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ABSTRACT INTRODUÇÃO
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campo do cinema e do audiovisual. Dentre ampliação do repertório estético-
tais preocupações, daremos destaque, cinematográfico em direção a
aqui, para dois pontos em específico: cinematografias que se contraponham aos
primeiramente, para a compreensão da padrões estéticos narrativos explorados
forma com que a grande indústria pelo cinema comercial. A partir daí, seria
cinematográfica brasileira se estrutura. É possível compreender os processos de
inegável que o cinema brasileiro é marcado atuação dos filmes estritamente comerciais
por cinematografias que abarcam grande em nossa formação.
diversidade de formas narrativas, estéticas Ora, se a Lei 13.006/2014 não nos
e poéticas. No entanto, não se pode deixar apresenta especificações acerca do tipo de
de considerar que o cinema brasileiro cinematografia nacional que deve ser
hegemônico, que possui maior visibilidade levada às escolas e à forma com que esta
no país, tem como molde os protocolos inserção deve ser realizada, como pode a
narrativos e formais do cinema mainstream experiência estética com o cinema nacional
hollywoodiano, que apresenta consonância acontecer de maneira refletida e
com os esquemas da indústria cultural – aprofundada? Segundo Bernardetiii, o
esta que visa, majoritariamente, a produção público brasileiro possui como referência
de bens padronizados voltados para a estética o cinema norte-americano que,
identificação do espectador com a lógica do desde o início do século XX, ocupou o
consumoi. mercado cinematográfico nacional. Deste
Por não trazer especificações acerca modo, houve um processo não apenas de
desta questão, buscaremos nos edificação e consolidação de um mercado
argumentos do idealizador da proposta – o fílmico nacional baseado em seus
senador Cristovam Buarque – elementos parâmetros, mas também a promoção da
que nos auxiliem a compreender, de educação do público brasileiro em direção
maneira geral, os objetivos da Lei; estes a estes padrões. Se este processo de
nos apresentam alguns indicadores sobre o educação do gosto é premente no âmbito
tipo de cinematografia à qual a moção se da formação dos sentidos, como é possível
refere. Julgamos ser este ponto relevante que outras estéticas adentrem o âmbito
em função da necessidade de se repensar, escolar?
de maneira crítica, o tipo de educação dos Esta questão nos leva ao segundo
sentidos promovida pelos filmes da grande ponto que traremos à baila neste trabalho,
indústria cinematográfica mainstream – a qual seja, a forma com que esta lei ecoa
qual já se tem acesso fora dos muros em um universo escolar onde o cinema,
escolares. majoritariamente, encontra-se travestido
A hipótese central defendida neste como recurso escolar de apoio aos
trabalho tem como base a premissa de que conteúdos escolares. E, mesmo dentro
a experiência estética com o cinema, na desta perspectiva, são poucos os filmes
escola, deve suscitar faculdades como a nacionais que são utilizados para se pensar
imaginação e a fantasiaii, através de uma os conteúdos em questãoiv.
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Tal processo de didatização leva à nacional poderia ser pensado dentro da
perda de sentido da experiência estética escola: se seria viável integrá-lo ao
com o cinema – visto que aos filmes é currículo complementar da proposta
atribuída uma função extrínseca de objeto. pedagógica das escolas, ou se seria
A experiência com o cinema nacional – que relegado à um dos conteúdos
suscitaria a aproximação com estéticas programáticos da disciplina de Arte; neste
fílmicas diversificadas –, nesta perspectiva, caso, a exibição de filmes nacionais seria
é tolhida em função do redimensionamento apenas um indicativo, e não uma
dos filmes, que são relegados a uma obrigatoriedadev.
