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ISBN 978-85-7205-179-8
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Introdução
O
estudo da relação entre música e significado é atualmente um dos grandes
campos da musicologia. Esta discussão precede até mesmo o
estabelecimento da disciplina, cujo mito de origem remete à famosa
publicação de 1885 de Guido Adler como, por exemplo, a polarização entre
a música programática de Liszt (e também de Wagner) e a música absoluta teorizada
por Hanslick em meados do século XIX. Um século depois ocorre uma outra grande
discussão de paradigma protagonizada por Joseph Kerman que culminou com a Nova
Musicologia, cujo principal assunto foi a conciliação entre a análise musical e o
contexto histórico das obras. Uma das ‘soluções’ encontradas pelos estudiosos para esse
problema foi justamente voltar-se para a questão do significado musical. Dentre as
muitas propostas discutidas, uma que se destacou foi a teoria das tópicas musicais,
apresentada por Leonard Ratner (1980). Desde então uma grande quantidade de autores
tem se dedicado a aperfeiçoar a teoria e expandir seu escopo inicial, que era a música do
classicismo vienense, para outros repertórios.
Neste trabalho eu procuro revisitar a teoria das tópicas e iniciar uma discussão de sua
aplicabilidade para a música sinfônica de Heitor Villa-Lobos. Mais precisamente,
investigo o funcionamento e proponho a análise de duas tópicas musicais nos poemas
sinfônicos indianistas de Villa-Lobos: a tópica “Canto de Pássaro” e a tópica “Floresta
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Tropical”. Para isso inicio o texto com uma breve revisão de literatura sobre a teoria1 e
algumas peculiaridades da música programática na sua aplicação. As análises partem do
texto musical, ou seja, da partitura (compreendida aqui como partitura + programa,
indissociavelmente) para demonstrar os elementos musicais das tópicas supracitadas em
conjunto com seu processo de significação.
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As tópicas musicais foram definidas por Ratner (1980, p. 1) como recursos musicais que
compositores, executantes e ouvintes podiam associar com variados modos, atitudes e
imagens. No século XVIII elas constituíam um léxico de “figuras características” que os
compositores poderiam utilizar como recursos de expressão de sentido em suas obras. A
definição de Agawu, influenciada pela semiótica saussurreana, revela melhor as
questões estruturais que envolvem o funcionamento das tópicas:
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A eficácia com que estes significados são compartilhados entre os membros de uma
determinada comunidade depende de inúmeros fatores que moldam a experiência de
cada indivíduo num determinado estilo musical.
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melodia e canto do pássaro uirapuru2. Isto sugere que o compositor não tinha uma
preocupação ornitológica com esta melodia, utilizando-a apenas para representar
livremente o canto do pássaro. Como afirma Tarasti (1995, p. 363), é provável que o
compositor tenha retirado este tema do livro Notes of a botanist on the Amazon and
Andes de Richard Spruce, publicado em 19083. O explorador conta em seu livro como
ouviu o canto do uirapuru em uma viagem à Amazônia, transcrevendo sua melodia de
uma forma bastante estilizada (Fig. 1).
FIGURA 1 - TRANSCRIÇÃO DE SPRUCE (1908) DO CANTO DO UIRAPURU.
FONTE: (SPRUCE, 1908)
Apesar da diferença entre esta melodia e os cantos emitidos por um uirapuru, Villa-
Lobos explora vários elementos musicais que contribuem para caracterizá-la como um
canto de pássaro: tessitura, timbre e rítmica e métrica. Primeiramente, a tessitura
escolhida pelo compositor (Sol4-Fá5) é mais aguda que a da melodia transcrita por
Spruce, se adequando, provavelmente por uma coincidência, à extensão usual do canto
de um uirapuru, que varia mais ou menos entre Mi4 e Sib6 (DOOLITTLE; BRUMM,
2012, p. 66). A utilização da flauta para representar o canto de um pássaro também está
2
Para uma análise do canto do pássaro uirapuru ver Doolittle e Brumm (2012).
3
De acordo com Volpe (2009, p. 33), a Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, onde o pai de Heitor Villa-
Lobos, Raul Villa-Lobos, foi bibliotecário, dispunha de uma cópia do livro de Spruce desde a época de
sua edição, o que fortalece a hipótese de que o compositor poderia ter acesso ao livro no período de
composição de Uirapuru.
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de acordo com as convenções da época, sendo utilizada para esse fim por vários
compositores da geração de Villa-Lobos e de anteriores (ver VOLPE, 2001).
Interessante notar que a flauta soa mais brilhante no registro escolhido pelo compositor
do que no registro anotado por Spruce, o que também é mais apropriado para a
representação do canto de um pássaro.
