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Racionalidade Administrativa e Distorção Comunicativa nas Organizações

Contemporâneas
Autoria: Fabio Vizeu

Resumo
A partir da Teoria social Crítica de Jürgen Habermas, uma proposta que buscou evidenciar a
incongruência da racionalidade econômica no âmbito da interação comunicativa, este artigo
pretende apontar a comunicação sistematicamente distorcida dentro das organizações, de maneira
a refletir sobre uma dimensão da interação humana onde se evidenciam os diferentes matizes do
conflito no âmbito organizacional, bem como certos mecanismos discursivos para a dominação e
manutenção do poder. Para tanto, abordam-se os princípios da ação comunicativa e da ação
estratégica, e de que maneira esta última geralmente se manifesta nas interações sociais dentro
das organizações através do refinamento da distorção comunicativa. Parte-se da premissa de que
a racionalidade administrativa privilegia a comunicação orientada para o êxito, uma categoria que
processa a transfiguração do sujeito interlocutor em objeto teleológico, ou seja, um meio para se
atingir um propósito. Neste sentido, a distorção comunicativa se apresenta como um recurso de
poder cada vez mais requisitado no ambiente organizacional. Tendo em conta que este processo
se estabelece como uma manipulação de significados, a distorção comunicativa nas organizações
se manifesta em três diferentes esferas ontológicas da realidade social. Na conclusão,
apresentamos uma referência que pretende ser uma medida para a superação desta tendência à
comunicação sistematicamente distorcida nas organizações, a idéia dos espaços de fala.
Palavras-chave: Habermas; Teoria da Ação Comunicativa; Racionalidade Administrativa;
Comunicação organizacional sistematicamente distorcida.

1. Introdução
No contexto atual, a comunicação é um processo que passa a ter uma maior relevância,
especialmente dentro das organizações. Enunciada por muitos como a era da informação, o
período atual vislumbra novas formas organizacionais e certas tendências nas práticas gerenciais
que se sustentam na idéia de que o conhecimento é um valor maior na vida organizacional. A
gestão do conhecimento, uma especialidade cada vez mais presente nos quadros administrativos
das grandes corporações, se fundamenta entre outras coisas no desenvolvimento dos canais de
interação entre os membros da organização (SANCHEZ e MAHONEY, 1996), possível apenas
pela competência comunicativa. Considerando ainda que o fluxo de conhecimento necessário à
sobrevivência das organizações se viabiliza na medida que a identidade organizacional se
constitui coletivamente (DUGUID e BROWN, 2001), as organizações contemporâneas devem
ser entendidas como comunidades de discussão (TSOUKAS, 1996).
Neste cenário, a comunicação é entendida como uma competência gerencial fundamental.
Em seu pioneiro estudo que questionava o entendimento clássico das funções gerenciais,
MINTZBERG (1973) identificou o papel informacional como uma função chave do executivo
contemporâneo, seja para promover o contínuo fluxo de informações entre o ambiente e a
organização, seja para desenvolver o processamento interno de informações necessário para o
desenvolvimento dos objetivos organizacionais. Nesta espécie de re-configuração das funções
dos executivos na era de turbulência, o autor salienta a importância do gestor como um elo de

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ligação entre os diferentes níveis e departamentos da organização, bem como um facilitador para
a otimização dos fluxos de informação e produção de conhecimento.
Em adição a essa perspectiva, BROEKSTRA (1998) lembra que a dimensão
conversacional das organizações contemporâneas se constitui a partir da autonomia exigida pela
flexibilização sistêmica do cenário atual. Baseado no paradigma cibernético, este autor considera
a interação discursiva um elemento constitutivo das organizações entendidas como sistemas
complexos, onde a construção de significados pela conversação permite o dinamismo de onde
emerge a autonomia da organização diante do contexto no qual está inserida.
Neste sentido, nada mais relevante do que observar o processo de comunicação
organizacional como um possível mecanismo articulador da pluralidade que caracteriza a
sociedade globalizada. Muito se fala que, com a intensificação da globalização, as interações se
configuram em um patamar de diversidade cultural (PICHE, 2004), o que implica uma maior
compreensão das representações e significados compartilhados por grupos culturalmente distintos
(MORGAN, 1996). Assim, em contextos competitivos globais, as organizações dependem da
capacidade comunicativa de seus membros não só para interpretar as distintas realidades culturais
postas lado a lado, mas também para possibilitar a própria interação plural e baseada na
tolerância.
Todavia, tendo em conta a lógica de dominação racional-instrumental vigente no mundo
capitalista, a comunicação organizacional também se configura a partir de um contexto
conflituoso, suportado por relações de poder que caracterizam a sociedade atual. Assim, nas
práticas de comunicação organizacional, também estão presentes as contradições da sociedade
capitalista, tais como a exploração da força de trabalho em nome do interesse econômico ou
mesmo o esvaziamento da ética e da moral pela valorização do lucro, do individualismo e do
consumismo. Na verdade, pode-se dizer que as práticas comunicativas da modernidade são
condicionadas pelo ethos do capitalismo (HABERMAS, 1987), uma dimensão que pode ser
expressa pela redução da razão à modalidade econômica (GUERREIRO RAMOS, 1989), que
tem por princípio o cálculo utilitário de conseqüências (WEBER, 2004).
Isto posto, este artigo pretende apontar a comunicação sistematicamente distorcida dentro
das organizações, de maneira a refletir uma dimensão da interação humana onde se evidenciam
os diferentes matizes do conflito no âmbito organizacional, bem como certos mecanismos
discursivos para a dominação e manutenção do poder. Partimos da perspectiva da teoria de ação
comunicativa do filósofo Jürgen Habermas, uma teoria que buscou evidenciar a incongruência da
racionalidade econômica no âmbito da interação comunicativa. Para tanto, HABERMAS (1987;
1989) propõe a resignificação da ação social racionalmente orientada, tendo em conta a
importância da competência lingüística na construção social da realidade.
Ou seja, considerando a linguagem como atributo essencial na construção de significados,
a comunicação é um processo que assume um novo patamar na compreensão da realidade
organizacional. Em outras palavras, grande parte do que é a organização pode ser definida pela
interação comunicativa entre seus membros e entre estes e os seus públicos externos, sejam eles
os grupos diretamente associados com a atividade fim (fornecedores, clientes e concorrentes) ou
outros grupos de interesse da sociedade aparentemente mais distantes (movimentos sociais e
ecológicos, entidades de classe, organizações governamentais, etc.). É a partir desta interação
comunicativa que as visões de mundo feitas por estes distintos grupos internos e externos são
(re)construídas. Tendo em conta que tais percepções orientam a ação social, podemos inferir que

