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Repertório, Salvador, nº 20, p.191-193, 2013.

FORMAÇÃO DO
ESPECTADOR CRIATIVO

Cristiane Barreto1

Este texto apresenta o meu trajeto inicial da O quinto criador: o público surgiu a partir do estudo
pesquisa de doutorado de caráter teórico-prático, da relação histórica do espectador com o espetá-
realizada no Programa de Pós-Graduação em Ar- culo. Quando na Arte Poética Aristóteles escreveu
tes Cênicas, da Universidade Federal do Estado ”Suscitando a compaixão e o terror, a tragédia tem
da Bahia. Pretende-se observar a possibilidade de por efeito obter a purgação dessas emoções”, his-
formação do espectador criativo a partir do experi- toricamente influenciou o drama e trouxe consequ-
mento O quinto criador: o público. ências para os modos de recepção até nossos dias.
O referido experimento teve sua primeira eta- Compreende-se que, em diversos períodos, gêne-
pa realizada em outubro de 2012, no Teatro Vila ros e estéticas, o teatro traçou caminhos marcados
Velha, na cidade de Salvador e, foi contemplado por aproximações variadas entre atores e público.
com o prêmio Idéias Inovadoras/2012 (FAPESB Houve momentos em que os atores direcionavam
- Fundação de Amparo à Pesquisa do estado da o discurso à plateia por meio de prólogos, epílogos
Bahia). Em 2013, passou a integrar o Programa de e comentários, como em realizações teatrais de fins
Residências Artísticas do Teatro Vila Velha. da Idade Média, do Barroco, da Commedia dell'arte
A expectativa é desenvolver novos experimen- e de determinadas montagens do Período Eliza-
tos e a cada realização avaliar o formato e, como betano. Em outros, concebiam a audiência como
tem aspecto experimental, portanto, flexível, fazer um grupo que espiava uma realidade paralela e in-
modificações para que sejam adequadas aos novos dependente no palco, como foi o caso do drama
contextos. Existe, então, interesse em realizá-lo na burguês no século XIX.
Escola de Teatro (Universidade Federal da Bahia) Com o simbolismo, “pela primeira vez desde
com alunos dos cursos de Interpretação, Direção e o classicismo, a representação se via desligada da
Licenciatura, com alunos de colégios públicos (En- obrigação mimética e da sujeição a um modelo ins-
sino médio), possivelmente nova temporada com pirado no real” (Roubine, 2003). Nesse período, os
artistas e técnicos no Teatro Vila Velha, dentre ou- trabalhos de Adolph Appia e Gordon Craig muda-
tras oportunidades que apareçam. ram as concepções do uso do espaço e da ilumina-
ção no teatro. Em busca da teatralização e negando
o mimetismo ditado pelo naturalismo, Meyerhold
“amplia as possibilidades de construção da ação,
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Cristiane Santos Barreto (doutoranda). Bolsista CAPES. elabora procedimentos que antecedem a interpre-
Linha de pesquisa: Processos educacionais em Artes Cênicas tação e aprofunda o jogo perceptivo ator e especta-
na Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Univer-
sidade Federal da Bahia.– Orientador: Prof. Dr, Luis Claúdio
dor buscando novas associações por meio do dese-
Cajaíba Soares nho preciso do movimento” (Bonfitto, 2001).
