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PADRE ANTÓNIO VIEIRA


Escritor, pregador: 1608 - 1697

NESTE MUNDO HÁ MUITAS


MISÉRIAS QUE NÃO
SÃO IGNORÂNCIAS, E NÃO HÁ IGNORÂNCIA QUE NÃO SEJA
MISÉRIA...QUANDO TUDO
ACONTECEU...

1608: A 6 de Fevereiro, nasce em Lisboa António Vieira. - 1614: Aos 6 anos


parte para o Brasil, com família; seu pai fora nomeado escrivão da Relação
na Baía. - 1623: Aluno do Colégio dos Jesuítas na Baía, sente vocação
religiosa. - 1624: Os holandeses ocupam a cidade; os jesuítas, com Vieira,
refugiam-se numa aldeia do sertão. - 1633: Prega pela primeira vez. -
1635: É ordenado sacerdote, é Mestre em Artes e exerce a função de
pregador. 1638: Pronuncia nos anos seguintes alguns dos seus mais
notáveis Sermões. - 1641: Parte para Portugal na embaixada de fidelidade ao
novo
rei; é preso em Peniche no desembarque; torna-se amigo e confidente de
D. João IV. - 1642: Prega na Capela Real; publica um sermão avulso. - 1643:
Na "Proposta a El-Rei D. João IV "declara-se favorável aos cristãos novos
e apresenta um plano de recuperação económica. - 1644: Nomeado
pregador régio. - 1646: Inicia actividade diplomática indo à Holanda. - 1647: Vai
a
França e fala com Mazarino. - 1648: Emite um parecer sobre a compra de
Pernambuco aos holandeses; defende a criação da província do Alentejo. -
1649: É ameaçado de expulsão da Ordem dos Jesuítas, mas D. João IV
opõe-se. - 1650: Vai a Roma, para contratar o casamento de D. Teodósio. -
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1652: Parte para o Brasil como missionário no Maranhão. - 1654: Sermão
de Santo António aos peixes; embarca para Lisboa a fim de obter novas leis
favoráveis aos índios. - 1655: Prega na capital, entre outros, o Sermão da
Sexagésima; regressa ao Maranhão com as novas leis. - 1659: Escreve
Esperanças de Portugal - V Império do mundo. - 1661: É expulso, com os
outros jesuítas, do Maranhão, pelos colonos. - 1662: Golpe palaciano que
entrega o governo a D. Afonso VI; desterro no Porto. - 1663: Desterro para
Coimbra; depõe no Santo Ofício sobre a sua obra Esperanças de Portugal. -
1664: Escreve a História do Futuro; adoece gravemente. - 1665: É preso
pela Inquisição, depois mantido em custódia. - 1666: Entrega a sua defesa
ao Tribunal; é interrogado inúmeras vezes. - 1667: É lida a sentença que o
priva da liberdade de pregar; D. Afonso VI é afastado do trono. - 1668: É
mantido em custódia em Lisboa; pazes com Castela; é amnistiado, mas
impedido de falar ou escrever sobre certas matérias. - 1669 - Chega a
Roma, prega vários Sermões que lhe dão grande notoriedade na Corte
Pontifícia e na da Rainha Cristina; combate os métodos da Inquisição em
Portugal; defende novamente os cristãos novos. - 1675: Breve do Papa que
louva Vieira e o isenta da Inquisição; regressa a Lisboa. - 1679: Sai o
primeiro volume dos Sermões; recusa o convite da Rainha Cristina para seu
confessor. - 1681: Volta à Baía e aos trabalhos de evangelização. - 1683:
Intervém activamente na defesa de seu irmão, Bernardo. - 1688: É
nomeado Visitador Geral dos Jesuítas no Brasil. - 1691: Resigna ao cargo por
força
da idade e da falta de saúde. - 1697: Morre na Baía, a 18 de Julho, com 89
anos.

CRISTINA E OS PREGADORES

"Demócrito ria, porque todas as coisas humanas lhe pareciam ignorâncias;


Heraclito chorava, porque todas lhe pareciam misérias: logo maior razão
tinha Heraclito de chorar, que Demócrito de rir; porque neste mundo há
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muitas misérias que não são ignorâncias, e não há ignorância que não seja
miséria".
Cristina sente vontade de aplaudir a tirada oratória que acaba de escutar.
Não o faz porque quer manter o tom algo solene da reunião que ela própria
provocou.
António Vieira prossegue o discurso, inflamado e lógico. Ouve-o
atentamente, um colega jesuíta, o padre Jerónimo Catâneo. Poucos
minutos antes, este defendera o riso de Demócrito perante os males do mundo
-
agora, Vieira, defende o pranto e as lágrimas de Heraclito perante os
mesmos males.
Ambos tinham sido desafiados por Cristina Alexandra - um advogaria o riso,
outro o choro.
O salão está repleto de personalidades convocadas pela ex-rainha da
Suécia para ouvirem os dois renomados oradores sagrados.
Estamos em 1674. Há cerca de 20 anos, Cristina vive em Roma depois de
ter abdicado do trono sueco e de se converter ao catolicismo. O seu palácio é
um pólo de atracção de artistas, intelectuais e religiosos. Tal como
acontecera em Estocolmo, a rainha, dotada de grande inteligência e
cultura, a que se junta uma personalidade misteriosa e controversa,
continua em Roma a rodear-se das figuras mais célebres da Europa, uma
das quais fora Descartes falecido, em 1650, durante a sua estada na corte
nórdica. A mesma rainha que, em 1641, acolheu uma embaixada de D. João
IV que tratou de modo afável, reconhecendo o rei que em 1640 subira ao
trono, depois de afastar os Filipes de Espanha. ( O povo português mantém,
ainda
hoje, uma expressão popular, "dar vivas à Cristina" que encontra a sua
origem no entusiasmo com que recebeu o beneplácito da rainha ao novo rei
).António Vieira está na cidade desde 1669 e a sua fama de pregador chega
aos ouvidos de Cristina da Suécia. Na época, António Vieira prega em
italiano, a rainha escuta alguns dos seus sermões e convida-o para seu
pregador.
António Vieira recusa o convite. Porque, diz, é pregador do seu rei. E
porque o que o trouxe a Roma não está completado, apesar dos cinco anos
que leva de permanência. Mas, no ano seguinte, consegue, junto da Curia
Romana, o seu objectivo. De imediato, volta a Portugal.

