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Publicação do Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc Ano II • nº 7 • outubro de 2003

E D I TOR I A L
Os direitos indígenas
Temores e incertezas no governo Lula

O
s últimos acontecimentos políticos re-
lacionados aos povos indígenas nos le-
vam a um sentimento de apreensão e Um misto de sonho e choque de realidade, de
medo, visto que as expectativas gera-
das pela eleição do presidente Luiz incompreensão e perplexidade, de expectativa e frus-
Inácio Lula da Silva não encontram tração foi criando uma incômoda tensão no movi-
eco nas atitudes do novo governo. Pelo mento indígena e nas entidades de apoio aos índios
contrário, vêm se mostrando extrema-
ao longo de 2003. Uma tensão que não é gerada,
mente conservadoras e retrógradas. As
comunidades indígenas ainda sonham unicamente, por questões políticas e ideológicas, ou
com a prometida articulação interse- por interesses corporativos e resistências “irracionais”
torial no âmbito federal e com a a mudanças. Numa alusão aos “acenos” não concre-
concretização de direitos duramente
conquistados. Apesar de tímidos avan- tizados da campanha eleitoral - contidos parcialmen-
ços, permanecem os mesmos problemas te no documento “Compromissos com os Povos In-
estruturais, com destaque para as áre- dígenas”, e passados mais de nove meses desde que
as de saúde, educação e gestão dos re-
o presidente Luís Inácio Lula da Silva assumiu o go-
cursos naturais.
Nesta edição, o Inesc, em parceria com verno federal, algumas dúvidas estão se disseminan-
a Fundação Böell, apresenta um balan-
ço político e a avaliação orçamentária
das ações desenvolvidas pelo Governo
Lula, nos seus primeiros nove meses. É
feita ainda a análise do Projeto de Lei
do Plano Plurianual 2004/2007, que
o Executivo encaminhou ao Congresso
Nacional em agosto passado.
Esperamos, dessa forma, oferecer sub-
sídios e contribuir para a construção de
uma política indigenista efetivamente
democrática, bem como para um mai-
or protagonismo dos povos indígenas no
cenário social, político e econômico bra-
sileiro. Os índios do Brasil continuam Jorge Diehl
esperançosos de vencer o medo!
do entre setores dos movimentos indígena e desafios que se colocavam: a forma de convênio
indigenista: será este o “jeito petista de ser go- da Fundação Nacional de Saúde – Funasa - com
verno?” não é possível existir uma outra forma as instituições prestadoras dos serviços (ongs, or-
de fazer política indigenista governamental no ganizações indígenas, prefeituras, etc.); a forma
Brasil? até quando esperar o que “Lula prome- de contrato e a qualificação dos profissionais in-
teu”? dígenas e não-indígenas; a falta de compromis-
Nos últimos quatro, cin- so e a má gestão dos recursos financeiros por
Em relação ao
co anos houve conquistas parte de algumas prefeituras; as dificuldades
sistema de educação
importantes no cenário po- que os DSEIs vinham tendo para viabilizar o
escolar indígena,
lítico e institucional brasi- ocorreram avanços, atendimento dos índios na rede do SUS não-
leiro, que apontaram no mas aquém da índígena; a falta de uma capacitação continu-
sentido da construção de proposta de ada das entidades indígenas para atender às
uma política indigenista constituição de um exigências administrativas e gerenciais; e a pre-
pós-Funai, instituição ca- sistema específico cariedade do processo de acompanhamento e
racterizada pelo centra- com autonomia de avaliação dos serviços e seus resultados.
gestão indígena e
lismo burocrático e orien- O mesmo pode ser dito em relação ao siste-
recursos
tada por princípios emi- ma de educação escolar indígena – que se quer
orçamentários,
nentemente assistenciais e humanos e didáticos bilíngüe e intercultural -, que passou a ser co-
tutelares. Tivemos avanços, adequados ordenado pelo Ministério da Educação e exe-
por exemplo, no campo da cutado pelos estados e municípios a partir de
política de atenção à saúde indígena, com a cria- 1991 (Decreto nº 26/91): ocorreram avanços na
ção de um sistema de serviços e de gestão basea- legislação, no campo curricular, no material di-
do em Distritos Sanitários Especiais Indígenas - dático utilizado, na articulação com o movimen-
DSEIs - regionalizados (hoje são 34) e na forma- to indígena, e na formação e qualificação de pro-
ção de conselhos locais e distritais (atualmente, fessores indígenas; mas aquém da proposta de
105 e 28, respectivamente) com participação in- constituição de um sistema específico com auto-
dígena. Um início de estruturação de instâncias nomia de gestão indígena e recursos orçamentá-
de articulação nacional esboçou-se na Comissão rios, humanos e didáticos adequados.
Intersetorial de Saúde Indígena – CISI - e nou- No campo da gestão de recursos naturais, des-
tras instâncias de controle social criadas. tacou-se, em 2001, a criação do componente
Mas, diríamos, foi uma “reforma imperfeita”. Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas -
A Conferência Nacional de Saúde Indígena, de PDPI, no âmbito do Programa Piloto de Prote-
maio de 2001, já apontava os limites e os novos ção das Florestas Tropicais - PPG7, que pode

