u e decepcionou. Assisti,
nesse primeiro dia, u m a cena que n u n c a m a i s m e esqueci,
q u a n d o um senhor de idade talvez superior a sessenta
anos, gritava, em meio a ruidosas g a r g a l h a d a s , que d a v a
t o d a s u a f o r t u n a e o resto de s u a vida, por dez 'minutos
de p o t ê n c i a . . . O h o m e m parecia um desvairado. Nesse
dia, t a m b é m houve u m a c o n t e c i m e n t o q u e teve reper-
cussão internacional. O milionário carioca, dono da
boate, trouxe d a América u m a famosa atriz d e cinema.
Em meio a festa ela se e n g r a ç o u com um dos amigos
do milionário e acabou a noite com ele, desprezando o
rico a m i g u i n h o q u e a t r o u x e r a dos Estados Unidos. Dois
dias depois ela p a r t i u p a r a B u e n o s Ayres e o nosso
"play-boy" i n t e r n a c i o n a l ficou a ver n a v i o s . . . Q u a n d o

107
ela voltou p a r a os Estados Unidos, quis passar a i n d a
a l g u n s dias no Rio, m a s o milionário traído, que a h a v i a
trazido ao Brasil, organizou u m a p a s s e a t a onde várias
faixas e cartazes a convidavam a deixar o Brasil, quali-
ficando-a de reles r a m e i r a . Foi um escândalo que teve
repercussão fora das fronteiras do Brasil. Você n ã o se
recorda?
— Agora estou ligando um fato ao outro — respondi,
com ar pensativo, como q u e m p e r s c r u t a o passado, pro-
c u r a n d o lembrar-se de um fato que na época foi notório.

— E agora você t a m b é m sabe a r a z ã o pela q u a l


houve a passeata. A origem de t u d o e s t á na famosa
boate do milionário carioca, que é um dos m a i s famosos
"play-boys" internacionais. Tão famoso q u a n t o o Porfírio
Rubirosa...

Fiz o q u e me era possível p a r a convencer Belinha


a n ã o p a r t i c i p a r do b a c a n a l de aniversário daquela boate
infame. F o r a m baldados m e u s esforços e i n o p e r a n t e
meus argumentos. Belinha estava m e s m o e n t r e g u e à
devassidão total e o seu maior prazer se resumia na
p a l a v r a sexo.

Despedi-me dela n a Estação Rodoviária, n a p r a ç a


Mauá.

Só fui vê-la u m a s e m a n a depois, cadavérica, com


profundas olheiras, a d e m o n s t r a r que seu o r g a n i s m o
tivera profunda recaída pelos excessos cometidos no
a p a r t a m e n t o d a r u a Domingos Ferreira, e m Copacabana.
Da p r a ç a M a u á fui direto ao prédio do Ministério
da Educação, onde localizei m i n h a a m i g a e c o m b i n a m o s
o encontro p a r a a noite, q u a n d o me seria a p r e s e n t a d a
a jovem Cláudia, que iria p a r a S. Pedro ocupar a v a g a
que havia nos porões de seu edifício.

108
O l h a n d o através do vidro da j a n e l a do t r e m que
e m o l d u r a v a o negror da noite, s e n t i a u m a terrível
sensação e experimentava u m a dor a g u d a em m e u peito,
a o saber que naquele i n s t a n t e , n a l o n g i n q u a Copacabana,
Belinha se e n t r e g a v a aos excessos de u m a noite de orgia
sexual, na mais torpe d a s depravações. Procurei esque-
cer aqueles fatos que c a u s a v a m revolta à a l m a , pales-
t r a n d o com a doente que me fazia c o m p a n h i a n a q u e l a
cabine confortável do " S a n t a Cruz." Este corria veloz
sobre os trilhos, r u m o a P i n d a m o n h a n g a b a . O estado
de Cláudia era deveras grave. Escolhera aquele meio
de locomoção como o m e l h o r p a r a a sua saúde. O t r e m
d e aço n ã o p á r a , n o r m a l m e n t e , e m P i n d a m o n h a n g a b a .
A ú n i c a p a r a d a é em Cruzeiro, depois direto p a r a São
Paulo. P o r é m consegui, da a l t a direção da C e n t r a l do
Brasil, a q u e l a p a r a d a especial, por c a u s a da doente que
eles conduziam. Foi u m a l u t a de dois dias p a r a b u s c a r
essa autorização, m a s no final l o g r a r a êxito. Levara
a o diretor d a C e n t r a l u m a c a r t a d o Ministro d a S a ú d e
e aquele resolvera, e n t ã o , a t e n d e r m e u pedido.

Cláudia olhava-me interrogativa. S u a história era


sórdida como o procedimento da maioria dos h o m e n s
públicos do Brasil.

Foi ela q u e m quebrou o silêncio da cabine-dormitório


do "Santa Cruz:"
— Adelaide, você já pensou q u a n t o s quilômetros
pode correr u m a pessoa desesperada d e n t r o d e u m
q u a r t o de oito metros quadrados? Acho que mil, Ade-
laide. Creio que corri mil quilômetros, com medo
daqueles h o m e n s d e s v a i r a d o s . . .

Olhei-a e pedi:

109
— Conte-me o que se passou com você Cláudia.
Estou vivamente interessada em conhecer a suas his-
tória.
— Eu, mais do que n i n g u é m , Adelaide, precisava
da a j u d a de pessoas influentes p a r a obter m i n h a inter-
n a ç ã o n u m sanatório de tuberculosos. A c h a p a radio-
gráfica a c u s a r a a existência de p e q u e n i n a m a n c h a
cinzenta no p u l m ã o esquerdo. Ela poderia agravar-se,
se n ã o t e n t a s s e a cura. E essa c u r a , n a q u e l a m a l d i t a
t a r d e ensolarada, n a avenida Atlântica, veio n a forma
de um alto funcionário do IBC, que ocupava, como res-
ponsável, a "suite presidencial" de famoso hotel carioca.
Ia atravessar a avenida Atlântica, q u a n d o o c a r r o preto,
c h a p a oficial, e o e m b l e m a verde-amarelo no parabrisa,
p a r o u b e m n a m i n h a frente.

No seu interior vi um moço, simpático, a t é bonito


mesmo. Usava óculos com aros de t a r t a r u g a , m a s via
q u e seus olhos e r a m azuis, de um azul celeste provo-
cante. E r a o que necessitava: a pessoa influente que
obteria a vaga que t a n t o almejava nos sanatórios do
governo.

Tivemos, de início, u m a conversa tola, sem nexo, e


pouco depois estava no seu lado, percorrendo toda a
extensão da bela avenida Atlântica, r u m o ao Leblon.
T i n h a um sorriso tranqüilizador, u m a voz cheia de
meiguice:
— Você tem. um corpo provocante, sabe m e n i n a ?
Ele t i n h a r a z ã o mesmo. Naquele dia a p r i m a v e r a
cobria de suave perfume m e u s vinte anos, d e n t r o de
um corpo a t r a e n t e , com formas bem distribuídas pelos
m e u s sessenta quilos de peso. Eu t i n h a aparência sau-
dável. Meus dentes e r a m alvos e perfeitos, bem b r a n -

110
quinhos, e b r i l h a v a m q u a n d o ele se a p r e s e n t o u a m i m .
A doença, efetivamente, a i n d a n ã o t i n h a feito q u a l q u e r
estrago d e maior m o n t a e m m e u organismo.
— Meu n o m e é Oswalco. .. e o seu?

— Cláudia.
— Bonito n o m e . . . é até sugestivo. Carioca?
— Sou, e o s e n h o r ?

— Do P a r a n á , m a i s precisamente de L o n d r i n a . Sou
casado e t e n h o cinco filhos, um dos quais e s t u d a n u m
colégio de J a c a r è z i n h o . A t u a l m e n t e t r a b a l h o no IBC.
Você conhece o P a r a n á ?
— Não, n u n c a estive lá, m a s gostaria i m e n s a m e n t e
de conhecê-lo. Ainda n ã o fui a São Paulo, que é tão
p e r t i n h o do Rio!

— Por falar no P a r a n á , convidei u n s amigos de lá


p a r a virem p a s s a r u n s dias na G u a n a b a r a . Ocupo o
" a p a r t a m e n t o presidencial", do hotel m a i s famoso do
Rio. N ã o conheço n i n g u é m a q u i no Rio. N ã o só eu
como m e u s amigos gostaríamos de fazer amizades
a q u i . . . Desejamos t e r c o m p a n h i a p a r a j a n t a r e m bons
lugares, ir a teatros, b o a t e s . . . Você n ã o teria u m a s
a m i g u i n h a s ? . . . Hoje à noite, por exemplo, poderíamos
todos j a n t a r l á n o a p a r t a m e n t o . . .

E n t e n d e r a bem o que ele desejara. M a s pouco me


importava. P a r a m i m o fim justificava os meios. J u l g o
q u e u m a g o t a d e mel a p a n h a m a i s moscas que u m
tonel de vinagre, precisava de um sanatório. E r a q u e s t ã o
de vida ou de m o r t e . Oswaldo, n a q u e l e i n s t a n t e , repre-
s e n t a v a o sol, a primavera, o verão, a flor desabrochando,
p o r q u e n a verdade, n u n c a m e s e n t i r a t ã o feliz. Depois,
veio a decepção e t u d o se t r a n s f o r m o u . T u d o passou a

111
ser borrasca, espinho, tristeza, n u m a vertigem inespe-
r a d a , tenebrosa. A noite espêssa, cheia de morcegos,
sem esperanças, abateu-se sobre m i m e me reduziu ab
estado em que me encontro: 24 anos de idade e 32 quilos
de peso, com dois pulmões perfurados de cavernas,
reduzidos à c i n q ü e n t a por cento do seu volume, e exíguas
esperanças de sobrevivência...
Grossas l á g r i m a s começaram, a m o l h a r o rosto de
Cláudia. Quis confortá-la com palavras e gestos cari-
nhosos. Obriguei-a a descansar um pouco, q u a n d o a
tosse seca voltou a atacá-la, n u m acesso que bem revelava
como seu organismo se encontrava.
— É r a m o s q u a t r o jovens. Todas buscando, como
eu, um favor dos poderosos que íamos visitar e com eles
passar u m a s horas, — prosseguiu Cláudia.
U m a dela sabia vários idiomas e ambicionava alcan-
çar u m a colocação no Exterior, através do próprio IBC.
A o u t r a buscava auxilio político p a r a i n t e r n a r um
irmãozinho r e t a r d a d o m e n t a l e a terceira, funcionária
do DCT, queria ser transferida p a r a São Paulo.
Oswaldo achava-se no amplo salão de recepção, à
nossa espera. Confesso que me senti m a l a n t e o luxo
exagerado que se via no famoso hotel de Copacabana.
T ã o logo ele me reconheceu, foi ao m e u encontro, sorri-
d e n t e . Fomos p a r a o a n d a r superior, onde se fizeram
as apresentações. Assustamo-nos: e r a m nove h o m e n s ,
a l g u n s já idosos. Senti que h a v i a decepção nos olhos
da maioria pelo n ú m e r o de m o ç a s : q u a t r o p a r a nove
h o m e n s ! M a s que fazer! Não p u d e r a conseguir nove
coleguinhas. Mesmo essas q u a t r o moças fora um t r a -
b a l h ã o p a r a convencê-las.

T o m a m o s a l g u n s drinks, e era pouco m a i s de nove


h o r a s da noite, q u a n d o fomos convidadas a ir a t é o

112
"apartamento-presidencial'. S u b i m o s e m q u a t r o casais
e os demais cinco h o m e n s f i c a r a m no bar do hotel,
t o m a n d o a l g u m a bebida.
F i c a m o s bebendo e comendo alguns salgadinhos que
o garçon trouxera, durante mais de u m a hora. Todas
n o s e s t á v a m o s altas. O s h o m e n s n ã o e s c o n d i a m a ale-
g r i a a r t i f i c i a l p r o v o c a d a pelo excesso d o álcool. Na
m e s i n h a d e c a b e c e i r a d e u m a das c a m a s h a v i a u m r á d i o
embutido. L i g a d o , fez p e n e t r a r n o a m b i e n t e s e n s u a l
melodia. J u n t o s , os quatros pares ensaiaram os pri-
m e i r o s passos d e d a n ç a q u e e n v o l v i a o a p a r t a m e n t o
presidencial do mais famoso hotel do R i o de J a n e i r o .
E nesse enleio p r ó p r i o d o a m b i e n t e e m q u e v i v í a m o s
àquela hora, n e m notamos quando os cinco companheiros
de Oswaldo chegaram também no apartamento. Sen-
t i m o s a p r e s e n ç a deles q u a n d o a v o z e n r o l a d a de um
anunciou:

— T a m b é m queremos brincar. . .

H o u v e , d e i n í c i o , u m a e u f o r i a . O s o l h o s dos c i n c o
h o m e n s e s t a v a m v í t r e o s , i n d i c a n d o a l t a d o s a g e m alcóoli-
cas. O s n o v o s i n d i v í d u o s n o s c e r c a r a m n u m a r o d a v i v a
e aos g r i t o s a l e g r e s i a m f o r ç a n d o a r e t i r a d a de nossas
roupas. A resistência que poderíamos oferecer era mí-
n i m a e em poucos as q u a t r o e s t a v a m c o m p l e t a m e n t e
nuas no apartamento presidencial.
C o m e ç a m o s a ser j o g a d a s u m a a u m a c o n t r a o s
homens. Um tal de Carlos gritou que ia começar o
futebol e n u n c a i m a g i n á r a m o s que nós seríamos a bola
c o m que os nove tarado se i a m divertir. O primeiro
p o n t a p é q u e s e n t i n a s costas, v i o l e n t o , a t e r r o r i z a n t e ,
jogou-me na direção de Oswaldo que, sorrindo, me re-
c e b e u e c o m u m esforço h e r c ú l e o a t i r o u - m e p a r a o a r ,
fazendo-me estatelar no chão atapetado, de pernas

113
abertas, n u m a a t i t u d e lasciva que levou todo m u n d o ao
riso bestial, escancarado. Sem a i n d a ter-me refeito do
susto inicial, senti, de repente, um deles sobre m i m , na
t e n t a t i v a de possuir-me violentamente. Rolamos pelo
chão, a n t e a resistência que passei a oferecer. E n q u a n t o
isso, as demais c o m p a n h e i r a s sofriam as m e s m a s b r u -
talidades no c h a m a d o jogo de futebol em que i n v o l u n t a -
r i a m e n t e nos t r a n s f o r m á r a m o s . Divertimento sádico,
no qual nossas l a m ú r i a s , nossas queixas, nossos peque-
nos gritos de dor, c o n t r i b u í a m p a r a maior alegria dos
perversos que nos a t a c a v a m .

J á estava e x t e n u a d a q u a n d o u m a dor a g u d a oprimiu


o m e u peito. U m a onde de calor invadiu-me e senti
u m b o r b u l h a r e s t r a n h o n a boca. U m sabor acre, n o
início, e p r o f u n d a m e n t e salgado logo em seguida, cau-
sou-me n á u s e a s e cuspi no tapete. U m a grossa m a n c h a
de s a n g u e negro, pastoso, surgiu no belo t a p e t e avelu-
dado do a p a r t a m e n t o - p r e s i d e n c i a l . Gritei desesperada
que tivessem piedade:

— Estou tuberculosa! Tuberculosa! O dr. Oswaldo


disse que era amigo do presidente Juscelino e que ia
me ajudar! Pelo a m o r de Deus! Deixem-me! P a r e m !

E caí de joelhos, ao lado da m a n c h a p ú r p u r a que


havia expelido, a g i t a d a por um choro convulsivo.

Q u a t r o anos se p a s s a r a m , após esses acontecimentos


m a r c a n t e s de m i n h a vida. A declaração de que estava
tuberculosa criou ambiente de pânico e n t r e os nove h o -
mens. Fomos quase enxotadas do a p a r t a m e n t o presi-
dencial. A lesão do m e u p u l m ã o , pelas sevícias de que
havia sido alvo, a u m e n t o u consideravelmente. Minha

114
"via crucis" c o n t i n u o u d u r a n t e três anos e somente
hoje consegui, m u i t o t a r d e , o repouso de um hospital.
A n a r r a t i v a de Cláudia t e r m i n o u em choro excitado,
violento, t r ê m u l o .

Soube m a i s tarde, pela p r ó p r i a Cláudia, que o dr.


Oswaldo, com a m u d a n ç a de governo, a i n d a conseguira
ser n o m e a d o p r o c u r a d o r da República, em Brasília,
cargo que o c u p a a t é hoje.

Acalmei-a como p u d e e pedindo licença saí da ca-


bine. Precisava respirar. M i n h a a l m a , t o r t u r a d a , bus-
cava ar, m u i t o ar. F u i a t é a interseção dos vagões e
abri a p o r t a p a r a receber o vento em pleno rosto.

S e g u r a n d o o gradil de ferro ia vendo a procissão de


vultos escuros que i a m correndo com a gente. Vultos
negros a i n u n d a r - m e os olhos. P e n e t r a n t e , açoitante, o
vento fustigava m e u rosto, l e v a n t a n d o m e u s cabelos e
fazendo com que de m e u s olhos saltassem lágrimas.
Tentei limpar o rosto e notei, então, que as l á g r i m a s
que deslizavam de m e u s olhos n ã o e r a m provocadas
pelo vento. Arrepiei-me toda q u a n d o a boca m o n s t r u o s a
d e u m t ú n e l nos engoliu, m e r g u l h a n d o - n o s n a total
escuridão. Apertei a cabeça e n t r e m i n h a s mãos, fe-
c h a n d o fortemente os olhos, t o m a d a pelo desespero que
me a n g u s t i a v a . E nessa escuridão, de súbito, vi u m a
luminosidade que veio l e n t a m e n t e a v a n ç a n d o p a r a m i m .
Abri m e u s olhos e enxerguei a figura f u l g u r a n t e , simpá-
tica, do presidente Juscelino, com aquele sorriso
envolvente. Nas suas m ã o s a chave do a p a r t a m e n t o
presidencial...

* * *

O dr. Sebastião, l e v a n t a n d o a c h a p a radiográfica

115
c o n t r a a luz da janela, sacudia negativamente. Virou-se,
depois, p a r a m i m , e o m e n e i o do c o r p o , o s i l ê n c i o q u e
i m p ô s ao a m b i e n t e e a t r i s t e z a de seus o l h o s , f i z e r a m - m e
c o m p r e e n d e r q u e C l á u d i a e r a u m caso s e m e s p e r a n ç a s .

— Q u a n t o t e m p o de vida, doutor? — perguntei


quase n u m m u r m ú r i o .

— É d i f í c i l de p r o g n o s t i c a r . É certo, p o r é m que
n o p r i m e i r o a t a q u e d e h e m o p t i s e ela n ã o r e s i s t i r á . V e i o
m u i t o tarde para o hospital. ..

Cláudia não resistiu u m a semana, falecendo d u r a n t e


um terrível ataque de hemoptise. F o r a o presente que
o alto funcionário do I B C , e hoje P r o c u r a d o r da R e p ú -
blica, dera à j o v e m que o f o r a p r o c u r a r , p a r a obter u m a
vaga n u m sanatório. A o s v i n t e a n o s , a d e s i l u s ã o , se-
g u i d o s de t r ê s a n o s de d e s c r e n ç a . Só a l c a n ç o u a f e l i c i -
d a d e aos 2 4 a n o s , c o m a m o r t e q u e , f i n a l m e n t e , l h e
deu o descanço merecido.

A s f a r r a s d o a p a r t a m e n t o p r e s i d e n c i a l são a t é h o j e
p a g a s pelos c o f r e s p ú b l i c o s . . .

116
VII

— O T i ã o a m a a Diana, sim Adelaide!

— Isto é um absurdo, Inês. N ã o acredito. T u d o


n ã o p a s s a d e u m p l a n o dessa s ó r d i d a v i s a n d o d e s t r u i r
o coitado. T e n h o c e r t e z a . . .

— O l h e , sua tola. E u posso p r o v a r o q u e e s t o u


d i z e n d o . D i g o m a i s : s o u a ú n i c a q u e sei dos e n c o n t r o s
q u e t ê m h a v i d o e n t r e o s dois n a C a s a d e H ó s p e d e s !
E u o s v i pelo m e n o s u m a v e z e n t r a n d o l á ! C h e g a isso?

Fiz-me de incrédula:

— T o d o o s a n a t ó r i o s a b e r i a disso se fosse v e r d a d e ,
Inês.

