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TÍTULO:Os filhos de Wang Lung

AUTOR: BUCK, Pearl S.


GÉNERO: Romance
CLASSIFICAÇÃO: Literatura norte-americana– Século XX – Ficção
EDITORA: Livros do Brasil
Lisboa, 19**
COLECÇÃO: Dois Mundos, nº 17
DIGITALIZADO E CORRIGIDO POR:
Aventino de Jesus Teixeira Gonçalves
Maio de 2003
***
Esta obra faz parte de uma trilogia constituída por:
1. Terra Bendita
1. Os filhos de Wang Lung
2. Casa Dividida
Nota do digitalizador

Titulo da edição ordinal norte-anericana: SONS

CAPA DE

BERNARDO MARQUES

Direitos reservados pela legislação em vigor


COLECÇÃO DOIS MUNDOS

PEARL S. DUCK

OS FILHOS DE WANG
LUNG
TRADUÇÃO DO DR. JOSÉ MARINHO
EDIÇÃO «LIVROS DO BRASIL» LISBOA Bua dos Caetanos, 22
CAPÍTULO I
Wang Lung estava a morrer. Estava a morrer na sua pequenina e
sombria casa de adobe no meio dos campos, no quarto onde, rapaz ainda,
dormira, na mesma cama em que se deitara na noite de noivado. O quarto não
valia sequer uma das cozinhas da Grande Casa da cidade, que era também
sua, onde os seus filhos e os destes presentemente habitavam. Mas já que
tinha de morrer, agradava-lhe morrer aqui, no meio das suas terras, neste
compartimento com a mesa e as cadeiras de madeira por trabalhar, sob
aqueles cortinados de algodão.

Porque Wang Lung sabia que o tempo de morrer chegara, e olhava


os dois filhos que se encontravam à sua cabeceira; sabia que lhe esperavam a
morte, e que era a hora. Tinham mandado vir bons médicos da cidade, e estes
chegaram com as suas agulhas e as suas ervas, tomaram-lhe o pulso,
longamente, examinaram-lhe a língua, mas, por fim, tornaram a emalar os
seus instrumentos médicos para partirem e disseram:

É a idade, chegou ao termo da vida e ninguém pode desviar-lhe o


destino.

Depois Wang Lung ouviu cochicharem um com o outro os seus dois


filhos, que tinham vindo para ficarem com ele naquela casa de adobe até à
hora da sua morte; julgavam-no mergulhado no sono, mas ele ouvia-os, e
diziam, olhando-se um ao outro com gravidade:

É preciso mandarmos alguém para o Sul, a prevenir o outro filho,


nosso irmão.

E o segundo filho respondeu:

Sim, é preciso mandar imediatamente, porque quem sabe por onde


ele andará vagabundeando com aquele general ao serviço de quem se
encontra?

Ao ouvir isso, Wang Lung compreendeu que tomavam disposições


para os seus funerais.
Ao lado da cama, erguia-se o caixão que os filhos lhe tinham
comprado e posto ali para seu sossego. Era um enorme esquife, talhado
num grande tronco de pau ferro, e que enchia todo o quartozito, de tal
maneira que quem quer que andasse de cá para lá tinha de contorná-lo
e de se apertar muito contra ele. Aquele caixão custara perto de
seiscentas peças de prata, mas o próprio Wang Segundo não olhava à
despesa, embora habitualmente o dinheiro lhe passasse tão lentamente
pelos dedos que raras vezes saía deles tanto quanto entrara. Mas os
filhos não lamentavam o dinheiro gasto, porque Wang Lung tirava
grande consolo do belo esquife, e a cada momento, quando era capaz
disso, estendia a sua cansada e amarelecida mão para acariciar a
madeira negra e polida. Por dentro desse, estava outro esquife, cortado
e aplainado, de pau cetim amarelo, e os dois ajustavam-se um ao outro
como a alma do homem ao seu corpo. E era assim um esquife capaz de
consolar o mais exigente.

Mas, apesar de tudo, Wang Lung não se deixava deslizar na


morte tão facilmente como o seu velho pai. Já bem uma dezena de
vezes, é certo, estivera a sua alma para se pôr a caminho, mas de cada
uma das vezes o seu velho corpo robusto revoltava-se por ter de ficar
ao abandono, acabado o seu tempo, e quando a luta entre ambos
começava, Wang Lung ficava aterrorizado pela guerra que sentia em si.
Fora sempre mais um corpo que uma alma, nos seus tempos, homem
sólido e apaixonado, e era-lhe impossível abandonar o corpo como
quem não abandona nada. Ao sentir a alma escapar-se-lhe, tinha medo,
e lamentava-se em voz rouca e ofegante, tão inarticulada como os
gritos de uma criança.

De cada vez que assim se lamentava, a sua jovem concubina


Flor de Pereira, que permanecia dia e noite à cabeceira, segurava-lhe na
velha mão, para acalmá-lo, e os dois filhos apressavam-se a consolá-lo,
descrevendo-lhe os funerais que lhe destinavam, e contando-lhe
incessantemente o que projectavam fazer. O filho mais velho, vestido de
cetim, inclinava a alta estatura para o velhote encarquilhado, e gritava-
lhe aos ouvidos:

Teremos um cortejo de mais de meia légua de comprido, e


nenhum de nós faltará a chorar-vos, as vossas mulheres a chorar e a
lamentar-se como é seu dever, e os vossos filhos e os filhos de vossos
filhos, em trajos de luto de cânhamo branco, e toda a gente da aldeia e
os feitores das vossas propriedades! E a cadeirinha da vossa alma irá à
frente e atrás o retrato que mandámos fazer de vós por um artista, e
depois virá o vosso grande e esplêndido ataúde, no qual descansareis
como um imperador, nos novos trajos que vos mandámos preparar, e
alugámos peças de brocado de escarlate e ouro para estender por cima
do esquife, enquanto o conduzirem pelas ruas da cidade, aos olhos de
todos!
Gritava desta maneira a ponto de ficar com as faces purpúreas e de
perder a respiração, porque era muito gordo, e quando se levantava para
respirar mais à vontade, o segundo filho de Wang Lung prosseguia a descrição.
Era um homenzinho amarelo e astuto, que falava numa vozita fina, nasalada e
monótona, dizendo:

Virão também os padres, que cantarão para a vossa alma as alegrias


do Paraíso e virão todas as carpideiras de aluguer e os carregadores que
conduzirão todas as coisas que preparámos para usardes quando fordes uma
sombra. Temos prontas no grande vestíbulo duas casas de papel e de bambu,
uma como esta e a outra como a casa da cidade, e dentro há mobília, criados e
escravas, um palanquim e um cavalo, e tudo aquilo de que precisais. São em
papel de todas as cores e tão bem feitas que quando as tivermos queimado no
vosso túmulo e as tivermos mandado ter convosco, posso dar-vos a minha
palavra de honra de que não haverá uma alma tão bem servida como a vossa,
e todas essas coisas vão ser levadas no cortejo aos olhos de todos, e
esperamos que estará bom tempo para os funerais!

Então o velho ficou muito contente e murmurou:

Suponho... que toda a cidade... virá assistir!

Toda a cidade, por certo!gritou muito alto o filho mais velho, com
largo gesto. E ao longo das ruas toda essa gente abrirá alas, pois nunca se viu
enterro assim desde o tempo em que a célebre Casa de Hwang se encontrava
ainda em todo o seu esplendor.

Ah!...disse Wang Lung.

E sentiu-se ainda tão reconfortado dessa vez que se esqueceu de


morrer e caiu num súbito e leve torpor.

Mas esse conforto não podia durar sempre, e uma hora chegou, com
o primeiro alvor do sexto dia, em que a morte do velho se cumpriu. Os dois
filhos estavam cansados de tanto esperar, porque não estavam habituados à
falta de comodidades de uma casa exígua como aquela, em que nunca tinham
tornado a viver desde a juventude, e, extenuados pela interminável morte do
pai, tinham ido deitar-se no pequeno pátio interior que ele outrora construíra,
na época em que tomara a sua primeira concubina, Lotus, época em que se
encontrava ainda em todo o vigor da idade. Ao retirar-se, no princípio da noite,
avisaram Flor de Pereira para que os chamasse, se o pai recomeçasse de-
repente a morrer outra vez, e foram descansar um pouco. Naquele leito que
Wang Lung outrora achara tão belo e onde amara tão apaixonadamente,
repousava agora o filho mais velho e lamentava-se de que a cama fosse dura e
tão desengonçada por já velha, e lamentava-se do quarto ser escuro e abafado
em plena Primavera. Mas uma vez que se deitou, adormeceu com sono pesado
e ruidoso, embara-
çando-se-lhe o curto sopro na gorja farta. Quanto a Wang
Segundo, estendeu-se numa camilha de bambu que se encontrava
encostada à parede e adormeceu com um sono leve e furtivo, como o
sono de um gato.

Mas Flor de Pereira não dormia. Ficou acordada toda a noite,


imóvel e muda num pequeno tamborete de bambu tão baixo que,
sentada à cabeceira da cama, tinha o rosto mesmo junto do do velho,
cuja seca mão ressequida apertava nas suas mãos meigas. Era tão nova
que podia ser filha de Wang Lung; mas apesar disso não o parecia
porque tinha no rosto um ar singular de resignação e tudo quanto fazia
era feito com a paciência mais perfeita, mais cultivada, o que não é
próprio da juventude. E assim ficou sentada ao lado do velhote que fora
tão bom para ela e mais semelhante a um pai do que qualquer outro
que ela jamais tivesse conhecido. Não chorava. Olhava-lhe
continuamente o rosto, horas seguidas, enquanto ele dormia com sono
tão calmo e quase tão profundo como a morte.

De repente, naquele momento em que a noite é mais negra e


que precede de pouco tempo o surgir da aurora, Wang Lung abriu os
olhos, e sentiu-se tão fraco que lhe pareceu que a alma já lhe
abandonara o corpo. Voltando um pouco os olhos, viu a sua Flor de
Pereira ali sentada. Sentia-se tão fraco que começava a sentir medo, e
disse, suspirando, numa voz que se lhe entaramelava na garganta e lhe
hesitava entre os dentes:

Filha... será a... morte?

Ela viu-lhe o terror e respondeu-lhe calmamente e em voz alta


e firme:

Não, não, meu senhor... está melhor, não vai morrer!

Tens... a certeza?sussurrou ele de novo, reconfortado pela


naturalidade do tom da voz, e fixando-a com os olhos vítreos.

Então Flor de Pereira, vendo o que tinha de acontecer, sentiu o


coração começar a bater forte e rapidamente, levantou-se, inclinou-se
para ele e disse-lhe com a sua mesma voz meiga habitual:

Enganei-vos alguma vez, meu senhor? Veja, a sua mão que


seguro na minha está tão quente e tão forte, que ides dentro de
instantes sentir-vos melhor. Estais tão bem, meu senhor! Não precisais
de ter medo... não, nada receeis... ides melhorar...
Acalmava-o assim com perseverança, repetindo-lhe sem
cessar que estava bem e segurando-lhe a mão no calor das suas, e ele
sorria-lhe do leito, com os olhos vagos e fixos, os lábios cerrados, e os
ouvidos atentos à voz perseverante. Depois, quando viu que ele ia
morrer, inclinou-se ainda mais e, num tom mais alto, exclamou em voz
forte e nítida:

Vai melhor... vai melhor! Não é a morte, meu senhor... não é a


morte!

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Por este modo o reconfortava e no mesmo momento em que, ao som
da meiga voz, ele concitava as últimas pulsações, morreu. Mas não era homem
para morrer sossegadamente. Embora reconfortado, quando a alma se
arrancou dele, o coração no extremo arranque deu-lhe como que um grande
salto de cólera e os braços e as pernas agitaram-se-lhe tão violentamente que
a sua velha mão ossuda foi bater em plena face de Flor de Pereira, inclinada
para ele. A mão estalou-lhe em plena face numa bofetada tão violenta que ela
levou a mão ao rosto e murmurou:

A única bofetada que o meu senhor me deu!

Mas ele não lhe deu resposta. Então ela baixou os olhos e viu-o
estendido de través. Enquanto o olhava, exalou ele o último suspiro e não se
mexeu mais. com gesto ágil e discreto, ela compôs-lhe os velhos membros e
cobriu-o honestamente com os cobertores. Fechou com os seus dedos ternos
os olhos esbogalhados que já não viam, e contemplou por um instante o
sorriso, ainda subsistente no rosto, que lhe viera quando ela lhe dissera que
não morria.

Depois de tudo acabado, compreendeu que devia ir avisar os filhos.


Ficou ainda sentada no tamborete, mas sabia que devia avisá-los. Agarrou na
mão que lhe batera, inclinou a cabeça e chorou lágrimas silenciosas, enquanto
estava ainda sozinha. Tinha um coração singular, triste de sua mesma
natureza, e não podia nunca consultá-lo chorando, como as outras mulheres,
porque as lágrimas a ela não traziam conforto. Eis porque não permaneceu por
muito tempo sentada; levantou-se e foi avisar os dois irmãos. Disse-lhes:

Não precisam de se apressar, porque já morreu.

Mas eles corresponderam ao seu apelo e apressaram-se a sair, o


mais velho com a cabaia de cetim toda enrugada pelo sono e com os cabelos
despenteados. Foram logo para junto do pai. Ele descansava na posição em
que Flor de Pereira o estendera, e os dois filhos contemplaram-no como se o
receassem agora. Depois, o mais velho disse, cochichando como se houvesse
no quarto um estranho:

Morreu facilmente ou dificilmente?

E Flor de Pereira respondeu no seu tom calmo:

Morreu sem dar conta que morria.

Depois o segundo filho observou:

Parece dormir como se não estivesse morto.

Quando os dois filhos contemplaram por um momento o seu defunto


pai, sentiram um medo confuso e vago, porque ele jazia ali tão impotente sob
o seu olhar; Flor de Pereira adivinhou-lhes o medo e disse-lhes meigamente:
Há ainda muito que fazer por ele.

Então os dois homens tiveram um sobressalto e ficaram


muito contentes de que lhes fizessem recordar coisas da vida, e o
mais velho apressou-se a compor o vestuário, passou a mão pelo rosto e disse,
numa voz surda:

É verdade... é verdade... temos de tratar dos funerais...

E apressaram-se a sair, contentes por se verem fora daquela casa


onde jazia o cadáver do pai.
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CAPÍTULO II

ORA, antes de morrer, Wang Lung tinha um dia ordenado a


seus filhos que lhe deixassem o cadáver no caixão na casa de adobe até
ao momento de ser dado à terra. Mas, quando os filhos chegaram ao
momento dos preparativos para os funerais, consideraram muito
fastidioso ir e vir tão longe da casa da cidade e, pensando nos quarenta
e nove dias que deviam passar antes da data do enterro, pareceu-lhes
impossível obedecer ao pai, agora que ele estava morto. E de facto era
para eles, de muitas maneiras, uma coisa desagradabilíssima, porque
os sacerdotes do templo da cidade se queixavam por terem de ir tão
longe para cantar, e até os homens que vieram lavar e vestir o corpo de
Wang Lung, pôr-lhe o seu trajo de funeral, de seda, e metê-lo no caixão
e velar este, reclamavam tarifa excepcional, pedindo tal salário que
Wang Segundo ficou aterrado.

Os dois irmãos entreolharam-se então, por sobre o esquife do


pai, e pensavam ambos a mesma coisa: depois de morto, o velho já
nada podia dizer. Mandaram portanto vir os rendeiros e ordenaram-lhes
que levassem Wang Lung para os compartimentos da casa da cidade
onde ele habitara e Flor de Pereira, apesar do seu protesto, não
conseguiu convencê-los. Vendo a inutilidade das suas palavras, disse-
lhes calmamente:

Eu cuidava que aquela pobre inocente e eu nunca mais


voltaríamos à casa da cidade, mas se ele vai para lá, temos de ir com
ele.

E levou a pobre idiota, que era a filha mais velha de Wang


Lung, mulher já de certa idade mas a mesma criança néscia que fora a
vida inteira; quando o esquife de Wang Lung avançou pelos caminhos
fora, elas seguiam atrás dele, e a inocente ria porque estava um lindo e
tépido dia de Primavera e o Sol brilhava com todo o esplendor.

E assim Flor de Pereira regressou à propriedade onde outrora

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habitara com Wang Lung vivo, e ao quarto onde Wang Lung a
conduzira, certo dia em que o seu sangue corria ardente e forte apesar da
velhice e em que ele se sentia só no meio da sua Grande Casa. Mas o pátio
estava agora silencioso e em cada uma das portas da Grande Casa os sinais de
felicidade em papel vermelho tinham sido rasgados para mostrar que a morte
se achava ali; em cada um dos batentes da grande porta que abria para a rua
tinham colado papel branco, em sinal de morte. E Flor de Pereira vivia e
deitava-se ao lado do morto.

Um dia em que ela estava assim de vela, mostrou-se uma criada à


porta do salão. Fora encarregada de dizer, por Lotus, primeira concubina de
Wang Lung, que esta vinha apresentar as suas homenagens ao defunto senhor.
Flor de Pereira devia enviar-lhe em resposta algumas palavras de polidez e foi
o que fez, posto detestasse Lotus, que fora sua antiga senhora, e levantou-se e
ficou à espera, substituindo ora uma ora outra das velas que ardiam em torno
do caixão.

Era a primeira vez que Flor de Pereira tornava a ver Lotus desde o
dia em que esta, sabendo o que Wang Lung fizera, lhe mandou dizer que
desejava nunca mais tornar a vê-la, porque estava muito zangada por ele ter
tomado entre o seu pessoal uma rapariga escrava desde a infância. Ficara tão
cheia de ciúme e tão zangada que fingia até ignorar se Flor de Pereira estava
viva ou morta. Mas a verdade é que ela se sentia com curiosidade, e, agora
que Wang Lung morrera, tinha dito a Cuckoo, sua criada:

Agora, visto que o velhote morreu, já não tenho que querer mal a
essa rapariga e vou ver como ela está agora.

E assim, cheia de curiosidade, se arrastara para fora dos seus


aposentos, apoiada às suas escravas, escolhendo uma hora em que os padres
não estivessem a cantar junto do caixão.

Assim, chegou ao compartimento em que Flor de Pereira a esperava;


tinha trazido, por conveniência, velas e incenso e ordenou a uma das suas
escravas que as acendesse na frente do caixão. Mas, enquanto a escrava o
fazia, Lotus não conseguia desviar o olhar de Flor de Pereira e abria grandes
olhos ávidos para ver se ela mudara e a que ponto parecia velha. Sim, embora
Lotus trouxesse sapatos e vestido de luto, o seu rosto não se mostrava de
modo algum aflito e gritou a Flor de Pereira:

Ora, continuas o mesmo ser insignificante e pálido, não mudaste,


nem sei que atractivo ele pôde jamais achar em ti!

Gabava-se de Flor de Pereira ser tão pequena e insignificante e sem


nenhuma beleza corporal.

Depois, Flor de Pereira ficou de pé junto do caixão, de cabeça baixa


e sem nada dizer, mas uma tal má vontade encheu-lhe o coração, de tal modo
que em si própria se atemorizou e se sentiu
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humilhada ao saber que podia ser tão má e odiar àquele ponto
a sua antiga senhora. Mas Lotus não era capaz de manter firme, nem
mesmo no ódio, a sua atenção enfraquecida pela velhice, e depois de se
ter fartado de fitar Flor de Pereira, olhou o caixão e murmurou:

Palavra que isto deve custar um bom par de vinténs aos filhos!

E erguendo-se pesadamente foi tactear a madeira, para


verificar a sua qualidade.

Mas Flor de Pereira, revoltada ao ver aqueles dedos vulgares


tocarem no objecto que ela tão enternecidamente velava, exclamou de
repente, com vivacidade:

Não lhe toque!

E juntando as pequeninas mãos, mordeu o lábio inferior.


Perante o que, Lotus se pôs a rir e exclamou:

Pois quê... acontecerá acaso que tu te sintas ainda por ele?


Teve uma risada de falso desprezo, depois sentou-se um

momento e ficou-se a ver arder e crepitar as velas, e cansada


em. breve dessa ocupação, levantou-se e saiu para o pátio, na intenção
de se retirar. Mas, como passeasse em redor um olhar curioso, avistou a
pobre inocente ali sentada ao Sol e clamou:

Olha, então aquela ainda vive?

Ao ouvir isto, Flor de Pereira foi sentar-se junto da idiota, e um


desprezo lhe encheu de novo o coração, tamanho que ela mal podia
conter-se; depois da partida de Lotus, foi buscar um pedaço de pano
para limpar com ele por várias vezes o sítio do caixão de Wang Lung
onde Lotus pusera a mão, e deu à inocente um bolo. A infeliz pegou
nele com tanto mais prazer quanto é certo que não o esperava e
comeu-o com gritos de alegria. Flor de Pereira considerou-a tristemente
durante um minuto e disse por fim, suspirando:

És tudo quanto me resta do único homem que alguma vez


tenha sido bom para mim ou que em mim tenha visto mais do que uma
escrava.

Mas a inocente contentou-se em comer o seu bolo porque ela


não falava nem compreendia quando lhe dirigiam a palavra.
Flor de Pereira passou assim os dias de vela até ao funeral, e
foram dias muito silenciosos nos átrios, excepto nas horas em que os
pardais cantavam, porque os próprios filhos de Wang Lung só vinham
até junto dele se algum dever os coagia a tal. Toda a gente em casa se
sentia um pouco mal disposta e atemorizada, por causa dos espíritos
terrestres do defunto, e visto que Wang Lung fora homem tão robusto e
enérgico, não podia esperar-se que os sete espíritos do seu corpo o
deixassem facilmente. E, com efeito, a casa parecia cheia de novos e
estranhos ruídos, e as criadas gritavam umas para as outras que
sentiam bafos gelados envol-

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vê-las de noite na cama e puxar-lhes pelos cabelos, ou ouviam
arranhar de modo suspeito nas janelas, ou uma panela era de súbito arrancada
das mãos da cozinheira, ou uma taça escapava-se da mão de uma escrava que
se preparava para servir à mesa.

Quando os filhos e as mulheres destes ouviam tais coisas das


criadas, fingiam sorrir disso como de produtos de estupidez e de ignorância,
mas também eles se encontravam muito mal dispostos, e quando Lotus ouviu
essas histórias exclamou:

Ele foi sempre um velho teimoso!

Mas Cuckoo disse-lhe:

É preciso deixarmos os outros procederem como lhes apetece e falar


bem deles enquanto não são dados à sepultura!

Flor de Pereira não tinha medo, e vivia agora sozinha com Wang
Lung como fizera quando ele vivia. Mas quando ela via chegar os padres com
suas túnicas amarelas, levantava-se e retirava-se para o quarto e aí ficava a
ouvir o seu lúgubre salmodiar e lento rufar dos seus tambores.

Pouco a pouco, os sete espíritos do morto foram libertados, e de sete


em sete dias o primeiro sacerdote ia ter com os filhos de Wang Lung e dizia-
lhes:

Mais outro espírito o deixou.

E os filhos recompensavam-no, dando-lhe dinheiro de cada vez que


ele vinha dizê-lo.

Assim se passaram os dias, sete vezes sete, e o dia do funeral


aproximava-se.

Toda a cidade sabia agora o dia que o geomante fixara para o funeral
de um homem de tanta consideração como Wang Lung, e nesse dia de fim de
Primavera e proximidades do Estio as mães, que não queriam chegar tarde ao
espectáculo, insistiam mais com os filhos para acabarem depressa a refeição
da manhã; os homens que trabalhavam nos campos pararam nesse dia, e nas
lojas, empregados e aprendizes entenderam-se de maneira a poderem assistir
ao funeral e ver passar o cortejo. Pois toda a gente na região conhecia Wang
Lung, sabia que ele fora outrora um pobre lavrador como qualquer outro, que
se tornara rico e fundara uma casa e deixava os filhos ricos. Todos os pobres
aspiravam a ver o enterro porque era coisa digna de meditação que um
homem tão pobre como eles próprios tivesse morrido rico e era um motivo de
secreta esperança para todos os pobres. Todos os ricos queriam ver o
espectáculo porque sabiam que os filhos de Wang Lung eram ricos, e eis
porque todos os ricos consideravam como um dever apresentar os seus
respeitos àquele importante defunto.
Mas até mesmo na casa de Wang Lung havia nesse dia confusão e
barulho, porque não era fácil pôr em ordem um tão grande enterro, e Wang
Primeiro perdia a cabeça diante de tudo o que ele tinha a fazer. E como era o
chefe da casa, via-se

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obrigado a olhar por tudo, pensar em centenas de pessoas e no luto
apropriado a cada um conforme a sua dignidade, e no aluguer das cadeirinhas
para as mulheres e as crianças. Andava de cabeça perdida mas, apesar disso,
sentia-se orgulhoso da sua importância e do facto de todos correrem para ele e
lhe perguntarem com grandes vozes o que deveria fazer-se na circunstância tal
ou tal. E sentia-se tão agitado que o suor lhe escorria pela cara como em pleno
Verão. O seu olhar errante caiu no segundo irmão, que se mantinha
serenamente de lado. Aquele sangue-frio foi o pretexto da expansão da cólera
do Wang Mais Velho, que exclamou:

Deixas-me tudo para mim e nem sequer sabes providenciar para que
tua mulher e teus filhos se vistam e se apresentem numa atitude decente.

Ao que Wang Segundo respondeu com dissimulada ironia e muito


calmo:

Porque hei-de eu fazer seja o que for, quando tu próprio não estás
contente com o que fazes? Sabemos muito bem, eu e minha mulher, que nada
que se faça te agradará a ti ou a tua esposa, e desejamos, antes de mais nada,
agradar-vos!

E assim, até mesmo no dia do funeral do pai, os filhos de Wang Lung


disputavam, mas era em parte porque se sentiam ambos intimamente
atormentados por o outro irmão não ter ainda chegado e cada um deles
responsabilizava o outro por este atraso: o filho mais velho por o segundo
irmão não ter dado ao mensageiro a remuneração bastante, se este tivesse de
efectuar uma viagem longa para encontrar aquele que procurava, e o segundo
por o seu irmão mais novo demorar um dia ou dois a mandar o mensageiro.

Só havia nesse dia em toda a casa uma pessoa serena, e essa era
Flor de Pereira. De luto, com um vestido de cânhamo branco que só o de Lotus
suplantava, mantinha-se sossegadamente sentada à espera, ao lado de Wang
Lung. Vestira-se cedo e tinha também vestido de luto a idiota, mas aquela
pobre criatura não tinha ideia alguma do que isso significava e ria
continuamente e o vestido inabitual incomodava-a um pouco, a ponto de ela
fazer esforços para se livrar dele. Mas Flor de Pereira deu-lhe a comer um bolo
e arranjou um pedaço de pano vermelho para ela brincar, acabando assim por
acalmá-la.