Orçamento & Política Socioambiental: uma publicação trimestral do INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos, em parceria com
a Fundação Heinrich Böll. Tiragem: 3 mil exemplares. INESC - End: SCS – Qd, 08, Bl B-50 - Sala 435 Ed. Venâncio 2000 – CEP. 70.333-
970 – Brasília/DF – Brasil – Tel: (61) 212 0200 – Fax: (61) 212 0216 – E-mail: inesc@inesc.org.br – Site: www.inesc.org.br - Conselho
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Verdum, Selene Nunes - Jornalista responsável: Luciana Costa - Diagramação: Data Certa Comunicação - Impressão: Vangraf

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ser o embrião de uma política de fato, e não só conflitos de valores, interesses e objetivos entre
“demonstrativa”, que complemente a ação de os “continuístas” e os que querem mudar; e que
garantia dos territórios indígenas e permita que a “herança maldita” pese excessivamente. Mas
se caminhe no sentido de um programa de “de- até quando esperar?
senvolvimento indígena” ou de “etnodesen- Como se não bastasse isso, as alianças políti-
volvimento”, há tanto tempo anunciado e rei- co-partidárias que permitiram a eleição do pre-
vindicado. Mas para isto, é no mínimo necessá- sidente Lula, somadas às articulações que vêm
rio mais agilidade e compromisso no campo sendo estabelecidas dentro e fora do Congresso
gerencial e administrativo: há mais de um ano, Nacional com vistas à aprovação das reformas
tanto o Banco do Brasil previdenciária e tributária – ambas fundadas
quanto o Ministério do A maior abertura do na suposta necessidade de atender às deman-
Meio Ambiente “em- aparelho de Estado das da balança de pagamentos e na crença de
purram com a barriga” ao protagonismo que nem “tudo que é sólido se desmancha no
a assinatura de um con- indígena e o ar”-, têm obstaculizado, ao que parece, os avan-
trato de serviços que fortalecimento das ços e a concretização dos direitos indígenas com
permitirá o repasse dos suas capacidades muito custo conquistados.
para intervir e
recursos financeiros Nos meses de março, abril e agosto de 2003,
assumir de forma
para as entidades indí- tivemos três grandes encontros nacionais de li-
qualificada a gestão e
genas, colocando em o controle social das deranças e organizações indígenas, quando o
sérios riscos a credibi- políticas públicas têm movimento indígena organizado indicou ao go-
lidade do PDPI e de sua se manifestado, verno federal a sua proposta para uma política
equipe, e a própria quando muito, em indigenista efetivamente de “mudança”.
exeqüibilidade dos pro- doses homeopáticas O que esperar, então, do Congresso Nacio-
jetos aprovados. nal? A Frente Parlamentar em Defesa dos Povos
E o que se viu a par- Indígenas é uma luz de esperança, um aliado
tir de 1o de janeiro de 2003? A tão esperada ar- importante. Há possibilidades concretas para
ticulação intersetorial do governo federal, anun- uma articulação mais orgânica entre seus inte-
ciada no documento de campanha, continua no grantes e o movimento indígena organizado,
papel. A maior abertura do aparelho de Estado mas isso vai depender substancialmente da ca-
ao protagonismo indígena e ao fortalecimento pacidade de os parlamentares abrirem espaços
das suas capacidades para intervir e assumir de efetivos de manifestação e participação indíge-
forma qualificada a gestão e o controle social das na junto aos Poderes Executivo, Legislativo e
políticas públicas têm se manifestado, quando Judiciário, e de tornarem mais transparente o
muito, em doses homeopáticas. É até compre- Congresso Nacional, estabelecendo canais de
ensível que haja problemas na montagem da divulgação dos atos legislativos que ali tramitam
equipe de governo, um tempo necessário para – projetos de lei e emendas constitucionais, por
conhecer e avaliar a estrutura e os recursos hu- exemplo.
manos disponíveis e necessários; que o Em suma, temores, tensões e expectativas fo-
contingenciamento de recursos tenha constran- ram a tônica destes primeiros meses de Gover-
gido muitas iniciativas e expectativas; que haja no Lula.