— N ã o t e n h o a l í n g u a solta, o r a ! Recorda-se q u a n -
d o v o c ê m e c o n t o u o q u e o c o r r e r a e n t r e o s dois n a q u e l a
n o i t e , n o i n t e r i o r d o a p a r t a m e n t o dela? N a d a disse a
n i n g u é m , m a s o fato é que todo m u n d o sabia, no dia
seguinte. A discussão em v o z alta despertou as v i z i n h a s
e todas v i r a m q u a n d o o T i ã o saiu do a p a r t a m e n t o de
Diana. A c h o q u e o f a t o s e r v i u de lição e a g o r a eles
se e n c o n t r a m fora do prédio, na Casa de Hóspedes. N ã o
acredito que u m a m u l h e r b r a n c a se vá submeter a um
n e g r o p o r u m s i m p l e s c a p r i c h o . O u ele é gostoso m e s -
m o . . . o u ela g o s t a dele. A c a b o u - s e , p r o n t o . É isso s i m ,
queira ou não queira, sua palhaça!

— Pois vou investigar e porei tudo em pratos


limpos. ..

117
— Bem, m a s o que quero combinar com você é
o u t r a coisa. Hoje é o baile de a b e r t u r a da t e m p o r a d a
no Grande Hote. ..

— Que tipo de traje? — interrompi.


— A rigor, m a s . . .
— ó t i m o , e n t ã o já sabe que n ã o posso ir. Não
t r o u x e r o u p a apropriada. Vamos ficar aqui m e s m o . . .

— . . . m a s . . . m a s . . . e u m e informei e descobri q u e
com um jeitinho a gente e n t r a com q u a l q u e r t r a j e . . .
M u i t a gente vai com traje sem ser a r i g o r . . . T á ?

— Muito bem. E o a t e s t a d o médico? Você sabe


que sem o papelzinho do doutor dizendo que você está
boazinha d e saúde, e t c , e t c , e t c , n ã o e n t r a mesmo.
N a d a feito, Inês. Nada de bailes, hoje à noite.

Inês rodopiou pelo q u a r t o , rindo, e dos seios p u x o u


dois papéis, exibindo-os vitoriosa:

— Aqui os tem, m a d a m e . Os dois. Um p a r a m i m


e o u t r o p a r a você. Ambos assinados pelo dr. Sebastião,
o mais simpáticos dos médicos negros do m u n d o . . .
Levantei-me, ligeira, e a r r a n q u e i os papéis das mãos
de Inês. Ela apressou-se em retificar:
— Mentira, bobinha. Apenas o seu está assinado
pelo dr. Sebastião. O m e u é de um médico lá da cidade,
m e u conhecido, e que gosta m u i t o de d i n h e i r o . .. Foi
fácil conseguir o a t e s t a d o desse m é d i c o . . .
— Você pediu p a r a o dr. Sebastião assinar o seu
também?

— Pedi, sim. Mas você sabe que ele é um preto


metido a p u r o e falou u m a h o r a p a r a justificar a sua

118
negativa. Quis saber p a r a que era o atestado. Disse-lhe
a verdade a aí, e n t ã o piorou. Não deu mesmo. P a r a
você ele disse que n ã o havia inconveniente a l g u m porque
sabia que estava aqui a p e n a s p a r a repouso. É um c h a t o ,
tá?
Sorri satisfeita pela decisão do dr. Sebastião em
ter-se negado a falsificar um atestado.

— Afinal, vai ou n ã o vai ao baile, p a l h a ç a ?

Ampliei m e u sorriso, a n t e s de responder:

— Vou sim, s u a c h a t a !

* * *

No vistoso salão do G r a n d e Hotel, vizinho à boate


na q u a l a música de ritmos modernos gritava e os pares
d a n ç a v a m n u m a fúria louca, Inês e eu p e r m a n e c í a m o s
s e n t a d a s em cima da mesa verde de bilhar, b a l a n ç a n d o
nossas p e r n a s no vazio. Eu trajava u m a calça r a n c h e i r a
com blusa azul. Nos pés, botas que c a u s a v a m um con-
t r a s t e com a beleza do ambiente. Inês, no seu conjunto
fino de calça e blusa e b o t i n h a de c a m u r ç a , c h a m a v a a
a t e n ç ã o . E r a u m a bela garota. N a p o r t a houvera u m
princípio de discussão que foi resolvido com a interfe-
rência de um rapaz e l e g a n t e m e n t e vestido e que, ao se
a p r e s e n t a r , ficamos sabendo pertencer à clã dos Ma-
tarazzos, u m a das mais ricas e tradicionais famílias de
São Paulo.

O jovem ficou impressionado pelos cabelos dourados


de Inês, que faziam sobressair, ainda mais, a cor verde
de seus olhos. Q u a n d o ele quis saber onde m o r á v a m o s ,
I n ê s foi r á p i d a na m e n t i r a :

119
— N u m a casa de campo, na Vila, perto do Tenis
Clube.

Resolvemos e n t r a r no salão de danças. Sentei-me


n u m a poltrona m a c i a de couro m a r r ó n e fiquei apre-
ciando os p a r e s desusarem pela pista. Inês, q u a n d o
nossos olhares se cruzavam, me piscava maliciosamente.
E s t a v a colada ao rapaz. Logo mais senti fome. Fui
até ao bar onde ingeri um refrigerante e comi a l g u m a
coisa. Voltando ao salão, Inês t i n h a sumido com seu
par. F u i informada, pelo porteiro, que os dois h a v i a m
saído. Voltei' um pouco d e s a n i m a d a e me sentindo só.

E r a m d u a s h o r a s da m a n h ã . O salão quase vazio,


sem a n i m a ç ã o . Positivamente o baile de a b e r t u r a de
t e m p o r a d a fora mesmo um fracasso. E o que mais me
irritava era a d e m o r a d a ausência de Inês, que já me
preocupava. Estava n u m impasse: n ã o podia pedir
carona a n i n g u é m do Hotel, n e m me utilizar de um
táxi. Logo, todo m u n d o saberia, no baile, que u m a
moça do Sanatório S. Pedro participara da festa. Seria
um escândalo d a n a d o . Só o fato de I n ê s ter saído com
aquele rapaz, causava-me arrepios no corpo. Se e'e
descobrisse que ela era tísica, o "caso" estaria criado.
A família, pelo menos, era b a s t a n t e poderosa p a r a levar
o fato a t é as ú l t i m a s conseqüências.

Q u a n d o o relógio m a r c a v a cerca de d u a s e meia da


m a n h ã , a doidinha chegou, meia descabelada, com a
b o t i n h a suja de limbo, a calça m a n c h a d a de verde. Não
entrou no hotel. Pediu ao porteiro p a r a me c h a m a r .
E ela n ã o precisou me dizer o que fizera com o jovem,
até aquela hora. Em seus lábios bailava um sorriso
cínico.

Dirigi o carro de Inês até o Sanatório. Na e n t r a d a

120
da avenida a p e d r e g u l h a d a , porém, o motor do automóvel
enguiçou e parou, em definitivo. I n ê s soltou u m a p r a g a :
— Vai ver que este desgraçado t a m b é m está t u b e r -
culoso!
T e n t a m o s colocar o veículo em movimento, sem
êxito.

— Que fazer, Inês?


— Deixa esta m e r d a aí. A m a n h ã telefono p a r a a
oficina, lá na cidade, p a r a vir buscá-lo. Vamos a pé
mesmo.

Saímos do carro e I n ê s soltou nova imprecação:

— Xiii! Que bosta! O l h a o frio que está fazendo!

Subimos, em silêncio, a alameda. Nossos pés calca-


vam os pequenos seixos, fazendo um b a r u l h o enervante.
I n ê s a v a n ç a v a toda encolhida, rogando p r a g a s c o n t r a o
carro. De vez em q u a n d o , dizia alto:

— Q u e m gosta de velho é r e u m a t i s m o mesmo. Já


havia dito pro "Velho" que este carro n ã o a g ü e n t a o
r e p u x o . . . Assim que voltar p a r a São Paulo vou jogar
esta m e r d a no lixo. Quero um automóvel novo, p r o n t o !
I m a g i n e se estivesse chovendo, que titica ia s e r . . .

— Psiu! Silêncio, Inês! Você está falando m u i t o


alto e a n d a n d o m u i t o depressa. O Dito pode acordar
e ele é d a n a d o p r a fazer fuxico.

— Dito, o jardineiro? Ora, você, n ã o sabe que ele


foi embora? Arranjou u n i emprego em São Jose dos
Campos e . . .

— Psssiiiu! Silêncio! Olhe!

121
— Upa! Q u e m será?
Dois vultos a c a b a v a m de deixar a Casa de Hóspedes
e se dirigiam p a r a o edifício do Sanatório. Voltaram-se
q u a n d o ouviram o b a r u l h o de nossos pés nos pedre-
gulhos. C o r r e r a m rápidos a t é o barracão-depósito de
l e n h a s e desapareceram no escuro.
T u d o aconteceu n u m a fração de m i n u t o s . Inês e
eu ficamos imóveis. Não sabíamos se retrocedíamos ou
continuávamos.
— É o Tião com a miss G u a r u j á , Adelaide! Juro
q u e é!
— Eu vi t a m b é m , I n ê s ! Eu acho que são eles, sim!
Vamos c o n t i n u a r . Passaremos fingindo que n a d a vimos.
Fechei os olhos e mordisquei os lábios, t o m a d a pelo
ódio, q u a n d o passei em frente ao b a r r a c ã o de lenhas.
T i ã o fora m e s m o vencido pela i n s i n u a n t e e m o r d a z
Diana!

M a s só m u i t o s meses depois é que vim saber de


toda a verdade. As m i n ú c i a s dos fatos que passo a
r e l a t a r me foram, após mil e u m a s peripécias, c o n t a d a s
pelo dr. Sebastião. J u n t e i - a s com pedaços de fatos con-
tados por Inês.

* * *

E r a m dez h o r a s da noite. No a m p l o corredor que


dava acesso aos a p a r t a m e n t o s da ala " b " , o silêncio era
a p e n a s interrompido, vez por o u t r a , pela tosse seca das
enfermas. U m a p o r t a se abriu, v a g a r o s a m e n t e , e o rosto
de D i a n a apareceu, vasculhou o ambiente. Quase um
m i n u t o , que pareceu u m a eternidade, ela ficou nessa
posição. Seus olhos p a s s a v a m de porta em p o r t a . E,

122
q u a n d o se certificou de que n i n g u é m ouvira o b a r u l h o
que fizera p a r a abrir a porta, saiu decidida. Vestia u m a
capa de c h u v a que cobria seu "peignoir" de nylon esto-
fado. Calçava u m a s sapatilhas silenciosas. Foi indo
l e n t a m e n t e pelo corredor, voltando-se a todo i n s t a n t e ,
p a r a ver se a observavam. Ao certificar-se de que podia
a n d a r t r a n q ü i l a , n ã o m a i s voltou a cabeça.

Seguiu, resoluta, a t é o g r a n d e salão, e de lá r u m o u


a t é a ala dos curativos, p l a n t ã o de e n f e r m a g e m e resi-
dência médica. Foi direto aos aposentos do dr. Sebastião.
Não b a t e u p a r a e n t r a r . F i r m e , torceu a m a ç a n e t a ,
p e n e t r a n d o no q u a r t o do médico negro.
Na m e s i n h a de cabeceira, um " a b a j o u r " estava aceso,
i l u m i n a n d o , p á l i d a m e n t e , o recinto.

D i a n a fechou a p o r t a quase que de modo i n s t a n -


t â n e o . Recostou-se ofegante, p a t e n t e a n d o intenso n e r -
vosismo. Pos u m a de s u a s m ã o s na s u a g a r g a n t a e
engoliu em seco. Depois, t r ê m u l o , baixinho, c h a m o u
pelo médico:
— Tião...
Este, recostado na c a m a , quase sentado, com um li-
vro às mãos, caído sobre o peito, cochilava.

Abriu d e s m e s u r a d a m e n t e os olhos, assustado. Viu


D i a n a e o pavor se estampou no seu rosto. Puxou
rápido, as cobertas a t é o pescoço e encolheu ligeiro as
p e r n a s , sentando-se, m a i s ainda, n a c a m a .

— D i a n a ! D i a n a ! O que aconteceu! O que a fez


vir aqui, em m e u q u a r t o ?
— Vim vê-lo, ora! Mas fale b e m baixinho! A
enfermeira pode nos ouvir! Já pensou no escândalo?
— E riu pondo as m ã o s sobre a boca.

123
Nos seus olhos, porém, havia um brilho esquisito,
assemelhando-se a desdém. Efetivamente, n ã o infun-
d i a m confiança.
D i a n a sentou-se na c a m a , ao lado do médico negro.
— Não a d i a n t a você fugir de m i m , Tião. Eu virei
procurá-lo, de qualquer forma. Serei sua a m a n t e , a
qualquer preço. Estou decidida. Não vou t e r m i n a r a
" o n d a " c o n t r a você porque já a n d a m desconfiadas de
nós dois. Este m e u gesto seria a confirmação do que
p e n s a m a nosso respeito. .. Certo?

— Está b r i n c a n d o com fogo, m e n i n a ! Desde que


ocorreu aquele incidente entre nós, você n ã o me saiu
mais da cabeça. Mas q u a n t o mais penso em você, t a n t o
mais fujo da sua presença. É u m a união impossível
de se concretizar. Não sente isto?
— A discrição é a a l m a de u m a boa u n i ã o . . . Em
casa do enforcado n ã o devemos falar em corda. . .
Talvez nosso m u t i s m o seja até o sucesso e, sobretudo,
a continuidade...
— Não pode haver discrição no interior de um hos-
pital, Diana. Mais cedo ou mais t a r d e seremos desco-
bertos. É um risco que n ã o podemos e n ã o devemos
correr. Viu o resultado de m i n h a ida ao seu a p a r t a -
m e n t o , n a q u e l a noite? E depois, mesmo que n i n g u é m
visse ou soubesse, n ã o quero mesmo que haja qualquer
coisa e n t r e nós. M i n h a amizade por você poderá crescer,
a cada i n s t a n t e , m a s sempre espiritualmente, d e n t r o do
máximo respeito...
— F u i afoita e errei, pensando que o venceria pron-
t a m e n t e . Nossa discussão redundou naquilo. As paredes
t ê m ouvido, sim. Não fomos m u i t o prudentes. Mas,
agora, t e n h o u m plano que n ã o pode f a l h a r . . .

124
T i ã o i n q u i r i u - a c o m o s olhos.

— A Casa de Hóspedes, T i ã o ! Q u e r refúgio mais


seguro, discreto, formidável?

E explicou, com pormenores:

— M e u n o i v o n ã o está a q u i . J á d i s p e n s e i a s m i n h a s
a c o m p a n h a n t e s , m a s a p e n a s p o r u n s dias, a f i m d e
m a n t e r a residência em m i n h a s mãos. V a m o s para lá
de m a d r u g a d a . Saímos daqui à meia-noite, no m á x i m o
u m a h o r a , e voltamos às duas ou três horas da m a n h ã .
N i n g u é m poderá desconfiar de m i n h a saída. Quase
todas as e n f e r m a s p r a t i c a m fugas à noite, p a r a i r e m
a m a r na cidade. .. Q u e tal o plano?

— N ã o sei, l o u c u r a , p u r a l o u c u r a . . . — tartamu-
d e o u o dr. S e b a s t i ã o .

— A q u i está a c h a v e , seu tolo! Olhe!

E D i a n a e x i b i a , c o m o s e fosse u m t r o f é u , a c h a v e
da residência de hóspedes do S a n a t ó r i o S. Pedro.

— D i a n a , por favor, deixe de loucuras! Isto tudo


ainda vai acabar muito m a l ! Seja compreensiva!

— N ã o me deixe esperando m u i t o tempo, T i ã o .


H o j e , a u m a da m a n h ã , estarei no interior da Casa de
Hóspedes, esperando você. A t é lá.
D i a n a se r e t i r o u , lesta, s e m se voltar. No corredor
t o m o u a s m e s m a s p r e c a u ç õ e s e , p o u c o depois, d e i t a d a
d e costas o l h a v a f i x a m e n t e o t e t o b r a n c o d e s e u q u a r t o ,
ao m e s m o tempo que, nervosa, esfregava as mãos.
No apartamento fronteiro ao seu Inês a n d a v a de
um canto para outro, não menos inquieta. De quando
em quando parava no centro do quarto. Meditava e
logo v i n h a u m desabafo:

125
— "Não, n ã o pode ser. Ela n ã o teria coragem!
Mas o que t e r á ido fazer no q u a r t o dele? Os m i n u t o s
em que lá ficou n ã o d a v a m p a r a n a d a . . . "

Na verdade, a ida de D i a n a aos aposentos do dr.


Sebastião tivera u m a t e s t e m u n h a : Inês! E t u d o correra
por m e r a causalidade. Inês c h a m a r a a serviçal e esta
n ã o a t e n d e r a . Fora, e n t ã o pessoalmente à copa, p a r a
t o m a r um copo de leite. Nesse Ínterim, D i a n a saiu de
seu a p a r t a m e n t o e se dirigiu ao q u a r t o do médico negro.
I n ê s viu-a e n t r a n d o nos aposentos do dr. Sebastião. Viu
D i a n a a i n d a pelas costas, r a p i d a m e n t e , como ocorrera
à e n t r a d a da moça. Ficou à espreita e a seguiu, q u a n d o
esta se retirou. Agora estava m a t u t a n d o p a r a ver se
descobria a razão dessa "visita" àquela hora, às escon-
didas, sem q u a l q u e r t e s t e m u n h a visível.

— "Bem, vou me m a n t e r à espreita, d i a r i a m e n t e .


G u a r d a r e i segredo absoluto, até descobrir o que está
h a v e n d o e n t r e ambos. Depois, somente depois, conver-
sarei com Adelaide" — pensou, e n c e r r a n d o a bisbilhotice
e se dirigindo ao leito, onde tentou, sem sucesso, mais
u m a h o r a conciliar o sono.

E n q u a n t o isto, em seu quarto, o doutor Sebastião,


sentado na cama, com os pés p a r a fora, balouçando,
m e d i t a v a p r o f u n d a m e n t e no que a c a b a r a de ocorrer.
— "O pior é que pressinto desgraça em tudo! Oh!
m e u Deus, por q u e vim p a r a r neste S a n a t ó r i o ? " — e
com as m ã o s a p e r t a v a freneticamente a cabeça, fechando
os olhos como q u e m deseja fugir dos próprios pensa-
mentos.

A indecisão mortificava-o e, volta e meia, vigiava o


relógio. E r a um verdadeiro suplício. Os ponteiros
pareciam apostar, célebres, u m a corrida com as h o r a s .

126
Ele q u e desejava ver o t e m p o paralisado, sentia que o
relógio corria m a i s do que o n o r m a l . Logo seria u m a
h o r a d a m a n h ã e n ã o sentia coragem suficiente p a r a
atravessar a p o r t a do edifício e e n t r a r na Casa de
Hóspedes.

Levantou-se e foi à janela. Abriu-a. Lá estava a


alcova que ela lhe p r e p a r a r a , esperando-o! Dali, do
seu q u a r t o , podia perfeitamente e n x e r g a r a Casa de
Hóspedes, o local do crime! Sim, o crime que ia cometer,
possuindo a s u a i r m ã de criação! Não teria senso crítico
p a r a compreender a s u a ignomínia? E a ética, os seus
deveres? Lembrava-se, agora, da afirmativa de um sa-
cerdote: " m u i t a s vezes a h o n r a a c a b a q u a n d o a miséria
começa e o olho, que vê t u d o , n ã o se ve a si m e s m o " .
— "Mas aquele demônio é q u e m veio aqui me
t e n t a r ! Eu n ã o a procurei, Senhor! Ela é q u e m e s t á
me forçando a fazer o que n ã o quero, o que a m i n h a
consciência repudia!

E seus p e n s a m e n t o s se volatilizavam, q u e i m a v a m - l h e
o cérebro, n u m a t o r t u r a d e s u m a n a .

Voltou-se p a r a o relógio da m e s i n h a de cabeceira:


f a l t a v a m quinze m i n u t o s p a r a u m a h o r a !

R e t o r n o u à janela. A neblina n a q u e l a noite estava


fraca. Chovia miúdo, à s e m e l h a n ç a de um choro longo.
Fazia frio lá fora, m a s o consistente dr. Sebastião estava
suando. Um calor invadia-lhe todo o corpo. Suas mãos,
t r ê m u l a s , alisavam a cada i n s t a n t e o cabelo. Fincou os
cotovelos no parapeito da janela e pousou o olhar, fi-
xando-o na Casa de Hóspedes. Alimentava u m a espe-
r a n ç a , a i n d a que r e m o t a : ela estaria b r i n c a n d o com ele,
n ã o iria ao encontro. Seu único objetivo era este:
ridicularizá-lo.

127
Mas, de repente, ele se encolheu todo, como que
p r o c u r a n d o se ocultar. Seus olhos abriram-se, exagera-
damente. Lá estava ela, dirigindo-se p a r a a Casa de
Hóspedes! Sim, D i a n a n ã o iria faltar ao encontro!
Agora, a decisão dependia dele: ir ou n ã o ir, eis a dúvida
que o martirizava.