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Nesse processo de reteatralização, Meyerhold No Brasil, as ideias de Brecht reverberaram na


assume a artificialidade da convenção teatral, pro- proposta de Augusto Boal referentes ao Espect-
curando não mais copiar a realidade, mas resignifi- ator com a participação de todos (espectadores e
cá-la por meio da construção de novos códigos: atores) por meio das técnicas do Teatro do Oprimido
(TO): Teatro-Fórum, o Teatro-Imagem, a Dramaturgia
Meyerhold chega ao teatro da ‘convenção cons- simultânea, o Teatro invisível, dentre outras. O obje-
ciente’, onde o espectador é considerado, jun- tivo é de fazer com que os participantes discutam,
tamente com o autor, o encenador e o ator, o reflitam e questionem acerca dos temas propostos,
quarto criador do espetáculo, embora faça des- geralmente relacionados a questões políticas ou so-
mistificado, consciente em todo momento de que
ciais enfrentadas por determinado grupo, porém,
o ator representa, assim como este não esquece
por um só instante que está compondo um qua-
sem o objetivo da formação de espectadores para
dro expressivo e significativo. (GUINSBURG, a arte teatral, mas como possibilidade de transfor-
2001, pág. 62) mação dos indivíduos. Sobre isso, Flavio Desgran-
ges analisa o TO de Boal e aponta algumas críticas
Para Jacó Guinsburg (2001, p.30) foi a partir comumente feitas:
das pesquisas de Meyerhold, relacionadas à estética
simbolista, que começaram a ser realizados expe- Uma questão precisa ser fundamental nesta for-
ma teatral: a que público se dirige o evento? A
rimentos no teatro russo de oposição à tendência
prática do Teatro do Oprimido solicita (...) que
de distinguir e isolar os universos da cena e da pla-
a cena encontre ressonância na sala, ou seja, a
teia, características das experiências realizadas por questão levada ao palco deve ter uma repercus-
Stanislavski, por exemplo. Meyerhold propunha a são efetiva nos participantes, e para isso precisa
retomada da significação social do teatro e a co- constituir-se em algo que diga respeito aquela
participação entre atores e público com vistas a comunidade, que surja dos próprios integrantes,
uma criação conjunta do acontecimento cênico. um tema que engaje os espect-atores, que perce-
Destaco outro importante momento, a partir bam que a sua vida está de fato em jogo (DES-
da segunda metade do século XX com Bertolt Bre- GRANGES, p. 73, 2006).
cht, o retorno ao teatro épico e o efeito do dis-
tanciamento proposto para os espectadores com Segundo ainda Desgranges (2006, p, 74), outra
o objetivo destes não entrarem emotivamente na crítica bastante freqüente ao TO, é que para não
fábula, mas questioná-la e até transformá-la. Sobre perder o caráter imediato e espontâneo da relação
isso, Cleise Mendes afirma que, em Brecht, a ca- entre os participantes “acabam por engendrar ce-
tarse aristotélica passa por uma espécie de resigni- nas pouco elaboradas artisticamente, o que acarre-
ficação: ta a perda do caráter poético das formulações tea-
trais, o empobrecimento da linguagem, e indica o
O que suas peças têm de novo a oferecer é a dire- enfraquecimento da potencialidade estética própria
ção tomada pelas emoções. O leitor/espectador, a esta arte”.
diante de algo que lhe é mostrado como “po- Postas essas considerações, resolvi experimen-
dendo não ser assim”, como não-fatal, diante da tar o público não apenas como transformador de
imagem de um mundo passível (e necessitado) uma realidade, mas, como criador ativo conjunta-
de transformação, seria levado a sentir-se poten- mente com os demais criadores. O artigo intitula-
cialmente como um transformador [...]. Brecht
do O quarto criador da cena narrativa de Ligia Borges
substitui o mito elegíaco por um mito utópico:
emociona o espectador com a desmitificação da
Matias, a autora discute a participação do especta-
fatalidade, ou da suposta “naturalidade” dos sa- dor ao longo da História do teatro e a investigação
crifícios humanos (como a guerra, em Mãe cora- da possibilidade do público ser considerado tam-
gem). É nisso que consiste a catarse brechtiana: bém um agente criador, assim como, os outros ele-
o espetáculo de seres potencialmente capazes de mentos criadores. Foi então, que refleti acerca dos
mudar sua realidade. (MENDES, 2008, p. 5). criadores do espetáculo. Ao contrário de associar o
espectador como o quarto criador, resolvi associá-
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lo ao quinto elemento criador por identificar e re- vídeo e um designer gráfico, os quais demonstra-
conhecer como participantes da construção cênica: ram interesse em investigar a formação do espec-
o ator, o dramaturgo, o diretor e a equipe técnica tador criativo.