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a dinâmica da atividade organizacional cotidiana é essencialmente definida pelas interações
comunicativas das pessoas e grupos participantes.
Para dar conta da discussão central proposta neste artigo, primeiramente é necessário
abordar alguns elementos básicos da teoria de ação comunicativa de Habermas. Se tratando de
um corpo teórico denso (FREITAG, 1986; HERRERO, 1986), não será possível aqui expor todos
os seus elementos constitutivos. Optamos por tratar apenas aqueles necessários para a
compreensão da idéia de distorção comunicativa.
Apesar de controverso este entendimento, Habermas pode ser considerado um legítimo
herdeiro da Escola de Frankfurt (FREITAG, 1986). Isto porque, além dele ter sido discípulo
direto de Adorno e Horkheimer – os dois maiores expoentes deste grupo – Habermas se propôs a
tratar do foco original desta escola de pensamento. Todavia, diferentemente da opção pessimista
feita pelos idealizadores de Frankfurt, Habermas opta por verificar outras possibilidades da ação
social baseada na racionalidade, ainda não verificadas a luz das perspectivas filosóficas e
sociológicas que se desenvolveram ao longo do século vinte.

2. O processo de comunicação e a construção de significado


Sob a perspectiva da Teoria da Ação Comunicativa (HABERMAS, 1987; 1989), o
processo de comunicação entre sujeitos representa a essência da atividade social. Isto porque, de
acordo com a tradição sociológica afiliada à guinada lingüística, a significação do real é dada
pela linguagem. Como lembra HERRERO (1986), as coisas somente são algo para nós na medida
que lhes atribuímos nomes. Mesmo os objetos concretos (ou seja, aqueles que podem ser
apreendidos pelos nossos sentidos) somente são tidos como ‘coisas’ no momento que lhes
atribuímos nomes e uma determinada conotação semântica: por exemplo, a palavra “cadeira” nos
remete a idéia de um objeto cuja principal utilidade é o descanso, um objeto que geralmente tem
quatro pernas e um encosto. Assim, a concretude dos objetos é determinada pelo seu nome e
significado. É por isso que, quando ouvimos a palavra “cadeira”, nos vem a mente uma imagem
específica, provavelmente, algo muito parecido em sua forma elementar daquilo que vem a mente
das pessoas que pertencem ao nosso círculo lingüístico.
A Teoria da Ação Comunicativa se fundamenta na idéia de que a comunicação é um
importante processo de humanização (HERRERO, 1986; HABERMAS, 1989). Na verdade, ela
se baseia na premissa de que o homem se diferencia dos outros seres pela sua competência
lingüística. Isto significa dizer que é através de sua peculiar capacidade de comunicação (ou seja,
a comunicação lingüisticamente mediada) que o homem constitui o seu mundo próprio. Este
mundo linguisticamente constituído tem dimensões somente experimentadas pelos seres
humanos, a dimensão intersubjetiva (que nada mais é do que o mundo subjetivo compartilhado,
referente a imaginação e as idéias abstratas com significados compartilhados) e o mundo social-
normativo, referente as regras e normas constituídas socialmente (valores e regras culturais, como
por exemplo aquele que determina a vergonha por estar despido).
Da mesma forma, a realidade construída subjetivamente também assume um status de
concreto a partir da linguagem. É por isso que, quando nominamos algo abstrato ou pertencente
ao nosso universo subjetivo e utilizamos esta palavra em específica conotação semântica e
determinada estrutura sintáxica, este algo se torna concreto para nós, mesmo sendo uma
abstração. Este é o caso dos sentimentos expressados na poesia: o esforço dos poetas em

