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A Família enquanto Contexto de

Ana Cecília de Souza Bastos*


Leny A. Bonfim Trad**

Resumo: Este artigo aborda a família enquanto contexto de desenvolvimento humano e espaço privi-
legiado do processo saúde-doença, situando-se conceitualmente numa interseção entre Ciências do Compor-
tamento e Saúde Coletiva. Ao mesmo tempo, assinala algumas implicações de admitir a família como objeto
de investigação. A partir do contexto familiar é possível observar uma série de mecanismos (processos) de
risco-proteção à saúde. A análise de práticas culturalmente estruturadas de atenção à saúde no ambiente
doméstico revela expressões de subjetividade no processo saúde-doença, e, numa perspectiva bidirecional,
o modo como as pessoas respondem ao contexto e o modificam.

Palavras-chave: Família; Saúde; Desenvolvimento Humano.

Sumary: This paper examines the family as a context of human development and privileged space of
the health-illness process. At the same time, it highlights some implications of assuming the family as an
object of investigation. From the family context it is possible to observe a series of mechanisms (processes)
of risk-protection to health. The analysis of culturally-structured health-seeking practices in the domestic
environment reveals expressions of subjectivity in the health-illness process, and, in a bi-directional perspective,
the way people respond to the context and modify it.

Keywords: Family; Health; Human Development.

* Professora Adjunta do Departamento de Psicologia e d o Instituto d e S a ú d e C o l e t i v a da U F B a . Pesquisadora do

Programa Família, Desenvolvimento Humano e Saúde, ISC/UFBa.

** Docente e Pesquisadora do Instituto de Saúde Coletiva - UFBa (Convênio SESAB), Programa Família,

Desenvolvimento Humano e Saúde.


