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FILOSOFIA
CRISTÃ
ÍNDICE
I. O QUE ÉAFILOSOFIAREFORMACIONAL?
Kuyperianismo e Filosofia
cristã. Em primeiro
pensamento lugar,
filosófico. naturalmente,
A filosofia ocidentalmostrou
ignora aacrença
necessidade uma nova críticanão
de sistematicamente,
em Deus do
simplesmente negando sua existência, mas evitando pressupor essa existência ao tratar dos
problemas filosóficos, isto é, considerando-o irrelevante para a filosofia. Uma vez que na
perspectiva bíblica todas as dimensões da vida devem operar Coram Deo, diante de Deus,
esse estado de coisas é inaceitável ao cristão, não somente porque não está de acordo com a
sua religião, mas porque não está de acordo com a estrutura da própria realidade!
Portanto, é necessária uma nova crítica de tudo o que a mente secular tem produzido
desde os gregos.
Mas, além disso, é preciso lembrar, não há crítica sem ponto de partida, sem visão
de mundo. Isso implica, portanto, a necessidade de articular uma visão de totalidade,
procurando explicar racionalmente a estrutura básica do cosmo, e localizando, inclusive, o
lugar da razão no cosmo. Uma das características mais importantes do pensamento
reformacional é esse compromisso com uma explicação da totalidade do cosmo.
E aqui se encontra a principal contribuição do pensamento Kuyperiano para o
cristianismo contemporâneo: a idéia de tomar a cosmovisão cristã não como o resultado de
uma reflexão filosófica e científica, para convencer os incrédulos usando a cosmovisão
deles, mas como o ponto de partida para realizar toda reflexão filosófica e científica,
trazendo os incrédulos para a nossa cosmovisão. Afinal de contas, para salvar alguém num
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barco furado, é muito melhor trazê-lo para o nosso barco, do que entrar no barco dele para
ajudá-lo a tirar a água! Essa nova perspectiva é geralmente denominada
pressuposicionalismo.
A proposta filosófica dos gregos, tanto em seu estágio mais primitivo,
“cosmológico”, como em sua forma “socrática”, não está errada do ponto de vista formal.
Sua falha está no dogma da autonomia religiosa da razão. Esse dogma foi adotado no
pensamento humanista moderno e contemporâneo, sendo pressuposto acriticamente pela
maior parte dos pensadores seculares – e até pelos cristãos! Kuyper e Dooyeweerd
desafiaram esse dogma ao sustentar que a filosofia pode e deve ser conduzida pelos cristãos
trocando a centralidade da razão pela centralidade da religião.
Nosso Caminho
PARTE 1:
A CRÍTICA TRANSCENDENTAL DO
PENSAMENTO TEÓRICO
E para isso precisamos examinar as condições básicas que tornam qualquer pensamento
filosófico possível. Conhecendo essas condições básicas, poderíamos identificar e
descrever diferentes filosofias a partir de seu ponto de partida, e assim teríamos uma base
para discussão frutífera entre as várias escolas de pensamento.2
VINCENT BRÜMMER observou que esse mesmo problema foi encarado por K ANT.
Este também buscou uma crítica da faculdade da razão com tal, para lidar em definitivo
com as contradições da metafísica. DOOYEWEERD tem um projeto semelhante, mas também
essencialmente diverso. Para Dooyeweerd Kant caiu num dogmatismo teórico, falhando em
fazer da própria atitude teórica do pensamento um problema teórico, e simplesmente
pressupondo a autonomia do pensamento. Esse dogmatismo mascara o verdadeiro ponto de
partida do pensamento e ao mesmo tempo controla seu modo de lidar com os problemas
teóricos.3
Assim sendo Dooyeweerd defende que uma crítica realmente radical do pensamento
deve não somente abandonar o dogma de que o pensamento teórico é autônomo, mas
também deve demonstrar que este dogma contradiz o verdadeiro caráter do pensamento
teórico em si mesmo. Seria intrínseca à estrutura do pensamento teórico a dependência de
pressuposições supra-teóricas. Além disso, era a intenção de Dooyeweerd demonstrar que
essas pressuposições seriam de um caráter religioso, introduzindo assim a discussão a
respeito da relação entre a religião e a filosofia, bem como lançando as bases para uma
filosofia cristã.4
Orientação importante: a próxima seção do texto (p. 7 a 21) é uma revisão de Kant um
tanto complexa. Aqueles interessados em um conhecimento mais preciso da srcem da crítica
transcendental de Dooyeweerd podem continuar a leitura do capítulo. Se você deseja conhecer mais
rapidamente a crítica de Dooyeweerd, pode passar à página 22. Finalmente, se você sentir
dificuldades para
Sistemática, p. 53)ler as partemais
voltando I (Crítica
tarde àTranscendental)
parte I. comece diretamente da parte II (Filosofia
1. A Idéia de uma Crítica Transcendental do Conhecimento em Kant e Dooyeweerd 5
4 Ibid, p. 15.
5 Toda essa seção é uma tradução adaptada de Brümmer, p. 16-39.
6 Ibid, p. 15.
8
elementoComo os dogmáticos,
“a priori” Kantpela
que é suprido sustentava que .o Mas
compreensão conhecimento
ele adicionatambém incluideve
que a razão um
conhecer seus próprios limites: as formas a priori da razão não podem ser aplicadas à
realidade supra-sensória sem gerar contradições.
Assim Kant divide a realidade em duas esferas: a esfera supra-sensória, denominada
noumenal, que é a esfera das coisas em si mesmas, e a esfera da experiência sensória,
denominada fenomenal. As realidades de Deus, da liberdade e imortalidade da alma, e a
srcem e totalidade do cosmos também pertencem à esfera noumenal que apenas pode ser
conhecida na fé racional da razão prática, e nunca pela razão teórica. Para esta última a
esfera noumenal pode apenas Ter um significado meramente negativo, e não pode produzir
nenhum conteúdo positivo para o nosso conhecimento teórico.
O conhecimento é limitado aos fenômenos, isto é, à realidade experienciada, que
contém um elemento sensório e um elemento a priori suprido pela compreensão. Aqui Kant
anunciou uma descoberta surpreendente: ao invés de nosso conhecimento se conformar aos
objetos da experiência, esses objetos é que são conformados ao nosso conhecimento, desde
que é a nossa faculdade cognitiva que fornece os princípios universais e necessários pelos
quais as impressões dos sentidos são organizadas e “formatadas” como objetos de
experiência. Kant compara esta descoberta à de Copérnico, que moveu o ponto fixo do
sistema solar da terra para o sol.
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A “matéria”
causada ou “conteúdo”
pelas coisas da que
em si mesmas percepção empírica
estimulam nossosé sentidos.
inteiramente a posteriori
Por si eé
mesmas essas
impressões sensórias (Empfindungen) são meramente consciências de estímulos. Nós
temos consciência de um sabor na língua, um som no ouvido, um toque na pele, etc.
Essas são apenas os princípios ainda crus da experiência, mas como tais eles são os
dados primários de todo conhecimento. Nós os moldamos como percepções que por
seu turno são moldadas como conceitos pela compreensão.
A impressões dos sentidos são tornadas em percepções empíricas segundo as formas
de percepção, isto é, as “percepções puras” de espaço e tempo. O espaço é a forma das
percepções externas: todas os objetos externos são espaciais, desde que as impressões
externas são formadas como objetos sob a forma do espaço. O tempo, por outro lado, é
a forma da percepção interna por meio da qual nós organizamos nossas impressões
internas em uma ordem temporal fixa. Como os objetos externos podem apenas ser
conhecidos quando transformados em representações internas (Vorstellungen) que são
também por seu turno organizadas sob a forma de tempo, esta forma é aplicada a todas
as percepções no processo cognitivo.
O espaço e o tempo, assim, não são percepções no sentido usual, mas modos de
percepção ou regras a priori de acordo com as quais a percepção opera. Desde que Kant
argumenta que elas são as condições transcendentais da percepção, e nós não temos
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a.As Categorias. Desde Aristóteles, as formas da lógica geral, sob as quais os conceitos
são combinados para formar julgamentos, tem sido conhecidas e distinguidas. Todos os
julgamentos podem ser arranjados de quatro diferentes pontos de vista, e para cada um
deles Kant posteriormente distingue três diferentes tipos de julgamentos:
Sob essas doze formas, assim, os conceitos são sintetizados para obter julgamentos.
Desde que Kant argumentou que a mesma atividade sintética da função lógica da
compreensão forma tanto os conceitos como os julgamentos, ele concluiu que as
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oposto, pois. a compreensão não pode analisar aquilo que ela não sintetizou
previamente
Nessa atividade unificadora, a compreensão trai sua unidade, pois apenas uma
compreensão única e unificada pode reconhecer sua experiência diversificada como
sendo o conteúdo da mesma consciência coerente. Apenas porque eu posso
compreender a variedade das minhas representações em uma única consciência é que
eu as considero como minhas representações. Apenas porque todas as representações
são pensadas pela mesma compreensão, elas podem ser sintetizadas em um todo
unificado.
Kant chama esse princípio unificador que reúne toda a consciência de “eu
transcendental”, ou unidade transcendental da apercepção. Desde que essa unidade é a
condição transcendental de toda a experiência, ela não pode ser derivada da
experiência e deve ser distinguida do eu empírico que nós conhecemos na experiência
– o “self” do qual nós somos conscientes em nossa auto-consciência empírica. Essa
última auto-consciência não é a consciência do que realiza a percepção e o
conhecimento, mas daquilo que é conhecido – que é o fenômeno. O eu conhecedor
transcendental pertence à realidade noumenal é portanto permanece desconhecido. O
fato de que todo o nosso conhecimento pressupões o eu transcendental como uma
unidade de apercepção não implica em que nós tenhamos qualquer conhecimento dele.
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Cada categoria tem uma relação específica com o tempo. Essa relação é o seu
esquema. Assim o esquema da substância é a permanência, o da causalidade a
sucessão temporal, etc. Conseqüentemente uma categoria em sua relação com o tempo
(uma categoria esquematizada) pode ser aplicada a cada sensação em sua relação com
o tempo – isto é, em uma representação.
De acordo com Kant, a sensação e a compreensão são as únicas fontes do nosso
conhecimento. Se este é o caso, então o problema epistemológico refere-se à forma
com que nós sintetizamos esses elementos em um sistema unificado que é o objetivo
final de todo o nosso conhecimento. Com isso nós apresentamos a resposta de Kant a
essa questão e apontado como, de acordo com ele, o mundo fenomenal da experiência
é constituído na atividade sintética da unidade transcendental da apercepção.
À parte das categorias como elementos constitutivos na estrutura sintética, a
estrutura da razão em si mesma implica idéias por meio das quais o processo inteiro da
síntese do conhecimento é regulado e recebe direcionamento. Essas são denominadas
idéias da razão pura.
c.As Idéias da Razão Pura. A compreensão é a faculdade de formar conceitos e
combiná-los em julgamentos. A faculdade de combinar julgamentos para obter
conclusões é chamada de “razão” por Kant. Todos os julgamentos podem ser premissas
das quais a razão pode tirar conclusões e essas conclusões são então condicionadas
pelas premissas. Alguém pode perguntar se este processo da razão não poderia ser
revertido, desde que cada premissa pode também ser vista como uma conclusão tirada
de outras premissas e assim também condicionadas por elas. Se assim for, não poderia
esse processo reverso eventualmente levar a um julgamento incondicionado? Kant
nega isso, desde que o processo seria de um regresso infinito. Isto é dificilmente
surpreendente,
necessariamenteporque todo o nosso
condicionados pelas conhecimento
categorias. O éinfinito
limitado a fenômenos éque
incondicionado são
apenas
possível como uma idéia – um ideal infinito implicado na razão mas nunca alcançado,
desde que transcende a esfera dos fenômenos.
A tarefa dessa parte da Crítica da Razão Pura é demonstrar que tais idéias
transcendem os limites do pensamento teórico e assim não constituem conhecimento,
mas são meros ideais de acordo com os quais os processos do conhecimento são
regulados. Porque essas idéias estão implicadas na própria estrutura da razão, surge a
ilusão de que nós podemos tratá-las como objetivamente reais e fazer julgamentos
empíricos a respeito delas. Tais julgamentos que transcendem a esfera dos fenômenos
devem necessariamente acabar em contradições. Kant chama esses julgamentos de
ilusões transcendentais.
Em sua totalidade, nossas idéias se referem ao sujeito, ou ao objeto, ou à unidade de
sujeito e objeto. Assim Kant distingue entre três classes de idéias: a unidade
incondicionada do sujeito pensante (a idéia da alma); a unidade incondicionada das
condições dos fenômenos (a idéia de totalidade cósmica); e a unidade incondicionada
das condições de todos os objetos do pensamento (a idéia do absoluto, isto é, Deus).
Seguindo-se a ilusão transcendental, essas idéias são feitas os objetos de três ciências
metafísicas: a psicologia racional, a cosmologia metafísica e a teologia natural.
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obtidas.
classes deKantcategorias.
demonstrou que são
Essas quatro dessas em
divididas antinomias correspondem
duas antinomias às quatro
matemáticas
(correspondendo às categorias de quantidade e qualidade), e duas antinomias
dinâmicas (correspondendo às categorias de relação e modalidade).
As antinomias matemáticas são as que se poderia provar que o mundo é, com
respeito à quantidade, tanto limitado como ilimitado no espaço e no tempo, e , com
respeito à qualidade, tanto composto como simples. As antinomias dinâmicas são, com
respeito à relação, que pode ser provado que a liberdade é possível como uma primeira
causa e que ela está excluída por uma cadeia infinita de necessidade mecânica,
enquanto, com respeito à modalidade, um ser supremo necessário poderia tanto ser
provado como “des-provado”.
Kant rejeita ambas as conclusões alcançadas nas antinomias matemáticas, uma vez
que elas se baseiam sobre a ilusão dialética. Entretanto, no caso das antinomias
dinâmicas, Kant aceita as teses como aplicáveis ao mundo noumenal, porque a
moralidade pressupõe as realidades da liberdade e de Deus. Como tanto as teses como
as antíteses são igualmente válidas, Kant aceita as antíteses como aplicáveis ao mundo
dos fenômenos. Disso se segue que as antinomias dinâmicas não são contraditórias,
desde que elas sejam vistas em seus contextos apropriados.
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Isso não implica que a razão teórica está aqui aplicando suas categorias à esfera
supra-sensória. Essas conclusões são tomadas puramente na base da razão prática como
postulados necessários da moralidade. Isso é posteriormente substanciado na crítica
Kantiana da teologia natural, onde ele demonstra que as várias provas para a existência
de Deus são todas baseadas em ilusões dialéticas. Que um ser supremo existe não é
negado por Kant; o que ele nega é que a existência de tal ser possa ser teoricametne
deduzida da idéia transcendental de Ser Supremo.
Nós podemos concluir que embora Kant não atribua às idéias transcendentais uma
significância mais que regulativa com respeito ao conhecimento, ele aceita sua
realidade na esfera noumenal como postulados da moralidade e da religião.
De acordo com Dooyeweerd, Kant foi o primeiro filósofo a distinguir entre a atitude
crítica e a atitude dogmática de pensamento, e a ver que a filosofia crítica precisa examinar
as condições transcendentais que tornam a filosofia possível e determinam seus limites.
Entretanto, diz Dooyeweerd, tal investigação transcendental deve ser completa para ser
crítica. Ela não deve deixar nenhuma de suas pressuposições intocadas, ou elas poderão
dominar a investigação e roubar-lhe o caráter crítico. E justamente nesse ponto a crítica de
Kant falha. Ele não examina até o fim as condições que tornam o pensamento filosófico
possível, e dogmaticamente assume certas posições básicas que determinam toda a sua
filosofia.