A carne, c o n t u d o , falava mais alto. O coração pa-


receu dominá-lo e o médico negro vestiu-se às pressas.
Lépido, saiu do q u a r t o , dirigindo-se d i r e t a m e n t e até a
p o r t a de saida.

Lá fora a c h u v i n h a m i ú d a a u m e n t a r a . Um vento
frio gelava os ossos. O dr. Sebastião esfregou as mãos
espalmadas, b u s c a n d o aquecer-se. Sondou, demorada-
m e n t e , todo o pátio que se limitava com o Sanatório.
Deslocou-se rápido a t é u m a das árvores e olhou o prédio,
pesquisando-o cautelosamente. Q u a n d o se certificou de
que n i n g u é m o havia visto, é que se dirigiu, resoluto,
p a r a a Casa de Hóspedes.

S u a s m ã o s t r e m e r a m , visivelmente, ao girar a m a -
çaneta.

Abriu a p o r t a e e n t r o u rápido, m e r g u l h a n d o em
total escuridão. O nervosismo a u m e n t o u . Passou a
língua pelos lábios ressequidos.

— Venha, Tião, sem r e c e i o . . .

A voz que quebrou o terrível silêncio, repercutiu


meiga, do fundo da escuridão, a m e d r o n t a n d o a i n d a mais
o médico negro.

— Onde está você, Diana?!... Onde... eu...


eu.. .
— Aqui.

128
E u m a luz de l a n t e r n a de m ã o se acendeu, ilumi-
n a n d o a p e n a s a p a s s a g e m p a r a o dr. Sebastião c a m i n h a r .
D i a n a prosseguiu:

— Nossos encontros vão ser assim Tião, no escuro.


Não podemos acender as luzes da casa. Despertaria a
a t e n ç ã o . Você concorda a p e n a s com a claridade do
"flash-light"?

— É que n ã o a vejo. Espero que m i n h a vista se


a c o s t u m e logo com essa escuridão.

O médico negro foi c a m i n h a n d o em direção ao facho


de luz, até c h e g a r bem p e r t o de Diana. Logo s e n t i u o
calor de s u a s m ã o s em seu braço, puxando-o p a r a perto
de si, obrigando-o a segui-la. O dr. Sebastião senti-a e
viu-a c o n t r a a luz. Assustou-se m a i s : D i a n a estava
completamente nua! Ele via, perfeitamente, todas as
s u a s formas!

Cínica, ela levantou o foco de luz que brotava da


l a n t e r n a e iluminou, veladamente, a c a m a . E p e r g u n t o u ,
irônica:

— Gosta?...

Depois, a t i r a n d o o "flas-light" aceso sobre o leito,


voltou-se, t e n t a n d o enlaçar o dr. Sebastião. Ela e r a
t o d a lascívia, l u x ú r i a , assemelhava-se a u m a insaciável
cadela em pleno cio!

O médico negro afastou-se, evitando o contato


direto.

— D i a n a . . . não adianta. Eu sou o médico do


S a n a t ó r i o ! O médico do Sanatório, compreende?

D i a n a estava p a r a d a no meio do q u a r t o , como a


e s t á t u a de c a r n e de u m a deusa. Seus olhos refulgiam

129
na semi-escuridão que se fizera no aposento com o pe-
queno facho de luz oriundo da cama.

Ela pareceu ficar impaciente:

— Ora, Tião, se você veio até aqui, t e m que com-


pletar sua visita! Vamos deixar de besteira! você a c a b a
m e enervando!

— D i a n a , eu vim até a q u i querendo lhe m o s t r a r


que sou b a s t a n t e forte p a r a resistir aos seus encantos.
Possuí-la n ã o seria problema. Mas eu sou dono daquilo
que você n ã o acredita que nós, os negros, temos: m o r a l ,
consciência, respeito. Vim até aqui p a r a lhe dizer q u e
deixe de ser louquinha. Agora, neste m i n u t o , você vai
se vestir e r e t o r n a r ao seu a p a r t a m e n t o !

— Tião, n ã o brinque comigo, estou lhe advertindo!


— . . . ou a m e a ç a n d o ?

— I n t e r p r e t e como quiser, m a s você vai t i r a r essa


roupa, de q u a l q u e r m a n e i r a ! Será que é insensível?
Não está me vendo? Não t e n h o aquelas formas que
a t r a e m u m h o m e m ? Será que v o c ê . . .

O dr. Sebastião i n t e r r o m p e u - a :

— Pare, m e n i n a ! Seus a r g u m e n t o s n ã o podem,


modificar m i n h a posição de respeito, aquele respeito q u e
devo ter, n ã o só por você, como pelas o u t r a s doentes
que se a c h a m sob os m e u s cuidados profissionais!

— Cuidados profissionais! — disse a moça cerrando


os dentes, n u m desdém afrontoso, o qual já d e m o n s t r a v a
estar se t o r n a n d o possessa.

— Diana...

— Onde já viu negro ser médico? Como você é

130
pretensioso! Você vai agora decidir: ou me possui ou
compra u m a inimiga irreconciliável p a r a sempre!

O dr. Sebastião olhou-a, por longo tempo. Seus


lábios t r e m i a m e seu rosto, afogueado, assemelhava-se
ao de um enfermo m u i t o febril.

— Neste i n s t a n t e , jovem, eu vejo como sou m a i s


elevado que você! Sou negro, sim, m a s t e n h o pelo m e u
s e m e l h a n t e aquele respeito que lhe falta desde t e n r a
idade. Não sinto medo de s u a s ameaças!

Virou-se, enraivecido, e t o m o u o r u m o da p o r t a de
saída da Casa de Hóspedes.

Diana pareceu ficar e n d e m o n i n h a d a . Correu ao seu


encontro e t e n t o u atingir-lhe a cabeça com os p u n h o s
cerrados:

— Desgraçado! Desgraçado! Mil vezes desgraçado!


Você me p a g a r á caro por isto!

O dr. Sebastião defendeu-se como pôde, livrando-se


do seu a t a q u e histérico. E ao abrir a p o r t a repentina-
m e n t e , u m a lufada de vendo frio fustigou toda a sala,
fazendo com que, n u a , t o t a l m e n t e n u a , D i a n a recuasse,
buscando o calor do dormitório.

O médico negro deixou a p o r t a a b e r t a e dirigiu-se,


apressado, p a r a o edifício do Sanatório. Nos seus olhos,
grossas l á g r i m a s indicavam o estado de epírito que o
martirizava.

Sofria. E em silêncio, sem confidente. Devia pa-


decer, carregava um estigma. Bem f e i t o ! . . . Que sofra
calado, q u e m a mais se atreve do que as suas forças
lhe p e r m i t e m .

O que ele n ã o sabia, e n t r e t a n t o , é que aquele en-

131
contro com D i a n a , na Casa de Hóspedes, tivera u m a
testemunha: Inês!
Ela vira q u a n d o D i a n a saíra, pouco depois, soltando
imprecações, batendo, com violência, os pés nos pedre-
gulhos.

Ela ouvira, acordada, na c a m a , o b a r u l h o da p o r t a


do a p a r t a m e n t o de Diana, q u a n d o esta saíra em direção
à Casa de Hóspedes. E também a seguira...

* * *

Os dias se p a s s a r a m com D i a n a cada vez m a i s


irascível. Seus olhos expeliam o ódio que t o m a r a c o n t a
de sua alma. Afastou-se d a s demais colegas de infor-
t ú n i o e c o n t i n u o u a a r q u i t e t a r seus planos em relação
ao dr. Sebastião.

D i a n a t e n t o u , um sem n ú m e r o de vezes, levá-lo no-


v a m e n t e à Casa de Hóspedes. O médico n e g r o estava
irredutível e se m o s t r a v a insensível aos apelos da ardilosa
moça.

E ele, por seu t u r n o , longe das visitas de Diana,


cuidando tão-somente d a s enfermas indigentes, p e r m a -
necia, pelo m e n o s na aparência, calmo. Seu semblante,
e n t r e t a n t o , n ã o conseguia esconder u m a c e r t a tristeza.

Naquele dia, t u d o dava a impressão de correr nor-


m a l m e n t e n o Sanatório.

Às dez h o r a s da noite, q u a n d o o médico se recolheu,


deparou um envelope sobre s u a m e s i n h a de cabeceira.
E r a de Diana.

Em pequeno, porém incisivo bilhete, dizia que n a -

132
quela noite, a urna h o r a da m a n h ã , esperava-o na Casa
de Hóspedes:

Tião,

Por aqueie amor que, sei, nutres por mim, e por


todo o bem que te quero, preciso ver-te, hoje, im-
preterivelmente, na Casa de Hóspedes. Nada receies.
Podes estar tranqüiilo, m a s vem, porque tenho algo
a falar contigo, que é muito importante.

Vem, sim? Não esqueças que é a uma hora da


manha.
Da tua
DIANA."

O dr. Sebastião ficou com a c a r t a em suas m ã o s


d u r a n t e m u i t o tempo, de pé, olhando, v a g a m e n t e , pela
janela.

— "Oh! Meu Deus, que fiz p a r a s u p o r t a r esta


provação? Ela n ã o desiste de me t e n t a r ! Não desiste!"
— m u r m u r a v a , m e n e a n d o a cabeça. — "Bem, irei. Não
devo d e m o n s t r a r fraqueza, n e m t a m p o u c o medo de s u a
pessoa. Afinal pode ser r e a l m e n t e algo i m p o r t a n t e . Mas
j u r o , a m i m mesmo, que é a ú l t i m a vez que vou à q u e l a
m a l d i t a C a s a ! " — e atirou, com revolta, a c a r t a de
Diana na cama.

A discussão que houve e n t r e os dois, mais u m a vez


foi violenta. Por todas m a n e i r a s , D i a n a queria u m a
a t i t u d e do médico, em relação à sua posse. Parecia
Guarujá, u m a obsessão da linda ex-miss

Na verdade, n ã o queria n a d a . O bilhete fora m a i s


um ardil p a r a a t r a i r o médico negro àquele local e
t e n t a r seduzi-lo.

133
E r a m m a i s d e d u a s e meia d a m a n h ã q u a n d o a m b o s
s a í r a m , a m u a d o s um com o outro. Lentos, silenciosos,
c a m i n h a v a m em direção ao prédio do Sanatório, pró-
ximo à s árvores frondosas. Nisto ouviram u m m u r m ú r i o
de vozes e o r u í d o de pisadas nos p e d r e g u l h o s .

Diana, voltou-se, ligeira, a p a v o r a d a :

— Tião, vem gente! Tião, nos descobriram!

Viraram-se, rápidos, e d i s t i n g u i r a m dois vultos que


c a m i n h a v a m em direção ao edifício do Sanatório, lá na
curva da a l a m e d a ! O l h a r a m p a r a os lados. T i t u b e a n t e ,
e ao m e s m o t e m p o exaltado, o médico m u r m u r o u :

— O b a r r a c ã o de lenha! Vamos, escondamos-nos


ali! Corra, D i a n a !

Os dois desaparecem no interior do depósito e a g a -


c h a r a m - s e a t r á s de enorme pilha de m a d e i r a .

— Será que nos v i r a m Tião?

— Psiu! Silêncio, m e n i n a ! Não fale n a d a ! Vamos


saber, já já, se n o s viram!

As d u a s pessoas p a s s a r a m r e n t e s ao b a r r a c ã o .
O l h a r a m , displicentemente, p a r a o seu interior. Não
p a r a r a m e s e g u i r a m p a r a o prédio do Sanatório.

O dr. Sebastião respirou, aliviado, e p a s s a n d o o


lenço n a t e s t a m u r m u r o u :

— E s t á vendo no que d ã o s u a s loucuras? Eu n ã o


t i n h a n a d a que e s t a r fazendo aqui. Vim só p a r a saber
o que você queria. Calculou se nos vissem? Seria di-
fícil convencer essas t e s t e m u n h a s que estávamos a p e n a s
conversando, à s três h o r a s d a m a n h ã , n a p o r t a d a Casa
de Hóspedes!

134
— Além de negro, é covarde! — respondeu, com
rancor, a bela Diana. — Vamos, vamos embora negro!

— Fique a i n d a aqui, moça! Temos que d a r a l g u m


t e m p o p a r a que as d u a s se acomodem. Não saia!

Mas, p a s s a n d o um bom lapso de tempo, q u a n d o se


l e v a n t a r a m e i a m sair, v o l t a r a m mais rápidos a i n d a p a r a
o interior do b a r r a c ã o : um automóvel em a l t a veloci-
dade aproximava-se do Sanatório, com seus faróis altos
i l u m i n a n d o todo o pátio!

O u v i r a m u m a freada brusca e um abrir e fechar,


n ã o m e n o s repentino, de porta. Alguém corria pelos
pedregulhos e subia, célere, as escadas, batendo,
possesso, na imensa p o r t a de vidro, fazendo enorme
barulho!

— S a n t o Deus! Todo o Sanatório vai acordar! —


exclamou, quase fora de si, o doutor Sebastião.

135
VIII

O dia a m a n h e c e r a r u i m p a r a Lilia, u m a jovem


riograndense q u e estava há m a i s de seis meses inter-
n a d a no Sanatório. Os acessos de tosse se sucediam
desde a s seis h o r a s d a m a n h ã . N i n g u é m pôde c o n t i n u a r
dormindo, apesar d a m a d r u g a d a a n o r m a l que h o u v e r a
no Sanatório. O dr. P e d r o já fora c h a m a d o e lhe m i -
n i s t r a v a remédios, no afã de c o m b a t e r a tosse e evitar
q u e a m e s m a se transformasse na sempre t e m i d a h e -
moptise. O a p a r t a m e n t o de Lilia situava-se t a m b é m na
ala " b " . E s t a moça era u m a das boas amizades q u e
formei d u r a n t e a h o s p e d a g e m no S a n a t ó r i o São Pedro.
Gostava mesmo dela. Conversamos b a s t a n t e , d u r a n t e
vários dias, e n ã o me lembro de t e r tido c o n h e c i m e n t o
de história m a i s escabrosa envolvendo m e m b r o s de u m a
sociedade, p r i n c i p a l m e n t e em se t r a t a n d o d a s elites
riograndenses, g e r a l m e n t e notável pela discrição. É
m e s m o u m a das m a i s fechadas sociedades d o país,
além de ser c a r r e g a d a de um provincianismo m a r c a n t e .
E q u a n d o presenciava os sucessivos a t a q u e s de Lília, ia
me recordando daquela t a r d e q u a n d o , no lago, Lília e
s u a bela a m i g a M a r g a r e t h s e b a n h a v a m n u a s , n a ino-
cência de seus quatorze anos. D u a s a m i g a s inseparáveis,
u n i d a s t a m b é m n a s peraltices. A inocência de a m b a s
nascia de s u a s vidas p a c a t a s , pobres, da c a l m a cidade
do interior onde viviam. Mas, n a q u e l a t a r d e t u d o fora
diferente.

Longe dos olhos curiosos, e n t r e tinham-se n a d a n d o ,


diversão predileta a que sempre se e n t r e g a v a m .

136
Passo F u n d o é u m a cidade s i t u a d a na região do
Vale do Rio J a c u í . E m b o r a o município t e n h a um terri-
tório plano, é servido, t a m b é m , por i n ú m e r o s rios e
ribeirões. Belos e m a n s o s lagos são formados por esses
rios, em locais ermos, agradáveis, convidativos. Lília
sabia de um desses lugares e lá ia sempre com s u a
a m i g a n a s t a r d e s m a i s quentes e ensolaradas. No v e r ã o
o município de Passo F u n d o chega a ter u m a t e m p e -
r a t u r a de 40 g r a u s à sombra.

O susto q u e s e n t i r a m , no i n s t a n t e em que, displi-


centes, o l h a r a m p a r a u m a d a s m a r g e n s d o lago, c a u -
sou-lhes pavor. Sim, lá estava, na m a r g e m , de pé, um
h o m e m e l e g a n t e m e n t e vestido, q u e b r a n d o d e modo m e -
tódico, e n t r e os dedos, um pequeno talo de m a t o verde.

— Olá! A á g u a está boa? Posso ir a t é aí t a m b é m ?

M u d a s , e s p a n t a d a s , n u m a situação p r a t i c a m e n t e
sem saída, a m b a s n ã o responderam. Ele insistiu:

— Como é q u e u m a loira t ã o l i n d a assim n a s c e u


sem língua? O problema de vocês é isto.

E, cínico, com ar vitorioso, exibia as r o u p a s d a s


d u a s jovens, soltando u m a g a r g a l h a d a sonora.

— Moço, por favor, vá embora, o senhor n ã o poderia


escolher o u t r a h o r a p a r a falar com a gente? — implorou,
quase chorosa, M a r g a r e t h .

— Uai! Qual a diferença em conversarmos agora,,


aqui, ou em o u t r o l u g a r ?
— Será que o senhor n ã o c o m p r e e n d e ? . . .

O moço t i n h a requintes m e s m o perversos. Riu


m a i s alto. Fez u m m o n t i n h o d a s r o u p a s d a s d u a s mo-
ças e sentou-se sobre o mesmo. No dedo indicador da

137
m ã o direita começou a rodar u m a das peças í n t i m a s de
u m a delas, p e r g u n t a n d o , desaforado:

— De q u e m é esta?
— Saia daí, saia! Vá embora! Vá! — g r i t a r a m as
d u a s moças, já revelando nervosismo na voz.
— Só se p r o m e t e r e m se e n c o n t r a r comigo hoje à
noite.
Lília adiantou-se, rápida, feliz pela proposta que
talvez fizesse com que o h o m e m fosse embora:
— Aceitamos, sim. Agora vá embora. P u x a , como
o s e n h o r é teimoso!

-— E você loira, concorda?


Ela virou-lhe o rosto, enraivecida.
— Bem, e n t ã o fico aqui, até você decidir.

Voltou-se ligeira, com ódio e s t a m p a d o nos olhos e


gritando:

— E n c o n t r o sim, ordinário!
— Não, n ã o ! Assim com raiva n ã o quero. E olhem,
n ã o t e n t e m m e e n g a n a r . Vejam n a s m i n h a s mãos.
E, i m p r u d e n t e , exibiu como troféu g a n h o na b a t a l h a ,
u m a m á q u i n a fotográfica. — T e n h o ó t i m a s poses de
vocês a q u i d e n t r o ! — explicou, vitorioso.
— O senhor é um desavergonhado! — desabafou,
Lília.
Ele se levantou, rindo, e a c e n a n d o lembrou:
— Até a noite, no Largo.

* * *

138
Na s u n t u o s i d a d e do gabinete de t r a b a l h o do presi-
d e n t e da g r a n d e i n d ú s t r i a siderúrgica, os dois h o m e n s
conversavam, t r a ç a n d o planos financeiros, indiferentes
ao calor q u e reinava lá fora, na bela avenida que cortava
a capital de n o r t e a sul. O ar condicionado dava ao
a m b i e n t e aquele frescor convidativo, a t é m e s m o aca-
riciante.
— É um golpe fabuloso, presidente. Aplica-se rela-
t i v a m e n t e pouco e os lucros s u r g i r ã o quase sem t r a b a l h o
n e n h u m , nos b a s t i d o r e s . . . g a n h a - s e fábulas!
Q u e m assim falava era u m h o m e m d e e s t a t u r a
média, de a p a r ê n c i a simpática, t r a j a n d o vistoso t e r n o de
c a m b r a i a de linho. Seus olhos miúdos, q u e se a b r i a m
e se fechavam nervosamente, diziam que estava excitado
pelo negócio que t r a t a v a com o dirigente da g r a n d e
indústria.
O h o m e m de e s t a t u r a m e d i a n a era u m a espécie de
diretor-secretário executivo da presidência de u m a d a s
maiores siderúrgicas do país. E r a m amigos íntimos,
inclusive colegas de farras, e nessa amizade, evidente-
m e n t e , e n t r a v a o dinheiro da empresa, dinheiro q u e
c a d a vez m a i s fortalecia a fortuna do secretariozinho.

— Esses negócios de títulos às vezes f a l h a m —


a r g u m e n t a v a o presidente.
— Que n a d a , h o m e m ! Hoje, em São P a u l o e Rio,
há u m a verdadeira febre de venda de títulos, letras de
câmbio no mercado. Os otários a c h a m o m e l h o r ne-
gócio do m u n d o ! Os j u r o s d e s p e r t a m a cupidez dos
q u e t ê m dinheiro g u a r d a d o e n ã o sabem o que dele
fazer! G r a n d e s i n d ú s t r i a s p a u l i s t a s e até e s t r a n g e i r a s
estão vendendo o que q u e r e m no m e r c a d o de títulos!