Introdução a família desenvolve mecanismos próprios de
enfrentamento que podem variar de acordo
Colocar juntos indivíduo e contexto é com as crenças culturalmente instaladas, as-
mais do que focalizar a complexa relação sim como pela oferta e disponibilidade de
entre ambos: é considerar mecanismos espe- recursos sócio-sanitários.
cíficos presentes nas relações entre os sub- Quando se defende uma abordagem cen-
sistemas que compõem cada pólo e o status trada na família como o modelo mais apro-
conceituai da idéia de contexto: as relações priado na prestação de serviços de saúde,
pessoa-contexto seriam um lugar real do em especial na atenção primária (Sigel, 1990;
desenvolvimento humano, enquanto estrutu- Arcus, 1987), torna-se imprescindível priorizar
ra aberta e dinamicamente mutável, existin- a investigação sistemática da família como um
do, ao mesmo tempo, como sugerem Valsiner objeto de estudo cujo tratamento conceituai
(1989) e Schaffer (1992), na textura dos obje- requer uma abordagem necessariamente trans-disciplinar.
tos e em seus significados 'coletivo-culturais'.
Na interface saúde-desenvolvimento hu-
A consideração deprocessos-em-contextoe o pressuposto de que contextos sociais
mano, eixos de investigação podem se des-
são, historicamente, criados por pessoas en-
dobrar a partir de perguntas sobre de que
quanto atores sociais, para além do indiví-
modo a família, esse sujeito coletivo, enfren-
duo tomado isoladamente, são marcos pre-
ta problemas de saúde e se utiliza dos recur-
sentes no engendramento de novos modelos
sos disponíveis ao nível dos serviços de saú-
assistenciais no espaço da saúde coletiva,
de e da rede de suporte social informal; e
expressando-se em um leque de formulações
sobre a forma como práticas de cuidado à
e envolvendo um rico exercício de conceitualização em torno de termos como ecologia,
saúde acontecem e são narradas pelas famí-
espaço, território.
lias em torno de um foco principal, sua pró-
pria reprodução e as estratégias de transmis-
As famílias ocupam espaços diferencia- são de saberes e práticas ligados à saúde na
dos em sua luta pela sobrevivência e pela criação de filhos. Tais questões foram trata-
reprodução da vida. E, ao ocupar estes espa- das por Bastos (1994) como parte de um
ços, estabelecem relações de convivência, conjunto mais geral de preocupações,
conflituosas ou não, trocam experiências, delineadas dentro da Psicologia do Desen-
acumulam saberes, habilidades, hábitos e volvimento como campo de estudo, remeten-
costumes, produzindo e reproduzindo con- do à análise da estruturação cultural da famí-
cepções e cultura. lia como contexto de desenvolvimento e pres-
Tem sido objeto de muita discussão o diag- supondo a descrição das práticas culturais
nóstico de uma crise profunda na família, à que se produzem/constroem no âmbito da
qual são atribuídas, com maior ou menor pro- vida cotidiana da família. Essas práticas, por
priedade, conseqüências sociais de variada sua vez, se orientam e estruturam, de forma
extensão e gravidade. Contudo, como assinala significativa, por valores culturais que confe-
Woortmann (1987), é amplamente reconhecido rem à experiência singular do sujeito em
que a família representa o eixo de organização desenvolvimento a condição de membro de
do espaço social imediato dos indivíduos, fa- uma comunidade, interagindo, em diferentes
cilitando seu ajuste às dificuldades da vida. planos e de uma maneira total, com a expe-
Sem dúvida, o contexto familiar pode riência coletiva dessa comunidade. Ao espe-
apresentar situações e dinâmicas mais ou cificar práticas de cuidado à saúde como eixo
menos fragilizantes para a saúde. Por outro da análise, convergimos na mesma direção
lado, uma vez diante do problema de saúde, que Saraceno (1989), quando defende que:
"é crucial ver a família como um sujeito No estudo do desenvolvimento humano,
coletivo, com seus processos internos de me- a análise de transições da pessoa-em-contexto
diação e diferenciação e seu potencial ao longo do curso de vida envolve mudanças
assimétrico para poder e acesso a recursos. Os progressivas ou regressivas, que se seguem a
recursos disponíveis determinam se uma es- alterações previstas ou a disrupções críticas
tratégia é possível, na medida em que eles (inclusive eventos no processo saúde-doen-
fornecem ou permitem comportamentos alter- ça) em quaisquer partes do sistema (pessoa,
nativos. Recursos não são apenas aqueles ambiente) e em quaisquer níveis de integra-
corporificados nos assim chamados recursos ção (biológico, psicológico, sociocultural). A
materiais, isto é, renda, serviços, bens de con- compreensão do funcionamento complexo dos
sumo, redes de relações. São, por natureza, indivíduos, em sua vida cotidiana, em todos
também culturais e simbólicos" (p. 33). os níveis de integração, exige a construção
de unidades de análise capazes de dar conta
É crucial, portanto, levar em considera- das relações entre pessoa e contexto, ambos