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As mudanças e a execução orçamentária Nos Ministérios da Integração Nacional –MIN-
e da Agricultura e do Abastecimento -MAA, o gas-
No PPA 2000/2003, há dois programas vol- to efetuado no período foi nulo. No caso do pri-
tados especificamente para os povos indígenas: meiro, justificável, visto não ter recebido qualquer
dotação orçamentária em 2003. O mesmo não
• “Etnodesenvolvimento das Sociedades In- acontece com o MAA, a quem havia sido destina-
dígenas” - implementado pelos Ministéri- do inicialmente R$ 36 mil para a execução de
os da Saúde, da Educação, da Justiça e da ações de “assistência técnica em terras indígenas”.
Agricultura e do Abastecimento;
• “Território e Cultura Indígenas” - imple- Saúde indígena
mentado pelo Ministério da Justiça, por
intermédio da Fundação Nacional do Ín- Na Fundação Nacional de Saúde, mais espe-
dio -FUNAI. cificamente no Departamento de Saúde Indí-
gena – DESAI, as mudanças só foram efetiva-
Além destes, há ações voltadas para os povos mente sentidas em maio, quando o diretor
indígenas no programa “Amazônia Sustentável”, Ubiratan Pedrosa Moreira, que esteve à frente
implementado pela Secretaria de Coordenação do processo de estruturação da política de aten-
da Amazônia – SCA, do Ministério do Meio ção à saúde indígena baseada nos Distritos Sa-
Ambiente; e no programa “Pantanal”, nitários Especiais Indígenas a partir de 1999,
implementado sob a responsabilidade do Minis- foi substituído por Ricardo Luiz Chagas, que
tério da Integração Nacional. traz a experiência do Projeto Xamã, que formou
Os dados apresentados na tabela 7, relativos 117 auxiliares de enfermagem indígena com
aos investimentos sociais realizados no período recursos do Projeto de Desenvolvimento
de janeiro a setembro de 2003, que incluem Agroambiental de Mato Grosso - Prodeagro e
quatro programas e cinqüenta ações, mostram da Fundação Nacional de Saúde.
que até 12 de setembro foram gastos cerca de Além dos ajustes necessários na forma de ges-
52,71% (R$ 111,2 milhões) do total dos recur- tão e controle social do sistema nos diferentes
sos autorizados (R$ 211,1 milhões). níveis de complexidade (local, nacional),
O Ministério da Saúde, por intermédio do Ricardo Chagas anuncia que serão priorizados
Departamento de Saúde Indígena – DESAI - a formação inicial e continuada de agentes in-
da Fundação Nacional de Saúde; e o Ministério dígenas de saúde e de saneamento; o aprimora-
da Justiça, por intermédio da FUNAI, foram os mento dos instrumentos de controle de infor-
que apresentaram o “melhor desempenho”, ao mações sobre a saúde indígena; a gestão finan-
menos em termos de gastos, aplicando respecti- ceira dos distritos sanitários e questões como se-
vamente 63.57% e 39.35% dos recursos auto- gurança alimentar e nutricional e auto-susten-
rizados. tação indígena. Promete investir também em
O desempenho financeiro do Ministério do aparar mais algumas arestas na relação com a
Meio Ambiente não ficou muito distante da sua Funai, onde há setores que mantém uma postu-
média geral, aplicando cerca de 3.28% da do- ra conservadora contrária às mudanças
tação inicial de R$ 6 milhões. implementadas a partir de 1999.

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Em termos orçamentários, até o primeiro dia nas. O segundo vem coordenando consultas re-
de maio foram gastos 15.75% da dotação inici- gionais com lideranças e organizações indígenas
al para 2003, a maior parte na forma de repas- com vistas a elaborar uma proposta de política
ses para os distritos sanitários. Em 27 de julho, específica que promova o etnodesenvolvimento
o percentual total eleva-se para 46.33%, sendo dos povos indígenas, a ser apresentada no semi-
que mais de 60% foram para a ação “atendimen- nário “Política Nacional de Segurança Alimen-
to à saúde em distritos sanitários especiais indí- tar e Desenvolvimento Sustentado dos Povos In-
genas”. Em 12 de setembro, os recursos aplica- dígenas”, que acontecerá em Brasília, de 23 a
dos em saúde indígena na 28 de novembro de 2003. Ainda no âmbito
Funasa chegam a 63.57% do MDA, foi criada recentemente uma asses-
O governo federal
da dotação inicial. soria especial, com corpo técnico específico,
iniciou em 2003
No final de 2002, o gestões para para desenvolver ações de “promoção da igual-
Ministério da Saúde deu desenvolver ações dade de gênero, raça e etnia”. Esta assessoria
início à implementação de com os povos será responsável, no PPA 2004/2007, pelas
uma política específica de indígenas em pelo Ações de Assistência Técnica e Extensão rural
segurança alimentar dos menos mais dois – ATER - nas terras indígenas.
povos indígenas, editando ministérios:
o da Segurança
a Portaria MS nº 2.405, Educação indígena
Alimentar e
de 27 de dezembro, que
Combate à Fome e o
cria o Programa de Pro- do Desenvolvimento A mudança na Coordenação Geral de Edu-
moção da Alimentação Agrário cação Escolar Indígena – CGEEI - do Minis-
Saudável em Comunida- tério da Educação ocorreu em março, com a
des Indígenas -PPACI. A coordenação do pro- nomeação de Kleber Gesterira de Matos. Oriun-
grama vem sendo realizada de forma articulada do de entidades de apoio aos povos indígenas,
pela Coordenação Geral de Políticas de Alimen- Kleber foi responsável por uma avaliação do pro-
tação e Nutrição –CGPAN da Secretaria de Po- cesso e dos resultados da implementação da po-
líticas de Saúde do Ministério da Saúde e pela lítica de educação escolar indígena pelo MEC
Fundação Nacional de Saúde -Funasa, por in- no período de 1995 a 2002.
termédio do Departamento de Saúde Indígena Conforme os dados divulgados por Kleber
–DESAI. Matos em agosto passado, a política de Educa-
Além disso, o governo federal iniciou em ção Escolar Indígena – EEI - contaria com
2003 gestões para desenvolver ações com os 2.033 escolas e 4.800 professores, sendo 4.000
povos indígenas em pelo menos mais dois mi- indígenas, atendendo aproximadamente
nistérios; o da Segurança Alimentar e Combate 133.000 estudantes indígenas nas mais de
à Fome – MESA - e o do Desenvolvimento Agrá- 1.500 aldeias de 24 estados. Até o momento, a
rio - MDA. O primeiro vem realizando articu- EEI está restrita ao ensino fundamental, em es-
lações interministeriais e com governos estadu- pecial até a 5a série, e há inúmeros casos de cri-
ais com vistas à implementação de políticas es- anças indígenas freqüentando escolas rurais ou
pecíficas de segurança alimentar, de caráter periurbanas, seja pela inexistência de escola es-
emergencial e estrutural, para os povos indíge- pecífica no interior da terra indígena, seja por