O PRIMEIRO NAUFRÁGIO

O pequeno António refugia-se nos braços da mãe. Vai agoniado. A caravela


que transporta a sua família em direcção a S. Salvador da Baía no Brasil,
balouça descontrolada na violência tempestuosa do mar. A bordo, como era
comum na época, as condições são péssimas. Mal se dorme, tal a
quantidade de parasitas de todo o género de que o barco está infestado. Mesmo
na
coberta os ratos disputam ruidosas correrias, enfiando-se nos espaços mais
ínfimos. A água doce já está imprópria para consumo, sai verde e com
cheiro nauseabundo. O peixe em salmoura e as carnes salgadas com que
todos se alimentam estão prestes a apodrecer. Quase diariamente, a caravela
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é
abalada pela movimentação dos marinheiros e das velas, tentando escapar
à perseguição dos piratas holandeses. Não há a menor privacidade -
passageiros e tripulação amontoam-se nos exíguos espaços disponíveis. E a
viagem é longa, aproximadamente dois meses.
Já à vista da costa brasileira a embarcação estremece fortemente da popa
à proa, tudo se parte no seu interior, o cavername parece ir despedaçar-se.
É uma noite negra, povoada de faíscas e trovões, o mar revolta-se, os
passageiros choram e gritam, acendem-se lanternas no negrume, o capitão
dá ordens tonitruantes, nos porões os homens procuram detectar algum rombo.
A caravela está encalhada nos baixios arenosos e vai adornando para
estibordo. Pensa-se no pior.
Na manhã seguinte, o pequeno António solta-se da mãe. Quer ver tudo,
saber como se safará a caravela. O dia amanhece com o sol em brasa, vêem--se,
em frente, as florestas brasileiras, banhadas de luz dourada. Um batel puxado
por remadores, consegue desencalhar o barco. Enfunadas as velas, dirige-se
para o Sul e nos fins de Janeiro de 1615 aporta à Baía.
É aí que vai desembarcar a família Ravasco. O pai, Cristóvão Ravasco, a
mãe Maria de Azevedo e os dois filhos, António de seis anos e o irmão mais
novo, Bernardo. Tinham saído de Lisboa a 16 de Dezembro de 1614.
O futuro Padre António Vieira jamais esquecerá esta viagem penosa. Ora
no sentido Portugal-Brasil, ora no de Brasil-Portugal, fá-la-á mais vezes e,
praticamente em todas elas, sofrerá um naufrágio.

