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Resumo: Este artigo aborda a família enquanto contexto de desenvolvimento humano e espaço privi-
legiado do processo saúde-doença, situando-se conceitualmente numa interseção entre Ciências do Compor-
tamento e Saúde Coletiva. Ao mesmo tempo, assinala algumas implicações de admitir a família como objeto
de investigação. A partir do contexto familiar é possível observar uma série de mecanismos (processos) de
risco-proteção à saúde. A análise de práticas culturalmente estruturadas de atenção à saúde no ambiente
doméstico revela expressões de subjetividade no processo saúde-doença, e, numa perspectiva bidirecional,
o modo como as pessoas respondem ao contexto e o modificam.
Sumary: This paper examines the family as a context of human development and privileged space of
the health-illness process. At the same time, it highlights some implications of assuming the family as an
object of investigation. From the family context it is possible to observe a series of mechanisms (processes)
of risk-protection to health. The analysis of culturally-structured health-seeking practices in the domestic
environment reveals expressions of subjectivity in the health-illness process, and, in a bi-directional perspective,
the way people respond to the context and modify it.
** Docente e Pesquisadora do Instituto de Saúde Coletiva - UFBa (Convênio SESAB), Programa Família,
no
ca. Nesta perspectiva, a família se configura em padrões de competência (Masten et al.,
como unidade, espaço e sujeito da saúde. 1995).
A perspectiva do curso de vida (Elder Jr.,
1991; Cowan, 1991) retoma, numa outra dire-
3. Família e Saúde: Perspectivas ção, a preocupação com momentos de maior
de Investigação fragilidade no curso do desenvolvimento; são
idéias subjacentes à detecção de grupos de
A partir da crescente influência de pers- risco, como, por exemplo, a criança. O en-
pectivas desenvolvimentais, de cunho proces- volvimento precoce da criança em situações
sual, e de perspectivas sócio-antropológicas, complexas e emocionalmente excessivas é
uma nova orientação é portanto trazida para promovido, na família, a partir de eventos
a análise de dados no estudo do risco e que, ao longo do curso de vida, representem
proteção à saúde, enfatizando a descrição de disrupção e desafio (Bastos, 1994). Este tipo
mecanismos de risco e a necessidade de adotar de prática pode ter impacto importante para
enfoques longitudinais. T a m b é m aqui a fa- a avaliação de resultados evolutivos, na di-
mília se configura enquanto espaço privile- mensão vulnerabilidade-resistência.
giado de constituição, desenvolvimento, Sem dúvida, a busca da dimensão pro-
crise e resolução dos problemas da saúde cessual inerente aos fenômenos no âmbito
individual. da saúde e do desenvolvimento humano re-
Assumimos que a investigação da família quer a adoção de múltiplas perspectivas
como contexto de desenvolvimento é condi- metodológicas. Nessa direção, estratégias
ção fundamental para a compreensão da contextualmente sensíveis, supondo análi-
determinação social do processosaúde-doença. Tornam-se
ses qualitativas, necessárias
ocupariam lugaranálises quantitati-
privilegia-
vas e qualitativas para identificar e descrever do, de forma a atender à necessidade de
indicadores e mecanismos (processuais) de delinear conceitualmente a estrutura quali-
risco e de proteção (Rutter, 1986), presentes tativa de processos ainda p o u c o compre-
nos contextos de desenvolvimento humano, endidos.