Kant foi o primeiro a ver o problema epistemológico como um problema de síntese
teórica. Entretanto ele assumiu que essa síntese era meramente uma síntese lógica, e assim
firmou
ele a questão
tentou epistemológica
resolver sobre uma baseantes
o problema epistemológico muitodeestreita.
fundarIsso
sua teria ocorrido porque
epistemologia sobre
uma teoria de coerência cósmica a partir da qual a relação gnoseológica teria seu lugar
definido. Em sua teoria das idéias transcendentais, Kant de novo abre a porta para
transcender a estreita base lógica em que ele formulou o problema, mas o motivo filosófico
básico que dominava seu pensamento impediu que ele aprofundasse essa linha de
pensamento. Assim Dooyeweerd conclui que a crítica Kantiana não foi crítica o suficiente.
O “método crítico” teria de ser mais crítico, se ele quisesse manter sua reivindicação à
honra auto-assumida de “pensamento crítico”.
A crítica de Dooyeweerd a Kant pode ser apresentada em quatro pontos básicos: (1)
sua epistemologia não tinha uma base cosmológica; (2) ele consequentemente falhou em
prover um tratamento satisfatório do problema da síntese epistemológica; (3) as fraquezas
de sua teoria das idéias e (4) o motivo básico que domina sua filosofia.
7 KANT, Immanuel, Crítica da Razão Pura. Os Pensadores. São Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 72.
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Com essas palavras Kant abre a primeira parte de sua crítica isolando o material
sensório da experi6encia em sua recepção mais primitiva nas “formas transcendentais
do espaço e do tempo.” Este isolamento levou Kant a distinguir entre a
“percepção” (Anschauung) e a “compreensão” (Verstand) como as duas únicas fontes
de todo o conhecimento, e a manter assim que a realidade experimentada consiste de
um aspecto sensório recebido através da percepção e um aspecto lógico produzido pela
compreensão. Isso determina a divisão principal de sua crítica em estética
transcendental e lógica transcendental.
Dooyeweerd mostra que essa divisão é uma evidente abstração que falha em fazer
justiça à complexa estrutura de sentido cósmico que nós conhecemos através da
experiência. Na experiência ordinária a realidade se revela como uma unidade coerente
composta de coisas individuais e eventos. Este é o datum primário de todo o nosso
conhecimento. Na reflexão teórica vários aspectos ou modalidades estruturais podem
ser distinguidos no cosmos; mas desde que eles foram teoricamente abstraídos da
estrutura cósmica de sentido, eles podem apenas ter significado quando vistos à luz
dessa coerência. Isto implica que cada aspecto deve ter uma estrutura que expresse essa
conexão interna entre ele e todos os outros aspectos.
Ignorando essa coerência intermodal, Kant começa com uma tentativa de
isolamento do aspecto sensório da experiência, e então procede a uma posterior
abstração dentro desse aspecto. Espaço e tempo são isolados como formas de percepção
das impressões sensórias caóticas que são seu conteúdo. Como Hume, Kant toma essas
impressões como sendo os dados primários de todo conhecimento, ignorando a
abstração envolvida para “recuperá-los”. Isso implica seguinte contradição: o resultado
da abstração é interpretado como o datum primário de todo o nosso conhecimento .
Essas impressões,
primários que sãodiz aDooyeweerd,
coerência denadasentido
mais sãosystática
que abstrações teóricas como
da realidade dos dados
nós
conhecimentos em nossa experiência ordinária ou ingênua.
Esta é a primeira abstração feita por Kant. Nossa experiência é mal interpretada e
restrita à função sensória teoreticamente abstraída, e o dado primário do conhecimento
é reduzido às impressões caóticas dos sentidos. Sendo caóticas, essas impressões não
tem nenhuma estrutura de sentido fixa, e não constituem conhecimento. Daí a
necessidade da compreensão de sintetizar essas impressões tornando-as estruturas fixas.
Depois dessas impressões terem sido sintetizadas sob as formas do espaço e do tempo
para formar representações, as representações são sintetizadas sob as categorias para
formar objetos de conhecimento. Essas formas sob as quais as sínteses são realizadas
são fornecidas pela compreensão. Assim Kant vê a estrutura da realidade como sendo
dada em nossa experiência como uma estrutura meramente lógica, produzida pela
compreensão.
Esta é a segunda abstração manifesta sobre a qual Kant baseia sua filosofia. O
aspecto lógico da realidade é abstraído de sua coerência com outros aspectos e feito
absoluto. A totalidade da estrutura de sentido da realidade é reduzida à estrutura de um
dos aspectos do sentido cósmico, enquanto a síntese lógica da compreensão substitui a
systasis de sentido cósmico e a compreensão se torna a fonte da lei para o cosmos. Kant
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ignora o fato de que essa absolutização da síntese lógica apenas é possível porque o
aspecto lógico da realidade foi previamente abstraído da coêrência de sentido cósmico.
A síntese lógica absolutizada – que é o resultado da análise lógica – é vista por Kant
como o pré-requisito para toda análise lógica! “O que a compreensão não combinou
anteriormente”, diz ele, “ela não pode dissolver ou analisar.”
A crítica de Dooyeweerd a Kant quanto a esse primeiro ponto pode ser sumarizada
como se segue: Kant falha em dar conta da estrutura cosmológica que é pressuposta em
todo pensamento filosófico. Por isso ele baseia sua epistemologia sobre uma abstração
cosmológica que ele acrticamente aceita como dado, isto é, os aspectos sensório e
lógico da experiência, abstraídos da totalidade do sentido cósmico. Com respeito ao
aspecto sensório, isso resulta na contradição de considerar as impressões sensórias
abstraídas como o dado primário do conhecimento. O aspecto lógico, por outro lado, é
feito absoluto e, como resultado, a estrutura cósmica de sentido é reduzida a uma
estrutura lógica e a compreensão feita a fonte da lei e da ordem do cosmo. Alguém
poderia perguntar se é possível formular e resolver o problema da síntese
epistemológica sobre tal base cosmológica insuficiente. Isso nos leva à próxima parte
da crítica de Dooyeweerd.
aspecto do sentido
Entretanto Kantcósmico.
tentou demonstrar como um ponto de referência fixo poderia ser
econtrado à luz do qual a síntese epistemológica seria obtida. Ele argumentou que tal
ponto não poderia ser encontrado entre os objetos do conhecimento, mas apenas através
da auto-reflexão no pensamento teórico. Dooyeweerd considera isso um caminho
bastante promissor, pois, como ele diz, “é indubitável que, enquanto o pensamento
teórico em sua atividade lógica permanece em estado de oposição aos aspectos modais
da realidade temporal que constituem seu “Gegenstand”, eles permanecem numa
diversidade teórica. Apenas quando o pensamento teórico é dirigido ao ego pensante,
pode ele adquirir a direção concêntrica em direção a uma unidade última da consciência
que se encontra na raiz de toda diversidade modal do sentido.”Dooyeweerd, N.C., I, p.
51.
Como Kant assume que as funções lógica e sensória teoreticamente abstraídas são
as únicas fontes do conhecimento, a unidade transcendental da auto-consciência deve
em sua opinião ser encontrada em uma dessas fontes. A sensibilidade pode apenas nos
fornecer conhecimento de nosso eu empírico, isto é, o eu que é feito objeto de
pensamento, e não do sujeito transcendental do pensamento. Assim, se todos aqueles
momentos que podem ser tratados como objetos da função lógica do pensamento são
eliminados do eu individual concreto espaço-temporal, nós ficamos com o ego lógico-
18
Dooyeweerd conclui
o conhecimento possível,quenão
a profunda
pode serunidade
limitadadaaauto-consciência que sozinha
uma de suas funções, mas torna
deve
transcendê-las como o ponto de referência em que elas encontram sua unidade. A
unidade transcendental da apercepção de Kant é meramente a unidade imanente da
função lógica e não a unidade última do ego pensante. O fato de que ele funda sua
epistemologia nessa abstração é evidenciado por sua redução da síntese epistemológica
a uma síntese de uma diversidade meramente lógica.
Entretanto, a crítica de Kant permite pelo menos um tipo de síntese intermodal: a
síntese entre os aspectos lógico e sensório da realidade. Não teria Kant encontrado
talvez um ponto de referência nessa síntese que transcenda a ambos os aspectos? A
distinção Kantiana entre lógica formal e transcendental, sua doutrina da imaginação
transcendental e sua doutrina dos esquematismos pode prover indicações disso.
a.Lógica Formal e Transcendental. Na crítica Kantiana, a lógica formal lida com as
formas lógicas sob as quais os conceitos são combinados para formar julgamentos,
enquanto que a lógica transcendental lida com as categorias que são formas sob as
quais o conhecimento é relacionado aos objetos dos sentidos. Poderia ser dito que no
pensamento de Kant a lógica formal lida com as formas lógicas enquanto a lógica
transcendental lida com as formas epistemológicas. A distinção entre lógica formal e
transcendental parece implicar que as categorias não são meras formas lógicas, mas
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que elas são formas que implicam uma síntese a prior entre as formas lógicas de
pensamento e o material sensório. Se não for possível demonstrar que as categorias são
mais do que meras formas lógicas, diz Dooyeweerd, então a distinção entre lógica
formal e transcendental seria sem sentido.
Entretanto, um exame cuidadoso mostra que nenhuma síntese intermodal está
implicada nas categorias, desde que Kant ressalta que é a mesma função lógica que
está ativa na analítica formal e no pensamento sintético transcendental. Além disso
Kant orienta as categorias dentro de uma tábua de julgamentos lógicos formais, porque
eles são realmente de uma natureza lógica. Ele os distingue como conceitos sintéticos
porque eles são aplicados a experiências possíveis. Entretanto ele não considera a
síntese em que eles são fundados como intermodal, mas como uma síntese puramente
lógica. Daí se segue que as categorias são formas meramente lógicas e que não
implicam qualquer síntese intermodal. Dooyeweerd aponta que se elas fossem
realmente formas transcendentais de conhecimento objetivo, e não meramente formas
de pensamento, então elas não deveriam ter sido discutidas em epistemologia, mas na
análise dos vários aspectos modais da experiência que deveria preceder qualquer
discussão de epistemologia e que determina as condições cosmológicas do
conhecimento. Nesse ponto Kant não atinge nem uma síntese intermodal, nem um
ponto de referência que transcenda a diversidade modal.
b.A Imaginação Transcendental. Na primeira edição de sua Crítica da Razão Pura,
aparentemente Kant interpreta a imaginação como uma terceira função ao lado da
compreensão e da percepção. Essa terceira função deve então ser o fator de síntese
atrás dos outros dois. Entretanto, a idéia de uma terceira função contradiz a visão
apresentada na “Introdução” de que haveria apenas duas fontes de conhecimento;
assim, na Segunda
imaginação é uma edição,
função Kant removeu a contradição
da compreensão declarando
e que a síntese enfaticamente
figurativa quedaa
seria um ato
compreensão. Assim nós concluímos que a imaginação não fornece um ponto fixo
além da função lógica. Nem é a síntese figurativa uma síntese intermodal.
c.A Doutrina do Esquematismo. O problema de uma síntese intermodal entre o material
sensório e as categorias não é realmente tratado por Kant antes de sua discussão da
doutrina dos esquematismos. Para demonstrar como as categorias podem ser aplicadas
aos fenômenos sensórios, Kant formulou sua doutrina na qual o tempo é visto como
“uma terceira coisa de natureza similar às categorias, por um lado, e aos fenômenos,
por outro”, que media a síntese entre os dois. Por um lado, o tempo é a forma universal
da sensação, e por outro lado é o meio pelo qual as categorias são esquematizadas com
a ajuda da imaginação transcendental.
Como Dooyeweerd mostrou, isso não é uma solução para o problema, mas uma
petitio principii. Afirma-se que o problema da síntese entre as categorias e os
fenômenos sensórios é resolvido pelo esquematismo das categorias. Mas isso é apenas
uma reafirmação do mesmo problema de uma outra forma: como podem as categorias
e a forma sensória do tempo serem sintetizadas? Desde que as categorias são formas
puras de pensamento, elas são atemporais e assim estão em oposição irreconciliável
tanto ao material sensório como à forma sensória do tempo. Segue-se que a doutrina
20
dos esquematismos contradiz as próprias visões de Kant sobre o caráter lógico das
categorias e o caráter do tempo como uma forma de percepção. Consequentemente
Dooyeweerd conclui que “do capítulo sobre os esquematismos temos a impressão de
que Kant deve ter visto a insuficiência de sua concepção da unidade da auto
consciência para explicar relação entre as “categorias de pensamento” e os “fenômenos
sensórios”.
A crítica de Dooyeweerd a Kant sob este segundo ponto pode ser sumarizada como
se segue: (1) Devido à insuficiente base cosmológica de sua epistemologia, Kant reduz
a síntese intermodal do conhecimento a uma síntese meramente lógica. (2) Embora a
crítica de Kant deixe espaço para ao menos uma síntese intermodal – aquela entre os
aspectos lógico e sensório – ele não dá uma solução para o problema nem em sua
doutrina das categorias como formas de lógica transcendental, nem na doutrina da
imaginação transcendental, nem na dos esquematismos. (3) Desde que Kant absolutiza
a função lógica, ele reduz o ego pensante, como ponto transcendental de referência
para todas as sínteses, a uma unidade meramente lógica de consciência. Ele falha em
transcender a diversidade modal do sentido no ponto de referência que ele escolheu
para a síntese teórica; como resultado, a direção transcendental do pensamento teórico
para o ego pensante é desviada e limitada à função lógica. Teria Kant buscado
transcender à função lógica em sua doutrina das idéias transcendentais? Isso nos leva á
próxima parte da crítica de Dooyeweerd.
3. A Doutrina Kantiana das Idéias. A atividade sintética do conhecimento, portanto,
implica um ponto de referência que transcende os diferentes aspectos do sentido
cósmico. Nosso ego pensante deve ser capaz de participar desse ponto, desde que é o
ego pensante que realiza a síntese. Entretanto, o pensamento teórico não pode
transcender a diversidade
essa diversidade que torna dos aspectos deteórico
o pensamento sentido do cosmo,
possível. desde
Assim que é justamente
o pensamento teórico
não pode fazer mais do que desenvolver idéias regulativas que no uso teórico
permaneceriam presas aos limites imanentes do conhecimento teórico, mas seriam
capazes de se referir à totalidade absoluta do sentido, proporcionando um ponto de
referência transcendente para a síntese teórica do conhecimento.
Dooyeweerd chama a tentativa de encontrar tal ponto de referência transcendente
por meio de idéias transcendentais de “a direção transcendental do pensamento
teórico”. Essa direção transcendental não aparece na obra de Kant antes de sua
discussão das idéias transcendentais na dialética transcendental. Essas idéias
apresentam as características básicas do que seria o ponto de referência necessário a
uma síntese intermodal. Primeiro de tudo, elas apontam para uma totalidade absoluta
que de acordo com Kant transcende os limites imanentes da “experiência objetiva”.
Esta última é sempre limitada aos dados dos sentidos que são condicionados pelas
categorias, de modo que o absoluto, como o incondicionado, deve transcender esses
fatores condicionantes. Em segundo lugar, em seu uso teórico, essas idéias
permanecem presas aos limites imanentes do conhecimento e não podem receber um
conteúdo positivo pelo pensamento teórico. Seu conteúdo pode apenas ser encontrado
na esfera transcendente à qual elas se referem.