Como percebido por Salles (2009, p. 111), a maneira fragmentada como Villa-Lobos
expõe a melodia pode ser entendida como uma maneira de emular o comportamento do
canto de uma ave. O compositor alterna fragmentos da melodia (marcados com as letras
“a” e “e” na figura acima) e a frase completa (marcada com a letra “c”), acrescentando
ligeiras diferenças rítmicas (tercinas e semicolcheias) que causam certa irregularidade
na proporção entre elas (o número entre parênteses abaixo dos colchetes demonstra a
quantidade de tempos que cada fragmento dura dentro do compasso 4/4). A emissão de
uma melodia interrompida é um comportamento comum inclusive no próprio canto do
Uirapuru-Verdadeiro (DOOLITTLE; BRUM, 2012, p. 64). Ainda na questão rítmica,
outro aspecto que confere irregularidade ao tema são os inícios de cada fragmento, que
ocorrem no contratempo e com mudanças na posição métrica.
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Outros elementos de destaque que Villa-Lobos utiliza para evocar a tópica canto de
pássaro são volteios melódicos e tremolos. No manuscrito de Uirapuru existe uma
marcação no compasso 19 que denomina a melodia da flauta como “A Flauta do Indio
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Feio”. O argumento da peça estabelece que o personagem do Índio Feio engana o grupo
de índios imitando o canto do uirapuru com sua flauta de osso tocada pelo nariz. Esta
melodia não tem afinidade com a melodia “Canto do Uirapuru”, com exceção do timbre
da flauta na sua primeira apresentação4. A primeira parte da melodia está construída
sobre o segundo sistema escalar de sete notas apresentado por Kostka (2006, p. 30), que
consiste nas notas Dó-Ré-Mi-Fá#-Sol#-Lá-Si-Dó (VOLPE, 2001, p. 311). No primeiro
colchete (Fig. 4) há uma centralidade na nota Lá, portanto a escala aparece na sexta
rotação (Lá-Si-Dó-{Ré}-Mi-{Fá#}-Sol#-Lá)5. No segundo colchete há uma
transposição da escala em sua rotação original uma quarta acima (Fá-{Sol}-Lá-Si-Dó#-
Ré-{Mi}-Fá) e no terceiro colchete outra transposição mais uma quarta acima (Si-Dó-
Ré-Mi-Fá#-Sol-{Lá}-Si). Além da única nota em comum entre as três transposições
da escala ser a nota Ré, a sustentação do acorde de Ré menor no grave sugere que a
seção está centrada em torno de Ré. A melodia, no entanto, parece prolongar a nota Lá,
quinta justa do acorde de Ré menor sustentado.
No compasso 23 há uma figuração que inicia na nota Dó# e seu desenho forma uma
escala de seis notas com propriedades simétricas. Na ilustração abaixo, o item “a”
corresponde às notas na ordem em que aparecem no trecho. Há um padrão intervalar
4
A melodia “A Flauta do Índio Feio” é reapresentada no compasso 86 no saxofone soprano. Essa
mudança de timbre tem relação com o argumento da peça, pois representa o momento em que os índios
encontram o índio feio e descobrem que ele não é o uirapuru. Portanto, a flauta na primeira apresentação
representa o timbre “correto” do uirapuru, mas com a melodia “errada”, o que engana os índios, e na
segunda apresentação o saxofone soprano representa a flauta de osso tocada pelo nariz do índio feio,
confirmando que ele não é o uirapuru.
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As notas entre chaves não aparecem no trecho analisado.
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simétrico de duas terças menores, um semitom e duas terças menores novamente. Esse
padrão resulta em dois trítonos separados pelo espaço de um semitom (Dó#-Sol/Fá#-
Dó) e preenchidos simetricamente pela nota que se localiza exatamente no meio de cada
trítono (Si e Mi, respectivamente). Se invertermos as notas das extremidades (item b)
a coleção continua simétrica, ficando clara a presença da estrutura que Antokoletz
(1984, p. 71) chamou de célula Z.
As notas desta figuração, com exceção do Dó#, estão contidas na escala que é tocada
logo em seguida. Se considerarmos Ré como nota central, teremos uma escala de Ré
frígio maior (Ré-Mi-Fá#-Sol-Lá-Si-Dó-Ré) que desce do sexto até o quinto grau da
escala (ver Fig. 4). Após esta escala descendente há uma breve figuração cromática em
ziguezague que atinge a nota Dó#. A partir desta nota a flauta toca dois trítonos (Dó#-
Sol e Lá-Ré#) que irão ressoar na parte superior do ostinato da próxima seção no
compasso 25 (SALLES, 2009, p. 149).
Sobre esse quadro escalar não diatônico Villa-Lobos faz uma melodia que não tem um
aspecto formal bem definido, progredindo por uma série de volteios melódicos,
apojaturas, arpejos e segmentos escalares rápidos que terminam apoiando-se em uma
nota. Ao final ocorrem as volatas simétricas que reafirmam o caráter disjunto da
melodia associado pelo programa à simulação do canto de um pássaro.
Estes elementos reaparecem em outra seção da peça, no último tempo do compasso 366.
A flauta faz uma figuração rápida ascendente de notas brancas em terças, que representa
a flecha lançada pelo “Indio feio” para matar o “Indio bonito”, como mostra a marcação
acima da partitura: “O Indio feio flexa [sic] o Indio bonito” (VILLA-LOBOS, 1948, p.