ção o intercâmbio complexo entre contextos, em contínua transformação.
especialmente em sua dimensão social, e No que se refere ao binômio família e
ações individuais, na medida em que esse saúde, são relevantes algumas conseqüênci-
intercâmbio configura a possibilidade e a as potenciais desse empreendimento: (a) des-
direção dessas práticas. locar-se em direção a solidificar uma relação
sinergística entre desenvolvimento infantil e
adulto; (b) explorar áreas de estudo ainda a
1. A Interdependência entre descoberto que podem, em última análise,
Desenvolvimento de Contextos e contribuir para uma teoria mais geral e inte-
de Indivíduos grada do desenvolvimento humano; (c) suge-
rir aplicações práticas que otimizem desen-
Uma visão contextual do desenvolvimen- volvimento e saúde no contexto da vida co-
to caracteriza-se, segundo Valsiner (1994), por: tidiana das famílias.
(a) uma evolução de modelos descritivos para Essas transições não acontecem em sepa-
modelos mais explanatórios de contexto, rado da vida cotidiana. Assumimos, como
enfatizando eventos relevantes para o desen- Valsiner (1994),
volvimento em diferentes pontos do tempo, e
processos potencialmente envolvidos em trans- "que a vida de cada dia comporta cons-
missões contexto-indivíduo eindivíduo-contexto; (b) uma crescente
tantemente "agentização"
estes momentos do con- de
de delimitação
texto social e material, constatando-se que con- todos os processos possíveis aos culturalmente
textos consistem amplamente de outros indiví- desejáveis ou controláveis. Daí que o fluxo da
duos, que têm perspectivas diferenciadas: é ne- vida cotidiana seja uma modulação constan-
cessário "reconhecer a estrutura psicológica dos te de limites dentro da textura de ação permi-
ambientes, suas disponibilidades para ações tida pelo contexto e das possibilidades de cons-
individuais, e os mecanismos pelos quais in- trução de significado" (p. 5).
fluenciam o desenvolvimento psicológico" (p. 6);
(c) um acentuado interesse na modelação recí- Enfim, abordar a família implica exami-
proca entre indivíduos e ambientes, enfatizando nar o indivíduo concretamente constituído,
a ação dos indivíduos sobre contextos (proces- concebendo a individualidade como um pro-
sos de seleção, iniciação, esquiva, interação, cesso, construída socialmente a partir de um
percepção seletiva e interpretação). contexto caracteristicamente heterogêneo; ou,
como propõe Valsiner (1989), a partir da
necessidade de reconhecer a existência de petência social parecem ser importantes va-
"processos de coordenação de diferentes subje- riáveis nesta conexão, assim como boas ex-
tividades pessoalmente construídas" (p. 137). periências na escola, realizações resultantes
Esse processo, ocorrendo primariamente na de assumir responsabilidades e a presença
família, imprime moldes, selos e estilos ao de um confidente de apoio (Rutter, 1986).
curso do desenvolvimento humano, qualifi- Portanto, profissionais de saúde podem e
cando resultados e contribuindo diretamente devem integrar a rede de suporte social
para a qualidade de vida no grupo familiar. dos indivíduos.
A questão da interdependência entre Nessa perspectiva, o conceito de suporte
mudanças no contexto e mudanças pessoais social, derivado das teorias do estresse, é de
reaparece quando entram em pauta as rela- fácil adaptação ao recorte que está sendo
ções entre modo de vida e saúde. No âmbito construído aqui, enfatizando a interdependên-
do desenvolvimento humano, a família ocu- cia de indivíduos-contextos etransdisciplinaridade.Costa & L
pa lugar privilegiado quando se trata de dis- seu potencial de minimizar os efeitos do
cutir risco e proteção à saúde, em várias de estresse na saúde, os subsistemas de apoio
suas dimensões. instrumental (aconselhamento), de apoio ati-
vo (maternagem) e de apoio material (bens e
serviços).
2. R i s c o e P r o t e ç ã o n o Contexto
Torna-se ainda necessário um desloca-
A discussão de fatores e mecanismos de mento da perspectiva da doença para a saú-
risco e proteção, no curso do desenvolvi- de, exigindo uma priorização crescente à in-
mento humano, já supera uma compreensão vestigação de padrões de vulnerabilidade e
linear de causalidade que torna a proteção resistência frente a situações que configuram
equivalente a experiências positivas. No adversidade: pobreza, status minoritário, vio-
campo da Psicopatologia do Desenvolvimen- lência, conflitos intrafamiliares e sociais
to , por exemplo, há indicações, a partir da
1
(Sameroff & Seifer, 1983; Rutter, 1986; Luthar
investigação de determinantes psicossociais, & Zigler, 1991), e a eleição de situações,
de que a proteção seria construída ao longo grupos e momentos de risco no curso de vida
da superação bem-sucedida de acontecimen- das famílias (Cowan, 1991; Elder Jr., 1991). O
tos prévios, e não na esquiva do estresse. A impacto potencial desse deslocamento cresce
constatação empírica de que o modo mais em relevância quando está implicada, por
ativo de enfrentamento individual frente a exemplo, a defesa ativa do bem-estar infantil,