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não ter a série desejada ou porque a qualidade de uma política nacional que assegure a especificidade
do ensino ofertado é muito baixa. Para a coor- do modelo de educação intercultural e bilíngüe às co-
denadora de educação indígena da Funai, Ma- munidades indígenas.
ria Helena Fialho, houve nos últimos dez anos Outro desafio é integrar as ações de ensino indíge-
avanços importantes na na nos três níveis de ensino e não só no fundamental,
legislação específica, mas o que implica numa maior e melhor articulação com
No âmbito municipal
persiste o desafio maior é onde tem havido
as Secretarias de Ensino Médio e Tecnológico e de
que é colocá-la em práti- mais problemas para Ensino Superior, e a criação de parâmetros
ca com qualidade. a institucionalização curriculares específicos para a educação escolar indí-
Ainda segundo Kleber, os da figura “escola gena de nível médio. No nível superior, há experiên-
estados e municípios de um indígena”, além de cias em curso nos estados de Roraima, onde foi cria-
modo geral têm demonstra- inúmeras situações da uma licenciatura específica na UFRR, e do Mato
do baixo interesse em desen- de desvio de Grosso. Hoje, existe uma grande demanda indígena
recursos financeiros
volver um sistema adequado por acesso ao nível superior de ensino. Como os ín-
e de discriminação
e de qualidade. No Estado do dios têm tido dificuldades para acessar as universida-
Mato Grosso, por exemplo, des públicas, eles estão buscando universidades pri-
há 38 municípios responsáveis por ações de educação vadas, ocasionando grande ônus para o órgão
escolar indígena, mas somente um município tem de- indigenista - Funai, que não dispõe de recursos finan-
monstrado interesse em desenvolver com qualidade a ceiros para atender à demanda criada.
educação escolar indígena. No âmbito municipal é Dentre as principais lições aprendidas no processo
onde tem havido mais problemas para a de implementação da política de EEI, os gestores go-
institucionalização da figura “escola indígena”, além vernamentais destacam a importância de se buscar um
de inúmeras situações de desvio de recursos financei- maior diálogo com as organizações e os professores in-
ros e de discriminação – foram identificados proble- dígenas, fortalecendo os canais que permitam sua par-
mas desta natureza nos estados do Pará, Amazonas, ticipação de fato no processo de gestão e acompanha-
Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. O Ministério Pú- mento das políticas e das ações em campo (Conselhos
blico Federal tem realizado audiências públicas nos es- nacional, estaduais e locais). Também, a necessidade
tados – seis até o momento -, visando ouvir as repre- de uma maior articulação do MEC com a Funai e
sentações indígenas e os professores indígenas sobre o desta com as Secretarias Estaduais de Educação, na
andamento do sistema de ensino escolar para os povos perspectiva de superar a política de competição que
indígenas, apresentando resultados bastante positivos acabou se estabelecendo entre estas instituições, em
na identificação de problemas e alternativas de supe- detrimento da qualidade do ensino oferecido aos po-
ração. vos indígenas.
Dentre os principais desafios a serem enfrentados Do ponto de vista orçamentário, até o início de
pelos atuais gestores da política governamental de EEI setembro não havia registros no Sistema Integrado
está a superação da situação de acefalia no processo de de Administração Financeira - SIAFI de qualquer
gerenciamento global da assistência educacional aos investimento por parte da CGEEI do MEC em
povos indígenas. Não há hoje, na prática, uma clara educação escolar indígena. Por outro lado, de par-
distribuição de responsabilidades entre a União, os es- te da Funai, haviam sido investidos mais de R$ 2,47
tados e os municípios, o que dificulta a implementação milhões na edição e distribuição de material esco-