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expressar pela linguagem escrita sentimentos tais como o amor, a saudade, etc., contribui para
que tais construções subjetivas se apresentem para nós como algo concreto.
Além de nos organizarmos socialmente a partir da comunicação, nós também
apreendemos a realidade em todas as suas dimensões por este processo. E é por meio desta
apreensão de realidade que conduzimos nossas ações: se agimos de acordo com o que sabemos
ou percebemos da realidade, a maneira como apreendemos esta realidade é fundamental para
determinar como agimos. Se um determinado objeto para nós significa perigo (uma arma, por
exemplo), iremos agir com relação a aquele fato real com precaução e medo; se, para uma outra
comunidade, aquele mesmo objeto significa poder, iremos agir diferente, talvez, desejando-o e
buscando conquistá-lo.
Esta dinâmica entre a linguagem e a ação também pode ser verificada através do ato de
fala. Quando falamos, agimos; para agirmos, usamos a fala (a fala é compreendida aqui como
melhor expressão da linguagem verbal). Habermas (1987) identifica este modelo no trabalho de
alguns lingüistas e percebe ser uma interessante referência para a ação racional emancipatória.
Isto por que, a racionalidade da ação, dependendo da verdade dos fatos, também depende da
significação do que é ‘verdade’, dada pela linguagem. É assim que Habermas propõe a
racionalidade comunicativa: uma ação é racional quando é fundamentada nos critérios de
validade de seus significados lingüísticos compartilhados pelos sujeitos envolvidos na ação.
Assim, Para uma comunidade religiosa, ações baseadas na idéia da existência de Deus são
racionais (pois Deus é uma verdade para eles); para uma comunidade de crime organizado, é
‘racional’ que a traição seja severamente punida, pois esta atitude é contrária ao sistema de
valores normativos deste grupo.
No âmbito da vida organizacional, muitos exemplos demonstram esta conotação objetiva
de construções abstratas. A noção que temos da idéia de mercado é um bom exemplo. O uso que
damos à palavra em nossas expressões lingüísticas cotidianas dá uma conotação específica a esta
construção social. Ou seja, no mundo organizacional, o mercado é algo real, é algo necessário, é
algo natural às trocas econômicas, a despeito do fato de ser uma construção delimitada
historicamente e, por isso, não universal (POLANYI, 2000). No universo lingüístico do sistema
financeiro, o mercado chega a ter emoções: é comum se dizer no noticiário que “o mercado está
nervoso”.
A própria noção de organização assume sua especificidade a partir das construções
lingüísticas sobre ela. As organizações, sendo entidades abstratas (elas são algo que vai muito
além das pessoas e dos prédios), também se constituem concretamente a partir da linguagem:
dizemos que a empresa “x” fez isso ou aquilo, mesmo tendo consciência de que aquela ação foi
decidida e implementada por pessoas; relacionamo-nos com as empresas como se fossem sujeitos
(o termo ‘pessoa jurídica’ representa bem esta idéia), e justificamos nossos atos considerando
este fetiche de que a organização é alguém.
A construção da realidade pela interação lingüística tem implicações que vão muito além
da simples objetivação da realidade subjetiva e das idéias abstratas. O significado das coisas é
fundamental para a orientação das nossas ações. Interpretamos o mundo de acordo com o
significado que atribuímos aos fatos e as coisas (sejam elas abstratas ou não). Quando um
concorrente abre uma nova loja, podemos interpretar este fato de várias formas possíveis;
provavelmente, aquela que será a verdade do fato para nós dependerá do conjunto de significados
que atribuímos aos diferentes fatores em jogo (qual o significado daquele concorrente; qual a

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noção que temos sobre a competição naquele setor; qual o significado que damos a conjuntura
econômica, etc.).
Finalmente, a construção lingüística dos significados ocorre na interação cotidiana, o
chamado mundo vivido (BERGER e LUCKMANN, 2005). É na experiência do cotidiano, nas
relações face-a-face que experimentamos e ajustamos nosso repertório de representações, pois
nos valemos da flexibilidade da linguagem para (re)construir durante a interação interpessoal o
sentido das coisas (CHANLAT e BÉDARD, 1996). Por exemplo, uma mesma palavra assume
diferentes conotações dependendo da forma como ela é empregada em determinado diálogo. Por
sua vez, o diálogo é uma interação social específica para ajustarmos nossas ações tendo por
referência outro sujeito (conversamos porque queremos explicar ou entender algo para/de
alguém). Mesmo quando utilizamos mecanismos coercitivos para convencer alguém a fazer algo,
temos por pretensão comunicar uma mensagem (quando dizemos que a punição servirá de
exemplo, estamos utilizando a coerção como um meio para dizer algo a alguém).

3. O acordo comunicativo
Para HABERMAS (1987), a ação racional é aquela que pode ser questionada é sustentada
por argumentos que fazem sentido para o nosso repertório compartilhado de significações.
Assim, os critérios de racionalidade são relativos à determinada comunidade lingüística, pois
somente os membros que compartilham de um mesmo conjunto de significados é que conseguem
perceber o sentido naquilo. Assim, matar é algo errado para os membros de uma comunidade que
compartilha das mesmas significações morais em relação à vida e a morte. Além disso,
dependendo do uso semântico que se faz desta palavra, ‘matar’ pode ter outro significado: matar
em legítima defesa não é errado.
Ou seja, a pretensão de validade de determinado ato de fala é relativa à determinada
cultura. Considerando o exemplo anterior, matar é algo certo ou errado (e isso, em determinadas
condições) para uma específica cultura. Neste raciocínio, quando falamos, baseamos nossos
argumentos em premissas que devem ser válidas para o nosso ouvinte, se não, nosso ato de fala
não terá sentido para ele (considerando que desejamos convencê-lo ou ajustar nossa ação coletiva
pela fala). Isso é facilmente observado no diálogo entre um adulto e uma criança: o adulto deve
levantar questões que correspondam ao nível de entendimento e validade da criança para que sua
fala tenha sentido. Eventualmente, o adulto irá fundamentar seu discurso em argumentos
estranhos a criança; porém, ele supõe que deveriam ser válidos para seu interlocutor. Caso haja
conflito de valores entre seus argumentos com a criança, ele tenta convencê-la por outros
argumentos supostamente compatíveis com o seu estágio moral e cognitivo.
Assim, HABERMAS (1987; 1989) propõe que o acordo comunicativo é a base da
racionalidade centrada na perspectiva lingüística da ação social. A possibilidade de que aja
argumentação sobre determinada questão e a aceitação do grupo de tais argumentos para
justificar a ação coletiva é aquilo que o autor denominou orientação para o entendimento, a base
da ação comunicativa plena. As referências analíticas da orientação para o entendimento são
denominadas pretensões de validade do ato de fala, um conceito desenvolvido pela teoria
habermasiana que foi inspirado nas perspectivas ontológicas das diferentes correntes sociológicas
do século vinte. A seguir, apresentamos as quatro pretensões de validade consideradas por este
autor:

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a. o requisito de verdade proposicional, ou seja, a pretensão de que o falante diga ou se
refira a algo verdadeiro no mundo objetivo e/ou natural;
b. o requisito de sinceridade, o requisito pelo qual o falante pode fazer-se conhecer suas
intenções verdadeiras ao dizer algo;
c. o requisito de retidão, relativo a conformidade com as normas sociais (legitimidade social
de um ato de fala);
d. o requisito de inteligibilidade, para que falante e ouvinte possam chegar ao entendimento
comum sobre aquilo que está sendo dito.

Segundo HABERMAS (1989) estes quatro requisitos devem ser considerados quando
orientamos nossa fala para o entendimento: queremos nos fazer entendidos em relação a verdade
dos fatos que consideramos em nossa fala; quanto a intenção de nossas ações ou as de terceiros;
sobre a legitimidade das questões propostas em relação ao círculo social de referência; e em
relação a compreensão do que se diz. Resta-nos analisar como tais requisitos são burlados quando
a orientação do ato de fala não é o entendimento, mas sim o êxito da ação. Ou seja, de acordo
com os critérios ontológicos da racionalidade redefinida por Habermas (1987), nossos atos de
fala somente são racionais quando todos estes quatro critérios são atendidos. Quando isto ocorre,
dizemos que a orientação da comunicação é para o entendimento, ou seja, o falante orienta sua
fala para que o ouvinte entenda exatamente aquilo que ele acredita e sabe.
A orientação para o entendimento se estabelece quando queremos que o nosso interlocutor
entenda algo exatamente da mesma maneira que nós. Se acreditamos que é necessário agir de tal
forma devido a determinados acontecimentos (validade objetiva), que nos deixam apreensivos e
preocupados (validade subjetiva) e que tal ação se conforma aos valores morais e normativos da
sociedade em que vivemos (validade social-normativa), orientamos nossa ação para o
entendimento destes critérios. Assim, nossos argumentos serão baseados nestes acontecimentos,
sentimentos e normas sociais, supostamente tidos como válidos também pelos nossos
interlocutores.
Estes critérios de racionalidade comunicativa permitem a autonomia dos sujeitos porque
estes regulam sua vida social a partir das suas convicções e sem ferir as regras sociais da
comunidade em que vivem; ou seja, quando acreditamos que, se o outro sujeito souber e sentir o
que sabemos, ele irá agir da mesma forma que nós, e, assim, nos esforçaremos para nos fazer
entendidos, pois temos a convicção de que os mesmos argumentos que nos convenceram a agir
de tal forma serão suficientes para mobilizar a ação dos membros da comunidade cultural-
lingüística que pertencemos, sem ferir a autonomia destes sujeitos. Se nosso interlocutor tiver a
seu dispor argumentos sustentados nos critérios ontológicos de nossa comunidade cultural que
sejam suficientes para questionar os nossos próprios, podemos mudar nossa orientação inicial,
sem que sejamos constrangidos a faze-los (se fizemos, foi porque mudamos a nossa opinião pelo
conhecimento de novos argumentos que desconhecíamos mas consideramos válidos). É por este
motivo que Habermas (1987) reconceituou o critério de racionalidade a partir da suscetibilidade
de crítica e fundamentação de enunciados e proferimentos:

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A racionalidade das emissões e manifestações [de um sujeito] se mede pelas
reações internas que entre si guardam o conteúdo semântico, as condições de
validez e as razões que, caso necessário, podem alegar-se em favor da validez
dessas emissões ou manifestações, em favor da verdade do enunciado ou da
eficácia da regra de ação. Estas considerações tem por objetivo a racionalidade de
uma emissão ou manifestação a sua suscetibilidade de crítica ou de
fundamentação. Uma manifestação cumpre os pressupostos de racionalidade se e
somente se encarna um saber falível, guardando assim uma relação com o mundo
objetivo, isto é, com os fatos, e resultando em acesso a um enunciado objetivo. E
um enunciado só pode ser objetivo se é feito por meio de uma pretensão
intersubjetiva de validez que para qualquer observador ou destinatário tenha o
mesmo significado que para o sujeito agente. A verdade ou a eficácia são
pretensões deste tipo. (HABERMAS, 1987, p. 25-26)

Todavia, além da orientação para o entendimento (dos argumentos e enunciados)