A VOCAÇÃO

A 6 de Fevereiro de 1608 nasce António Vieira, na freguesia da Sé, em


Lisboa. O pai, de origem modesta, provavelmente com ascendência
africana, é destacado como funcionário para a Relação da Baía. Melhorava de
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vida e
fugia à opressão filipina. António é baptizado na Sé, segundo parece na
mesma pia baptismal em que o fora Fernando Bulhões, o famoso Santo
António de Lisboa, por quem o futuro pregador jesuíta sempre manifestará
grande
admiração e devoção.
Logo à chegada à Baía, António é atacado de uma doença tropical e fica às
portas da morte. Por milagre de Santo António ou da Senhora das
Maravilhas, venerada na Sé da Baía, salva-se.
Na cidade e em todo o Brasil tem fama o Colégio da Companhia de Jesus. É
nele que Cristóvão Ravasco inscreve o filho. Submetido à dura disciplina
jesuíta, António não teve os pequenos prazeres da infância. Os educadores,
de breviário e palmatória nas mãos, impuseram-lhe um tempo sombrio,
acrescentado das constantes orações e do estudo forçado em silêncio
absoluto.
Mas, no percurso de casa para o colégio, o jovem vai contactando com a
realidade efervescente de uma cidade em plena expansão. É assim que vê
os índios escravos, em plena rua, carregando e descarregando fardos, sob o
chicote dos capatazes.
Não foi, de início, aluno brilhante. De compleição frágil, pálido, magro,
grandes olhos, nariz fino, não se sente talhado para intensos esforços
escolares. É, porém, de temperamento enérgico, tenaz. E, subitamente, por
volta dos catorze anos, os jesuítas começam a descobrir-lhe a
inteligência, a inesperada queda para escrever bem português, a facilidade
com que domina o latim. Revela-se, igualmente um crente fervoroso, jejua
todos os dias, reza, comunga, mas não se excede em fanatismos - conhece,
todavia, em grau elevado as Escrituras, sobretudo as partes referentes aos
Profetas que lhe suscitam enorme atracção.
Aos quinze anos, segundo ele próprio escreve, após ouvir um Sermão em
que o pregador evoca as penas do inferno, sente-se tocado pela vocação. Quer
professar, ser jesuíta. Opõe-se o pai, com veemência. Mas a 5 de Maio de
1623 foge de casa e pede asilo aos padres da Companhia de Jesus.
Cristóvão Ravasco resiste quanto pode - mas não pode contrariar a autoridade
e
força dos jesuítas. Cede.
António Vieira redobra o seu interesse pelos estudos, passa a ser o melhor
aluno em todas as disciplinas. Aos dezasseis anos encarregam-no de redigir
em latim o relatório anual da província jesuíta que deverá ser enviado ao
Geral da Companhia. Aos dezoito anos é nomeado professor de retórica no
Colégio de Olinda.
Mas não são estes os sonhos do jovem. Mais do que para a reflexão,
sente-se tocado pelo desejo de acção: quer ser pregador, missionário,
apóstolo, converter os incrédulos, combater o erro e trazer para a fé
católica os índios do interior.
Em princípios de 1624 os holandeses atacam a Baía, tomam-na, saqueiam a
cidade, violam as mulheres indígenas. Os brancos fogem para o sertão. Os
jesuítas fazem o mesmo.
E eis António Vieira numa aldeia, em contacto directo com os índios,
aprendendo-lhes as línguas, conhecendo-lhes os costumes, admirando o
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modo de vida, colocando-se a seu lado para os defender de todos os
vilipêndios,
torturas e humilhações. Está onde sempre desejou.
Ver-se-á que esta vocação juvenil se manterá por toda a vida. Mas, durante
dezenas de anos, o apelo da acção, da intervenção no mundo, sofrerá uma
radical mudança de rumo.