21
Kant “não fez mais do que proclamar o sujeito conhecedor lógico-transcendental como
a fonte da lei para a realidade empírica, sua obra Copernicana pode não Ter sido nada
mais do que a realização da tendência básica do ideal humanista de ciência ...”8 O
aspecto realmente revolucionário da crítica de Kant foi remoção das “coisas em si
mesmas” da dominação do ideal matemático de ciência e sua limitação de todo
conhecimento teórico aos fenômenos dos sentidos. Dessa forma o ideal de
personalidade livre foi emancipado das determinações da ciência matemática e foi
criada uma esfera supra-sensória na qual a personalidade pudesse ser autônoma. Vê-se,
então, que Kant sustentou o dualismo do motivo humanista mas enfatizou o primado do
ideal de personalidade. Este primado ganharia crescente importância no
desenvolvimento do idealismo após Kant. À luz do equilíbrio entre os ideais de ciência
e de personalidade – um equilíbrio inclinado em favor do último – Kant deu conteúdo a
suas idéias transcendentais e elaborou sua crítica do conhecimento.
A forma com que Kant deu conteúdo às idéias transcendentais é claramente
expresso em sua discussão das antinomias dinâmicas quando ele diz: “Que meu ego
pensante tem uma natureza simples e indestrutível, que o eu ao mesmo tempo é livre em
seus atos volicionais e elevado acima da coerção da natureza, e que finalmente a ordem
total das coisas se srcina de um Ser Primeiro do qual todas as coisas derivam sua
unidade e conexão apropriada: estes são fundamentos da moral e da religião.” Aqui o
“eu” é liberado do domínio da natureza e mesmo da morte, e é identificado com o eu
moral autônomo do ideal humanista de personalidade. Esta idéia do eu e o motivo que
lhe confere conteúdo subjaz à teoria do conhecimento de Kant.
Sem uma base cosmológica para a sua epistemologia, a suposição de Kant de que há
apenas duas fontes de conhecimento é determinada por seu motivo base dualista. “Sua
concepção
pensamento da autonomia e espontaneidade
é indubitavelmente governada pelodamotivo
função lógico-transcendental
humanista da liberdade, edoo
motivo base da natureza encontra clara expressão em sua concepção do caráter
puramente receptivo da função sensória da experiência, e de sua sujeição às
determinações causais da ciência.” Na epistemologia de Kant, a síntese entre liberdade
e necessidade natural é dada no conceito da conexão das categorias à experiência
sensória. Entretanto, devido ao dualismo a partir do qual Kant começa seu pensamento,
todas as suas tentativas de explicar a síntese foram infrutíferas.
O fato de que a sensação e a compreensão lógica são opostos dualisticamente um ao
outro é perigosa tanto para o ideal de ciência como para o de personalidade. A despeito
da proclamação da compreensão lógica como a fonte da lei da natureza, a soberania do
pensamento teórico é seriamente desafiada porque a sensibilidade como uma instância
puramente receptiva impõe limites insuportáveis sobre ela. A compreensão é feita a
fonte da lei meramente em um sentido formal. O conhecimento material permanece um
produto a-lógico do Ding an sich. Este Ding an sich metafisicamente construído limita
seriamente a autonomia do ideal de ciência. Entretanto, ele também desafia a autonomia
do ideal de personalidade porque, como uma realidade noumenal, ele não é compatível
Dooyeweerd
teórica procurou aprofundar
de pensamento como tal”.9sua
Suacrítica
nova do pensamento
abordagem teóricoprimeiramente,
apareceu focalizando “asegundo
atitude
BRÜMMER, em dois artigos escritos em 1941 para a revista Philosophia Reformata,10 e foi
publicada em 1948 na obra Transcendental Problems of Philosophic Thought.11 A forma
final do argumento é encontrada no capítulo 1 da edição inglesa de sua obra magna: A New
Critique of Theoretical Thought.12 Neste capítulo vamos nos concentrar na exposição da
forma final do argumento, que Dooyeweerd chama de “A Segunda Via para uma Crítica
Transcendental do Pensamento Teórico.”
Como vimos no capítulo anterior, Dooyeweerd apontou como uma das falhas
principais da crítica Kantiana a ausência de uma base cosmológica adequada para a
epistemologia. Kant partiu da pressuposição de que as fontes do conhecimento se reduzem
aos dados dos sentidos e as categorias da compreensão, e esse erro básico comprometeu
todo o restante do
estabelecimento de edifício.
uma baseDesse
cosmológica Nova
modo, amais Crítica
ampla e dede Dooyeweerd
uma concepção começa com o
de pensamento
teórico coerente com essa base cosmológica.
O processo
experiência, intencional
na dificuldade da abstração encontra
de conceptualizá-los. resistêncianasce
Essa resistência nos doaspectos
fato de da
que
mesmo ao ser abstraída, “a estrutura modal do aspecto não-lógico X que é tratado como
“Gegenstand” continua a expressar sua coerência (de sentido) com os aspectos modais Y
que não foram escolhidos como o campo da inquirição .”16 É que uma vez que os diversos
aspectos existem numa coerência inquebrável de sentido, não há como definir um aspecto a
não ser em referência aos outros. Segue-se que, embora a abstração seja fundamental para
atingirmos um insight teórico na diversidade do sentido cósmico, o resultado da abstração
não pode jamais ser tratado como um dado básico da experiência, ou como um “dado não
problemático”.
14 Ibid, p. 39.
15 Ibid, p. 40.
16 Ibid, p. 40.
26
intencional,
propriedades, jamais
podemosbuscando
dizer queessências do ingênua
a experiência real ou deixa
dividindo abstratamente
as estruturas suas
da experiência
do real intactas.
17 Ibid, p. 42.
18 “As funções objetivas pertencem às coisas em si mesmas na relação com possíveis funções subjetivas que
as coisas não possuem nos aspectos da realidade envolvidos.” Ibid, p. 42.
27
Conclusão
da experiência
intencional e odaconfrontamos
surge com de
abstração teórica o aspecto lógico, de
uma dimensão da tal forma queEvidentemente,
experiência. essa estrutura
assim, o produto intencional do pensamento teórico não pode conter a realidade e não
corresponde aos objetos reais; as estruturas da realidade empírica não são integralmente
transmitidas a nós na abstração, mas apenas um dos strata dessa estrutura . Ao mesmo
tempo, o produto intencional da atividade teórica nunca é absolutamente isolado das
estruturas da realidade empírica, pois seu sentido é dado pela totalidade do real; assim o
strata abstraído nunca é transmitido a nós na abstração independentemente das estruturas
da realidade empírica.
19 “Assim, em aliança com a moderna ciência natural e a teoria fisiológica das ‘energias específicas dos
sentidos’ a moderna epistemologia assume a tarefa de refutar esse ‘realismo ingênuo’!” Ibid, p. 43.
20 Dooyeweerd, “Transcendental Problems”, p. 35, 36.
Um pouco de atenção ao problema nos fará perceber que não é possível encontrar
esse ponto de referência em um dos dois pólos da antítese. O que o ego pensante busca na
relação gegenstand é conceptualizar uma realidade não-lógica. O problema é como
podemos saber se o conceito teórico produzido após essa conceptualização é uma imagem
lógica adequada daquela realidade não-lógica. Ora, se essas duas dimensões são
essencialmente distintas, isto é, se a conceptualização é realizada justamente porque há a
função lógica e uma função oposta cuja característica essencial é ser não-lógica, então elas
permanecem mutuamente insolúveis, como água e óleo.23
Na verdade, não pode haver esperança de que uma explicação lógica de uma
realidade não-lógica seja verdadeira, a não ser que exista uma unidade profunda entre o
lógico e o não-lógico. Essa unidade seria algo mais do que lógico. Isso pode ser ilustrado
com uma experiência comum que todos conhecemos: a linguagem. Podemos dizer que
“José ficou muito irado repentinamente”. Ou podemos usar uma metáfora e dizer que “José
22 Ibid, p. 45.
23 “Pois uma coisa é certa: a relação antitética, com a qual a atitude teórica de pensamento fica de pé ou cai,
não oferece em si mesma nenhuma ponte entre o aspecto do pensamento lógico e seu “Gegenstand” não
lógico”. Ibid, p. 45.
29
realidade.
Sempre que o pensamento busca a totalidade do sentido cósmico – a “unidade
profunda do sentido” de que falamos há pouco – dentro do próprio cosmo, inevitavelmente
absolutizará uma das dimensões de sua experiência temporal que foi abstraída
teoreticamente. Assim o ponto de partida teórico para a conceptualização das diversas
esferas da experiência fica sendo uma conceptualização específica que foi absolutizada e
tratada como a totalidade do sentido.
Vários exemplos disso poderiam ser apontados. Por exemplo, na matemática: como
devemos compreender a relação entre a lógica, o número, o espaço, a sensação e os sinais
linguísticos usados na matemática? A síntese matemática é srcinada no pensamento lógico,
na percepção dos sentidos, numa intuição do tempo, ou num complexo de símbolos
baseados na “convenção” entre as pessoas? Das diversas respostas a essa questão surgiram
o logicismo matemático, o formalismo, o empirismo e o intuicionismo matemático. 24 O
logicismo matemático, especificamente, que foi uma forte tentativa de fundamentar a
matemática na lógica. Suas srcens estão em G EORGE BOOLE (1815-1864), fundador da
lógica Booleana, passando por G OTTLOB F REGE (1848-1925), que se esforçou por eliminar
a intuição e os laços com as línguas naturais para basear a matemática totalmente na
busca definir
ignorando o sentido dadastotalidade
a legitimidade a partir de
outras dimensões da seu foco científico
experiência específico,
na constituição negandodoe
do sentido
real.
Isso nos leva a um importante ponto de Dooyeweerd; é que nenhuma ciência
especial pode se declarar autônoma com respeito à filosofia pretendendo apresentar uma
teoria da realidade a partir de seus resultados. Uma ciência especial não pode lidar com a
totalidade do sentido, mas apenas com alguns de seus fragmentos. Portanto ela deverá
derivar da filosofia a visão de totalidade que dará sentido à sua linha específica de
investigação.28
26 Ibid, p. 45.
27 Dooyeweerd, NCTT, I, p. 47.
28 Ibid, p. 49.
31
real de pensamento.
pensamento Além disso,
lógico (contra Kant).precisamos buscardaoGegenstand
O pólo lógico ponto de partida da de
precisa síntese além do
um ponto de
partida para a síntese com o pólo não-lógico, e essa síntese não é fornecida por nenhum dos
pólos. Como podemos atingir esse ponto de partida em nossa crítica transcendental?
Kant argumentou que para ir além da Gegenstand precisamos exercitar auto-
reflexão crítica. De fato, enquanto o pensamento teórico na função lógica se dirige a um
Gegenstand, ele permanece disperso na diversidade teórica do sentido – ele só pode
examinar aspectos abstraídos da experiência. Para atingir a unidade última da consciência
na qual participamos da totalidade do sentido e a partir da qual realizamos a síntese teórica,
precisamos dirigir o pensamento para o ego pensante. Dooyeweerd chamou essa forma de
reflexão de direção concêntrica do pensamento teórico.29 A psicologia, a biologia, a
etnologia, a sociologia, e as diversas ciências que estudam o homem podem dizer muitas
coisas sobre a sua vida temporal, mas não podem alcançar seu centro interno de unidade a
partir do qual são realizados os atos sintéticos de pensamento. Somente a auto-reflexão
pode nos levar a esse ponto de partida interno. Segundo Dooyeweerd, Sócrates teria
percebido essa necessidade quando deu à inscrição no oráculo de Delfos – “Conhece-te a ti
29 Ibid, p. 51.
32
30 Ibid, p. 52.
31 Ibid, p. 52.
32 Ibid, p. 53.
33
síntese permaneceu oculto em sua teoria. Assim podemos dizer que o terceiro problema
transcendental é ignorado por Kant.
Uma vez que não há, no pensamento teórico, um ponto de partida para a síntese
intermodal, a direção concêntrica do pensamento não pode ter srcem teórica. Ou seja: a
auto-reflexão crítica não está baseada na relação Gegenstand, mas nasce do próprio ego
transcendental, como centro da existência humana. Para dar ao pensamento teórico essa
direção concêntrica, o eu precisa deixar o foco na diversidade do sentido cósmico (que se
realiza por meio da “Gegenstand”) e se concentrar na unidade absoluta do sentido.33 Nessa
nova atitude o pensamento não busca analisar e abstrair, mas identificar a fonte do
significado. Naturalmente, essa direção concêntrica não é a direção do pensamento,
meramente, mas do ego transcendental, o centro da existência, e seu foco é a srcem
absoluta do sentido; e esse sentido é também o sentido do próprio eu.
Podemos dizer que tanto o auto-conhecimento como o conhecimento da srcem
absoluta transcendem os limites do pensamento teórico, e estão enraizados no coração. Mas
isso não significa que eles não penetrem em nossa consciência. Pelo contrário, é justamente
porque tal conhecimento da totalidade do sentido é impresso sobre a nossa consciência que
somos capazes de realizar a síntese teórica. Assim o pensamento teórico pode focalizar essa
impressão e reconhecer a direção concêntrica da síntese teórica.
Dooyeweerd explica esse fato se utilizando da noção bíblica de que o auto-
conhecimento
da diversidade do
do homem
sentido épor
dependente do conhecimento
meio da antítese teórica só de Deus.
pode nos O
darponto é que aabstratas
descrições análise
e desconexas da experiência temporal do homem, porque a totalidade do sentido não pode
ser encontrada em uma única esfera da experiência. A totalidade do sentido está na srcem
absoluta do sentido; igualmente a totalidade do sentido do homem depende da srcem
absoluta do sentido. Se o pensamento teórico é uma das dimensões do sentido humano,
como pode ele conter a totalidade? Portanto o pensamento teórico não pode por si mesmo
nos levar ao autoconhecimento. Precisamos conhecer a Deus para conhecer a nós mesmos.
O argumento como um todo não prova num sentido absoluto que o conhecimento
religioso da srcem do sentido (Deus) é necessário para o pensamento teórico, mas apenas
que “... a direção concêntrica do pensamento em sua auto-reflexão não pode se srcinar da
própria atitude teórica do pensamento, e que ela deve vir do ego como um centro individual
supra-teórico da existência humana.”34 Ele não torna assim necessário que aceitemos um
determinado conteúdo a respeito desse auto-conhecimento, um conjunto específico de
pressuposições religiosas. Esse conteúdo pode ser debatido, mas não sua necessidade. O
33 Ibid, p. 55.
34 Ibid, p. 56.
34
Os diversosA “-ismos”
ídolos teoréticos. a quedenos
absolutização referimos
certo aspecto anteriormente
da experiênciadevem
temporalsertornando
considerados
esse
aspecto a Origem absoluta do sentido é uma operação supra-teórica, na qual o ego
transcendental busca definir sua identidade a partir do ídolo. Uma vez realizada a
absolutização, uma síntese entre o aspecto lógico e o aspecto não-lógico absolutizado é
tratada como o ponto de partida da síntese teórica, de modo que todo o resultado do
pensamento teórico passa a ser determinado reducionisticamente a partir desse ponto de
partida artificial.
Assim a direção concêntrica do pensamento teórico é de uma srcem religiosa; pois
o coração (o “ego transcendental”), no qual participamos do ponto de partida supra-teórico
da síntese teórica, tem um caráter ex-sistente , buscando definir-se a partir de uma Origem
absoluta do sentido: o Arché do cosmo e do homem. O conhecimento do Arché dá ao
homem o autoconhecimento. Segue-se também daí que a auto-reflexão crítica pode apenas
apelar para o autoconhecimento, mas não estabelecê-lo. E é inútil tentar fundamentar
teoreticamente o caráter religioso desse autoconhecimento, pois qualquer prova teorética de
35 Ibid, p. 57.
35
qualquer tipo sempre pressupõe um ponto de partida central para o pensamento, que nada
mais é além de uma autocompreensão específica baseada num determinado Arché.36
36 Ibid, p. 59.
37 Ibid, p. 59.
38 Ibid, p. 60.
36
controlaUma comunidade
ativamente a vidaespiritual é unida por
dessa comunidade. um espírito
Dooyeweerd comum,esse
denomina um poder
duvnami" que
o motivo-
base religioso (“religious ground-motive) da cultura. Os motivos-base são as forças
motivadoras que dominaram a evolução da cultura, da ciência e da filosofia ocidental. Cada
um deles estabeleceu uma comunidade espiritual entre aqueles que o iniciaram, e
permaneceu oculto como o princípio espiritual subjacente de toda a produção cultural.