estressores ambientais pode converter amea- prioridade zero em qualquer esforço de pre-
ças em desafios representa, sem dúvida, um venção.
encorajamento a programas baseados em Essa compreensão, rapidamente delinea-
participação comunitária. Auto-estima e com- da aqui, exige estudos amplos o suficiente
para ultrapassar uma mera enumeração de
indicadores de risco presentes no contexto
1
A Psicopatologia d o D e s e n v o l v i m e n t o se constitui de desenvolvimento humano, incluindo a
como disciplina na confluência da Epidemiologia Psi- identificação e descrição de processos e me-
quiátrica Infantil e da P s i c o l o g i a d o D e s e n v o l v i m e n t o . É canismos configuradores de risco e proteção
da E p i d e m i o l o g i a , p o r t a n t o , q u e t o m a e m p r e s t a d o o c o n - (Coyne & Downey, 1991), tal como engen-
ceito de risco. Para uma análise aprofundada desse drados dentro de um processo mais amplo
conceito e de sua situação em diferentes campos de interação social, que é a dimensão mais
discursivos, ver Almeida Filho (1992). crucial desse contexto. Assim, recomenda-se
a adoção de enfoques interacionistas, capa- homem atuar para identificar e defender-se
zes de dar conta da interdependência entre dos riscos, sociais ou de outra natureza.
mudanças nos contextos e mudanças nos in- Em outras palavras, para compreender a
divíduos e grupos, enfatizando transações in- dinâmica desta relação risco-proteção, na qual
divíduo-contexto e tomando o curso de vida os fatores de proteção podem ser definidos
familiar em perspectiva. É necessária uma ar- enquanto facilitadores do próprioenfrentament
ticulação entre medidas de processos necessário valorizar tanto as experiências
proximais (relacionadas a experiências espe- pessoais de indivíduos e grupos dos dife-
cíficas encontradas por uma criança em uma rentes contextos socioculturais, c o m o com-
dada classe social) e distais (status sócio-eco¬ preender as próprias características dos
nômico e outros índices demográficos) no contextos.
curso do desenvolvimento (Bronfenbrenner
& Ceei 1994). Esse novo modo de focalizar Ao pensar a noção de contexto de forma
contextos sociais implicam uma demarcação ampliada, estamos retomando o argumento
do campo de observação incluindo a anterior no sentido de que a investigação deve
"agentização" de que fala Valsiner (1994): superar a medida convencional de indicado-
res de risco. Cada contexto se define por um
"contextos sociais estão se tornando reco- sistema sociocultural que, segundo Romaní
nhecidos como criados por pessoas, com ca- (1995), possui dois referentes básicos: uma
racterísticas de personalidade, sistemas de determinada estrutura sócio-econômica e um
crenças e tendências de comportamento. Isso código cultural. Bibeau et al. (1992), indo
pode ser visto em micro-sistemas, quando se mais além, distinguem, ao analisar o fenôme-
assume que pessoas em interação servem de no migratório, três níveis de contexto social:
contextos umas para as outras, ou em contex- (a) o contexto imediato: a casa, a família, o
tos de mais alta complexidade, onde modos trabalho; (b) o microcontexto: valores sociais,
de transmissão contexto-indivtduo são assu- matrizes lingüísticas; e (c) o macrocontexto:
midos como menos diretos" (p. 7). economia, sistema coletivo de normas e valo-
res, políticas culturais, estrutura familiar.
Numa perspectiva sócio-antropológica, a Sem dúvida, essas dimensões do contex-
própria concepção de risco se modifica para to social amplo encontram expressão, direta
dar conta de condições específicas de risco ou indiretamente, na família. Este se define,
que correspondem a épocas e contextos cul- assim, enquanto contexto privilegiado para a
turais diversos (Trad, 1996). Rejeita-se, desse observação de como atuam as fontes de apoio
modo, uma adesão cega ao princípio de mais imediatas ao indivíduo que enfrenta
homogeneidade na natureza da morbidade, e problemas de saúde, podendo-se pensar,
à sua conseqüência de obscurecer particula- como Costa & López (1986), em dois níveis
ridades do fenômeno sob investigação, de de apoio social: formal (profissionais) e in-
que fala Almeida Filho (1992). Abre-se espa- formal (familiares, vizinhos, amigos, conse-
ço aqui para levar em conta significados so- lheiros religiosos etc.), claramente implicados
cialmente construídos em torno da noção de na construção cotidiana de itinerários tera-
risco. O risco, assim como a percepção acer- pêuticos (Kleinmann, 1986). Também no con-
ca dele, é um fator intrínseco às sociedades texto familiar é possível identificar diferentes
humanas; na medida em que partilham essa itinerários terapêuticos, envolvendo a percep-
percepção como os demais, os indivíduos ção sobre o problema de saúde, a eleição da
podem enfrentar riscos com um certo nível ajuda, a adesão a uma determinada terapêu-
de equilíbrio (Romaní, 1995). É próprio do tica, a avaliação em relação a esta terapêuti-