87). Sua escala adianta o ambiente de notas brancas situado entre os compassos 367
(página 88) e 369, iniciado por um acorde de Ré menor com sétima e nona em posição
fechada que segue sustentado por dois compassos (ver ilustração abaixo). A flauta
realiza nova figuração ascendente rápida seguida por tremolos. Como demonstram as
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FIGURA 7 – COMPASSOS 12 A 21 DE EROSÃO. ALGUNS INSTRUMENTOS FORAM SUPRIMIDOS.
FONTE: MANUSCRITO DE EROSÃO DISPONÍVEL NO MUSEU VILLA-LOBOS.
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Em um trabalho anterior (SANTOS, 2015, p.123) denominei esta tópica de “Murmúrios da floresta
noturna”, no entanto agora com novos dados da pesquisa reformulo sua denominação para “Floresta
Tropical”.
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Neste exemplo a tópica é formada por duas camadas texturais e associada à tópica canto
de pássaro na melodia. A primeira camada é um ostinato grave executado por piano e
baixo, formado pelo tricorde Dó#-Ré-Fá em semicolcheias, o que confere uma
organização rítmica ternária dentro de um compasso quaternário simples. O padrão é
quebrado no final do compasso 137, no qual o ostinato termina na nota Ré sem atingir a
nota Fá e recomeça no Dó# no compasso seguinte, o que acontece a cada dois
compassos. O registro grave, a dinâmica ppp, o uso do pedal no piano e as ligaduras
dificultam que as notas sejam percebidas individualmente, o que torna esta camada uma
linha grave oscilante que serve de fundo para a ambientação da melodia, conferindo
uma sonoridade escura à passagem, coerente com o ambiente noturno descrito no
argumento da peça.
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caracterizadas por arpejos ascendentes e descendentes, que são baseadas nas fórmulas
musicais europeias do século XIX (VOLPE, 2001). Alguns elementos realistas
contribuíam para a localização da paisagem em território nacional, como o canto do
sabiá no movimento Alvorada na Serra da Série Brasileira (1891) de Nepomuceno, o
que sugere um certo caráter nacionalista (DUDEQUE, 2010, p. 161). Como comenta
Volpe,
Um segundo exemplo da tópica Floresta Tropical pode ser encontrado nos compassos
iniciais de Erosão. O trecho comentado a seguir se encontra entre os compassos 1 e 12
da partitura. A peça começa com um ostinato grave oscilante nos baixos, somente os da
primeira estante, com sextinas de semicolcheia nas notas Mi e Fá em pianissíssimo. No
terceiro tempo entram os violoncelos da primeira estante fazendo o mesmo ostinato,
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mas com as notas Fá e Sol. As notas dos dois instrumentos somadas criam um tricorde
cujo primeiro intervalo é de um semitom, assim como no exemplo de Uirapuru, e com
um segundo intervalo de um tom. A cada novo compasso entra uma nova estante de
baixos e violoncelos até que os naipes se completem, o que confere mais densidade ao
timbre, mas mantém a dinâmica fraca. Este ostinato ainda conta com tam-tam tocado
em tremolo ao longo de todo o trecho, ao qual os pratos se juntam no compasso 6. O
tricorde inicial progride em complexidade harmônica ao longo dos compassos seguintes
com a adesão de outros instrumentos ao ostinato. No segundo compasso o tímpano faz
um tremolo na nota Ré, o fagote faz as sextinas em Si-Dó no compasso 4 e divide-se
inserindo Mi-Sol no compasso seguinte. A somatória de todos esses instrumentos
transforma o tricorde inicial num cluster entre as notas Si e Sol.
Considerações finais
No livro The Sense of Music, Monelle (2000, p. 45-65) analisa a tópica do “cavalo
nobre” (noble horse) demonstrando que ela se refere ao passado pois, apesar de
aparecer na música do século XIX, a tópica faz referência à uma visão idealizada e
socialmente construída da cavalaria na Idade Média. Em um trabalho posterior o autor
comenta:
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Este trabalho apresenta uma breve análise concentrada nos elementos musicais, que na
semiótica peirceana se refere ao representamen, de duas tópicas possíveis para o
repertório de Villa-Lobos. A partir das análises é inferido um interpretante para cada
tópica, seus rótulos. O objeto, aquela unidade cultural que é o significado da tópica,
aqui é tratado juntamente com as análises musicais, mas poderia ser tratado como um
tópico específico. Como afirma Monelle (2000, p. 80) o estudo das tópicas “requer um
aprendizado considerável em história social, literatura e organologia, assim como na
história das músicas funcionais”, portanto acredito que a análise do objeto seja um
segundo passo fundamental para o estabelecimento de uma tópica, o que requer a maior
parte das energias da empreitada. Volpe (2001), apesar de partir de um campo teórico
diferente, tem uma importante contribuição para o estudo histórico do objeto das tópicas
apresentadas neste trabalho, abordando a paisagem e o indianismo como topos da
música brasileira de Carlos Gomes até Villa-Lobos. Atualmente tenho trabalhado as
tópicas nos poemas sinfônicos indianistas de Villa-Lobos na minha tese de doutorado
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