Nesse sentido, os pensadores ocidentais muitas vezes foram dominados por um
determinado motivo-base sem nem mesmo terem consciência disso; na verdade, o sentido
religioso dos motivos base está além do alcance desses pensadores justamente porque toda
explicação histórica em si mesma pressupõe um ponto de partida central e supra-teórico
que é dado justamente por um motivo-base religioso!39
As Duas Cidades
Assim como AGOSTINHO propõe em sua obra “A Cidade de Deus” (Civitas Dei),
Dooyeweerd afirma que existem duas orientações religiosas fundamentais, correspondendo
a dois poderes espirituais centrais que estão operando no coração do homem. A primeira é a
39 Ibid, p. 61.
37
dinâmica do Espírito Santo, que direciona o homem e com ele toda a criação para a
reconciliação com Deus. Por meio dessa dinâmica o coração do homem é levado à Origem
transcendente de todo sentido. A segunda é o espírito da apostasia, que distancia o homem
de Deus e direciona seu coração para o horizonte temporal da experiência, para que ele
adore a um ídolo.
Esses dois poderes caracterizam as “duas cidades” que coexistem em luta até à
consumação dos séculos: a cidade de Deus, que é a comunidade espiritual dos regenerados,
sob o poder do Espírito Santo, e a cidade do homem, ou a comunidade espiritual apóstata,
sob o poder do espírito de apostasia. Os dois poderes se revelam em motivos religiosos
fundamentais, que são os motivos-base da cultura ocidental.
Provavelmente com base no trabalho de D IRK T. H. VOLLENHOVEN, Dooyeweerd
descreveu o desenvolvimento histórico da cultura ocidental como sendo governado por
quatro grandes motivos-base, que adquiriram poder sócio-cultural e assim dominaram a
evolução da cultura ocidental40. Esses motivos-base não devem ser confundidos com temas
filosóficos ou “motifs”, como se eles fosse de um caráter teórico; meros conceitos ou idéias
inspirativas. Para Dooyeweerd eles seriam realmente motivos, no sentido de princípios
dinâmicos, poderes capazes de controlar a cultura por meio do centro religioso do
homem.41
O motivo-base bíblico criação-queda-redenção é o motivo que caracteriza a cidade
de Deus. Os outros três são motivos-base apóstatas, de caráter dualista, que caracterizam a
cidade do homem. São eles: (1) o motivo-base forma/matéria, da filosofia grega antiga, (2)
o motivo-base natureza/graça, da síntese escolástica medieval, e (3) o motivo-base
natureza/liberdade, da cultura moderna e contemporânea.
cósmico encontrará firme resistência dos outros. Assim, “todo ídolo que foi criado pela
absolutização de um aspecto modal evoca seu contra-ídolo”43, isto é, uma oposição polar
permanente e insolúvel. O segundo tipo de dialética não é exatamente fruto da
absolutização de um aspecto da experiência, mas da tentativa de fundir uma concepção
desse tipo com o motivo-base bíblico integral. Nesse caso a tensão também é insolúvel,
pois o motivo bíblico, sendo integral, resiste a ser interpretado a partir de um motivo
idólatra e reducionista.
É importante destacar que a dialética religiosa que caracteriza os motivos-base é
diferente da dialética teórica. Na atitude teórica do pensamento, há uma antítese intermodal
que é fruto da abstração, mas essa antítese é superada quando o ego transcendental usa o
ponto de partida religioso como referência para a síntese intermodal. Mas pontos de partida
religiosos opostos, dividindo o próprio ego central, não podem ser sintetizados.
Conseqüentemente, o dualismo que eles produzem no interior do pensamento teórico não
pode ser superado teoreticamente; pois não resta um ponto de concentração único do
sentido cósmico para que o ego realize a síntese teórica! A primazia alternada dos motivos-
base opostos gera uma competição permanente entre sucessivas escolas de pensamento sem
que haja solução, pois a antítese religiosa é insolúvel.
O Motivo-Base Matéria/Forma
A filosofia grega foi dominada pelo motivo-base da dialética matéria X forma. Essa
oposição polar, presente desde o início da filosofia grega, era fruto do encontro, ocorrido
por volta do século X A.C. da religião pré-homérica da vida/morte com a jovem religião
cultural dos deuses olímpicos.
A religião
terra”. Essa pré-homérica
religião era uma
cultuava o fluxo forma da
orgânico primitiva de morte
vida e da culto àdeificando
natureza, aoudimensão
à “mãe
biológica/sexual da experiência. O motivo central dessa religião era “... a fonte informe da
vida fluindo eternamente através do processo de nascimento e declínio de tudo o que existe
em uma forma corpórea.”44 Assim as formas definidas de criaturas individuais são
realidades secundárias, temporárias, sendo o fluxo da vida orgânica a realidade última.
Dooyeweerd ilustra essa visão de mundo com as palavras de A NAXIMANDRO:
“A Origem (divina) de todas as coisas é o apeiron (isto é, aquilo que não tem uma
forma limitante, definitiva). As coisas retornam àquilo que as srcinou conforme o seu
destino. Pois elas pagam uma à outra a penalidade e a retribuição de sua injustiça na
ordem do tempo.”45
43 Ibid, p. 36.
44 Ibid, p. 39.
45 Ibid, p. 39.
39
A existência individual numa forma limitada é uma “injustiça”, desde que essa
existência é sustentada ao custo de outra; desse modo a vida de um é a morte do outro.
Temos assim a religião da matéria, ou hyle, da qual nascem todos os elementos da
diversidade cósmica, todos eles secundários e temporários, sujeitos às forças cegas de
Anangke, o “destino”, que as submergirá finalmente na hyle, de onde vieram.46
O motivo da forma (morphé) é o centro da religião Olímpica. Segundo HESÍODO em
sua Teogonia, o motivo-base da forma nasceu da dialética anterior do caos e do cosmos. A
religião Olímpica era centrada na harmonia, na beleza e na permanência eterna. Essa é a
situação dos deuses, que tem uma forma eterna idealizada. Essa visão dos deuses teria se
srcinado na deificação do aspecto cultural da vida grega – daí o fato de a religião Olímpica
ser a religião oficial do Estado, como forma de sustentar a vida política.
O motivo base da “forma” tentou absorver o antigo motivo da “matéria”, mas essa
assimilação não foi bem sucedida, porque a partir da religião olímpica não era possível
tratar adequadamente vários problemas da vida que transcendiam à razão e ao poder
cultural (como a morte, a vida e a moral). Assim surgiu uma tensão dialética insolúvel
dentro da cultura grega.47
Os pensadores gregos revezavam-se dando primazia ora ao motivo da “forma”, ora
ao motivo da “matéria”. Os filósofos Jônios anteriores (T ALES, ANAXIMANDRO e
ANAXÍMENES) buscavam encontrar na matéria informe o arché de todas as coisas. Assim
identificaram a hyle como physis (natureza), a totalidade de todas as coisas. A escola
pitagórica favoreceu a “forma”, identificando o número com a essência da realidade.
Demócrito, criador da teria atômica, favoreceu a “matéria”. Os eleáticos (X ENÓFANES,
PARMÊNIDES) favoreceram a forma, e HERÁCLITO tentou sintetizar o motivo da matéria
com o conceito de logos. P ARMÊNIDES desenvolveu uma metafísica da forma na qual há
uma
deviroposição entre
e leva ao o ser e o devir,
conhecimento sendo a theoria
da realidade última odoelemento
ser. Osfluido do introduziram
sofistas ser que está noo
conceito de nomos em oposição ao de physis, enfatizando com isso a “ordem” em oposição
ao “caos”. E assim, sucessivamente, fizeram-se tentativas de explicar a realidade que não
puderam escapar da dialética religiosa fundamental que dominou a cultura grega.
Somente em PLATÃO e A RISTÓTELES a polaridade entre os motivos da “matéria” e
da “forma” chega a uma estabilidade com a assimilação do motivo da “matéria” no da
“forma”. A matéria deixa assim de ser considerada divina, e a forma passa a ser considerada
a realidade última e divina. Naturalmente nesse momento a filosofia grega abandonou
46 RICARDO GOUVEIA observa aqui a existência de uma outra dialética religiosa anterior à matéria-forma,
detectada, segundo ele, por VOLLENHOVEN: “Esta outra dialética, anterior à própria filosofia grega, é a
dialética entre o poder divino estável representado pelo fluxo de energia da Mãe-terra e o poder instável e
incontrolável de Anangke, o fado, a fatalidade que nos carrega pela vida. Estabilidade e instabilidade,
equilíbrio e desequilíbrio, aqui se contrapõe. A filosofia Jônia da physis já surgiu sob o estigma da
necessidade de uma síntese satisfatória para esta dialética.” Gouveia, “Fundamentos de Filosofia
Reformacional”, p. 4.
47 “É por isso que a jovem religião Olímpica era apenas aceita como a religião pública da polis grega, a
cidade-estado. Mas em sua vida privada os gregos continuavam a sustentar os velhos deuses terrenos da vida
e da morte.” Dooyeweerd, “Twilight”, p. 40.
40
fornece
reconheceastodo
estruturas
o cosmofundamentais
como criaçãodedeuma
Deus.cosmovisão cristã.
Deus é a única Emabsoluta,
srcem primeirotendo
lugar,
umaela
diferença qualitativa infinita em relação à sua criação. Essa criação é ordenada pela vontade
do Criador e reflete a sua glória, de modo que em sua estrutura há uma ordem de leis, ou
cosmonomia, uma ordem de desenvolvimento, ou cosmocronologia, e uma coerência-na-
diversidade de seus elementos. Essa criação é completa e intrinsecamente boa. O homem,
como parte da criação, está sujeito à cosmonomia, mas em seu centro a transcende em
direção a Deus, e foi posto na terra com a função de glorificar a Deus revelando pelo
trabalho os potenciais que Ele colocou na criação.
A queda do homem alienou toda a criação de Deus. Isso não destruiu a própria
estrutura da criação, nem tornou nenhum de seus aspectos essencialmente maligno, mas a
colocou numa direção de apostasia. O homem pecou rejeitando o culto a Deus e elegendo
criaturas como seus deuses. Desde que a queda foi total, o homem distorce todas as suas
ações e pensamentos tendo em vista a idolatria: tornou-se uma fabrica idolorum.
A redenção, consumada por Jesus Cristo, envolve a recriação do homem, como
novo Homem em si mesmo, e, com isso, o redirecionamento da criação para Deus. A
redenção não significa o acréscimo de uma graça especial, mas simplesmente, em sua
essência, a reconstituição do propósito srcinal de Deus. Tudo o que foi criado é objeto do
amor redentivo de Deus, que tem um alcance integral. A missão da igreja é, ao lado de
41
Cristo, realizar o plano criacional de Deus numa Nova Criação, e esse propósito deve se
manifestar desde já na cooperação da igreja com Cristo para o desvelamento das riquezas
que ele pôs na criação, por meio da atividade cultural em todos os níveis da vida, a partir da
fé no evangelho.
despeito da queda,
refletir sobre continuava
realidades divinas,com
quesuas capacidades
devem srcinais,
ser recebidas sendo incapaz
na revelação, apenasdadefé.
por meio
Desse modo, a fé deve orientar a razão para que essa compreenda as verdades do
evangelho, mas tal orientação não é necessária para que a razão compreenda a natureza!
49 “Certamente, a Igreja Católica Romana não podia incorporar o motivo base grego em sua própria visão da
natureza sem revisão. Desde que a igreja não poderia aceitar uma srcem dual para o cosmos, ela tentou
harmonizar o motivo grego com o motivo escriturístico da criação. Uma das primeiras consequências dessa
acomodação foi que o motivo forma-matéria perdeu seu sentido religioso srcinal. Mas devido à tentativa de
reconciliação com o motivo grego da natureza, o catolicismo Romano roubou do motivo bíblico da criação o
seu escopo srcinal.”
“Para a mente grega nem a matéria do mundo nem a forma pura invisível poderiam ter sido criados.
No máximo alguém poderia admitir que a união de forma e matéria foi possibilitada pela razão divina, o
arquiteto divino que formou o material disponível. De acordo com Tomás de Aquino, o doutor medieval da
igreja, a matéria concreta dos seres perecíveis foi criada simultaneamente com sua forma concreta. Entretanto,
nem o princípio da matéria (o princípio do eterno nascimento e decadência) nem o princípio puro da forma (o
princípio da perfeição) foram criados. Eles seriam dois princípios metafísicos de toda existência perecível,
mas com respeito à sua srcem Tomás ficou em silêncio.” Dooyeweerd, “Roots of Western Culture”, p. 118.
43
única força capaz de manter esse síntese aparente foi a autoridade doutrinal da Igreja, sendo
que constantemente a síntese foi negada por “heresias”.50
A “Grande Síntese” medieval começou a se desintegrar no século XIV, ao final da
idade média, quando se iniciou um movimento liderado pelo franciscano inglês W ILLIAM
DE OCKHAM (1280-1349). O movimento é geralmente chamado de “nominalismo”, e
marcou o princípio do período moderno da cultura ocidental. Ockham negou a existência de
qualquer ponto de contato entre a natureza e a graça. Ele estava consciente de que a visão
grega da natureza estava em contradição com a Bíblia. Enquanto Tomás acreditava que
Deus ordenou o mundo a partir de formas eternas que estavam em sua mente, Ockham
enfatizava que tudo foi criado pela soberania de Deus, que ele entendia como uma
arbitrariedade despótica: a potestas absoluta. Por exemplo: enquanto que Tomás via o
decálogo como uma verdade ideal, que podemos descobrir pela luz natural da razão, e que
estaria na mente eterna de Deus, Ockham acreditava que os dez mandamentos não tinham
qualquer base racional; eles teriam sido simplesmente estabelecidos pela vontade de Deus.
O que se vê é que Ockham negou a existência de qualquer ponto de contato entre a
natureza e a graça. Não se pode partir da luz natural da razão e explicar a graça. Assim ele
rejeitou totalmente o projeto de uma “teologia natural”, caro a Tomás. Rejeitou também que
a sociedade humana devesse ser organizada conforme o ensino sobrenatural da igreja
católica. A posição de Ockham foi muito combatida pelo papa João XXII, mas ele já estava
muito enfraquecido pelo exílio em Avignon e por sua dependência do rei da França. Assim
muitos pensaram que a síntese católico-romana tinha sido destruída para sempre. Isso criou
um novo momento para a cultura ocidental:
A Reforma Protestante
FRANCIS SCHAEFFER observa que “o rei que levou Leonardo (da Vinci) para a
França no final da sua vida foi Francis I, o mesmo rei a quem Calvino endereçou suas
Institutas. É assim que chegamos a um cruzamento entre o Renascimento e a Reforma.” 52 A
reforma nasce dentro do renascimento, mas tem um ethos bastante diferente.
Em primeiro lugar, os reformadores repudiavam a noção católica e humanista de
uma queda incompleta. Para os reformadores, a queda havia sido total. Não havia assim
qualquer possibilidade de autonomia para o ser humano. Não havia autonomia na questão
50 Ibid, p. 137.
51 Ibid, p. 139.
52 Schaeffer, “A Morte da Razão”, p. 31.
44
da autoridade final para a fé; eles negavam que a Palavra de Deus devesse estar sujeita à
razão ou ao magistério da igreja católica. A salvação também dependia totalmente de Deus,
para que ele recebesse toda a glória.