no
ca. Nesta perspectiva, a família se configura em padrões de competência (Masten et al.,
como unidade, espaço e sujeito da saúde. 1995).
A perspectiva do curso de vida (Elder Jr.,
1991; Cowan, 1991) retoma, numa outra dire-
3. Família e Saúde: Perspectivas ção, a preocupação com momentos de maior
de Investigação fragilidade no curso do desenvolvimento; são
idéias subjacentes à detecção de grupos de
A partir da crescente influência de pers- risco, como, por exemplo, a criança. O en-
pectivas desenvolvimentais, de cunho proces- volvimento precoce da criança em situações
sual, e de perspectivas sócio-antropológicas, complexas e emocionalmente excessivas é
uma nova orientação é portanto trazida para promovido, na família, a partir de eventos
a análise de dados no estudo do risco e que, ao longo do curso de vida, representem
proteção à saúde, enfatizando a descrição de disrupção e desafio (Bastos, 1994). Este tipo
mecanismos de risco e a necessidade de adotar de prática pode ter impacto importante para
enfoques longitudinais. T a m b é m aqui a fa- a avaliação de resultados evolutivos, na di-
mília se configura enquanto espaço privile- mensão vulnerabilidade-resistência.
giado de constituição, desenvolvimento, Sem dúvida, a busca da dimensão pro-
crise e resolução dos problemas da saúde cessual inerente aos fenômenos no âmbito
individual. da saúde e do desenvolvimento humano re-
Assumimos que a investigação da família quer a adoção de múltiplas perspectivas
como contexto de desenvolvimento é condi- metodológicas. Nessa direção, estratégias
ção fundamental para a compreensão da contextualmente sensíveis, supondo análi-
determinação social do processosaúde-doença. Tornam-se
ses qualitativas, necessárias
ocupariam lugaranálises quantitati-
privilegia-
vas e qualitativas para identificar e descrever do, de forma a atender à necessidade de
indicadores e mecanismos (processuais) de delinear conceitualmente a estrutura quali-
risco e de proteção (Rutter, 1986), presentes tativa de processos ainda p o u c o compre-
nos contextos de desenvolvimento humano, endidos.
e que contribuam para explicar trajetórias A eleição da interdependência entre
evolutivas diferenciadas. mudanças nos contextos e mudanças nos
indivíduos e grupos exige a construção de
No âmbito da Psicopatologia do Desen- unidades de análise adequadas, baseadas na
volvimento (campo emergente que traduz descrição, em um nível supra-individual, de
esforços de integração entre duas áreas afins, práticas culturalmente constituídas (Bastos,
a Epidemiologia Psiquiátrica e a Psicologia 1994). É a ênfase em padrões continuamente
do Desenvolvimento), um primeiro conjunto mutáveis que distingue o contextualismo de
de estudos com ênfase em circunstâncias li- outras teorias do mundo; suas categorias
gadas à família volta-se para investigar efei- fundamentais são justamente mudança e no-
tos da experiência precoce na família sobre vidade (Mueller & Cooper, 1986; Lerner, 1991;
ajustamento e competência em períodos pos- McGuire, 1983). Requer-se a superação do
teriores da vida. A ênfase no conceito de pensamento em termos de "X sobre Y", e a
competência afasta-se também de um foco ênfase em noções como co-construção,co-constituiç
exclusivo em sintomas, transtornos, déficits, focalizar práticas, sistemas de atividade, re-
risco e vulnerabilidade para imprimir pelo presentações sociais, em situações da vida
menos atenção equivalente a conceitos como cotidiana (Goodnow, 1993). É importante
eficácia, resistência e fatores de proteção, e deixar claro que essa tendência se apresenta
ao problema de continuidade ou mudança
mais como um conjunto de idéias regulado- A discussão do cuidado à saúde no con-
ras capazes de imprimir modificações à in- texto da vida cotidiana da família foi possível
vestigação na área, do que como alternativa com base em algumas categorias de análise,
já suficientemente construída. incluindo: a medicalização do comportamen-
Na interface entre desenvolvimento hu- to desviante; o uso diferenciado do sistema