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lar, na capacitação de professores nas escolas indí- saída do presidente da Funai, Eduardo Almeida, que
genas, na assistência de estudantes indígenas fora finalmente foi demitido pelo ministro da justiça. Para
das terras indígenas, e na manutenção de escolas e assumir a pasta, foi chamado o antropólogo Mércio
casas de estudantes indígenas. Gomes, ligado ao PPS, partido aliado da base do Go-
verno Federal que tem crescido principalmente na
Direitos territoriais e auto-sustentação Amazônia – os governadores dos estados do Amazo-
nas e do Mato Grosso são filiados ao PPS. Mércio as-
Os direitos territoriais indígenas foram motivo de sume afirmando que o grande desafio “é transformar
“grandes emoções” nos pri- as economias indígenas para que elas tenham auto-
meiros meses de 2003. Para Os primeiros nove sustentação”, e que “os índios devem produzir um ex-
isso, contribuíram dois acon- meses de governo cedente para que possam vender e não precisem mais
tecimentos: primeiro, o en- terminam com Lula pedir ajuda”. O que isso quer dizer, concretamente,
homologando terras
caminhamento de processos ainda é uma incógnita. Ou não?
indígenas com
de homologações à aprecia- Em termos orçamentários, a Funai havia gasto
processos iniciados
ção do Conselho de Defesa no governo anterior, até o início de setembro cerca de R$ 18,83 mi-
Nacional e do Senado Fede- e nenhuma portaria lhões com ações de identificação e revisão, demar-
ral. Esta “inovação” do Go- do ministro da Justiça cação e aviventação, regulamentação e fiscalização
verno Lula no trato dos di- sendo publicada para de terras indígenas. Para a promoção, supostamen-
reitos territoriais indígenas reconhecer os te, da “auto-sustentação indígena”, foram investi-
elevou sobremaneira a tem- limites de novos dos R$ 4,66 milhões em capacitação de indígenas
territórios indígenas
peratura e a tensão no meio e técnicos (12.46% do total destinado a esta ação)
e determinar sua
indígena e indigenista, per- e em ações de fomento a atividades produtivas
demarcação física
plexo com o ato para muitos (55.19% do montante destinado).
incompreensível, especial-
mente partindo da Presidência da República. O Plano Plurianual 2004/2007
Em segundo lugar, a possibilidade de a Proposta de
Emenda Constitucional - PEC 38/99 - que restringe No final de agosto passado, o Ministério do Plane-
a criação e a extensão de terras indígenas e unidades jamento e Orçamento encaminhou ao Congresso
de conservação, do senador Mozarildo Cavalcanti Nacional o Plano Plurianual - PPA 2004/2007 - e a
(PPS/RR), ir para o Plenário num contexto de intensa proposta de metas, programas, ações e respectivo or-
articulação e negociação do executivo federal com a çamento para o ano de 2004.
base parlamentar aliada, e ser aprovada na base do O PPA do Governo Lula contempla os povos indí-
“toma lá, dá cá”. genas com dois programas, que juntos congregam 41
Os primeiros nove meses de governo terminam com ações. São eles:
Lula homologando terras indígenas com processos ini- • Identidade Étnica e Patrimônio Cultural dos
ciados no governo anterior, e nenhuma portaria do Povos Indígenas - com 27 ações, este progra-
ministro da Justiça sendo publicada para reconhecer ma tem como objetivo geral “garantir o ple-
os limites de novos territórios indígenas e determinar no exercício dos direitos sociais dos índios e a
sua demarcação física. Houve tensão e pressão de di- preservação do patrimônio cultural das soci-
ferentes setores, dentro e fora do governo federal, pela edades indígenas”;

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• Proteção de Terras Indígenas, Gestão Territorial O recurso de “gestão do programa”, neste caso,
e Etnodesenvolvimento - com 14 ações, este pro- é totalmente destinado à Funai. Uma conclusão
grama tem como objetivo geral “garantir e pro- possível que se pode tirar sobre a criação desta ru-
teger a integridade do patrimônio territorial e brica orçamentária e sua destinação, e que parece
ambiental das sociedades indígenas”. se esboçar no PPA 2004/2007, é que tanto a Funai
quanto a Funasa terão uma posição de maior im-
Em termos orçamentários, é previsto que ao Pro- portância na gestão da política indigenista gover-
grama Identidade Étnica e Patrimônio Cultural namental. Parece, também, que vai sendo supera-
dos Povos Indígenas será destinado no período de do o modelo anterior de acompanhamento dos
2004/2007 um total de R$ 878,89 milhões, as- programas, onde os chamados “gestores” eram per-
sim distribuído: sonagens sem qualquer poder de gestão de fato.
T abela 1 Mas tudo isso é só hipótese: ainda é uma incógni-
Ministério R$ ta como se dará a gestão e o acompanhamento
Ministério da Saúde 617.603.000
Ministério da Justiça 208.548.285
destes programas.
Gestão do Programa 39.106.500 Para o ano de 2004, são previstos recursos or-
Ministério da Educação 9.359.992
Ministério do Desenvolvimento Agrário 4.280.000
çamentários da ordem de R$ 188,04 milhões para
o Programa Identidade Étnica e Patrimônio Cul-
O Ministério do Desenvolvimento Agrário inte- tural dos Povos Indígenas, assim distribuídos:
gra o programa na qualidade de responsável pela
T abela 3
ação de “assistência técnica e extensão rural”, que no Ministério R$
PPA 2000/2003 era de responsabilidade do Minis- Ministério da Saúde 166.900.000
Ministério da Justiça 18.649.000
tério da Agricultura e do Abastecimento. O item Ministério da Educação 2.014.400
“gestão do programa” tem seus recursos distribuídos Ministério do Desenvolvimento Agrário 480.000