ÊXITOS E FRACASSOS NA POLÍTICA

Uma assuada tremenda do povo de Peniche espera a caravela que traz


António Vieira a Portugal. Tem 33 anos quando regressa à terra natal. É um
homem
razoavelmente alto, magro e pálido, flexível e nervoso, cabelo, olhos e
barba escuros, fronte ampla, lábio grosso, que irradia segurança e
afabilidade. Porque está de novo na metrópole, 27 anos depois de ter
embarcado para o Brasil? Porque é recebido em Peniche por um autêntico
motim? Esteve prestes a ser ferido pela multidão colérica. Consegue,
todavia, refugiar-se na Casa da Companhia. De resto, a aportagem a
Peniche foi um desvio de rota da embarcação, assaltada por uma tempestade
que a
obriga a afastar-se do Tejo.
António Vieira é, nesse ano, de 1641, um prestigiado jesuíta, pregador
popular no Brasil, missionário apaixonado e amado pelos índios da aldeia
do Espírito Santo. Disse a primeira missa em 1635, é irmão professo da sua
Ordem, mestre de Teologia no Colégio de S. Salvador, lutador contra os
sucessivos ataques dos holandeses às possessões portuguesas no Brasil,
célebre por um sermão proferido na Baía, contra Deus, que abandonara os
católicos para se pôr ao lado dos hereges neerlandeses - uma das suas mais
extraordinárias orações (Sermão pela vitória das nossas armas contra a
Holanda).
A 15 de Fevereiro de 1641 chega à Baía uma caravela que traz a espantosa
notícia: a 1 de Dezembro do ano anterior a dinastia filipina fora apeada,
D. João IV era o monarca de um Portugal restaurado. O então vice-rei do
Brasil, D. Jorge de Mascarenhas, marquês de Montalvão, acolhe a
informação com entusiasmo, adere ao novo rei, coloca a colónia sob a
autoridade do
Restaurador. Não sabe, ainda, o marquês que, em Portugal, dois dos seus
filhos se posicionam contra D. João IV, passam para o lado espanhol, a sua
própria mãe é aprisionada no Castelo de Arraiolos. Um outro filho do
vice-rei está no Brasil, ao lado do pai. Conhecida a adesão em todo o
território ao novo regime, o marquês decide enviar a Lisboa esse filho
para garantir ao rei a fidelidade. A comitiva de D. Fernando Mascarenhas é
constituída pelos dois jesuítas mais considerados: Simão de Vasconcelos e
António Vieira.
Quando a caravela, desconjuntada pelo temporal, arriba a Peniche, a
população apenas sabe que nela viaja um filho do vice-rei. Tomando-o
como conivente com os irmãos recebe-o em tumulto e só a autoridade do conde
de Atouguia, comandante da praça e um dos conjurados de 1640, evita que D.
Fernando e os dois jesuítas sejam linchados pela turba enfurecida.
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Dois dias depois, António Vieira está em Lisboa.
Por essa altura, a actividade diplomática de Portugal no exterior não
cessa. D. João IV envia embaixadores pela Europa para obter reconhecimento
e apoios na guerra que trava contra os espanhóis.
Vieira que, a pouco a pouco, se torna íntimo do rei, francamente cativado
pela personalidade do jesuíta, profere alguns sermões que lhe granjeiam
em Lisboa a mesma fama que alcançara no Brasil.
Em 1642, D. João IV alarmado pelas enormes despesas da guerra, decide
lançar novos impostos. Levanta-se enorme querela: as classes populares
exigem que a nobreza e o clero contribuam em igual proporção. A discussão
era acalorada e o problema parecia não se resolver. Lembra-se o rei da
capacidade oratória de Vieira. Convida-o a proferir um sermão em que o
padre abordasse a questão dos tributos. António profere uma notável
prédica, um dos sermões de Santo António, na Igreja das Chagas de Lisboa.
Nele desenvolve uma brilhante teoria sobre os impostos e apazigua o
conflito.
Desse momento em diante, o filho de Cristóvão Ravasco estará por detrás
das decisões reais. A sua vasta cultura permite-lhe opinar sobre tudo.
Andava a guerra com Espanha por maus caminhos, envolta em contradições
estratégicas. Aí temos António Vieira, a rogo do rei, a emitir um parecer
puramente militar: a doutrina sensata para conduzir as operações devia ser
a guerra defensiva "porque primeiro se deve assegurar a conservação do
próprio, e depois, se for conveniente, se poderá conquistar o alheio".
Para ele uma guerra ofensiva seria desastrosa. Assim se fez e talvez se
deva a este conselho a vitória nas hostilidades.
Vieira quer repor Portugal na sua antiga grandeza. O rei nomeia-o
pregador régio. O jesuíta torna-se o seu homem de confiança.
Não tardará muito que o padre gize para Portugal um plano de recuperação
económica. Era urgente o desenvolvimento do comércio. Há que isentar de
impostos os bens móveis dos comerciantes; há que fundar um banco
comercial e duas companhias comerciais, tal como já tinham feito os
holandeses; há
que abrir o comércio às nações neutrais ou amigas; há que agraciar os
comerciantes com títulos de nobreza, entre outras medidas, avançadas
para o tempo português.
Mas a principal proposta, que lhe vai valer ódios, era a de se abolirem as
distinções entre cristãos velhos e cristãos novos e de atraírem a Portugal
os capitais dos judeus fugidos do país. Para tal, teria de se reformar a
Inquisição.
Esta teoria mercantilista de instalação de um sistema económico baseado
na burguesia capitalista agrada ao rei. Mas é combatida pela nobreza, receosa
da perda de privilégios e pelas duas ordens religiosas mais importantes.
Os dominicanos jamais aceitariam a aproximação aos hebreus - perderiam
as suas principais vítimas nas prisões inquisitoriais.
Os próprios jesuítas vão opor-se a Vieira. Primeiro porque ele obtivera,
por si só, o valimento do rei, sem nisso envolver a congregação; depois
porque as teorias do padre, a serem confirmadas pelos seus confrades,
concitariam o furor da Inquisição contra a ordem de Inácio de Loyola.
Ordenam-lhe, em 1644, que regresse ao Brasil. O rei impede que a ordem
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se cumpra. Ameaçam-no com a expulsão, o que seria colocá-lo nas mãos do
Santo Ofício. De novo, o rei se opõe e oferece a Vieira um bispado. Recusa-o.
Ele é, diz, um humilde membro da Companhia de Jesus e assim quer
morrer. Por um momento, para não desagradar ao monarca a Companhia
suspende
a expulsão.
A Inquisição, porém, vai segui-lo, obstinadamente, até o apanhar.
António Vieira continuará a defender os cristãos novos, no púlpito, em
memoriais que entrega ao rei. O seu plano económico teve de ser
minimizado: apenas se constituiu a Companhia de Comércio do Brasil.
Em 1646, D. João IV envia-o, secretamente, a França e à Holanda. O apoio
dos gauleses na guerra com a Espanha era insuficiente e o da Holanda,
pérfido. De facto, no Brasil, os holandeses continuavam os ataques para
ocuparem as posições portuguesas. São más as notícias que Vieira traz: em
França governa o cardeal Mazarino cuja visão tímida atrasa os auxílios,
com receio de Castela; na Holanda, o apoio joga-se a troco de cedências no
Brasil, sobretudo Pernambuco. Vieira contacta os riquíssimos comerciantes
judeus, descendentes dos que D. Manuel expulsara. Mostram-se
interessados no investimento comercial. Mas em Portugal a Inquisição mantém
a
perseguição aos cristãos novos, com redobrado furor. Entretanto, em
Vestefália a Holanda e Castela assinam um tratado de paz.
António Vieira regressa a Portugal em 1648, depois de declinar a nomeação
para embaixador na Haia. Comete, logo a seguir, um grande erro. Num
documento que apresentou ao rei, elaborado de forma tão bem deduzida e
argumentada que ficou conhecido como papel forte, propõe que Portugal
compre Pernambuco aos holandeses. O jesuíta, que tão bem conhecia o
Brasil, os colonos e os nativos, não acreditou na sua capacidade de
resistência aos invasores, o que veio a acontecer.
O estado da guerra com Castela atinge um ponto crítico. As armas
portuguesas estão debilitadas. Receia-se uma invasão maciça pelo
Alentejo.
Teme-se o colapso do exército português. Mais uma vez, D. João IV recorre
a Vieira. Só uma acção diplomática poderá pôr termo à contenda.
É então que o jesuíta, fértil de imaginação, vai engendrar um plano
mirabolante.
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O QUINTO IMPÉRIO