posição secundária. Tendo sido alterado, no ano de 2010,
Para que a experiência com o o Projeto de Lei – agora PL 7.507/2010 –
cinema nacional, enquanto potência passou a contar com o apoio substancial
formativa histórica, estética e poética, se de discussões que aconteciam
aproxime do universo das escolas, é concomitantemente no campo do
necessário um processo de formação dos audiovisual; estas endossavam a
educadores para que apreendam novas necessidade de o cinema nacional se
possibilidades de apropriação do cinema aproximar das escolas de Educação Básica
brasileiro na escola. Deste modo, a Lei no Brasil. Barravi explica que, no ano de
13.006/2014 deve ser perscrutada à luz 2012, educadores, cineastas, produtores,
das necessidades provenientes das arquivistas e conservadores da Rede
instituições escolares, de maneira geral, e Latino-Americana de Educação, Cinema e
das práticas pedagógicas, de maneira Audiovisual (Rede Kino), que estavam
particular. presentes na 7º Mostra de Cinema de Ouro
Preto (CINEOP), trouxeram para a pauta
DESENVOLVIMENTO de suas discussões o compromisso com a
A LEI 13.006/2014: CONTEXTOS E educação, enfatizando a necessária
SIGNIFICAÇÕES
articulação entre educação e criação
brasileiras. Tal discussão demorou a ser onde foi pontuada a necessidade de uma
principal debate a forma com que o cinema às obras cinematográficas sem ônus para
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as escolas públicas, nos casos em que o escolares e das práticas docentes. Uma
Estado conste como produtor; inscrição na iniciativa mais marcante no que tange à
Lei de Autorais (LDA) do não pagamento análise pormenorizada dos efeitos e
destes direitos em obras protegidas, significações que surgem a partir da
quando os fins de exibição forem promulgação é colocada em prática já no
educativos; garantia de adequada condição ano de 2015 por Adriana Fresquetviii,
para exibição de filmes em todas as pesquisadora que se preocupou em
escolas; incentivo aos projetos que elaborar materiais voltados para a
articulam o cinema nacional com as discussão sobre os sentidos da Lei e as
escolas e que auxiliem os professores no possibilidades e limites da inserção do
trabalho com o cinema; além do cinema cinema nacional na escola.
nacional, a longo prazo, ser pensada Fresquetix pontua alguns aspectos
também a inserção do cinema latino- relevantes para a compreensão dos
americano nas escolas; ampliação dos objetivos que estão encobertos sob a Lei e
diálogos entre o então Ministério da Cultura que, por sua vez, nos dão alguns indícios
e o Ministério da Educaçãovii. sobre sua significação. A autora expõe,
Tais discussões vieram a contribuir inclusive, uma entrevista que foi concedida
com o tensionamento das resistências ao por Cristovam Buarque, onde o senador
projeto e com a ampliação da proposta do apresenta suas motivações – que, após a
Senador Cristovam Buarque. No dia 26 de promulgação da Lei, “[...] passam a ser
junho de 2014, então, é sancionada pela reflexões sobre sua aplicabilidade” x.
Presidenta Dilma Rousseff a Lei 13.006: O senador pontua na entrevista em
questão que, ao propor que o cinema
Lei nº 13.006, de 26 de junho de 2014 nacional seja obrigatório nas escolas,
Acrescenta § 8º ao art. 26 da Lei nº
9.394, de 20 de dezembro de 1996, que enxerga que
estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, para obrigar a
exibição de filmes de produção nacional [...] a única forma de dar liberdade à
nas escolas de educação básica. indústria cinematográfica é criar uma
§ 8º A exibição de filmes de produção massa de cinéfilos que invadam nossos
nacional constituirá componente cinemas, dando uma economia de
curricular complementar integrado à escala à manutenção da indústria
proposta pedagógica da escola, sendo a cinematográficaxi.
sua exibição obrigatória por, no mínimo,
2 (duas) horas mensais. Esta Lei entra
em vigor na data de sua publicação. Nesta colocação vemos, claramente,
que Buarque se refere a um processo de
Curioso é que a sanção da Lei não educação do público brasileiro para que
teve grande repercussão no universo este ocupe as salas de cinema que exibem
escolar. Após uma tímida divulgação, que filmes nacionais – um púbico que, como
ocorreu majoritariamente via internet, coloca Bernardetxii, teve seu gosto
através de notícias sobre a Lei e as colonizado pelo cinema norte-americano.
benesses que adviriam de sua efetivação, Com isso, tornar-se-á possível ampliar a
parcas foram as discussões que de fato indústria cinematográfica brasileira,
atingiram o âmbito das instituições incentivando a produção fílmica no país.