Habermas chama a atenção para outro tipo de orientação na comunicação, a orientação para o
êxito. Denominada por ação estratégica, a comunicação orientada prioritariamente para o
resultado da ação é fundamentada pela racionalidade instrumental. Isto porque, neste tipo de
comunicação, consideramos que o nosso interlocutor é um meio para se atingir um resultado
esperado, e o meio mais rápido para mobilizá-lo no atingimento do resultado é através da
distorção da comunicação.
Ou seja, a ação estratégica é o tipo onde o sujeito se orienta teleologicamente em uma
esfera objetiva, ponderando sobre a melhor forma de utilizar os recursos a sua disposição para a
consecução de seu objetivo. A relação sujeito-objeto apresenta-se neste tipo de ação na medida
que o agente é o sujeito e o outro participante da interação (alter) é o objeto. Quanto ao uso da
fala, o tipo estratégico de ação corresponde a um ato perlocucionário, sendo, assim, uma
categoria monológica e manipulativa de ação. Este último aspecto se dá especialmente porque
“os atos perlocucionários constituem uma subclasse de ações teleológicas que o ator pode realizar
por meio de atos de fala sob condição de não declarar ou confessar como tal o fim de sua ação”
(HABERMAS, 1987, p. 375).
Assim, de acordo com Habermas, quando nos orientamos para o êxito da ação, os critérios
de validade de nossa interação comunicativa devem ser sistematicamente corrompidos, sob pena
de talvez não obtermos êxito. Assim, se queremos que nosso interlocutor faça algo e, para isso,
devemos convencê-lo pela comunicação, manipulamos nossos argumentos em função do êxito da
ação, não por que desejamos nos fazer entendidos. Por exemplo, quando um pai deseja que um
filho escove os dentes (resultado esperado), ele pode manipular sua noção de verdade para obter
êxito (dizer que se não escovar os dentes eles irão cair no dia seguinte, por exemplo, mesmo
sabendo que isso não é verdade).

4. A racionalidade administrativa e o contexto de dominação


Ao mesmo tempo que a Administração é considerada uma área de conhecimento e prática
diretamente associada ao grande progresso da humanidade, ela também tem sido alvo de severas
críticas. Estas são provenientes especialmente daqueles pensadores que associam o
comportamento dos administradores e as ações das grandes corporações às mazelas mais agudas
da atualidade: desemprego, aquecimento global, desigualdade sócio-econômica, falta de ética e

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corrupção, são alguns dos principais problemas atribuídos a maneira como o Administrador
exerce sua atividade profissional.
Certamente, a questão do desvio de comportamento não é exclusiva do universo
empresarial, e nem mesmo do atual período histórico. Todavia, o que se considera aqui é que, na
Administração Moderna, este problema se estabelece como uma questão de base, pois se sustenta
em princípios que determinaram a própria emergência histórica deste saber especializado, e que,
por isso mesmo, ainda se configuram como importantes balizadores a orientar a produção das
práticas administrativas contemporâneas.
Como assinala Garcia (1984), este caráter da Administração se explica devido a
orientação racional utilitária impressa neste tipo de saber. O autor ainda lembra que este a priori
racional é perigoso na medida que reduz as questões de humanidade ao simples cálculo de
conseqüências. Em um cenário extremo, reduz-se o sujeito a um recurso a ser manipulado
exclusivamente para atender o objetivo econômico das organizações. Por este entendimento, a
Administração se define como a técnica para se empreender esta instrumentalização do homem.
Na verdade, foi Thomas Hobbes que melhor expressou o sentido utilitário da
racionalidade moderna. No célebre clássico de ciência política ‘Leviatan’, Hobbes sugere que a
racionalidade é uma mera questão de cálculo, de ponderação das conseqüências (HOBBES,
2000). Este entendimento esta centrado em uma relação objetiva com a realidade, onde os fatos a
serem considerados são conhecidos e bem delimitados, permitindo uma sensata avaliação lógica.
Este raciocínio faz sentido quando o objeto de avaliação são coisas, como por exemplo recursos
financeiros ou qualquer outra forma de recurso material.
Todavia, quando o objeto de ponderação são sujeitos, a racionalidade instrumental torna-
se um princípio ordenador inadequado. Isto porque este tipo de racionalidade desconsidera
critérios normativos (normas e diretrizes da vida social, tais como a questão dos direitos e
deveres em uma dada sociedade) e critérios éticos, aspectos estes que existem apenas no universo
de significados criados pelos seres humanos (ou seja, são critérios não-válidos no universo das
coisas e dos seres não humanos). Na medida que as pessoas são tratadas como coisas, elas
perdem sua identidade. Assim, sob a prerrogativa da racionalidade instrumental, a sociedade atual
não é caracterizada por sujeitos-humanos, mas por papéis e por funções, que são expressos em
termos tais como ‘contribuinte’, ‘paciente’, ‘funcionário’, ‘consumidor’, etc.
A racionalidade administrativa, sendo instrumental, também reduz as relações entre os
sujeitos a uma dimensão objetiva. Por isso mesmo, a Administração é um campo de saber que
contribui significativamente para a atual descaracterização das relações interpessoais enquanto
interação entre sujeitos autônomos. O cerne deste problema pode ser verificado pela tendência de
se tratar os membros da organização como ‘recursos’ humanos, ou seja, como instrumentos que
existem e são manipulados exclusivamente para atender aos interesses da organização.
Todavia, o homem é um ‘instrumento’ que tem um fator complicador: ele tem vontade e
desejo próprios. Por isso, as técnicas para a instrumentalização do ser humano são mais refinadas,
pois devem ser mecanismos sutis de controle, já que, assim, evitam o questionamento e garantem
a melhor produtividade da máquina ‘homem’. É por isso que, nos últimos anos, as técnicas de
gestão de pessoas (assim como as técnicas de marketing) se desenvolvem cada vez mais na
direção do controle psicológico e da manipulação dos significados.