Quanto a Lotus, nunca estivera numa tal aflição como nesse dia,
porque engordara de tal modo que não podia sentar-se num palanquim vulgar,
e experimentara um palanquim após outro, à medida que lhos traziam, e
gritava que nenhum servia e que não sabia por que motivo faziam agora
palanquins tão pequenos e tão estreitos, acabando por chorar. E o receio de
que lhe fosse impossível tomar parte no cortejo punha-a fora de si. Quando viu
a idiota

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vestida de luto, extravasou a sua cólera sobre ela e queixou-se
ruidosamente a Wang Lung:

Então... aquela pobre criatura de Deus vai também?

E clamou que a idiota não devia mostrar-se num tal dia de cerimónia
pública.

Mas Flor de Pereira disse, num tom suave e positivo:

Não, o meu senhor advertiu-me de que nunca devia abandonar esta


pobre menina; foi a ordem que ele me deu. Eu sei fazê-la calar porque ela dá-
me ouvidos e está acostumada a mim e nós não incomodaremos ninguém.

O Wang Mais Velho deixou passar o incidente porque ele estava


demasiado aflito pelas inúmeras coisas que tinha a fazer, e ainda pela ideia de
que centenas de pessoas esperavam que a cerimónia começasse. Ao verem a
sua inquietação, os condutores de palanquins aproveitaram a ocasião para lhe
pedirem mais dinheiro do que o devido; os homens que conduziam o caixão
queixaram-se de que este era muito pesado e de que era muito longe o lugar
da sepultura da família, e os rendeiros e ociosos da cidade espalharam-se
pelos pátios que atravancavam, inúteis e de boca aberta, à espera do
espectáculo. A tudo isso se juntava outra coisa e era que a esposa de Wang
Primeiro o censurava constantemente e se lamentava de que as coisas não
eram bem dirigidas, de maneira que no meio, de tudo isso ele se agitava de
um lugar para outro e suava como poucas vezes, e por mais que gritasse e se
esganiçasse, ninguém lhe dava atenção.

Impossível saber se nesse dia o enterro se realizaria ou não, se não


tivesse ocorrido um acontecimento dos mais oportunos, e foi que Wang
Terceiro chegou de repente à hora do meio-dia. Entrou no último momento e
todos esgazearam os olhos para ver como ele estava, porque estivera longe
durante dez anos e não tinham tornado a vê-lo desde que Wang Lung tomara
para sua concubina Flor de Pereira. Partira nesse dia, num estranho movimento
de cólera, e nunca mais voltara. Esse jovem corpulento partira com ar feroz, de
negras sobrancelhas carregadas, odiando o pai. Voltava agora homem, o mais
forte dos três irmãos, e tão mudado que se não fossem as sobrancelhas negras
como sempre carregadas e a boca ainda amarga, não o teriam reconhecido
quando ele cruzou a porta em grandes passadas.

Vestia uniforme militar, mas não era a farda de um simples soldado.


A túnica e as calças eram de belo pano escuro, na túnica brilhavam botões
dourados e uma espada dourada pendia-lhe do cinturão de couro. Seguiam-no
quatro soldados, de espingarda ao ombro, todos eles belos mocetões, excepto
um que tinha um beiço rachado; mas também este era, como os outros, de
compleição robusta.

Quando aqueles homens franquearam o portão, um silêncio


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caiu ali onde há momentos reinava o tumulto e o barulho; todos os
olhos se voltaram para fixar aquele Wang Terceiro, e todos se calaram ao ver-
lhe o ar feroz e habituado ao comando. com grandes e firmes passadas,
avançou entre a multidão dos rendeiros, dos padres e dos curiosos que se
empurravam de todos os lados, para ver a cerimónia, e proferiu em voz forte:

Onde estão os meus irmãos?

Já tinham corrido a avisar os dois irmãos de que o mais novo


chegara e eles acorreram, sem saber como haviam de recebê-lo, se
respeitosamente, se como a um irmão mais novo que fugira da casa paterna.
Mas quando viram aquele terceiro irmão vestido como estava e os quatro
ferozes soldados imóveis atrás dele, às suas ordens, apressaram-se a mostrar-
se delicados, tanto quanto o teriam sido para um estrangeiro. Inclinaram-se
com um profundo suspiro em virtude da tristeza do dia. Depois, Wang Terceiro
inclinou-se também, como convinha diante dos irmãos mais velhos, olhou para
a direita e para a esquerda e perguntou:

Onde está meu pai?

Então os dois irmãos conduziram-no para o pátio interior onde Wang


Lung repousava no seu caixão, sob as tapeçarias escarlates franjadas a ouro;
Wang Terceiro ordenou aos seus soldados que permanecessem no pátio e
entrou sozinho na sala. Quando Flor de Pereira ouviu o martelar dos sapatos de
couro no lajedo, lançou um rápido olhar para ver quem chegava, e ao verificar
quem era voltou imediatamente o rosto para a parede e assim ficou.

Mas se Wang Terceiro a viu ou notou quem ela era, não o deu a
entender. Inclinou-se diante do caixão, vestiu o trajo de cânhamo que lhe fora
destinado, acendeu duas velas e reclamou novos manjares para os oferecer
em silêncio diante do caixão do pai.

Quando todas essas coisas se aprontaram, prosternou-se por três


vezes até ao chão diante do pai e exclamou como convinha: «Ah, meu pai!»
Mas Flor de Pereira conservou o rosto obstinadamente voltado para a parede e
nem uma só vez se voltou para ver o que se passava.

Quando Wang Terceiro cumpriu o seu dever, levantou-se e disse em


tom vivo e seco:

Procedam à cerimónia se tudo está pronto.

Verificou-se então a coisa mais estranha. Ali onde ainda há pouco ia


tanta confusão e tamanho barulho de pessoas que ruidosamente se
interpelavam, só havia agora silêncio e disposição para obedecer. Era como se
a simples presença de Wang Terceiro e dos seus quatro soldados armados
tivesse gerado o milagre, pois quando os condutores das cadeirinhas voltaram
a dirigir as suas queixas a Wang Mais Velho, o seu tom tornou-se doce e as
palavras razoáveis. Bastou que Wang Terceiro carregasse as sobrancelhas e
fixasse aqueles homens para que as vozes deles se adoçassem,
2-w. l.

17
e quando ele lhes disse: «Façam o seu trabalho e fiquem certos de
que serão tratados nesta casa com justiça»calaram-se e dirigiram-se para as
cadeirinhas como se os soldados e as espingardas dispusessem de um poder
mágico.

Todos tomaram os seus lugares e o grande caixão foi finalmente


conduzido para o átrio. Passaram-se em volta e por baixo dele cordas de
cânhamo, introduziram-se por entre as cordas longas varas semelhantes a
árvores novas e os condutores meteram os ombros debaixo das varas. Havia
também o palanquim destinado ao espírito de Wang Lung e tinham colocado
neste alguns objectos de uso familiar do defunto, o cachimbo em que fumara
durante tantos anos, um dos trajos que ele usara e o retrato que um artista de
aluguer fizera dele durante a sua última doença. Na verdade, o quadro não se
parecia com Wang Lung e era apenas o retrato de um velho sábio qualquer,
mas o artista, apesar de tudo, fizera o melhor possível, pusera-lhe grandes
suíças e carregadas sobrancelhas e muitas rugas, como têm por vezes os
velhos.

E assim se pôs o cortejo em marcha. As mulheres começaram os


seus choros e lamentações, sendo Lotus a mais barulhenta de todas. Ela
arrancara os cabelos e munira-se de um lenço branco novo em folha, que
levava alternadamente a um olho e outro, exclamando por entre grandes
soluços:

Ah, aquele que era o meu sustento partiu... partiu...

Ao longo das ruas, as pessoas comprimiam-se para verem passar


Wang Lung pela última vez, e ao verem Lotus tiveram um murmúrio de
aprovação e disseram:

É uma mulher como deve ser, que mostra o pesar devido pela perda
do homem que amava.

E alguns espantaram-se ao verem uma senhora tão gorda e farta


chorar tanto e com tanto ruído e diziam:

Que rico que ele devia ser para lhe dar tão boa vida a ponto de
engordar assim!

E invejaram a Wang Lung as suas riquezas.

Quanto às mulheres dos filhos de Wang Lung, chorava cada uma


delas segundo a sua maneira de ser. A esposa de Wang Mais Velho chorava
discretamente e tanto quanto devia, tocando de vez em quando os olhos com
o lenço: nem era justo que chorasse tanto como Lotus. A concubina que seu
marido tomara um ou dois anos antes, uma linda rapariguinha gorducha,
observava a esposa do senhor e chorava quando ela chorava. Mas a mulher de
Wang Segundo, uma campónia, esquecia-se de chorar, porque era essa a
primeira vez que ela era assim levada aos ombros de homens, pelas ruas da
cidade, e ver em volta de si aquelas centenas de pessoas empurradas contra
as paredes e amontoadas às portas, impedia-a de chorar: se ela se lembrava
disso e levava a mão aos olhos,

18
olhava por entre os dedos e o espectáculo da multidão distraía-a
outra vez.

Quanto a Flor de Pereira, baixara a cortina do seu palanquim para


que ninguém a visse e chorava em silêncio e sem ruído. Mesmo quando os
grandiosos funerais terminaram e Wang Lung foi dado à sepultura, quando as
casas, os criados e os animais de bambu e de papel foram reduzidos a cinzas,
quando o incenso foi queimado e os filhos do defunto fizeram as suas
reverências e as carpideiras se lamentaram pelo tempo combinado e
receberam o seu salário, quando já ninguém chorava e não havia necessidade
de se chorar, mesmo então Flor de Pereira continuava a chorar na sua maneira
silenciosa.

E ela não quis voltar à casa da cidade. Foi para a casa de adobe e
quando Wang Mais Velho insistiu com ela para regressar com eles à casa da
cidade e habitar com a família, pelo menos até às partilhas, ela abanou a
cabeça e respondeu:

Não, foi aqui que eu vivi com ele mais tempo, foi aqui que fui mais
feliz e ele deixou esta pobre menina confiada à minha guarda. Se voltarmos
para além, ela incomodará a Primeira Esposa, que também não gosta de mim,
e eis porque ficaremos aqui ambas na velha casa do meu senhor. Não devem
preocupar-se connosco. Quando eu precisar de qualquer coisa, pedir-vo-la-ei,
mas só hei-de precisar de muito pouco; viveremos aqui tranquilas com o velho
rendeiro e sua mulher, poderei assim olhar por vossa irmã, e cumprir a ordem
do meu senhor.

bom, então está bem, se assim o desejasdisse Wang Mais Velho,


como que desgostoso.

Mas também ele se sentia contente, porque sua esposa falara contra
a idiota e dissera que uma tal criatura não devia ser vista nos aposentos da
Casa Grande, especialmente onde havia mulheres grávidas, e, agora que Wang
Lung desaparecera, Lotus poderia ser muito mais cruel do que se atrevia a sê-
lo antes, o que ocasionaria aborrecimentos. Deixou, portanto, Flor de Pereira
aqui à sua vontade, e esta pegou na inocente pela mão e levou-a para aquela
casa de adobe onde cuidara de Wang Lung durante a sua velhice. Ali viveu e se
ocupou dela e dali só saía para visitar a sepultura de Wang Lung.

Foi ela só quem, no volver do tempo, o fez bastantes vezes, porque


se Lotus também o fazia era apenas nas raras épocas em que uma viúva deve
por conveniência visitar a sepultura do marido; tinha o cuidado de lá ir a horas
em que outros podiam testemunhá-lo para lhes mostrar como respeitava o seu
dever. Mas Flor de Pereira ia lá secretamente e muitas vezes; sempre que se
sentia de coração opresso e solitário, e tinha o cuidado de ir lá quando não
havia ninguém nas proximidades, nas horas em que as pessoas estavam
metidas em casa a dormir, ou quando estavam a tra-

19
balhar nos campos. Era a essas horas solitárias que, na
companhia da idiota, se dirigia ao túmulo de Wang Lung.

Nunca chorava alto. Apoiava a cabeça na borda do sepulcro e


se por vezes chorava um pouco, não se lhe ouvia mais que uma espécie
de murmúrio uma vez ou duas:

«Ah, meu senhor e meu pai, e o único pai que jamais tive!»
CAPÍTULO III
ORA, posto que o poderoso senhor estivesse morto e
enterrado, não podiam aindaesquecê-lo, porque lhe eram devidos três
anos de luto que os filhos devem tributar aos pais.

Durante cem dias, os filhos deviam usar sapatos brancos e em


seguida tinham o direito de os usar cinzentos ou de qualquer cor pálida
semelhante. Mas não deviam trazer trajos de seda, nem os filhos de
Wang Lung nem suas mulheres, até que os três anos tivessem passado
e que estivesse confeccionada a tabuinha definitiva para o lugar de
repouso da alma de Wang Lung, redigida e alojada no seu devido lugar
entre as tabuinhas do pai e do avô.

E assim, Wang Mais Velho ordenou que se preparassem trajos


de luto para todos os homens e todas as mulheres e crianças. Agora, de
cada vez que falava, desde que era o chefe da casa, usava de um tom
de voz muito alto e magistral e tomava como de direito o lugar de honra
em cada sala onde se sentava com os irmãos. Estes escutavam-no, o
segundo com a sua boca pequena e estreita como que contraída por um
sorriso interior, porque se julgava de si para si sempre mais sensato do
que o irmão mais velho, pois fora ao segundo filho que Wang Lung em
vida confiara a gestão das suas terras e só ele sabia quantos rendeiros
havia e que rendimento poderia esperar-se das terras em cada estação;
esse conhecimento dava-lhe poder sobre os irmãos, pelo menos
segundo o seu juízo pessoal. Mas Wang Terceiro escutava as indicações
do irmão como alguém que aprendeu a ouvir indicações quando é útil
ouvi-las, mas também como alguém cujo coração se não compromete
no que faz e como se estivesse à espera de ausentar-se.

Na verdade, cada um dos três irmãos aspirava ao momento


em que a herança seria partilhada, pois eles estavam de acordo em que
devia sê-lo, dado que cada um tinha, no foro íntimo, um projecto para
efectivar, e ansiava por receber o respectivo patri-

21
mónio, e nem Wang Segundo, nem Wang Terceiro desejavam que as
terras ficassem inteiramente em poder do irmão mais velho, o que os tornaria
dependentes dele. Cada um dos irmãos aspirava a isso de uma maneira
peculiar, o mais velho porque queria saber quanto teria e se seria bastante ou
não para sua casa e as suas duas mulheres e para os seus numerosos filhos e
para os secretos prazeres que não podia recusar-se. O segundo irmão aspirava
a isso porque fazia grandes negócios de cereais, punha dinheiro a juros e
queria poder dispor da sua herança de maneira a desenvolver o seu comércio.
Quanto ao terceiro irmão, era tão estranho de maneiras e tão fechado consigo
que ninguém sabia o que ele desejava, e o seu rosto sombrio nunca mostrava
nada. Mas sentia-se impaciente e era possível, pelo menos, ver que se sentia
pressuroso em partir, posto ninguém soubesse o que ele contava fazer da sua
parte na herança e ninguém se atrevesse a perguntar-lho. Era o mais novo dos
três, mas toda a gente na casa tinha medo dele e os criados, homens e
mulheres, acorriam ao seu chamamento duas vezes mais depressa do que
para qualquer dos outros, sendo a Wang Mais Velho que respondiam mais
lentamente, embora este falasse no tom de patrão.

Ora, Wang Lung aferrara-se por tanto tempo e tão apaixonadamente


à vida que fora o último da sua geração a morrer, e do seu tempo restava
apenas um primo, soldado vagabundo e crapuloso, e os irmãos não sabiam
onde ele se encontrava, porque não passava de um pequeno capitão numa
horda errante de indivíduos que nem mesmo chegavam a ser soldados e que
pouco mais eram, afinal, do que ladrões dispostos a seguir o primeiro general
que lhes pagasse bem, ou que a ninguém seguiam quando se lhes afigurava
mais lucrativo agir sozinhos.

Não sabendo de certeza se morrera, os três irmãos sentiam-se muito


satisfeitos por ignorar onde se encontrava este primo de seu pai.

Mas dado que não tinham outro parente mais velho, tinham,
segundo a lei comum, de pedir a qualquer homem sério de entre os vizinhos
que viesse a casa deles dividir a herança perante uma assembleia de bons e
honrados cidadãos. E uma noite em que eles conversavam, sobre o que
convinha fazer, Wang Segundo disse:

Não há ninguém, irmão mais velho, mais próximo de nós e mais


digno de confiança, do que Liu, o negociante de cereais, em cujo
estabelecimento fiz a minha aprendizagem de empregado, e cuja filha é tua
esposa. Vamos pedir-lhe que faça as partilhas da nossa herança, porque é um
homem geralmente considerado justo, e bastante rico para não desejar nada
para si próprio.

Quando Wang Mais Velho ouviu aquilo, sentiu um íntimo desagrado,


porque não fora o primeiro a pensar nisso e respondeu lentamente:

22
Sinto muito, irmão, que tenhas falado tão depressa, porque ia
justamente dizer: convidemos o pai da mãe de meus filhos a fazer-nos isso.
Mas, visto que foste tu a dizê-lo, está entendido, pedir-lho-emos. Apesar de
que eu próprio estava justamente para dizê-lo, e tu corres sempre muito
depressa a falar, na família, antes da tua vez.

com esta reprimenda, o irmão mais velho lançou um olhar severo a


Wang Segundo e respirou fortemente, franzindo os grossos lábios, mas a boca
de Wang Segundo crispou-se, como se ele reprimisse uma vontade de rir.
Então Wang Mais Velho desviou depressa os olhos e disse ao irmão mais novo:

O que te parece a ti, meu irmão mais novo?

Mas Wang Terceiro ergueu os olhos com o seu ar altivo e, meio


sonhador, disse:

A mim é-me indiferente! Mas seja o que for que façam, seja
depressa.

Wang Mais Velho levantou-se, como se quisesse agir sem demora,


mas como chegara à idade madura, não podia apressar-se sem inconveniente,
pois se andava um pouco mais depressa não sabia o que havia de fazer dos
pés e das mãos.

O caso depressa se concertou e Liu, o negociante, acedeu a vir, pois


tivera toda a consideração por Wang Lung. Os irmãos convidaram também
aqueles seus vizinhos que tinham posição social suficientemente elevada para
eles e convidaram certas altas personagens da cidade, que eram ao mesmo
tempo ricas e se encontravam numa situação estável, e esses homens
reuniram-se no dia marcado, no salão da casa de Wang Lung, tomando cada
um lugar conforme a sua jerarquia.

Então Wang Segundo, tendo-lhe o negociante Liu pedido que desse


pormenorizada conta de todas as terras e fundos a dividir, levantou-se e pôs
nas mãos de Wang Mais Velho um papel em que tudo estava especificado e o
primogénito passou-o, por seu turno, a Liu, o negociante. Começou este por
desdobrar a folha e encavalitar no nariz os grandes óculos de cobre e leu em
voz muito baixa a relação e toda a gente esperava em silêncio que ele
acabasse. Depois, tornou a ler em voz alta, de maneira que todas as pessoas
sentadas naquela grande sala ficaram sabendo que Wang Lung, à data da sua
morte, possuía um número imponente de geiras, ao todo mais de oitocentas, e
raras vezes se ouvira dizer no país que uma tão grande propriedade tivesse
pertencido a um só homem e até mesmo a uma só família, e isso não se
verificava certamente desde os tempos de esplendor da grande família Hwang.
Wang Segundo sabia tudo isso, e não se mostrou surpreendido, mas os outros,
por mais que, por motivos de conveniência, se esforçassem por parecer
indiferentes e calmos, não puderam deixar de revelar o seu espanto. Só Wang
Terceiro parecia

23
não dar por isso e não se lhe alterou a fisionomia, como se
mantivesse o espírito distante e esperasse impacientemente que tudo
acabasse, para ir procurar o objecto dos seus desejos.

Além de toda essa terra, havia as duas casas de Wang, a casa


campestre e a Grande Casa da cidade que ele comprara ao senhor moribundo
da família Hwang, quando essa família caíra em decadência e os seus
membros estavam dispersos. E, além de casas e terras, havia ainda somas em
dinheiro emprestadas aqui e além, nos negócios de cereais, e havia sacos de
dinheiro guardados, de tal modo que só o dinheiro constituía ainda um valor
igual a metade do das terras.

Mas havia ainda certos legados a decidir antes que o grande


montante da herança pudesse ser dividido pelos irmãos, e, além disso, certos
pequenos legados a alguns feitores e artífices, sendo destes os principais os
legados das duas concubinas que Wang Lung tomara: Lotus, que ele trouxera
de uma casa de chá pela beleza dela e pelo amor que lhe tinha e para
satisfação da sua maturidade, quando sua esposa, uma campónia, se lhe
tornara fisicamente indiferente; e Flor de Pereira, que era uma escrava na sua
própria casa quando ele a tomou para lhe acalentar a velhice. Havia essas
duas, e nem uma nem outra eram uma verdadeira esposa; ambas não
passavam de concubinas, e ninguém pensaria em censurar a uma concubina,
ainda não demasiado velha, o procurar outro senhor quando o seu morresse.
Mas os três irmãos sabiam que, se estas não desejavam ir-se embora, era
preciso sustentá-las e vesti-las, e que tinham o direito de ficar durante toda a
vida na casa da família. Lotus, evidentemente, não podia ir-se embora para
casa de outro homem, visto que era velha e obesa, e sentir-se-ia muito
contente por poder ficar confortàvelmente no seu ninho. E assim, quando o
negociante Liu proferiu o seu nome, levantou-se de um banco perto da porta,
apoiada a duas escravas e, limpando os olhos com as mangas, disse numa voz
muito dolente:

Ah, já não existe aquele que me sustentava, e como posso eu pensar


noutro e para onde ir agora? Tenho agora bastante idade, e não preciso de
muita coisa para me sustentar e me vestir e obter um pouco de vinho e de
tabaco para aliviar de mágoas o meu triste coração, e os filhos do meu senhor
são generosos!

Então o negociante Liu, que era tão bom que julgava que os outros
eram bons também, olhou-a com simpatia e não se lembrou de quem ela era,
nem que a tivesse visto alguma vez senão como esposa de um bom burguês, e
disse-lhe com respeito:

Fala bem e como deve, porque o defunto era um bom senhor, como
sempre a todos ouvi. Portanto, decidirei o seguinte: vão dar-lhe vinte moedas
de prata por mês e será autorizada a habitar nos seus aposentos e terá os seus
servos e as suas escravas e os seus alimentos e além disso ainda algumas
peças de pano.

24
Mas quando Lotus ouviu aquilo, e apurara o ouvido para não lhe
escapar palavra, circunvagou os olhares de um filho para outro, soltou um
agudo lamento, e disse:

Só vinte? Quê... só vinte? Isso nem sequer chegará para eu comprar


as minhas guloseimas, das quais tanto preciso porque tenho muito pouco
apetite e nunca comi coisas grosseiras e vulgares !

Ao ouvir estas palavras, o velho negociante tirou as lunetas, fitou-a


espantado e disse:

Vinte moedas por mês há famílias inteiras que as não têm, e metade
disso ainda seria muito generoso em muitas casas, e não somenos, por morte
do senhor!

Então Lotus começou a chorar sentida. Agora não precisava já de


fingir e chorava Wang Lung como nunca o fizera. E exclamou :

Prouvesse aos deuses que não me tivésseis abandonado, meu


senhor! Eis-me posta para o lado, e vós partistes para um mundo melhor e não
estais aqui para me proteger!

Ora, a mulher de Wang Mais Velho estava a assistir por detrás de um


cortinado. Afastou-o então e fez sinal ao marido de que aquela atitude era
indecente diante de todas aquelas pessoas. Mostrava tão profundo desagrado
que Wang Mais Velho dava saltinhos na cadeira e fazia todo o possível por a
não ver e, apesar disso, não podia impedir-se de a ver. Acabou, portanto, por
se levantar e, dominando o barulho que Lotus fazia, disse em voz muito alta
para o negociante:

Senhor, faça o favor de atribuir-lhe um pouco mais para que


possamos prosseguir.

Mas Wang Segundo não pôde suportá-lo. Levantando-se do seu


lugar, exclamou:

Se se lhe deve dar mais do que foi dito, o meu irmão mais velho
deverá fazê-lo da sua parte, pois é bem certo que vinte moedas é bastante e
mais do que bastante para ela, mesmo com a sua mania do jogo!

Dizia aquilo, porque, à medida que envelhecia, Lotus tomara a


paixão do jogo e todo o tempo que não passava a comer ou a dormir, passava-
o a jogar. Mas a esposa de Wang Mais Velho indignou-se ainda mais e dirigiu
violentos sinais ao seu marido para lhe fazer compreender que devia recusar e
cochichou muito nitidamente:

Não, as partes devem ser atribuídas às viúvas antes da partilha da


herança. Acaso ela nos é mais alguma coisa a nós do que a eles?
Foi então um barulho ensurdecedor. O velho e calmo negociante
passeava o olhar desconcertado de um para o outro, e Lotus não cessava um
instante de fazer barulho e era um bruáá tamanho que toda a gente estava
com a cabeça perdida. E poderia ter por

25
muito tempo continuado assim, se Wang Terceiro, exasperado, não
se levantasse de súbito e, batendo com as sapatorras no sobrado, exclamasse:

Darei eu essa parte! Que conta um pouco mais de dinheiro? Estou


farto deste escândalo!

A todos pareceu aquilo excelente maneira de sair da dificuldade, e a


esposa de Wang Mais Velho disse:

Pode muito bem fazê-lo, visto que não é casado. Não tem, como nós,
que pensar nos filhos.

E Wang Segundo sorriu, meneando-se um pouco e, com o seu


sorriso, parecia querer dizer-se a si próprio: «Ora, não é da minha conta se
alguém é pateta a ponto de não acautelar o que é seu!»

Mas o velho negociante, pelo seu lado, suspirou e tirou o lenço para
limpar o rosto, porque era um homem que vivia numa casa pacífica e não
estava habituado a gente como Lotus. Quanto a Lotus, teria talvez ainda
continuado a fazer barulho, se não fosse a expressão da fisionomia do terceiro
filho, que a fez considerar que o melhor era não continuar. Interrompeu
portanto subitamente a cena que estava fazendo e sentou-se, muito satisfeita
de si própria, e esforçando-se a princípio por manter um ar triste e amuado,
esqueceu-se depressa e começou a olhar com desplante para os homens,
enquanto tomava sementes de melancia de um prato que uma escrava lhe
estendia, fazendo-as estalar entre os dentes, que tinha fortes e brancos, a
despeito da idade. E sentiu-se por fim satisfeita.