mano e saúde, as investigações, em nível profissional de saúde conforme a natureza
microssocial, que apresentem essa caracterís- do problema de saúde enfrentado pela fa-
tica processual e a desejada sensibilidade ao mília; o uso diferenciado do sistema pro-
contexto, são ainda incipientes. A presente fissional de saúde conforme o lugar do
reflexão se desenvolve, em parte, apoiada doente na família (mãe, criança, parentes
sobre a análise de um corpus de dados obti- idosos); a convivência de diferentes siste-
dos por Bastos (1994), mediante entrevistas mas terapêuticos; a adaptação de prescri-
semi-estruturadas e observações de campo ções médicas às crenças sobre saúde e às
realizadas durante um ano junto a famílias circunstâncias materiais disponíveis; o
de um bairro popular, tomadas como casos. adoecimento c o m o circunstânciamodificadora
Uma primeira discussão desse material reve- familiar; o itinerário terapêutico adotado
lou a qualidade desse contexto de desenvol- pela família.
vimento, considerando processos e mecanis-
mos de socialização, culturalmente estrutura- Quando o objeto é a atenção à saúde no
dos, através dos quais se promove a inserção contexto doméstico ou, mais concretamente,
social da criança como um membro do grupo a descrição das práticas culturais que se ex-
familiar. Em um segundo momento, esse pressam no âmbito da família, torna-se pois
material foi retomado com o objetivo especí- indispensável uma articulação com pressupos-
fico de analisar padrões de atenção à saúde tos teóricos inerentes ao estudo do cotidia-
no contexto doméstico. no, numa perspectiva antropológica. A partir
Foram investigadas, então, práticas de de Schutz (1987), Berger e Luckman (1993) e
atenção à saúde utilizando recursos formais, Heller (1992), pode-se afirmar que cotidiano
dentro do sistema de saúde, público e priva- é uma construção histórico-social cuja dinâ-
do, e recursos informais, baseados na pró- mica se configura tal qual uma gramática viva.
pria família ou no suporte social informal Como em outros aspectos de significado co-
dentro da comunidade. Supunha-se uma letivo para o grupo familiar, há regras e
conceituação ampla de "saúde", abrangendo valores claros, e um saber fazer, sendo
dimensões de ordem psicossocial, como pa- transmitidos e re-construídos ao longo de
drões de comportamento, crenças, concepções situações cotidianas, sejam elas normativas
e estilos de vida. Surgia, nesse primeiro mo- ou disruptivas.
mento, um leque diversificado de episó- Nos estudos aqui tomados como exem-
dios, focalizando desde a descrição do cui- plos, as escolhas ao longo dos itinerários
dado a pessoas doentes, no presente ou terapêuticos adotados por familiares (as deci-
na história passada da família, até hábitos sões são sobretudo das mães), dependem da
de h i g i e n e , comportamento preventivo, natureza do problema de saúde, de caracte-
avaliações do atendimento dispensado por rísticas particulares da história de vida indi-
médicos e outros profissionais de saúde e vidual, do lugar do doente na estrutura fami-
dos recursos sócio-sanitários do bairro, liar e dos recursos sócio-sanitários disponí-
incluindo fontes e nível de informação sobre veis no espaço social imediato. Configura-se
saúde (Bastos et al., 1997; Bastos & Olivei- ainda o papel ativo das famílias (das mães,
ra, 1997). particularmente), na administração de cuida-
dos à saúde, através da adoção de estraté- Conclusão
gias alternativas que tentam dispensar o re-
curso ao sistema oficial de assistência . 2
A família é um objeto que exige o con-
Para finalizar, em um mapeamento preli- sórcio de diferentes olhares (biológico, psi-
minar das possibilidades de investigação do cológico, sócio-antropológico, ético...). Sua
binômio família-saúde, destacamos as seguin- natureza exige um movimento fundamental
tes possibilidades, que podem constituir alvo no sentido de uma construçãotransdisciplinar.A
de pesquisa isoladamente ou em associação para alterar trajetórias profissionais diversas,
entre si: com repercussões no plano teórico.