(iluminador, cenógrafo, figurinista, maquiador, so- O diferencial é que cada cena foi criada ao vivo
noplasta, dentre outros). em cada apresentação. Um dramaturgo convidado
O público se faz presente nesse tipo de expe- esteve disponível para ouvir as ideias propostas
rimento, através das suas escolhas, sugestões e in- pelo público e ao mesmo tempo se inspirar para
tervenções na construção da cena através de temas, produzir, posteriormente, uma cena ou uma peça
história/enredo/situações, personagens, ações e teatral curta. Nesse primeiro experimento foram
em todo o desenvolvimento do espetáculo. Segun- criadas, portanto, quatro peças curtas. O tempo
do Matias (2010), para a realização dessa espécie de de duração do espetáculo foi em média de uma
criação colaborativa, esse tipo de processo, necessi- hora e trinta minutos entre a chegada do público,
ta de grande proximidade entre público e atores, e as orientações acerca dos elementos criadores do
pressupõe o engajamento de todos os presentes na jogo ali presentes: atores, diretores, dramaturgos e
manifestação. Nele é muito importante a instaura- técnicos, e, principalmente, o estímulo para que a
ção de um processo de cumplicidade entre os parti- os espectadores se sentissem acolhidos e se tornas-
cipantes, no qual os atores que “criam e conhecem sem um elemento também criador da cena.
as regras do jogo”, paulatinamente consigam reve-
lá-las aos demais, convidando-os e estimulando-os
a participar. Para que isso ocorra, é fundamental o REFERÊNCIAS:
desenvolvimento de recursos técnicos e habilida-
des perceptivas e improvisacionais, que deem aos ARISTÓTELES. Arte poética. Tradução: NASSE-
atores determinada segurança durante a relação TI, Pietro. São Paulo: Martin Claret, 2006.
que, muitas vezes, é marcada por pequena distância BONFITO, Matteo. O ator compositor. São Paulo:
física e contato olho-no-olho. Editora Perspectiva, 2001.
No primeiro experimento O quinto criador: o pú- DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do espectador. São
blico, foram realizadas quatro apresentações (segun- Paulo: Hucitec, 2003.
das e terças –20h – outubro/2012) no projeto “O ______. Pedagogia do teatro: Provocação e dialogis-
que cabe nesse palco”, no espaço Cabaré dos No- mo. São Paulo: Hucitec, 2006.
vos do Teatro Vila Velha, o qual, traz em sua arqui- ______. A inversão da olhadela: Alterações no ato do
tetura mesas distribuídas com serviço de café-bar, espectador teatral. São Paulo: Hucitec, 2012.
permitindo assim, maior possibilidade interativa e GUINSBURG, Jacó. Stanislavski, Meierhold & Cia.
de descontração. São Paulo: Perspectiva, 2001.
O objetivo principal foi o de destacar o público MATIAS, Lígia Borges. O quarto criador da cena nar-
como o quinto criador da cena, ou seja, além de rativa. São Paulo: Anais do VI Congresso de Pes-
atores, dramaturgos, diretores e técnicos, a plateia quisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas – ABRA-
criou, a cada apresentação, uma cena com demais CE, 2010.
criadores ao vivo. MENDES, Cleise Furtado. A gargalhada de Ulisses: A
O público presente, nesse primeiro experimen- catarse na comédia. São Paulo: Perspectiva, 2008.
to, foi composto de estudantes do ensino médio, ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação
universitários, profissionais de diversas áreas e pú- teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
blico de maneira geral a partir de 14 anos em dian-
te.
Foi formado um núcleo de produção criativa,
por mim coordenado, constituído por oito atores
fixos, oito dramaturgos, oito diretores, um cenó-
grafo, um figurinista, um sonoplasta (DJ), um ilu-
minador, um fotógrafo, um operador de câmera de
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