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5. O contexto comunicativo das organizações contemporâneas
Considerando que as competências individuais são fundamentais na construção da
identidade e da diferenciação das empresas, é correto afirmar que as organizações estão ficando
cada vez mais dependentes da iniciativa das pessoas para atingir bons resultados. Neste sentido,
as formas atuais de persuasão para o trabalho tendem a se configurar de maneira a estimular a
cooperação voluntária de seus membros. Isto exige mecanismos de convencimento mais
poderosos, capazes de evitar o descontentamento quanto as contradições do mundo corporativo
atual. Além disso, a persuasão não pode ser exclusivamente dada por meio de sistemas
simplificados de recompensa e punição, pois, como observado por FARIA e MENEGHETTI
(2007), estes não são suficientes para mobilizar os membros da organização para o nível de
envolvimento com o trabalho que se espera nos dias atuais.
Esta é uma das razões das organizações explorarem mais intensamente a comunicação.
Além da maior necessidade de integração de seus membros, a expansão dos espaços e canais de
comunicação visa a construção de significado, uma forma de legitimar a ação das organizações
perante seus membros, bem como em relação à sociedade. Vários aspectos das práticas gerenciais
atuais demonstram esta orientação: declaração de missão, visão e valores da empresa, ampliação
de assessoria de imprensa, a preocupação em criar comissões de fábrica e círculos de qualidade,
refletem, de certo modo, a maior preocupação em integrar os diferentes grupos que interagem no
cotidiano da organização.
Entretanto, devido ao fato da racionalidade econômica ser o principal elemento ordenador
do contexto organizacional atual, observa-se que a ampliação dos processos de comunicação não
está sendo orientada para o legítimo entendimento intersubjetivo entre os interlocutores, apesar
de estar presente em tais processos uma clara preocupação com a construção de significado. Isto
demonstra a predominância na comunicação organizacional a distorção sistematicamente
distorcida, uma prática que, segundo Habermas e seus seguidores no campo de estudos
organizacionais (p.e., VIZEU [2005]), reflete a própria crise de racionalidade da modernidade,
tão abordada pelos teóricos de Frankfurt (ADORNO e HORKHEIMER, 1985).

6. A comunicação sistematicamente distorcida nas organizações


A comunicação sistematicamente distorcida se manifesta no âmbito organizacional tendo
em consideração que as práticas gerenciais são fortemente condicionadas para o êxito. Por outro
lado, para que ocorra o êxito organizacional, cada vez mais é necessário convencer as pessoas a
agirem de determinada maneira. Consumidores devem comprar cada vez mais, trabalhadores
devem trabalhar de tal forma, ambientalistas não devem incomodar, etc. Estes exemplos são
algumas demonstrações de como as organizações buscam o êxito através do convencimento de
seus públicos. Quando a comunicação é um mecanismo para fazer com que aconteça algo no
mundo através das pessoas, dizemos que a orientação do ato de fala é estratégica, ou seja, é
orientada para o êxito. Como já foi abordado, a ação estratégica deve ser entendida como a ação
social condicionada pela racionalidade do tipo instrumental (HABERMAS, 1987).
Tendo em conta os quatro critérios de pretensões de validez do ato de fala considerados na
teoria habermasiana, a distorção comunicativa se opera exatamente nestas quatro dimensões. A
distorção comunicativa ocorre a partir da veracidade dos fatos ditos (a fala baseada em
conhecimento falso), da sinceridade quanto as motivações dos sujeitos (expressões não sinceras