e que contribuam para explicar trajetórias A eleição da interdependência entre
evolutivas diferenciadas. mudanças nos contextos e mudanças nos
indivíduos e grupos exige a construção de
No âmbito da Psicopatologia do Desen- unidades de análise adequadas, baseadas na
volvimento (campo emergente que traduz descrição, em um nível supra-individual, de
esforços de integração entre duas áreas afins, práticas culturalmente constituídas (Bastos,
a Epidemiologia Psiquiátrica e a Psicologia 1994). É a ênfase em padrões continuamente
do Desenvolvimento), um primeiro conjunto mutáveis que distingue o contextualismo de
de estudos com ênfase em circunstâncias li- outras teorias do mundo; suas categorias
gadas à família volta-se para investigar efei- fundamentais são justamente mudança e no-
tos da experiência precoce na família sobre vidade (Mueller & Cooper, 1986; Lerner, 1991;
ajustamento e competência em períodos pos- McGuire, 1983). Requer-se a superação do
teriores da vida. A ênfase no conceito de pensamento em termos de "X sobre Y", e a
competência afasta-se também de um foco ênfase em noções como co-construção,co-constituiç
exclusivo em sintomas, transtornos, déficits, focalizar práticas, sistemas de atividade, re-
risco e vulnerabilidade para imprimir pelo presentações sociais, em situações da vida
menos atenção equivalente a conceitos como cotidiana (Goodnow, 1993). É importante
eficácia, resistência e fatores de proteção, e deixar claro que essa tendência se apresenta
ao problema de continuidade ou mudança
mais como um conjunto de idéias regulado- A discussão do cuidado à saúde no con-
ras capazes de imprimir modificações à in- texto da vida cotidiana da família foi possível
vestigação na área, do que como alternativa com base em algumas categorias de análise,
já suficientemente construída. incluindo: a medicalização do comportamen-
Na interface entre desenvolvimento hu- to desviante; o uso diferenciado do sistema
mano e saúde, as investigações, em nível profissional de saúde conforme a natureza
microssocial, que apresentem essa caracterís- do problema de saúde enfrentado pela fa-
tica processual e a desejada sensibilidade ao mília; o uso diferenciado do sistema pro-
contexto, são ainda incipientes. A presente fissional de saúde conforme o lugar do
reflexão se desenvolve, em parte, apoiada doente na família (mãe, criança, parentes
sobre a análise de um corpus de dados obti- idosos); a convivência de diferentes siste-
dos por Bastos (1994), mediante entrevistas mas terapêuticos; a adaptação de prescri-
semi-estruturadas e observações de campo ções médicas às crenças sobre saúde e às
realizadas durante um ano junto a famílias circunstâncias materiais disponíveis; o
de um bairro popular, tomadas como casos. adoecimento c o m o circunstânciamodificadora
Uma primeira discussão desse material reve- familiar; o itinerário terapêutico adotado
lou a qualidade desse contexto de desenvol- pela família.
vimento, considerando processos e mecanis-
mos de socialização, culturalmente estrutura- Quando o objeto é a atenção à saúde no
dos, através dos quais se promove a inserção contexto doméstico ou, mais concretamente,
social da criança como um membro do grupo a descrição das práticas culturais que se ex-
familiar. Em um segundo momento, esse pressam no âmbito da família, torna-se pois
material foi retomado com o objetivo especí- indispensável uma articulação com pressupos-
fico de analisar padrões de atenção à saúde tos teóricos inerentes ao estudo do cotidia-
no contexto doméstico. no, numa perspectiva antropológica. A partir
Foram investigadas, então, práticas de de Schutz (1987), Berger e Luckman (1993) e
atenção à saúde utilizando recursos formais, Heller (1992), pode-se afirmar que cotidiano
dentro do sistema de saúde, público e priva- é uma construção histórico-social cuja dinâ-
do, e recursos informais, baseados na pró- mica se configura tal qual uma gramática viva.
pria família ou no suporte social informal Como em outros aspectos de significado co-
dentro da comunidade. Supunha-se uma letivo para o grupo familiar, há regras e
conceituação ampla de "saúde", abrangendo valores claros, e um saber fazer, sendo
dimensões de ordem psicossocial, como pa- transmitidos e re-construídos ao longo de
drões de comportamento, crenças, concepções situações cotidianas, sejam elas normativas
e estilos de vida. Surgia, nesse primeiro mo- ou disruptivas.
mento, um leque diversificado de episó- Nos estudos aqui tomados como exem-
dios, focalizando desde a descrição do cui- plos, as escolhas ao longo dos itinerários
dado a pessoas doentes, no presente ou terapêuticos adotados por familiares (as deci-
na história passada da família, até hábitos sões são sobretudo das mães), dependem da
de h i g i e n e , comportamento preventivo, natureza do problema de saúde, de caracte-
avaliações do atendimento dispensado por rísticas particulares da história de vida indi-
médicos e outros profissionais de saúde e vidual, do lugar do doente na estrutura fami-
dos recursos sócio-sanitários do bairro, liar e dos recursos sócio-sanitários disponí-
incluindo fontes e nível de informação sobre veis no espaço social imediato. Configura-se
saúde (Bastos et al., 1997; Bastos & Olivei- ainda o papel ativo das famílias (das mães,
ra, 1997). particularmente), na administração de cuida-
dos à saúde, através da adoção de estraté- Conclusão
gias alternativas que tentam dispensar o re-
curso ao sistema oficial de assistência . 2
A família é um objeto que exige o con-
Para finalizar, em um mapeamento preli- sórcio de diferentes olhares (biológico, psi-
minar das possibilidades de investigação do cológico, sócio-antropológico, ético...). Sua
binômio família-saúde, destacamos as seguin- natureza exige um movimento fundamental
tes possibilidades, que podem constituir alvo no sentido de uma construçãotransdisciplinar.A
de pesquisa isoladamente ou em associação para alterar trajetórias profissionais diversas,
entre si: com repercussões no plano teórico.