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No entanto, um argumento que futura formação de consumidores de
também parece estar contido nesta fala do cinema é colocada como centro da
senador é que tal ampliação da indústria questão.
cinematográfica ocorreria através da Outra fala marcante de Cristovam
produção de filmes com os quais o público Buarque diz respeito à relação entre
se identifica – já que deve ocorrer pela via cinema e arte. Segundo o senador,
do gosto. Isso nos leva àquilo que pontuam
os filósofos Theodor Adorno e Max [...] a arte deve ser parte fundamental do
processo educacional nas escolas. A
Horkheimerxiii quando se referem ao cinema ausência de arte na escola, além de
como principal expoente da indústria reduzir a formação dos alunos, impede
que eles, na vida adulta, sejam usuários
cultural. Adorno e Horkheimerxiv inferem dos bens e serviços culturais; tira deles
um dos objetivos da educação, que é o
que tal processo de identificação não leva a deslumbramento com as coisas belas. O
nada menos do que a subsunção do cinema é a arte que mais facilidade
apresenta para ser levada aos alunos
espectador às ideologias da indústria – nas escolas. O Brasil precisa de salas de
cinema como meio para atender o gosto
que, por meio de protocolos narrativos e dos brasileiros pela arte e ao mesmo
formais de fácil compreensão, que se tempo precisa usar o cinema na escola
como instrumento de formação deste
fazem receita para a produção de enredos gostoxv.
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“deslumbramento com coisas belas”, como outras expressões artísticas. Tal
afirma o senador. O deslumbramento argumento, que encontra respaldo na
irrefletido não dá espaço para que a revolução microtecnológica ocorrida nas
experiência do espectador se efetive. A últimas décadas e que em tese proporciona
arte, mais do que remeter ao belo, deve se a acessibilidade a suportes diversificados
fazer um abalo para quem a contemplaxvii. para a exibição de filmes, mostra-se falho
Esse abalo é o que pode vir a recuperar o na medida em que os investimentos
espaço necessário para que o espectador realizados no âmbito da educação, de
recobre sua imaginação e sua fantasia. maneira geral, e da efetivação da Lei, de
Cineastas como Glauber Rocha, maneira específica, são mínimos. Em uma
Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, pesquisa realizada no Estado de São
Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra, Pauloxix, que teve como foco a análise da
Hector Babenco, Gabriel Mascaro, dentre forma com que os professores do Ensino
tantos outros, cumprem tal intenção de Fundamental se apropriam dos filmes em
gerar um abalo em seu público através da suas práticas, foi constatado que grande
contestação dos conteúdos e da forma do parte das escolas participantes não
cinema mainstream hollywoodiano. possuía recursos como filmoteca ou
Segundo Loureiroxviii, tal cinematografia aparelhagem adequada para a exibição de
promove não apenas a ampliação de filmes em sala de aula.
repertório estético, mas permite O senador afirma ainda que
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aqui adotada, é mais do que a aproximação que tem que fazer isso e havendo certa
simpatia de parte dos professores, a
dos bens artísticos ou produtos escola encontrará o caminho. O MEC já
comercializáveis travestidos sob a forma de deveria estar comprando audiovisuais
além de livrosxxiii.
arte, e também não deve ser associada ao
consumo de tecnologias “atraentes”. Além Neste argumento, o cinema parece
disso, a afirmação de que a instituição ser considerado uma linguagem que fala
escolar encontra-se ultrapassada quando por si só. Em outras palavras, a mediação
não se adapta a um contexto onde a do professor não teria grande relevância,
tecnologia se faz premente consiste em posto que apenas a exibição de filmes
mais uma pauta da ideologia do consumo – nacionais, sem nenhum tipo de reflexão
visto que, nesta perspectiva, os meios se aprofundada sobre sua linguagem, seria o
sobressaem aos conteúdos. suficiente para que a Lei fosse efetivada.