— Não, n ã o é verdade. Somente a l g u m a s estão se

139
a r r i s c a n d o e às vezes há correrias. Há a t é r u m o r e s de
grossa p i c a r e t a g e m nesse negócio e n ã o podemos nos
e n t r e g a r n a s m ã o s de q u e m pode, a m a n h ã , sem o m e n o r
escrúpulo, nos denunciar. Isto, velho, dá cadeia! Lem-
bra-se do " e s t o u r o " d a q u e l a firma estrangeira, lá em
São Paulo? Caiu a t é na concordata.

— N a t u r a l , lógico! Eles foram longe demais. A


g a n â n c i a , somente a g a n â n c i a é que leva u m a empresa,
nesse negócio, p a r a o vinagre. Podemos g a n h a r r.isso
m a i s d e u m bilhão cada u m , h o m e m !

— Não sei, n ã o s e i . . . E se fracassar?

— Nossa firma t e m um n o m e respeitável em todo


o país, até no Exterior. Q u e m vai t e r receio de c o m p r a r
um título de nossa responsabilidade? E o u t r a s siderúr-
gicas, a t é estrangeiras a q u i de P o r t o Alegre, t a m b é m
n ã o fazem isso? Ligando-se o n o m e da i n d ú s t r i a ao
papel, o negócio i n s p i r a r á t a n t a confiança nos riogran-
denses, que estes, apesar de n ã o g a s t a r e m m u i t o dinheiro,
vão g a s t a r com m u i t a f a c i l i d a d e . . .

— Estou u m pouco r e c e i o s o . . . Eu...

— Escuta, "velhinho", você n ã o vai assinar n a d a .


Os títulos serão lançados com a m i n h a a s s i n a t u r a .
Q u a n d o começarem a vencer p a g a m o s a l g u n s e reno-
vamos outros. Há u n s escritórios em São Paulo, Rio e
a t é aqui no Rio G r a n d e do Sul que nos fornecerão os
d o c u m e n t o s "frios" que justificarão p e r a n t e os acionistas
e o imposto de r e n d a , a d u p l i c a t a dos títulos. Duplica-
remos s o m e n t e três bilhões de cruzeiros! Conheço a i n d a
dois bancos que fazem u m a " t r i a n g u l a r " n o m e r c a d o
de títulos e os documentos provenientes dessa m a n o b r a
são u m a beleza p a r a justificar d e s p e s a s . . .

140
— Bem, p r e p a r e os planos de l a n ç a m e n t o . Quero
s e n t i r a aceitação e depois darei a p a l a v r a final —
sentenciou o presidente.
E depois, saboreando um cafezinho, p a s s a r a m a
conversar sobre o a s s u n t o predileto dos dois: a I l h a d a s
Pombas.

E r a u m a ilha u m pouco a f a s t a d a d o t u m u l t o d a
Capital e onde os milionários de Pôrto Alegre a d o r a v a m
passar os fins de s e m a n a , local quase s a g r a d o dos ricos
e onde a classe m é d i a e os pobres, em geral, n ã o t i n h a m
m e n o r possibilidade de acesso.

A I l h a d a s P o m b a s situava-se a quase vinte quilô-


m e t r o s da Capital, no rio G u i a b á perto de Sains-Souci.
Depois de percorrer por via fluvial, o rio G u i a b á ,
e s p l e n d i d a m e n t e calmo, e x a t a m e n t e n a a l t u r a d o quilô-
m e t r o 18, encontra-se o maravilhoso r e c a n t o . No início,
u m a p e q u e n a e n t r a d a , com p a v i m e n t a ç ã o d e pedra, n o s
conduz ao c e n t r o residencial, onde o espírito criador de
Niemayer concebeu um prédio de dois a n d a r e s , colocado
sobre d u a s colunas. As paredes p a r e c e m ser inteira-
m e n t e de vidro. No a n d a r superior, cercado de luxo
prodigioso, fica o a m p l o r e s t a u r a n t e que n a s noites de
festa funciona t a m b é m como opulento e o r n a m e n t a d o
salão de baile.

No térreo, existe o bar, p o n t o em. que se r e ú n e a


elite riograndina, as figuras mais representativas da
sociedade e da política de P ô r t o Alegre.
P e r t o do arejado e moderníssimo prédio há a m a i s
original das piscinas do m u n d o : foi cavada n u m a enor-
me pedra, assemelhando-se a um t a n q u e n a t u r a l . Ao
redor da piscina vemos a l g u m a s c e n t e n a s de p e d r a s
b r a n c a s , s e m i p o n t e a g u d a s . É curioso observar-se a po-

141
sição dessas pedras. N e n h u m a delas foi ali colocada
pela m ã o d o h o m e m , m a s todas s e a c h a m inclinadas n a
direção norte. Comenta-se que o vento fortíssimo, q u e
c o n s t a n t e m e n t e sopra na I l h a d a s Pombas, teria feito
com que as pedras, depois de certo tempo, se i n c l i n a s s e m
n a q u e l a direção.
Há a i n d a u m a p e q u e n a capela, também toda f o r m a d a
de pedra, possuindo um ar lírico, r o m â n t i c o .
As pedras, quase todas de cor clara, quase b r a n c a ,
é que fornecem o aspecto a t r a e n t e da Ilha, devendo ser
esta a origem do seu n o m e .
Do alto do g r a n d e prédio construído pelo gênio
Niemayer, tem-se u m a visão p a n o r â m i c a da I l h a d a s
Pombas. É algo indescritível pela beleza que a p r e s e n t a :
um vale imenso, de m a i s de cem quilômetros, esten-
dendo-se a t r a v é s das paredes de vidro, n u m espetáculo
de imponência que nos enche de a d m i r a ç ã o e poesia.

U m a empresa imobiliária encarregou-se de dar o


toque m o d e r n o à I l h a das Pombas. R u a s e avenidas
foram a b e r t a s e c o m e ç a r a m a erguer vivendas, mansões,
palácios e palacetes, ao redor do g r a n d e e luxuoso
prédio-clube.
A a r q u i t e t u r a riograndense na I l h a das P o m b a s
deu a sua m a i o r d e m o n s t r a ç ã o de pujança, bom gosto,
a r t e , beleza! É difícil dizer-se q u a l a residência mais
bela, mais a t r a e n t e , m a i s confortável. Todas são a d m i -
ráveis, além de luxuosíssimas.
No meio de residências e r u a s , d e s p o n t a m j a r d i n s
a r t i s t i c a m e n t e elaborados por a l g u m mestre floricultor
do país. Os bancos, situados quase no centro dos
canteiros, são convidativos.
Nessa I l h a d a s P o m b a s n ã o h á l u g a r p a r a meio

142
t e r m o , no que diz respeito ao dinheiro. É r a r a a m a n -
são que ali t e n h a c u s t a d o menos de 100 milhões de
cruzeiros, havendo a l g u m a s que u l t r a p a s s a r a m 250
milhões!
É em tal l u g a r que se r e ú n e m os banqueiros, os
industriais, os altos comerciantes, os políticos de s i t u a ç ã o
financeira invejável!

A I l h a das P o m b a s em t u d o se assemelha a um
paraíso terrestre, exclusivamente criado por Deus p a r a
os ricos, p a r a os multimilionários, e t o t a l m e n t e vedado
aos pobres.

É um dos m a i s famosos lugares do Rio G r a n d e do


Sul, e o orgulho dos riograndenses.

E, ali, na Ilha, o presidente da g r a n d e siderúrgica


e seu amigo íntimo, levavam a efeito os, b a c a n a i s m a i s
famosos do "high-society".
Essas farras dos dois amigos e r a m m a r c a d a s por
um divertimento especial, predileto: a m á q u i n a fotográ-
fica que d o c u m e n t a v a as facetas mais grotescas desses
encontros lúbricos, pecaminosos. E depois, no gabinete
de t r a b a l h o do presidente, se deliciavam vendo o resul-
t a d o de suas incursões no m u n d o da fotografia. R i a m
a bandeiras d e s p r e g a d a s . .. Eles t i n h a m m i l h a r e s dessas
fotos...
Q u a n t o às m e n i n a s , estas e r a m r e c r u t a d a s , a m a i o r
p a r t e d a s vezes, do interior do Estado. P r e p a r a d a s
psicologicamente, com a oferta sempre inebriante de
dinheiros fáceis, o industrial e seu amigo proporciona-
v a m , r e a l m e n t e , u m a farra inesquecível à s jovens
i n c a u t a s . H a v i a , contudo, u m aspecto grotesco nesse
" r e c r u t a m e n t o " que se fazia, ora no interior do Estado,
ora na própria Capital.

143
O i n d u s t r i a l era um h o m e m riquíssimo. D o m i n a n d o
u m a d a s maiores siderúrgicas d o país, possuía a i n d a , n a
região de Bagé, no sul-leste do Rio G r a n d e do Sul, gran-
des fazendas onde a l g u m a s c e n t e n a s de operários t r a -
balhavam. O dinheiro l h e v i n h a fácil. Dedicava-se
t a m b é m à p e c u á r i a possuindo cerca de 20 mil cabeças
d e gado. E r a , porém, d e u m a g a n â n c i a sem limites e m
se t r a t a n d o de dinheiro. P a r t i c i p a v a de q u a l q u e r nego-
c i a t a desde que esta lhe rendesse m a i s a l g u n s milhões
e x t r a s . P r o c u r a , e n t r e t a n t o , sempre fugir da responsa-
bilidade: o diretor-secretário, geralmente, era q u e m assu-
m i a o ô n u s dos problemas m a i s graves, p r i n c i p a l m e n t e
q u a n d o estes a m e a ç a v a m vir a público.

Esse g r a n d e poder financeiro do i n d u s t r i a l lhe per-


m i t i a a obtenção d a s m e n i n a s que ambicionava. Seu
secretário fazia as viagens pelo interior, visitando, demo-
r a d a m e n t e , Passo F u n d o , Pelotas, Caxias do Sul, G u a p o r é .
As vezes ia a t é S a n t a n a do Livramente, lá em baixo,
quase na divisa com o U r u g u a i . Utilizava-se de seu
avião p a r t i c u l a r , o que sempre impressionava m u i t o . . .

A escolha era efetivamente meticulosa. Ele, como


g r a n d e conhecedor de gado, ia inspecionar o r e b a n h o e
a p o n t a r a novilha m a i s c a r a . . . No caso de e n c o n t r a r
c a r n e m a i s saborosa, que d e l í c i a ! . . .

Passo F u n d o , porém, era a cidade que m a i s fornecia


c a r n e h u m a n a , fresca, saudável, jovem, à fome incon-
trolável da d u p l a de libertinos.

O q u e h a v i a de revoltante nessa escolha era o tipo


de moça a t a c a d a pelo secretário, n a s suas a n d a n ç a s pelo
interior do Estado: p r o c u r a v a sempre as famílias m a i s
miseráveis e que viviam na periferia d a s cidades. Aos
poucos ia se i n s i n u a n d o j u n t o às m e n i n a s a p a r e c e n d o

144
na casa, g e r a l m e n t e de madeira, da moça. Exibia seu
poderio econômico, a g u ç a v a a cupidez da m ã e (quase
sempre as m e n i n a s n ã o t i n h a pai) e acabava levando a
m e n i n a p a r a P ô r t o Alegre. P a r a a l c a n ç a r esse objetivo
fazia u m a a u t ê n t i c a c o m p r a : deixava largas i m p o r t â n -
cias financeiras j u n t o a familia e levava a g a r o t a pro-
m e t e n d o u m a vida de fausto p a r a a m e s m a . Na maioria
dos casos as m o c i n h a s n ã o t i n h a m mais do que quinze
a n o s de idade! O c a n a l h a " c o m p r a v a " a " c a r n e b r a n c a "
que m a i s lhe apetecia, t r a n s f o r m a v a a inexperiente me-
n i n a em s u a a m a n t e d u r a n t e a l g u n s meses e depois a
e n c a m i n h a v a a a l g u m a a m i g a que se encarregava de
colocá-la em casas de prostituição da própria Capital!

Às vezes tornava-se difícil desvencilhar-se da m e n i n a .


Ela a m e a ç a v a ir a polícia, d e n u n c i a r a atividade dos
dois p a s t r a n o s . O dinheiro, no caso, a c a b a por silenciar
os arroubos das m a i s a f o i t a s . . .

Já era impossível contar-se nos dedos o n ú m e r o de


g a r o t a s c o m p r a d a s pelo industrial sem víceras e q u e
hoje estão entregues à prostituição nos g r a n d e s centros
u r b a n o s de Minas, Rio, São Paulo e Rio G r a n d e do Sul.

A ú l t i m a viagem do diretor-secretário t i n h a sido a


Passo F u n d o e p r e s e n t e m e n t e estava saciando-se em
d u a s jovens, por u m a das quais se a p a i x o n a r a e o obri-
gava a ir s e m a n a l m e n t e àquela cidade que ficava m a i s
de 300 quilômetros de P ô r t o Alegre.

E r a a l u t a de sempre, m a s com a qual já estava


m u i t o familiarizado: no princípio sempre havia u m a
forte resistência, n ã o só de p a r t e da m o ç a como da m ã e .
Apaixonado por M a r g a r e t h , irritava-se por sentir
q u e n ã o era correspondido. T i n h a , contudo, u m forte
aliado: a m ã e da moça, que olhava sua f o r t u n a como

145
a solução dos problemas econômicos, n u m f u t u r o n ã o
m u i t o remoto. A jovem se e n c o n t r a v a com o n a m o r a d o
rico quase forçada pela ambiciosa g e n i t o r a .

A o u t r a era u m a m e n i n a de nome Lília, b o n i t a


t a m b é m , e que estava sendo psicologicamente p r e p a r a d a
p a r a pertencer ao f a m o s o e libidinoso industrial.

A ida d a s d u a s p a r a a Capital, e n t r e t a n t o , foi de-


m o r a d a , em face da notável a n t i p a t i a de M a r g a r e t h pelo
n a m o r a d o rico. E q u a n d o a m ã e insistia p a r a ser m a i s
compreensiva, ela desabafava, d e m o n s t r a n d o u m a irri-
tação quase incontrolável:

— Eu n ã o o suporto, m a m ã e . É antipático, cínico,


sem moral, e depois é b e m m a i s baixo do que eu!

— Mas sua m ã e a acalmava, cobiçosa:

— Que t e m isso, filhinha? Ele é rico, m u i t o rico!


Não deve perder este partido! Lembre-se que o a m o r
é coisa secundária. Falo com experiência própria. O
c a s a m e n t o é o t ú m u l o do amor! "Casa e verás que
b e m d o r m i r á s " , diz o ditado.

E as discussões eram. intermináveis e n t r e m ã e e


filha.

Por outro lado, a formosura da m o c i n h a enlou-


quecia o n a m o r a d o que, a p a r do ciúme doentio que o
dominava, queria transferi-la p a r a Porto Alegre, onde
seus i n t e n t o s seriam m a i s facilmente alcançados.

As várias a r r e m e t i d a s , nesse sentido, s u r t i a m os


efeitos desejados, e a filha, com a m ã e cheia de avidez,
foi m o r a r na Capital do Estado, indo residir, inicial-
m e n t e , n u m pequeno m a s confortável a p a r t a m e n t o ,
s i t u a d o no c e n t r o da cidade.

146
Lília t a m b é m foi convenientemente conquistada e
depois de sua m ã e receber trezentos mil cruzeiros, deixou
s u a cidade n a t a l , sua vida p a c a t a e ingressou no falso
fausto que o miliardário industrial lhe propiciava. Com
o t e m p o se a c o s t u m o u com as g r a n d e s b a c a n a i s da I l h a
das P o m b a s , onde ela passou a conhecer o mais luxuoso
l u p a n a s de P o r t o Alegre.

M a r g a r e t h , e n t r e t a n t o , era o segredo m a n t i d o p a r a
seu amigo íntimo.

Ela t a m b é m conheceu o famoso logradouro n u m dia


de s e m a n a , sem t e s t e m u n h a s indiscretas, e lá foi possuída
pelo noivo n u m a m b i e n t e lascivo, p r e p a r a d o h a b i l m e n t e
por ele.

A posse despertou maior a m o r pela moça, que então,


já era conhecida da sociedade mineira.

O secretário a l i m e n t a v a algo m a i s sério por Mar-


g a r e t h e passou a a c o m p a n h á - l a nos locais m a i s conhe-
cidos e freqüentados pelo que havia de mais selecionado
do a m b i e n t e social riograndino. M a r g a r e t h ficou co-
n h e c i d a de toda a cidade. S u a fotografia foi e s t a m p a d a ,
a peso de ouro, na maioria dos jornais, n a s revistas e
a t é na televisão. Mas n i n g u é m sabia a origem da moça.
O amor, os encontros fortuitos de ambos, e r a m m a n t i d o s
no mais absoluto sigilo. Em verdade, o diretor-secretário
estava p r e p a r a n d o um g r a n d e golpe financeiro em cima
do seu amigo presidente e companheiro de diretoria.
Mas o inevitável aconteceu: M a r g a r e t h ficou grávida!

O m i l i o n á r i o recorreu às suas posses, a fim de


escondê-la. A d q u i r i u o custoso "Palácio da Encosta",
n o m e como passou a ser conhecida a luxuosa residência
do diretor-secretário do g r a n d e i n d u s t r i a l do Rio G r a n d e .

147
O p a r t o ocorreu na própria m a n s ã o , tendo o auxílio
de médicos e p a r t e i r a s vindos especialmente do Rio.

M a r g a r e t h era m ã e com a p e n a s 16 a n o s de idade!

O c a s a m e n t o e n t r e ambos n ã o se realizava por dois


motivos principais: o diretor-secretário desejava que esse
c a s a m e n t o fosse o maior acontecimento social do a n o na
Capital e segundo, desejava conquistar a a m a n t e que
sabia a i n d a o repudiava. Seu ciúme, com isso, a u m e n -
tava g r a d a t i v a m e n t e . Sabia que a moça n ã o sendo
virgem., por vingança, se e n t r e g a r i a a alguém, p a g a n d o
assim, t u d o o q u e ele lhe fizera com o auxílio da própria
mãe.

F i n a l m e n t e , não foi m a i s possível esconder do g r a n -


de público e do amigo a existência do a m o r e n t r e ambos.
Teve que ficar então, oficialmente, noivo, n u m a festa
que foi comentadíssima em Pôrto Alegre.
M a r g a r e t h aos poucos ficou s a b e n d o das atividades
dos dois amigos. Lília, que já estava sendo desprezada
pelo a m a n t e , n u m a tarde, n o interior d e u m a leiteria,
contou tudo a sua amiga.
— Não serei jogada às traças, assim, não! — desa-
bafava Lília.
— Mas o que você vai fazer?
— Eu o denuncio à polícia e conto tudo, inclusive
o nome de todas as m e n i n a s que ele " c o m p r o u " no
interior do Estado! S e r á um escândalo! Ainda sou m e -
nor, é fácil lhe d a r u m a dor de cabeça que ele n u n c a
mais e s q u e c e r á . . .
E n q u a n t o as d u a s infelizes confessavam e n t r e si
s u a s desditas, o noivo de M a r g a r e t h começava a ter os
primeiros g r a n d e s tropeços financeiros. O negócio da

148
venda dos títulos estava começando a criar embaraços
p a r a a empresa. Havia falta de dinheiro e os venci-
m e n t o s estavam sendo protelados, diariamente. Nos
meios econômicos já h a v i a m r u m o r e s de " c o n c o r d a t a "
da g r a n d e siderúrgica. Os bancos iniciavam u m a série
de restrições creditícias.

A incompatibilidade e n t r e o industrial e seu amigo


í n t i m o era cada vez mais a c e n t u a d a . A situação finan-
ceira da i n d ú s t r i a era a causa desse a m u o , desses desen-
tendimentos. E a insinuação, contida n u m tópico de
um m a t u t i n o de P ô r t o Alegre, foi a gôta d ' á g u a que
os colocou definitivamente em profunda divergência:

— Você está ficando louco! Se impedir a venda de


novos títulos n ã o teremos possibilidade de cobrir o "bu-
r a c o " da caixa e t u d o vai por á g u a abaixo! A paralização
de n u m e r á r i o t e m sido porque você a n d a g a s t a n d o m u i t o
u l t i m a m e n t e e t e m faltado n u m e r á r i o p a r a p a g a r os tí-
tulos mais i m p o r t a n t e s ! Há u m a desconfiança que
poderemos eliminar com novos l a n ç a m e n t o s e conse-
q ü e n t e p a g a m e n t o das promissórias já vencidas.

— No princípio você falou em um bilhão p a r a cada


u m . Não vi a cor desse dinheiro e os títulos reclamados
a t i n g e m a mais de t r ê s bilhões de cruzeiros! Aonde
você quer que eu vá buscar essa i m p o r t â n c i a ? Pensa
que t e n h o a l g u m a m á q u i n a de fabricar dinheiro? Na
verdade, oficialmente, n ã o t e n h o n e n h u m a responsabi-
lidade na emissão dessas letras. Estão assinadas por
você. Posso t r a n s f o r m a r isso n u m desfalque e colocá-lo
na cadeia. O que a c h a disso?