Assim se decidira no caso de Lotus. Depois o velho negociante olhou


em redor e perguntou:

Onde está a segunda concubina? Vejo aqui o seu nome inscrito.

Ora, tratava-se de Flor de Pereira e ninguém ainda se lembrara de


reparar se ela estava ou não ali. Olhavam todos agora através do salão e
mandaram escravas à sua procura aos aposentos das mulheres, mas não a
encontraram em parte alguma da casa. Então Wang Mais Velho lembrou-se de
que se esquecera completamente de a avisar, e mandou buscá-la a toda a
pressa. Enquanto esperavam que chegasse, o que levou uma a duas horas,
beberam chá e desentorpeceram as pernas. Ela acabou por aparecer, com uma
criada, à porta da sala. Mas quando olhou para dentro e viu tanta gente, não
quis entrar, e quando avistou o soldado retrocedeu para o pátio, onde por fim o
próprio velho comerciante teve de ir buscá-la. Olhou-a com simpatia, sem
insistência, no receio de a intimidar, e vendo como era ainda jovem, delicada e
bonita, disse-lhe:

Minha senhora, é tão nova que ninguém poderá censurá-la se a


senhora considerar a sua vida como ainda não terminada. Como há muito
dinheiro, isso permite atribuir-lhe uma boa soma
26
e a senhora terá a possibilidade de regressar a sua casa e arranjar
um bom marido ou fazer como entender.

Mas ela, que estava muito longe de esperar tais palavras, supôs que
a mandavam embora e não compreendendo, exclamou, com voz insegura e de
extremo desânimo:

Oh, senhor, não possuo casa minha, nem tenho neste Mundo
ninguém a não ser a pobre inocente que o meu falecido senhor me confiou e
não temos para onde ir! Oh, senhor, eu supunha que podíamos continuar a
viver na casa de adobe. Comemos muito pouco e só precisamos de roupa de
algodão porque enquanto viver nunca mais vestirei roupas de seda, agora que
o meu senhor morreu, e não incomodaremos pessoa alguma na Casa Grande!

O velho negociante voltou então para a sala e muito espantado


perguntou ao irmão mais velho:

Quem é a inocente a quem ela se refere?

E Wang Mais Velho, hesitante, respondeu:

É uma pobre criatura, nossa irmã, que, desde a infância, nunca


esteve em seu juízo, e meu pai e minha mãe não a deixaram morrer de
inanição como alguns fazem a essas criaturas para lhes apressar o fim da vida,
e disso resulta que continuou a viver até hoje. Meu pai confiou-a à guarda
desta sua mulher. Se esta não quer casar outra vez, dêem-lhe dinheiro e
deixem-na fazer como deseja, porque é muito meiga e é certo que não
importunará ninguém.

Ao ouvir isto, Lotus gritou subitamente:

Sim, mas não precisa de muito, porque nesta casa nunca passou de
uma escrava e estava habituada às comidas mais grosseiras e à roupa de
chita, até ao dia em que o meu velho senhor, já na sua velhice, se sentiu
maluco por ela, por causa daquela carinha pálida, e sem dúvida também
porque ela lhe fez algum feitiço... e no que se refere à idiota, quanto mais
depressa morrer, melhor!

Assim falou Lotus. Ao ouvi-la, Wang Terceiro fitou-a com ar de tal


modo aterrador que ela balbuciou e desviou a cabeça daquele olhar sombrio. E
então o terceiro filho exclamou:

Que a nova receba o mesmo que a velha. Sou eu quem lho dará!

Mas Lotus fazia caretas, e não ousando proferi-lo em voz alta, disse
entre dentes:

Não é justo que a mais velha e a mais nova sejam tratadas como
iguais... e principalmente aquela que foi minha própria escrava!
Assim dizia ela entre dentes e parecia pronta a recomeçar o barulho
de há pouco, mas o velho negociante, ao perceber isso, retomou depressa a
palavra:

27
Está certo... está certo... Atribuo portanto vinte e cinco moedas
à senhora mais velha e vinte à mais nova...E continuou, dirigindo-se a
Flor de Pereira: volte para sua casa, e fique em paz, minha senhora.
Está autorizada a proceder como entender e terá vinte moedas de prata
por mês para seu sustento.

Então Flor de Pereira agradeceu-lhe graciosamente e de todo o


coração. A sua boca pálida tremia; tremia porque ela ignorava o que lhe
ia acontecer e era para ela um consolo saber que poderia continuar a
viver como viúva e que se sentiria ao abrigo da miséria.

Tomada a decisão acerca daquelas pensões, o resto seguiu por


si e o velho negociante estava prestes a fazer a partilha das terras, das
casas e do dinheiro em quatro partes iguais para dar duas partes a
Wang Mais Velho, como chefe da casa, uma parte a Wang Segundo e
outra a Wang Terceiro, quando este tomou de súbito a palavra:

Não me dêem casas, nem terras! Fartei-me bastante de terra


quando era garoto e meu pai queria fazer de mim um camponês. Não
sou casado; para que preciso eu de casa! Dêem-me em dinheiro a parte
que me cabe, meus irmãos, ou então, se eu tenho absolutamente de ter
na partilha casa e terra, então comprai-as e dai-me o dinheiro!

Os dois irmãos mais velhos ficaram atónitos ao ouvir aquilo. Já


alguém ouviu alguma vez falar de um homem que quer a totalidade da
sua herança em dinheiro, o qual pode escapar-se tão facilmente das
mãos sem deixar rasto, e que não quer ter nem casa, nem terras, que
se mantêm na sua posse? E o irmão mais velho, com ar grave, disse:

Mas, irmão, nenhum homem de bem neste Mundo fica toda a


vida sem se casar. Cedo ou tarde, encontraremos uma mulher de tua
feição, visto que desapareceu o nosso pai, a quem incumbia fazê-lo, e
terás então necessidade de casa e de terras.

E o segundo irmão, por seu turno, com toda a franqueza,


disse:

Faças tu o que fizeres da parte das propriedades que te


cabem, nós não ta compraremos, porque houve questões em muitas
famílias por um dos membros ter tomado em dinheiro a parte
respectiva da herança e vir depois queixar-se de se ver privado da terra
e do resto da herança. Acho que a terra deve ser dividida. Se assim o
quiseres, ocupar-me-ei da gestão das terras em teu nome e mandar-te-
ei todos os anos o dinheiro que elas derem, mas não receberás a tua
parte em dinheiro.
A sensatez desta proposta impressionou toda a gente, de tal
modo que, embora o soldado dissesse ainda a meia voz: «Não quero
casa, nem terras», ninguém dessa vez lhe prestou atenção, excepto o
velho comerciante, que lhe perguntou com curiosidade:

28
Que é que o senhor iria fazer a tanto dinheiro?

Ao que o soldado respondeu em voz rude:

Tenho uma causa a defender!

Mas nenhum dos assistentes compreendeu o que ele queria


dizer e ao fim de um momento o velho negociante decidiu que o
dinheiro e as terras seriam partilhadas e que se realmente ele não
desejava uma parte daquela excelente casa da cidade, poderia ter a
velha casa campestre de adobe, que não valia grande coisa na
realidade, visto que fora feita com o barro dos campos e com o custo
mínimo de um pouco de trabalho.

Decidiu, além disso, que os dois irmãos manteriam também


em reserva uma soma para o casamento de Wang Terceiro, como era
dever dos irmãos mais velhos para o mais novo, se o pai já não vivia.

Wang Terceiro ouviu aquilo em silêncio, e quando tudo ficou


por fim decidido e partilhado conforme a lei, os filhos de Wang Lung
deram um banquete aos que tinham assistido às partilhas, mas
abstiveram-se de se alegrar ou de usar roupa de seda, porque o tempo
de luto não se completara ainda.

Assim foram partilhados os campos nos quais Wang Lung


passara toda a sua vida; a terra pertencia agora aos filhos e já não a
ele, excepto aquela pequena parcela em que repousava, e era tudo
quanto possuía. Mas desse pequeno lugar secreto onde se dissolvia, a
argila do seu sangue e dos seus ossos espalhava-se para se mesclar à
terra profunda. Os filhos faziam como lhes parecia à superfície da terra;
ele repousava profundamente nela e tinha ainda a sua porção que
ninguém podia tomar-lhe.

Wang Terceiro dificilmente se resignara a ter de esperar que a


herança fosse dividida, e logo que isso se realizou preparou-se com os
seus quatro homens e dispuseram-se a partir de novo para o lugar de
onde tinham vindo. Quando Wang Mais Velho notou aquela pressa, ficou
surpreendido e disse ao irmão:

Que é que te apressa agora?

Então Wang Terceiro, que estava a afivelar a espada,


interrompeu-se. Olhou para o seu irmão mais velho e viu um grande
homenzinho mole, de rosto largo e gordo, lábios grossos, salientes,
fazendo momo, com todo o corpo coberto de uma carne flácida e mole.
Tinha os dedos afastados, e as mãos moles e gorduchas como as de
uma mulher exibiam as unhas lustradas, compridas e brancas e palmas
rosadas e flácidas. Wang Terceiro desviou os olhos e disse com
desprezo:

Não me compreenderias se to explicasse. Basta que te diga


que tenho de me ir embora depressa, porque há pessoas à espera de
que eu ponha mãos à obra. Basta que te diga que tenho homens às
minhas ordens, homens prontos a executar a minha vontade.

E pagam-te bem para isso?perguntou Wang Mais Velho,

29
sem compreender nem perceber sequer o desprezo do irmão, visto
que se tinha por homem muito estimável.

Pagam-me às vezes e outras vezes não respondeu o soldado.

Mas Wang Mais Velho, não podia imaginar que alguém fizesse
qualquer coisa pela qual lhe não pagassem. Portanto continuou:

É uma profissão singular, mas que não dá recompensa aos que a


seguem. Se um general me comandasse sem nada me pagar, mudaria de
general e dirigir-me-ia a outro, no caso de ser um militar como tu, um capitão
com homens às tuas ordens.

Mas o soldado absteve-se de responder. Tinha na intenção fazer uma


coisa antes de partir. Foi ter com Wang Segundo e disse-lhe a sós:

Não te esqueças de pagar à esposa mais nova de meu pai a sua


parte completa. Antes de me mandares o meu dinheiro, tira todos os meses as
cinco moedas suplementares.

Ao ouvir estas palavras, o segundo irmão esgazeou os olhos piscos;


não compreendia facilmente que pudessem oferecer-se tais quantias, e disse:

Porque lhe dás tanto?

O soldado respondeu com singular precipitação:

Ela tem também que olhar pela idiota.

E parecia ter mais ainda que dizer mas absteve-se disso e enquanto
os seus quatro soldados emalavam as suas coisas, mostrou muita impaciência.
Depois, seguido pelos quatro homens, afastou-se rapidamente, muito contente
por se ir embora, como se sentisse ainda submetido aqui ao domínio do seu
velho pai, sendo ele alguém que não queria submeter-se a império algum, de
espécie alguma.
Os outros filhos não aspiravam menos a ver-se livres do pai. O filho
mais velho aspirava ao fim dos três anos de luto e aspirava a colocar a
tabuinha do velho na pequena alcova situada acima do salão onde se
guardavam as outras tabuinhas, porque enquanto ela se encontrasse onde se
encontrava, afigurava-se-lhe que Wang Lung continuava a ter influência nos
filhos. Sim, o seu espírito estava ali, embuscado na tabuinha, espiando os
filhos, e o mais velho aspirava à liberdade de viver como bem lhe parecia e
gastar o dinheiro do pai como entendesse. Mas não podia, enquanto aquela
tabuinha ali estivesse, levar a mão livremente ao cinto e colher o prazer onde
o entendesse, e tinha ainda que passar aqueles anos de luto, nos quais não é
decente para um filho mostrar-se muito alegre. Era assim que sobre aquele
homem ocioso, cujo espírito corria constantemente atrás de prazeres novos, o
velho impunha ainda o seu poder restritivo.

Quanto ao segundo filho, tinha também projectos. Aspirava a


transformar em dinheiro várias terras, porque tinha a intenção

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de alargar o seu comércio de cereais e comprar alguns dos
estabelecimentos de Liu, o negociante, que estava envelhecendo e cujo filho
era um letrado e não gostava do negócio do pai, e com um tal comércio Wang
Segundo poderia até exportar cereal da região para países estrangeiros. Mas
não fica bem empreenderem-se tão grandes coisas enquanto o luto dura ainda,
e eis porque Wang Segundo tinha de se revestir de paciência e de se calar,
com excepção apenas das ocasiões em que perguntava ao irmão, como quem
não pergunta nada:

Quando tiverem passado os dias de luto, que vais fazer da tua


terra?... Vendê-la ou quê?

E o irmão mais velho respondia, com aparente desinteresse :

Não sei, palavra. Não tenho ideia alguma, mas suponho que devo
conservar o bastante para nos alimentar, visto que não tenho uma profissão
como tu tens nem posso na minha idade começar uma.

Mas a terra será uma preocupação para ti continuou o irmão. Sendo


proprietário, tens de te ocupar com os teus rendeiros, tens de ir pesar os
cereais e há muitas pesadas tarefas deste género que um proprietário tem de
realizar, se quer ter de que viver. Quanto a mim, fiz todas essas coisas pelo
meu pai, mas não posso fazê-las por ti, porque tenho agora os meus interesses
pessoais. Conto vender tudo, com excepção da melhor terra, e colocar o
dinheiro a render bom juro e veremos quem enriquecerá mais depressa de nós
ambos.

Wang Mais Velho ouviu aquilo com a maior inveja, porque sabia que
tinha precisão de muito dinheiro e de muito mais do que tinha, e disse numa
voz fraca:
Enfim, veremos. Pode muito bem ser que eu venha a vender mais do
que pensava e ponha o dinheiro a render juntamente com o teu, mas havemos
de ver isso.

Mas, sem se aperceber de tal, quando falavam em vender a terra,


baixavam o tom como se tivessem medo de que o velho ainda os pudesse
ouvir.

E assim, portanto, esses dois irmãos esperavam com impaciência


que os três anos tivessem acabado. Lotus esperava também, e resmungava
enquanto ia esperando, porque não era conveniente para ela vestir-se de seda
nesses três anos; devia trajar de luto fielmente, e suspirava porque estava
farta das roupas de algodão e lhe estava interdito ir aos banquetes e divertir-se
com as amigas, a não ser em segredo. Porque Lotus, com a idade, começara a
divertir-se com cinco ou seis velhas damas de outras casas decentes e essas
velhas damas iam nas suas cadeirinhas de determinada casa para outra, para
jogarem, se banquetearem e contar escândalos. E dado que é direito legítimo
de uma criada ter o que

31
a sua patroa ganha ao jogo, ou então participar nos lucros,
Cuckoo encorajava-a com todo o zelo a levar essa vida.

Só Flor de Pereira se não apressava, e ela ia como sempre


chorar junto do túmulo na terra. Quando não havia ninguém que a
visse, ia lá chorar.

Ora, enquanto os dois irmãos esperavam, era-lhes imperioso


continuarem a viver juntos naquela grande casa, com suas mulheres e
filhos, e não era uma coabitação fácil, por causa da hostilidade das
mulheres uma para com a outra. As mulheres de Wang Mais Velho e de
Wang Segundo detestavam-se tão cordialmente que os dois homens se
sentiam atormentados por elas, porque as duas mulheres não podiam
guardar a cólera para si próprias, mas era necessário que cada uma
delas desse parte dela ao marido, quando estava a sós com ele.

A mulher de Wang Mais Velho dizia-lhe, no seu ar sério e digno:

É singular que eu não possa nunca obter o respeito que me é


devido nesta casa para a qual me trouxestes. Enquanto o velhote vivia,
vi-me no dever de suportar isso porque ele era tão grosseiro e ignorante
que eu sentia vergonha perante os meus filhos quando eles viam o
género de avô que tinham. Eu suportava isso tudo porque era justo para
mim fazê-lo. Mas agora o vosso pai morreu e vós sois o chefe da família,
e se ele não via o que é a mulher do vosso irmão e como ela me trata, e
não via por ser tão ignorante e iletrado, vós, que sois o chefe, vede-lo e
apesar disso nada fazeis para pôr essa mulher no seu lugar. Sou todos
os dias reduzida a coisa nenhuma por ela, que é uma campónia
grosseira e, além disso, sem religião.

Então Wang Mais Velho suspirou e tornou-lhe com toda a


paciência de que podia dispor:

Que é que ela te diz?

Não é só pelo que ela me diz replicou a esposa, no seu tom


agudo, e ao falar os seus lábios mal se entreabriam e a voz soltava-se-
lhe sem inflexões.É por toda a sua maneira de agir e de ser. Quando
entro num compartimento onde ela se encontra, finge estar ocupada
em qualquer trabalho que não pode interromper para me dar lugar, e é
tão vermelhusca e fala tão alto que não posso suportá-la se abre a
boca; não, não posso sequer vê-la passar junto de mim.

Ora vamos, compreendes que eu não posso ir ter com meu


irmão e dizer-lhe: «A tua mulher é muito vermelhusca e fala muito alto e
a mãe dos meus filhos não quer admitir isso assim»respondeu Wang
Mais Velho, abanando a cabeça e procurando no bolso do cinto o seu
cachimbo.

Julgava ter dito uma coisa excelente e atreveu-se a sorrir um


pouco.

32
Ora a dama não era daquelas que estão sempre prontas para a
réplica, e na verdade era incapaz de responder tão depressa como desejava, e
uma das razões que tinha para detestar a cunhada era que a esposa campónia
tinha uma língua muito acerada, embora grosseira, e antes que a esposa
cidadã conseguisse terminar um dos seus discursos que ela empreendia com
lentidão solene, a esposa campónia com um revirar de olhos e uma simples
palavra reduzia a nada a cidadã. E esta ficava tão mal-ferida que, quando
escravas e criadas assistiam à cena, tinham de se desviar o mais depressa
possível para dissimularem os sorrisos. Assim, quando Wang o mais velho
falou, olhou-o vivamente para ver se ele não zombava dela também, e viu-o
instalado numa poltrona de verga, sorrindo com o seu sorriso mole. Ergueu-se
então com ar rígido e gelado da cadeira de pau que sempre escolhia para se
sentar, e depois velando os olhos com um descer de pálpebras e fazendo um
momo com os lábios, disse:

Sei muito bem que também vós me desprezais, meu senhor! Desde
que trouxestes para casa aquela criatura vulgar, desprezastes-me
constantemente, e eu quereria nunca ter abandonado a casa de meu pai. Sim,
desejaria agora poder consagrar-me aos deuses e entrar para qualquer
instituição religiosa e assim faria se não fossem os meus filhos. Dediquei-me a
melhorar esta casa que é vossa, para fazer dela alguma coisa mais do que
uma simples casa de camponês, mas vós não mo agradeceis nada.

Dizendo o que, limpou cuidadosamente os olhos com as mangas,


depois levantou-se e retirou-se para o seu quarto e em breve Wang Mais Velho
a ouviu recitar muito alto uma oração budista. Porque esta senhora, no outono
da vida, recorrera à religião e aos padres. Tornara-se muito escrupulosa nos
seus deveres para com os deuses e passava muito tempo em orações e em
cantos e as religiosas vinham muitas vezes dar-lhe os seus ensinamentos.

E assim, agora, como fazia sempre que estava encolerizada,


começou a rezar muito alto no quarto e quando Wang Mais Velho a ouviu,
agarrou a cabeça nas mãos e, desolado, suspirou, porque na verdade a esposa
nunca lhe perdoara ter metido em casa uma segunda mulher, uma linda e
ingénua rapariga que’ ele vira na rua um dia, à porta de um pobre homem.
Estava sentada num pequeno banco, ao lado de uma selha, a lavar trapos, e
era tão nova e tão bonita que ele a olhara duas ou três vezes passando em
frente e voltara a passar umas poucas de vezes. O pai da rapariguinha ficou
muito satisfeito por a deixar ir para casa de um homem tão rico e tão
respeitável e Wang Mais Velho pagou-lhe bem. Mas a rapariga era tão ingénua
que, neste momento em que a conhecia a fundo, Wang Mais Velho espantava-
se por vezes de ter podido aspirar a ela como aspirara, pois ela era tão

3-w. L.

33
ingénua que tinha muito receio de sua esposa e era destituída da
menor personalidade. Quando Wang Mais Velho lhe pedia que viesse à noite ao
seu quarto, chegava até a balbuciar, curvando a cabeça:

Mas a Senhora esta noite dar-me-á licença?

E por vezes, ao ver até que ponto ela era tímida, Wang Mais Velho
enfurecia-se e jurava que na próxima ocasião tomaria uma raparigaça sólida e
de carácter agreste, que não tivesse medo de sua mulher, como acontecia com
todas. Mas outras vezes suspirava e dizia-se que, depois de tudo, era melhor
assim, porque pelo menos não havia questões entre as suas duas mulheres,
visto que a mais nova obedecia servilmente à senhora e não queria sequer
encará-la, se estava na sua presença.

Mas, embora isso satisfizesse um pouco a senhora, nunca deixava,


no entanto, de censurar a Wang Mais Velho, primeiro o ter tomado outra
mulher, e depois, se absolutamente tinha de o fazer, o ter tomado um ser tão
mesquinho. Quanto a Wang Mais Velho, suportava a esposa e amava ainda por
vezes a rapariga, pelo seu delicado rosto infantil, e parecia amá-la
principalmente de cada vez que a sua esposa falava dela com mais acrimónia,
posto usasse de disfarce e estratagemas para obter aquilo que lhe pertencia.
Quando ela receava vir ter com ele, respondia:

Podes vir sem receio porque ela está muito indisposta para que eu a
incomode esta noite.

Certamente que sua esposa era uma mulher de coração frio, que se
sentiu muito satisfeita quando o seu tempo passou. Wang Mais Velho
concedeu-lhe a partir de então o respeito que lhe era devido e, durante o dia,
recorria para tudo a ela, o mesmo fazendo a rapariga, e à noite esta vinha ter
com ele, e assim conseguia viver em paz com as suas duas mulheres.

Contudo, a disputa com a cunhada não foi de tão fácil


apaziguamento. A mulher de Wang Segundo foi também ter com o marido, e
disse-lhe:

Estou profundamente aborrecida com aquele ser de faces pálidas


que é a mulher do vosso irmão, e se não fazeis qualquer coisa para separar os
vossos aposentos dos deles, tomarei um dia vingança e berrarei pelas ruas
contra ela e isso fá-la-á morrer de vergonha, de tal maneira ela é uma lamúrias
e tal modo tem quando não a cumprimentam com suficientes mesuras quando
entra. Valho tanto ou mais do que ela, e sinto-me muito satisfeita por não ser
como ela e por vós não serdes como aquele gorducho imbecil, apesar de vosso
irmão!

Ora Wang Segundo e a mulher entendiam-se muito bem. Era


pequeno, amarelo e taciturno e gostava dela porque ela era rosada e forte e
tinha um carácter enérgico, e gostava dela porque era maliciosa e boa dona de
casa e gastava muito pouco dinheiro.
34
O pai não passava de um campónio e ela não fora habituada a uma
vida distinta, e apesar disso, agora que podia tê-la, não a procurava como
certas mulheres teriam feito. Preferia os alimentos grosseiros e usava mais
trajos de algodão que de seda, e os seus únicos defeitos eram ter a língua
demasiado comprida e gostar de palrar com as criadas, que tratava como
camaradas, com escândalo da esposa de Wang Mais Velho.

Mas o que a esta mais particularmente exasperava era vê-la correr


para todos os lados, com os seus velhos trajos já fora de moda e usados, de
chinelas e cabelos despenteados, e levando o filho que amamentava para toda
a parte, de teta ao vento, como verdadeira rapariga do campo.

Até mesmo a maior disputa que os dois irmãos jamais tiveram


proveio daquela cabeçuda, e essa disputa acabou por obrigá-los a procurarem
meio de viver em paz. Aconteceu que, certo dia, a dama das boas maneiras
chegou ao portão para subir para o seu palanquim, pois era o aniversário do
nascimento de um deus que tinha um templo na cidade, e ela ia lá cumprir
uma promessa. Quando chegou à rua, a campónia estava à porta com a sua
teta nua como a de uma escrava, e amamentava o filho mais novo, enquanto
falava a um vendedor a quem estava a comprar um peixe para a refeição do
meio-dia.

A dama não pôde suportar aquele terrível e grosseiro espectáculo.


Tomou a iniciativa de dar uma azeda reprimenda à sua cunhada e começou:

Na verdade é um espectáculo vergonhoso ver numa Grande Casa


alguém que devia ser uma dama fazer uma coisa tal como eu não permitiria
sequer a uma das minhas escravas...

Mas a sua língua lenta e comedida não podia rivalizar com a da


outra, e a esposa campónia exclamou:

Quem é que não sabe que as crianças têm de ser amamentadas? Eu


cá não tenho vergonha de ter filhos e de ter duas tetas para lhes dar de
mamar!

E em vez de abotoar decentemente a blusa, mudou o filho para o


outro lado e deu-lhe triunfalmente de mamar pela outra teta. Então, ao ouvir a
sua voz forte, formou-se um agrupamento para ver a disputa e as mulheres
saíram a galope das cozinhas e dos pátios, limpando as mãos a correr; e
alguns campónios que passavam depunham um momento os cestos para
gozar a cena.

Mas quando a dama fina viu aquelas fisionomias escuras e vulgares,


não pôde suportá-lo. Desistindo de sair, com toda a sua boa disposição
estragada, mandou embora o palanquim e entrou de novo, em passinhos
apressados, nos seus aposentos privativos. Ora a esposa campónia nunca vira
tais esquisitices: vira sempre amamentar os filhos em qualquer sítio em que as
mães se encontrassem, porque nunca se sabe à certa por que motivo uma
35
criança grita e dar-lhe o seio não será maneira segura de o
acalmar?

Eis porque ela se manteve ali e injuriou a cunhada de maneira tão


engraçada que a multidão ria em coro, divertindo-se extraordinariamente com
a cena.

Então, uma escrava da senhora fina, que se encontrava ali por


curiosidade, foi contar fielmente à sua senhora tudo o que dizia a esposa
campónia. E cochichou isto:

Ela diz, minha senhora, que vós sois tão orgulhosa que terrificais o
meu senhor e que ele nem sequer se atreve a amar a sua pequena concubina,
a menos que a senhora lhe dê licença e então só pelo tempo que lhe permitis,
e toda a multidão se ria!