entre a Funai e a Funasa, cabendo a esta última gran-


de parte dos recursos orçamentários propostos. Ao Programa Proteção de Terras Indígenas,
Quanto ao Programa Proteção de Terras Indígenas, Gestão Territorial e Etnodesenvolvimento é pre-
Gestão Territorial e Etnodesenvolvimento, é previsto para visto para 2004 um montante de R$ 63,15 mi-
o mesmo período de 2004/2007 um montante de R$ lhões, com a seguinte distribuição:
294,74 milhões, distribuído conforme tabela 2:
T abela 4
T abela 2 Ministério R$
Ministério R$ Ministério da Justiça 52.051.975
Ministério da Justiça 248.631.572 Ministério do Meio Ambiente 11.105.330
Ministério do Meio Ambiente (Região Norte) 44.513.102
Ministério do Meio Ambiente (Nacional) 1.348.500
Gestão do Programa 252.685 Ao reunirmos algumas das principais ações do
Programa Identidade Étnica e Patrimônio Cultu-
A distinção “Região Norte” e “Nacional” no Mi- ral dos Povos Indígenas, poderíamos dizer que ele
nistério do Meio Ambiente se deve ao fato de que é composto por três grandes blocos temáticos, com
está prevista a criação de um mecanismo de fomento a seguinte previsão orçamentária:
semelhante ao PDPI para os povos indígenas que es-
tão fora da Amazônia Legal.

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T abela 5
Para finalizar, gostaria de ressaltar que, em ter-
Programa Identidade Étnica e mos de possibilidade de participação e controle
Patrimônio Cultural dos Povos social, o Projeto de Lei nº 30/2003-CN, que tra-
Indígenas ta do Plano Plurianual 2004/2007, estabelece:
Programa R$ • Que haverão “revisões anuais” do PPA, com
AUTO-SUSTENTAÇÃO a possibilidade de exclusão, reformulação e
Assistência técnica e extensão rural (MDA) 480.000 até inclusão de novos programas e respecti-
Capacitação de indígenas e técnicos (Funai) 460.000
SAÚDE vas ações. E que esta iniciativa deve partir
Atenção à saúde dos povos indígenas 130.000.000 do Poder Executivo, por meio de projetos
Estruturação de unidades de saúde 12.000.000
Promoção da segurança alimentar e nutricional 3.000.000 de lei de “revisão anual” ou mediante “Lei
Educação em saúde 1.000.000 orçamentária e seus créditos especiais”.
Capacitação de pessoal 10.000.000
Sistema de informação em saúde indígena 5.700.000 • Que as propostas de “revisão anual” deverão
EDUCAÇÃO ser encaminhadas ao Congresso Nacional até
Distribuição de material didático 480.000
Capacitação de professores 534.000 o dia 15 de abril dos exercícios de 2004,
Capacitação de professores e técnicos (Funai) 380.000 2005 e 2006, acompanhadas de um “Rela-
Apoio ao ensino fundamental 1.000.000
GESTÃO DO PROGRAMA tório de Avaliação do Plano Plurianual”.
Funasa 2.500.000 • Que cabe aos responsáveis pela execução dos
Funai 300.000
programas do PPA 2004/2007, no âmbito
No caso do Programa Proteção de Terras Indíge- dos Poderes Executivo, Legislativo e Judici-
nas, Gestão Territorial e Etnodesenvolvimento, te- ário, “adotar mecanismos de participação da
mos para 2004 a seguinte previsão orçamentária: sociedade e das unidades subnacionais na
avaliação dos programas”, sendo previsto or-
çamento específico com esta finalidade.
T abela 6

Programa Proteção de Terras Ou seja, no caso dos programas aqui tratados, o


Indígenas, Gestão Territorial e movimento indígena e suas organizações devem fa-
Etnodesenvolvimento zer parte ativa no processo de avaliação da
Programa R$
implementação e revisão anual do PPA.
TERRAS INDÍGENAS Diante da complexidade do processo em curso
Demarcação e aviventação 2.100.000
Fiscalização 6.000.000
aqui analisado, é necessário ter cuidado para não
Identificação e revisão 2.000.000 incorrer em avaliações precipitadas e inconsisten-
Regularização fundiária (nacional) 18.500.000
Regularização e proteção (PPTAL) 8.000.000
tes. Se governar o Brasil não é tarefa fácil, monitorar
FOMENTO este processo e tomar as decisões corretas nos mo-
Projetos Especiais (Funai) 100.000
Atividades produtivas 8.200.000
mentos certos também não o é. Temores, tensões e
Projetos de Gestão Ambiental expectativas sempre haverão de surgir.
(Amazônia, PPG7, MMA) 10.370.191
Gestão ambiental (Brasil, MMA) 735.139 Ricardo Verdum
GESTÃO DO PROGRAMA Assessor de Política Indígena e Ambiental do Inesc
Funai 56.975 verdum@inesc.org.br