— Quer dizer q u e . . .

— Exatamente, você t e m que repor os três bilhões


de cruzeiros, o mais r a p i d a m e n t e , na caixa da empresa!

149
— Mas eu vou ficar na miséria se fizer isso! Vou
ficar a r r u i n a d o !

— No fim q u e m vai ficar a r r u i n a d o serei eu. A


c o n t i n u i d a d e dessas emissões poderá nos levar à falência.
Ficarei desacreditado. E que direi aos acionistas?
— Há possibilidades de recuperação disso n u m a
o u t r a jogada financeira. Acho q u e . . .
— Chega! Chega! — gritou o presidente, cerrando
os p u n h o s e batendo-os b r u t a l m e n t e no t a m p o de vidro
da mesa. — Não a d i a n t a vir com a r g u m e n t o s chulos!
Não me convence. Nem m a i s um título, eu disse e
está decidido! Quero, a i n d a esta s e m a n a , os t r ê s bilhões
nos cofres da c o m p a n h i a !

A violência da discussão fez com que o secretário


se levantasse, inopinado, e vociferasse:
— Posso lhe assegurar que isto n ã o ficará assim.
Você vai reconsiderar esta decisão!

Ficou u m a s e m a n a sem aparecer no gabinete do


Presidente e, q u a n d o retornou, o seu destino já estava
d e t e r m i n a d o pelo amigo: n ã o podia passar da ante-sala!
O presidente n ã o mais o receberia!
Renovadas t e n t a t i v a s foram levadas a efeito, m a s
o presidente estava irredutível.
E, q u a n t o essa l u t a e n t r e os dois ex-amigos se
travava, o u t r a b a t a l h a de bastidores recrudescia: a l u t a
da g r a n d e siderúrgica p a r a sobreviver e o escândalo n ã o
vir a público. Todas as m a n o b r a s e r a m feitas j u n t o
aos veículos de divulgação. Cada c e n t í m e t r o de silêncio
era comprado a peso de ouro, t a n t o pelo i n d u s t r i a l como
pelo próprio diretor-secretário que t e m i a um escândalo
em t o r n o de seu nome.

150
Foi q u a n d o aconteceu o que n e n h u m dos dois espe-
r a v a : Lília compareceu à polícia e denunciou o presidente
da g r a n d e i n d ú s t r i a como corruptor de menores. Ela
era a p e n a s u m a das i n ú m e r a s vítimas!

O escândalo tomou proporções gigantescas. E r a


a s s u n t o obrigatório de todas as rodas. Os reflexos na
i n d ú s t r i a e r a m terríveis. Os jornais, rádio e televisões
se dividiram na defesa do industrial. As o u t r a s me-
n i n a s que t i n h a sido seduzidas pelo industrial se apresen-
t a r a m à polícia. Alguns a f i r m a v a m que era u m a c h a n -
t a g e m que se estava p r e p a r a n d o c o n t r a a empresa
desmoralizando-se o seu dirigente m á x i m o . Muitas das
depoentes e r a m p r o s t i t u t a s fichadas. Não havia, na
realidade, n e n h u m a prova palpável. As moças foram
a p o n t a d a s à opinião pública como freqüentadoras de
bordéis e o rumoroso escândalo ia g a n h a n d o âmbito
nacional.

Ao todo foram i n s t a u r a d o s 19 processos c o n t r a o


libidinoso industrial!
Do lado do diretor-secretário a situação estava n ã o
menos terrível. Atravessando u m a fase financeira das
m a i s difíceis, com seu ex-amigo fazendo a m e a ç a s espan-
tosas, foi obrigado a repor p a r t e da q u a n t i a : m a i s da
metade.
A s u a a m a n t e estava n o v a m e n t e grávida e ele pre-
cisava casar r a p i d a m e n t e . T u d o acontecera tão de
r e p e n t e que ele estava quase louco.
Naquela noite estava a c a b r u n h a d o , q u a n d o chegou
à rica m a n s ã o onde morava, em c o m p a n h i a da a m a n t e
e da genitora desta:
Perdi milhões em um negócio m a l conduzido! —
m u r m u r o u , q u a n d o interpelado pela a m a n t e .

151
A m ã e da jovem levantou-se, nervosa. Queria saber
dos pormenores e q u a n d o ele aventou a possibilidade
de ter que vender a luxuosa m a n s ã o e m u d a r - s e p a r a
o interior, a fim de recomeçar a vida, a velha e inte-
resseira s e n h o r a explodiu:
— Você está maluco? E a repercussão desse gesto?
Esquece-se que temos a g i t a d a vida social? Você n ã o
t e m amigos? T e m , sim! E u sei que t e m ! Peça dinheiro
emprestado a eles!

— Ora, deixem-me em paz! Vocês n ã o viviam n u m


casebre, com parcos recursos, no interior? Pior q u e
agora n ã o podemos viver todos j u n t o s ? Eu caso com
s u a filha e pronto, tudo fica l e g a l . . .

— Nunca! Você t e m que remediar esta situação!


— exclamou, decidida, a m ã e de M a r g a r e t h , que por
sua vez, n ã o parecia m u i t o preocupada com a perspectiva
do seu futuro.

— Não ligue p a r a isto, m a m ã e . Todos os m e u s


sonhos foram desfeitos mesmo. T e n h o u m a filha de
quase um ano, um outro de quase mês e meio no ventre,
e n e m sequer sou casada! T e n h o u m a vida falsa, m e n -
tirosa, às escondidas de todo o m u n d o . Quer escândalo
maior se descobrissem que eu t e n h o um filho ilegítimo?
Que a noiva do diretor da m a i o r siderúrgica do país
está grávida pela s e g u n d a vez? Que sou m ã e solteira?
Sinceramente, m a m ã e , a n d o t ã o desiludida que seria
maravilhoso se voltássemos mesmo p a r a o interior, longe
desse bulício, dessa elite corrompida, falida, i m u n d a !

A dicussão e n t r e os três se prolongou d u r a n t e m u i t o


t e m p o ainda, q u a n d o o ex-secretário, de repente, p a r o u
de falar p a r a abrir os olhos, imprimindo-lhes um brilho
maquiavélico. Estalou os dedos e exclamou, eufórico:

152
— Eureca! Descobri a saída! Descobri!

Deixou as d u a s quase perplexa no meio do a m p l o


salão e subiu aos saltos a escadaria que dava acesso aos
p a v i m e n t o s superiores d a m a n s ã o .

N u m a caixa que m a n t i n h a c u i d a d o s a m e n t e g u a r d a d a
no interior de um dos a r m á r i o s de seu q u a r t o , tirou
vários envelopes, e gritou, vitorioso:

— Os negativos! Ah! Os negativos! Agora ele me


paga!
* * *

Alguns dias depois o presidente da siderúrgica, ao


abrir a s u a correspondência reservada, e n c o n t r o u a l g o
que o estarreceu: a p r i m e i r a prova de u m a p e q u e n a
revista i n t e g r a l m e n t e formada por fotografias. Em t o d a s
elas estava ele, presidente da g r a n d e empresa, n a s po-
sições m a i s escabrosas possíveis, p a r t i c i p a n d o de bacanais,
n o interior d e s u a m a n s ã o , n a I l h a das P o m b a s ! Lá
estava Lília e g r a n d e p a r t e das m o c i n h a s que o h a v i a m
d e n u n c i a d o na polícia! A prova! A prova que o levaria
p a r a a cadeia! A prova que levaria sua empresa p a r a
a falência pela desmoralização total!-

N u m papel, escrito à m á q u i n a , um aviso: " E s t a r e i


hoje, às 15,00 h, na sua ante-sala, e espero ser recebido".
Não t i n h a a s s i n a t u r a , m a s n ã o era necessário. A origem
estava m u i t o b e m identificada!

— " C h a n t a g e m ! C h a n t a g e m , é o que ele vem me


propor"! — m u r m u r a v a , raivoso, v o m i t a n d o p r a g a s ,
t o m a d o de visível rancor

E e r a m r e a l m e n t e quinze h o r a s q u a n d o , p a r a e s p a n t o
da maioria dos funcionários do gabinete, o presidente
mandou entrar o s e u ex-secretário, o homem que dera

153
um desfalque de mais de três bilhões de cruzeiros, quase,
levara a empresa à falência!
— Qual é o seu preço, c a n a l h a ? — vociferou o
presidente, t ã o logo seu ex-secretário e n t r o u na Sala.
— Calma, h o m e m ! O que é isto? Deixa-me olhar
essa sala de tão g r a t a s recordações! Confesso que estava
com s a u d a d e disso tudo! Pensei que n u n c a mais
entraria aqui. ..
Havia u m a ironia e n e r v a n t e na voz e nos gestos
do ex-secretário.
O a m b i e n t e estava pesado.

— Q u a n t o ? p e r g u n t o u , com r a n c o r na voz, e lacó-


n i c a m e n t e , o presidente.
— Xiii! Como você está c h a t o , hoje!
— Quanto? Quanto? Não quero m u i t a conversa!

— Afinal você deveria t r a t a r com mais carinho,


com mais atenção, q u e m foi o seu m a i s a u t ê n t i c o se-
c r e t á r i o p a r a os negócios sexuais, n ã o a c h a ? Você sabe
qual é o preço. Tive que repor m a i s de um bilhão na
caixa da empresa. T e n h o um " r o m b o " ai que a i n d a
n ã o foi coberto. Quero um d o c u m e n t o seu, assinado,
c o m firma reconhecida — temos um tabelião em que
podemos confiar — e através do qual você a s s u m e t o d a
a responsabilidade pelo " b u r a c o " e vai repor centavo
por centavo. O que fiz foi só c u m p r i r ordens suas. É
o que dirá nesse d o c u m e n t o . T e n h o a i n d a a l g u m a s dí-
vidas g r a n d i n h a s que a sua insensatez contribuiu p a r a
que eu adquirisse.

— Q u a n t o ? — insistia, cada vez mais nervoso, o


presidente.

154
— Trezentos milhões!
— Você está ficando louco! É muito!
— Trezentos milhões de cruzeiros! Quer que eu
repita, m a i s u m a vez? Quero trezentos milhões de
cruzeiros!
Houve u m silêncio sepulcral na ampla sala da
presidência.
O presidente olhou-o, rancoroso. Seus dedos t r e -
m i a m , d e m o n s t r a n d o a profunda t e n s ã o nervosa de que
estava acometido. F i n a l m e n t e declarou:
— Dou a m e t a d e !
— E n t ã o , a t é logo. M a n d a r e i fazer as revistas e
as distribuirei por toda P ô r t o Alegre, além de e n t r e g á - l a s
à Lília p a r a que ela anexe ao processo que já está no
fórum. Há a i n d a um texto que n ã o foi composto e
que t o r n a r á a I l h a das P o m b a s o l u g a r m a i s famoso
do Brasil!

Sorriu e deu um sinal de a d e u s com as mãos.

Não chegou a virar-se. O presidente quase gritou:


— Espere, c a n a l h a ! Eu dou o dinheiro! Não é
possível, contudo, d a r de u m a só vez. Darei em três
parcelas.
— ó t i m o , vejo que já começou a t o m a r juízo. Mas
os negativos, só os terá, na totalidade, q u a n d o efetuar
o ú l t i m o p a g a m e n t o . O.K.?
— D a q u i a u m a s e m a n a darei a primeira parcela
d e 100 m i l h õ e s . . . e . . .

— E s t á ótimo! ótimo! ótimo! — interrompeu


o e x - s e c r e t á r i o . — Mas h á algo m a i s que desejo: a p a r e n -
temente fizemos as p a z e s . . .

155
— Sem pazes! Sem r e t o r n o a q u a l q u e r vislumbre
de amizade! — gritou, mais nervoso ainda, o presidente,
t e n t a n d o impedir que o moço continuasse.
— Calma! Calma, h o m e m ! Deixe - m e c o n c l u i r ,
depois você responde, ora!

— Você é um verme! O verme mais podre que


Deus jogou sobre a face da terra! Descobri que você
deu u m a p e q u e n a f o r t u n a p a r a cada u m a dessas p u t i -
n h a s p a r a que elas m e acusassem n a policia! Não
quero vê-lo na m i n h a frente! Você é o a u t o r intelectual
de toda essa podridão que está explodindo por todo
P ô r t o Alegre.

— Você tem que me ouvir, h o m e m !

O presidente ficou em silêncio como que esperando


a s e g u n d a p a r t e da proposta. E ele c o n t i n u o u :
— Nossa amizade somente findará por ocasião do
último pagamento. Daqui a um mês vou me casar.
Quero seu apoio p a r a t r a n s f o r m a r isto n u m aconteci-
mento social sem precedentes em Pôrto Alegre.
— Impossível! Todo Pôrto Alegre sabe o que você
fez comigo!
— Eu exijo que assim seja! E lembre-se, eu estou
em condições de exigir. Você não.
E encaminhou-se p a r a a porta, como que e n c e r r a n d o
a discussão. De súbito voltou-se, sorrindo:

— Até o dia 15, i r m ã o !

Q u a n d o o ex-secretário chegou à m a n s ã o da encosta,


estava eufórico.
O c a s a m e n t o foi logo discutido e m a r c a d o p a r a d a í

156
a um mês. Não seria possível esperar mais, em virtude
do estado da noiva: dois meses quase de gravidez!
* * *
— Não me casarei vestida de noiva, m a m ã e ! Isto
é u m a afronta a Deus! Não sou virgem e já t e n h o
quase dois filhos! Não, m a m ã e , t e n h o a t é v e r g o n h a
de p e n s a r nisto!

— Você ficou doida, m i n h a filha? E o escândalo?


Precisamos m a n t e r as aparências! Onde já se viu?
Você vai casar com um dos h o m e n s mais ricos do Rio
G r a n d e do Sul! Toda a sociedade vai prestigiar o
g r a n d e acontecimento social e n ã o quer se casar vestida
de noiva? Não pensa na coitada de sua mãe? Não
pensa na sociedade que você freqüenta?

— M a m ã e , n ã o posso!

— Pode, sim, e vai casar-se como toda moça n o r m a l


se casa!

— Só no civil, m a m ã e ! E lembre-se, vou me casar


com u m h o m e m que detesto!
* * *
A igreja estava m a r a v i l h o s a m e n t e o r n a m e n t a d a de
rosas b r a n c a s . O órgão d e r r a m a v a no recinto os acordes
da m a r c h a nupcial, e n q u a n t o o coro, bem ao fundo,
t o r n a v a m a i s suave a i n d a o interior do templo super-
l o t a d o , repleto de amigos e curiosos que desejavam ver
a íouríssima e linda noiva do a n o !

Lá estava o Governador do Estado, em pessoa, pres-


tigiando a solenidade religiosa. Todo o secretariado do
governo achava-se presente e as figuras m a i s represen-
t a t i v a s da sociedade exibiam os custosíssimos trajes.
E r a o g r a n d e acontecimento social da cidade!

157
Um longo m u r m u r i o correu por toda a nave da
igreja q u a n d o a bela M a r g a r e t h e n t r o u no templo e
desfilou, meiga, corada, pelo corredor, em direção ao
altar.
D i a n t e do altar, os olhos tristes da moça encararam
a i m a g e m de Jesus e d u a s l á g r i m a s p r i n c i p i a r a m a se
formar no c a n t o dos olhos.
Eia estava toda de branco, com um enorme véu e
a grinalda onde n ã o f a l t a v a m o s . pequenos r a m o s de
laranjeiras, indicando pureza!
Ali estava ela, representando a c a s t i d a d e p e r a n t e o
a l t a r de Cristo, tendo um filho no ventre de quase t r ê s
meses!
Seus olhos e s t a v a m tristes, porém ela conseguiu
sorrir p a r a a m u l t i d ã o de fotógrafos que se acotovelava,
a t r á s do sacerdote que abençoava o casal. E foi com
esse sorriso luminoso que ela saiu na capa de várias
revistas i m p o r t a n t e s do país!
Q u a n d o a siderúrgica, lá está ela, i m p o n e n t e , repre-
s e n t a n d o o poder econômico imbatível! Ela se recuperou
t o t a l m e n t e . Todas as moças r e t i r a r a m a queixa c o n t r a
o g r a n d e industrial e Lilia teve um t r a t a m e n t o especial.
C o n t i n u o u a freqüentar a sociedade, m a s a sua vida de
devassidão lhe afetou os pulmões e hoje se e n c o n t r a v a
i n t e r n a d a n u m rico sanatório p a r a tuberculosas, e m
Campos do J o r d ã o .
Mas q u e m quiser conhecer maiores detalhes desse
escândalo que abalou a sociedade r i o g r a n d i n a pode en-
c o n t r a r no F ó r u m de Pôrto Alegre o volumoso processo,
arquivado, é verdade, m a s como d o c u m e n t o da g r a n d e
devassidão que há nos bastidores das elites, que t e i m a
em se a p r e s e n t a r com u m a capa de austeridade que é
a pior prova de sua falsidade.

158
IX

Tenho a t é hoje m a r c a d o s , indelevelmente em m e u


espírito, os horrores das cenas a que assisti e que j a m a i s
olvidei. Parece-me, a t é agora, que fui, n a q u e l a s h o r a s ,
a t r a í d a espiritualmente p a r a aquele local, e Deus me
deu a infelicidade de ver aqueles acontecimentos p a r a
que fosse t e s t e m u n h a do crime!

Naquela noite saíra com o dr. Pedro p a r a d a r u m a s


voltas e esquecer, m o m e n t a n e a m e n t e , os problemas que,
n a s ú l t i m a s horas, h a v i a m surgido no Sanatório.

A Madre t i n h a conversado seriamente comigo e


t u d o indicava que ela estava b a s t a n t e aborrecida com
os fatos ocorridos na ú l t i m a m a d r u g a d a , envolvendo o
t u r i s t a de Campos do J o r d ã o e Inês. Por mais q u e
a r g u m e n t a s s e , foi-me de todo impossível convencer a
responsável pelo Sanatório que eu n a d a tivera com a
saída da jovem tuberculosa. Ela, pelo m e n o s no seu
íntimo, entendia que eu havia persuadido Inês a passear
comigo e o resultado fora aquele escândalo que a c o r d a r a
todo o hospital, às três h o r a s da m a n h ã !

Prometera à Madre que nos próximos dias, e n t ã o ,


deixaria S. Pedro, a fim de que n ã o me fossem a t r i b u í d a s
as peraltices d a s enfermas.

Foi u m a d a s ú l t i m a s vezes que me avistei com a


Madre. E, desde aquele i n s t a n t e em que conversáramos,
e n t r e i em g r a n d e m u t i s m o , tristeza que n e m as m a l u -
quices de Belinha e I n ê s conseguiram modificar.

159
Saíra às escondidas do Sanatório. Não queria q u e
a Madre tomasse conhecimento de que me e n c o n t r a v a
fora. Se houvesse a coincidência com a saída de a l g u m a
enferma, c e r t a m e n t e as discussões recrudesceriam.

Estivemos no Pico do Itapeva, visitamos a " C a b a n a


do Tarzan", quando, de repente, os primeiros relâmpagos
c o m e ç a r a m a riscar o céu negro, a n u n c i a n d o uma
borrasca inesperada:

— Dr. Pedro, vamos embora, s ã o quase d e z h o r a s .


A c h u v a vem vindo aí, feia como ela só. Não quero
que a Madre perceba a m i n h a saída.

O carro do dr. Pedro cortava veloz as estradas, na


direção do Sanatório. Nuvens p a r d a c e n t a s , sombrias,
p a i r a v a m à baixa a l t u r a , correndo sobre as colinas como
m o n s t r o s v a g a n d o pela noite escura. Os trovões e r a m
contínuos, estrondosos, e um vento sibilante vergava as
árvores mais copadas.

Nas imediações do S a n a t ó r i o desci do automóvel


do médico. Não queria que ele fosse a t é a p o r t a do
prédio, a fim de que n ã o ouvissem o b a r u l h o do m o t o r
e c h a m a s s e a a t e n ç ã o da I r m ã Francisca, descobrindo-se,
assim, que eu havia saído.

Preferi fazer aqueles quase mil metros a pé, m u i t o


embora a noite estivesse n e g r a como a consciência de
u m criminoso n a t o .

Mal o carro do dr. Pedro desapareceu na primeira


curva da estrada, os primeiros pingos grossos d ' á g u a
c o m e ç a r a m a cair. Foi u m a t e m p e s t a d e rápida, violenta,
que em poucos m i n u t o s me tirou t o t a l m e n t e a visão.
Corri como louca, conseguindo a l c a n ç a r o depósito de
lenhas, onde busquei abrigo c o n t r a a borrasca que caía

160
impiedosa, sincopada de trovões assustadores e relâm-
pagos m a i s terríveis ainda.