Ao ouvir estas palavras, a dama empalideceu e deixou-se cair numa


cadeira, ao lado da mesa, no compartimento principal, onde esperou enquanto
a escrava corria outra vez para a porta. Dali voltou ofegante e disse:

Agora, ela está a dizer que vós vos preocupais mais com padres e
religiosas do que com os vossos filhos e que bem se sabe que essa gente é
secretamente partidária do mal!

Ao ouvir tal vilania, a senhora levantou-se e, não se dominando,


mandou a escrava dar ordem ao porteiro de vir imediatamente ter com ela. A
escrava saiu então outra vez, muito contente, pois não havia todos os dias um
escândalo como aquele, e trouxe o porteiro consigo. Era um velho camponês
muito ossudo que tinha trabalhado outrora nas terras de Wang Lung; e por ser
muito velho e dedicado e não ter filho que o sustentasse, fora destinado para
porteiro. Chegou aterrado, como todos se aterravam na presença daquela
patroa, inclinou-se na frente dela, curvando a cabeça, e ela disse-lhe com o
seu ar majestoso:

Visto que o meu senhor se encontra agora na casa de chá e não está
ao corrente desta desordem vergonhosa e visto que seu irmão também não se
encontra aqui para orientar a sua casa, tenho eu de cumprir o meu dever. Não
quero que essa gentinha venha assim pôr-se de boca aberta diante da nossa
casa. Vais fechar o portão, e se a minha cunhada ficar lá fora, tanto pior para
ela; e se te perguntar quem te disse que fechasses o portão, dize-lhe que fui
eu, e que tens de me obedecer.

O velhote inclinou-se outra vez, saiu sem dizer palavra e fez como
lhe tinham mandado. Ora, a esposa campónia estava ainda ali e divertia-se
extraordinariamente com a risota da multidão e não viu os batentes da porta
fecharem-se lentamente atrás dela. Estavam já quase cerrados quando o velho
porteiro aproximou os lábios da pequena abertura e cochichou com voz rouca:

Pcht... senhora!
Ela então voltou-se e viu o que havia. Precipitou-se para empurrar os
batentes e, sempre com o filho ao seio, berrou para o velhote:

36
Quem te mandou fechar-me cá fora, velho cachorro ?

E o velhote respondeu humildemente:

Foi a senhora, e disse-me que devia fechar a porta e deixar-vos lá


fora porque não queria tal escândalo aqui à porta. Mas eu chamei-vos para vos
prevenir.

E então esta porta é dela, não é, e eu tenho de ficar fora de minha


própria casa, não?

E, gritando, a esposa campónia correu para a parte da casa habitada


pela cunhada.

Mas esta já o previra e retirara-se para os seus próprios aposentos,


cuja porta aferrolhara, e pusera-se a rezar. Por mais que a esposa campónia
batesse à porta com redobradas pancadas, não obteve satisfação e tudo
quanto ouviu foi um contínuo e monótono ronrom de orações.

É certo, no entanto, que nessa noite os dois irmãos tiveram notícias


da cena, cada um da boca da sua própria esposa, e quando se encontraram na
rua, no dia seguinte, de manhã, ao dirigirem-se à casa de chá, olharam um
para o outro com ar lastimoso, e o segundo irmão disse, esboçando um sorriso
com uma carantonha:

As nossas mulheres acabarão por nos tornar inimigos e nós não


podemos permitir-nos ser inimigos. Faremos melhor separando-as. Tu ficarás
na parte da casa que já ocupas e servir-te-ás da parte que dá para a rua
principal. Eu ficarei na parte da casa que habito e mandarei abrir uma porta
para a rua do lado, e assim poderemos continuar a viver em paz. Se o nosso
terceiro irmão voltar algum dia para viver aqui, poderá ficar com os aposentos
em que vivia o nosso pai e se a primeira concubina morrer, terá os adjacentes,
onde ela vive.

Ora, Wang Mais Velho tinha ouvido várias vezes repetir durante a
noite pela mulher cada uma das palavras do que se passara e sua esposa de
tal maneira o tinha apertado, que desta vez ele lhe jurara não ser afável e
conciliador; não, desta vez estava decidido a fazer o que convinha que fizesse
o chefe, quando a dona da casa é ultrajada a tal ponto por uma mulher que é
sua inferior e que deveria mostrar-se respeitosa para com ela. E então, ao
ouvir o que dizia o irmão mais novo, lembrou-se de como fora advertido de
noite, e replicou num tom de tímida censura:

Mas tua mulher procedeu muito mal, ao falar à minha como falou
diante daquela gentinha e não basta pôr a coisa de parte. É preciso que lhe
apliques uma boa sova. Peço-te insistentemente que lhe apliques uma boa
sova.

E então os olhinhos de Wang Segundo pestanejaram e, para dar


satisfação ao irmão, disse:
Tu e eu, irmão, somos homens, e sabemos o que valem mulheres e a
que ponto as melhores de entre elas são ignorantes

37
e ingénuas. Os homens não podem imiscuir-se em questões de
mulheres e nós, irmão mais velho, compreendemo-nos como homens que
somos. É certo que minha mulher se portou como uma parva e que não passa
de uma campónia. Repete a tua mulher que eu disse isto e que lhe apresento
as minhas desculpas pelo que minha mulher fez. As desculpas nada custam.
Separemos depois as nossas mulheres e os nossos filhos e ficaremos em paz,
meu irmão, e poderemos encontrar-nos na casa de chá, para discutirmos as
nossas questões um com o outro e viveremos em casa independentes.

Mas... mas...disse Wang Mais Velho, incapaz de pensar tão depressa


e tão facilmente como isso.

Então Wang Segundo foi hábil. Viu logo que o irmão não sabia como
dar satisfação à mulher e eis porque lhe disse novamente:

Olha, irmão mais velho, dirás isto a tua mulher: «Separei de nós a
casa do meu irmão segundo, e tu nunca mais serás incomodada. Foi assim que
os castiguei».

Muito contente, o irmão mais velho pôs-se a rir, esfregou as mãos


gordas e pálidas uma na outra, e disse:

Trata disso... trata disso...

E Wang Segundo tornou:

Mandarei vir hoje mesmo os pedreiros.

E assim cada um dos dois irmãos deu satisfação a sua mulher, de tal
modo que cada uma das duas se considerou triunfante e considerou a outra
completamente vencida. Depois disso, os dois irmãos ficaram melhores amigos
que nunca e cada um se julgou homem muito inteligente e com a melhor
compreensão das mulheres.

Sentiam-se muito contentes cada um consigo próprio e com o outro,


e aspiravam ao fim do período de luto para poderem fixar um dia em que se
encontrassem na casa de chá e decidissem da venda da porção de terras que
desejavam vender.

Assim, portanto, os três anos deslizavam na incidentada expectativa


e chegou o tempo em que poderiam dar termo ao luto por Wang Lung.
Escolheram para tal um dia segundo o almanaque, cujo nome tinha carácter
adequado a tal acto, e Wang Mais Velho preparou tudo para os ritos de saída
do período de luto. Falou disso à esposa que, desta vez também, sabia tudo
quanto convinha fazer-se e lho explicou, fazendo ele conforme ouvira.

Os filhos e as mulheres dos filhos e todos os membros da família de


Wang Lung que tinham trajado de luto durante aqueles três anos vestiram-se
de sedas claras e as mulheres de vermelho. Depois, por cima desses trajos,
puseram as roupas de cânhamo que tinham trazido e saíram pela grande
porta, como era hábito nessas; regiões. Ali, tinham posto um monte de moedas
de papel, fingindo serem de ouro e de prata, e os padres, que estavam ao lado,
chegaram fogo ao papel. Depois, ao clarão das chamas, os que

38
vestiam de luto por Wang Lung tiraram-no e mostraram-se vestidos
com os alegres vestidos claros que traziam por baixo.

Cumpridos os ritos, reentraram em casa e todos se felicitaram


reciprocamente por terem passado os dias de tristeza, e inclinaram-se perante
a nova tabuinha que fora confeccionada para Wang Lung, porque a antiga fora
queimada, e ofereceram-lhe em sacrifício vinho e carne cozida.

Ora, esta nova tabuinha, que era a definitiva, fora feita segundo as
regras, com uma linda madeira dura e fora colocada numa caixinha de madeira
de tamanho apropriado. Depois de a mandarem confeccionar e envernizar com
um verniz preto muito caro, os filhos de Wang Lung dirigiram-se ao mais
célebre letrado da cidade para inscrever nela o nome e o espírito de Wang
Lung.

Feito tudo isso, Wang Mais Velho pegou nela cuidadosamente com as
mãos ambas e foram todos juntos colocá-la no alto e pequeno compartimento
onde já se encontravam as outras, as dos dois velhos campónios que tinham
sido o pai e o avô de Wang Lung. As deles encontravam-se ali, naquela casa
tão rica, e nunca durante a sua vida teriam sequer pensado em ter tabuinhas
como apenas os ricos têm, e se pensavam até no que lhes poderia acontecer
depois da morte, era apenas para suporem que os seus nomes seriam escritos
num bocado de papel por qualquer indivíduo um pouco instruído e
dependurado na parede da casa de campo, onde ficaria pelo tempo que
demorasse a fazer-se em pedaços.

Mas quando Wang Lung viera habitar naquela casa da cidade, tinha
mandado fazer tabuinhas para os seus dois antepassados, como se também
eles tivessem vivido aqui, embora ninguém pudesse saber se os seus espíritos
ali estavam ou não.

Colocaram, pois, junto das deles, a tabuinha de Wang Lung, e


quando os filhos o fizeram, fecharam a porta da mansarda e afastaram-se,
muito satisfeitos no íntimo dos seus corações.

Ora, era esse o tempo próprio para convidar hóspedes e fazer festas
de alegria, e Lotus pôs um vestido de seda azul claro com flores, demasiado
berrante para uma mulher tão gorda e tão velha, mas ninguém lhe fez a
observação, porque a conheciam muito bem, e todos participaram da festa. E
enquanto ela decorreu, riram-se muito e beberam, e Wang Mais Velho, que
gostava das grandes reuniões de ruidosa alegria, berrava constantemente:

Bebam até ao fundo das taças... até se lhes ver o fundo!

E tanto bebeu que o vermelho escuro do vinho subiu nele e lhe


inflamou as faces e os olhos. E então sua esposa, que estava à parte com as
mulheres, noutra sala, soube que ele estava prestes a embriagar-se e mandou
a criada dizer-lhe:
Não é conveniente embriagar-se logo numa festa deste
género.

Eis porque ele se dominou.

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Mas o próprio Wang Segundo estava nesse dia alegre e não olhava a
nada. Aproveitou a ocasião de conversar particularmente com alguns
convidados, para ver se um ou outro desejava comprar mais terra do que
tinha, e espalhou o boato de que tinha uma boa porção de terra da qual
pretendia desfazer-se, e assim passou aquele dia, sentindo-se ambos os irmãos
satisfeitos por se ter quebrado o laço que os mantinha na dependência do
velho que repousava na terra.

Havia alguém que não se divertia com eles: era Flor de Pereira, que
lhes mandou as suas desculpas, dizendo: «O único ser que me dá
preocupações encontra-se um pouco melhor do que é costume e eu peço o
favor de me desculparem». E assim, visto como ninguém lamentou a sua
ausência, Wang Mais Velho mandou-lhe dizer que estava inteiramente
desculpada por não tomar parte na festa e só ela, nesse dia, não tirou o seu
trajo de luto, nem os sapatos brancos que usava, nem o cordãozinho branco
que lhe ligava os cabelos. Também não tirou à idiota esses símbolos de
tristeza. Enquanto os outros se divertiam, entregou-se ela à sua ocupação
favorita. Pegou na idiota pela mão e levou-a ao túmulo de Wang Lung, e ambas
se sentaram no chão. E aí, enquanto a idiota brincava, satisfeita por estar
perto de alguém que lhe mostrava amizade, Flor de Pereira passeou o olhar
pela terra. Esta estendia-se com os seus campos verdes dispostos em todos os
sentidos e embutidos uns nos outros por léguas e léguas, tão longe quanto a
vista podia alcançar. Aqui e além, uma pequena mancha azul parada ou em
movimento representava um camponês que trabalhava na sementeira de aveia
da Primavera. Do mesmo modo também, outrora, se curvara Wang Lung sobre
o fruto da sua terra, quando chegava a sua vez de a ter para si, e Flor de
Pereira lembrou-se de que, na sua velhice, ele lhe falava muitas vezes dos
anos anteriores ao nascimento dela, e gostava de lhe falar deles e de lhe
explicar como ele costumava lavrar este e plantar aquele.

Assim passou aquele tempo, e assim decorreu aquele dia para a


família de Wang Lung. Mas, até mesmo por ser um dia assim, o terceiro filho
não veio a casa. Onde quer que fosse o sítio em que se encontrava, deixou-se
lá ficar e entregou-se, longe de todos eles, às ocupações da sua vida pessoal.

40
CAPÍTULO IV
COMO os ramos de uma grande e velha árvore saem do robusto
tronco e divergem dele e cada um de outro, alongando-se e estendendo-se
cada um deles na sua própria direcção, embora tenham por origem a mesma
raiz, assim acontecia com os três filhos de Wang Lung; mas o mais enérgico e
o mais voluntarioso dos três era Wang Terceiro, o filho mais novo de Wang
Lung, soldado numa província do Sul.

No dia em que Wang Terceiro recebera a notícia de que seu pai


acabava de morrer, encontrava-se diante de um templo fora da cidade onde
vivia o seu general, pois havia na frente desse templo um espaço de terreno
onde ele fazia manobrar os seus soldados de cá para lá e lhes ensinava ardis e
manobras de guerra. E assim estava ele ocupado, quando o mensageiro do
irmão chegou a correr e ofegante, e, com a respiração entrecortada pela
importância da comunicação que trazia, gaguejou:

Capitão, e nosso terceiro e jovem senhor... o velho senhor... morreu!

Ora, Wang Terceiro não voltara a estar em relações com o pai desde
o dia em que fugira de casa, num violento acesso de cólera por seu pai ter
tomado, entre as serviçais de sua casa, quando já era velho, uma certa
rapariga ali mesmo educada, que era Flor de Pereira, e Wang Terceiro não
compreendera que a amava até ao momento de saber o que seu pai fizera.
Nessa mesma noite, depois de meditar durante todo o dia, correu para os
aposentos do pai; estava tão absorto na sua meditação, que entrou sem
reparar no compartimento onde o pai se encontrava com a rapariga. Ora, ele
irrompendo assim naquele quarto, ao sair das quentes trevas de uma noite de
Verão, viu-a ali sentada, silenciosa e pálida, e compreendeu nitidamente que a
amava. Então, subiu nele uma tal vaga de cólera contra o pai que não pôde
contê-la, pois era sujeito à cólera. Compreendendo que, se lhe dava tempo

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de crescer, ela lhe faria estalar o coração, nessa mesma noite
fugiu de casa do pai. E como sempre aspirara às aventuras e a tornar-se
um herói sob uma qualquer bandeira de guerra, gastou o dinheiro que
tinha a afastar-se, na direcção do Sul, para o mais longe que lhe era
possível, e entrou ao serviço de um general que nessa época se
distinguira numa revolta. E Wang Terceiro era um homem tão alto, tão
robusto e tão feroz, o seu rosto tão sombrio e colérico, os lábios
apertavam-se-lhe sobre os grandes dentes brancos com ar tão duro,
que o general o tinha imediatamente notado e ligado à sua pessoa e o
fizera promover Wang Terceiro muito depressa, mais depressa mesmo
do que habitualmente, por tal modo que, de simples soldado, fez dele
um capitão com o comando de muitos homens. O Wang Terceiro estava
nesse posto quando se pôs a caminho para casa do pai.

Ao ouvir o que o mensageiro do pai tinha a comunicar-lhe,


mandou os soldados dispersar e foi-se através dos campos, seguido a
distância pelo mensageiro.

Era um dia dos começos da Primavera, um desses dias em que


seu pai Wang Lung costumava ir lançar uma vista de olhos à terra.
Nesses dias, pegava na enxada e volteava a terra entre os sulcos da
sua aveia. Ali, posto não houvesse sinais de vida nova para outros olhos
que não os seus, ele pressentia o entumescer e o alterar-se da natureza,
a promessa da nova messe nascida da terra. E agora estava morto e
Wang Terceiro não podia conceber a morte num dia assim.

Porque Wang Terceiro também pressentia a Primavera à sua


maneira. Enquanto o seu pai, agitadíssimo, retomava contacto com a
terra, também Wang Terceiro se agitava, e a cada nova Primavera o seu
espírito regressava ao projecto que formara, e que era abandonar o
velho general, empreender uma guerra por sua conta pessoal e incitar
os homens que quisessem segui-lo a alinharem sob a sua própria
bandeira. A cada Primavera isso lhe parecia uma coisa realizável e por
fim uma coisa que devia necessariamente fazer, e como ano após ano
formava projectos de o realizar, isso tornou-se o seu sonho e a sua
ambição. Chegara a ponto tal que, nessa Primavera, disse de si para si
que tinha de ser e que não podia continuar a suportar a vida que levava
ao serviço do velho general, pois, nesses anos, a energia deste
declinara, e tornara-se indolente, vivia à custa da gente da região e já
não tomava parte em guerra alguma. Estava a criar barriga, comia
todos os dias os melhores petiscos e bebia vinhos de países
estrangeiros, desses tão fortes que queimam o estômago. Já não falava
em guerras e toda a sua conversação era à volta da maneira como o
seu cozinheiro tinha arranjado um molho próprio para tal ou tais peixes
de mar, e acerca da habilidade do dito cozinheiro em apresentar certo
prato digno do paladar de um rei, e depois
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de comer tudo quanto podia, o único outro prazer que então
conhecia era o das mulheres. Tinha cinquenta companheiras ou mais e era do
seu gosto ter mulheres de toda a espécie, de tal modo que ele tinha uma
estranha mulher com uma pele muito branca e olhos verdes e cabelos de cor
de cânhamo, que comprara já não sabia onde. Mas sentia grande medo dela,
porque tinha consigo um profundo desencanto que a envenenava e
amargurava e ela resmungava a sós, na sua própria língua estranha, como se
estivesse a lançar sortes. Mas isso, apesar de tudo, divertia o velho general,
que se sentia muito orgulhoso de ter entre as suas mulheres um tal espécime.

Sob as ordens de um general como aquele, também os capitães se


tornavam fracos e negligentes e faziam pândegas e bebiam, vivendo à custa
da população, que detestava do fundo do coração o general e os seus homens.
Mas os mais jovens e valentes impacientavam-se e sentiam-se sufocar de
inacção e quando Wang Terceiro se mostrou superior a todos eles, vivendo com
simplicidade e nem querendo sequer olhar para as mulheres, os mais jovens
começaram a sentir-se atraídos para ele um após outro, e reunidos em
pequenos grupos diziam-se:

Poderá ele tirar-nos disto?

E voltavam, com esperanças, os olhos para ele.

Só uma coisa impedia Wang Terceiro de realizar o seu sonho e era a


falta de dinheiro, porque depois de ter deixado a casa do pai, nada mais
recebera que o miserável pequeno soldo que recebia do velho general no fim
de cada mês, e muitas vezes nem sequer isso tinha, porque nem sempre o
general tinha dinheiro bastante para pagar aos seus soldados, dado que
precisava de muito para si próprio: cinquenta mulheres na casa de um homem
são rapaces, rivalizam umas com as outras nas jóias e vestidos e no que
podem extorquir, pelas lágrimas e pela sedução, a um velho que é seu senhor.

Afigurava-se portanto a Wang Terceiro que nunca lhe seria possível


realizar o que esperava, a menos que se tornasse por algum tempo um ladrão
e que fizesse dos seus homens um bando de salteadores, como muitos no seu
caso teriam feito, e quando tivesse roubado durante o tempo necessário para
alcançar bastante dinheiro, poderia esperar uma guerra rendosa, fazer uma
convenção com um exército do Estado ou outro e pedir depois que o
amnistiassem e recebessem de novo no Exército.

Mas repugnava-lhe tornar-se ladrão, porque seu pai fora homem


honrado e não um desses homens que sucumbem facilmente à tentação de
roubar durante uma época de fome ou um período de guerra, e Wang Terceiro
ter-se-ia visto talvez forçado a lutar ainda durante anos e esperar uma
oportunidade favorável, pois tinha agora durante tanto tempo acalentado o seu
sonho

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que acabara por se convencer de que o próprio Céu lhe assinalara o
seu destino tal como o sonhara, e só tinha que esperar a chegada da sua hora
para o tomar nas mãos.

A única coisa que lhe tornava a expectativa absolutamente


impossível, pois não era de humor paciente, era que acabara por detestar do
fundo de alma aquela região do Sul onde vivia e aspirava a sair dali para
regressar ao seu Norte. Era homem do Norte e havia dias em que mal podia
tragar o eterno arroz branco de que aqueles meridionais gostavam e aspirava
a cravar os dentes numa dura bolacha de trigo sem fermento enrolado em
volta de um dente de alho. E endurecia o tom de voz, porque odiava muito
cordialmente as untuosas delicadezas desta gente do Sul, que era tão
excessivamente delicada que devia ser falsa, visto que é contra a natureza ser
constantemente amável e, julgava ele, todas as pessoas amáveis devem ser
de coração vazio. Sim, olhava muitas vezes de esguelha e zangava-se muito
frequentemente contra esta gente, porque aspirava a encontrar-se de volta ao
seu país natal, onde os homens crescem até se tornarem altos como homens
devem ser, não ficando uns pequenos abortos como estes meridionais e onde
a linguagem dos homens é sóbria e nítida e seus corações austeros e francos.
E porque Wang Terceiro possuía carácter tão áspero, os homens tinham medo
dele e receavam o franzir do seu sobrecenho, a expressão severa da sua boca,
e os seus grandes dentes brancos tinham-lhe até valido o nome de Wang o
Tigre.

Muitas vezes, durante a noite, no pequeno quarto que lhe estava


reservado, Wang o Tigre se revolvia na tarimba dura e estreita e procurava um
plano e um meio de realizar o seu sonho. Sabia muito bem que, se o velho pai
morresse, receberia a sua parte da herança. Mas o pai obstinava-se em não
morrer, e, rangendo os dentes, Wang o Tigre resmungava muitas vezes pela
noite fora:

«O velhote viverá mais tempo do que o que durará a minha bela


juventude e, se não morrer em breve, far-se-á muito tarde para que eu me
torne alguém! Que perversidade num velho obstinar-se em não morrer!»

E assim portanto chegara enfim nessa Primavera à encruzilhada


onde, por menos disposto que se encontrasse a fazê-lo, tomara a decisão de se
tornar capitão de ladrões, de preferência a continuar na expectativa. E mal
adoptara essa resolução, eis que lhe chega a notícia da morte do pai... De
posse da notícia, foi através dos campos, com o coração opresso a bater-lhe
violentamente no peito, pois via o caminho aberto na sua frente, e sentia-se
tão consolado por não ter que se fazer ladrão, que teria gritado, se não fosse,
de sua natureza, homem taciturno. Sim, muito acima de qualquer outra
consideração, aparecia-lhe

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esta. não se enganara no seu destino e, com a sua herança, teria
tudo aquilo de que precisava, e o Céu protegia-o. Sim, muito acima de
qualquer outra consideração aparecia-lhe esta: podia agora dar o primeiro
passo na estrada indefinidamente ascendente do seu destino, porque sabia
que estava destinado a ser um grande homem.

Mas ninguém viu essa exultação no seu rosto. Ninguém viu jamais
fosse o que fosse naquele rosto duro e impassível; da mãe herdara ele aquele
olhar firme, aquela boca apertada e aquele seu ar de ter as qualidades do
rochedo na própria substância de que a sua carne era feita. Portanto, sem nada
dizer, foi ao seu quarto preparar-se para a longa viagem em direcção ao Norte,
e designou para o acompanharem quatro homens de confiança que tinha sob o
seu comando. Feitos os preparativos sumários, dirigiu-se para a grande e velha
casa da cidade que o general tomara para o seu uso pessoal e mandou um
soldado da guarda anunciá-lo, e o guarda voltou para lhe dizer que podia
entrar. Então Wang o Tigre entrou, ordenando aos seus homens que o
esperassem à porta, e dirigiu-se ao quarto onde o velho general estava a
acabar a refeição do meio dia.

O velho comia quase de bruços em cima da comida e duas mulheres


andavam a servi-lo. Não estava nem lavado, nem barbeado, e o casaco
abanava-lhe no corpo, não abotoado, porque agora que envelhecera gostava
de ficar assim, por lavar e barbear, e não se preocupava já com o seu aspecto
como quando era jovem, pois fora outrora um muito baixo e comum
trabalhador manual, mas com a particularidade de nada trabalhar e se
entregar à roubalheira, tendo-se depois erguido acima da roubalheira por
ocasião de uma guerra ou de outra. Mas era um velho alegre e jovial, muito
pouco moderado de palavras. Fazia sempre bom acolhimento a Wang o Tigre e
mostrava consideração por ele, porque o via fazer coisas para as quais ele
próprio era muito indolente, dada a sua velhice obesa.

E assim Wang o Tigre entrou, fez a devida vénia, e disse:

Vieram hoje anunciar-me que meu pai morreu e que meus irmãos
me esperam para o enterrar.

O velho general recostou-se comodamente e respondeu:

Vai, meu filho, cumpre o teu dever para com teu pai e depois volta
para mim:

Meteu a mão no bolso do cinto, tirou uma mão cheia de dinheiro e


continuou:

Aqui tens um presente para ti; não te prives de nada durante a tua
viagem:

E inclinando-se para trás na sua poltrona, exclamou de repente que


tinha qualquer coisa num dente furado, e uma das suas mulheres tirou dos
cabelos um grande alfinete de prata e
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entregou-lho e ele pôs-se a palitar os dentes e esqueceu Wang o
Tigre.

E assim por conseguinte voltara Wang o Tigre a casa de seu pai. com
fervida impaciência esperou que se dividisse a herança e que lhe fosse
permitido regressar o mais depressa possível. Mas não quis pôr o seu plano em
prática antes de passarem os anos de luto. Não; era um homem escrupuloso,
que se empenhava em cumprir o dever e em virtude disso esperou. Mas agora
era-lhe fácil esperar, porque o seu sonho, estava certo disso, ia enfim realizar-
se. E passou os três anos a aperfeiçoar todos os meios para tal, a economizar o
seu dinheiro e a escolher e estudar os homens que esperava ver segui-lo.

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CAPÍTULO V

ORA, enquanto Wang o Tigre se preparava para deixar o Sul e para


fazer enfim uma experiência por sua própria conta, um certo dia chegou em
que Wang Segundo disse ao seu irmão mais velho:

Se tiveres tempo amanhã de manhã, vem comigo à casa de chá da


Rua das Pedras-Rubras e conversaremos de duas coisas.