A ideia de que a escola é “chata” Todavia, o cinema percorre um longo
quando não é divertida é um indício de que caminho até chegar à escola: passando
as formas de transmissão dos conteúdos pela escolha dos filmes que serão
são consideradas mais importantes do que assistidos, pelos critérios utilizados para tal
o próprio conhecimento a ser construído na escolha, pelas atividades e reflexões que
instituição. Gruschkaxxi afirma que esta serão desenvolvidas a partir da experiência
questão é associada à apropriação da com uma cinematografia que é pouco
didática escolar e dos diversos recursos comum em sala de aula. Tais questões são
didáticos enquanto “[...] um tempero mais colocadas em segundo plano pelo senador
saboroso”, que torna o ensino mais que trouxe à baila a proposta que permitiu
atraente ao mesmo tempo em que a efetivação da Lei.
legitimam a prominência da lógica da De maneira alguma
indústria cultural no âmbito escolar. O desconsideramos que a Lei 13.008/2014
cinema, na perspectiva do senador, parece constitui um grande avanço frente aos
ocupar justamente o lugar criticado por tantos anos de inserção do cinema
Gruschkaxxii: um objeto que atrai a atenção comercial nas escolas de Educação
de crianças que nascem já educadas por Básica. Embora as lacunas na proposta do
“telas”, e que caberia perfeitamente como Senador Cristovam Buarque sejam
uma maneira de adequar a escola às inquietantes – principalmente por pautar a
tecnologias de seu tempo. inserção do cinema nacional na escola em
Curioso é que ao se referir à critérios que parecem estar atrelados a um
efetivação da Lei 13.008 nas escolas, mercado que há quase um século tem
Cristovam Buarque não nos apresenta limitado as possibilidades de afirmação e
detalhamento específico: divulgação de uma cinematografia
organicamente brasileira –, o fato de se
[...] por mim, seriam mais de duas horas tratar de uma proposta que se encontra em
mensais, mas para ser mais de duas
horas teria que ser no horário integral aberto, no que tange às formas de
[...]. Agora, o modus operandi eu abordagem, nos dá subsídios para pensar
confesso que não sei direito. Sabendo
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em caminhos alternativos para o ingresso hollywoodiana. E, quando se apropriam dos
do cinema nacional em sala de aula como filmes em suas práticas pedagógicas, estes
uma potência formativa. Defendemos a são utilizados como apoio para os
possibilidade de que esta democratização conteúdos escolares que seus alunos têm
do acesso a estéticas que se afastam da dificuldade de compreender.
estética mainstream possa ocorrer pela via Daí deduzimos, primeiramente, que
da experiência estética com filmes por terem seu gosto modulado por filmes
nacionais; para tanto, é urgente que a que possuem uma estética padronizada,
didatização da arte, de maneira geral, e do poucos são os filmes nacionais que
cinema, de maneira particular, deixe de ser chegam à escola por iniciativa dos
pensada como única opção viável ligada ao professores. Deste modo, quando
cinema na escola. Cristovam Buarquexxix pontua que as
escolas devem encontrar seu próprio
A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA COM O caminho na abordagem do cinema
CINEMA NACIONAL: NOVAS VIAS nacional, corre-se o risco de se reforçar as
PARA A PRÁTICA PEDAGÓGICA
mesmas estéticas e poderes econômicos
que dominam um mercado que restringe as
Como já explicitado, muito daquilo
diferenças. Em segundo lugar, julgamos
que se entende das relações entre cinema
que a experiência estética com o cinema,
e educação escolar no Brasil tem como
de maneira geral, não chega à escola, visto
referência o uso dos filmes como recurso
que este se torna recurso de apoio.
didático de apoio aos conteúdos escolares.
A entrada do cinema nacional na
Embora despontem, cada vez mais,
escola exige que os docentes repensem
iniciativas institucionais e projetos
suas próprias práticas quando do uso do
independentes que visam o rompimento
cinema na escola. Isto porque, quando
com a lógica da instrumentalização do
inserido no mesmo pacote de filmes norte-
cinema – e, aqui, poderiam ser citados
americanos, a especificidade estética,
como exemplo os trabalhos de Fresquetxxiv,
poética e narrativa que é peculiar ao
Nortonxxv, Bergalaxxvi, Migliorinxxvii, dentre
cinema nacional é deixada de lado.
tantos outros –, tem-se uma cultura escolar
Todavia, é mister questionar: professores
fortemente arraigada que ainda resiste à
da educação básica, que tem uma
desmobilização do espaço facultado ao
formação estético-cinematográfica enleada
cinema na escola. Discorrendo, de modo
predominantemente por um único tipo de
mais específico, sobre a relação que
cinematografia, possuem repertório para
professores do Ensino Fundamental
abordar tais questões em sala de aula?
estabelecem com o cinema – mote de
Como gerar uma aproximação profunda
nossa pesquisa de mestradoxxviii –,
entre professores e linguagem
pudemos observar que esta relação, no
cinematográfica?