Mas isso não significou de modo algum que a dignidade da criação e do próprio
homem foi negada. Para os reformadores “tudo o que Deus criou é bom”, de tal modo que o
cristianismo não poderia ser isolado da vida comum. Tanto Lutero como Calvino afirmaram
que a vida cristã não poderia mais ser vivida dentro de mosteiros. O cristianismo monástico
não poderia ser superior ao cristianismo do sapateiro, porque não havia uma esfera ideal
“superior” à esfera “natural”. O cristianismo não é um dom sobrenatural, mas a renovação
da própria natureza.
Podemos dizer com isso que a reforma significa tanto uma ruptura com o dualismo
escolástico natureza/graça, para uma visão integral da criação e da salvação, como um
visão bíblica do homem, como um ser digno, criado à imagem de Deus, mas também caído,
incapaz de existir em autonomia. O humanismo foi muito além, afirmando a singularidade
humana, mas secularizando essa noção e separando-a das idéias de imago Dei e de queda.
A natureza radicalmente bíblica do pensamento reformado é revelada na atitude dos
reformadores para com a filosofia grega. Sabe-se que todos manifestavam certa reserva
contra a filosofia, principalmente pelo reconhecimento de que a fusão escolástica da
teologia com a filosofia foi prejudicial à igreja. Um exemplo dessa atitude é o próprio
Lutero:
“É um erro dizer que um homem não pode tornar-se teólogo sem Aristóteles. A verdade é
que não pode tornar-se teólogo sem se livrar de Aristóteles. Em resumo, comparado com o
estudo da teologia, o todo de Aristóteles é como a escuridão para a luz.”53
53 George, Timothy, “A Teologia dos Reformadores”, p. 59. “Os epítetos dados por Lutero à razão eram tão
severos – a Meretriz do Diabo, a besta, a inimiga de Deus, Frau Hulda – que seus críticos muitas vezes o
rotularam de irracionalista.” Isso não é exato, no entanto. O que Lutero negava era o uso da filosofia para
resolver os problemas teológicos.
54 “Lutero deu os primeiros passos teológicos com os escritos do teólogo nominalista Gabriel Biel, de cujos
discípulos havia aprendido em Erfurt. Biel encontrava-se numa tradição bem estabelecida, que incluía
Guilherme de Occam e Duns Scotus.” Ibid, p. 67.
45
“Pois Deus estabeleceu dois tipos de governo entre os homens. Um é espiritual; não tem
espada, mas tem a palavra, por meio da qual os homens devem tornar-se bons e justos, para
que, mediante essa retidão, possam alcançar a vida eterna. Ele administra essa retidão
mediante a palavra, que confiou aos pregadores. O outro tipo é o governo mundano, que
opera por meio da espada, a firme de que os que não desejam tornar-se bons e justos para a
vida eterna sejam forçados a tornar-se bons e justos aos olhos do mundo. Ele administra
essa retidão mediante espada.”57
Embora haja uma nítida e adequada distinção entre o poder da igreja e o poder do
Estado, não há em Lutero qualquer reconhecimento de uma estrutura criacional sob ou no
Estado, de tal modo que a atividade política seja vista como uma das dimensões da prática
evangélica. Antes, o Estado é uma realidade paralela, a “mão esquerda de Deus”, com a
qual Ele trata o mundo. Assim, “se o mundo inteiro fosse composto de cristãos, não haveria
necessidade de príncipes, reis, espadas ou leis.” 58 Os cristãos deveriam aceitar
responsabilidades cívicas pelo bem do próximo, mas essas atividades não seriam reguladas
diretamente pelo evangelho, consistindo numa responsabilidade “paralela”. Observou-se
posteriormente que na tradição luterana a influência da fé cristã sobre a atividade política
declinou progressivamente, emudecendo sua voz profética. 59
Essa aversão à atividade política é vista, também na eclesiologia luterana. Para
Lutero coisas como uma “lei eclesiástica” e “disciplina eclesiástica” pareciam mundanas.
Afinal, o assunto do evangelho é a graça, a fé, e o amor, realidades difíceis de reconciliar
55 Na teologia luterana a vida sob a graça é considerada como independente da lei, no sentido de que a lei
deixa de ser o princípio orientador da vida. Se o cristão ainda pratica a lei, é para expressar o amor ao
próximo, mas não porque a lei seja fundamental à existência sob a graça. “Sob a influência de Occam, Lutero
roubou da lei como a ordenança criacional o seu valor ...” Dooyeweerd, “Roots”, p. 140.
56 “Se os católicos confundiam os dois reinos na direção de uma teocracia papal, os anabatistas separavam
muito precisamente os reinos em nome do separatismo religioso. Considerando literalmente a injunção de
Cristo à não-resistência (Mt 5.39), os anabatistas recusavam-se a participar dos poderes coercitivos do Estado.
Em oposição aos reformadores pacifistas, Lutero insistia na srcem divina do Estado, nos limites de seu poder
e na base para a participação do cristão em sua atividade coercitiva.” Timothy, “Reformadores”, p. 100.
59 Ibid, p. 101.
46
com a “Lei”. Assim Lutero definia a igreja verdadeira a partir da presença da Palavra de
Deus e dos Sacramentos, deixando a organização estrutura da igreja e as questões
disciplinares para o Estado.
A perspectiva Calvinista sobre o assunto era nitidamente diferente. TIMOTHY
GEORGE, apoiando-se em Heiko Oberman, afirma que “o elemento relativamente mais
progressista no conceito reformado de Estado podia ser remontado à visão de Calvino
acerca de Deus como Legislador e Rei; disse ainda que a lei de Deus não estava limitada à
congregação apenas, mas estendia-se também etiam extra ecclesiam: mesmo além da
igreja.”60 De fato, como um elemento fundamental do pensamento calvinístico, está a noção
da reforma do Estado, a partir das Escrituras, praticada pelos calvinistas holandeses e
principalmente pelos puritanos ingleses. Essa perspectiva diferente refletiu-se também
diversamente na teologia de Calvino. Assim, ao contrário de Lutero, ele considerava a Lei
um aspecto fundamental da vida sob a graça, e a disciplina eclesiástica uma das marcas
indispensáveis da verdadeira igreja.
O que exatamente diferenciava esses dois Reformadores? É certo que ambos
rejeitaram a filosofia escolástica e procuraram construir a doutrina cristã partindo
unicamente da Bíblia. Entretanto, Lutero não foi totalmente consistente com o motivo-base
bíblico, permitindo que o dualismo escolástico natureza/graça condicionasse a sua teologia.
Assim ele deixava os aspectos “mundanos” da vida para serem guiados pela “luz natural da
razão”. Já Calvino, livre do background ocamista, aplicou consistentemente o motivo-base
bíblico, exigindo que as Escrituras guiassem todas as dimensões da vida, incluindo a vida
política. Desse modo, em Calvino, a “graça” não fica separada da “natureza”, negando-se
qualquer base para a autonomia humana.
A fraqueza básica do pensamento Luterano é vista nos acontecimentos que se
60 Ibid, p. 242.
47
como serdoracional.
essencial homem, Assim nasceu o denominou
que Dooyeweerd motivo humanista
ideal de da liberdade, como
personalidade . a natureza
O novo motivo religioso estava inseparavelmente ligado a uma nova visão da
natureza.62 O humanismo renascentista separou sua concepção de natureza da idéia grega
do destino ou fado, presente na idéia grega de physis, e da doutrina cristã da depravação
radical da natureza. Profundamente consciente de sua autonomia, o homem moderno
passou a ver a natureza como a arena das explorações e realizações de sua personalidade
livre, o campo de possibilidades no qual a liberdade humana poderia ser realizada. Assim o
homem passa a se ver como o dominador da natureza, tendo o poder de controlá-la para sua
realização. Além disso, a libertação do controle da “graça” tornou possível que novas
concepções a respeito da “natureza” fossem desenvolvidas, a serviço da liberdade do
homem.
A teoria heliocêntrica de Copérnico desbancou o geocentrismo aristotélico, mas esse
continuou a ser sustentado pela Igreja como se fosse necessário para a fé, e os defensores
61 Ibid, p. 149. “A raiz religiosa mais profunda do movimento da Renascença era a religião humanística da
personalidade humana em sua liberdade (de cada fé que reivindica compromisso) e em sua autonomia (isto é,
a pretensão de que a personalidade humana é uma lei para si mesma).” Dooyeweeerd, “Roots”, p. 149.
62 Ibid, p. 150.
48
efeitos, totalmente
matemática. Ele não determinada pelas leis
reconhecia a validade do movimento
de qualquer coisa quemecânico descritas nesse
não se encaixasse pela
cadeia mecânica.63 Assim, enquanto os gregos baseavam a reflexão teórica nas formas
eternas do ser, e o agostinianismo baseava-se na idéia de ordem da criação, o motivo da
liberdade somente reconhecia o próprio pensamento matemático e naturalista como fontes
de certeza científica. E exatamente aqui ergueu-se a dialética insolúvel dentro da religião
humanista:
“Quando se tornou aparente que a ciência determinou toda a realidade como uma
cadeia contínua de causa e efeito, ficou claro que nada na realidade oferecia um lugar
para a liberdade humana. O querer, pensar e agir humanos requeriam as mesmas
explicações mcânicas que as exigidas para explicar os movimentos de uma máquina.
Pois se o próprio homem pertence à natureza, então ele não pode plausivelmente ser
livre e autônomo. A natureza e a liberdade, o ideal de ciência e o ideal de personalidade
63 “O impulso para dominar a natureza por um pensamento científico autônomo requereu uma imagem
determinística do mundo, construído como uma cadeia ininterrupta de relações funcionais causais, a serem
formuladas em equações matemáticas.” Dooyeweerd, “Twilight”, p. 49.
49
– se tornaram inimigos. Uma genuína reconciliação interna entre esses dois motivos
antagônicos seria impossível, desde que ambos são religiosos e assim absolutos.”64
dilema que poderia ser formulado da seguinte maneira: como deve ser vista a relação entre
a personalidade livre e autônoma do homem e a natureza, de tal modo que o homem
permaneça livre e ao mesmo tempo possa controlar a natureza?
As respostas ao dilema humanista se seguiram numa ênfase materialista até o século
XVIII, quando a primazia é transferida para o motivo da liberdade. Assim, em R OUSSEAU, a
fonte da liberdade é localizada no sentimento. Essa importante transformação, que
antecipou o movimento romântico, revela a insatisfação com o fato de que a razão
científica estava corroendo a liberdade humana..
Com IMMANUEL KANT (1724-1804) essa insatisfação culmina com uma síntese
teórica que procura resolver de vez o problema. Kant fez uma aguda separação entre as
esferas da natureza e da liberdade. O ideal matemático e mecânico de ciência foi restringido
ao mundo empírico dos fenômenos sensórios, estes organizados pelas categorias lógicas
transcendentais da compreensão. Quanto à liberdade humana, Kant removeu-a da esfera
sensória da natureza; o eu “empírico”, que é aquele perceptível e sujeito a descrição
psicológica foi desligado do “eu transcendental”, supra-sensório. Esse eu profundo seria
livre, pertencendo a uma esfera supra-sensória da ética, governada não por leis naturais,
mas por normas racionais. A religião foi localizada nessa esfera “superior”, da liberdade e
dos valores morais. Aparentemente Kant procurou por um fim ao processo de auto-
destruição que o humanismo instaurou.
A afirmação de que a razão autônoma estaria além do alcance da ciência empírica
foi considerada uma expressão filosófica idealista. No idealismo pós-kantiano a ênfase na
autonomia da razão continuou a ser mantida. Mas em H EGEL ela é levada ao extremo,
quando ele sustenta que o espírito (Geist), o princípio racional do qual a mente humana é
uma expressão, é uma força divina que controla toda a história humana e progride em
direção ao atemporal,
“absoluta” absoluto. Apois
história
toda seria, assim,
verdade seriaa nada
história do que
mais espírito; e não haveria
um estágio verdade
da evolução do
Geist. Como se pode ver, essa variedade de idealismo é também historicista, porque nega a
presença de uma verdade absoluta acessível por meio de uma ciência naturalista. O
historicismo seria “... uma guinada irracionalista e universalista dentro do motivo
humanista da liberdade”66, o qual estava ganhando espaço desde Kant. Outra expressão da
nova ênfase no ideal de personalidade livre foi o movimento romântico, que se opunha à
interpretação racionalista da liberdade apresentada no iluminismo e em Kant. Nesse último,
por exemplo, a liberdade deveria estar sujeita à lei moral descoberta racionalmente. Os
românticos interpretavam a autonomia da pessoa de tal modo que o nomos seria encontrado
no próprio autos, ou seja, que a própria personalidade deveria seguir a “lei do seu coração”,
buscando na inclinação de sua personalidade a orientação para suas decisões. Essa nova
atitude gerou, entre outras coisas, uma glorificação do amor sexual livre, “guiado
unicamente pela harmonia das inclinações sensuais e espirituais do homem e da mulher
individual.”67
duas ênfases
ilimitada polares:da por
no poder um lado,
ciência um velozo progresso
para garantir futuro do tecnológico com uma
homem, associado ao crença
poder
econômico, e por outro lado, uma crítica radical de toda “verdade absoluta”, tendo como
finalidade a constituição de uma sociedade politicamente pluralista, livre de
“metanarrativas” e ideais culturais totalizantes. O homem atual é tanto um animal evoluído,
determinado pela natureza, como um ser político, absolutamente livre para estruturar sua
vida social e legislar sobre seu futuro. O que virá agora? Um novo desequilíbrio nessa
tensão polar ou a superação do motivo-base humanista?
52
A Idéia-Base Transcendental
69 Ibid, p. 76.
53
se aproximar
para dessasdorealidades
ele condições porteórico.
pensamento meio de idéias transcendentais, mas tais idéias não eram
Dooyeweerd concordou com Kant de que essas três realidades não poderiam ser
captadas plenamente num conceito teórico, mas apenas aproximadas por meio de idéias
transcendentais, nas quais o pensamento filosófico apontaria para além de si mesmo, para
suas condições apriori. Essas idéias permaneceriam tendo um caráter teórico, enquanto
presentes na estrutura imanente do pensamento teórico, mas teriam raízes supra teóricas,
fixando o pensamento teórico sobre suas bases transcendentes. 72
70 “Pois a questão de como alguém compreende a relação mútua e a coerência de sentido dos aspectos modais
como separados teoreticamente e opostos um ao outro, é dependente da questão de se alguém aceita ou não a
unidade religiosa integral e radical desses aspectos, que leva sua totalidade de sentido a uma expressão
concêntrica. Finalmente, essa última questão é dependente do seguinte: como a idéia de Origem de todo o
sentido é concebida, se essa idéia tem um caráter integral ou antes um caráter dialeticamente quebrado, i.é., se
apenas um Arché é aceito, ou se dois princípios de srcem são opostos um ao outro.” Dooyeweerd, NCTT, vol
1, p. 69.
71 Brümmer, “Transcendental Criticism”, p. 102.
72 Ibid, p. 102.
54
“Desde o início, eu introduzi o termo holandês wetsidee (idea legis) para a idéia-
base transcendental ou idéia básica da filosofia. O melhor termo inglês correspondente me
parece ser “Idéia cosmonômica”, desde que a palavra “lei” usada sem qualificação poderia
evocar um sentido jurídico especial que, obviamente, não está em vista aqui.
