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GRAEFF, Lucas. Tempo.

IN: BERND, Zilá; MANGAN, Patrícia


Kayser Vargas. Dicionário de Expressões da Memória Social, dos
Bens Culturais e da Cibercultura. Canoas/RS: Unilasalle, 2017, pp.
288-290.

Tempo
O que é o tempo? “Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser
explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei”, diz Santo
Agostinho em suas Confissões (AGOSTINHO, 2000). Ao
responder assim, porém, o filósofo medievo não está se furtando
de enfrentar o problema. Ao contrário: a sua resposta apresenta
as premissas de uma definição Ocidental desse curioso conceito.
A premissa consiste nisto: o tempo é uma categoria perceptiva,
transcendental, da alma. É a expressão mesma da maneira pela
qual os seres humanos estão no mundo. Não é algo anterior ou
posterior à existência: é a própria existência. O tempo é, para
Agostinho e para o pensamento ocidental, aquilo que passa, o
que se opõe à eternidade. É um nome que se dá a impressão de
que o universo aparenta se transformar, mais ou menos
lentamente, diante dos olhos do espectador humano. Enquanto
que, para o Criador ou a Natureza, o universo é o mesmo, é o
Ser, desde sempre e para sempre.
Há uma história do tempo? Sim e não. Sim, se por tempo
entende-se o conceito, o nome e as compreensões atribuídas a
ideia de existência. Não, se por tempo define-se a existência em
oposição à eternidade. Os cientistas sociais - historiadores,
sociólogos, antropólogos, etc. - interessam-se pelos conceitos e
compreensões de tempo. Há variações importantes nas formas
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de conceber o tempo entre diferentes grupos, sociedades e
culturas. Essas concepções envolvem calendários e ritmos
sociais particulares, que dão sentido para as formas pelas quais
tal ou tal grupo, sociedade ou cultura se reproduz.
Comparativamente, pode-se dizer que um dado coletivo humano
é mais “acelerado” ou “quente” que outro, por exemplo, caso se
considerem seus ritmos de produção e reprodução social como
mais intensivos em relação ao coletivo de comparação. Pode-se
dizer, da mesma maneira, que há cosmologias cíclicas e lineares
- que distinguem, por exemplo, sociedades rurais tradicionais de
sociedades urbanas industriais. Mas, isso dito, não se deve inferir
que diferentes coletivos humanos dispõem de processos
cognitivos distintos, sob pena de incomunicabilidade entre suas
respectivas experiências existenciais.
A esse respeito, Alfred Gell (2014) oferece uma classificação
operativa das maneiras de compreender o tempo por meio de
duas séries temporais. Ele recupera os rótulos Série-A e Série-B
dos filósofos Richard Gale e John McTaggart, indicando a
primeira como experiência de que o tempo passa. Ela daria conta
da dimensão dinâmica e subjetiva da categoria tempo. Por meio
dessa série, os coletivos humanos tendem a se organizar em
termos de passado, presente e futuro. A Série-B, por sua vez,
afirma que a categoria tempo é coextensiva à matéria. Ou, mais
precisamente, que a experiência de mudança e duração (tempo
subjetivo) ocorre em virtude da percepção cognitiva de sucessão
de estados. Ou, como escreve o autor, de “uma variação
concomitante entre as qualidades de uma coisa e a data
[momento] em que essas qualidades são manifestadas por aquela
coisa” (GELL, 2014, p. 150).
Quer se trate de experiência subjetiva (o tempo passa) ou
objetiva (o mundo muda), a categoria tempo relaciona-se
intimamente com a de memória. Essa relação é estudada e
confirmada por diversos autores desde a filosofia clássica até as
neurociências cognitivas contemporâneas. A anamnesis
platônica, por exemplo, aponta para a existência finita no tempo,
ao mesmo tempo em que contribui para a passagem da
ignorância para o conhecimento (CASEY, 2009). Em
Aristóteles, a memória é experiência pessoal do passado e,
porque traz à consciência um estado prévio do mundo que
deixou de ser, induz a compreensão da existência finita, do
tempo subjetivo - o que Gell, Gale e MacTaggart
denominariam Série-A. No campo das
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neurosciências, dentre diferentes autores que se podem citar,
Gyorgy Buzsaki (2006) constata correlações entre ritmos e ciclos
neurais de armazenamento e recordação de informações - o que,
no caso da classificação em séries temporais, remeteria à Série-
B.

Autoria: Lucas Graeff

Referências
AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
BUZSAKI, Gyorgy. Rhythms of the brain. Oxford: Oxford
University Press, 2006.
CASEY, E. S. Remembering. Bloomington and Indianapolis:
Indiana University Press, 2009.
GELL, Alfred. A antropologia do tempo: construções culturais
de mapas e imagens temporais. Petrópolis/RJ: Vozes, 2014.

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