outubro de 2003 9
T abela 7

Orçamento indigenista - 2003


R$ mil
2003
Programas/projetos Dot. Inicial Autorizado Liquidado % Exec.
12/09/2003 12/09/2003
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE 6.099.751 6.099.750 200.000 3,28%
Pantanal 418.264 418.264 0 0,00%
Viabilização de ações socioeconômicas em terras indígenas na 418.264 418.264 0 0,00%
Bacia do Alto Rio Paraguai - Pantanal
AMAZÔNIA SUSTENTÁVEL 5.681.487 5.681.486 200.000 3,52%
Gestão ambiental em terras indígenas na Amazônia 5.681.487 5.681.486 200.000 3,52%
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA 71.810.000 78.350.944 30.831.479 39,35%
Etnodesenvolvimento das sociedades indígenas 27.330.000 27.529.989 15.044.436 54,65%
Construção de casas de estudantes indígenas 200.000 200.000 0 0,00%
Capacitação de indígenas e técnicos de campo para o 460.000 459.999 57.332 12,46%
desenvolvimento de atividades auto-sustentáveis em terras indígenas
Construção e ampliação de postos indígenas - - - -
Edição e distribuição de material didático para educação indígena 700.000 699.999 220.389 31,48%
Equipamento de postos indígenas
Assistência jurídica às comunidades indígenas 400.000 400.000 75.154 18,79%
Atendimento emergencial às comunidades indígenas -
Fomento às atividades produtivas em áreas indígenas 8.350.000 8.350.000 4.608.284 55,19%
Funcionamento das escolas nas comunidades indígenas 1.600.000 1.599.998 868.825 54,30%
Funcionamento de casas de estudantes indígenas 860.000 860.000 437.151 50,83%
Funcionamento de postos indígenas 2.500.000 2.499.999 1.597.114 63,88%
Capacitação de professores das escolas indígenas 370.000 369.999 163.601 44,22%
Assistência a indígenas fora de suas aldeias - - - -
Assistência social para indígenas 8.100.000 8.099.995 5.410.078 66,79%
Assistência a estudantes indígenas fora de suas aldeias 1.600.000 1.600.000 788.721 49,30%
Adequação de infra-estrutura dos postos indígenas 2.390.000 2.390.000 817.787 34,22%
Território e cultura indígenas 44.480.000 50.820.955 15.787.043 31,06%
Capacitação de técnicos em assuntos fundiários e antropológicos 350.000 350.000 999 0,29%
Edição e distribuição de material da cultura indígena 250.000 250.000 44.180 17,67%
Estudos de impacto ambiental de empreendimentos em terras indígenas 250.000 250.000 38.248 15,30%
Promoção de eventos para a revitalização do patrimônio cultural indígena 130.000 130.000 62.727 48,25%
Promoção de eventos sobre educação ambiental em terras indígenas 500.000 500.000 62.311 12,46%
Recuperação ambiental em terras indígenas 660.000 659.999 71.413 10,82%
Demarcação e aviventação de terras indígenas 2.100.000 2.100.001 684.394 32,59%
Preservação de acervos culturais 200.000 200.000 103.163 51,58%
Fiscalização de terras indígenas 6.050.000 12.390.956 5.083.295 41,02%
Pesquisa sobre as sociedades indígenas 300.000 300.001 54.892 18,30%
Funcionamento do Museu do Índio 237.000 237.000 85.487 36,07%
Identificação e revisão de terras indígenas 2.000.000 2.000.000 810.110 40,51%
Regularização fundiária de terras indígenas 30.453.000 30.452.999 8.252.450 27,10%

10 outubro de 2003
T abela 7 contnuação

Orçamento indigenista - 2003


R$ mil
2003
Programas/projetos Dot. Inicial Autorizado Liquidado % Exec.
12/09/2003 12/09/2003
Localização e proteção de índios isolados e de recente contato 750.000 749.999 380.975 50,80%
Regularização fundiária de terras indígenas na - - - -
Amazônia Legal - PPTAL/ PPG-7
Demarcação e aviventação de terras indígenas - - - -
Demarcação de terras indígenas na Amazônia Legal - PPTAL/ PPG-7 - - - -
Organização, preservação e divulgação dos acervos documentais 250.000 250.000 52.399 20,96%
Sobre índios e a política indigenista
MINISTÉRIO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL - - - -
Planaforo - - - -
Fiscalização de áreas indígenas de Rondônia - - - -
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO 400.000 400.000 0 0,00%
Etnodesenvolvimento das sociedades indígenas 400.000 400.000 0 0,00%
Apoio ao desenvolvimento da educação indígena - - - -
Capacitação de professores para a educação indígena 200.000 200.000 0 0,00%
Distribuição de material didático para a educação indígena 200.000 200.000 0 0,00%
MINISTÉRIO DA SAÚDE 126.245.900 126.245.878 80.250.199 63,57%
Etnodesenvolvimento das sociedades indígenas 126.245.900 126.245.878 80.250.199 63,57%
Implantação, modernização e adequação de unidades de saúde para 9.395.400 9.395.400 2.821.598 30,03%
atendimento à população indígena
Saneamento básico em comunidades indígenas 1.850.500 1.850.500 164.138 8,87%
Funcionamento de unidades de saúde para - - - -
atendimento à população indígena
Funcionamento dos distritos sanitários indígenas - - - -
Atendimento à saúde em Distritos Sanitários 115.000.000 114.999.978 77.264.463 67,19%
Especiais Índígenas - DSEI
MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E DO ABASTECIMENTO 36.000 36.000 0 0,00%
Etnodesenvolvimento das sociedades indígenas 36.000 36.000 0 0,00%
Assistência técnica em áreas indígenas 36.000 36.000 0 0,00%
TOTAL GERAL 204.591.651 211.132.572 111.281.678 52,71%