Este termo foi cunhado por mim, quando eu estava particularmente preocupado
com o fato de que diferentes sistemas de filosofia antiga, medieval e também moderna
(como o de Leibiniz) orientavam expressamente o pensamento filosófico para a Idéia de
uma ordem-cósmica divina, que era qualificada como lex naturalis, lex aeterna, harmonia
praestabilita, etc.
Nessa Idéia cosmonômica, que implicava uma Idéia transcendental de
subjetividade, uma posição apriorística era escolhida com respeito aos problemas
transcendentais básicos do pensamento filosófico.
Nos sistemas que nós temos em mente essa Idéia cosmonômica era geralmente
concebida em larga medida de um modo racionalista e metafísico. Assim veio a se tornar
uma tarefa bastante atrativa para mim mostrar que cada sistema autêntico de filosofia está
realmente baseado em uma Idéia cosmonômica deste ou daquele tipo, mesmo quando seu
73 “Fica claro assim que os motivos religiosos são para Dooyeweerd as pressuposições religiosas
fundamentais que subjazem cada filosofia. Eles determinam o conteúdo das idéias transcendentais que são as
hipóteses fundamentais do pensamento filosófico. Dessa forma as idéias transcendentais podem também ser
chamadas de expressões teoréticas dos motivos religiosos aos quais elas se referem por seu conteúdo e às
quais elas dão expressão significativa.” Ibid, p. 103.
55
autor não está consciente disso; e a execução dessa tarefa estaria destinada ao sucesso. Pois
não é possível que o pensamento filosófico, que é intrinsecamente sujeito à ordem cósmica
temporal, não receba a carga de uma visão apriori sobre a srcem e totalidade do sentido
dessa ordem cósmica e seu sujeito correlato. E a filosofia deve ter uma visão apriori com
respeito à relação mútua e coerência dos diferentes aspectos do sentido em que a ordem
divina e seu sujeito se revelam.” 74
“Como a Origem soberana, Deus não está sujeito à lei. Pelo contrário, a sujectibilidade
(subjectedness) é a verdadeira característica de tudo o que foi criado, cuja existência é
limitada e determinada pela lei [...] Calvino expressou a mesma concepção sobre o
relacionamento de Deus com a lei em sua declaração citada anteriormente: ‘ Deus legibus
solutus est, sed non exlex’; no qual ele procurou ao mesmo tempo refutar qualquer noção de
que a soberania de Deus seja o mesmo que arbitrariedade despótica.”76
Toda absolutização das realidades criaturais, que por natureza são relativas, ignora
este limite e eleva aquilo que está sujeito à lei ao status de Origem absoluta, como algo que
está acima da lei. Isso leva a um dualismo dentro da idéia de Arché, pois a absolutização de
uma dimensão do sentido encontra resistência de outras dimensões. Assim, eventualmente,
surgem dois ou mais princípios relativos e opostos simultaneamente elevados ao absoluto,
tornando-se impossível manter uma idéia integral de Origem. Já na idéia cosmonômica
cristã não há lugar para duas Origens absolutas; Deus é a única e integral srcem de todo o
sentido, da lei divina bem como de tudo o que está sujeito a ela.
A segunda idéia transcendental é a da totalidade do sentido, na qual se encontra o
ponto arquimediano do pensamento. O conhecimento do ponto arquimediano pressupõe
auto-conhecimento, que por seu turno é dependente do conhecimento de Deus. Isso se deve
ao fato de que o homem foi criado à imagem de Deus. “ Assim como Deus é a Origem de
toda a realidade criada, assim o ego é a unidade radical e integral de todas as suas
funções temporais.”77 No próprio homem, em seu âmago, a totalidade do sentido cósmico
está concentrada, numa relação similar à de Deus com a criação, que está ontologicamente
dirigida concentricamente para Deus.
Essa concentração do sentido cósmico não se dirige meramente ao homem
individual, mas ao homem como um ser coletivo. Assim, Adão, como o primeiro homem
coletivo, concentra em si a totalidade do sentido cósmico. Isso implica que a criação não
tem sentido independentemente do homem; a raiz religiosa de todas as criaturas se encontra
no homem, e só nele a criação é completa. De fato, as dimensões pós-psíquicas da natureza
só tem sentido quando relacionadas a um sujeito humano. 78
As três idéias transcendentais se expressam portanto como (1) na idéia de coerência-
na-diversidade do sentido cósmico, garantida pelo tempo cósmico, (2) na visão do homem
como o centro religioso do cosmo e do seu coração como o ponto arquimediano do
pensamento teórico, e (3) na visão de Deus como Arché do cosmo criado. Essas três idéias
se fundem como uma explanação total da noção de que o sentido cósmico vem de Deus,
pelo homem, numa ordem temporal divinamente estabelecida.
PARTE 2:
FILOSOFIA SISTEMÁTICA
58
Nenhuma criatura pode ultrapassar esse limite. Mesmo na teologia cristã, a reflexão
se processa dentro dos limites da revelação bíblica, e não se supõe que a natureza divina
possa ser capturada teoricamente. Esse limite de que falamos não deve ser interpretado
como uma espécie de impedimento arbitrário que Deus estabeleceu. Trata-se antes de um
limite “necessário”, ligado à própria ordem das coisas. O ponto é que uma criatura jamais
poderá exceder sua criaturidade. Negar isso é pôr em dúvida a própria doutrina bíblica da
criação.
D.T.H. VOLLENHOVEN examinou as diversas cosmovisões e teorias filosóficas do
ponto de vista de sua interpretação da relação entre a “divindade”, no sentido de princípio
srcinante ou Arché, e o cosmo, e desenvolveu uma forma de classificar essas concepções.
Segundo ele, as duas opções básicas são o reconhecimento da distinção criador-criatura e a
negação dessa distinção. Vollenhoven chamou os primeiros de dualistas e os segundos de
monistas. Haveriam quatro tipos de monismo: (1) o ateísmo nega a existência de Deus; (2)
o acosmismo nega a existência do cosmo; (3) o pancosmismo subordina Deus ao cosmo e
(4) o panteísmo identifica Deus com o cosmo. 79
Entre os dualistas haveriam o cosmismo parcial, que identifica parte do ser divino
com a criaturidade, o teísmo parcial, que identifica parte da criaturidade com Deus. O ponto
aqui é que a diferença criador-criatura é reconhecida de modo inconsistente. Surge assim a
tendência de distinguir uma esfera inferior e uma esfera superior dentro da própria criação.
Exemplos desse tipo de inconsistência se encontram na adoração a Maria dentro do
Catolicismo Romano, na doutrina Luterana da deificação da natureza humana de Cristo na
ascensão, e na teoria da kenosis, segundo a qual o verbo teria abandonado a natureza divina
ao se tornar homem. A idéia de que a imagem de Deus no homem é a racionalidade, porque
Deus seria um ser “racional” também transgride os limites da diferença criador-criatura.
2. Cosmonomia
Deus é o legislador soberano diante da sua criação. Tudo está sob a sua vontade.
Não são apenas os dez mandamentos que expressam o governo de Deus, mas toda a ordem
cósmica. Isso é facilmente perceptível em Gênesis 1 e 2: Deus ordena todo o cosmo por sua
vontade, estabelecendo os espaços e os limites de suas criaturas, diferenciando-as de dando-
lhes “mandamentos”.
A negação
explicar da diversidade
nossa experiência modal introduz do
da diversidade problemas
sentido complexos; emquê
cósmico? Por quepercebemos
base podemosem
nossa experiência que as coisas são diferentes, e, ao mesmo tempo, que estão inter-
relacionadas de forma indissolúvel? Tanto as teorias monistas como as teorias pluralistas
não podem explicar o fato, pois tratam a realidade última como sendo singular ou plural. A
perspectiva cristã, segundo a qual Deus é Um e Três, permite aceitarmos que exista uma
coerência ontológica entre o um e o muitos além do próprio cosmo, em Deus. Assim uma
ontologia cristã deve buscar na experiência uma estrutura de diversidade coerente,
procurando descrever essa diversidade teoreticamente. Além disso, deve reconhecer, por
trás dessa diversidade, a existência de uma vontade divina que governa o cosmo. Isto é,
uma diversidade cosmonômica instituída por Deus, expressando sua vontade.
Vamos voltar à nossa reflexão sobre a relação entre experiência ingênua e ciência: a
realidade se nos apresenta na percepção ingênua como uma totalidade. Na maior parte do
80 Ibid, p. 39.
62
tempo experimentamos por nossos sentidos que tudo está interconectado, e não damos
atenção às dimensões da realidade. Assim, nossa atenção se volta principalmente para as
entidades da realidade. Percebemos uma criança, uma bicicleta, o céu, os sons, e tudo o
mais como objetos concretos e inteiros.
Na observação científica o tratamento da realidade é muito diferente. Ao invés de
apreender a realidade como uma totalidade, buscamos deliberadamente examinar aspectos
específicos da realidade. Por exemplo: o biólogo focaliza a vida biológica, sua srcem,
dinâmica, etc. O matemático examina o aspecto numérico da realidade. Obviamente a
“vida” não existe “sozinha”, voando por aí. O que existe são organismos vivos. Mas
organismos vivos são mais do que a vida; eles tem aspectos físicos, espaciais, psíquicos,
etc. Os números também não existem “soltos”. O que há são coisas que existem
numericamente. Existem os cinco dedos em cada mão humana, mas não existe o número
cinco “por si mesmo”, como um objeto invisível.
Isso indica então que na observação científica nós “quebramos” a realidade em
componentes, ou abstraímos certos aspectos ou modos da realidade para examiná-los
melhor. Esses aspectos abstraídos só existem assim em nossa mente, dentro da nossa
reflexão. O número um, por exemplo, não existe como realidade independente. O que
existe são coisas em número de um. Igualmente não existe “a vida”, mas seres vivos. Por
outro lado, não seria possível que fizéssemos a abstração, por exemplo, do aspecto
numérico da realidade, tratando-o matematicamente, se esse aspecto não existisse. Assim,
ele existe, mas inseparavelmente conectado a todos os outros aspectos da experiência. A
realidade pode ser vista, do ponto de vista ontológico, como um espectro de esferas ou
modos que se relacionam para compôr as entidades da realidade. Essa forma de descrever a
realidade é geralmente chamada de ontologia de campos, ou de esferas modais. Muitos
filósofos,
ciência Mcomo
ICHAELN POLANYI
ICOLAI HARTMANN, HUSSERL em sua fenomenologia, o filósofo da
e o filósofo reformacional H ERMAN DOOYEWEERD, cuja
ontologia seguimos nesse texto, buscaram elaborar ontologias de campos. Cada esfera se
refere a um campo ou um modo da realidade, que no entanto só existe conectado aos
outros.
Como é que descobrimos quais são, e qual é a ordem correta das esferas modais?
Naturalmente, para isso precisaremos usar a nossa função analítica, que nos capacita a
diferenciar as coisas. Abstraindo o que nos parecem ser propriedades universais dos
objetos, e colocando essas “propriedades” em oposição à nossa função analítica, podemos
confirmar se tais propriedades são de fato universais e procurar conceptualizar essas
propriedades, de modo a isolar filosoficamente sua natureza. Chamamos essa atividade de
epoché.
Realizando a epoché, como recurso de isolamento das modalidades, e procurando o
padrão de inter-relacionamento entre essas modalidades, torna-se visível que elas se
estruturam numa escala de complexidade crescente, observando-se a existência de relações
definidas entre elas. A esfera numérica é a mais simples, consistindo na “quantidade” ou
63
Todas as criaturas físicas participam como sujeitos nas esferas 1 a 4. Os seres vivos
participam também da esfera 5, e os animais, da esfera 6 (alguns animais experimentam
antecipações de esferas posteriores, como alguns símios). Mas apenas os seres humanos
participam como sujeitos nas esferas 7 a 15. Nos homens encontramos o raciocínio lógico,
a ação histórica, a linguagem verbal, a sociedade organizada, as relações econômicas, a
arte, a moral, o direito e a fé religiosa.
Cada esfera modal se distingue das outras por seu núcleo de sentido, ou momento
nuclear, que garante a soberania interna daquela esfera em relação às outras. Nessa
perspectiva a realidade é irredutivelmente complexa, e não podemos explicar as
propriedades de uma esfera a partir das leis de outra esfera da realidade. O pensamento
lógico, por exemplo, não pode ser explicado como um mero produto psíquico; ele não se
fundamenta nos sentimentos, mas nas leis da esfera lógica. A partir dessa ontologia se
estabelece o que denominamos princípio da irredutibilidade modal. Esse princípio é um
instrumento teórico para detectar o reducionismo e proteger nossa percepção do real da
invasão e distorção teórica que as ciências promovem quando se tornam imperialistas. O
princípio da irredutibilidade é uma forma de garantir a soberania das esferas modais.
O princípio das esferas de soberania foi desenvolvido inicialmente pelo teólogo e
estadista holandês ABRAHAM KUYPER. Kuyper acreditava que a soberania de cada esfera da
vida é um princípio estrutural normativo que Deus estabeleceu para conduzir os homens na
construção de seus relacionamentos sociais e tarefas. Ele encontrou a base nas Escrituras
para isso, não tanto em textos explícitos, mas no fato de que, em diversas situações
diferentes, os personagens
funções e esferas de vida, bíblicos
como nos reconheciam
ofícios delimites divinamente
apóstolo, profeta e ordenados entre
rei, no Antigo
Testamento, ou a concentração de Jesus e dos apóstolos nas atividades eclesiais, evitando
envolvimento direto com questões políticas a partir de sua posição religiosa, ou na
afirmação de Paulo em Romanos 13 de que toda autoridade vem de Deus. Como base nessa
visão de que a autoridade de Deus se expressa de forma diversificada, em esferas
diferentes de soberania, Kuyper se opôs àqueles que perdiam de vista a diferença e
independência essencial entre a igreja, a ciência, o estado, a escola e a indústria, afirmando
que cada esfera possui suas próprias leis, estabelecidas por Deus. Assim, as capacidades de
uma esfera não poderiam ser transferidas ou apropriadas por outra esfera. A igreja, por
exemplo, não deveria tentar realizar o trabalho do estado, ou estabelecer por meio da
confissão de fé a administração da justiça pública. Igualmente, uma empresa não deveria
funcionar como uma família, negando-se a admitir a livre concorrência de preços. Quando
uma esfera de soberania se sobrepõe às outras, somos lançados numa situação de tirania,
como aconteceu por exemplo nos países socialistas nos quais o estado dominava as igrejas,
o sistema educacional, a mídia, as pesquisas científicas, obrigando-as a se conformarem
com a ideologia do partido comunista.
Herman Dooyeweerd deu um passo além de Kuyper e tornou o princípio das esferas
de soberania em uma lei cosmológica, distinguindo filosoficamente uma diversidade
65
A cada esfera modal corresponde uma ciência fundamental, que define a qualidade e
os limites daquela esfera, e um espectro de disciplinas bastante amplo. Para a esfera
numérica, por exemplo, temos a filosofia da matemática, e as diversas disciplinas como a
estatística, a álgebra, o cálculo integral. Geralmente as ciências abrangem mais de uma
esfera modal. Por exemplo: a bioquímica não focaliza apenas a esfera biótica, pois procura
compreender o lugar dos processos químicos na dinâmica da vida. Podemos dizer, assim, o
foco da bioquímica é um tipo específico de processo presente em um conjunto específico de
entidades: os processos químicos que sustentam a vida biológica nos seres vivos. Nesse
caso, trata-se ainda de biologia, pois a química é estudada para se compreender a vida
biológica. Esse seria também o caso da física matemática, que examina a dimensão
numérica
totalidade dos fatos físicos.
ao invés Há também
de processos ciências
parciais, como aque focalizam entidades
espeleologia (estudo dasconcretas emou
cavernas), suaa
musicologia, ou a botânica. Nesse caso muitos conhecimentos de diversas ciências são
utilizados para compreender a entidade caverna, ou a música, ou o vegetal.