âmbito da formação cultural, tem como
Aparentemente, tais questões
referência filmes majoritariamente
possuem uma resposta incontestável: qual
comerciais da indústria cinematográfica
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seja, o investimento na formação inicial e um momento falível, com a qualidade da
persuasão. [...] O abalo intenso,
continuada de professores para que estes brutalmente contraposto ao conceito
ampliem seu repertório cinematográfico usual de vivência, não é uma satisfação
particular do eu, e é diferente do prazer.
nacional, reconheçam o papel exercido É antes um momento da liquidação do eu
que, enquanto abalado, percebe os
pelo cinema comercial, e se apropriem de próprios limites e finitude. Esta
novas formas de abordagem dos filmes que experiência é contrária ao
enfraquecimento do eu, que a indústria
se afastem da didatização que é tão cultural promove.
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artístico, é um dos necessários momentos filme em mero fetiche do e pelo mercado.
de entendimento que tangem à Tem-se aí uma concepção dialética de
experiência. experiência, que consistirá então em uma
Indo além, Adornoxxxiii afirma, mediação entre percepção individual e
especificamente em relação à estética contingência social. Deste modo, a
cinematográfica, que experiência estética com o cinema
consistirá em uma expansão do espaço de
A estética do filme deverá antes recorrer recepção cinemática, uma vez que vitalizar
a uma forma de experiência subjetiva,
com a qual se assemelha apesar de sua e estimular as formas de recepção fortalece
origem tecnológica e que perfaz aquilo o potencial imaginativo do espectador, que
que ele tem de artístico.
passa a compreender o caráter
Diferentemente da vivência contraditório de uma arte que é também
promovida no seio da indústria cultural, tal uma indústria.
experiência subjetiva citada por Adorno, A ampliação dos espaços de
dentre outros elementos, parece apontar recepção cinemática na teoria de Kluge,
para um tipo de experiência que se tornará segundo Roldánxxxv, pode ser
matéria da autonomia. O filósofo aposta em compreendida como um rompimento das
filmes e cinematografias que procuram cadeias associativas automáticas do
voltar-se para a experiência subjetiva como espectador. Isto porque o cineasta
uma forma de completar aquilo que ele considera que, ao contrário da antecipação
possui de artístico, como uma forma de das reações de seus espectadores –
desafiar a técnica. Essa potência deve ser capcioso mecanismo utilizado pela
traduzida em uma estética que leve aquele indústria hollywoodiana –, é necessário que
que assiste ao filme para além da o público participe da obra fílmica,
experiência ordinária, deslocando sua completando-a através de prolongamentos
sensibilidade para o âmbito extraordinário reflexivos, questionamentos, de modo que
da experiência. o público possa, até mesmo, criar outro
Este “ir além” é uma das inferências filme no espaço imaginal:
de Alexander Klugexxxiv, também, quando
se refere à experiência do espectador. Na Há uma dialética entre essas
experiências subjetivas e o modo de
perspectiva do cineasta, a experiência objetiva-las que supõe a narração em
estética com o cinema deve constituir um geral e o cinema em particular. Mas, para
Kluge, há outro fator indispensável a ter
horizonte social, onde a capacidade de em conta na estética do cinema. Nada
disso funcionaria sem a imaginação
empregar a fantasia – concebida pelo fílmica dos espectadores. [...] isso deve
cineasta como capacidade imaginativa que despertar imagens diferentes em cada
sujeito. Há imagens internas subjetivas,
pode escapar à dominação da consciência há experiência em cada ato particular de
recepçãoxxxvi.