Subi n u m a pilha de lenha, bem alta, e me deitei


ali, ofegante, com o vestido quase todo molhado. No
telhado de zingo, os pingos d ' á g u a se assemelhavam, ao
som de um m e t r a l h a r contínuo. A cada m i n u t o me
assustava mais.

Rebentava u m a dessas tempestades c u r t a s que, volta


e meia, assolam Campos de Jordão. E, nem. passados
dez m i n u t o s , o r i t m o violento arrefeceu e logo se t r a n s -
formou n u m a c h u v a m i ú d a , fina, gelada.

Apressava-me p a r a sair de cima da pilha de m a -


deiras, q u a n d o ouvi u m a corrida de pés sobre os seixos
molhados da alameda. Vi dois vultos, de mãos dadas,
e n t r a r e m rápidos no depósito de lenhas!

Reconheci logo um deles: era Diana, com seus


pretos cabelos esvoaçantes, em rebuliço, de vestido mo-
lhado colado ao corpo.
Seu a c o m p a n h a n t e vinha com um capuz na cabeça,
formado por um saco de estôpa, caído pelas costas,
protegendo-se da chuva. Não dava p a r a reconhecer o
p a r de Diana.

Aquela e n t r a d a brusca, no interior do depósito,


t o r n a r a - m e m u d a , estática. N e m respirava, com receio
de ser descoberta!

— Fique aqui, escondido, j u n t o dessas madeiras.


N ã o fale nada. Eli O trarei até este p o n t o . Espere que
logo voltarei.

A voz de D i a n a era imperativa, mas denotava


g r a n d e nervosismo.

161
A pessoa com q u e m ela falava p u x o u um Cigarro e
j u n t a n d o a s d u a s m ã o s e m forma d e concha, p a r a evitar
o vento, riscou o fósforo.

— Dr. Sebastião! — exclamei, a p a v o r a d a e sobr-


t u d o , decepcionada.

A luz do fósforo i l u m i n o u o suficiente p a r a que lhe


visse as m ã o s n e g r a s , b r i l h a n t e s , as faces escuras, m u i t o
embora o capuz escondesse quase toda a sua fisionomia.
A luz contribuiu, a i n d a , p a r a eu c o n s t a t a r o t r e m o r
violento que t o m a v a c o n t a das m ã o s do negro,

Ali, encostado a t r á s de u m a p i l h a de m a d e i r a , com


olhos esbugalhados, eu via, de modo i n s t a n t â n e o , fugaz,
o rosto do médico n e g r o se i l u m i n a r q u a n d o ele levava
o cigarro à boca e absorvia a fumaça.

A c h u v a começou a a p e r t a r n o v a m e n t e e o b a r u l h o
ensurdecedor dos pingos d ' á g u a , t a m b o r i l a n d o sobre o
t e l h a d o de zinco, voltou a invadir todo o depósito de
lenha. Relâmpagos z e b r a r a m o céu negro, n u m espe-
táculo apavorante.

Foi neste i n s t a n t e que D i a n a e n t r o u na casa de


l e n h a s , a c o m p a n h a d a do noivo.

— Vamos esperar aqui — disse, ofegante, a jovem.

— Você t e m certeza, querida, que ele virá?

— Eu lhe disse que provaria, n ã o disse? Vamos


m a i s p a r a o fundo porque os respingos de c h u v a estão
aumentando muito.

Eu assistia a t u d o sem. n a d a compreender. O que


n o t a r a era a p r o f u n d a tensão nervosa de D i a n a , cuja
voz estava rouca, g a g u e j a n t e , misteriosa. A friagem da
noite e da roupa m o l h a d a lhe dera repetidos a t a q u e s

162
de tosse, que e r a m abafados pelo b a r u l h o da c h u v a
caindo no t e l h a d o do depósito de l e n h a s .

O vulto do dr. Sebastião havia apagado, rápido, o


cigarro, à e n t r a d a dos dois. Pisara a p o n t a , esfregan-
do-a, a fim de que n a d a fosse percebido. Encolhera-se
mais, a t r á s das m a d e i r a s . Seus olhos luziam no escuro.

O noivo de D i a n a foi se a p r o x i m a n d o do l u g a r onde


o médico negro se e n c o n t r a v a e ficaram ali, conversando
baixinho.

De repente, a s o m b r a do dr. Sebastião pulou como


um gato sobre o noivo de D i a n a ! Numa das mãos
trazia u m a a c h a de l e n h a que desceu sobre a cabeça
do r a p a z !

P r a t i c a m e n t e , n ã o houve t e m p o de reação! Tudo


fora inesperado, a p a v o r a n t e , terrível!

— Bata mais! Mais! Mais! — gritava Diana,


como que t o m a d a de intenso histerismo.

Os relâmpagos i l u m i n a v a m r e p e t i d a m e n t e aquela
cena tétrica e eu me sentia desfalecer de pavor.

— Mata! Mata!

E D i a n a parecia louca, com os cabelos molhados,


caídos sobre os ombros, e enorme q u a n t i d a d e g r u d a d a
na face e na t e s t a ! Seus olhos, i m e n s a m e n t e abertos,
compIetavam-lhe a demência!

o terror apossou-se de m i m . Perdi os sentidos.

Q u a n d o acordei, o depósito estava vazio. A chuva,


bem mais fraca, c o n t i n u a v a a cair. Olhei, l e n t a m e n t e ,
p a r a o local, onde pouco a n t e s assistira ao terrível crime.
T i n h a receio de abrir os olhos. Quisera que t u d o n ã o

163
tivesse passado de a n g u s t i a n t e pesadelo. Fui-me a r r a s -
t a n d o pelas pilhas e emergi n a b e i r a d a com os olhos
fixos no chão, p a r a logo em seguida dar um grito de .
desespero!

Lá estava o corpo do n o i v o de D i a n a , com a cabeça


toda esfacelada, os olhos esbugalhados, parados, como
que me fitando, i m p l o r a n d o o m e u t e s t e m u n h o !

Despenquei-me da pilha de m a d e i r a s e corri, ater-


rorizada, p a r a o edifício do Sanatório.

Não sei como atingi o m e u a p a r t a m e n t o . Caí na


c a m a vestida e e n c h a r c a d a como estava, t o m a d a de um
choro convulsivo. E r a um alívio tonificante p a r a os
m e u s nervos que, d u r a n t e t a n t o tempo, estivera à flor
da pele!

— "Ele é um assassino! Um assassino! E t u d o por


c a u s a daquela cadela! Oh! Meu Deus! Toda a m i n h a
l u t a , os m e u s ideais, destroçados p e r a n t e essa c a m b a d a
que a m a n h ã e s t a r á c o m e n t a n d o o c r i m e ! " — E u m a
seqüência de p e n s a m e n t o s , ia me m a r t i r i z a n d o . A cena
do crime se repetia, a todo o i n s t a n t e , na m i n h a m e n t e .
Via a chegada, pela primeira vez, do dr. Sebastião ao
Sanatório, o nosso encontro, e as cenas deprimentes,
logo à e n t r a d a do edifício, com todas as enfermas mi-
lionárias lhe a t i r a n d o em pleno rosto os pequenos b u q u ê s
de flores de pereiras, que a n t e s h a v i a m p r e p a r a d o com
t a n t o carinho p a r a a recepção do novo médico. Em
m i n h a cabeça louca, repetia-se, a cada m o m e n t o , t u d o
a que assistira naquele Sanatório maldito! As cenas
de Diana t e n t a n d o seduzir o dr. Sebastião e o violento
t a p a que ele lhe dera! E r a um r o d a m o i n h o incessante,
n u m t u r b i l h ã o que me atirava, a cada m i n u t o , às t o r t u r a s
da insónia!

164
Abri os olhos pela m a n h ã , com I n ê s me sacudindo:

— Acorde, m u l h e r ! Acorde!

Levantei-me, em sobressalto, com os olhos desmesu-


r a d a m e n t e abertos.

— Upa! O que há com você? Parece que a farra


de o n t e m à noite foi das boas! Dormiu vestida!
Eu, hein!

— Ora, Inês, deixa de brincadeiras. Estou a i n d a


zonza!

— Menina! Houve um crime pavoroso esta noite


no Sanatório! M a t a r a m o noivo de D i a n a a p o r r e t a d a ,
lá d e n t r o do depósito de lenhas! Há um rebuliço d a n a d o
aí! Vamos, levante, porque a coisa está feia mesmo!

— P r e n d e r a m o criminoso? — quis saber, quase


fora de m i m .

— Sim, querida, e n ã o podia ser m e s m o outro.


P r e n d e r a m o dr. Sebastião! A D i a n a fez um banze dos
diabos! Ela está inconsolável, coitadinha!

— Desgraçada! Aquela desgraçada! Assassina, des-


graçada! — gritei, l e v a n t a n d o os p u n h o s cerrados.

— Ué! E s t á ficando louca? O que está havendo


com você?

— Nem sei, Inês. Estou a i n d a sob o i m p a c t o


daquilo que vi. Mais t a r d e eu lhe conto. J u r o que
estou c o m p l e t a m e n t e t o n t a .

Levantei-me e me dirigi p a r a a pia. Molhei, demo-


r a d a m e n t e , o rosto na á g u a fria. umedeci a n u c a ,
t e n t a n d o c o m isto eliminar a terrível dor de cabeça que
me atormentava.

165
F u i até o terraço, a t r a í d a pelos m u r m u r i o s que vi-
n h a m do pátio central, em frente do Sanatório.

Lá estava o jeep preto-branco da polícia de C a m p o s


do Jordão. Varios policiais se e n c o n t r a v a m espalhados
pela p e q u e n a p r a ç a fronteira do prédio.

Olhei mais p a r a baixo, l á n a c u r v a d a a l a m e d a ,


perto da Casa de Hóspedes. O depósito de l e n h a s t a m -
bém estava guarnecido por policiais.

Não se avistavam enfermas no pátio. Somente


funcionárias em. g r a n d e n ú m e r o , a maior p a r t e consti-
t u í d a de curiosos. A I r m ã Francisca estava no alto
da escada e dali mesmo dava p a r a perceber o intenso
nervosismo que a dominava.
Notei, e n t ã o , que em quase todas as sacadas do
edifício, as doentes se acotovelavam, interessadas em
assistir ao desenrolar dos acontecimentos fora do S a n a -
tório. A Madre d e t e r m i n a r a , logo, o recolhimento das
m e s m a s aos seus a p a r t a m e n t o s , a fim de que a polícia
pudesse t r a b a l h a r t r a n q ü i l a . Os terraços foram a
"escapulida" de cada doente curiosa.

Virei-me p a r a a m i n h a vizinha de q u a r t o . As janelas


achavam-se h e r m e t i c a m e n t e fechadas. N i n g u é m n o
t e r r a c i n h o de D i a n a !

Fiquei cismada. Deixei, i n o p i n a d a m e n t e , Inês so-


z i n h a no m e u terraço e corri p a r a a p o r t a de m e u
a p a r t a m e n t o . Abri-a, rápida, e entrei no corredor, pro-
c u r a n d o a l c a n ç a r o a p a r t a m e n t o de Diana. Parei de
chofre! Quase dera de encontro com um guarda-civil,
que estava de pé, na porta, ali, como se fora u m a sen-
tinela! D i a n a estava presa, como suspeita do crime!

Olhei d e m o r a d a m e n t e o guarda-civil. Um sorriso

166
m i ú d o despontou no c a n t o de m e u s lábios. Retornei
aos m e u s aposentos e p e r g u n t e i , com ar ingênuo, a I n ê s :

— O que e s t a r á aquele polícia fazendo na p o r t a do


a p a r t a m e n t o de D i a n a ?

— Ora, todo m u n d o sabe que o dr. Sebastião é o


assassino. Aliás, foi ela q u e m deu o a l a r m e , mais de
qualquer m a n e i r a está sob suspeita. E enquanto não
fizer declarações, n ã o pode sair do seu a p a r t a m e n t o .

— Presa? — I n t e r r o m p i .

— . . . n . . . n . . . não. Sob custódia policial, di-


gamos. É melhor, soa m e l h o r . . . Afinal q u e m m a t o u
foi um preto nojento. Ou você a c h a que D i a n a iria
m a t a r o próprio noivo? Além do mais aonde iria buscar
força p a r a l e v a n t a r aquele porrete e descer na cabeça
do coitado? Dizem que a m a d e i r a utilizada é deste
t a m a n h o . . . — e, com as mãos, I n ê s p r o c u r a v a m o s t r a r
as dimensões da a r m a do crime.

— B e m . . . ela poderia se valer do auxílio de


a l g u é m . . . — insinuei, p r o c u r a n d o d e m o n s t r a r u m a
c a l m a que n a realidade n ã o possuía.

— Ora! E quem iria auxiliá-la? Qual o interesse?

— Não sei, não. Talvez t u d o isto seja besteira.


Nem atino o porquê de nossa c o n v e r s a . . .

— Espere! Você despertou algo que talvez t e n h a


f u n d a m e n t o . Veja bem: D i a n a n ã o v i n h a u l t i m a m e n t e
saindo com o médico negro?
Fiz-lhe um gesto sem sentido, n a d a respondendo
efetivamente.
— M u i t o bem. Que eles estavam se e n c o n t r a n d o
na Casa de Hóspedes, n e m você t e m dúvidas. Nós d u a s

167
vimos n a q u e l a noite em que fomos ao baile de a b e r t u r a
da temporada, no G r a n d e Hotel. E, olhe, eles conheciam,
t a m b é m o depósito de lenhas, porque, q u a n d o nos viram,
correram p a r a lá. Lembra-se?

— Mas a que vem tudo isto, Inês?

— Ora, eles se a m a v a m mesmo e o noivo era um


empecilho. O dr. Sebastião c e r t a m e n t e a t r a i u o noivo
de D i a n a p a r a u m a cilada e, ali, deu cabo dele. Simples,
não acha?

— s i m , t u d o m u i t o simples "dr. Watson." Mas


responda, porque, então, D i a n a acusou o dr. Sebastião,
se tudo era um plano a r q u i t e t a d o por ambos?

— B e m . . . b e m . . . ora, n ã o encha! Não sei por


que. Isto é lá com a polícia. Eu estava a p e n a s dedu-
zindo, m a d a m e . . .

— Afinal, o que D i a n a alegou, p a r a a polícia a c u s a r


o dr. Sebastião? Qual a prova que apresentou?

— T u d o a i n d a é fofoca. Ninguém sabe de nada.


Só depois que a polícia for embora e que vamos saber
de a l g u m a coisa. Olhe! Veja! Lá vai o assassino
preso!

Virei-me, rápida, p a r a a p o r t a central de e n t r a d a


do Sanatório. Com efeito, lá estava o dr. Sebastião,
algemado conduzido por dois policiais e sendo forçado
a e n t r a r na v i a t u r a policial.

O médico d e m o n s t r a v a profunda prostração física.

Com s a n g u e a gelar m i n h a s veias e a g a r g a n t a


queimando, estremeci q u a n d o encontrei seu o l h a r de
desespero. Parecia despido de alma. Olhava meio
boquiaberto p a r a todos os lados e dir-se-ia n ã o saber o

168
que fazer com as m ã o s algemadas. Fiquei profunda-
m e n t e chocada com o seu aspecto. As costas e s t a v a m
arqueadas, como sob a carga de t r e m e n d o peso.

Um m u r m ú r i o foi crescendo de todas as sacadas,


q u a n d o o médico negro descia as escadas em direção
ao carro da polícia. E r a a desaprovação quase t o t a l
de todas as enfermas, pelo crime hediondo que o médico
cometera.
A Madre superiora n ã o se conteve e desceu as
escadas quase correndo. Voltou-se p a r a as sacadas,
g r i t a n d o em t o m imperativo, lá do p á t i o :
— As senhoras todas! Todas, ouviram? Recolham-se
aos seus aposentos! Vamos, j á !
Houve um início de g r a n d e alvoroço e pouco depois
u m a dezena de p o r t a s de vidro b a t i a m r u i d o s a m e n t e ,
em sinal de protesto pela ordem da Madre.
Retirei-me, l e n t a m e n t e , do pequeno terraço, em
t e m p o de ver ainda a v i a t u r a policial seguindo, já em
velocidade, pela alameda, p a r a logo desaparecer na
primeira curva.
No seu interior seguia o médico negro sobre q u e m
pesava a a c u s a ç ã o de ter assassinado, com requintes de
p e r v e r s i d a d e , o noivo de u m a das enfermas! O noivo
de s u a i r m ã de criação!

As provas c o n t r a o dr. Sebastião se a c u m u l a v a m


cada dia que passava. U m a camisa e um t e r n o s e u
foram encontrados cobertos de s a n g u e , já ressecado,
embrulhados, escondidos n u m a touceira quase fora do
terreno do Sanatório. Um serviçal descobrira o e m b r u l h o
em pleno t r a b a l h o rotineiro.

169
— Reconhece esta camisa? — vociferava o policial
exibindo a vestimenta ao médico desconsolado.
— Sim, é m i n h a , sim! Mas j u r o que n ã o sei como
ela foi p a r a r naquele lugar. Não m a t e i n i n g u é m ! J u r o
que estou inocente! J u r o !
A negativa, os protestos de inocência do médico
negro, só serviam p a r a i r r i t a r mais a i n d a a a u t o r i d a d e
policial. P a r a o delegado de Campos do J o r d ã o aquilo
era um crime esclarecido e cujas provas n ã o d a v a m
m a r g e m a q u a l q u e r dúvida. A peça policial, contudo,
n ã o t i n h a o d o c u m e n t o básico, decisivo; a confissão
do réu!

Este, ao contrário, obstinava-se, n u m a negativa que


d u r a v a dias. Não t i n h a o m e n o r álibi p a r a provar sua
inocência. N a d a sabia esclarecer sobre a existência de
suas r o u p a s sujas de sangue. O laudo da polícia técnica
de São P a u l o n ã o deixara dúvida: o s a n g u e da vítima
era o mesmo que m a n c h a v a a camisa e o t e r n o do dr.
Sebastião.
A prisão preventiva do médico assassino já fora soli-
citada e a Justiça, n a s próximas h o r a s , deveria se
pronunciar.
O delegado comparecera pessoalmente ao S a n a t ó r i o
e fizera o interrogatório de Diana, peça f u n d a m e n t a l
d a acusação.

D i a n a aparecia n o inquérito como u m a t e s t e m u n h a


quase ocular do crime!

R e l a t a r a à a u t o r i d a d e policial que, cerca de dez h o r a s


da noite, c h a m a r a repetidas vezes a copeira. Queria
um copo de leite. Além do m a i s estava a t a c a d a de
u m a insónia terrível. A c h u v a forte que caía contribuíra
m u i t o p a r a a sua falta de sono.

170
Sem resposta da copeira, resolvera levantar-se e ela
m e s m a , pessoalmente, dirigir-se à copa e t o m a r o leite.

