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Introdução
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Gisèle de Mattos Brito é Membro Efetivo, Analista Didata, Docente da Sociedade Psicanalítica do Rio
de Janeiro e do Núcleo Psicanalítico de Belo Horizonte. É também Membro Efetivo, Docente da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
Este trabalho será apresentado no próximo Congresso Brasileiro de Psicanálise.
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A analista entende o narcisismo como uma defesa, a que foi possível;
entretanto, acredita no narcisismo como uma defesa destrutiva, seja na relação
com os objetos externos, seja com o self.
Realça a importância dos aspectos inatos no desenvolvimento de
organizações narcisistas patológicas, assim como o importante papel do
trauma nas primeiras relações de objeto, concluindo que a fusão entre a inveja
primária e as falhas ambientais cria um quadro em que o narcisismo, como
defesa possível, é estabelecido.
Compartilha com Klein (1963), que embora o sentimento de solidão
nunca seja superado, observa que há uma profunda diferença entre o
sentimento de solidão e desamparo ligado às ansiedades psicóticas, em que o
narcisismo se estrutura, e o sentimento de solidão ligado às ansiedades
depressivas. No primeiro, as vivências de desintegração predominam. No
segundo, há uma vivência de integração com toda a dor mental inerente a esse
processo.
Destaca, ainda, o papel da pulsão de vida na busca de relações de objeto
sadias, impulsionando a pessoa a procurar análise, uma oportunidade de
encontrar, na relação com o analista, as condições de vínculo necessárias para
a aquisição de recursos, os quais possibilitem conter o ódio, a inveja, a dor, o
desamparo de ser só e precisar do outro para amar, compartilhar e crescer.
Ou como destaca Freud (citado por Green, 1998): “Na época em que a
satisfação sexual estava ligada à absorção dos alimentos, a pulsão
encontrava seu objeto fora, na sucção do seio da mãe. Este objeto foi
posteriormente perdido, talvez precisamente no momento em que a criança se
tornou capaz de ver em seu conjunto a pessoa a quem pertence órgão que lhe
proporciona satisfação. A pulsão torna-se a partir de então auto-erótica...”
(p.124)
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Portanto, não estou trabalhando com o narcisismo primário como
anobjetal. Não vejo como isso seja possível. Se pensarmos a respeito da teoria
das pulsões de Freud (1980) toda pulsão tem um objeto para sua satisfação, ou
seja, a pulsão tem um destino. Aqui Freud já está falando de uma disposição
às relações de objeto.
Entretanto, André Green (1988) diz que não cabe negar a existência do
narcisismo primário em favor do amor objetal primário. Para Green, o amor
objetal primário, desde o início, marca a vida do bebê. Mas, do ponto de vista
do bebê, o objeto está incluído em sua organização narcisista; ou seja, ele é
incluído, como postulou Winnicott, descrevendo-o como objeto subjetivo do
bebê; ou, como denomina Kohut, self-objeto. Portanto, em sua opinião há uma
confusão, um equívoco. Alega tratar-se de “duas visões complementares
tomadas de dois pontos de vista diferentes” (p.52), uma monista e outra
dualista, proveniente de um terceiro observador, que está fora de relação mãe-
bebê.
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Penso que esta discussão é muito importante e não me parece sensato
excluirmos o conceito de narcisismo primário, se partirmos do ponto de vista
de que toda experiência, seja ela interna ou externa, comporta de um lado
elementos externos reais e de outro, o produto de fantasias. Desta forma,
temos uma díade inseparável, mãe-bebê, seja como objeto interno ou externo.
Essas inter-relações ocorrem através de inúmeros mecanismos de intercâmbio,
como projeções, introjeções, identificações e identificações projetivas, e vão
formando a base do desenvolvimento emocional primitivo.