Há muito António Vieira escreve em segredo um livro sobre o V Império,


inspirado pelas profecias bíblicas, mas em que o Bandarra se integra, tal
o apreço em que Vieira o tem. O velho sonho: dar a Portugal a sua
grandeza antiga.
Estudando profundamente as Escrituras e todos os Santos que falam do
imperador que Jesus prometera à Igreja, o jesuíta está firmemente
convencido que o V Império só pode ser português (os anteriores tinham
sido o dos assírios, o dos persas, o dos gregos e o dos romanos).
Baseado nas palavras de Jesus ao rei Afonso Henriques na batalha de
Ourique (na época, uma verdade incontestada), "quero em ti e na tua
geração criar um império para mim", António Vieira crê que o rei escolhido
é o Encoberto, até aí D. Sebastião. Perdida essa esperança, o pregador
interpreta a linguagem vaga e esotérica das profecias para concluir que
esse rei é agora D. João IV. O Quinto Império seria de ordem temporal e
espiritual. Em ambos os campos, Portugal seria o guia para que se
extirpassem as seitas infiéis, se reformasse a cristandade, se
estabelecesse a paz em todo o mundo, através de um Sumo Pontífice
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santíssimo.
Esta construção ideal de António Vieira, prodígio imaginativo e delirante,
começaria a tornar-se realidade se o príncipe herdeiro português casasse
com a herdeira do trono castelhano. Iniciar-se-ia o Império, com Castela e
Portugal sob o mesmo rei. Com novas e confusas efabulações António
Vieira transfere o Encoberto para o príncipe D. Teodósio.
O rei é seduzido pelo plano. Envia Vieira a Roma para os primeiros
contactos com o embaixador espanhol na cidade papal. Mas o diplomata
não rejubila com a proposta. Vê nela um ardil que desconhece.
O Conde-duque de Olivares que governa Espanha fica, igualmente de pé
atrás. Sabe que Vieira, nos anos anteriores andara por França e Holanda a
intrigar contra os castelhanos. A sua visão curta não detecta o ponto
fraco do plano português: obviamente, a aliança colocaria Portugal na
dependência de Espanha, tal a diferença de poderio entre as duas nações.
Pensa que a proposta revela a fraqueza das armas portuguesas e decide
usar a força para derrubar D. João IV. Saiu-se mal, como o provou a História.
Mas Vieira levava uma missão sigilosa: apoiar os napolitanos, então sob o
domínio de Castela, na sua revolta. O embaixador espanhol descobre a
intenção e manda matar o jesuíta que escapa à morte por ter sido avisado
a tempo. O plano falhava totalmente. Regressa a Portugal em 1649 - o ano
em que o padre jesuíta Martim Leitão o denuncia à Inquisição, pela primeira
vez.
Em Lisboa, os muitos inimigos de Vieira conspiram contra ele junto do rei
já desagradado com a falta de previsão no caso de Pernambuco e agora com
o malogro do casamento. Aparentemente, porém, as relações entre D. João IV
e Vieira mantém-se inalteráveis. Até que, em Novembro de 1651, D.
Teodósio, de quem o padre era preceptor, resolve, sem conhecimento nem
autorização do pai, fazer uma incursão pelo Alentejo para tomar contacto com
a guerra
que ali se encarniça. Atribui-se a Vieira a instigação de tal atitude. E
D. João IV afasta-o, delicadamente, do seu convívio.
É o momento que a Companhia de Jesus espera: em Novembro de 1652
ordena-lhe que regresse ao Brasil, como missionário no Maranhão.
Desta vez, o rei nada faz para contrariar a sua partida.