— O q u a r t o do dr. Sebastião — acusou a moça —


ficava quase ao lado da copa. No c a m i n h o p a r a aquela
dependência do Sanatório, deparei com o dr. Sebastião
visivelmente c o n t u r b a d o . S u a s vestes e s t a v a m total-
m e n t e e n c h a r c a d a s e vi que s u a camisa t i n h a g r a n d e s
m a n c h a s de s a n g u e ! Recuei apavorada. Ele n ã o me viu.
Corri p a r a a copa e me escondi no seu interior. Pouco
depois, vi q u a n d o o médico saía n o v a m e n t e , com o u t r a
roupa, capa e galochas. Sobraçava enorme e m b r u l h o .
P a r t i u apressado pela p o r t a c e n t r a l e desapareceu em
pleno temporal, p e n e t r a n d o n a s m a t a s que ladeiam a
a l a m e d a que dá acesso ao Sanatório. Esperei seu retorno
e o encarei no saguão de e n t r a d a . Ele ficou perplexo
ao me ver. Não soube explicar, q u a n d o lhe inquiri, onde
estivera e o que fora fazer lá fora, debaixo daquele
aguaceiro. U m a frase que soltara, ao passar por m i m
r a p i d a m e n t e , despertou-me o sexto sentido e pensei no
m e u noivo. Ele me dissera, expelindo ódio pelos olhos:
" J u r o que me vinguei de você!".
Corri, m e s m o sem proteção a l g u m a , e atravessei o
pátio até a Casa de Hóspedes, g r i t a n d o pelo m e u noivo.
B a t i d e s e s p e r a d a m e n t e na p o r t a e q u e m abriu foi a ser-
viçal, que trouxera de casa p a r a me a t e n d e r especial-
m e n t e aqui no Sanatório. Ela n ã o soube me dizer onde
estava m e u noivo. Não acreditei na s u a informação.
Entrei na Casa de Hóspedes e a vasculhei i n t e i r i n h a .
E aquele desaparecimento quase repentino do m e u noivo
fizera com que crescessem, m a i s a i n d a , m i n h a s suspeitas
de que algo de terrível lhe h a v i a acontecido! Não sei
q u a n t a s voltas dei pelo Sanatório, e lá pelas d u a s h o r a s
da m a n h ã , suspeitei, n e m sei porque, do depósito de
lenhas. F u i até lá e deparei com m e u noivo morto,

171
com a cabeça esfacelada! Ao seu lado estava a a r m a
do crime, u m a enorme a c h a de madeira!
D i a n a ao ser submetida a interrogatório pelo dele-
gado, que queria saber qual a razão que a levava a
desconfiar do médico negro, após vê-lo sujo de sangue,
molhado pela chuva e que relação poderia existir e n t r e
ela e seu noivo, foi mais explícita no seu depoimento:
— O dr. Sebastião me a m a v a . Queria me possuir
a qualquer preço. Foi m e u i r m ã o de c r i a ç ã o e d e s d e
t e n r a idade a l i m e n t a essa pretensão absurda. Devoto-lhe
ódio total, até que u m a noite ele me convenceu a rece-
bê-lo na Casa de Hóspedes, onde t r a t a r i a comigo sobre
um a s s u n t o de vida ou de morte. Assustei-me, e às
escondidas das demais enfermas, fui ter com. o médico
naquele local, único que n ã o p e r m i t i a t e s t e m u n h a s que
pudessem me desmoralizar. Pois bem, neste local, sr.
delegado, fui a t a c a d a e violentada pelo médico, que me
possuiu à força. Não podia dizer isso a n i n g u é m do
Sanatório, mesmo porque n ã o me acreditariam. Pensa-
r i a m logo que eu fora n o r m a l m e n t e a t é à Casa de Hós-
pedes e me e n t r e g a r a àquele i m u n d o ! Esperei e n t ã o
m e u noivo chegar p a r a lhe r e l a t a r o ocorrido e p a r a
que ele, às escondidas, sem escândalo, tomasse as provi-
dências necessárias, pois o Sanatório S. Pedro, além de
ter um. médico preto, este era t a r a d o , a t a c a n d o as enfer-
m a s como um débil m e n t a l ! Ele é um sexo-maníaco,
doutor! No dia do crime, à tarde, houve violenta alte-
ração e n t r e m e u noivo e o dr. Sebastião, no interior
da Casa de Hóspedes. Eu estava presente. Eles ficaram
de se e n c o n t r a r à noite q u a n d o , decidiriam as posições.
Em princípio ficara acertado que o dr. Sebastião, no
dia seguinte mesmo, iria embora do Sanatório. A po-
sição de a n t a g o n i s m o da maioria absoluta das enfermas
era u m a justificativa que n ã o despertaria qualquer sus-

172
peita, mesmo d i a n t e da sua decisão precipitada. Daí a
m i n h a certeza de que algo acontecera e n t r e os dois
q u a n d o vi as vestes e n s a n g ü e n t a d a s do dr. Sebastião. O
resto o senhor já sabe. Corri p a r a o prédio, acordei a
Madre, e às q u a t r o e pouco da m a n h ã os senhores che-
g a r a m ao Sanatório. F u i prêsa logo de início como
suspeita, por e s t a r e m m i n h a s vestes sujas de s a n g u e .
O que era n a t u r a l . Eu descobrira o cadáver de m e u
noivo. Abraçara-o, desesperada, n ã o a c r e d i t a n d o que o
m e s m o estivesse m o r t o .

Este depoimento foi decisivo p a r a as conclusões do


delegado de Campos do Jordão, e por isto pediu a prisão
preventiva do médico negro.

* * *

O crime ocorrido no Sanatório S. Pedro explodiu na


i m p r e n s a como um escândalo sem precedentes. O de-
poimento de D i a n a foi lido por u m a infinidade de re-
pórteres que se e n c a r r e g a r a m de a p r e s e n t a r o facultativo
como o m o n s t r o , a besta, a fera q u e a t a c a r a a inocente
e bela jovem tuberculosa! As fotografias de D i a n a
e s t a v a m e s t a m p a d a s n a s primeiras p á g i n a s d e quase
todos os j o r n a i s do Rio e de S ã o Paulo. Um jornalista
m a i s curioso descobriu que ele fora "Miss G u a r u j á " e
logo as fotos da linda m o r e n a c o m e ç a r a m a surgir n o s
jornais, t r a j a n d o a p e n a s r o u p a s de b a n h o , o caso tor-
nou-se a s s u n t o d a s revistas. Ela foi capa de u m a d a s
m a i s famosas revistas brasileiras.

E no meio daquele escândalo, fui ficando entediada.


Com a c h u v a caindo quase todos os dias e esfriando cada
vez mais, Campos do J o r d ã o começou a me i r r i t a r .
P e r d e r a o apetite e quase n ã o conciliava o sono à noite.
As saudades de m i n h a filha e de m i n h a c a c h o r r i n h a

173
c o m e ç a r a m a me a t o r m e n t a r . Não t i n h a mais paz de
espírito. Já h a v i a combinado com a Madre que iria
m e s m o embora. O crime é que me segurou m a i s tempo.
Comecei a a l i m e n t a r a idéia de sair i m e d i a t a m e n t e do
S a n a t ó r i o e ir a São Paulo. Ficaria a l g u n s dias na
Paulicéia e depois d e t o r n a r i a a Campos do J o r d ã o p a r a
visitar o dr. Sebastião. Ainda n ã o a d q u i r i r a c o r a g e m
p a r a fazê-lo. Não sabia como encará-lo. Aquelas m ã o s
acendendo o cigarro na escuridão do depósito de l e n h a s ,
e o b a r u l h o ensurdecedor da c h u v a caindo no t e t o de
zinco do depósito, q u e i m a v a m - m e o cérebro.

As idéias foram crescendo em m i n h a cabeça e logo


resolvi concretizá-las. Despedi-me quase de r e p e n t e de
Belinha e Inês e p a r t i p a r a S. Paulo, onde procurei me
refazer dos aborrecimentos, e n t r e g a n d o - m e à faina diária
do lar.
Os jornais aos poucos foram esquecendo o crime e
os cinco dias que p r e t e n d i a passar na Capital, na reali-
dade se p r o l o n g a r a m pelo espaço de q u a t r o meses.

A decepção que sofrera com o dr. Sebastião, porém,


n ã o saía n u n c a de m i n h a cabeça. Vez por o u t r a , queda-
va-me introspectiva, lembrando-me de s u a infância, de
todo o sofrimento por que p a s s a r a a n t e s de a t i n g i r a
faculdade e colar g r a u . F o r a t o d a u m a existência de
sacrifícios que de repente se desmoronava. Um moço,
cheio de vida, ficaria m a i s de a n o s a t i r a d o ao fundo
de um cárcere. No íntimo, eu entendia, t u d o t i n h a como
origem o racismo q u e d o m i n a v a as castas privilegiadas.
Não fora aquelas posições a n t a g ô n i c a s das incompreensí-
vel Diana, e c e r t a m e n t e a t r a g é d i a n ã o teria m a r c a d o ,
assim, indelevelmente, a vida do médico negro.

Estava, por o u t r o lado, a b a l a d a por t r e m e n d a dor


de consciência. Assistira, afinal, ao crime. D i a n a havia

174
participado do mesmo. Se pelo menos n ã o utilizara a
a r m a assassina, sem dúvida ela encorajara o criminoso.
E r a , p o r t a n t o , co-autora! Por m a i s que fugisse dessa
decisão, m e u s p e n s a m e n t o s s e m p r e m e t r a z i a m p a r a essa
situação de fato: fora t e s t e m u n h a ocular do crime!

A t o r t u r a m e n t a l a que estava me submetendo, nos


últimos dias, me tirava t o t a l m e n t e o sossego. E, por fim,
n ã o resisti mais. Recorri ao g r a n d e a m i g o advogado,
famoso criminalista, de espírito investigador, e r u m e i
p a r a Campos do Jordão. Iria depor no inquérito, ú n i c a
m a n e i r a de ficar em paz com m i n h a própria consciência.

* * *

Em Campos do Jordão hospedei-me no G r a n d e Hotel.


Visitara antes as m e n i n a s do Sanatório. I n ê s já enfren-
t a v a o período de estágio de c u r a e Belinha em vésperas
de deixar o hospital. F i c a r a c u r a d a !

Já fazia q u a t r o meses que me a c h a v a ausente de


Campos e sem ver o dr. Sebastião.

Nosso encontro foi terrível p a r a m i m .

Ele a p r e s e n t a v a s i n t o m a s de profunda fraqueza


orgânica. E m a g r e c e r a m u i t o .
Seu sorriso suave, triste, foi seguido de u m a frase
que me comoveu:

— Você acredita na m i n h a inocência? Acredita?


Desconcertada, abaixei a cabeça. Não consegui arti-
cular q u a l q u e r resposta.
Ele se voltou p a r a a parede, levantando os braços:
— Oh! Deus! Como poderei fazer p a r a provar a
todos que sou inocente?

175
Virou-se p a r a mim. Seus olhos estavam injetados,
terríveis:

— Você acredita em Deus, n ã o acredita? Pois j u r o !


J u r o , por Deus! Estou inocente! Não entrei no maldito
b a r r a c ã o n a q u e l a noite! Acredita, agora?
Senti u m n ó a p e r t a n d o m i n h a g a r g a n t a . U m a pro-
funda piedade por m i m m e s m a tomou c o n t a de todo o
m e u ser q u a n d o , com m e u s olhos m a r e j a d o s de l á g r i m a s ,
o encarei meneei a cabeça em sinal negativo. Não, eu
n ã o acreditava m e s m o na inocência do dr. Sebastião.
Não podia acreditar. E simplesmente pelo fato de tê-lo
visto no i n s t a n t e em que assassinava o noivo de D i a n a !
Eu assistira ao crime!

Ele, a n t e m e u gesto m u d o , recuou v a g a r o s a m e n t e ,


a t é o fundo da sua cela. Deixou-se cair sentado no c a t r e
i m u n d o . Um condenável peso parecia esmagá-lo q u a n d o ,
sem a r t i c u l a r u m a só palavra, fitava o solo do cárcere.

Virei-me r á p i d a , chocada com a cena, e saí ligeira


da cadeia de Campos do Jordão.

Fizera m a l em visitar o dr. Sebastião. A s u a i m a g e m


derrotada, d u r a n t e m u i t o t e m p o n ã o iria sair m a i s dos
meus pensamentos.

E foi com ela de corpo inteiro em m i n h a m e n t e ,


assistida por m e u advogado, que fiz m e u longo depoi-
m e n t o , i n c r i m i n a n d o Diana, t o r n a n d o - a aliada do dr.
Sebastião no assassínio de seu noivo!

Foi u m a reviravolta no processo com nova e terrível


repercussão!

Interferi p a r a que m e u advogado fizesse a defesa


do dr. Sebastião. Até a q u e l a d a t a ele n e m sequer c u i d a r a
deste setor. O processo a i n d a se a r r a s t a v a na fase poli-

176
ciai e c e r t a m e n t e só na J u s t i ç a seria nomeado um
causídico "ad hoc".

Inês foi c h a m a d a t a m b é m p a r a depor. Ela confir-


m o u aquela cena que assistíramos na noite do baile de
r e a b e r t u r a d a t e m p o r a d a , n o G r a n d e Hotel, q u a n d o
víramos os dois saindo da Casa de Hóspedes e depois
se refugiarem no depósito de l e n h a .

Várias enfermas foram ouvidas sobre a discussão


h a v i d a c e r t a noite no interior do a p a r t a m e n t o de D i a n a
com o médico negro. Toda a tor.peza sexual foi sendo
posta à tona, n u m inquérito que desmascarava, lenta e
inexoravelmente, u m a elite que cada dia apresentava
seus bastidores apodrecidos.

Um e m a r a n h a d o de fatos foi, aos poucos, t o m a n d o


corpo d e n t r o da peça policial. D i a n a parecia irremedia-
velmente e n r e d a d a no inquérito.

Várias contradições i a m sendo a n o t a d a s pela autori-


dade policial, naquele famoso depoimento, e que a n t e s
era peça basilar do processo.

Os contatos de m e u advogado com o dr. Sebastião


foram sendo m a i s íntimos e finalmente o médico exibiu
o famoso bilhete que D i a n a lhe dirigira certa noite,
rogando a sua ida à Casa de Hóspedes.

Aquele d o c u m e n t o modificou toda a posição da po-


lícia que se viu obrigada, apesar da pressão dos advo-
gados da família de D i a n a a ouvi-la n o v a m e n t e . Um
infindável n ú m e r o de pontos obscuros precisariam, afi-
n a l , ser esclarecidos pela moça. Tudo, na peça policial,
indicava que D i a n a havia faltado à verdade e passara,
de repente, t a m b é m , à condição de ré, naquele rumoroso
processo criminal!

177
E foi t o m a d o por esses p e n s a m e n t o s que o delegado
de Campos do Jordão, tendo ao seu lado o escrivão,
chegou ao Sanatório S. Pedro, p a r a t o m a r novas decla-
rações de Diana.
Contudo, n ã o foi n a q u e l a tarde que a polícia con-
seguiu ouvir a jovem.
Um fato inesperado voltava, n o v a m e n t e , a modificar
a feição do inquérito: D i a n a estava grávida! Grávida
do médico negro do Sanatório! Médico que assassinara
seu noivo e já estava preso há q u a t r o meses na cadeia
da cidade, a g u a r d a n d o a conclusão do inquérito policial
p a r a ser julgado pela J u s t i ç a e p u r g a r seu hediondo
crime na Penitenciária do Estado!

Q u a n d o a autoridade policial chegou ao Sanatório,


o dr. Pedro assistia Diana, que estava t o m a d a de tre-
m e n d a crise nervosa.
Preocupada com o a n d a m e n t o do inquérito e vivendo
h o r a s d r a m á t i c a s , n ã o n o t a r a a falta de s u a s regras.
Mais de três meses já se h a v i a m ecoado q u a n d o ela
consultou o doutor Pedro. E x a m e s imediatos foram
feitos e os resultados positivos, naquele exato m o m e n t o ,
estavam sendo transmitidos à moça.
S e n t a d a na cama, com os olhos esbugalhados, ela
repetia a p e r g u n t a ao médico:
— Mas, doutor, esta criança n ã o pode nascer. Ela
é filha de um negro assassino! O senhor t e m que tirá-la!
Tem que tirá-la!
Impossível, d. Diana! Não posso fazê-lo, n e m ne-
n h u m médico se a r r i s c a r á a essa t r e m e n d a a v e n t u r a . A
sua gravidez é de q u a r t o meses! É um risco que pode
levá-la à s e p u l t u r a e o médico que fizer esse aborto, irá
p a r a a cadeia!

178
— Que se faça u m a operação! Há u m a justificativa!
Sou tuberculosa, doutor! Tuberculosa! Meu estado de
saúde n ã o a g ü e n t a r i a um p a r t o ! O senhor sabe disso!

— Não posso, d. D i a n a — repetiu o doutor P e d r o .

E D i a n a e n t r o u em violenta crise de choro, d e b a -


tendo-se, gritando, como que a t a c a d a de total demência.
De repente, como alucinada, com os dedos entre os
dentes, t e n t a n d o roer as u n h a s , l á b i o s trêmulos,
começou a m u r m u r a r :

— É filho do Tião, dr. Pedro! O escândalo! Sim,


o escândalo que isso vai dar! Meus pais preferirão
ver-me m o r t a a me ver d a r à luz um filho preto! Não!
Não! Não quero esse filho maldito! Não quero! Não
quero!

A t a c a d a de fúria incontrolável, começou a socar seu


estômago, seu ventre, repetindo a heresia m o n s t r u o s a :

— Morre, filho desgraçado. Morre! Você há de


nascer m o r t o ! Morre, maldito! Morre!
E , contorcendo-se e m dores, n u m choro convulsivo,
virou-se pela c a m a , desfalecendo com um pequeno filete
de s a n g u e aflorando no c a n t o dos lábios.

179
XI

— Amaldiçôo-o a t é o fim de s u a existência, negro


malagradecido! Eu o recebi na m i n h a casa q u a n d o você
era u m p r e t i n h o m a l t r a p i l h o , a b a n d o n a d o , sem pai n e m
m ã e ! Eu lhe dei um lar, roupa, remédio, s a ú d e e c u l t u r a
p a r a que, como p a g a , você levasse a desgraça p a r a
d e n t r o da m e s m a casa que o acolheu: m a l d i t o seja, Tião,
até o seu ú l t i m o s e g u n d o de vida!
— " S e u " Jorge, juro-lhe que j a m a i s toquei n u m fio
de cabelo de sua filha! T u d o n ã o passa de m e n t i r a !
— Sim, é m e n t i r a , sim! E aquele ser m a l d i t o q u e
está sendo gerado no ventre de m i n h a filha?

— Não sei "seu Jorge, m a s posso lhe assegurar que


aquilo n ã o é m e u ! Preferiria m o r r e r !

— Deus é t e s t e m u n h a que só permiti a sua e n t r a d a


em m i n h a casa p a r a salvar m e u filho que definhava!
Agora, do outro lado, ele deve estar assistindo, c o n t r a -
riado, revoltado, ao resultado de seu carinho, de seu
coração m a g n â n i m o !

O pai de D i a n a , exteriorizado profundo ódio nos


olhos, a c a b r u n h a d o , a r q u e a d o sob o peso da desgraça q u e
se a b a t e r a sobre seu lar, n ã o permitiu que o dr. Sebastião
falasse mais u m a só palavra. Virou-se, áspero, e deixou
a cela onde o médico negro estava encarcerado.

O facultativo engolia em seco, de pé, sem n e n h u m


movimento. Os olhos p a r a d o s n ã o seguravam, as grossas
l á g r i m a s que a evidência dos fatos que o c o n d e n a v a m .

180
— "Não a d i a n t a m a i s a r g u m e n t a r , m e u Deus!
T u d o foi mesmo c u i d a d o s a m e n t e p r e p a r a d o p a r a me in-
criminar. Vou ser condenado por essa h i d r a de mil
cabeças que é a elite!"

O pai de Diana, ao deixar a cadeia pública de C a m -


pos do Jordão, dirigiu-se d i r e t a m e n t e p a r a o Sanatório,
a fim de m a n t e r u m a entrevista com s u a filha.

A r e u n i ã o havida, a n t e s , e n t r e o pai da jovem, o


doutor P e d r o e a Madre, foi e n t r e c o r t a d a de lances
violentos, de frases chocantes.

— . .. e, n ã o é possível fazer-se u m a operação, agora


ainda que h a j a risco de vida p a r a m i n h a filha? — per-
g u n t a v a o desesperado e inconformado pai, dirigindo-se
ao médico.

Foi a Madre q u e m respondeu pelo dr. Pedro:


— Dr. Jorge, o que é isto? Quer arriscar a vida
de s u a própria filha? E por que o aborto? Isto é um
crime que Deus, Nosso Senhor, j a m a i s perdoa!
A resposta do pai de D i a n a foi c o r t a n t e , m o r d a z :

— A senhora, Madre, n ã o esá em condição de pon-


d e r a r coisa a l g u m a ! Não c u m p r i u o seu dever de zelar
por m i n h a filha. Foi na casa que a senhora dirige que
ela foi possuída por um negro! O filho que está no
ventre de Diana, se nascer vivo, é p a r a m i m um ente
morto, desde já! Não quero saber da sua existência,
do seu nome, n e m do seu destino! Prefiro ver, sim, a
m i n h a filha m o r t a a ser m ã e de um negro! A s e n h o r a
é culpada por t u d o o que está acontecendo!
A Madre levantou-se. Ficou erecta. Suas bondosas
feições d e m o n s t r a v a m dor pelas palavras ferinas q u e
recebera em pleno rosto. Seus olhos, porém, n ã o t i n h a m

181
ódio, ao contrário, e m a n a v a m piedade. E foi com a voz
e m b a r g a d a pelo s e n t i m e n t o de t e r n u r a , compaixão, e,
sobretudo, religiosidade, que m u r m u r o u :
— Deus, Nosso Pai, senhor Jorge que perdoe t a n t a
heresia. O senhor dr,. Jorge, c e r t a m e n t e , n ã o sabe a
dívida espiritual que está adquirindo a o a n u n c i a r u m
propósito tão desalmado. Com s u a licença, p r e c i s o t r a t a r
de m e u s afazeres.
Com p o s t u r a , respeito, inclinou-se, E saiu, a p a r e n -
t a n d o a calma que o m o m e n t o exigia,

Ele voltou o olhar interrogativo p a r a o dr. Pedro,


b u s c a n d o u m a resposta à p e r g u n t a que fizera.