engendrada pela relação irrefletida com os
produtos da indústria cultural – deve ser A experiência com o cinema seria,
parte das experiências que resistam à então, a ampliação de um espaço onde o
transformação da atividade de recepção do filme seria recebido como uma criação
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coletiva, um espaço de produção imaginal. processo de dominação da consciência,
O espaço da imaginação detém requer um paulatino exercício da
importância ímpar neste processo por se capacidade imaginativa em direção à
fazer um espaço de resistência: é aqui que ampliação dos espaços de recepção do
reside a possibilidade de se realinhar os cinema. E a escola, de maneira geral, e o
fragmentos da experiência, através de uma cinema nacional, particularmente, podem
nova constelação de realidade e fantasia. vir a representar um lócus para que essa
Por sua vez, a fantasia se constitui ampliação torne-se parte de um processo
como uma forma de produção de de reeducação do olhar.
experiências. Este espaço, no entanto, é Ao passo que a obrigatoriedade da
suprimido pela racionalidade técnica e exibição de filmes nacionais pode vir a
pelos esquemas da indústria cultural, que a representar um grande avanço em direção
reintroduzem nos indivíduos sob um ao fortalecimento de uma cultura nacional e
formato domesticado. É devido a esta de uma memória coletiva diferente daquela
dominação que Roldánxxxvii afirma que veiculada de modo estereotipado – mesmo
que a Lei 13.006/2014 seja considerada
[...] se acreditamos que pensar a ambígua e pareça favorecer estéticas e
experiência estética como o jogo que se
estabeleceria entre a montagem e a poderes econômicos hegemônicos –, os
imaginação fílmica dos espectadores, filmes nacionais podem também se
não equivale a afirmar que todo receptor
é capaz de criar ativamente, argumento apresentar como subsídio estético para
principal das críticas a ideia de indústria
cultural. uma experiência estética que se diferencia
da vivência propiciada pelo cinema
É neste ponto da discussão que mainstream. Tem-se aí uma via de mão
retornamos ao cerne deste trabalho: a dupla.
inserção do cinema nacional nas escolas No entanto, não podemos de
brasileiras. A experiência estética com esta maneira alguma afirmar que esta é uma
cinematografia, quando pensada sob a possibilidade que se efetivará de maneira
perspectiva teórica de Theodor Adorno e simples e imediata. A experiência – tal qual
Alexander Kluge, deve caminhar na o conceito aqui postulado – não é bem
contramão da cultura escolar que se recebida em um sistema educacional onde
apropria do cinema como recurso didático. a capacidade imaginativa é enquadrada
É inegável que, se a capacidade dentro dos moldes da indústria cultural.
imaginativa de exercitar a fantasia consiste Para que a experiência estética com o
em uma das vias de uma autêntica cinema torne-se efetiva na escola, deve-se
experiência com o cinema, esta é uma pensar na constituição de um campo
possibilidade contra-hegemônica – visto específico onde a linguagem
que os mecanismos de atuação da cinematográfica seja pensada a partir de
indústria cultural, como destacado por metodologias e abordagens particulares,
Roldánxxxviii, atuam em função da sem, no entanto, desconsiderar o diálogo
colonização de tais capacidades. Fortalecer
a experiência estética, diante deste
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com a cultura e a formação já promovidas pedagógicas inapropriadas ou
meramente normatizadoras, subtraindo-
pelas escola. E como fazê-lo? lhe sua potência formativa, inventiva e de
Repensar a formação dos docentes comunicação com o mundoxxxix.
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O caminho a ser percorrido a partir
xxxiii ADORNO, 1994, p. 102.
da aprovação da Lei é ainda bastante xxxiv KLUGE, 1988, P. 454.
xxxv ROLDÁN, 2016, p. 1133.
longo, posto que não podemos
xxxvi ROLDÁN, 2016, p. 1134.
desconsiderar a força dos produtos da xxxvii ROLDÁN, 2016, p. 1134.
xxxviii ROLDÁN, 2016.
indústria cultural brasileira no que tange à xxxix AMÂNCIO, 2015, p. 30.
xl
dissimulação desta história em favor da LOUREIRO, 2006, p. 268.
veiculação de ideologias que visam
justamente o apagamento de tais questões. BIBLIOGRAFIA
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nacional nas escolas possa gerar uma
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desmobilização da forma com que o
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educação, política e mafuá. Rio de Janeiro:
Beco do Azougue, 2015.
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