EM LUTA CONTRA OS COLONOS

As tempestades e os ataques dos corsários, mais uma vez, tornam a viagem


de Vieira, um calvário. Mas dor maior é a que leva - perdeu a estima do
rei, fracassou em algumas das suas iniciativas políticas, aumentou o
número de inimigos, tanto na Igreja como na Corte. Tudo o que fizera tinha
o prestígio e o desenvolvimento de Portugal como meta. Homem de
invulgar inteligência, cometeu um grave erro: supôs que os outros eram
dotados de
igual inteligência e o compreenderiam. Por um lado, vai destroçado, por
outro, invade-o grande alegria: retorna à sua vocação de missionário. À
medida que se aproxima da ilha de Maranhão a sua alma renova-se. Tem à
vista as paisagens amadas da juventude, o luxuriante Brasil. O desterro é,
a pouco e pouco, esquecido.
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Mas, breves dias depois, dá conta do caos moral das gentes de Maranhão,
sobretudo dos brancos, apenas preocupados com enriquecimento sem
regras, dissolutos, impiedosos. Os índios vivem na maior das misérias e à mercê
dos colonos. Logo nos primeiros sermões ataca violentamente a
licenciosidade dos costumes e o odioso regime da escravatura que, lá de
longe, denuncia ao rei. Tenta incursões no interior, as entradas no
sertão, para proteger os indígenas e os negros que começam a vir de
África. Consegue apenas a animosidade e o ódio das autoridades oficiais e
dos colonos. De nada adiantam os relatórios para Lisboa narrando os crimes
que presencia. Mas, com a energia de ferro que sempre caracterizou o seu
corpo frágil e enfermiço, desenvolve uma enorme actividade procurando
minorar o sofrimento dos mais infelizes, visita os presos, funda um
hospital, reparte a sua alimentação, catequiza, fulmina o vício e a
luxúria. Escreve, escreve sempre. Tem pronto a terminar um livro,
Esperanças de Portugal que envia ao seu amigo André Fernandes, bispo do
Japão. Nesse texto, retoma a questão do V Império, imaginando,
reformulando, adaptando as profecias.
Embora a Companhia, ali no Brasil, o apoie, pouco pode contra os
interesses instalados. O feudalismo rural, fundamento da estrutura
económica do Brasil, estava a ser solidamente implantado - e, para tal, os
escravos seriam pedras basilares.
Talvez os jesuítas se não tenham apercebido o quanto de inelutável havia
na caminhada económica do Brasil - os índios fugiam para o sertão, mas
chegavam os negros em quantidades inenarráveis.
António Vieira concebe outra quimera, desta vez em acordo com os
companheiros jesuítas: irá, de novo, a Portugal, por pouco tempo. O tempo
apenas necessário para, com a sua eloquência, convencer o rei a ditar os
decretos que ponham fim ao descalabro moral e social por que o Brasil
enveredara.
Antes, porém, na catedral de S. Luís irá pronunciar o seu mais belo
sermão, o de Santo António aos peixes - alusão parabólica ao estado das
coisas na colónia.
Embarca, às escondidas das autoridades e dos brancos, a 17 de Junho de
1654. Só assoma à capital em Novembro depois da mais tormentosa das
viagens: próximo dos Açores a nau sofre terrível tempestade e o jesuíta
julga chegado o último dos seus dias; salvo da borrasca, o navio é
assaltado pelos piratas holandeses que tudo saqueiam e deixam Vieira e os
companheiros, sem roupas e bens nas praias da Graciosa.

DOIS AMIGOS QUE SE SEPARAM

O rei, muito doente, acolhe-o com carinho. O tempo de separação levara o


monarca a avaliar melhor o padre. Reconhece-lhe todas as qualidades,
perdoa-lhe os erros passados, pede-lhe insistentemente para que fique a
seu lado.
António Vieira pode ser tudo o que intrigam, um lunático, um inquieto e
ambicioso, um incapaz político. O rei sabe, todavia, que é um amigo leal,
desinteressado, bondoso. E, perto da morte, não quer perder a sua
companhia e conselho.
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Na Corte, porém, odeiam-no. Pela amizade que o rei lhe dedica, pelos
sermões duríssimos com que caustica a sociedade portuguesa, pela
estranha mania de estar contra os poderosos desonestos e a favor do povo.
Querem-no longe, lá no sertão, entre os selvagens.
Após alguns sermões em que, como sempre, António Vieira revela, a par da
espantosa cultura, o sentido de justiça e a independência de carácter, D.
João IV entrega-lhe o decreto em que os jesuítas passam a ter inteira
jurisdição sobre os índios. Daí em diante, as autoridades locais jamais
poderão intervir na missionarização, jamais poderão servir-se dos
indígenas como escravos. Era o que Vieira pretendia. O rei designa André
Vidal para governador do Pará e do Maranhão. André Vidal é um herói da
vitória portuguesa sobre os holandeses, amigo de Vieira, sensível aos
problemas dos índios e dos negros.
E, como prometera, em Maio de 1655 eis o pregador de novo no Maranhão,
portador das melhores notícias. Recusa o convite do rei para ficar. Para
sempre, os dois amigos separam-se. D. João IV morre no ano seguinte.

O TEMPO FELIZ E A EXPULSÃO

É prodigiosa a acção de Vieira e dos jesuítas até 1661. Visitador e


superior de todas as missões, o padre está em permanente viagem pelo
interior do Brasil. Foi o tempo, como ele diz, mais feliz da sua vida.
Será também, no termo, o período mais difícil e perigoso. A evangelização
dos índios e a sua protecção ocupam-no completamente - quase, porque
algumas horas lhe sobram para iniciar a publicação dos seus sermões,
agora por sugestão da própria Companhia de Jesus.
Os rancores dos colonos e roceiros dirigem-se contra os jesuítas, entre os
quais Vieira é o mais combativo e enérgico. Um novo governador, nomeado
após a morte do rei, vem substituir André Vidal. Com ele as relações
pioram. O padre agrava o conflito. Perante a enorme massa de negros e
negras que desembarcam na Baía para serem submetidos à escravidão,
Vieira não se cala. Durante um mês prega todos os dias (são os sermões
conhecidos como Rosa Mística, do Rosário) abordando o tema da escravatura.
Os jesuítas são acusados de obstar ao desenvolvimento económico do
Brasil.
Os ódios atingem o auge. Em Maio de 1661, os colonos do Maranhão
assaltam a Companhia de Jesus e, logo a seguir, acontece o mesmo com a casa
dos
membros da Ordem em Belém. É aí que, no momento, está António Vieira.
Entre insultos e agressões os jesuítas são aprisionados em várias
embarcações, reduzidos à miséria e à fome.
Os amotinados decidem expulsá-los do território brasileiro. Em Setembro
de 1661, todos os religiosos, incluindo Vieira, são postos na nau Sacramento
e enviados para Lisboa.
Quando desembarca, o padre vem descalço, esfarrapado, doente. Ainda não
sabe que na Inquisição entrara a segunda denúncia contra si.