Quando Wang Mais Velho ouviu o irmão dizer aquilo, sentiu-se


admirado porque sabia que eles deviam falar da terra, mas não sabia qual o
outro tema da conversa. Eis porque respondeu :

Vou lá sem falta, mas de qual outro assunto temos que falar?

Recebi uma carta muito esquisita do nosso terceiro irmão, respondeu


Wang Segundo. Faz-nos um oferecimento para todos os filhos de que possamos
dispor, porque vai iniciar uma grande empresa e precisa de ter em volta de si
homens do seu próprio sangue, visto não ter filhos seus.

Os nossos filhos!repetiu Wang Mais Velho, estupefacto, com a sua


grande boca entreaberta de espanto e os olhos atónitos fixados no irmão.

Wang Segundo abanou a cabeça e continuou:

Não sei o que ele vai fazer deles, mas aparece amanhã e falaremos
outra vez disto.

E ia a prosseguir no seu caminho, porque detivera o irmão na rua, ao


voltar do mercado de cereais.

Mas Wang Mais Velho era incapaz de acabar tão depressa fosse com
o que fosse e tinha, aliás, sempre tempo para tudo quanto aparecia, e eis
porque disse, com o humor divertido em que nesses dias se encontrava,
proveniente do facto de estar na posse do seu património:

É muito fácil para um homem ter filhos! Devemos arranjar-lhe


mulher, meu irmão!

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E semicerrou os olhos, tomando um ar malicioso como se fosse dizer
uma coisa com muito espírito. Mas Wang Segundo, ao ver isso, sorriu um
pouco e disse no seu tom glacial:

Nem todos têm com as mulheres as liberdades que tu tens, irmão


mais velho!

E dizendo isto afastou-se, pois não lhe interessava nada deixar Wang
Mais Velho proferir as suas inconvenientes maneiras de ver, quando se
encontravam ali na rua, no meio dos passeantes dispostos sempre a parar e
escutar tudo o que se dizia.

Na manhã do dia seguinte, os dois irmãos encontraram-se na casa


de chá e sentaram-se a uma mesa num canto do qual podiam ver tudo quanto
se passava na sala, mas onde os poucos presentes não podiam facilmente
ouvir o que eles tinham a dizer-se um ao outro. Wang Mais Velho sentou-se no
banco estofado, que era o lugar de honra, e que de direito lhe pertencia.
Chamou depois o rapaz do estabelecimento e quando ele chegou Wang Mais
Velho encomendou-lhe os pratos tais e tais, bolos doces a sair do forno e
peixes em salmoura, que se comem de manhã para abrir o apetite, e um jarro
de vinho quente e outros alimentos que se comem para fazer passar o vinho,
de maneira a impedir que o seu calor suba e que se fique embriagado o dia
inteiro, pois era homem que amava a boa comida. Wang Segundo sentara-se e
apurava a orelha; e, por fim, agitou-se na sua cadeira e inquietou-se, porque
ignorava se sim ou não teria que pagar a sua parte de tudo aquilo. Interpelou
novamente o irmão:

Se todas estas comezainas são para mim, irmão, previno-te de que


lhes não tocarei, porque sou homem sóbrio e principalmente de manhã não
tenho apetite algum.

Mas Wang Mais Velho respondeu com ar generoso:

Tu és hoje meu convidado e não deves preocupar-te, porque sou eu


quem paga.

Tranquilizou desta maneira o irmão, e quando chegaram os pratos,


Wang Segundo fez por comer o mais possível, visto que era convidado, pois
era nele uma mania de que não podia impedir-se, posto tivesse dinheiro em
abundância, o economizar tudo o que podia e muito particularmente se se
tratava de qualquer coisa que não tinha que pagar. Enquanto outras pessoas
dão aos criados as roupas velhas e os utensílios de que já se não servem, ele
não podia resignar-se a fazê-lo, e tinha de levar às escondidas tais coisas a um
ferro-velho para ainda deles tirar algum rendimento. Da mesma maneira,
quando era convidado, não deixava de se encher de comida tanto quanto
podia, embora fosse um homem magro e sem barriga. Mas forçava-se e comia
o mais, possível, de tal maneira que depois não tinha necessidade de comer
durante um ou dois dias.

Procedeu assim nessa manhã. Enquanto os irmãos comeram,


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não falaram e contentaram-se com comer, e enquanto
esperavam que o criado trouxesse um novo prato, ficaram em silêncio a
olhar através da sala, porque é muito mau para o apetite começar a
discutir uma questão enquanto se come, o que impede o estômago de
digerir os alimentos.

Ora, conquanto eles o não soubessem, era aquela a mesma


casa de chá onde o pai deles, Wang Lung, viera outrora e onde
encontrara Lotus, a jovem que tomara para concubina. A Wang Lung
esse estabelecimento afigurara-se um lugar de maravilha e uma mágica
e esplêndida casa, com os seus quadros de bonitas mulheres orladas de
seda, suspensos das paredes. Mas para os seus dois filhos era um
estabelecimento muito vulgar; e nunca eles teriam imaginado o que
fora para o pai,- nem que ele aí entrava timidamente e meio
envergonhado, como um campónio entre homens da cidade. Não, os
dois filhos estavam ali instalados, em trajo de seda e olhavam em redor
com grande àvontade e toda a gente sabia quem eles eram e todos se
apressavam a levantar-se e cumprimentar, se os dois irmãos olhavam
para o lado deles; os criados apressavam-se a servi-los e o dono do
estabelecimento veio pessoalmente, com o rapaz que trazia a caneca
de vinho quente, dizer-lhes:

Este vinho foi tirado de odres expressamente abertos e fui eu,


com a minha própria mão, que quebrei, para vo-lo mandar servir, o selo
de argila.

E perguntou por várias vezes se o serviço lhes agradava.

Assim acontecia aos filhos de Wang Lung, embora num canto


pouco afastado estivesse ainda suspensa a sanefa de seda na qual
estava pintado o retrato de Lotus, uma esbelta rapariga que segurava
na sua pequenina mão um botão de lotus. Outrora Wang Lung
contemplara-a com o coração a pulsar-lhe desordenadamente e o
espírito em desvario, mas agora ele desaparecera e Lotus era o que era,
e a sanefa pendia ali, suja de fumo e manchada das sugidades das
moscas e ninguém olhava para ela nem pensava em perguntar: «Quem
é aquela bonita rapariga cujo retrato se esconde ali naquele canto?»
Não, aqueles dois homens, que eram os filhos de Wang Lung, nunca
teriam sequer imaginado que era Lotus, nem que ela pudesse ter-se
parecido com aquela mulher.

Terminada a refeição, Wang Segundo tirou uma carta do


estreito seio e, depois de ter extraído o papel do sobrescrito, estendeu-o
em cima da mesa, na frente do irmão.
Wang Mais Velho pegou nele. Tossiu, apurou a voz e leu a carta
em meio tom, para si próprio. Depois das fórmulas iniciais de saudação,
Wang o Tigre cuja letra se parecia com ele, pois era rígida, carregada e
negradizia:

«Mandem-me tantas onças de dinheiro quanto puderem,

4-w. L.
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da parte da herança que me cabe, pois todo é pouco. Se
quiserdes emprestar-me do dinheiro vosso, reembolsar-vos-ei, com alto
juro, no dia em que tiver realizado o que empreendi fazer. Se tiverdes
filhos de mais de dezassete anos, enviai-mos também. Eu elevá-los-ei a
uma alta situação, mais alta do que imaginais, pois preciso de ter em
volta de mim homens do meu próprio sangue nos quais possa depositar
confiança para a minha grande aventura. Mandem-me o dinheiro e
mandem-me os vossos filhos, visto que eu os não tenho».

Wang Mais Velho leu aquelas palavras e olhou o irmão e o


irmão olhou-o. Depois Wang Segundo disse, com espanto:

Ele contou-te alguma vez tudo quanto fazia no tal exército do


general sudista? É singular que me não explique o que pretende fazer
dos nossos filhos. Os filhos não são para rneter assim como quem não
mete nada, numa coisa que se não sabe o que é.

Ficaram um momento em silêncio, a beber o chá, e cada um


deles pensava com incerteza que era muito estranho mandar os filhos
para longe sem saber para onde e apesar disso cada um deles repetia
orgulhosamente a frase:

«Eu elevarei os vossos filhos a alta situação» e cada um dizia


de si para consigo que, visto ter um filho ou dois com idade suficiente,
poderia muito bem, depois de tudo, entregá-lo à aventura

Wang Mais Velho tivera da esposa seis filhos, mas dos seis,
dois tinham morrido em pequenos e tivera um da sua concubina, a qual
estava prestes a dar de novo à luz, dentro de um ou dois meses, e todos
aqueles filhos que ele tinha eram sãos, excepto o terceiro, que uma
escrava deixara cair quando ele tinha ainda poucos meses, de maneira
que as costas tinham-lhe crescido tortas, formando um nó nos ombros,
e a cabeça, demasiado volumosa para ele, encaixava naquela corcova
como uma cabeça de tartaruga na concha. Wang Mais Velho mandara
vir um médico ou dois para o ver e prometera até um manto a certa
deusa do templo, se lhe curasse o filho, embora em circunstâncias
normais não acreditasse nessas coisas. Mas tudo foi inútil, visto que o
menino estava destinado a levar o seu fardo até à morte, e o único
prazer que o pai dele tirou foi privar a deusa do vestido prometido, visto
ela nada ter querido, fazer naquelas circunstâncias.

Quanto a Wang Segundo, tinha ao todo cinco filhos, três dos


quais rapazes, sendo o mais velho e o mais novo raparigas. Mas a sua
mulher estava ainda na flor da idade e a série dos filhos não terminara
certamente ainda, pois, sendo como era mulher robusta, dá-los-ia até à
idade madura. ’

Era então claro que, havendo tantos filhos, podia dispor-se de


um ou dois, e foi o que cada um dos dois irmãos pensou, depois

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de reflectir um pouco. Por fim Wang Segundo ergueu os olhos e
disse:

Que respondo ao nosso irmão?

O irmão mais velho hesitou então, porque não era homem para
decidir rapidamente por si próprio fosse o que fosse, visto ter-se atido desde
há anos às decisões da esposa, dizendo o que ela lhe sugeria que dissesse.
Wang Segundo, sabendo-o, disse habilmente:

Digo-lhe que lhe mandaremos cada um de nós um filho e que eu lhe


enviarei todo o dinheiro que puder?

Wang Mais Velho ficou muito contente por o ouvir falar assim e
respondeu:

Sim, faz isso, irmão, e decidamos isso. Feitas todas as contas, eu


mandar-lhe-ei um filho com alegria, visto que na minha casa às vezes são
tantos os garotelhos que berram e os rapazolas que questionam, que, juro-te,
não tenho um momento de sossego. Eu mandarei o meu segundo filho e tu o
teu mais velho, e se acontecer uma desgraça, ficará o meu mais velho para
perpetuar o nosso nome.

Assim se decidiu e ambos ficaram mais um momento em silêncio a


beber o seu chá. Depois, mais calmos, começaram a falar das terras, e do que
queriam vender. Ora, enquanto eles estavam a cochichar um e outro, ocorreu-
lhes a ambos uma recordação intensa: era a de um certo dia em que tinham
pela primeira vez falado em vender a terra. O pai Wang Lung estava já velho e
eles não pensavam que tivesse ainda força bastante para vir ali sem ruído, por
detrás deles, escutar o que diziam, naquele campo próximo da casa de adobe.
Mas ele viera e, ao ouvi-los proferir «Vender a terra»exclamara numa violenta
cólera:

«Pois quê, filhos indolentes... falais em vender a terra?»

E estava tão zangado que teria caído ao chão se o não tivessem


amparado. E não cessava de murmurar: «Não, nunca venderemos a terra»e
para acalmá-lo, pois já não estava em idade de se encolerizar, tinham-lhe
prometido nunca a vender. Mas, enquanto o prometiam, sorriam um para o
outro, por sobre a velha cabeça trémula, prevendo o dia em que se reuniriam
com esse desígnio.

Apesar de ávidos como nesse dia se encontravam de fazer dinheiro,


a recordação do velho amigo da terra era ainda neles intensa e impedia-os de
vender a terra tão facilmente como o teriam pensado, e a cada um retinha no
foro íntimo uma prudência que lhes lembrava que, ao fim e ao cabo, o velhote
tinha talvez razão, e cada um decidiu de si para consigo não vender
imediatamente tudo; podiam vir tempos difíceis e, se as coisas corressem mal,
teriam ainda terra suficiente para se alimentarem. Pois em tempos como
aqueles nunca se estava certo do dia em que
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uma guerra podia surgir nas proximidades ou um capitão de
bandidos apoderar-se por uns tempos da região ou um flagelo qualquer
cair sobre os habitantes, e mais valia possuir qualquer coisa que não
pode perder-se. Apesar disso, sentiam-se ambos ávidos do grande juro
do dinheiro que dá a venda da terra, e sentiam-se assim solicitados
diversamente pelos seus desejos. Eis por que Wang Segundo disse:

Qual das tuas terras queres vender?

Wang Mais Velho respondeu com uma prudência que se lhe


adequava de modo estranho:

-Feitas todas as contas, não tenho um ofício como tu tens, e


nada sei fazer senão ser proprietário, e por isso devo vender o
necessário para obter dinheiro sonante, não tudo.

Então Wang Segundo continuou:

Vamos às nossas terras ver quanto medem e onde estão


situadas, e assim também as pequenas parcelas afastadas e esparsas.
Pois o nosso velho pai era tão ávido de terra que, na idade madura,
comprava toda a que aparecia quando fosse a preço de fome, e assim
temos terras em todo, o país, e certos campos só têm alguns pés de
extensão. Se deves ser proprietário de bens de raiz, será mais cómodo
para ti ter as tuas terras próximas umas das outras, o que tornará mais
fácil olhar por elas.

Isto afigurou-se razoável a ambos, e assim levantaram-se


depois de Wang Mais Velho ter pago a despesa do que tinham comido e
bebido, deixando mais qualquer coisa para o criado. Depois do que,
saíram.

Às portas da cidade, Wang Mais Velho sentia-se já cansado e


eis por que eles chamaram dois homens que ali estavam com burros
ajaezados e prontos, de aluguer, e os dois irmãos encavalitaram-se nos
bichos e saíram as portas.

Passaram todo esse dia nas suas terras, com excepção de uma
paragem ao meio-dia, para comerem numa hospedaria do caminho, e
examinaram a terra com atenção e viram o que faziam os rendeiros. E
os rendeiros mostraram-se humildes e inquietos na frente deles, visto
que aqueles senhores eram os novos proprietários, e Wang Segundo
tomou nota de cada parcela que convinha mais vender. Marcaram
também para vender todas as terras que pertenciam ao seu irmão,
excepto o pedaço que ficava em frente à casa de adobe. Mas por um
comum acordo os dois irmãos não se aproximaram dessa casa, assim
como não se aproximaram do montículo onde o pai repousava, sob uma
grande tamareira.

Concluída a jornada, voltaram à cidade nas cavalgaduras


fatigadas e à porta desceram e pagaram aos homens o’preço
combinado. Os homens estavam também fatigados, e solicitaram um
pouco mais do que o estipulado, visto terem ido tão longe e caminhado
durante tanto tempo que os sapatos estavam

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gastos. Wang Mais Velho teria dado de boa vontade o pedido
suplemento, mas Wang Segundo recusou, e disse ao burriqueiro:

Não, dei-te aquilo a que tens direito, e quanto ao que acontece aos
teus sapatos, não é comigo.

E afastou-se dizendo estas palavras, sem dar atenção às injúrias que


lhe lançavam a meia voz os dois burriqueiros.

Assim chegaram os dois irmãos a casa. Ao separarem-se, olharam-se


como homens que têm um desígnio comum, e Wang Segundo disse:

Se assim queres, mandemos os nossos filhos de hoje a oito dias, e


eu próprio os conduzirei.

Wang Mais Velho fez um sinal de assentimento e transpôs a sua


porta com um passo de extrema fadiga, pois nunca ele tivera um tal dia de
trabalho em toda a sua existência, dizendo com os seus botões que a vida de
um proprietário era muito fatigante.

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CAPÍTULO VI
E no dia marcado Wang Segundo disse ao irmão mais velho: Se o teu
segundo filho está pronto, então o meu

também está, e eu vou levá-los. Parto amanhã de madrugada em


direcção àquela cidade do Sul onde se encontra o nosso irmão, para lhe
apresentar os rapazes, dos quais fará como entender.

Nesse mesmo dia, como Wang Mais Velho estava de boa feição,
mandou vir o seu segundo filho e olhou atentamente aquele rapaz, para ver o
que valia e como se entenderia na carreira a que estava destinado. O rapaz
acorreu sem demora e ficou à espera na frente do pai. Era um adolescente de
pequena estatura e de aspecto muito frágil e delicado, bem longe de ser
bonito, muito tímido e facilmente intimidável, sempre com as mãos trémulas e
húmidas. Ali estava diante do pai, torcendo as mãos trémulas, sem saber o que
fazia, e baixava a cabeça, mas a todo o momento tornava a levantar
vivamente os olhos para deitar um olhar de lado ao pai e depois baixava outra
vez a cabeça.

Wang Mais Velho considerou-o fixamente um minuto; via-o pela


primeira vez sozinho e separado dos outros filhos, e disse-lhe de repente, meio
distraído:

Melhor seria que fosses o mais velho e que o mais velho estivesse no
teu lugar, pois é mais bem constituído que tu para ser um general, e tu tens
um ar tão débil que não sei se serás ou não capaz de te segurar a cavalo.
Apenas ditas estas palavras, eis que o rapaz se lança de joelhos e
implora o pai, juntando as mãos trémulas:

Oh, meu pai, só a ideia de ser soldado me causa horror. Eu pensava


em vir a ser um letrado, pois gosto tanto dos livros! Oh, meu pai, deixe-me
ficar em nossa casa consigo e com a mãe, e não lhe pedirei sequer para ir à
escola... Não, lerei e estudarei sozinho o melhor que puder, e nunca o
importunarei em nada se consentir em não me mandar para longe para ser
soldado!

55
Wang Mais Velho ia jurar que não dissera palavra do caso, e
contudo a coisa soubera-se de uma maneira ou de outra. Na verdade,
Wang Mais Velho não podia guardar coisa alguma só para si. Era
constituído de tal modo que de cada vez que lhe ocorria um
pensamento ou que ruminava qualquer secreto projecto, os seus
trejeitos, suspiros, meias palavras e ares misteriosos bastavam, sem ele
dar por tal, para o trair. Teria jurado que nada dissera a ninguém, mas
dissera-o ao seu filho mais velho, cjissera-o durante a noite à sua
concubina e dissera-o em último lugar à sua esposa, tendo
forçosamente de fazê-lo para obter a sua aprovação. Expôs-lhe, aliás, o
caso tão bem que a dama, julgando que o filho ia chegar de um salto ao
posto de general, concordou imediatamente, embora emitisse a opinião
de que não merecia menos do que isso. Mas o filho mais velho, que era
um rapaz astucioso e que sempre sabia mais do que os outros
supunhampois afectava um ar tão lânguido que parecia não ver nada
afligira o seu irmão segundo e escarnecera dele, dizendo:

«Vão fazer de ti um simples soldado e tu vais ser a ordenança


do selvagem do nosso tio!»

Ora este segundo filho de Wang Mais Velho era um rapaz que
não podia ver matar uma galinha sem fugir para qualquer lado, para
vomitar, e não podia quase suportar a carne no seu estômago
demasiado sensível. Quando ouviu o irmão mais velho dizer aquilo,
ficou perdido de medo e não soube que fazer. Não podia acreditar
naquilo e ficou toda a noite sem dormir. Mas nada podia fazer também,
a não ser esperar que o chamassem, e assim se lançara aos pés do pai,
pedindo compaixão.

Mas quando Wang Mais Velho viu o filho assim ajoelhado e


suplicante, encolerizou-se, pois era homem a quem acontecia ser
teimoso como um jumento e zangar-se a fundo quando tinha poder para
tal. E exclamou, batendo com o pé no chão ladrilhado:
Tu vais, pois é essa uma daquelas possibilidades que nunca
devemos recusar! Vais e teu primo vai também. Devias até sentir-te
muito contente por partires. Quando eu era novo, ter-me-ia louvado de
uma tal possibilidade, mas a verdade é que ela nunca surgiu. A mim,
mandaram-me para o Sul, por me mandarem, e ainda lá fiquei pouco
tempo, porque minha mãe morreu e o meu pai ordenou-me que
voltasse a casa. E nunca pensei em desobedecer-lhe; nunca em tal teria
pensado! Não, eu nunca tive possibilidade de me tornar alguém, graças
à alta situação de um tio!

E Wang Mais Velho, de repente, suspirou ao pensar na


grandeza a que teria chegado se tivesse tido a mesma sorte que seu
filho e no ar altivo que teria com uma farda dourada de soldado. Era
assim que ele imaginava os generais, e ele via-se

56
a si próprio como um gorducho bem humorado, como deve ser um
general. Depois, suspirou outra vez e, olhando o magricelas do filho, disse-lhe:

Acharia preferível mandar um filho melhor do que tu, é certo, mas


não tenho nenhum com a idade suficiente além de ti, visto que o mais velho
não pode abandonar a casa, pois é o meu principal herdeiro e vem logo depois
de mim na família, e o teu irmão mais novo é corcunda e o seguinte não passa
de um bebé. Tens que ir e todas as tuas lágrimas de nada te servirão, pois é
absolutamente necessário que vás.

E, levantando-se, saiu apressadamente do quarto, para não ser


importunado mais tempo pelo filho.

Mas o filho de Wang Segundo não era um rapaz como esse. Era um
ser alegre e bulhento; tinha tido as bexigas loucas aos três anos e conservara
sempre as marcas delas, o que lhe valera o apelido de o Bexigoso, que em vez
do seu nome lhe era dado por toda a gente e até pelos parentes. Quando Wang
Segundo, depois de o mandar chamar, lhe disse: «Faz uma trouxa das tuas
roupas porque parto amanhã contigo para o Sul, pois vou dar-te a teu tio, o
soldado»ele pôs-se a dar saltos e cabriolas de satisfação, porque era um rapaz
sempre disposto a ver coisas novas e gostava de se gabar daquilo que vira.

Mas a mãe, que estava ali, à porta da cozinha, a mexer o conteúdo


de uma panela nas brasas de um pequeno forno de barro, ergueu os olhos e,
visto que não tinha ouvido falar do caso, exclamou, no seu tom quesilento:

Então qual é o motivo dessa viagem ao Sul, que vai custar tão bom
dinheiro?

Wang Segundo explicou-lho e ela ouviu-o enquanto continuava a


mexer o conteúdo da panela, mas sem perder de vista uma criadita que
depenava uma ave ali ao pé, e sem deixar de vigiar a filha, com medo de que
ela escamoteasse sub-repticiamente o fígado ou os ovos da prepostura. Por
isso ouviu o fim do que o marido dizia, ou seja isto:

Será uma aventura e eu não sei o que ele entende por elevar o rapaz
a uma alta situação, mas temos os outros rapazes que podemos meter nos
negócios, e só temos este com idade bastante para lhe mandar. Aliás, o meu
irmão manda também um.

Quando a mulher ouviu estas últimas palavras, deu atenção ao caso


e disse imediatamente:

Pois bem, se os filhos deles devem ser elevados até uma alta
situação, temos também de mandar os nossos, de outro modo eu ficarei a
ouvir perpetuamente a minha cunhada falar do filho como de um herói. É certo
que o nosso filho deve forçosamente vir a ser alguém, tão esperto é e tão
astuto em habilidades. E como muito bem diz, temos os outros para o
comércio.
57
E assim, no dia seguinte, Wang Segundo tomou consigo os
dois rapazes, cada um deles com a sua bagagem, que o filho de Wang
Mais Velho, sendo delicado e difícil, metera numa bela mala de pele de
porco. E embora tivesse os olhos ainda vermelhos de ter chorado,
demorou-se a ver se o seu criado a conduzia de forma conveniente, com
a parte superior para cima, de maneira a não se estragarem os livros.
Mas o filho de Wang Segundo não tinha livros, e reunira a roupa num
grande lenço de algodão azul, que ele próprio levava, correndo alegre
de tudo quanto via. Era um lindo e claro dia de Primavera. As ruas da
cidade estavam cheias dos primeiros produtos do campo e todos se
ocupavam a comprar ou a vender. Para aquele rapaz, era um bom ano e
um belo dia. Estava a caminho para uma viagem que nunca antes
fizera; a mãe cozinhara-lhe um petisco de que gostava, para comer
nessa manhã, e ele ficara todo contente. Mas o outro rapaz caminhava
com dignidade, lenta e silenciosamente. De cabeça baixa, mal olhava o
primo, e, de vez em quando, humedecia os lábios descorados como se
os sentisse muito secos.

Wang Segundo caminhava com os dois rapazes e pensava nos


seus próprios negócios, pois não era homem para dar atenção a
crianças, e assim chegaram ao norte da cidade onde ficava o lugar em
que se subia para o carro de fogo. Wang Segundo pagou o dinheiro e
subiram. O filho de Wang Mais Velho teve então de sofrer grande
vergonha, porque seu tio comprara os lugares mais baratos que havia,
julgando que aquilo já era bastante bom para dois garotos, e assim o
jovem verificou que teria de viajar numa carruagem onde iam sentadas
pessoas muito vulgares que cheiravam a alho, cujas roupas de algodão
não eram lavadas e cheiravam a pobreza, e eis que ele levava um belo
trajo de seda azul e tinha que se sentar no meio deles. Mas não ousava
queixar-se, pois tinha medo do mal disfarçado desprezo de seu tio, e eis
porque se limitou a tomar o seu lugar e a pôr a mala entre ele e o
vulgar criado de

quinta que ia ao lado, e olhava com ar penoso o seu próprio


criado, e que tinha agora de se separar; mas no entanto não se atreveu
a dizer nada.

Mas Wang Segundo e o filho não tinham de modo algum


melhor aspecto do que os outros viajantes, porque, ao levantar-se nessa
manhã, Wang Segundo vestira uma túnica de algodão, pois valia mais
não aparecer com um aspecto demasiado elegante ao irmão,
parecendo-lhe mais rico do que convinha. Quanto ao filho, não tinha
ainda trajos de seda e as suas fortes roupas de algodão tinham sido
cosidas com ponto grosseiro pela mãe, e cortadas muito largas, para lhe
servirem à medida que fosse crescendo. E Wang Segundo olhou o
sobrinho e disse com o seu ar melífluo:
É mau viajar todo o dia com roupa tão bonita como a que
trazes. Farias melhor tirando essa túnica de seda e dobrando-a

58
para a pores na mala, ficando em trajos de debaixo e economizando
assim a tua melhor roupa.