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em relação a intenções e sentimentos), da legitimidade (a fala que utiliza argumentos ilegítimos)
e da clareza dos proferimentos (a fala que gera confusão e/ou distração).
O uso de informações falsas ou mesmo a omissão de informações nos processos de
comunicação organizacional não refletem apenas um desvio de caráter dos seus agentes. Na
verdade, é antes considerado pelos seus agentes como um importante mecanismo gerencial para a
comunicação orientada para o êxito. Os argumentos muitas vezes utilizados para justificar esta
distorção comunicativa deliberada revelam bem este princípio. No escândalo da manipulação de
balanços patrimoniais das empresas do setor de internet, muitos executivos alegaram ter agido em
nome da sobrevivência da empresa. O problema da falta de transparência das ações dos
executivos das empresas listadas nas bolsas de valores e a resposta dada por meio do controle da
governança corporativa também revela que, em nome do êxito esperado, os gestores manipulam
deliberadamente as informações sobre a organização e suas ações. Por um lado, tal atitude revela
uma corrosão de caráter comum nos dias de hoje, aquela baseada no utilitarismo (SENETT,
2000); contudo, também demonstra a banalização da corrupção, um fenômeno perigoso quando
se observa entre pessoas de princípios (DEJOURS, 2001).
A distorção comunicativa dada pela manipulação do significado das motivações e
impressões subjetivas das pessoas é algo comum no contexto organizacional, tanto no nível
gerencial quanto no nível operacional das organizações (HARGIE e TOURISH, 1994; GRISCI e
CARVALHO, 2004). O uso de jargões para demonstrar uma solidariedade que não existe, tais
como “estamos todos no mesmo barco” ou “somos a família Empresa-tal”, são exemplos de
expressões que têm por finalidade a manipulação das impressões dos membros da organização,
garantindo um envolvimento deste que não aconteceria da mesma forma se fosse conhecida as
reais impressões dos gestores. Sobre este ponto em particular, as pesquisas acadêmicas de cunho
crítico têm revelado como existe hipocrisia e cinismo no teatro das relações interpessoais nas
organizações, um contexto baseado em um comportamento encenado para ser politicamente
correto, mas que esconde os preconceitos quanto a gênero, raça, credo, posição social, etc.
(RIZZO e BROSNAN, 1990; ALVESSON e DEETZ, 1999). Neste cenário, também se verifica a
distorção pela comunicação não-verbal. Almoçar junto aos operários, confraternizações de final
de ano, dinâmicas de grupo, entre outros, são práticas que, muitas vezes, revelam a intenção de
constituir uma falsa impressão de consideração (ALVESSON, 1987).
A comunicação organizacional sistematicamente distorcida também pode ser observada
pela manipulação do conteúdo normativo dos proferimentos utilizados na comunicação. Isto
significa que os argumentos que muitas vezes são considerados nos processos comunicativos em
organizações não representam critérios de validade normativa para os membros envolvidos no
processo. A todo momento, os membros das organizações são solicitados a agir contrariamente
aos seus valores e orientação moral. O problema é que esta corrupção é deliberada em nome do
êxito da organização em seus interesses econômicos. Um exemplo claro desta distorção é quando
um funcionário é solicitado a cometer uma irregularidade que ele tem consciência de sua
ilegalidade. Adulterar documentos, não informar direitos ao cliente, são infrações cometidas em
nome e por solicitação da organização. Como sugere FORESTER (1994), quando estas decisões
são questionadas moralmente pelos funcionários, geralmente se procura minimizar seu impacto
por um suposto bem maior ou pela depreciação da norma social (“faça isso para garantir seu
emprego”, “essa irregularidade não é tão grave assim”, etc.).
Finalmente, a distorção comunicativa também se opera no patamar da inteligibilidade
daquilo que se é dito. Mais uma vez, o uso de jargões tem por função dissimular ou confundir o

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entendimento pleno do proferimento. A retórica é outro recurso utilizado para gerar confusão ou
distração sobre determinada questão. Um interessante exemplo de como isso ocorre é pelo uso
institucionalizado da palavra ‘missão’ na definição do propósito maior da empresa.
Etimologicamente, missão tem uma conotação divina e de valor heróico. Utilizá-la em vez da
palavra ‘propósito’ demonstra a intenção (mesmo que não consciente) de camuflar o principal
objetivo da empresa capitalista: o ganho e a sustentabilidade econômica. Por isso, quando uma
empresa capitalista declara uma ‘missão’ ela está, de certo modo, tirando o foco de atenção para
aquilo que realmente lhe é prioritário, e criando uma falsa imagem de entidade socialmente
responsável.

Quadro 1: Poder, Informação e Desinformação


A manipulação da compreensão, confiança, consentimento e conhecimento
Efeitos da desinformação
Compreensão Confiança Consentimento Conhecimento
(confusão/distração) (falsa segurança) (Ilegitimidade) (Falsidade)
Decisões Resoluções transmiti- Decisões simbólicas Decisões alcançadas Decisões que se
das com deliberada (falsas promessas). sem representação mostram falsas às
ambigüidade: retórica legítima de interesses possibilidades atuais
com intenção de pro- públicos mas do público (por
vocar confusão (por recorrendo ao exemplo, a decisão de
exemplo, atender os consentimento se livrar do lixo
‘realmente necessita- público como se este atômico ‘com
dos’). não fosse o caso. segurança’)
Exercício Ofuscar os resultados Acompanhamento de Argumentar que uma Antes que as decisões
do Poder pelo uso de jargão ou personagens respeita- questão política é na sejam tomadas, detur-
de quantidade de veis para ganhar com- verdade uma questão par custos, benefícios,
informação. fiança (independente- técnica e que é me- riscos e reais opções
mente do significado). lhor deixar para os no processo de plane-
peritos. jamento.
Modela- Diagnóstico, definição Apelos ritualísticos à Apelos para a adequa- Apresentação ideoló-
gem de de problema ou ‘abertura’, ‘aos interes- ção e eficácia dos gica ou ilusória de ne-
necessida- definição de solução. ses públicos’ e ‘corres- processos formais de cessidades, exigências
des ponsabilidade’; o enco- ‘participação’ ou me- ou fontes de satisfa-
sentidas rajamento de dependên- canismos de mercado ção (propaganda fal-
cia sobre oponentes sem mencionar suas sa, ‘solicitação de
políticos e fracos. falhas sistemáticas. emprego’).
Fonte: Adaptado de FORESTER (1994) p. 141

FORESTER (1994) apresenta alguns exemplos de distorções comunicativas no âmbito


das organizações públicas, algo que também pode ser observado em organizações econômicas de
esfera privada. O autor destaca as distorções comunicativas sistemáticas a partir do processo de
tomada de decisões, mas também lembra outros aspectos do discurso gerencial que contribuem
para a manipulação dos significados das ações gerenciais, tais como aqueles que vem a tona
durante o exercício de poder e referentes ao reforço de impressões, geralmente dado de forma
gratuita e fora do fluxo de comunicação regular. O quadro 1 apresenta uma síntese destes
processos a partir da manipulação dos requisitos do ato fala.