Quando Winnicott (1978) diz que não há bebê sem mãe, penso que ele
se refere a algo assinalado por Bion (1973) e Green (1988, p.63): que a
verdadeira unidade do homem é o casal. O narcisismo, contemporâneo a essas
primeiras relações de objeto interno e externo, é, portanto, estruturante do
aparelho psíquico. É como muito bem postula Winnicott (1951) com a noção
de objeto transicional: a mãe é e não é o bebê, está dentro e fora de seu campo
subjetivo, e é preciso um tempo de ‘continuidade do ser’ para manutenção
dessa ilusão de unidade, capaz de criar uma confiança e o sentimento de
existência que contêm e sustentam o bebê, até que ele possa se sentir só na
presença da mãe (Winnicott, 1988). Assim, aos poucos, ele inicia um
movimento que vai da dependência a independência (Winnicott, 1963) e passa
a ser capaz de tolerar a dor e a frustração que toda experiência de separação
envolve.
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seja na relação com o outro ou conosco. Há sempre uma desorganização no
contato com o outro, a unidade é buscada e não alcançada e isso desperta
emoções violentas, decepções profundas. Não podemos nos esquecer de que o
bebê, quando nasce, precisa enfrentar ansiedades paranóides próprias da
posição esquizo-paranóide em decorrência da pulsão de morte (Klein, 1982).
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mãe - sentido como impossível - em decorrência, seja de um trauma nas
primeiras relações de objetos, seja de uma hostilidade básica, inata às relações
de objetos. É visto como libidinal quando há uma idealização de partes do
self, através de fantasias onipotentes, as quais buscam supervalorizar o amor e
qualidades do próprio self, e, por outro lado, uma busca em retê-los.
André Green (1988) também pensa o narcisismo dentro das teorias das
pulsões de vida e morte; entretanto, sua ênfase recai na forma como a pessoa
reage ao impacto das frustrações e decepções na relação com o casal parental.
Ou seja, Green enfatiza o trauma como motivador do refluxo narcisista e
quando a pessoa não dá conta de sustentar a ilusão da megalomania, através de
fantasias onipotentes e idealizadas do eu, ela passa a atacar os objetos
traumatizantes, internos e externos. Isso seria uma reação e tentativa de
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neutralização através das pulsões destrutivas. Entende que, neste sentido, o
narcisismo passaria de positivo a negativo.
Neste sentido, concordo com Segal: vejo o narcisismo como uma defesa
sempre destrutiva. A pessoa ataca a relação com o objeto externo, volta a
libido para si mesma e cria, como postula Britton (2003), uma relação especial
entre o self e o ego ideal. Entretanto, o ataque não tem como alvo apenas as
relações objetais externas, mas também internas. Quando a pessoa ataca seus
valores e recursos internos ela se empobrece e aferra-se a um delírio
onipotente e grandioso que não têm consistência, não se mantém na realidade;
a pessoa acaba por desqualificar-se ainda mais, alimentando, dessa forma, um
ciclo vicioso maníaco-depressivo.
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plenamente com Bion quanto a ênfase posta na relação entre a capacidade de
tolerância do bebê à frustração e a capacidade de rêverie materno.
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Para o acaso das cousas... e, à saída,
Leva uma crença vaga, indefinida,
De achar o Ideal nalguma encruzilhada...
Caso Clínico
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de desconforto, o qual descreve como um estado de torpor, de confusão
generalizada, de paralisia, impedindo-o de produzir no trabalho e de dormir.
Ele me diz: “Entendo o que está falando, mas percebo que há uma
mudança no seu entendimento. Inicialmente parecia que achava que essa
busca insistente era devido a não encontrar, em uma só, o que eu procurava,
uma relação de amor e encantamento sexual que é algo tão importante para
mim. Agora, parece que você está entendendo essa busca, não como uma
busca, mas como um desespero para escapar do tédio e da solidão que sinto.”