O rapaz murmurou então:

Mas eu tenho melhores do que esta, pois esta é a que trago em casa
todos os dias.

No entanto, não se atreveu a desobedecer. Levantou-se e fez O que


o tio lhe dizia.

Viajaram assim todo o dia, por terra, e Wang Segundo contemplava os


campos e as cidades através das quais iam passando, apreciava tudo quanto viam, e
o filho divertia-se a cada coisa nova, e nas paragens aspirava a provar dos bolos de
cada vendedor que passava; mas seu pai não o entendia assim. O outro rapaz, pálido
e tímido, permanecia sentado, e sentia-se nauseado porque o carro ia com demasiada
rapidez; apoiava a cabeça na mala de pele de porco e nada disse durante o dia
inteiro, recusando-se até a tocar na comida.

Depois viajaram também dois dias por mar, num pequeno barco cheio de
gente e chegaram finalmente à cidade onde deviam encontrar aquele que
procuravam. Quando desceram do barco e se encontraram de novo em terra, Wang
Segundo alugou dois carrinhos, um para os dois rapazes, outro para si próprio. O
homem do dos rapazes queixou-se amargamente do duplo peso, mas Wang Segundo
explicou-lhe que eram ainda rapazes apenas, não homens, e que um deles era pálido
e magro e pesava menos que de costume, por causa do enjoo; à força de discussões e
pagando um pouco mais, mas não tanto como o custo de outro veículo, o homem
acabou mais ou menos por concordar. E os condutores dos carrinhos dirigiram-se à
casa e à rua cujo nome Wang Segundo lhes indicara e quando lá chegaram, tirou do
seio a carta, comparou os caracteres inscritos na porta com os do sobrescrito e viu
que eram os mesmos.

Desceu então do carrinho e ordenou aos dois rapazes que


descessem do seu, depois de ter regateado algum tempo com os condutores,
porque o lugar não ficava tão longe como eles tinham dito, pagou-lhes um
pouco menos do que o preço a princípio combinado, agarrou na mala por um
lado, os dois rapazes pegaram-lhe pelo outro e decidiram-se a transpor o
portão, de cada lado do qual se erguiam dois leões de pedra.

Mas havia ali um soldado de sentinela junto de um dos leões, que


exclamou:

Olá, então julgam que podem entrar por esta porta assim sem mais
nada?

E descendo a espingarda do ombro, fez ressoar a coronha no lajedo.


Era de aspecto tão feroz e tão rude que os três recém-chegados ficaram
aterrados e o filho de Wang Mais Velho se pôs a tremer e o próprio rapaz
bexiguento mostrou durante um mo-

59
mento ar sério, porque nunca ainda se encontrara assim perto
de uma espingarda.

Então Wang Segundo apressou-se a tirar do seio a carta do


irmão e deu-a a examinar ao soldado, dizendo:

Somos as três pessoas aqui mencionadas, esta carta é a nossa


salvaguarda.

Mas o soldado não sabia ler e eis por que ele chamou outro
soldado. Este aproximou-se e depois de ter fitado durante um minuto os
visitantes e escutado toda a sua história, pegou na carta. Mas também
ele não sabia ler, e depois de lhe ter lançado um olhar levou-a para
dentro. Ao fim de alguns momentos, voltou e apontando o edifício,
disse:

Tudo bem... São parentes do capitão e podem entrar.

Pegaram outra vez na mala e entraram, passando além dos


leões de pedra, embora o homem da espingarda os seguisse com o
olhar com ar indeciso, como se não estivesse ainda bem convencido.
Entretanto, foram caminhando atrás do outro soldado que lhes fez
atravessar pelo menos dez pátios, todos cheios de militares em
descanso, uns a comer, outros a beber, outros sentados despidos ao
Sol, a limparem as fardas da bicharia, e outros deitados a dormir,
ressonando. Chegaram assim a uma casa interior, e ali, no
compartimento central, estava sentado Wang o Tigre. Esperava-os
sentado à mesa e estava vestido com uma bela farda escura de pano
estrangeiro, munida de botões de cobre, nos quais havia um sinal em
relevo.

Levantou-se vivamente ao entrarem os parentes, gritou aos


soldados que o serviam que trouxessem vinho e comida e inclinou-se na
frente do irmão. Wang Segundo cumprimentou por seu turno e ordenou
aos dois jovens que o imitassem. Sentaram-se então todos conforme a
dignidade, Wang Segundo no lugar de honra, a seguir Wang o Tigre, e
os dois rapazes nos lugares laterais. Depois um criado trouxe vinho, que
deitou em taças, feito o que Wang o Tigre olhou os rapazes e disse no
seu tom brusco e rude:

Este rapaz vermelhusco tem ar bastante robusto, mas


pergunto-me que bom senso haverá por trás do seu rosto bexigoso. Tem
ar de pateta. Espero que o não seja, irmão, porque não gosto de quem
ri demais. É teu?... Vejo nele como que uma semelhança da mãe.
Quanto a este outro... É tudo quanto o meu irmão mais velho pode
enviar-me de melhor?
Ao ouvir-lhe aquilo, o pálido jovem curvou a cabeça mais do
que nunca, e pôde ver-se-lhe um leve suor frio gotejar de leve no lábio
superior, que ele limpou furtivamente com a mão, continuando a
manter o olhar obstinadamente baixo. Mas Wang o Tigre não cessava de
fixar neles o duro olhar sombrio, e de tal maneira que mesmo o
Bexigoso, que estava sempre tão à-vontade, não sabia já para onde
olhar, e desviou os olhos para um lado e

60
outro, mexeu os pés e pôs-se a roer as unhas. E então Wang
Segundo disse a modo de desculpa:

É certo, irmão, que são apenas dois pobres seres, e temos pena de
não termos outros mais apropriados à tua benevolência. Mas o filho mais velho
de meu irmão é o principal herdeiro, e o que vem a seguir a este é corcunda, e
este bexigoso é o meu mais velho e o que vem a seguir não passa de uma
criança e eis por que estes dois são os melhores que por agora temos.

Então Wang o Tigre, depois de os apreciar, ordenou a um soldado


que conduzisse os rapazes para uma sala contígua e que lhes dessem de
comer, só devendo vir quando ele os chamasse. O soldado levou-os então, mas
o filho de Wang Mais Velho lançava olhares desesperados ao tio, e Wang o
Tigre, ao vê-lo hesitar desse modo, gritou-lhe:

Porque hesitas? Que esperas?

Então o jovem parou e respondeu em voz tímida:

Mas não poderia levar a minha mala?

Wang o Tigre olhou então e viu ao lado da porta a bela mala de pele
de porco. E disse com certo desprezo:

Leva-a, mas não te servirá de nada, porque tu vais despir esses


belos trajos e vestir as boas e polidas fardas que usam os soldados. Ninguém
pode bater-se com túnicas de seda!

Ao ouvir isto, o rapaz ficou cor de tijolo e saiu sem mais palavra,
ficando os dois irmãos sós. -

Durante momentos, Wang o Tigre conservou-se em silêncio, pois não


era homem para conversar por delicadeza, e Wang Segundo acabou por lhe
perguntar:

Em que pensas tão profundamente? Será alguma coisa que diz


respeito aos nossos filhos?

Então Wang o Tigre disse lentamente:

Não, estava a pensar que a maior parte dos homens da minha idade
tem filhos já crescidos, o que deve ser para um homem alguma coisa muito
reconfortante.

Pois também tu podias tê-los, se te tivesses casado bastante cedo


observou Wang Segundo, tossindo um pouco. Mas ficámos durante muito
tempo sem saber onde te encontravas, e o pai, ignorando-o também, não
podia casar-te como desejava. Mas meu irmão e eu de muito boa vontade o
faremos, e o dinheiro a tal destinado lá está para quando tu dele precises para
tal circunstância.
Mas Wang o Tigre afastou decididamente esse pensamento
respondendo:

Não; há-de parecer-te, por certo, estranho, mas a verdade é que não
me interesso por mulheres; é uma coisa singular mas não tive nunca relações
com uma mulher...

Deteve-se, porque entrava nesse momento o criado com a comida. E


os irmãos não disseram por então mais nada.

61
Depois de terem comido, levantado a mesa e trazido o chá,
Wang Segundo preparou-se para perguntar a Wang o Tigre o que
contava fazer de todo o seu dinheiro e daqueles jovens, mas não sabia
como formular a pergunta, e, antes que encontrasse a maneira, Wang o
Tigre disse de súbito:

Somos irmãos. Tu e eu compreendemo-nos. Confio em ti!

Wang Segundo bebeu um pouco de chá e disse seguidamente,


num tom prudente e suave:

Podes confiar em mim, visto que somos irmãos, mas gostaria


de conhecer o teu plano, a fim de saber o que devo fazer por ti.

Então Wang o Tigre curvou-se para a frente e falou em voz


contida e as palavras precipitaram-se rápidas e o seu bafo era como um
vento ardente no ouvido de Wang Segundo:

Tenho em torno de mim homens fiéis e dedicados, um cento ou


mais, e estão todos fartos do velho general. Eu também estou farto
dele, e aspiro a encontrar-me no meu país e a não ver mais um único
destes macaquitos amarelos do Sul. Sim, tenho homens fiéis e
dedicados! A um sinal meu, pôr-se-ão em marcha comigo, ao favor de
uma noite que já não vem longe. Dirigir-nos-emos para o Norte, para
onde ficam as montanhas e estaremos já bem longe nessa zona se
tivermos de nos entrincheirar para fazer uma guerra de defesa, no caso
de o velho general nos perseguir. Mas é incapaz de se mexer... está
velho e só pensa em comer e beber e nas mulheres, sem contar que os
seus homens melhores e mais fortes estão entre os meus cem, homens
não do Sul, mas que provêm de raças mais ferozes e valentes.

Ora Wang Segundo fora toda a vida um homenzinho pacífico,


um comerciante, e embora sabendo que havia sempre uma guerra em
qualquer parte, só uma vez tivera alguma coisa que ver com guerras,
quando durante uma revolução alguns soldados tinham sido aboletados
em casa de seu pai, e nada sabia da maneira como a guerra começa ou
se desenvolve, a não ser que, quando ela ocorre muito perto, os preços
do cereal sobem e se ela se afasta, os preços tornam a baixar. Nunca
estivera tão perto de uma guerra como desta, e esta era na sua própria
família. A sua pequena boca abriu-se toda, os olhos alargaram-se-lhe e,
por sua vez, murmurou:

Mas que posso fazer para te ajudar, eu que sou um homem


pacífico?

Istoprosseguiu Wang o Tigre, numa voz contida que raspava


como ferro no ferro.Preciso de muito dinheiro, todo o meu património,
preciso que me empresteis’ muito, pelo menor juro que me puderdes
conceder, até que eu me possa estabelecer!

Mas qual a quantia?perguntou Wang Segundo, a quem faltava


o sopro.

Esta continou Wang o Tigre.Vós ides emprestar-me aquilo de


que preciso e o que a terra render até que me seja possível

62
reunir um poderoso exército e estabelecer-me-ei em qualquer parte,
ao Norte da nossa região, e far-me-ei senhor de todo esse território. Depois,
quando for o senhor, alargarei os meus domínios e tornar-me-ei cada vez
maior, a cada guerra que travar...

Calou-se e pareceu olhar lá longe, qualquer longínquo futuro, num


país longínquo, como se o visse nítido na sua frente. Wang Segundo esperava.
Por fim, incapaz de esperar mais, perguntou :

Até que quê?

Wang o Tigre ergueu-se de repente.

Até que não haja ninguém acima de mim nesta nação ! respondeu
ele em voz contida, que parecia agora um trovão.

Que serás tu então?perguntou Wang Segundo, atónito.

Serei o que quiser!exclamou Wang o Tigre.

E as suas negras sobrancelhas eriçaram-se-lhe subitamente acima


dos olhos e bateu uma tal pancada na mesa com a mão espalmada que Wang
Segundo deu um salto e os dois homens se consideraram fixamente um ao
outro.

Ora tudo aquilo era a coisa mais estranha que Wang Segundo jamais
ouvira. Não era homem para sonhar grandes sonhos e o seu maior era ficar
sentado à noite em frente dos seus livros de contabilidade a recapitular o que
esse ano rendera e imaginar maneiras de aumentar o seu comércio no ano
seguinte. E então ficou a considerar fixamente o irmão, e viu-o tal qual era,
alto, sombrio, estranho, com olhos brilhantes como olhos de tigre, e negras
sobrancelhas rígidas semelhantes a bandeiras por cima dos olhos. Ao
considerá-lo fixamente assim, Wang Segundo sentiu-se impressionado, a ponto
de ter medo do irmão e não ousou dizer nada para o contrariar, pois havia no
olhar daquele homem uma expressão quase demente e aquele olhar era tão
poderoso que o próprio Wang Segundo percebeu no seu coração angustiado a
força daquele homem, seu irmão. Mas apesar de tudo era prudente, e não
pôde esquecer os seus hábitos de prudência, e eis porque ele tossicou e disse
na sua vozinha seca:

Mas que há em tudo isso para mim e nós todos e qual a garantia, se
te empresto o meu dinheiro?

E Wang o Tigre respondeu com majestade, trazendo os seus olhos ao


presente para os pousar no irmão.

Então achas que esquecerei os meus, quando me elevar tão alto ?


Não são vocês meus irmãos e os vossos filhos não são os filhos de meus
irmãos? Acaso se ouviu alguma vez falar de um poderoso guerreiro que, ao
elevar-se a si, não elevasse toda a sua família? Não significa nada para ti seres
irmão de um... rei?

E mergulhou o olhar nos olhos do irmão, e Wang Segundo quase


acreditou no que lhe dizia o irmão, posto sentisse por isso

63

repugnância, pois era aquela a história mais estranha que jamais


ouvira, e disse, no seu tom razoável:

Dar-te-ei pelo menos o que te cabe e emprestar-te-ei tudo de que


puder dispor, se acontecer que realmente te eleves como dizes, pois há
certamente muitos que não se elevam tão alto como pensam. Tu terás pelo
menos aquilo a que tens direito.

Um clarão brilhou subitamente dos olhos de Wang o Tigre. Sentou-se


e, apertando os lábios, disse:

Vejo que és prudente.

O tom era tão frio e tão duro que Wang Segundo ficou um pouco
aterrado e disse, para se desculpar:

Mas eu tenho família e muitos filhos pequenos e a mãe de meus


filhos ainda não é velha e é excessivamente fecunda; tenho de assegurar o
futuro de todos esses seres. Tu ainda não és casado e não sabes o que é ter
tantas pessoas dependentes de ti para tudo) e a alimentação e o vestuário
custam, de ano para ano, cada vez mais caro.

Wang o Tigre afastou-se, encolhendo os ombros, e respondeu com


afectado desinteresse:

Ignoro-o, com efeito, mas ouve-me! vou mandar-te todos os meses o


meu homem de confiança e tu reconhecê-lo-ás pelo seu beiço rachado. Dar-
lhe-ás tanto dinheiro quanto ele puder transportar. Vende as minhas terras o
mais depressa possível, pois precisarei de mil moedas por mês.

Mil moedas!exclamou Wang Segundo, numa voz alterada e com ar


de atónita surpresa. Mas como é que podes gastá-los ?

Tenho cem homens a sustentar e roupas e armas a comprar. Antes


de poder aumentar o meu exército, tenho de comprar espingardas, se não
puder apoderar-me sem demora das necessárias continuou Wang o Tigre,
falando muito rapidamente.

Depois, de repente, zangou-se.

Não deves perguntar-me isto e aquilo rugiu ele, batendo outra vez
com a mão na mesa. Sei o que devo fazer e tenho necessidade de dinheiro até
ao momento em que possa fazer-me senhor de um território. Então, poderei
lançar impostos sobre a população como eu quiser. Mas agora preciso de
dinheiro. Ajuda-me e serás certamente recompensado. Não me ajudes... e
poderei muito bem esquecer que és do meu sangue

Ao proferir estas últimas palavras, avançou o rosto para o do irmão e


Wang Segundo, ao fitar aqueles olhos ferozes abrigados sob as espessas
sobrancelhas, recuou vivamente, tossicou e disse:

Sim, sim, está entendido, fá-lo-ei. Sou teu irmão. Mas quando
começaremos?

Quando é que tu podes vender a minha parte da terra? perguntou


Wang o Tigre.

64
A colheita do trigo será daqui a poucos mesesrespondeu lentamente
Wang Segundo, reflectindo e hesitante enquanto falava, porque se sentia
atónito com tudo quanto acabava de ouvir.

Então os meus homens terão dinheiro replicou Wang o Tigre e tu


podes por certo vender alguma coisa antes da sementeira do arroz.

Era muito certo e Wang Segundo não se atreveu a opor-se aos


desejos do seu estranho irmão, porque tinha medo dele, e compreendeu que
devia realizar a venda de toda a maneira. Portanto, levantou-se e disse:

Visto que é assim tão urgente, tenho de regressar sem demora para
ver o que posso fazer, porque as colheitas depressa se gastam e então os
camponeses julgam-se outra vez pobres e cheios de trabalho com a pouca
terra que têm a semear e parecer-lhes-á demasiado ter ainda mais terra.

E assim ele se recusou a ficar, porque se obstinava em partir


daquele lugar onde havia homens tão ferozes e espingardas e armas de guerra
por todos os lados. Foi apenas o tempo de ir ao compartimento próximo para
onde tinham sido mandados os jovens. Achou-os sentados num banco, diante
de uma pequena mesa de madeira branca, na qual estava disposta a comida.
Eram os restos dos pratos que Wang o Tigre mandara servir ao irmão, mas era
bastante bom para rapazes, e o filho de Wang Segundo metia para dentro com
entusiasmo. Mas o outro rapaz era delicado e acostumado a alguma coisa
melhor que os restos dos outros, e não passava de tasquinhar com os
pauzinhos um pouco de arroz sem tocar na carne. Então Wang Segundo sentiu
uma estranha repugnância em abandonar aqueles rapazes e muito
particularmente o seu, e perguntou-se durante um minuto se aquilo não seria
uma aventura à qual não devesse expor o filho. Mas a coisa agora estav-a
começada e não podia já desfazer o que estava começado. Disse, portanto,
simplesmente:

Vou partir e a única recomendação que faço a ambos é obedecer em


tudo ao vosso tio, porque estais agora sob o seu poder e é um homem feroz e
violento que nada vos desculpará. Mas se fordes obedientes e consentirdes em
fazer tudo quanto ele vos disser, tendes probabilidades de vos elevardes mais
alto do que pensais. O vosso tio tem o seu destino escrito.

Depois afastou-se rapidamente e foi-se embora, pois não podia


impedir-se de ter o coração um pouco opresso por deixar o filho, e sentiu mais
do que o supusera. Mas, para se consolar, murmurou:

Ora! Uma tal possibilidade não é dada a todos os rapazes, e não há


dúvida de que é uma bela perspectiva. No fim de tudo, não será simples
soldado, mas será, se a coisa resulta, oficial de qualquer patente.

5-w. L.
65
E concluiu que tudo estaria bem se fizesse todo o possível para o
ajudar a triunfar; pelo menos, por causa do filho, faria

tudo o que pudesse.

Mas o pálido jovem que era o filho de Wang Mais Velho pôs-se a
chorar quando viu o tio partir; e como chorava muito alto, Wang Segundo saiu
mais depressa. Mas o barulho dos soluços perseguia-o, e por isso se apressou
a alcançar a porta dos leões, a fim de não mais os ouvir.

66
CAPÍTULO VII
COMEÇOU então aquela empresa, empresa tal que, se a alma de
Wang Lung não estivesse num país longínquo, teria feito levantar-se o seu
corpo da terra onde dormia, porque durante a sua vida ele odiara acima de
tudo a guerra e os soldados, e eis que a sua boa terra ia ser vendida por uma
tal causa. Mas dormia ali e ali continuou a dormir e não havia ninguém para
deter os filhos no caminho que levavam; não, não havia ninguém, a não ser
Flor de Pereira, que durante muito tempo não soube o que eles faziam. Os dois
filhos mais velhos receavam-na pela sua fidelidade a seu pai e ocultavam-lhe
os seus projectos.

Quando Wang Segundo chegou de regresso a casa disse a Wang


Mais Velho que fosse à casa de chá, onde podiam conversar em paz e ali,
diante dos bules de chá, conversaram. Mas desta vez Wang Segundo escolheu
um canto desviado, onde se juntavam duas paredes sem nenhuma janela nem
porta em nenhuma dessas paredes, e sentaram-se de modo a ver quem se
aproximava. Inclinavam as cabeças por cima da mesa e conversavam baixinho,
por alusões e frases entrecortadas. Wang Segundo contou assim a seu irmão o
que Wang o Tigre projectava, e agora, que se restabelecera na sua casa e nos
hábitos da existência habitual, e o projecto do soldado afigurava-se-lhe cada
vez mais um sonho irrealizável, o irmão mais velho, ao ouvi-lo, via-o como uma
coisa maravilhosa mas fácil de realizar. Na verdade, aquele homem corpulento
e pueril aquecia à medida que o projecto se lhe revelava, pois via-se já elevado
acima das suas fantasias mais ambiciosas... irmão de um rei. Era um homem
que lera pouco e que, além disso, gostava de ver peças de teatro e vira muitas
velhas peças celebrando os altos feitos de heróis antigos e fabulosos, que não
passavam a princípio de homens ordinários que, pela sua valentia, engenho e
astúcia se elevavam seguidamente bastante alto para chegarem a fundar
dinastias. Via-se já como irmão de um tal herói, e, mais

67
!’!
que isso, como seu irmão mais velho, e os olhos chamejavam-lhe e
cochichou em voz rouca:

Disse sempre que o nosso irmão não era um rapaz como os outros.
Fui eu que pedi ao nosso pai que o tirasse dos campos e lhe desse um
preceptor para o instruir, como a filho de grande proprietário. O meu irmão não
esquecerá certamente o que o seu irmão mais velho fez por ele, e que sem
mim não passaria de um criado nas terras de seu pai.

E baixava os olhos, contente consigo, acariciando no farto ventre a


túnica de seda que o cobria, e pensava no seu segundo filho, dizendo-se que
toda a família se elevaria e que ele próprio se tornaria também um nobre; sem
dúvida o seu irmão nobilitá-lo-ia quando fosse rei. Havia histórias desse género
nos livros que lera e vira coisas assim no teatro. Então Wang Segundo, que
cada vez mais duvidava à medida que voltava a si, e a quem até a temerária
empresa parecia muito longe daquela pacífica cidadezinha, quando viu a
imaginação do seu irmão mais velho lançar-se no futuro, tornou-se ciumento e
a sua própria prudência o tornou cúpido e disse-o de si para si:

«Tenho de prestar muita atenção. Quem sabe se não há um pouco de


verdade naquilo que sonha o meu irmão mais novo ? Mesmo se ele alcançar a
décima parte do êxito com que sonha, tenho de me dispor a partilhar do seu
êxito e não devo afastar-me».

E continuou, em voz alta:

Sim, mas eu incumbi-me de lhe fornecer dinheiro e sem mim nada


poderá fazer. Deve ter aquilo de que precisar até que se possa estabelecer, e
não sei ainda como vou obter o preciso. No fim de tudo, não passo de um
pequeno rico, que mal é considerado rico pelos que são senhores da riqueza.
Durante os primeiros meses, posso satisfazê-lo vendendo as suas terras, e
depois nós podemos vender também, tu e eu, algumas terras. Mas que
havemos de fazer se, passado esse tempo, se não tiver estabelecido ?

Eu o ajudarei... eu o ajudareidisse rapidamente o irmão mais velho,


não podendo suportar a ideia de que alguém pudesse fazer mais do que ele
pelo irmão mais novo.

Os dois homens levantaram-se então, na pressa da avidez comum a


ambos e Wang Segundo disse:

Vamos às terras mais uma vez e preparemo-nos agora para vender.

Ora, fora decidido, visto que Wang o Tigre desejava dinheiro, que lhe
dariam a maior porção de terra isolada e era a mais afastada da cidade e era
cultivada agora por um só rendeiro, um homem em boa situação económica. O
negócio foi fechado com este pelos dois irmãos, e tiveram o cuidado à ida
como à vinda de não passar perto da terra onde habitava Flor de Pereira.

Flor de Pereira podia muito bem passar sem nunca ter ouvido

68
falar daquela venda, porque Wang Segundo era astuto além de toda
a medida, nunca aludindo a nada do que fazia, nem sequer ao trazer-lhe nos
devidos prazos a pensão que lhe fora atribuída. Eram vinte e cinco moedas que
ele lhe trazia todos os meses, como Wang o Tigre dissera, e da primeira vez
em que o fez, ela disse-lhe na sua voz suave:

Mas de onde provêm as cinco moedas, visto que sei só me terem


concedido vinte, e ninguém de tanto precisaria, se não fosse esta pobre filha
do meu senhor? Mas deste suplemento de cinco moedas não ouvi eu falar.

Ao que Wang Segundo respondeu:

Aceite-o, porque o meu irmão mais novo disse-me que devia tê-lo e
da sua parte o recebe.

Mas quando Flor de Pereira ouviu aquilo, contou rapidamente com as


mãos trémulas cinco moedas, separou-as das outras, pôs a soma de lado,
como que receosa de que a queimasse, e disse:

Não quero isso... não quero mais do que me é devido.

A princípio Wang Segundo achou que devia insistir, mas em seguida


lembrou-se do risco que corria, emprestando dinheiro à aventura a seu irmão,
e lembrou-se de todo o aborrecimento que tinha e pelo qual não obtinha
salário algum, e lembrou-se de todas as possibilidades que havia de que a
aventura abortasse. Quando pensou nisso tudo, escamoteou o dinheiro que ela
pusera de lado, guardou-o no seio da túnica e disse com a sua vozinha calma:

Sim, talvez seja melhor assim, visto que a outra concubina, que é
mais velha, tem isso, e é justo que tenha um pouco menos. vou explicá-lo ao
meu irmão.

Mas ao ver em que disposições ela se encontrava, omitiu dizer-lhe


que a própria casa onde ela habitava pertencia a esse terceiro filho, pois lhes
convinha a todos que Flor de Pereira lá habitasse com a idiota. Foi-se então
embora, sem nada mais dizer a Flor de Pereira, e a não serem encontros de
acaso por um motivo ou outro, Flor de Pereira não frequentava a família
alojada na Grande Casa da cidade. Às vezes, é certo, via Wang Mais Velho
passar, na mudança de estação, na Primavera, quando ele ia medir a semente
para os seus rendeiros, como deve fazer um proprietário, embora não fizesse
mais do que estar ali com ar muito importante e altivo, enquanto um agente
que ele contratara para o caso a media. Ou vinha algumas vezes antes da ceifa
para apreciar o que os campos continham, de maneira a saber se sim ou não
os rendeiros lhe mentiam quando lançavam as culpas, como sempre faziam,
sobre isto ou aquilo, pretendendo que o ano fora mau para eles e que tinha
chovido demasiado ou não bastante.