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Assim como FORESTER (1994), FELTS (1992) lembra que a diferenciação hierárquica
é, em si mesma, fonte de distorção comunicativa. O autor salienta que, por ser um fator estrutural
que impede a plena reciprocidade das interações humanas, a diferenciação hierárquica é uma
precondição para a comunicação sistematicamente distorcida em organizações. Isso também foi
observado por RIZZO e BROSNAN (1990) em relação as distorções comunicativas nos casos de
assédio sexual. O argumento destes autores é que a diferenciação formal e reforçada pelos
mecanismos simbólicos da organização condicionará tanto o subordinado quanto o superior a um
constrangimento que, em situações de impasse, irá favorecer a manipulação discursiva. Este
problema é relevante no âmbito dos estudos organizacionais pois sugere que as organizações
modernas são espaços que favorecem a priori a comunicação sistematicamente distorcida.

7. Conclusão: possibilidades de superação


Ao final deste artigo, tentaremos fugir do pessimismo que por ventura pode ter
transparecido em nossa exposição. A abordagem crítica de Jürgen Habermas sobre a ação social e
a interação comunicativa na modernidade não deve ser observada como uma perspectiva que não
vê saída para os dilemas atuais. Na verdade, Habermas indica que, sendo a comunicação
sistematicamente distorcida um dos mecanismos mais importantes para o estabelecimento e
manutenção da opressão, é nesta esfera que a superação deve ocorrer. No âmbito das
organizações, a superação da distorção comunicativa tem sido vislumbrada especialmente pelo
estabelecimento dos espaços de fala legítimos e pelo reconhecimento recíproco do outro
enquanto um membro da comunidade de fala.
Os espaços de fala são contextos de interação que favorecem o diálogo livremente.
DEJOURS (2001) considera que estes espaços são constituídos a medida que se eliminam as
barreiras psicológicas e se estimula o diálogo livre entre todos os membros da organização. Tais
barreiras representam estados de defesa psicológica que somente emergem na medida que não se
estabelece a confiança entre a gerência e os subordinados. CHANLAT e BÈDARD (1996)
associam estes espaços de fala aos espaços informais da organização, pois acreditam que são
nestes contextos de informalidade que os sujeitos se permitem manifestar suas impressões
livremente.
WEBLER e TULER (2000) apontam sete critérios para que processos de decisão coletiva
possam se configurar como espaços de fala legítimos, de acordo com os critérios de validade da
ação comunicativa plena:

a. acesso ao processo de decisão, que não somente diz respeito a presença física do
participante no debate, mas também a possibilidade de falar e ser ouvido;
b. poder para influenciar o processo e seus resultados, tendo em vista que, a competência
discursiva somente pode ser considerada como autêntica se ela puder realmente ser
efetivada em termos de resultados;
c. interação construtiva facilitada por meio de estruturas adequadas, correspondendo aos
aspectos estruturais do debate (posição dos participantes no espaço físico, tempo de fala,
etc.);

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d. interação construtiva facilitada por meio de comportamento pessoal, significando a
postura pessoal que facilita a confiança e a crítica construtiva, como por exemplo a
tolerância e a paciência;
e. acesso à informação, tendo em vista que em relação a certas questões somente alguns têm
acesso direto a informações e/ou conhecimento especializados;
f. análise adequada da informação, de maneira que esta não seja tendenciosa ou parcial (o
que envolve, quando necessário, um processo de tradução ou interpretação isento de
interesses particulares);
g. habilitação de condições necessárias para processos futuros, de maneira que sejam
aproveitadas em outras oportunidades as deliberações que possam ser utilizadas sem
nenhum comprometimento, de maneira a não empreender novos processos de discussão e
negociação.
Da mesma forma, mesmo naqueles espaços de fala que se procura desenvolver as
condições de favorecimento da fala livre, se o outro não for reconhecido como um igual – ou
seja, um membro pertencente à mesma comunidade legitimadora do espaço de fala – a orientação
para ação estratégica (comunicação sistematicamente distorcida) pode se estabelecer. Isso foi
observado no estudo de Vizeu e Bin (2008), onde foi investigado, a luz da teoria habermasiana, o
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República (CDES), uma
secretaria de apoio ao governo federal criada no primeiro mandato do presidente Lula. No CDES,
os autores observaram que, apesar das condições estruturais para o estabelecimento do espaço de
fala terem sido cumpridas, a comunicação orientada para o êxito nos debates predominava,
justamente porque não havia o reconhecimento do outro como um membro legítimo do fórum
e/ou da sociedade brasileira (supostamente representada pelos noventa membros do CDES).
Por fim, salientamos que a teoria habermasiana é apenas uma de muitas abordagens
existentes para se avaliar criticamente a questão da comunicação organizacional. Optamos por
apresentá-la por entender seu potencial enquanto uma perspectiva sociológica afiliada as
vertentes hermenêuticas, vertentes estas que têm observado o papel central da linguagem na
explicação da vida social. De resto, apesar de serem relativamente simples as bases do modelo de
gestão e organização orientado pela racionalidade comunicativa, na prática, este não se estabelece
de forma tão fácil. Ao contrário, é enorme o desafio para o gestor implantar esta nova referência,
especialmente por que ele é condicionado a viver sob a pressão do resultado, o que faz com que a
ação estratégica seja uma opção muito mais interessante no curto prazo. Contudo, se desejamos
realmente desenvolver sistemas de gestão éticos e que permitam a emancipação das pessoas
sujeitas a estes sistemas, a orientação racional-instrumental destes sistemas deve ser repensada.

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