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Passamos a trabalhar esse aspecto intensamente, fazemos várias
correlações com sua necessidade de idealização de uma relação perfeita, total,
em que sinto um forte traço de uma depressão suicida. Passada uma semana, o
paciente pede-me uma sessão extra, devido a uma vivência intensa, que
deixou-o muito confuso e assustado.
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Percebo a fantasia idealizada de uma relação de amor perfeita,
completa, que contém tudo, sua atração fatal no sentido de ir ao encontro
dessa fantasia e, ao mesmo tempo, seu medo e esforço para não se entregar.
Lembro que essa era uma sessão extra. Sinto uma grande tensão, o clima é
pesado, angustiante. Consigo dizer-lhe algo assim:
A- Pular, e congelar esse amor, parar tudo ali; para, quem sabe,
conseguir manter vivo o que sente, quando, na verdade, o
calendário passa; assim como a vida, cheia de desencontros e
frustrações. Mas veja, ontem você não pulou, você me pediu
uma sessão extra, buscou esse encontro vivo para pensar
comigo, está podendo pular para fora dessa relação suicida.
Não acaba com tudo, não congela tudo. Você se sente só,
angustiado e, ao mesmo tempo, podendo depender de mim.
Enquanto fala, percebo que não se dá conta de que fala de uma depressão que
é sua. Penso nessa depressão com angústia porque sinto o risco. Temo que ele
possa não suportar e suicidar-se. Então, digo algo mais ou menos assim:
A- Veja, você se sente melhor quando vem para a análise, tanto que
me pede uma sessão extra. Entretanto, sente que não é suficiente,
mas reluta em aumentar o número de vezes que vem aqui. Como a
C, por outro lado, que não quer se tratar, você busca se afastar da
sua depressão, fazendo sexo com tantas mulheres, procurando
contatos virtuais, mas acaba sentindo-se só. No fundo sinto que
tem muito medo de não suportar enfrentar sua depressão aqui
comigo e acabar com a sua vida. Mas você mesmo pode perceber
que corre grande risco quando imagina uma relação perfeita,
numa outra vida, e se dá conta de que está compactuando com a
morte.
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Permanecemos em silêncio um pouco. Sinto um silêncio pesado, me
sinto muito cansada. Despede-se de mim e enquanto aperta minha
mão, diz: “Obrigado”.
Comentários
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A diminuição do sentimento de solidão para Klein se apóia na
possibilidade de internalização de um objeto bom no ego, possibilitando uma
identificação e desta forma, fortalecendo a confiança no objeto e no self.
Como conseqüência, há uma diminuição dos impulsos destrutivos e da
severidade do superego. Ela enfatiza a força inata do ego neste processo.
Entretanto, como assinalei, a capacidade de contenção, pelo analista (Bion), da
violência do paciente, assim como de sua capacidade para pensar em meio ao
bombardeio de identificações projetivas, se mantendo vivo, presente e em
uníssono (Ferro, 1998) com o paciente, favorece uma identificação com o
analista, fortalecendo o ego do paciente.
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Sua análise caminha. A confiança em mim como analista, com quem
pode vincular-se e entregar-se, ganha espaço dia a dia, fruto de um trabalho
cuidadoso e firme para ajudá-lo a suportar a solidão, o tédio e o desamparo,
aos quais a diminuição dessas defesas o expõe, transformando-os em
dependência madura, que inclui o prazer e a dor de ser só e, ao mesmo tempo,
dependente.
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de que “es sólo y al mismo tiempo dependiente” (Bion), y que precisa del otro
para amar, compartir y crecer.
Resalta que aunque el sentimiento de soledad nunca sea superado, hay
una profunda diferencia entre el sentimiento de soledad y desamparo, ligado a
las ansiedades psicóticas, en que el narcisismo se estructura; y el sentimiento
de soledad ligado a las ansiedades depresivas. En el primero, las vivencias de
desintegración predominan. En el segundo, existe una vivencia de integración
con todo el dolor mental inherente a ese proceso.
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