Ao eleger uma entidade real para examinar, a atividade científica sempre traz uma
pré-compreensão a respeito da natureza daquela entidade. E as pressuposições a respeito de
nossos objetos de estudo estão interligadas com a nossa visão total da realidade. A tarefa de
examinar criticamente uma cosmovisão em sua totalidade, bem como as definições,
procedimentos e resultados de cada ciência pertence à filosofia. Assim, além do tradicional
tratamento sobre a natureza do conhecimento, cabe como introdução a toda atividade
científica 1) uma reflexão sobre a natureza da realidade como um todo ; 2) uma reflexão
sobre as esferas modais que serão focalizadas , e, particularmente, 3) a análise modal dos
objetos daquela ciência específica.
Essa análise dos conceitos científicos torna-se preemente quando nos tornamos
conscientes do problema do reducionismo. Cada esfera modal traz tanto o seu núcleo de
sentido como os momentos analógicos das outras esferas. É como se a totalidade do sentido
cósmico estivesse presente de forma analógica dentro de cada esfera. Esse fato foi
denominado princípio da universalidade modal.
66
4. O Tempo Cósmico
Dooyeweerd
modal mostrará tomou
o tempo nãoum caminho
figura bastante
na escala como diferente. Uma rápida
uma modalidade distintaolhada na escala
da experiência.
Para ele, tempo e espaço são realidades ontologicamente distintas. Enquanto o espaço é
uma das dimensões da experiência, o tempo é um princípio transmodal e
transestrutural . Não se trata de uma modalidade, mas de um princípio que abrange e
penetra todas as esferas modais e todas as estruturas temporais de individualidade.
Por essa razão, Dooyeweerd sustentava que nós não podemos definir o tempo ; sendo
ele uma realidade transmodal, estaria além da definição conceptual. O máximo que
poderíamos ter é uma espécie de idéia-limite, a partir de uma série de reprsentações
analógicas do tempo, conforme sua expressão em cada modalidade da experiência. Uma
possível aproximação seria que a temporalidade é a ordenação divina para a criatura; a
distensão temporal (uma analogia espacial!) da criatura é sua ordenação dentro de um
esquema que expressa o propósito eterno de Deus . Dooyeweerd propôs que assim como o
cosmo se divide em um lado de lei e um lado de entidade, o tempo poderia ser dividido
assim também, em numa expressão normativa e noutra subjetiva. No lado de lei do cosmo o
tempo é ordem, e no lado de entidade, ou lado subjetivo, o tempo é duração. No caso de
um vegetal, por exemplo, ordem significa nascimento, amadurecimento, envelhecimento e
morte. A duração da vida vai variar para diferentes indivíduos, mas sempre existe como
uma distensão da existência daquele indivíduo.
Um dos aspectos centrais da ontologia de Dooyeweerd é a idéia de que o cosmo é
uma realidade significante. A plenitude do sentido cósmico está na vontade de Deus, o
criador de todas as coisas. O tempo cósmico é a ação divina de distender e diversificar esse
sentido em uma estrutura ordenada de dimensões e entidades individuais. Essa
“organização” da criação é invisível a nós, em sua totalidade. Nós percebemos que há uma
ordem cósmica que diferencia e coordena as criaturas, mas não percebemos a totalidade do
sentido cósmico que está expressa nesse ordenamento. Somente a passagem do tempo
revela a nós a direção e o significado das coisas.
Dooyeweerd comparou o tempo a um prisma. Quando a luz passa pelo prisma sofre
uma decomposição e aparece como um espectro de raios coloridos. Assim a criação, como
totalidade de sentido, é decomposta numa diversidade de sentidos que são profundamente
coerentes. Essa diversidade do sentido é vista por nós como uma diversidade coerente de
esferas modais e de estruturas individuais. A cosmonomia é, assim, uma
cosmocronologia.
A forma como o tempo se manifesta em cada modalidade varia com a estrutura
significante daquela modalidade. Assim o tempo se desdobra em uma diversidade de
sentidos modais. (1) Na esfera numérica, o tempo se expressa na ordem seqüencial
numérica: 1, 2, 3. Magnitudes se diferenciam numa ordem fixa. (2) Na esfera espacial o
tempo se revela como uma ordem de simultaneidade no espaço. Dois círculos que se
tocam são simultâneos. (3) Na esfera cinética o tempo é a ordem de sucessão dos
movimentos. (4) Na esfera física o tempo é revelado na irreversibilidade dos processos
químicos e físicos de transformação. Temos assim uma ordem de variação. Das esferas
cinética e físicade
com assimetria surge nossae consciência
passado futuro.82 (5) de
Napresente temporal
esfera biótica e deuma
temos fluxo temporal
ordem linear,
de gerações,
ou ordem genética, conectando seres vivos pela descendência, na qual se transmite a carga
genética.83 Temos também a ordem do desenvolvimento biológico de organismos
individuais. (6) Na esfera psíquica o tempo se expressa no sentimento de duração que
existe em conexão com a tensão psíquica, como quando aguardamos alguma coisa.
(7) Na esfera analítica o tempo é experimentado na noção de simultaneidade e
ordem lógica. Num raciocínio qualquer, por exemplo, percebemos que as pressuposições
são anteriores à conclusão. Num silogismo, as premissas necessariamente antecedem as
concluões. Há, portanto, não só uma duração, mas também uma ordem necessária no
pensamento. (8) Na esfera histórica o tempo se revela no sentido do desenvolvimento
cultural e nas mudanças que introduzem períodos diferentes nesse desenvolvimento.
Quando encontramos uma sociedade que mantém as mesmas estruturas sem modificação há
séculos, dizemos que ela “parou no tempo” – não no tempo num sentido total, mas no
tempo histórico! Falamos assim numa ordem de evolução cultural. (9) O tempo na esfera
lingüística não só na duração do discurso, mas também na estrutura ordenada da
linguagem. O significado não é transmitido pontualmente e isoladamente, mas numa
estrutura simbólica de sinais lingüísticos sobre os quais ele é distendido. Temos assim uma
estrutura gramatical e sintática, e uma rede de vocábulos que comunicam sentido claro
quando são ordenados dentro de um padrão descritivo-expressivo com sujeito, predicado,
verbos com diferentes tempos, adjetivos, preposições, relações subordinativas e
coordenativas, etc. (10) Na esfera social temos uma ordem relacional, estabelecendo-se
compromissos diferenciados e escalonados entre os indivíduos e as comunidades. Aqui se
inclui, por exemplo, a ordem hierárquica. É por isso que, dependendo da situação social na
qual estamos, e com quem estamos, temos ou não temos tempo . (11) Na esfera econômica o
tempo se expressa na ordem de valores. Noções como, por exemplo, de conservação de
valor e de rentabilidade expressam temporalidade: “tempo é dinheiro”. O valor existe com
duração e com ordem dentro de uma escala de valores econômicos que pode ser mais ou
menos complexa, mas é sempre necessária para a existência de processos econômicos. (12)
Na esfera estética o tempo se revela na ordem harmônica. Uma expressão estética pode
ser mais ou menos harmônica, e o grau de beleza sempre obedece a essa ordem. (13) Na
esfera jurídica temos a ordem do juízo, que obedece necessariamente à hierarquia das leis
no julgamento de uma situação. Essa hierarquia afeta as prioridades jurídicas de um
tribunal, por exemplo. Se ele julga uma situação sem ter base jurídica adequada, há uma
desobediência ao tempo jurídico. (14) Na esfera moral temos a experiência da hierarquia
moral, quando percebemos que uma determinada atitude tem precedência sobre a outra,
escalonamos as prioridades éticas. Temos muitas vezes a experiência de ter a consciência
do dever moral num determinado momento, que precisa ser cumprido naquele momento,
antes
moralde outras
. (15) coisas,fiduciária
Na esfera isto é, aoexperiência da prioridade
tempo se expressa na vida moral. Há tempos
de fé, nos assim uma ordem
próprios em
que ela se desenvolve. Certas crenças são mais fundamentais do que outras, de modo que
diferentes aspectos da vida de fé tem diferentes valores e ocupam tempos diferentes. Temos
assim uma ordem de crenças.
Dooyeweerd considerava o coração, como raiz religiosa da existência humana, uma
realidade transcendente em relação ao tempo. Para ele o tempo não abrange o coração, pois
este funciona em todos os aspectos mas não é exaurido por nenhum eles. Além disso, ele se
relaciona com Deus, como a srcem do sentido cósmico. Não é que o coração seja eterno;
para Dooyeweerd o eterno é Deus, aquele que é auto-existente. O coração seria
supratemporal no sentido de, como núcleo do homem, ser capaz de transcender os limites
da ordem cósmica em direção a Deus. Sem essa “abertura transcendental”, o homem não
poderia atingir a srcem da totalidade do sentido, porque esta é extra-temporal . Essa
extratemporalidade confere também ao homem a sua liberdade em relação à criação.
Para descrever esse núcleo supratemporal do homem, Dooyeweerd usou o termo
aevum. O termo indicaria um estado intermediário entre o tempo e a eternidade. “Como um
estado real, o aevum é a concentração das funções criaturais num ponto no qual o temporal
69
5. Transcendente e Transcendental
6. Sujeito e Objeto
mesmas,
próprio mundo. essência
de sua Já . Assim, a pensam
os subjetivistas forma eque
a ordem quedovemos
a mente no mundo procede
ente conhecedor, isto é, do
do
sujeito, é que impõe uma ordem nos dados da experiência. Nesse caso, as propriedades do
mundo não são “reais”; são antes criações da nossa mente para tornar a experiência
inteligível. Podemos dizer que ambas as posições absolutizam ora o mundo, ora o
indivíduo, tratando-os como as fontes da ordem, ou, falando de outro modo, das leis
cósmicas.
O problema com essas formas de explicar a realidade é que elas abrem a porta para
o reducionismo. O reducionismo, como nós já vimos, ocorre quando tentamos explicar a
natureza básica de alguma coisa a partir de um conjunto específico de propriedades . Por
exemplo: muitos biólogos tentam provar que a vida biológica é meramente uma forma de
organização da matéria. Assim, eles tentam demonstrar que a vida pode ser totalmente
explicada por processos químicos. Supõe-se que as propriedades do aspecto físico são a
essência da realidade – um reducionismo objetivista. Outra forma de reducionismo é a idéia
de que a beleza física é algo “da nossa cabeça”, e que as coisas não são belas em si. Nesse
caso, trata-se de um reducionismo subjetivista. A filosofia reformacional opõe-se à prática
do reducionismo por meio do princípio da irredutibilidade.
7. Os Conceitos Analógicos
A Idéia de Analogia
analítica. Vamos
esferas. Além tomar
disso, o primeiro
podemos caso.
dizer que A noção
a esfera traz em
principal si algo do
do conceito é asentido daspois
analítica, duaso
termo “economia” é subordinado ao termo “pensamento”. Que tipo de conceito é esse?
O que ocorreu é que encontramos dentro da modalidade lógica um momento de
sentido que traz grande semelhança (analogia) com a frugalidade, que é o núcleo de sentido
da esfera econômica. O mesmo ocorre com a noção de “economia de palavras”: uma
analogia lingüística dentro da esfera analítica.
A analogia econômica dentro da esfera lógica é um tipo de antecipação do núcleo
de sentido da esfera econômica; trata-se de um conceito semelhante, mas não do srcinal.
Quando a noção de frugalidade acontece em outros aspectos, ela é sempre caracterizada ou
qualificada pelo núcleo de sentido daquele aspecto não-econômico.
Há também momentos de sentido dentro de uma esfera que são análogos ao núcleo
de sentido de aspectos anteriores. A noção de “espaço econômico”, por exemplo, é um
análogo do núcleo de sentido da esfera espacial. A esse outro tipo de analogia damos o
nome de retrocipação.
As analogias podem se tornar bastante complexas. Quando a analogia se refere ao
núcleo de sentido de um aspecto imediatamente próximo na escala modal, dizemos que a
analógicos. Se tomarmos,
sentido da esfera jurídica: por
“umaexemplo, a definição
bem balanceada que Dooyeweerd
harmonização de umadá multiplicidade
para o núcleo de
de
interesses”. O que temos aqui? Uma analogia econômica (“bem-balanceada”), uma
analogia estética (“harmonização”) e uma analogia numérica (“multiplicidade”). Além
disso, se quisermos definir o significado da palavra “interesse”, vamos precisar de uma
série de conceitos. Em um dicionário encontramos, por exemplo, “lucro”, “proveito”,
“vantagem”, “simpatia”. Os primeiros termos tem nítidas conotações econômicas. Quanto
ao termo “simpatia”, traz consigo a noção de “união”, e de estar “junto com”, que seriam
analogias espaciais (simultaneidade) e físicas (interação). Se dissermos que interesse é
“estar dirigido para uma finalidade”, “estar dirigido” é uma analogia espacial, e
“finalidade” uma analogia histórico-formativa, na idéia de telos.
Por quê as analogias permeiam e penetram tão profundamente em nossas idéias e
linguagem? Dooyeweerd apontou o conceito de universalidade modal. Com isso ele se
referiu ao fato de cada esfera espelhar, dentro de si mesma, a totalidade do sentido cósmico
disperso na escala modal. Em cada modalidade temos conceitos analógicos de todas as
outras modalidades. Assim, a cosmonomia pode ser descrita, como propõe Stafleu, como
um mapa tridimensional, no qual cada modalidade constitui numa “grade” com todas as
outras modalidades atravessando essa grade perpendicularmente. É o fato da universalidade
72
Antinomias Intermodais
A filosofia cosmonômica ensina que Deus não estabeleceu leis contraditórias para a
realidade temporal. Por essa razão, uma antinomia, isto é, uma contradição de leis, é
impossível. Este princípio foi denominado principium exclusae antinomiae, ou princípio
da antinomia excluída.
Quando uma antinomia emerge no pensamento teórico, temos um sinal evidente de
que ocorreu uma falha na diferenciação entre as esferas modais e as leis de uma esfera
estão sendo procuradas em outra esfera. Um dos melhores exemplos de antinomias
intermodais são os paradoxos de ZENO (500 A.C.). Influenciado por PARMÊNIDES, o
fundador da escola Eleática, Zeno tentou mostrar que de o verdadeiro ser é eterno,
indivisível e imutável, e que a mudança seria uma ilusão dos sentidos.
Um dos paradoxos é o de Aquiles tentando ultrapassar uma tartaruga na corrida.
Embora
não. Poisa quando
experiência nos diga
Aquiles chegaque Aquiles
aonde vencerácomeçou,
a tartaruga a corrida,ela
o pensamento
já está maisnos diz quee
à frente;
quando ele alcança essa nova posição, ela já andou mais um pouquinho, e assim por diante,
de tal modo que, teoricamente, Aquiles jamais alcançará a tartaruga! Outro exemplo é o
pássaro voando; no exato momento presente, o que vemos é um pássaro imóvel no ar, e no
próximo momento, ainda o vemos imóvel no ar. Desde que o tempo é composto de uma
série de momentos indivisíveis, durante os quais o pássaro está em descanso no ar,
podemos concluir que o pássaro esteve imóvel durante todo o tempo. O que temos aqui são
antinomias entre a percepção e o pensamento, como se um contradissesse o outro. 86 Com
base nisso, Zeno argumentou que a essência do real é imóvel, e o mundo da percepção é o
“não-ser”, a ilusão.
Qual teria sido o erro básico de Zeno? O seu raciocínio, formalmente falando,
estava correto, mas ele pressupôs, desde o princípio, a inexistência do movimento, negando
que ele fosse um aspecto irredutível e assim tentando examiná-lo a partir das leis da esfera
espacial, tratando assim o movimento como seqüências de posições no espaço. Isso não é o
movimento, mas o substrato espacial do movimento!