E assim, portanto, ia e vinha algumas vezes por ano, e de cada vez


transpirava, bufava e mostrava mau humor pelo trabalho,
69
e lançava entre dentes as suas saudações a Flor de Pereira, se a via,
e ela, dirigindo-lhe um delicado cumprimento, não lhe falava se podia evitá-lo,
porque ele se tornara uma personagem obesa que tinha uma maneira garota
de olhar disfarçadamente as mulheres.

No entanto, ao vê-lo ir e vir, supunha que nada havia mudado nas


terras e que Wang Segundo olhava pelas suas terras e pelas do seu terceiro
irmão, e ninguém pensava em lhe contar nada. Não era certamente fácil parar
com ela, porque era taciturna e distante nas suas atitudes para com todos,
excepto para com as crianças, de maneira que, conquanto se mostrasse meiga
e afável, aquela particularidade a fazia recear das pessoas crescidas. Não tinha
amigos e apenas há pouco se ligara com algumas religiosas que habitavam
num convento vizinho, uma construção tranquila feita em tijolo escuro, e
cercada por uma sebe de salgueiros verdes. Recebia com alegria aquelas
religiosas, quando vinham ensinar-lhe as suas doutrinas de resignação, que
escutava atentamente, e meditava após a partida das freiras, pois aspirava a
saber bastante para rezar pelo repouso da alma de Wang Lung.

E assim ela podia muito bem não chegar a saber nada da venda da
terra se não acontecesse que, no mesmo ano em que o rendeiro comprara o
primeiro quinhão, o corcundinha filho de Wang Mais Velho seguisse de longe o
seu pai sem este dar por isso.

Ora este rapazito era um garotelho singular e não se parecia com


nenhum dos pequenos da Casa Grande. A mãe tomara-o de ponta, desde a
hora do nascimento, por um motivo de todos ignorado, talvez por ele ser
menos rosado e de aspecto menos agradável do que os outros filhos ou porque
talvez ela se encontrasse então fatigada de dar à luz e farta dele antes já de
ter nascido. Mas por virtude da sua antipatia, dera-o logo a amamentar a uma
escrava e essa escrava também não gostava dele, porque lhe tinham retirado
o filho por causa dele, e dizia que ele tinha o olhar demasiado astuto para a
idade, o que lhe ficava mal no pequenino rosto de bebé. Dizia também que era
vicioso e que a mordia de propósito, quando mamava. E quando uma vez o
tinha ao peito, soltou um grito lancinante e deixou-o cair no mosaico do pátio,
onde estava sentada com ele, à sombra de uma árvore. Ao acorrerem para ver
o que acontecera, explicou que o menino a tinha mordido até lhe fazer sangue,
mostrou o seio, e era certo que sangrava.

A partir desse momento, o rapaz ficou corcunda, e era como se toda


a sua força de crescimento se tivesse refugiado naquele grande nó que trazia
em cima dos ombros; todos lhe chamavam o Corcunda, e os seus próprios pais
lhe davam esse nome. E visto que ele era uma pobre criatura e que havia
outros filhos, não se

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preocuparam com ele e não o obrigaram a aprender a ler nem
a fazer nada, e ele aprendeu desde cedo a subtrair-se aos olhos das
pessoas, e particularmente das outras crianças, que zombavam
cruelmente dele por causa da sua deformidade. Calcurriava as ruas ou
ia sozinho pelos campos além, mancando e levando às costas aquela
grande bossa.

, Nesse dia de ceifa seguira o pai sem ser visto e manteve-se a


distância, pois bem conhecia o mau humor do pai em dias em que este
tinha de ir às terras; e assim o foi seguindo até à casa de adobe. Mas
Wang Mais Velho continuou em direcção aos campos, e o corcunda
deteve-se a ver quem estava sentado à porta da casa.

Ora não era senão a pobre idiota de Wang Lung, e estava ali
sentada ao Sol como tinha por costume, mas era agora no corpo mulher
feita, e mais do que isso, porque passara já os quarenta anos e tinha
fios brancos nos cabelos. Mas era a mesma pobre menina ali sempre a
fazer caretas e torcer nas mãos a sua ponta de trapo. O corcunda
olhava-a com espanto, pois nunca até então a vira, e com o seu ar
malicioso pôs-se a imitá-la e a fazer carantonhas, e deu-lhe com tanta
força estalos com os dedos debaixo do nariz, que a pobre criatura
começou a soltar gritos de terror.

Flor de Pereira saiu a correr de casa para ver o que havia, e


quando o rapaz a avistou fugiu a manquejar para as sombras do bosque
de bambu, de onde se ficou a espreitá-la como um pequeno animal
selvagem. Mas Flor de Pereira viu quem era e sorriu-lhe meigamente
com o seu triste e gentil sorriso e tirou do seio um pequeno pastel, pois
trazia consigo desses pastéis para amansar por vezes a idiota, quando
esta se obstinava de repente, por virtude de qualquer capricho, e se
recusava a obedecer. Estendeu o pastel ao corcunda. Ele mirou-a
primeiro com espanto e por fim aproximou-se, agarrou avidamente o
pastel e meteu-o todo de uma vez na boca. Depois, sorrindo ao menino,
conseguiu que ele se viesse sentar ao lado dela, num banco à porta e
quando viu que o pobrezito se sentava de lado e que a sua pobre e
minúscula fisionomia, de olhos tão profundamente tristes, parecia
acabrunhado sob o peso que lhe sobrecarregava as costas, ela ficou
sem saber se era um homem ou uma criança, pois no tamanho era
pequenino, e estendendo o braço para o passar em torno daquele corpo
disforme, perguntou-lhe, no seu tom meigo e compassivo :

Ora diz-me, irmãozinho, tu não és filho do filho do meu


senhor? Pois eu ouvi dizer que ele tinha um como tu.
Então a criança afastou-se-lhe bruscamente do braço, acenou
afirmativamente com a cabeça e fez menção de partir. Mas ela fez-lhe
festas, deu-lhe outro pastel e disse-lhe a sorrir:

71
Creio na verdade que a tua boca tem um certo ar de semelhança
com a boca do meu falecido senhor, que descansa agora além, sob a
tamareira. E ele faz-me tanta falta, que eu gostaria que tu viesses aqui muitas
vezes, visto teres um ar de parecença com ele.

Era a primeira vez que o pequeno corcunda ouvia alguém dizer-lhe


que desejava a sua presença, porque estava habituado, embora fosse filho de
um homem rico, a ver-se repelir pelos irmãos e a ver os próprios criados não se
importarem com ele e a servirem-no em último lugar, por saberem que sua
mãe não o estimava. E ele olhou lastimosamente para Flor de Pereira e os
lábios começaram-lhe a tremer e de repente, sem saber porquê, desfez-se em
lágrimas, e exclamou através delas:

Eu queria que não me fizesse chorar assim... Não sei porque choro
assim...

Então Flor de Pereira acalmou-o enlaçando com o braço as costas do


corcunda e, sem poder exprimi-lo, o rapaz sentiu que aquela era a carícia mais
afectuosa que jamais recebera, e ficou calmo sem saber como nem porquê.
Mas Flor de Pereira não se apiedou dele por muito tempo. Não; começou a
olhá-lo como se ele tivesse as costas lisas e robustas como as de outro rapaz,
e a partir desse dia o corcunda veio muitas vezes à casa de adobe, porque
ninguém se inquietava com saber onde ele ia nem o que fazia. Vinha dia após
dia, de tal modo que acabou por se ligar de toda a sua alma a Flor de Pereira.
Mostrou-se hábil com ele, e fez como se se apoiasse nele e precisasse do seu
auxílio para se ocupar da idiota, e dado que ninguém recorrera jamais ao
jovem para lhe pedir auxílio de espécie alguma, tornou-se calmo e gentil e foi
perdendo muito da sua maldade, à medida que os meses iam passando.

Se não tivesse sido, portanto, esse rapaz, Flor de Pereira poderia


muito bem nunca ter chegado a saber que a terra estava a ser vendida. E o
rapaz não se apercebeu sequer da informação que dava, porque lhe falava de
tudo quanto lhe vinha ao espírito e falava disto e daquilo. Um dia disse-lhe:

Tenho um irmão que será um grande militar. Um dia ou outro, o meu


tio vai ser um grande general, e o meu irmão está junto dele, a aprender o
ofício de soldado. O meu tio vai ser um verdadeiro rei um dia ou outro, e então
o meu irmão será o seu capitão, pois assim o ouvi eu contar por minha mãe.

Flor de Pereira estava sentada no banco, perto da porta, quando o


garoto lhe disse aquilo. Desviou o olhar para os campos e respondeu, num tom
calmo:

Então o teu tio é assim uma personagem importante? (Calou-se um


momento e depois continuou) ... Mas eu desejaria que não fosse soldado
porque é esse um ofício cruel.

72
Mas o garoto exclamou, no jeito de se vangloriar: Sim, ele vai tornar-
se o maior general e eu acho que um soldado, se é corajoso e bom herói, é a
coisa mais maravilhosa que se pode ser. E nós vamos todos ser grandes com
ele. Todos os meses, o meu pai e o meu segundo tio enviam dinheiro ao meu
tio soldado, em previsões da época em que ele será uma grande
personalidade, e um feio homem de beiço rachado é que vem buscar o
dinheiro. Mas um dia tudo isso voltará à nossa mão, pois ouvi meu pai explicá-
lo assim a minha mãe.

Quando Flor de Pereira ouviu aquilo, ocorreu-lhe uma pequenina


suspeita ao espírito e então disse suavemente como, se fosse uma coisa sem
importância e como se perguntasse por simples curiosidade:

E de onde vem todo esse dinheiro, não me dirás? Será o teu segundo
tio que o tira do seu comércio para o emprestar?

E o rapaz, inocentemente e com o orgulho de o saber, respondeu :

Não, vendem a terra que era do meu avô e eu vejo os camponeses


virem todos ou quase todos os dias e tirarem um rolo do seio e
desembrulharem-no; é dinheiro que brilha como estrelas ao cair em cima da
mesa no quarto de meu pai. Vi isso muitas vezes e não se afligem com a
minha presença, porque não conto para nada.

Então Flor de Pereira ergueu-se tão vivamente que o rapaz a olhou


muito espantado, pois ela movia-se de ordinário muito calmamente, mas ela
conteve-se e disse-lhe no tom mais meigo:

Acabo mesmo agora de me lembrar de uma coisa que tenho de


fazer; queres olhar pela pobre inocente enquanto eu estou fora? Não confio em
ninguém como em ti.

O rapaz sentiu-se todo orgulhoso por lhe prestar aquele serviço. E


esquecendo-se do que dissera, ali ficou dignamente a segurar na mão uma
ponta do vestido da idiota, enquanto Flor de Pereira se preparava para partir.
Depois de ter lançado pelos ombros uma capa escura, Flor de Pereira olhou-o
mais uma vez e partiu a toda a pressa através dos campos. Tinha tanta afeição
por aquelas duas pobres criaturas que mesmo naquele momento se deteve um
pouco para se voltar para eles e os olhar, o que lhe enterneceu o coração e lhe
fez esboçar nos lábios um sorriso de melancólica ternura. Mas depressa tornou
a partir, pois, se olhava aqueles dois seres com amor e se agora a ninguém
mais tinha amor, havia no seu coração uma cólera tal que devia dar-lhe saída;
se era uma cólera muda, visto que a sua cólera era sempre assim e nem ela
podia ter uma de outra espécie, nem por isso era menos uma sólida cólera e
não poderia voltar a ter descanso antes de ir ter com os dois irmãos e ter
sabido o que eles

73
tinham verdadeiramente feito das boas terras que tinham recebido
de seu pai, principalmente da terra que ele lhes mandara conservar para as
futuras gerações da família.

Ela adiantava-se rapidamente pelos estreitos caminhos através dos


campos. E ia sozinha, sem que se visse ninguém naqueles caminhos a não ser,
aqui e além, ao longe, a silhueta de um homem curvado para a terra, com a
sua roupa de trabalho de riscado azul. Ao ver aquele homem, os olhos
enchiam-se-lhe de lágrimas, como agora acontecia com frequência e
facilmente, pois lembrava-se de que Wang Lung costumava passear por
aqueles mesmos caminhos e amava a terra a ponto de se inclinar por vezes
para apanhar um punhado de terra e o revolver entre os dedos, nunca a
alugando por mais de um ano para a conservar bem sua... e eis que os filhos
lha vendiam.

Pois embora Wang Lung tivesse morrido, vivia sempre para Flor de
Pereira e, para ela, a sua alma andava sempre em redor dos campos e sentia
que ele certamente saberia quando os vendessem. Sim, de cada vez que uma
fresca e suave brisa lhe batia de súbito no rosto de dia ou de noite, ou que um
pé de vento redemoinhava na estrada, desses ventos que outros receiam por
causa do que têm de estranho, levando-os a dizer que são almas errantes que
passam, Flor de Pereira erguia o rosto e sorria quando um tal vento lhe soprava
na face, e isso porque julgava poder ser a alma do velho que tinha sido um pai
para ela e mais querido do que o pai que a vendera.

com este sentimento da sua presença, apressava-se então através


das terras que se alongavam belas e fecundas, na sua frente, porque de há
cinco anos àquela parte não houvera fome nem tão-pouco a haveria naquele
ano, e nos campos cultivados e férteis ondulava o trigo já espigado, ou ainda
demasiado verde para a colheita. Caminhava ao longo de um desses campos,
quando uma pequenina brisa se ergueu do seio do trigo e o fez ondular como
um tecido precioso, e ela sorriu e perguntou-se que vento era aquele; e
diminuiu um instante o andar até o vento cair novamente no meio do trigo e o
deixar tranquilo.

Quando chegou à cidade e à porta em que os vendedores exibiam as


suas provisões de frutos, baixou a cabeça e conservou os olhos
constantemente presos ao solo e não os ergueu uma única vez para fitar os
olhos de ninguém. Também ninguém lhe prestou atenção, pois era demasiado
minúscula e frágil e já não jovem como outrora, e vestida como andava com o
seu trajo sombrio e o rosto sem pó nem carmim, nada tinha que a fizesse notar
dos homens mais que qualquer outra mulher. E assim ia. Se alguém lhe tivesse
notado o rosto calmo e pálido, nem sequer pensaria que uma boa e sólida
cólera ardia nela e que ela caminhava curvada por uma amarga censura e
numa atitude decidida.

74
Quando chegou ao portão da casa da cidade, franqueou-o sem fazer
anunciar a sua vinda. O velho porteiro, sentado ali, no limiar, meneando a
cabeça, com os lábios entreabertos, mostrando um dos três únicos dentes que
lhe restavam na boca, teve um sobressalto quando ela passou pela frente dele,
mas reconheceu-a e recomeçou a menear a cabeça. Como tinha projectado,
Flor de Pereira seguiu direita a casa de Wang Mais Velho, pois, embora o
detestasse cordialmente, tinha mais esperança de comover este do que o
coração ávido de Wang Segundo. Sabia também que Wang Mais Velho raras
vezes era voluntariamente desagradável e sabia que, se ele era um pouco
ingénuo, não deixava também por vezes de mostrar bom coração, e acontecia-
lhe até ser benévolo, se isso de momento o não perturbava demais. Mas ela
temia os pequeninos olhos semicerrados do segundo filho.

Penetrou no primeiro pátio. Estava ali uma escrava a preguiçar, linda


rapariga que saíra sub-repticiamente para namoriscar um criado ainda novo
que ali se encontrava. E Flor de Pereira disse à escrava, no seu tom polido:

Ó pequenita, vai prevenir a tua senhora de que eu vim dizer-lhe uma


coisa e perguntar-lhe se me quer receber.

Ora, a esposa de Wang Mais Velho mostrara atitude muito amigável


para com Flor de Pereira, depois da morte de Wang Lung e muito mais
amigável do que a que jamais mostrara a Lotus, porque Lotus era demasiado
grosseira e demasiado livre de maneiras e Flor de Pereira nunca falava nesse
tom. Nos últimos tempos, quando se encontravam em qualquer dia de
cerimónia comum familiar, a dama tinha até por costume dizer a Flor de
Pereira:

«A menina e eu, depois de tudo, estamos mais perto uma da outra


do que essa gente, porque os olhos dos nossos corações são mais delicados e
mais nobres».

E recentemente dissera-lhe:

«Venha de vez em quando conversar comigo das coisas que as


religiosas e os padres dizem dos deuses. A menina e eu somos os únicos
devotos nesta casa».

Disse isso quando soube que Flor de Pereira dava a sua atenção às
religiosas do convento situado não longe da casa de adobe. Eis por que Flor de
Pereira a vinha agora procurar. A linda escrava não demorou a voltar,
passeando por aqui e por além olhares furtivos para ver se o rapaz ainda ali se
encontrava, e disse:

A minha senhora manda recado para que se vá sentar no salão. Ela


irá lá ter logo que acabe de desfiar no rosário a série de orações que fez
promessa de rezar todas as manhãs.

Flor de Pereira entrou, portanto, no salão e sentou-se num banco


lateral.
75

Ora, aconteceu que naquele dia Wang Mais Velho se levantara muito
tarde, porque fora a um banquete na noite anterior, num lindo restaurante da
cidade. Fora um soberbo festim regado com os melhores vinhos e detrás da
cadeira de cada conviva uma linda cantora de aluguer estava encarregada de
lhe servir de beber, cantar e palrar e fazer tudo quanto o conviva a quem ela
era destinada pudesse ainda ter desejo de lhe mandar fazer. Wang Mais Velho
comera lautamente e bebera mais do que habitualmente e a sua cantora, uma
rapariguinha muito bonita de não mais de dezassete anos, era tão hábil de
seduções que dir-se-ia habituada aos homens pelo menos há dez anos.

Mas Wang Mais Velho bebera tanto que, mesmo já de manhã, não se
recordava de tudo o que se passara na noite precedente, e chegou à sala
sorridente, bocejando e espreguiçando-se, sem reparar que se encontrava ali
alguém que chegara antes dele. Na verdade, os seus olhos demoravam a
aperceber-se, naquela manhã, fosse do que fosse, porque sorria a sós consigo
e, pensando interiormente na rapariguinha, lembrava-se de que ela lhe metera
a ágil mãozinha entre a túnica e o pescoço, para o arreliar quando ele brincava
com ela. E ao tornar a pensar naquilo, disse de si para si que perguntaria ao
amigo que o convidara onde habitava aquela rapariguinha e a que casa pública
pertencia, e que iria lá procurá-la, para ver o que valia.

E assim, bocejando, espreguiçou-se e adiantou-se indolentemente


pelo salão tendo vestido apenas o seu trajo de noite, de seda, e os pés nus em
pantufas de seda. E então o seu olhar caiu de repente em Flor de Pereira. Sim,
ela estava ali de pé e muda como uma sombra na sua túnica escura, mas
trémula pelo muito que aquele homem lhe repugnava. Ele ficou tão atónito por
a ver ali, que deixou cair os braços interrompendo-se mesmo no meio de um
espreguiçamento e esgazeou os olhos. Depois, verificando que era bem ela,
tossiu embaraçado e disse-lhe, muito delicadamente : -

Tinham-me asseverado que não estava aqui ninguém. A senhora


sabe que se encontra aqui?

Sim, mandei preveni-la respondeu Flor de Pereira. (E enquanto dizia,


inclinou-se. Depois hesitou e disse de si para si: «Vale mais falar agora e
explicar só para ele o que tenho a dizer». E começou a falar rapidamente, mais
depressa do que tinha por costume, e com as palavras a atropelarem-se-lhe
nos lábios): Mas eu vim para falar ao senhor mais velho. Estou tão aflita... não
posso acreditar no que ouvi. O meu senhor disse: «A terra não deve ser
vendida». E eis que a estais a vender... sei que a estais a vender!

E Flor de Pereira sentiu o rubor subir-lhe às faces e viu-se de repente


tão encolerizada que mal podia impedir-se de chorar.
76
Mordeu os lábios e ergueu os olhos para fitar Wang Mais Velho,
embora ele lhe repugnasse tanto que mal podia suportar a sua presença, e,
fazendo-o por amor de Wang Lung, via no entanto até que ponto o pescoço
daquele homem aparecia flácido, branco e repugnante no sítio da túnica
desabotoada e a que ponto a carne se lhe enrugava debaixo dos olhos e como
se lhe tinham entumecido os lábios sem cor. Então, ao ver os olhos dela
fitarem-no, ele perturbou-se, pois tinha muito receio da cólera das mulheres, e
voltando-se, afectou, por decência, abotoar a gola. E disse precipitadamente,
por cima do ombro:

Mas são histórias no ar... isso foi um sonho!

Então Flor de Pereira disse, num tom de violência que ninguém lhe
ouvira ainda:

Não, não senhor... soube-o dos lábios de alguém que diz a verdade.
(Não quis revelar por quem o soubera, com receio de que aquele homem
batesse no seu pobre filho corcunda; eis por que se absteve de proferir o nome
do rapaz e prosseguiu): Já não reconheço os filhos do meu senhor ao ver como
são capazes de lhe desobedecer assim. Fraca e indigna como sou, tenho o
dever de falar e de lhe dizer isto: o meu senhor não deixará de se vingar! Não
está tão longe como julgam e a sua alma anda ainda a peregrinar pela sua
terra, e quando a vir vendida, achará maneira de se vingar dos filhos que se
recusam a obedecer a seu pai!

Ela disse isto de maneira tão estranha e os seus olhos


desmesuradamente abertos tornaram-se tão graves e a sua voz meiga tomou
um tom tão baixo e tão glacial que um vago terror invadiu Wang Mais Velho
que, de facto, apesar da sua grande corpulência, era homem para se
atemorizar facilmente. Ninguém poderia convencê-lo a ir sozinho, de noite,
ante as sepulturas e acreditava secretamente nas mil historietas que se
contam a propósito dos espíritos; por mais que fingisse rir-se disso, o facto não
o impedia de acreditar secretamente. Eis por que, quando Flor de Pereira lhe
falou assim, ele se apressou a responder:

Só se vendeu uma parte muito pequena... uma parte muito pequena


do que pertencia ao meu irmão mais novo. Precisa de dinheiro, um soldado não
precisa de terra. Prometo-lhe que não se venderá mais.

Ao ouvir aquilo, Flor de Pereira abriu a boca para falar, mas antes
que tivesse proferido uma palavra, a esposa de Wang Mais Velho entrou.
Estava nesse dia mal disposta e zangada com o seu senhor, porque o sentira
entrar em casa embriagado e a falar de uma rapariga qualquer com quem
estivera. Ao vê-lo, então, lançou-lhe um olhar de desprezo, de maneira que ele
se apressou a sorrir e a dirigir-lhe um pequeno cumprimento negligente, como
se nada houvesse entre eles, mas sem deixar de air olhando disfarçadamente,
e sentindo-se muito satisfeito de que

77
Flor de Pereira ali estivesse, porque a sua esposa era demasiado
orgulhosa para lhe dizer o que tinha a dizer-lhe de outra maneira que não fosse
a sós. Mostrou grande volubilidade e afectou interesse por tactear o bule que
estava em cima da mesa, a ver se estava ainda quente e disse:

Ah! Eis a mãe dos meus filhos. Talvez já tenhas o chá quentinho... Eu
ainda não comi e estava a preparar-me para ir à casa de chá, para o tomar ali.
Vou-me e não as incomodo... Sei muito bem que as senhoras têm coisas a
dizer umas às outras que não são próprias para que nós outros, homens, as
ouçamos.

E com um riso falso, oco e contrafeito, perante o altivo silêncio da


mulher e os olhares arrogantes que ela lhe lançava, inclinou-se e retirou-se
com tanta precipitação que as suas carnes flácidas tremiam. Durante todo o
tempo que ali esteve, a esposa não disse palavra e manteve-se sentada, de
busto erecto e afastado das costas da cadeira, esperando que ele partisse até
consentir em apoiar-se. Tinha por certo o ar de uma dama muito decente,
porque trazia um vestido de cetim liso de cor azul escuro, e os seus cabelos
estavam penteados e lustrosos, embora não fosse ainda meio-dia, hora a que
as senhoras estão ainda a dar voltas na cama e a estender a mão para
tomarem a sua primeira chávena de chá.

E quando viu que o seu senhor partira, soltou um suspiro e disse, em


tom solene:

Ninguém pode imaginar o que é a minha vida com este homem! Dei-
lhe a minha mocidade e a minha beleza, e nunca me queixei, apesar de tudo
quanto lhe suportei, mesmo depois de ter tido três filhos, mesmo depois de ele
ter tomado para sua companhia uma vulgar rapariga do povo, uma daquelas
que eu poderia ter contratado por criada. Não, tudo eu suportei, mostrei-me
paciente perante tudo quanto ele fazia, embora não tenha sido de modo algum
habituada a maneiras tão vulgares como as suas.

Suspirou e Flor de Pereira viu que, apesar de todas as suas maneiras


afectadas, estava verdadeiramente triste, e disse para a distrair:

Todos sabemos muito bem como sois uma boa esposa e ouvi às
religiosas que sois capaz de aprender os ritos sagrados mais depressa do que
qualquer irmã conversa a quem os tenham ensinado.

Disseram na verdade isso?exclamou a dama, muito alegre.

E começou a falar das orações que rezava e quantas vezes por dia, e
afirmou que chegaria a fazer voto de renunciar a comer carne, e que convinha
a todos os mortais pensarem a sério no futuro, visto que só há Céu e inferno
como lugares de descanso para todas as almas, até ao momento de se renovar
o amargo

78
ciclo da vida, e os bons têm a sua recompensa como os maus têm a
deles.

Falava ininterruptamente e Flor de Pereira já mal a ouvia. com a


outra metade do seu coração, perguntava-se tristemente se podia acreditar
naquele homem quando ele lhe prometia não vender mais terra, e custava-lhe
a acreditar que ele mantivesse a sua palavra. E de repente sentiu-se saturada
e aproveitou o momento em que a dama se calara um instante para acabar o
chá, e, levantando-se, proferiu suavemente:

Não sei, minha senhora, o que o seu senhor lhe conta dos seus
negócios, mas se pudesse por vezes lembrar-lhe a última recomendação do
pai, que foi não vender a terra, pedir-lhe-ia que o fizesse. O meu próprio
senhor trabalhou toda a vida para reunir estas terras, a fim de que os seus
filhos de cem gerações possam repousar num sítio seguro e não é, certamente,
bem que já nesta geração sejam vendidas. Solicito o seu auxílio, senhora!