Fonte: SIAFI/STN - Base de Dados: Consultoria de Orçamento/ CD e PRODASEN


Elaboração: INESC
Notação das Colunas:
Dotação Inicial - Recursos aprovados na Lei Orçamentária, sem considerar os acréscimos e cancelamentos aprovados ao longo do exercício.
Liquidado - Gastos realizados, incluídos também os recursos classificados como restos a pagar ao final do exercício (ano) fiscal (pagos no exercício seguinte)
O valor liquidado pode ser maior do que a dotação inicial, quando forem aprovados acréscimos ao longo do exercício fiscal (créditos adicionais).
% Execução - Obtido através da divisão da despesa autorizada pela despesa liquidada.

outubro de 2003 11
Democracia?
A representação e a participação indígena nos processos de gestão do “campo indigenista”:
este é o tema do artigo apresentado pelo antropólogo Rinaldo Arruda no 8º Encontro de
Antropólogos do Norte e Nordeste, realizado em São Luís/MA, em julho de 2003.

A
tualmente, os Rikbaktsa, povo macro-jê do do com o restante do povo. Muitas vezes, as formas
nordeste do Mato Grosso, assim como mui- de coerção existentes com base na fofoca, evitação
tos outros povos indígenas no Brasil, têm social e zombaria tornam-se inoperantes para con-
uma associação civil sem fins lucrativos registrada ter tais iniciativas, antes que se concretizem.
em cartório, com diretoria eleita em assembléia ge- Nos Rikbaktsa, essas formas tradicionais de coer-
ral, obedecendo à legislação brasileira e podendo, ção têm sido usadas já preventivamente, ao menor
assim, serem aceitos como pessoa jurídica nas inú- sinal de possível cooptação de algum de seus mem-
meras transações comerciais e políticas que estabe- bros. Entretanto, as pressões externas são muitas,
lecem no interior da sociedade brasileira. assim como as necessidades monetárias, de atendi-
Ainda que a diretoria procure ter representantes mento à saúde, e outras que trabalham para minar
dos vários grupos de aldeias existentes, a associação a resistência dos índios à contínua oferta de
tem dificuldades - assim como os “chefes gerais” sem- pretensas benesses pela exploração das riquezas na-
pre tiverem - de exercer o papel de representação, turais de seu território. Em povos como os
conflitando muitas vezes com a autonomia dos gru- Nambikwara, os Cinta-Larga e outros, uma fenda
pos locais, e mesmo das famílias individuais, que tei- abriu-se levando à destruição de boa parte de suas
mam em guardar para si o direito de discordar ou de florestas e a dissenções internas disruptivas, além de
mudar de opinião no meio do processo, chegando a malefícios de toda monta associados a esse tipo e
parar de fazer o combinado ou o que foi decidido essa forma de exploração dos recursos naturais.
em alguma reunião geral da qual fizeram parte. Os índios adquiriram uma consciência clara desse
É admirável essa independência e essa obrigação dilema: percebem sua relativa fraqueza de atuação
de igualitarismo no exercício do poder; a recusa da conjunta persistente e percebem também os perigos
representação. Por outro lado, face aos tremendos de uma atuação conjunta direcionada por um cen-
poderes que hoje constrangem a sociedade Rikbaktsa tro de poder. No caso dos Rikbaktsa, os mecanismos
(indústria madeireira e garimpo, que pressionam internos de erosão permanente dos lugares de poder
mas que até hoje não conseguiram penetrar nas ter- continuam em ação, com maior ou menor sucesso.
ras Rikbaktsa; empresas agropecuárias, projetos Por outro lado, pode ser que a idéia de contrapor
governamentais de aproveitamento hidrelétrica, um poder de dominação com outro poder equiva-
etc.) e outras sociedades indígenas, a inexistência de lente seja justamente a rendição ao próprio poder.
um poder centralizado muitas vezes significa a im- Talvez os índios estejam certos: só é possível minar o
possibilidade de uma ação conjunta, eficaz, duradou- poder de dominação pela recusa da servidão, e não
ra, direcionada para fins coletivamente definidos. Re- pela instauração de um poder concorrente.
presenta às vezes uma fraqueza frente às pressões da O antropólogo Darcy Ribeiro, num artigo tal-
sociedade envolvente. Há situações pontuais que vez profético de 1986, aventa a possibilidade de que
podem exemplificar essa fragilidade. esses grupos humanos, étnicos como ele os chama-
Por exemplo, no caso da exploração de certos va, têm uma permanência milenar e uma persistên-
produtos naturais por interesses econômicos exter- cia tremenda, enquanto o Estado é uma forma re-
nos, como é o caso da madeira, do palmito ou de cente e transitória, sendo que aqueles possivelmen-
minério. A falta de um poder central de coerção te subsistam depois que este se extinguir.
permite que uma determinada família, ou uma al-
deia, façam diretamente um acordo com um ma- Rinaldo Arruda
deireiro ou palmiteiro para a extração desse recur- Professor da PUC-SP e Coordenador do Núcleo
so em certa parte do território, mesmo em desacor- de Etnologia Indígena, Meio Ambiente e Populações Tradicionais

12 outubro de 2003

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