CONDENADO AO SILÊNCIO
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Os acontecimentos na capital portuguesa sucedem-se vertiginosamente. D.
Luísa de Gusmão, a viúva de D. João IV, assume a regência e a tutela dos
filhos menores, D. Afonso VI e o príncipe D. Pedro. Acolhe António Vieira
com amizade e admiração. Reintegra-o na sua função de pregador régio.
Mas na Corte fervilham as intrigas, o jesuíta é pessoa indesejada.
Em torno de Afonso VI reúne-se uma camarilha de jovens delinquentes,
chefiados por António Conti, um italiano que estimula a vida devassa do
futuro rei. Por outro lado, o Conde de Castelo Melhor tenta dominar Afonso
VI e orientá-lo politicamente.
Vieira defende-se vigorosamente das acusações que emissários vindos do
Brasil formulam contra os jesuítas. Luísa de Gusmão apoia o padre.
Substitui o governador do Pará e do Maranhão. As notícias que chegam dão
conta da nova situação dos índios: organizam-se autênticas caçadas para os
transformar em escravos.
A guerra com Espanha prossegue. Algumas vitórias do exército português
são as únicas notícias felizes da época.
Vieira, conselheiro da rainha, talvez a contragosto, reentra na política.
É ele quem a convence a expulsar do país a turba que rodeia D. Afonso.
Presos, são degradados para o Brasil. Mas o Conde de Castelo Melhor e
outros nobres retaliam e obrigam D. Luísa de Gusmão a ceder a governação
efectiva do reino ao príncipe herdeiro.
Vieira é imediatamente desterrado para o Porto. Está, agora, nas mãos da
Inquisição que já pode pronunciá-lo. Do Porto enviam-no para o Colégio da
Companhia em Coimbra, negando-lhe a possibilidade de regresso ao Brasil.
A 1 de Outubro de 1663 o Santo Ofício manda-o recolher aos seus cárceres de
custódia. Novas denúncias tinham dado entrada na Inquisição.
O jesuíta adoece gravemente. Havia uma peste em Coimbra. Crê-se que
ficou tuberculoso. Cospe sangue vermelho, fazem-lhe sucessivas sangrias. No
cárcere escreve a História do Futuro e consegue humorizar, em carta a D.
Rodrigo de Meneses: "eu passo como permite o rigor do tempo, escarrando
vermelho, que não é boa tinta para quem está com a pena na mão". Vai
sendo implacavelmente interrogado pelo tribunal.
Entretanto, sucediam-se as vitórias na guerra com Castela, a mais
importante a de Montes Claros. Afonso VI casa com Maria Francisca de
Sabóia. O casamento não se consuma. D. Luísa de Gusmão morre em 1666.
A Inquisição levanta as acusações a Vieira: é culpado da defesa calorosa
que fez dos cristãos novos, dos contactos que manteve na Holanda com
judeus e calvinistas, de propugnar estranhas e heréticas teorias sobre um
tal V Império. Vieira defende-se, embora admitindo algumas imputações, a
que não dá, porém, qualquer importância quanto a atentado contra a fé
católica.
D. Afonso VI é encarcerado em Sintra. O irmão, D. Pedro, é o novo regente.
A 23 de Dezembro de 1667, o tribunal do Santo Ofício dita a sentença
condenatória do padre António Vieira: "é privado para sempre de voz activa
e passiva e do poder de pregar, e recluso no Colégio ou Casa de sua
religião, que o Santo Ofício lhe ordenar, e de onde, sem ordem sua, não
sairá". Não o autorizam a ir para o estrangeiro para que não possa atacar
a Inquisição. Em 1660 frei Nuno Vieira já antecipara esta sentença na
frase que proferira: "é preciso mandá-lo recolher e sepultá-lo para
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sempre".
Permitem-lhe apenas que se instale no Noviciado da Ordem em Lisboa.
Em Março de 1668 fazem-se as pazes com Castela, derrotada pelas armas.
D. Pedro casara com a que fora sua cunhada, após a anulação do matrimónio
com D. Afonso VI.
A 12 de Junho de 1668 Vieira é libertado. Está, todavia, proibido de nos
seus sermões tratar de assuntos relacionados com cristãos novos,
profecias, V Império, Inquisição. Dez dias depois prega na Capela Real um
sermão comemorativo do aniversário de Maria Francisca de Sabóia.
Já não é tão bem recebido na Corte. D. Pedro pende mais para os
dominicanos. Não precisa de António Vieira.
Os superiores da sua Ordem enviam-no a Roma com a incumbência de
promover a canonização de 40 jesuítas presos nas Canárias e martirizados
pelos
protestantes em 1570. Mas Vieira vai, também, por outro motivo: quer, na
Santa Sé, obter a anulação total da sentença condenatória do Santo Ofício.
Foi humilhado e injustiçado. Está de novo em luta. Luta que vai vencer.
Em Setembro de 1669 embarca para Roma. Demora dois meses a chegar.
Novamente a viagem foi terrível, com dois naufrágios que o levaram a
parar em Alicante e Marselha.