A. A Esfera Numérica
87 Ibid, p. 118.
83
sentido de que tudo tem uma dimensão histórica, é algo bem diferente de dizer que “a
história é tudo”, como se tudo fosse meramente construído pelo homem. O erro dessa
concepção é visível, em primeiro lugar, (1) quando nos lembramos que toda absolutização
de uma esfera da experiência ocorre quando elevamos uma síntese do aspecto lógico com
um não-lógico (no caso, o histórico) à condição de arché, isto é, de princípio srcinante e
normativo de todo o cosmo. O historicismo desconsidera que o próprio conceito de
história, sendo um conceito teórico, é fruto de abstração , não correspondendo
ontologicamente, portanto, à realidade concreta. O conceito de história é um produto
intelectual, devendo sempre manter o caráter relativo de todos esses produtos. Forçar uma
sujeição da própria realidade concreta a uma teoria limitada da realidade é contraditório. (2)
Uma vez que toda absolutização do relativo envolve uma contradição interna, devemos
destacar que o próprio conceito historicista de cultura é fruto de um determinado processo
histórico, vindo à luz com a crise do iluminismo e o impacto do movimento romântico. Se
o historicismo é verdadeiro para toda a história, então toda concepção teórica e relativa ao
momento histórico. Mas o próprio historicismo é uma concepção teórica relativa, pois
surgiu dentro da história; nesse caso, ele não pode ser verdadeiro para toda a história.
Vemos assim, que o historicismo é uma teoria auto-referencialmente incoerente , isto é,
implica em sua própria negação. (3) O historicismo gera também antinomias intermodais.
Ele implica, por exemplo, que não podemos usar as leis da lógica para explicar fatos
passados, pois as leis da lógica são relativas à história. Isso tornaria impossível a
conceptualização da experiência histórica e a constituição de qualquer ciência histórica
verdadeira. (4) Mais óbvio ao senso comum é o fato de que há estruturas na experiência
humana que são universais. Assim, o sentimento do numinoso, a moralidade (não importa
de qual tipo), a linguagem e a família biológica aparecem de modos diferentes em
diferentes
humana. Secontextos,
tudo fossemasmeramente
sempre aparecem, comonão
“construído”, dimensões
haveria fundamentais da existência
qualquer semelhança entre
diferentes culturas. (5) Finalmente, a análise modal das ações humanas revela que elas são
multidimensionais. Não existe ação que seja puramente histórica. Além da base formativa,
as ações humanas mostram-se nas outras modalidades, tendo caráter jurídico, estético,
econômico, fiduciário, etc.
Do fato de que a história é realizada por meio do poder formativo do homem, segue-
se que nem todo indivíduo tem o mesmo poder de moldá-la. A história é feita
primariamente por aqueles indivíduos que possuem poder histórico. Líderes da vida
nacional, educadores, líderes eclesiásticos, economistas e cientistas que lideram o
desenvolvimento cultural e alteram as estruturas da vida humana podem ser chamados de
“personagens históricos” nesse sentido. Isso, naturalmente, não significa que as pessoas
comuns estão fora do processo histórico; os líderes culturais só tem impacto porque outras
pessoas se sujeitam a esse impacto. Além disso, um líder numa esfera da cultura pode ser
um seguidor em outra. Portanto, de um modo ou de outro, todo indivíduo participa da
história exercitando poder formativo.
O chamado para formar a história é um chamado divino, dado a toda a raça humana
e também ao indivíduo, onde quer que ele esteja. Esse chamado repousa sobre o fato de
sermos portadores da imagem de Deus, sendo assim capacitados a atuar de forma criativa,
88
I. A Esfera Linguística
Por linguagem, não nos referimos aqui somente à fala e à escrita, mas também a
todo tipo de intenção expressa simbolicamente, incluindo gestos, números, notas musicais
(partituras), bandeiras, estátuas, sons, etc. O núcleo de sentido da esfera lingüística é o
significado simbólico. Por isso, talvez, a expressão “esfera semiológica” também seja
adequado. O lingüista reformacional P. A. V ERBURG, de Groningen, desenvolveu o
pensamento cosmonômico à teoria lingüística. Ele propõe que denominemos os atos
lingüísticos, isto é, aqueles atos que envolvem significação lingüística, como atos delóticos
(gr. Delòun), atos srcinados do desejo humano de clarificação .108 A função delótico-
108 “O termo grego ‘delosis’, que está sendo usado aqui como um termo para abranger e caracterizar a
atividade
Platão: linguística
‘Suponha queem
nóssua
nãoautenticidade
tenhamos voze ou
inteireza,
língua, foi sugerido
e que pela seguinte
nós, entretanto, sentençaclarificar
busquemos no Kratylos, de)
(dèloun
coisas (ta pragmata) um ao outro; não deveríamos nós, como surdos mudos, tentar fazer sinais ( sèmainein)
com as mãos e a cabeça e o resto do corpo?’ Linguagens orais e gestuais, audíveis e visuais podem ser
consideradas atos delóticos, como atos srcinados do desejo humano por clarificação (ou revelação no caso de
auto-clarificação).” VERBURG, P.A., “Delosis and Clarity”. Em: “Philosophy and Christianity”, p. 78.
89
mas também
dimensão a gramática
ilocucionária (n-1de), fala
do ato situando-se na clarificação
(speech-act). 112 da intenção discursiva , na
O nível imediatamente inferior seria o nível técnico-formativo (n-1), isto é, aquele
substrato formativo da linguagem, no qual o poder cultural trabalhou constituindo
117 “O que fala decide livremente a respeito e inicia livremente os tipos de sentença que alcançarão seu
telos,
objetivo, intenção, propósito, fim; i.é., o que ele quer deixar claro, o que tem para dizer ...” Verburg,
“Delosis”, p. 95.
118 Ibid, p. 82.
119 Ibid, p. 95.
140
APÊNDICE 1
EXCERTOS DE DOOYEWEERD
Temporal reality cannot itself be regarded as neutral with respect to its religious root. In other
words, the whole thought of a fixed temporal reality “an sich” [in itself and unrelated to our human
subjectivity] rests on a fundamental misconception. If temporal reality is not neutral, how can we
continue to seriously believe in the religious neutrality of theoretical thought?
The development and carrying out of the cosmological Ground-Principle of sphere sovereignty,
which plays such a fundamental role in the Law-Idea of this new philosophy, was totally dependent
on this newly won Christian-religious Ground-Attitude in philosophy. This Ground-Principle is
intrinsically foreign to immanence-philosophy, and was first formulated by Kuyper.
On this foundation rests the general theory of the law-spheres, developed in Volume II. The first
conception of this theory was obtained after the discovery of the inner structure of the temporal
meaning-modalities. I could already explain this in my inaugural address [“The Significance of the
Cosmonomic Idea for Jurisprudence and Philosophy of Law” (1926)].
Unforeseen difficulties arose in the working out of this theory. This was not only due to the fact that
nowhere was there a point of contact in the prevailing philosophy, but also because it could not
become fruitful without a close contact with the particular theory of the law-spheres, which
investigates the fundamental problems of the various special sciences in the light of the Christian
Law-Idea.
This is also the reason why in my earlier publications I connected the theory of the law-spheres to
the particular fundamental problems of my own special field of science, i.e. jurisprudence. I wanted
to first assure myself that this philosophical theory has a value in principle for the special sciences,
before I drew any provisional systematic conclusions. I admit at once that it was just this omission
of a systematic-philosophic development that made it difficult for observers to appreciate the true
reach and extent of these publications.
I have also had many difficulties in working out the theory of the individuality-structures of reality,
which is found in Volume III. In The Crisis in the Humanistic Theory of the State (1932), I had
already given account of the new view that this theory offers of the structure of naïve experience,
and especially its groundbreaking significance for so-called sociology and jurisprudence. But this
theory, too lacks its own further working out in a systematic-philosophical way. Its significance is
not limited to special sciences, since it touches the fundamental structure of reality itself.
In all of this I had the strong feeling that it is impossible to give a truly fruitful working out of the
Philosophy of the Law-Idea for today’s level of scientific thinking without a staff of colleagues who
are at home in special scientific disciplines. It is vital for this young philosophy for it to find
acceptance by Christian scientific workers, and for a circle of adherents to be formed that is able to
independently think through its Ground-Motives in relation to the special sciences, and to develop
them further.
I am very grateful that from the beginning my colleague Dr. Vollenhoven has been at my side.
Vollenhoven taught general philosophy at the Free University, and his name has become
indissolubly connected with mine. It was also for us a great joy to find an enthusiastic independent
colleague in Prof. Dr. H.G. Stoker, who in various publications has made known the Philosophy of
the Law-Idea, and whose very keen, constructive criticism has called attention to various points that
require a more precise working out.
Although I can not yet follow the full reach of Stoker’s own expansive ideas, and although I
initially have certain reservations against them, this does not prevent me from rejoicing over the fact
that he wants to offer the services of his philosophic talents, which he already showed in Scheler’s
circle, in the further independent extension of this new philosophy. I regard his assistance of great
value, especially in the field of psychology, his own specialty.
And finally there is the happy circumstance that among the younger scientists, a circle of adherents
is gradually, although modestly, beginning to form. Each of these scientists is trying to make this
new philosophy fruitful in his or her own specialty. This first circle of scientific workers has formed
149
[ingevoegd] into the cosmic systasis of meaning as a necessary meaning-side of temporal reality in
which all post-logical aspects are founded.
In naïve experience, the analytical function of thought is in this way enstatically fitted within
[ingesteld] temporal reality; it is en-statically active in the cosmic coherence of meaning. For this
reason, naïve experience knows of no epistemological problem. Naïve experience has no resistance
and it is not active in synthesis of meaning, but in the en-stasis of full temporal reality. In naïve
experience the analytical function of thought is merely inner thought [indenken]. Naïve experience
is the concrete experience of things in their relations in the full individual temporal reality that has
not been subjected to dis-stasis. Also in naïve experience, the analytical subject-object relation has
only a mere en-static character. Whoever sees this relation in naïve experience as a ‘Gegenstand’ (as
Kant does) has cut off at the outset of a way of giving an account of naïve experience.
[WdWisII,only
There 401b] Study Notes of the
a ‘Gegenstand’
analytical aspect in theoretic knowledge
Only in the deepened theoretic thought does the mere en-static attitude of thought give place to the
over-against and dis-static attitude. The deepened analysis executes [voltrekt zich] an inter-modal
synthesis of meaning, in which the non-analytic meaning is made into a ‘Gegenstand’ of the
analytic aspect. A ‘Gegenstand’ arises only in theoretic knowledge, in the synthesis of meaning and
over against the deepened analytical aspect. With this it is established that the ‘Gegenstand’ in
theoretical knowledge, as ‘Gegenstand’ of the theoretic analytical aspect, can never be the full
temporal reality itself, nor can it be the “thing” in its cosmic systasis of meaning in reality. As long
as we merely systatically grasp the “thing” of naïve experience, we have no resistance of analysis.
As soon as the resistance appears, we have given up the naïve attitude of pre-theoretical thought,
which is only en-static [instellende].
[WdW II, 402] Study Notes
The problem of synthesis of meaning is rooted in the
problem of cosmic time, in the problem of the epoché [1],
and of the continuity of the temporal, cosmic coherence
of meaning.
The epistemological ‘Gegenstand’ can therefore not be cosmic reality itself, since the analytical
function, even in its theoretical deepening of meaning, cannot break the bonds of its immanence
within temporal reality. The analytical function can not transcend cosmic time in order to set itself
over against the cosmos. As we know from the Prolegomena, only in the religious, transcendent
root of his personality does man go beyond the temporal diversity of meaning and only there is he
able choose a position over against the cosmos. But this religious “over-against” may never be
confused with the ‘Gegenstand’ in the theoretical synthesis of meaning, which is a product of
theoretical abstraction.
The ‘Gegenstand,’ which is set over against the analytical function of meaning in the still-
problematic synthesis of meaning, is the product of a willed refraining [aftrekking] from out of the
full temporal reality.
We have repeatedly noted that this over-against attitude of theoretical thought must first abstract
from nothing other than the continuity of cosmic time. Therefore it appears that the basic problem of
the epistemological synthesis of meaning is essentially rooted in the problem of cosmic time–that is,
in the possibility of a theoretical epoché [refraining from] the temporal continuity of the cosmic
coherence of meaning.
[WdW II,of
Varieties 403] Study Notes
‘Gegenstände’
In this primary analytical epoché, the ‘Gegenstand’ may be conceived in a larger or lesser degree of
abstraction.
150
The absolute boundary of ‘gegenständliche’ abstraction lies in the apriori basic structure of the
temporal aspects. An entire law sphere with its internal modality of meaning can function as a
‘Gegenstand.’ But within such an abstracted law sphere a whole field of mutually cohering
particular ‘Gegenstände’ reveal themselves.
Finally, a structural ‘Gegenstand’ can be abstracted from the things of naïve experience, and out of
the real human social structures. This abstracted structure is then not merely modal or functional,
but in the analytical epoché it shows the typical structural coherences of an inter-modal character.
This last sort of ‘Gegenstände’ forms the field of investigation in Volume III.
Footnotes for these excerpts
[1] This term, which has such a central function in Husserl's phenomenology, in fact does not derive
from Husserl, but from Greek philosophy. It therefore does not make sense to seek for Husserlian
motives behind my understanding of the epoché. I use the term exclusively in the sense of an
abstraction from the temporal continuity of the cosmic coherence of meaning.
§ 2 The Relation Between Synthesis of Meaning and Deepened Analysis. The Objective-Analytical
Dis-Stasis and the Analytical Character of the Epoché
We now want to firstgive an account of the question why the deepening of meaning of analysis can
only be done in thought that seeks a synthesis of meaning. This question deserves our special
attention.Why cannot the deepening of meaning in the mode of the analytical aspect not remain at
rest in the cosmic systasis of meaning? Why must the unfolding meaning of analysis abstract its
‘Gegenstand’ from out of the full temporal reality?
The answer must be: because in the modal sense of analysis itself, according to its “universality in
its own sphere,” the demand is given to find no rest in the mere systasis of meaning of cosmic
reality. The universality in its own sphere of the logical aspect can only reveal itself in a deepening
of meaning of analysis, in which the modal structures of meaning of the law spheres themselves,
which are only given in the continuity of the cosmic coherence of meaning, are split apart [uiteen-
gesteld, dis-stasis] in logical dis-continuity.
The logical law sphere in its mere enstatic function can never approximate the totality of meaning in
its own aspect of analytical meaning. In enstasis, it only is able to analytically distinguish things and
relations between things by their sensorily founded characteristics.
[WdW II, 404] Study Notes Why the naïve concept of a thing cannot be based on a synthesis of
meaning.
The fact that naïve analysis distinguishes things on the basis of sensory characteristics does not
mean that the naïve concept of a thing is based on a synthesis of meaning of the analytical and
psychical aspects. That would imply that naïve, pre-theoretical thought could be in a position to
analyze the psychical modal function of meaning by taking it from out of full temporal reality and
making it its ‘Gegenstand!’
The truth is that the naïve concept of a thing remains inert [traag], [enstatically] fitted within the full
temporal systasis of meaning of naïve experience, of which it makes an inseparable subjective
component. Because of this, pre-theoretical thought is not in a position to make an analysis of the
modal aspects of the reality of a thing.
164
CLOUSER, Roy, Knowing with the Heart: Religious Experience and Belief in God. Downers
Grove, 1999, 204 pp.
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DELACAMPAGNE, Christian, História da Filosofia no Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
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DOOYEWEERD, H., A New Critique of Theoretical Thought, vol II: The General Theory of the
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165
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