— Não, sr. Jorge. N e n h u m médico aceitaria t a l


incumbência. Isto é um crime que o nosso Código P e n a l
p u n e com merecida prisão.

E o que o p r e t o indecente fez com a m i n h a filha,


n ã o merece u m a p u n i ç ã o rigorosa?
— Ele já está p a g a n d o , na cadeia, o seu crime, sr.
Jorge.

E o dr. Pedro levantou-se, d a n d o a e n t e n d e r que


desejava e n c e r r a r a conversa. Pediu licença e se retirou.

O sr. Jorge ficou sozinho no gabinete da Madre


diretora do Sanatório.
Com os cotovelos apoiados nos joelhos, a cabeça
e n t r e as mãos, o cabelo desgrenhado, aquele pai buscava
o que n ã o podia e n c o n t r a r naquele i n s t a n t e : um bom
conselho.
Levantou o rosto, l e n t a m e n t e , p a r a a parede, e deu
com Jesus pregado na cruz. S e n t i u um longo arrepio
correr-lhe o corpo.

182
— P e r d o a i - m e , S e n h o r , m a s n ã o está e m m i m t o m a r
o u t r a decisão. M e u e s p í r i t o é a s s i m m e s m o , i n t o l e r á v e l ,
doentio! N ã o poderei agir de o u t r a m a n e i r a , J e s u s ! "

E c o m essa f i x i d e z d e p e n s a m e n t o , l e v a n t o u - s e r á -
pido, dirigindo-se p a r a o a p a r t a m e n t o onde a filha
estava internada.

Na porta do quarto de D i a n a , p a r o u por a l g u m t e m -


po. S u a s m ã o s v á r i a s vezes f i z e r a m m e n ç ã o d e g i r a r
a m a ç a n e t a , r e c u a n d o , s e m p r e t r ê m u l a s . N o s seus o l h o s
h a v i a m um brilho estranho. F i n a l m e n t e decidiu-se e
avançou escancarando a porta.

A m o ç a a s s u s t o u - s e c o m a e n t r a d a r e p e n t i n a do
seu p a i . E l a , n a v e r d a d e , e s t a v a h a v i a m u i t o e s p e r a n d o
esse e n c o n t r o . S e m p r e q u e n e l e p e n s a v a , u m t r e m o r a
p e r c o r r i a p o r i n t e i r o . S e n t i a - s e a p a v o r a d a a n t e a possi-
b i l i d a d e de t e r q u e e n f r e n t a r o p a i .

O sr. J o r g e f e c h o u , d e v a g a r i n h o , a p o r t a a t r á s de
si. O l h o u sua filha demoradamente. Ele parecia que
ia f r a q u e j a r a n t e os p r o p ó s i t o s q u e o t r o u x e r a m até a l i .
M a s , de r e p e n t e , e n r i j e c e u o o l h a r e f a l o u á s p e r o e d e c i -
dido c o m a j o v e m :

— T u d o o que me era possível fazer p a r a que nossa


f a m í l i a n ã o fosse e n l a m e a d a pelo s e u gesto i n d i g n o f o i
t e n t a d o . N a d a m a i s s e pode f a z e r ! E s s a d e s g r a ç a q u e
v o c ê está g e r a n d o v a i m e s m o n a s c e r ! Hoje é a última
vez que a vejo em m i n h a v i d a ! Seu n o m e está riscado
d o seio d e n o s s a f a m í l i a ! V o c ê n ã o é m a i s m i n h a f i l h a !
N ó s a r e p u d i a m o s e a a m a l d i ç o a m o s ! É i n d i g n a de l e v a r
o n o m e h o n r a d o que lhe dei! V o c ê está p a r a t o d o c
sempre proscrita de nossa família! Maldita! Maldita!
M i l vezes m a l d i t a !

O sr. J o r g e v o l t o u - s e t ã o r á p i d o q u a n t o e n t r a r a e

183
s a i u , a g i t a d o , b a t e n d o v i o l e n t a m e n t e a porta, desapare-
c e n d o e m p o u c o s s e g u n d o s pelo i m e n s o c o r r e d o r d a ala
"b", do S a n a t ó r i o S. P e d r o .

Aquela fora, realmente, a ú l t i m a vez que v i r a sua


filha Diana.
* * *

O delegado de polícia de C a m p o s do J o r d ã o c h e g o u
a tornar-se impertinente. Queria, a qualquer custo,
o u v i r D i a n a . O processo estava parado, sofrendo solução
de continuidade. As ordens médicas, p o r é m , e r a m t a x a -
tivas. A m o ç a estava p r o f u n d a m e n t e debilitada, e n t r e g u e
a u m a prostração geral, sem ânimo para nada. O choque
d a decisão d o p a i a c a b a r a p o r a r r a s t á - l a à obsessão d o
suicídio! U m a polícia f e m i n i n a foi posta no interior do
a p a r t a m e n t o d e D i a n a , n u m c o n t í n u o r e v e z a m e n t o , por
determinação do delegado e total exigência médica.

Diana não fazia um só movimento no interior do


s e u a p a r t a m e n t o sem. t e r a o s e u l a d o a v i g i l â n c i a c o n s -
tante de sua guarda. A s p r ó p r i a s necessidades fisioló-
gicas e r a m feitas n a p r e s e n ç a d a p o l i c i a l f e m i n i n a e
u m a enfermeira.

N ã o r a r a s vezes aquelas severidade causava explo-


sões t e r r í v e i s e m D i a n a , o c a s i ã o e m q u e p r e c i s a v a ser
a c a l m a d a a p o d e r de i n j e ç õ e s , q u e a m u i t o c u s t o l h e
eram ministradas.

O advogado do dr. Sebastião c o n s e g u i r a d e f e r i m e n t o


n u m a petição que fizera ao delegado: esperar-se-ia o
nascimento do filho de Diana. Em seguida seria feito
o e x a m e de sangue p a r a se p r o v a r , afinal, se era ou
n ã o filho do m é d i c o n e g r o . Esse resultado, c e r t a m e n t e ,
poria um ponto final na peça policial e D i a n a seria,
ou não, arrolada como co-autora.

184
Nesse ínterim, o advogado c o n t i n u a v a suas inves-
tigações p a r a l e v a n t a r os passos de D i a n a nos dias q u e
precederam ao crime, na vã esperança de e n c o n t r a r algo
que pudesse inocentar o dr. Sebastião.

Na realidade, n e m eu n e m o causídico estávamos


convencidos t o t a l m e n t e dessa inocência. As provas e r a m
por demais robustas c o n t r a o dr. Sebastião. Meu depoi-
m e n t o , t a m b é m incisivo, n ã o o a j u d a r a em n a d a .
Com a possibilidade de espera de cinco meses p a r a
d a r continuidade ao processo policial, retornei a S. Paulo.

* * *

O p a r t o de D i a n a efetuou-se na sala de operação


do próprio Sanatório S. Pedro. Foi u m a delivrance co-
b e r t a de lances d r a m á t i c o s pela obstinação da p a r t u r i e n t e
em n ã o querer que o filho nascesse vivo. Precisou ser
a m a r r a d a na mesa de p a r t o e o médico auxiliava-a a
expelir a criança. Só q u a n d o s as dores c o m e ç a r a m a
ser l a n c i n a n t e s é que houve u m a p e q u e n a colaboração
da jovem.

E r a m 10,00 h o r a s de u m a m a n h ã friorenta e c h u -
vosa, q u a n d o o filho de D i a n a nasceu: um m e n i n o pe-
sando pouco m e n o s de três quilos e com a pele t o t a l -
mente pretinha!

Ela foi levada p a r a seu a p a r t a m e n t o e imediata-


m e n t e colocada num. balão de oxigênio. A dispnéia
ameaçava-lhe a vida!

Visitei D i a n a n a q u e l a t a r d e .

Apesar do imenso balão de oxigênio, respirava com


grande d i f i c u l d a d e . Seu peito arfava de m a n e i r a cons-
t a n t e , 0s Olhos quase sempre semicerrados, às vezes

185
abriam-se d e s m e s u r a d a m e n t e . Os pulmões pareciam n ã o
receber o oxigênio suficiente.

O dr. Pedro estava c o n s t a n t e m e n t e ao seu lado,


dando-lhe a assistência médica que lhe era possível.
Em todo o Sanatório havia um a m b i e n t e pesado de
expectativa.

Nos dias que se seguiram, a dispnéia a u m e n t a r a


assustadoramente. A morfina, que vez por o u t r a lhe
e r a m i n i s t r a d a pelo dr. Pedro, já n ã o mais lhe trazia
sossego, e n a q u e l a noite terrível assisti q u a n d o Diana,
a t a c a d a de desespero pela falta de ar, a r r a n c o u desas-
t r o s a m e n t e a b o r r a c h i n h a que lhe levava um pouco de
oxigênio p a r a o interior dos pulmões!

Mãos crispadas, olhos esbugalhados, desesperada,


levantou-se como u m a quase afogada que p r o c u r a a
salvação que n ã o vem! Grudava-se n a s paredes, enfiava
a s u n h a s n a g a r g a n t a , g r i t a n d o como u m a n i m a l e n r a i -
vecido! Nas paredes deixou lascas de u n h a s e pedaços
de c a r n e das p o n t a s dos dedos que s a n g r a v a m a b u n d a n -
t e m e n t e ! Foi ficando arroxeada e rolou pelo chão do
q u a r t o , envolta nos lençóis de linho tisnados do seu
s a n g u e ! Diana m o r r e u de boca bem aberta, m o s t r a n d o
u m a expressão de pasmo.

Cena que j a m a i s se a p a g a r á do m e u cérebro!

A profecia de seu pai se c u m p r i r a : Ela n u n c a


"mais voltaria p a r a o seio de s u a familia. Nunca mais
veria os pais!

E ela j a m a i s soube que, no dia da sua m o r t e , che-


g a r a a Campos do Jordão, n a s mãos do delegado de
polícia, o resultado do exame de s a n g u e : o m e n i n o p r e t o
q u e dera à luz n ã o era filho do dr. Sebastião!

186
— É o remorso, doutor, é o remorso que me t r a z
a t é aqui! Quero pagar, sim, pelo crime que cometi,
doutor! Vim aqui p a r a c o n t a r t u d o prô senhor!
E Dito, o ex-jardineiro do S a n a t ó r i o S. Pedro, fez
a completa confissão do crime que p r a t i c a r a , n a q u e l a
chuvosa noite, d e n t r o do depósito de l e n h a !

T u d o fora l e n t a m e n t e p r e p a r a d o pela própria Diana.


No princípio conseguiu-lhe um bom emprego em São
José dos Campos, a fim de afastá-lo do Sanatório e
j a m a i s despertar suspeitas sobre s u a pessoa. Aos pou-
cos ela foi convencendo Dito que este devia p r a t i c a r o
crime porque o dr. Sebastião sempre a m a l t r a t a v a d e n t r o
do Sanatório. Convenceu o i n g ê n u o jardineiro que ela
o estava a m a n d o e a ele se entregou, no interior da
Casa de Hóspedes, várias vezes. Foi a prova de con-
fiança m á x i m a que ela poderia dar p a r a que ele lhe
obedecesse cegamente.

Dito foi adquirindo u m a paixão a l u c i n a n t e , doentia,


por Diana. Q u a n d o ela p r o g r a m o u o crime, ele subiu
a Campos, passando todo o dia escondido no meio d a s
m a t a s que c i r c u n d a m o Sanatório. N i n g u é m o viu e,
tão logo praticou o assassinato, r e t o r n o u a São José dos
Campos, de onde a c o m p a n h o u a repercussão do crime
pelo rádio e pelos jornais.

O remorso, e n t r e t a n t o , aos poucos, foi m i n a n d o seu


cérebro e, q u a n d o soube da m o r t e de Diana, a n u n c i a d a
por u m a emissora local, resolvera entregar-se à justiça.

O jardineiro Dito quis ver o filho e a polícia a t e n d e u


ao seu pedido. Ele chorou copiosamente no berçário e
a p e n a s quis saber q u a n t o t e m p o ficaria preso.

187
— No m í n i m o 25 anos! — foi a resposta simples do
delegado de polícia.

Naquela m e s m a noite Dito enforcou-se com a própria


cinta, p e n d u r a n d o - s e n u m a t r a v e de m a d e i r a que passa-
va pelo teto da cela. Não se conformara em f i c a r longe
do filho e da m u l h e r que t a n t o a m a r a , p o r q u e m
c h e g a r a à s e n d a do crime!

* * *

D i a n a foi e n t e r r a d a no cemitério de Campos do


Jordão. Ninguém apareceu n o Sanatório p a r a r e c l a m a r
o seu corpo. Ficou na morgue do necrotério vários dias,
e n q u a n t o a direção do hospital esperava resposta aos
sucessivos avisos, endereçados à família. Não houve
qualquer resposta.

Ao seu s e p u l t a m e n t o c o m p a r e c e r a m a p e n a s q u a t r o
pessoas: a Madre, a I r m ã Francisca, eu e o dr. Sebastião.

Havia um m u t i s m o c h o c a n t e e n q u a n t o o ataúde
descia à s e p u l t u r a .

— T e n h o que lhe e n t r e g a r algo, aqui, aos pés desta


sepultura, dr. Sebastião — disse a Madre, ao m e s m o
t e m p o que lhe colocava n a s m ã o s um envelope azul com
a sobrecarta contendo a p e n a s um. n o m e : Tião.

A Madre explicou:

— Dias a n t e s do n a s c i m e n t o da criança, Diana me


c h a m o u e me deu esta c a r t a que somente deveria p a r a r
n a s s u a s m ã o s no dia de seu s e p u l t a m e n t o , aos pés de
sua sepultura! Pediu que o senhor a lesse aqui. E r a
um pedido simples a que a t e n d i , sem j a m a i s p e n s a r que
ele se concretizaria. Hoje e n t e n d i ser um dever e n t r e -
gar-lhes esta missiva.

188
O dr. Sebastião ficou longo tempo olhando o enve-
lope, sem coragem para abri-lo.

Q u a n d o o fez, sem sentir, leu-a alto, e todas nós


ouvimos:

"Meu Tião,

Na minha infância entendia que o odiava.


Quando você partiu de casa, por minha interfe-
rência pessoal, senti que tinha sido injusta. Voltar
de minha indecisão seria uma fraqueza que a socie-
dade onde vivi jamais admitiria. Quando o vi no-
vamente, já agora em condições tão especiais, quis
revoltar-me contra o desejo que me envergonhava:
amar um negro! E era na realidade o que tinha
por você: amor! A nossa união era impossível pela
posição de nossa família. Quis fazê-lo meu amante
e você se recusou. Rebaixei-me, enquanto você,
cada vez, crescia mais e nobremente.

Tião, você tem um caráter que causa inveja a


muita gente branca da falsa elite em que sempre
vivi. Sei que é muito tarde para eu reconhecer
os erros que pratiquei na vida. Mas que estas mi-
nhas últimas palavras sirvam para você me perdoar
agora que estou morta.

De quem lhe quis muito e por isto, inexplica-


velmente, o feriu tanto,
DIANA."

O silêncio q u e d o m i n a v a a todos nós era doloroso,


contagiante. Os coveiros, chocados, t i r a r a m seus chepéus
e n q u a n t o se c u m p r i a o último desejo da m o r t a . O
a m b i e n t e tornou-se p r o f u n d a m e n t e melancólico.

189
O dr. S e b a s t i ã o n ã o c h o r o u , m a s s u a f r a s e até h o j e
martela meus ouvidos:

— D i a n a , querida, que na m o r t e encontre a paz que


em vida jamais conseguiu possuir.

* * *

D i a n a f o r a a l é m n a s suas cartas. U m a o u t r a , a c h a d a
e n t r e seus p e r t e n c e s , e s t a v a dirigida ao delegado de po-
lícia na qual fazia completa confissão do seu c r i m e e
i n c l u s i v e esclarecia o caso das r o u p a s e n s a n g ü e n t a d a s do
dr. S e b a s t i ã o ;

U m a noite, através daquele bilhete que consta do


i n q u é r i t o , a t r a i u o m é d i c o p a r a a C a s a de H ó s p e d e s . O
j a r d i n e i r o D i t o e n t r o u n o seu q u a r t o e l h e r o u b o u a
c a m i s a e o t e r n o . A p ó s m a t a r o n o i v o de D i a n a , s u j o u
a q u e l a s peças d e s a n g u e . E l e m e s m o s e e n c a r r e g o u d e
escondê-las e m local q u e n ã o i g n o r a v a , s e r i a m e n c o n -
t r a d a s p o r u m dos f u n c i o n á r i o s d o S a n a t ó r i o .

P a r a f a z e r c o m q u e o n o i v o fosse ao depósito de le-


n h a s , n a n o i t e f a t í d i c a , D i a n a m e n t i u - l h e sobre o assédio
q u e s o f r i a d a p a r t e d o dr. Sebastião. E p a r a p r o v a r q u e
estava sendo perseguida, a f i r m o u ao n o i v o que m a r c a r a
u m e n c o n t r o n o depósito c o m o f a c u l t a t i v o d e cor. O
n o i v o a s s i s t i r i a , t e r i a a p r o v a , e c o m isto a m b o s c o n s e -
g u i r i a m e x p u l s a r o d r . S e b a s t i ã o do S a n a t ó r i o . Foi o
ardil do qual se v a l e u p a r a atrair o n o i v o p a r a a terrível
cilada.

D i a n a escrevera todas aquelas cartas porque c o n t a v a


matar-se na p r i m e i r a oportunidade. O que n u n c a passara
p o r s u a cabeça é q u e s u a m o r t e s e r i a t ã o h o r r i p i l a n t e .

E a ausência de seus pais no seu sepultamento

190
provou que eles n ã o a h a v i a m perdoado, n e m depois
de m o r t a !
* * *

O dr. Sebastião fora, c o n c o m i t a n t e m e n t e , com a s u a


libertação, transferiu p a r a São Paulo, e um o u t r o m é -
dico — b r a n c o — lotado no seu lugar.

Despedi-me de todos no Sanatório. Voltaria p a r a


a Capital em c o m p a n h i a do médico negro, aproveitando
o automóvel do m e u advogado.

Ao percorrer, pela ú l t i m a vez, o corredor da ala " b "


do S a n a t ó r i o S. Pedro, encontrei o dr. Sebastião que
olhava t r i s t o n h o p a r a aquele a m b i e n t e .

Dei-lhe o braço e passamos pela m e s i n h a onde ficava


o livro de pedido de consultas das enfermas ricas do
S a n a t ó r i o S. Pedro. Ele n u n c a fora preenchido d u r a n t e
todo o período em que o dr. Sebastião ficara como mé-
dico naquele hospital. A "greve de K o c k " foi a t é o
final, vencendo o médico negro.

Ele resolveu p a r a r n a q u e l a p e q u e n a mesa. Abriu o


livro como que recordando as passagens m a i s tristes de
sua vida n o Sanatório.

Parou, i n o p i n a d a m e n t e , com seu coração acelerado.


S e u s o l h o s cobriram-se de lágrimas.

Lá e s t a v a a primeira e ú n i c a a s s i n a t u r a que fora


posta no livro de consultas. Lá estava, escondida, dentro
do livro fechado, a a s s i n a t u r a de D i a n a !

O dr. Sebastião fechou-o l e n t a m e n t e , m u r m u r a n d o :


— Ela preparou s u a m o r t e com todas as m i n ú c i a s . . .
Pegou o livro, colocou-o debaixo do b r a ç o :

191
— Pelo menos isto eu g u a r d a r e i como l e m b r a n ç a
dela...
P u x o u - m e ligeiro e a passos largos nos d i r i g i m o s
p a r a o automóvel.
Meu coração confrangeu-se, q u a n d o , s e n t a d a ao seu
lado, divisei-o m e r g u l h a d o n a q u e l a m o d o r r a introspectiva.

Procurei interromper-lhe OS p e n s a m e n t o s :
— O Governador n ã o deveria ter assinado a sua
transferência porque o Sanatório S. Pedro está em. Cam-
pos do Jordão, que está d e n t r o de São P a u l o e São
P a u l o está d e n t r o do Brasil. O Brasil dr. Sebastião,
t a m b é m é dos negros.

Ele me olhou com t e r n u r a . Apertou m i n h a s m ã o s


e disse:
— Eu t a m b é m a a m a v a . ..

P u s m i n h a cabeça no encosto do banco e cerrei as


pálpebras. Comecei a sentir a velocidade do automóvel
descendo a serra de Campos e i m a g i n a v a os vales flo-
ridos e maravilhosos que se poderiam descortinar dali.
Não consegui a d m i r a r a paisagem. A frase do dr. Se-
bastião bailava na m i n h a cabeça. Não p u d e conter as
l á g r i m a s que, teimosas, afloraram nos m e u s olhos.

192

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