VITÓRIA SOBRE A INQUISIÇÃO

A personalidade de Vieira, a sua energia, a sua exuberância, rapidamente


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conquistam a cidade italiana. Por toda a parte é recebido com admiração,
carinho e respeito - a prova aí está: Cristina da Suécia convida-o para
pregador (mais tarde quererá que ele seja seu confessor, convite que
Vieira também vai recusar, o Brasil é o seu objectivo).
Aflige-se, na correspondência privada, com o estado de Portugal. Apesar da
estrondosa vitória sobre Castela, o país não progride, não é capaz de
voltar à "grandeza antiga". Previa - e acertava - que, dentro em pouco, a
Inglaterra e a França ir-se-iam aproveitar da fraqueza do reino para se
apossaram do melhor que Portugal ainda teria no Oriente.
Desobedecendo ao que lhe impusera a Inquisição, em Roma volta a tomar
posição a favor dos cristãos novos e dos judeus em quem confia para o
ressurgimento do país. E pior: ataca a própria Inquisição em cartas para
os amigos (bons amigos, que não o denunciaram).
Desdobra-se em vários contactos para, na Sé apostólica, pôr em cheque os
métodos inquisitoriais e envia ao Papa um memorial acerca do assunto. O
farisaísmo do Santo Ofício. ("por aqui se diz que em Portugal é melhor ser
inquisidor do que rei", escreve) cria uma péssima reputação a Portugal.
Mas D. Pedro II está dominado pelos dominicanos do tribunal e receia-os. O
Papa, porém, mostra-se receptivo. O processo de Vieira é reanalisado. Os
revisores espantam-se. Como foi possível condenar quem deveria ser
louvado? Terá dito Vieira: "ouviu-me quem me não entendeu e
sentenciou-me quem me não ouviu".
Até que o Papa, num breve, isenta o padre António Vieira "perpetuamente
da jurisdição inquisitorial". Poderia pregar sobre o que quisesse e apenas
estava sujeito às regras da sua Ordem. O Pontífice vai mais longe:
Suspende os autos-de-fé em Portugal (suspensão que foi curta).
Durante os anos de vida em Roma o padre alcança enorme prestígio.
Aprende italiano para poder pregar nessa língua. Os sermões que pronuncia em
terras transalpinas são de uma excepcional qualidade literária, espiritual
e filosófica. A tal ponto que o Colégio dos Cardeais lhe pede para que
pregue na sua presença.
A 22 de Maio sai de Roma, a caminho de Portugal. Vencera a partida com o
Santo Ofício. A partir do breve papal a Inquisição não poderá tocar-lhe.
A sua saúde que, desde a meninice, é frágil, agrava-se. Com permanentes
acessos de febre, olhado indiferentemente pela corte do regente D. Pedro,
Vieira parte em busca de melhor clima, o do Brasil, em Janeiro de 1681.
Aproveitara o tempo em Lisboa para compilar e ultimar os Sermões, cujo
primeiro volume sai em 1679.

O FIM AOS 90 ANOS

A sua vida está na recta final. Tem 74 anos. Vive na Baía.


O Papa Inocêncio XI revoga o breve do seu antecessor. Em Portugal, a
Inquisição levanta contra ele toda a espécie de calúnias. O velho jesuíta
pode cair, de novo, na sua alçada. No pátio da Universidade de Coimbra
queimam-no em efígie com sanha insensata.
No Brasil, atacam-no através de acusações ao irmão Bernardo, então
secretário de estado da Baía - opusera-se este às arbitrariedades do novo
governador. Vieira intercede em defesa do familiar, é insultado e expulso
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violentamente do palácio do governador. A fibra de Vieira não esmorecerá
e três anos depois o irmão é inocentado.
Aos 80 anos, doente, enfraquecido pelas constantes sangrias a que é
submetido, o Geral da Companhia nomeia-o Visitador Geral do Brasil.
Aí está de novo o estóico padre " na estrada" e nas montanhas, a pé pelas
serranias e selvas na sua tarefa de evangelização. Mas, em Maio de 1691,
as forças abandonam-no e resigna ao cargo.
A debilidade, a falta de dentes, a surdez, mais tarde a perda de visão
impedem-no de pregar. Pode, finalmente, morrer em paz, pensa. Não.
Ainda vai ser incriminado por, na Baía, ter tentado influenciar a votação
do procurador da Ordem e por se opor a nova legislação dos índios, uma vez
mais contra estes. Retiram-lhe a voz activa e passiva. Insurge-se. Apela
ao Geral da Companhia, em Roma, pedindo-lhe que reveja o seu processo.
Vai ganhar mais esta batalha. A 17 de Dezembro de 1697 o Geral dos
Jesuítas declara nula e sem valor a resolução que o privara de voz.
Mas António Vieira já não está entre os vivos. A 18 de Julho daquele ano,
pela uma da madrugada, morre o que foi e é o maior prosador da língua
portuguesa, aquele que, um dia, dissera, desalentado: "não me temo de
Castela, temo-me desta canalha".

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