1. Análises do ambiente de desenvolvi- Tratar a família c o m o contexto de de-


mento: uma perspectiva desenvolvimental senvolvimento humano e c o m o espaço pri-
processual, contextualista (indivíduo e práti- vilegiado do processo saúde-doença impli-
ca em contexto cultural) e ecológica. ca, no plano da investigação, assumir ins-
2. Identificação e descrição de "determi- tâncias de análise que focalizem sistemati-
nantes", traduzidos em fatores e mecanismos camente o próprio ambiente, trazendo exi-
(processos) de proteção e risco. O continuum gências c o n c e i t u a i s e m e t o d o l ó g i c a s : oindivíduo-em-contexto,co
vulnerabilidade - resiliência ao longo do curso de s ó c i o - p s i c o l ó g i c a na atividade conjun-
de vida. ta com outros, é um novo objeto de análise.
3. Descrição de itinerários terapêuticos e São colocados novos problemas e também
de sistemas de suporte social (expressos, novas p e r s p e c t i v a s n o c a m p o da atuação
socializados e transmitidos no espaço fa- dos profissionais de s a ú d e , contribuindo
miliar). para a construção de práticas de saúde, no
4. Descrição e avaliação de modelos e contexto doméstico ou no contexto institu-
práticas assistenciais em saúde coletiva com cional, capazes de gerar e consolidar mu-
ênfase na família, considerando: (a) direcio- danças.
namento das ações nos vários níveis da pre-
venção; (b) as práticas-em-contexto; (c) as A Organização Mundial da Saúde vem
práticas-como-contexto (agentização do con- recomendando o incentivo àauto-responsabilidadee à partici
texto); e (d) resultados e/ou impacto das dos cidadãos no planejamento, na organiza-
ações de saúde. ção, no funcionamento e no controle da aten-
5. Estudo priorizando grupos de risco no ção primária à saúde como requisitos indis-
contexto da família: crianças, adolescentes, pensáveis à otimização do atendimento (Cos-
gestantes, idosos. ta & López, 1986). Aspectos ligados a mudan-
6. Avaliação da relação usuários-serviços ças de comportamento, incluindo adesão à
de atenção à saúde (representações sociais, orientação fornecida, podem resultar desse
nível de satisfação) a partir dos sujeitos pri- engajamento ativo no controle social dos
vilegiados nesse processo: famílias e agentes programas, com impacto não apenas sobre
de saúde. os aspectos econômicos de eficiência e eficá-
cia dos serviços, mas sobre a aceitabilidade
social dos serviços (Atkinson, 1993; Williams,
==2
A mulher vem se apresentando como principal 1994). São condições que se realizam, princi-
a g e n t e d e c u i d a d o à s a ú d e , t a n t o na família q u a n t o fora palmente, no espaço da família, que não pode
dela; entretanto, mais de 70% das ações de saúde se ser compreendida senão enquanto lugar e
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