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Apresentação na Odisseia

Boa tarde a todos, é um prazer dividir a mesa com pessoas tão fantásticas, cuja
produção eu tenho o prazer de acompanhar, mas também da mesa seguinte, nessa
que eu compreendo como uma dobradinha de ficção folclórica aqui na odisseia. Afinal,
quem conhece a produção dos companheiros da mesa que virá sabem que essa
literatura fantástica brasileira não recebe esse epíteto simplesmente por ter sido
produzida em solo nacional, mas por carregar, em maior ou menor grau, essas cores
de brasilidade da urdidura popular.
Meu nome é Andriolli Costa, sou jornalista natural de Mato Grosso do Sul, hoje
faço doutorado em Comunicação aqui na Federal do Rio Grande do Sul, e pesquiso
academicamente folclore e imaginário há 10 anos. Desde 2015 resolvi socializar este
conhecimento de pesquisa através do meu site, o Colecionador de Sacis, de projetos
de consultoria, curadoria, oficinas, dos meus podcasts o Popularium – produzido ano
passado – e o Poranduba que lancei agora em maio e várias outras ações daquilo que
eu chamo de “compromisso de divulgação folclórica”.
Na área da literatura eu organizei a Antologia Mitografias vol I – Mitos
Modernos, que com alegria foi escolhida a melhor antologia de 2017 pelo prêmio Le
blanc e agora organizo também a Antologia Mitografias vol II – Mitos de Origem, que
recebe contos até 31 de julho. Convido todos a consultarem o edital e, se tiverem
interesse, enviarem seu trabalho. Será um prazer recebe-los.
Em uma fala tão breve, se eu pudesse fazer com que vocês levassem alguma
coisa dessa apresentação, eu gostaria que fosse o seguinte: “Orixá não é folclore”.
Vocês podem esquecer meu nome, podem esquecer a explicação que eu vou dar em
seguida, mas carreguem isso com vocês: “Orixá não é folclore, orixá é religião”.
É claro que as coisas não são tão simples quanto uma frase de efeito faz
parecer. Por exemplo, em algumas linhas de esquerda das Umbandas mais misticas
você consegue fazer trabalhos com saci tal qual se faria com exu. Caboclas Juremas e
Imanjá tem grande parentesco com Iara. Então por que insisto nessa frase? É por que
pensar que “Orixá não é folclore, é religião”; ou, pensar também que “Tupã não é
folclore, tupã é religião” é virar uma chave de pensamento, que nos permite pensar
nas outras chaves mentais que também temos ativadas.
Como, por exemplo, por que eu faço tanta questão que seja folclore, ou que
seja só folclore? Trago o exemplo que obervei em um jogo de cartas que quase
aconteceu realmente o Batalha de Mitos. Nele, era possível colocar Xangô para lutar
contra Mapinguari. Saci para brigar contra Oxalá. Mas por que ninguém pensou em
colocar Curupira para enfrentar... jesus cristo?
E por que eu não arrisco a mesma abordagem folclorizante com outras
religiões, estas mais hegemônicas? Será, e apenas será, que não é por que
implicitamente se está colocando que algumas religiões são mais sagradas do que
outras? Mais intocáveis do que outras? Ou que nem são religião?
Perceba que esses questionamentos todos eu trago para os autores de ficção
folclórica, nós que pensamentos e criamos nossas narrativas sempre em co-autoria.
Por que para o povo, o verdadeiro autor das histórias folclóricas, nunca houve o menor
pudor nesse sentido. São Pedro, nos contos populares, sempre foi um grande
trambiqueiro. Inclusive em algumas interpretações sobre Pedro Malasartes, um dos
maiores tricksters da cultura popular brasileira – não fosse o saci – retoma às Más
Artes de Pedro à abusões cometidos por São Pedro.
Oswaldo Xidieh tem um livro maravilhoso chamado Narrativas Pias Populares,
onde encontramoss uma série de histórias fantásticas envolvendo santos e
especialmente a sagrada família, onde Jesus e Maria amaldiçoam e castigam animais a
torto e a direita.

CONTAR A HISTÓRIA DO LINGUADO

O povo não teme contar histórias onde Jesus mama na teta de uma gambá.
Onde jesus bate na cara de um peixe. Nós temos esse pudor com as religiões
dominantes, mas não temos pudor algum em transformar Orixás em monstros estilo
Cthulhu em uma história de terror. Muito se fala sobre a importância de haver
histórias assim para que ao menos se divulgue essa cultura, e se fale sobre isso.
Questiono: é de interesse de quem mais histórias que falem de um exu associado ao
demônio, de orixás associados a malefícios, trabalhos de “macumba”, vilaneza? Não é
a quantidade que importa, nunca foi.
Eu escrevi ano passado um texto chamado Os 10 principais erros de quem
escreve ficção folclórica no Brasil. O maior deles, a meu ver, era a falta de afeto. Se
você pensa em escrever sobre Orixás, mitos indígenas ou cultura de algum povo
minoritário para exotificar, ou por que quer “melhorar” aquilo que acha que é muito
“bobo” no folclore – como já ouvi de alguns escritores, talvez o que te falta seja a
escuta certa. Menos a vontade de falar, e mais a de ouvir.
A escutatória, a pesquisa séria, a proximidade não são camisas de forças, uma
barreira intransponível, elas abrem um novo universo de possibilidades que podem
disparar gatilhos criativos que você, no senso comum, nunca pensou. Esses dias eu
pesquisava sobre um mito Bororo e encontrei a descrição de um “verme mágico” com
uma nota de rodapé. Adorei o verme e fui ler a nota. Dizia que a tradução era suspeita,
pois nenhum dos radicais ali indicava a palavra verme. Oras, o mínimo que eu posso
fazer hoje, se eu fosse escrever essa história, seria procurar um Bororo e pedir para ele
me contar sua história.
A internet tornou esse contato possível, vocês se surpreenderiam. Quem sabe
não seja um verme, seja um feiticeiro sagrado para aquele povo? Ou seja realmente
um verme, e ao perguntar eu descubra que esse verme é gigantesco, espiritual, e torne
a descrição ainda melhor? Tradutor, traidor, dizia o ditado. Hoje os povos indígenas
tem sua própria voz, podemos escutá-la. Com nossas histórias, podemos mediá-las,
multiplica-las.
Quem lê sobre folclore já deve ter ouvido falar sobre como a cultura popular
brasileira foi formada do “perfeito amalgama das três culturas: o branco, o indígena e
o negro”. Sabemos que isso é uma ingenuidade, as trocas culturais foram impostas em
dinâmicas de dominação e poder absolutamente desiguais. Se a gente tem a
capacidade de mudar isso, nem que seja na nossa narrativa, nem que seja nos nossos
discursos, não vale a pena construir esse Brasil folclórico?
Para estimular esse diálogo dos afetos, certa vez fiz um post no blog onde dizia
que escrever ficção folclórica era a oportunidade perfeita para o escritor conhecer sua
cidade. Visitar a comunidade que quer retratar, conhecer um quilombo, ir até uma
aldeia. Tirar o Brasil da gaveta, como diz o Rolando Boldrin. Um escritor me
questionou: “que ridículo! Então para eu falar de Grécia antiga sou obrigado a pegar
um avião até a Itália?”.
Primeiramente que eu não quero obrigar ninguém a nada. Penso sobre um
objeto que amo, o que faço são convites a reflexões. Em segundo que, Infelizmente
para essa pessoa, uma aldeia Guarani ou um Quilombo estão tão distantes quanto
uma terra além-mar, em outro continente, sendo que hoje a gente já chega lá de Uber.
As distâncias não estão na quilometragem, vocês sabem onde estão.
Por fim, encerro minha apresentação trazendo uma preocupação final: a
colonização das histórias. Podemos coletar e depois mercantilizar narrativas de povos
originários – indígenas, quilombolas, etc. – tal e qual fossem pau brasil? Claro, claro,
somos todos brasileiros, mas enquanto eu leio e reconto mitos Bororo, por exemplo,
ganho prestígio e faço palestras, os Bororo propriamente ditos estão morrendo no
meu estado em um genocídio dos mais cruéis. Indígenas são queimados na rua e seus
agressores hoje são advogados, concursados, seguiram com a vida... Enquanto eu
reconto histórias de orixás, terreiros são incendiados, meninas negras com guias de
candomblé levam pedrada na rua... Então eu pergunto, qual é a nossa contra-partida?
“Ah, Andriolli, você está falando de dinheiro?”. Olha, as vezes é questão de
dinheiro sim. O companheiro Ian Fraser falou isso no meu podcast que entrará no ar
em breve, por isso tomo a liberdade de dizer publicamente também: uma
porcentagem da campanha de Araruama 2, sendo ela bem sucedida, será destinada a
uma ONG que atende povos indígenas. Conversando com o Hugo Canuto, de Contos
dos Orixás, ele disse o mesmo. Parte da porcentagem do que recebeu no Catarse foi
para uma casa que ele conhece o trabalho e confia.
Todos nós precisamos fazer isso? Evidente que não. Não existe regra, gente,
cada um de nós vai entender o que pode ou não fazer. Mas por exemplo, se você
escreveu um livro de orixás e foi chamado para falar numa escola, por que não
aproveitar esse espaço que você conquistou para levar alguém de religião junto? Se vai
trabalhar com indígenas, por que não incorporar indígenas na sua produção.
Escute, devolva, conte, reconte, colecione histórias do folclore brasileiro. Essa é
a única coleção que quanto mais você compartilha, mais você tem.

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