Ora a dama não apreendera na realidade grande coisa da venda da


terra, mas pretendeu mostrar que estava ao corrente de tudo, e eis por que
disse, com grande firmeza:

Não receie que eu deixe o meu senhor fazer qualquer coisa de


inconveniente. Se alguma terra vendeu, foi apenas o quinhão afastado, que
pertence ao terceiro irmão, porque este tem o desígnio de ser um general e de
nos elevar a todos a uma alta situação e precisa mais de dinheiro que de terra.

Quando Flor de Pereira ouviu uma vez mais o que já ouvira, ficou
mais tranquila, pensando que devia ser verdade. Sentiu-se, portanto, um
pouco reconfortada. Inclinou-se e despediu-se com a sua meiguice calma e
com todos os sinais de respeito pela dama, de modo a deixá-la bem disposta e
satisfeita consigo própria. E Flor de Pereira voltou à casa de adobe.

Mas Wang Mais Velho, ao dirigir-se à casa de chá, avistou o seu


irmão Wang Segundo que ali se encontrava a tomar a refeição do meio-dia.
Deixou-se cair pesadamente numa cadeira ao lado da mesa em que o irmão
estava sentado sozinho e disse-lhe aborrecido:

Parece que na verdade nunca um homem pode estar ao abrigo da


espionagem das mulheres! Como se a não sofresse já demasiadamente em
minha própria casa, ainda por cima a terceira mulher do nosso pai vem contar-
me que lhe chegou aos ouvidos o boato de que nós estamos a vender a terra.
E começou a fazer lamentações para me arrancar a promessa de a não vender!

Wang Segundo olhou então o irmão. O rosto pequeno e astuto


crispou-se-lhe num breve sorriso e respondeu:

Que te importa o que ela diz? Deixa-a lá falar! Ela é a pessoa de


menos consideração na casa de meu pai e não tem autoridade de nenhuma
espécie. Não lhe dês atenção e se ela te
79
falar de terra, fala-lhe de tudo menos de terra. Fala-lhe disto e
daquilo, mas dá-lhe a entender que não lhe ligas importância porque ela não
tem o poder de fazer seja o que for. Ela devia já considerar-se muito feliz por
ter todos os meses o necessário para o seu sustento e ser autorizada a viver
nesta casa.

O criado chegou nesse momento com a conta. Wang Segundo


lançou-lhe um olhar agudo, fez o cálculo mentalmente e achou que estava
certa. Tirou portanto do bolso as moedas necessárias, e foi lançando-as pouco
a pouco para a mesa como se o fizesse com custo. E depois de se inclinar um
pouco para o irmão, foi-se embora, e Wang Mais Velho ficou sozinho.

A despeito do que o irmão dissera, sentia-se um pouco mal disposto


e perguntava-se com algum receio o que Flor de Pereira pretendera ao sugerir
que o velho pai não se encontrava longe, apesar de estar morto. E quanto mais
nisso pensava, tanto mais o seu mal-estar crescia, de tal modo que, por fim,
chamou o criado e pediu um raro e excelente prato de caranguejos, para se
distrair e esquecer o que lhe não agradava.

80
CAPÍTULO VIII

POR duas ou três vezes, Wang o Tigre mandou o seu homem de


confiança de beiço rachado, e por duas ou três vezes o homem trouxe dinheiro
ao capitão. Trazia-o às costas, embrulhado num pano azul, como se fosse uma
trouxa dos seus miseráveis trapos; vestia um casaco e calças de grosseiro
pano também azul, calçava umas pobres sandálias. Ao ver aquele pobre diabo
caminhar pela estrada poeirenta, com a trouxa às costas, ninguém podia
suspeitar de que transportasse rolos de dinheiro ou que pudesse ser mais do
que um indivíduo vulgar. No entanto, se reparassem mais de perto, teriam
notado que o homem transpirava de estranho modo sob fardo tão pequeno.
Mas, ao vê-lo tão pobremente vestido e com aquele rosto grosseiro e vulgar,
ninguém pensava em olhá-lo assim. Parecia-se com outros que se encontram a
todo o momento, excepto no beiço fendido; e se alguém por acaso um
momento o examinava, era para se rir da sua fealdade e dos dois enormes
dentes que lhe ressaltavam por baixo do nariz.

Assim o homem de confiança levava, seguro, o dinheiro ao seu


capitão. E quando Wang o Tigre reuniu uma boa soma, enterrou-o debaixo da
tenda, para lhe durar três meses, até ao momento de iniciar o que projectara.
Fixou o dia em que tornaria manifesto o seu desígnio. Deu a senha e, com ela,
fez passar a ordem aos homens dispostos a segui-lo; e depois da colheita do
arroz, antes de descerem do Norte os primeiros frios, numa certa noite em que
a Lua não surgia antes da madrugada e em que aparecia então como um
delgado crescente suspenso de lado no céu, aqueles homens saíram
furtivamente um a um das suas tarimbas e desertaram da bandeira do velho
general sob que serviam.

Cem homens se deslocaram assim nas sombras da noite, depois de


cada um se erguer no mais completo silêncio, enrolar

6-w.l.

81
o seu cobertor, atá-lo às costas e pegar na espingarda, se a tinha,
tomando também a do camarada, se era possível fazê-lo sem o acordar; ora
isto não era fácil porque, segundo o regulamento, cada homem dormia deitado
em cima da espingarda, de tal modo que, se alguém fazia um movimento para
a agarrar debaixo dele, acordava e podia dar o alarme. Esta medida provinha
de que uma espingarda era um objecto muito precioso, que podia vender-se
por um monte de dinheiro, e havia quem roubasse uma espingarda para a
vender depois das grandes perdas ao jogo ou pelo facto de estar meses sem
receber soldo, pois não havia guerra, e por isso também nem despojos nem
outras entradas de dinheiro. Sim, se um soldado perdia a sua espingarda, era
uma coisa grave, porque se compram as espingardas nos países estrangeiros e
muito distantes. Nessa noite, portanto, os homens que saíram sub-
repticiamente levaram as espingardas que puderam, mas não conseguiram ao
todo mais de vinte ou cerca disso, além das suas próprias, porque os soldados
dormiam todos com grandes precauções. Vinte, no entanto, já era qualquer
coisa pois lhes permitia aumentar o seu número em vinte homens.

Deviam reunir-se num pequeno planalto, a oito quilómetros de


distância. Existia aí um velho templo, onde havia apenas um velho eremita,
tonto, que vivia no meio das ruínas. Mas por pior abrigo que lhes fornecesse
aquele templo, sempre era uma garantia até que Wang o Tigre pudesse formar
com eles um exército e conduzi-los ao lugar que escolhesse.

Ora Wang o Tigre já aí tinha tudo preparado. Muitos dias antes,


mandara o homem de confiança e o seu sobrinho, o Bexigoso, que tinham
armazenado no templo odres de vinho, porcos vivos e galinhas. E até três
gordos bois tinham sido metidos numa cela vazia que um padre qualquer
outrora habitara. Wang o Tigre comprara aqueles animais aos camponeses dos
arredores, e como homem honrado que era, pagava tudo quanto tomava, mas
não roubava, como fazem certos soldados, que se apossam do quê’ pertence
aos pobres, sem pagar. Não; mandou pagar tudo pelo seu homem de
confiança, conforme o justo preço e assim os animais foram levados até ao
templo do cimo da montanha e o rapaz bexigoso ficou ali para olhar por eles.

O homem de confiança trouxera também três grandes panelas de


ferro e transportara-as até ao cimo da montanha à cabeça, uma por uma, e
dispô-las na boca dos fornos que construiu, utilizando velhos tijolos do templo
em ruínas. Mas não comprou outras coisas porque Wang o Tigre tinha a
intenção de não se demorar naquele sítio e de partir tão depressa quanto
possível em direcção ao Norte, para aí alcançar qualquer refúgio onde ficasse
ao abrigo do velho general. Também lhe não interessava aproximar-se da
capital do Norte, receando ter de entrar

82
demasiado cedo em luta com os soldados do Estado, que eram por
vezes enviados contra os senhores da guerra, tais como Wang o Tigre tinha
intenção de ser. Não receava, no entanto, nem um nem outro desses dois
perigos, porque a cólera do velho general depressa se esvaía, e, quanto ao
Estado, era aquela uma época em que acabara uma dinastia sem que
nenhuma outra se lhe viesse substituir, de modo que o Estado se encontrava
fraco, os bandidos prosperavam e os senhores da guerra lutavam com ardor
uns contra os outros para obter a mais alta situação, e não havia ninguém que
disso os impedisse.

Foi portanto àquele templo que Wang o Tigre se dirigiu naquela noite
sombria levando consigo o pálido filho de Wang Mais Velho. Era muitas vezes
um enigma para ele saber o que faria daquele tímido e timorato jovem. O
outro, o Bexigoso, alegrara-se com a aventura e partira muito alegremente a
fazer o que lhe diziam, mas este escondia-se, para que o não vissem; quando
Wang o Tigre, numa voz de trovão, lhe gritou que o seguisse, ele deslizou
estremecendo atrás do tio, e quando Wang o Tigre voltou para ele a luz do
archote aceso, notou que o rapaz estava coberto de suor. Então, berrou-lhe
com desprezo:

Como se explica que transpires assim, se nada fazes ?

Mas não se deteve a ouvir a resposta. Meteu-se pela noite dentro, a


grandes passadas, seguido pelo rapaz, em passos hesitantes.

Ao chegar ao cimo da montanha, no desfiladeiro que conduzia ao


templo em ruínas, Wang o Tigre postou-se num rochedo e mandou o rapaz ao
templo, para ajudar a preparar a refeição. Ficou ali sozinho e esperou para ver
quantos dos que lho tinham prometido viriam colocar-se sob a sua bandeira.
Depois, começaram a chegar os homens, aos pares e isoladamente, ou em
grupos de oito ou dez, e Wang o Tigre alegrava-se de os ver e ia-os
interpelando um após outro:

Ah! Tu vieste!

E clamava-lhes:

Eis-vos chegados, queridos e valentes camaradas!

De cada vez que ouvia os passos dos que vinham juntar-se-lhe


ressoarem nos degraus da escadaria de pedra em ruínas, no caminho que
conduzia ao templo, soprava na chama do archote fumarento que segurava na
mão e projectava a luz nas faces e exultava de ver entre os que iam chegando
tal ou tal valente que bem conhecia. Assim se reuniram os cem e Wang o Tigre
contou-os, e quando viu ali todos que sabia que viriam, deu ordem de matar os
bois, as galinhas e ainda os porcos. Então os homens lançaram-se satisfeitos a
esse trabalho, pois há muitos dias já que não comiam boa carne. Uns
acenderam os fornos, outros foram buscar água a uma torrente que corria
perto, e os outros mataram os bichos,
83
arrancaram-lhes a pele e cortaram-nos em pedaços. E depois de
depenarem as aves, espetaram-nas em paus de madeira verde, de ramos
cortados das árvores que rodeavam o templo, e puseram as aves a assar,
inteiras, ao fogo.

Quando tudo ficou pronto, foi servido o festim no terraço de pedra,


em frente do templo, no terraço em ruínas onde as ervas ruins tinham
deslocado as pedras. Havia ao centro um grande e velho vaso de ferro, mais
alto do que um homem, mas também ele estava a fazer-se em poeira, tão
enferrujado se encontrava já pelo efeito dos anos. Estava a surgir o dia e o Sol
nascente inundou com a sua claridade os homens que, no ar frio e cortante da
montanha, sentiam mais fome ainda, e reuniram-se todos, rindo
entusiasmados em volta da comida fumegante. Cada um deles comeu até
fartar, e de todos os lados se alegravam porque a todos se afigurava que
novos e melhores dias iam começar para eles, sob as ordens daquele novo
chefe, jovem e valente, que os levaria para países novos, onde havia boa e
farta comida, mulheres e toda a abundância de que carecem homens valentes.

Quando satisfizeram a fome mais urgente e antes de recomeçarem a


comer, fizeram saltar os selos dos odres e no copo que cada homem trouxera
consigo lançaram vinho, e bebiam e riam e discutiam e exortavam-se uns aos
outros a beber à saúde deste ou daquele, e principalmente do novo chefe.

Escondido na sombra da moita de bambus, o pobre eremita idiota


espiava-os, perdido de espanto, e mascava palavras incompreensíveis,
tomando-os por autênticos diabos. Esfregava os olhos ao vê-los comer e beber
com tal entusiasmo e veio-lhe a água à boca quando os viu trinchar as carnes
fumegantes. Mas não se atrevia a aproximar-se nem a mostrar-se, pois não
sabia quem eram aqueles demónios que chegavam assim de repente ao sítio
calmo onde sozinho vivia há trinta anos, cultivando uma nesga de terreno para
viver. E enquanto estava a olhá-los, um dos soldados farto,, de comida e
entorpecido pelo vinho, atirou para longe o osso de uma coxa de boi que
estava a comer e ele caiu à beira dos bambus. Então o eremita estendeu o
braço, agarrou-o e puxou-o sem ruído para si. Levando o osso à boca, sugou-o
e roeu-o, e tremia singularmente, pois não tinha comido carne durante todos
esses anos e esquecera-se de como era saborosa e boa. E não podia impedir-
se de sugar o osso com grunhidos de prazer, mas gemendo ao mesmo tempo
para si, pois, apesar de toda a sua idiotice, sabia que aquilo era para ele
pecado.

Depois de terem comido tudo quanto podiam e de o terraço ficar


cheio dos restos, Wang o Tigre ergueu-se subitamente e saltou para cima de
uma enorme e velha tartaruga de pedra que se encontrava a um lado do
terraço e um pouco acima, ao pé de um grande e velho zimbro. Essa tartaruga
assinalara outrora
o lugar onde estava situado um túmulo famoso e tivera sobre
a carapaça uma alta esteia de pedra que exaltava as virtudes do morto,
mas a árvore, no seu crescimento irresistível, repelira daquele lado a
esteia, de tal maneira que neste momento jazia partida em dois
pedaços no chão com a legenda apagada pelo vento e pela chuva,
enquanto a árvore continuava sempre a crescer.

Wang o Tigre saltou para cima da tartaruga e, de pé, pôs-se de


alto a considerar todos os seus homens. Altivo, de pé, com a mão no
punho da espada e um pé para a frente pousado na cabeça da
tartaruga, fixava-os arrogante, com as negras sobrancelhas carregadas
e os olhos chamejantes. E assim olhando aqueles homens que eram
dele, sentiu o coração entumescer-se-lhe desmesuradamente, até ao
ponto de supor que o corpo lhe ia estalar, e disse de si para si:

«São os meus homens... juraram seguir-me. A minha hora


chegou!»

E muito alto, numa voz altaneira que ressoou naquelas matas


silenciosas e ecoou nos pátios do templo em ruínas, exclamou:

Queridos irmãos, vou dizer-vos quem sou! Sou humilde como


vós. Meu pai cultivava a terra e eu sou um filho da terra. Mas outro
destino me esperava, diferente do do cultivo dos campos e fugi, quando
não passava de um rapazola, indo juntar-me aos soldados da revolução,
sob as ordens do velho general.

«Queridos irmãos! A princípio sonhei nobres guerras contra um


governo corrupto, pois, segundo dizia o velho general, assim deviam ser
as guerras. Mas a sua vitória foi demasiado fácil, e ele tornou-se naquilo
que nós conhecemos, e eu não podia continuar a servir às ordens de tal
chefe. Então, visto que a revolução que ele dirigia não deu o resultado
que eu sonhava, e visto que os tempos estão cheios de corrupção e que
cada um combate para si, vi que o meu destino me ordenava que me
dirigisse a todos os valentes fartos de servir sob as ordens do velho
general sem serem pagos, e me pusesse à frente deles para talhar um
lugar para nós, um lugar bem nosso, liberto de corrupção. Não preciso
de vos explicar que não existem governos honrados e que o povo geme
sob as crueldades e as opressões daqueles que deviam tratá-lo do
modo como os pais tratam os filhos. Assim era já no tempo antigo,
mesmo há quinhentos anos, quando os heróis bons e valorosos se
ligaram uns com os outros para castigarem o rico e protegerem o pobre.
É o que nós vamos fazer também. Convido-vos, valentes e queridos
rapazes, a seguir-me aonde vou! Juremos viver e morrer juntos!
Erguia-se ali, lançando-lhes aquelas palavras na sua grande
voz profunda, com o olhar brilhante pousado aqui e além, sobre os
homens que se tinham sentado em frente dele, nas pedras esparsas,
com as sobrancelhas ora carregadas, ora erguidas como

85
bandeiras desfraldadas, iluminando e alterando de instante a
instante a expressão da sua fisionomia. Quando acabou de falar, todos os
homens se puseram em pé e um imenso clamor se ergueu da multidão:

Juramo-lo! Viva mil e mil anos o nosso capitão!

Depois, um homem que era mais ousado que os outros, exclamou


muito alto, em voz estrídula:

E eu digo-vos que ele tem o ar de um tigre de negras sobrancelhas,


digo...

E era bem esse o aspecto de Wang o Tigre, tão esbelto e alto ele era
e de movimentos ágeis, com um rosto a estreitar no queixo e de malares
salientes e muito altos, vivos olhos brilhando de um duro fulgor e acima deles
as compridas sobrancelhas pretas pesando sobre os olhos e ensombrando-os
de tal modo que, quando fixava o olhar, pareciam os olhos espiar e luzir no
fundo de uma caverna. Quando erguia as sobrancelhas, os olhos pareciam
saltar de debaixo delas e todo o rosto se lhe alargava de súbito como o de um
tigre no momento de saltar.

Então todos os homens tiveram um riso feroz e repetiram o grito e


berraram:

Ah... Ah... o Tigre das Sobrancelhas Negras!

Quanto ao pobre eremita idiota, já nada compreendia de todas


aquelas aclamações de animais ferozes que enchiam o planalto. Havia na
verdade tigres que andavam por aquelas montanhas e ele temia-os mais que
tudo. Quando ouviu aqueles grandes clamores, olhou desvairado para a mata e
correu a esconder-se no fundo do templo, num misérrimo quartozito onde se
deitava, e pôs a grande tranca na porta e meteu-se na cama, puxou o cobertor
para cima da cabeça e ali ficou, tremendo e chorando e arrependendo-se de
ter comido a carne.

Ora Wang o Tigre possuía também toda a prudência do tigre e sabia


que a sua aventura mal começava ainda e que tinha de pensar no que o
esperava. Deixou os homens dormir um pouco, para lhes permitir assimilar o
vinho que tinham bebido e dar aos vapores do álcool tempo de se dissiparem,
e enquanto dormiam chamou três dos seus homens que sabia serem homens
hábeis em ardis e mandou-os disfarçarem-se. A um ordenou que se despisse,
deixando apenas os calções em farrapos, e disse-lhe que cobrisse a cara de
lama e de poeira como um mendigo e fosse mendigar pelas aldeias próximas
da cidade onde acampava o velho general, escutando e vendo o que pudesse
para averiguar se o velho general se preparava ou não para lhes dar caça. Aos
dois outros, ordenara que fossem a um mercado da cidade e comprassem a
qualquer algibebe fatos de camponeses, assim como os respectivos cestos e
paus ferrados, e que adquirissem produtos, os levassem à cidade e andassem
por vários pontos para verem o que se dizia
86
e se se falava do que acontecera e do que poderia acontecer,
agora que os melhores homens do velho general o tinham abandonado.
A entrada do desfiladeiro, Wang o Tigre postou o seu homem de
confiança, de beiço rachado, para vigiar e sondar a região com o seu
agudo olhar, e se distinguisse em qualquer ponto movimentos de
massas de homens, devia correr imediatamente a prevenir o capitão.

Feito isso, depois de aqueles homens partirem e de os outros


dormirem e assentarem o vinho, Wang o Tigre tomou nota de tudo
quanto possuía. Inscreveu numa folha de papel com um pincel o número
dos seus homens e quantas espingardas possuía e quantas munições e
em que consistiam as roupas dos homens e o que era o seu calçado,
capaz ou não de aguentar uma longa marcha. Ordenou aos seus
homens que desfilassem pela sua frente e olhou cada um deles
atentamente e verificou que eram, sem contar os dois rapazes, cento e
oito homens bem constituídos e enérgicos, entre os quais nenhum
excessivamente velho e muito poucos doentes, não falando dos males
de olhos ou de pele ou outras pequenas doenças análogas que toda a
gente pode ter e que não contam como doenças. Ora, à medida que
eles iam assim passando lentamente na sua frente, esgazeavam os
olhos, espantando-se ao ver os caracteres que ele traçava no papel,
pois não havia mais do que dois ou três que soubessem escrever, e
Wang o Tigre inspirou-lhes mais respeitoso terror do que nunca por
também possuir, além do exercício das armas, aquela sabedoria de
traçar com o pincel caracteres num bocado de papel e por saber, ao
olhá-los, simplesmente, descobrir neles uma significação.

E Wang o Tigre verificou que tinha, além dos seus homens,


vinte e duas espingardas e que cada homem tinha a cartucheira cheia
de munições, e à parte isso possuía dezoito caixotes de cartuchos que
levantara em segredo do armazém do general, onde tinha acesso. Estes
caixotes mandara-os um a um pelo seu homem de confiança que os
trouxera para ali e depositara no templo, atrás do velho Buda decrépito,
porque era ali que o telhado estava em melhor estado, e o Buda
abrigava-os das chuvas que entravam pelas portas escancaradas.

Quanto a roupa, os soldados tinham aquela que traziam


vestida e era bastante até chegarem os ventos de Inverno e cada
homem tinha o seu cobertor em que se enrolava para dormir.

Wang o Tigre ficou muito satisfeito por tudo isso que possuía.
Sobrara comida ainda para três dias, e concebeu portanto o projecto de
partir de noite tão depressa quanto possível para novas terras, no
Norte. Mesmo quê não detestasse aquela região meridional, teria ido
para outro sítio, porque o velho general era tão indolente que há dez
anos ou mais não se. mexera daquele ponto e vivia à custa dos
habitantes, acabrunhando-os com

87
impostos muito além do que lhes era possível pagar, tomando
por isso uma boa parte dos seus cereais. com tais processos, reduzira a
população à miséria e já nada tinha a tirar dela, e eis porque Wang o
Tigre tinha de partir em busca de países menos explorados.

Também não estava na sua intenção dar batalha ao velho


general para se assegurar da posse daquela zona sobrecarregada de
impostos e projectava ir para regiões vizinhas da sua terra natal, pois
havia na direcção Noroeste montanhas onde lhe seria possível abrigar
os seus homens e, se fosse perseguido com demasiado calor, refugiar-
se nas suas partes mais inacessíveis, naqueles lugares em que as
montanhas são abruptas e os habitantes selvagens, e em que os
próprios senhores de guerra raramente se aventuram, excepto quando
se vêem compelidos à pilhagem e à vida retirada. -Não que pensasse
agora nisso; afigurava-se pelo contrário a Wang o Tigre que o caminho
estava aberto na sua frente, e que não tinha mais do que caminhar,
sem receio, em frente, para alcançar grande nomeada no país, e não
punha limites definidos à sua futura grandeza.

Então, um a um, os três homens que enviara voltaram. O


primeiro disse-lhe:

Por toda a parte se sabe já que o velho enxame de abelhas se


dividiu e que se formou um novo enxame e por toda a parte as
populações estão cheias de medo, porque dizem que foram sugados até
aos ossos e dizem que o país não pode sustentar duas hordas.

E o que se disfarçara em mendigo disse:

Andei em volta do nosso antigo acampamento e cobrira de tal


modo a cara de lama e lodo que ninguém foi capaz de me reconhecer, e
gemendo e pedindo esmolas, ouvi e vi tudo. O acampamento está em
sobressalto e o velho general grita e berra, e manda isto e aquilo,
suspende as ordens dadas e ordena outra coisa, e, desnorteado de
confusão e raiva, tem a cara vermelha e inchada. Atrevi-me até a
aproximar-me dele, para o ver e o ouvir berrar: «Nunca pensei que
aquele diabo de sobrancelhas pretas pudesse fazer-me tal partida, pois
depositava nele toda a confiança. Venham agora dizer-me que os
homens do Norte são mais honrados do que nós! Gostaria de ter agora
aqui, a um tiro de espingarda, esse maldito ladrão e filho de ladrão!» E
a cada duas Ou três frases, grita que os seus soldados fieis devem
pegar em armas, perseguir-nos e dar-nos batalha!

O homem calou-se e casquinou uma gargalhada. Era aquele


mesmo finório que gostava de lançar graçolas em voz estridente. E
concluiu em tom mais alto e mais forte, fazendo caretas sob a máscara
de lama:

Mas não vi um único soldado mexer-se.

Então Wang o Tigre sorriu com o seu ar severo e compreendeu

88
que nada tinha a temer, porque aqueles homens quase há um
ano não recebiam soldo e só permaneciam fiéis para terem a
possibilidade de nada fazer e de serem, apesar de tudo, sustentados.
Mas se lhes fosse exigido combater, exigiriam o soldo antes de se
decidirem a tal e Wang o Tigre sabia que, quando se chegasse a isso, o
velho general se recusaria a pagar-lhes e que por isso dentro de um ou
dois dias a sua cólera arrefeceria, encolheria os ombros e voltaria para
junto das suas mulheres, e os seus soldados voltariam a dormir ao Sol,
só acordando para comerem e adormecerem outra vez.

Wang o Tigre compreendeu que nada tinha a recear e voltou


resolutamente os seus cuidados para o Norte.

89
CAPÍTULO IX
DURANTE três dias, Wang o Tigre permitiu aos seus homens que se
divertissem e eles comeram tanto quanto puderam e beberam os odres de
vinho até às fezes. Quando ficaram satisfeitos, como não se tinham sentido há
muitos meses, cheios e fartos de comida, e depois de dormirem à saciedade,
levantaram-se fortes, quesilentos e apaixonados. Ora, Wang o Tigre vivera
durante todos esses anos no meio dos soldados e aprendera a conhecer bem
os homens, e sabia como se devem manejar indivíduos robustos, vulgares e
ignorantes, como se deve espiar e aproveitar o que eles dizem, e como se
deve fingir dar-lhes liberdade, mantendo-os o mais possível na trela da sua
própria vontade. E assim, quando ouviu os seus homens travarem facilmente
disputas e ameaçarem-se uns aos outros, a propósito de nada ou por causa de
ninharias, e quando viu que alguns começavam a pensar nas mulheres e a
correr após elas, compreendeu que chegara a hora em que era necessário
empreender qualquer coisa de penoso.

Então, saltou mais uma vez sobre a velha tartaruga, cruzou os


braços no peito e exclamou:

Esta tarde, quando o Sol tiver desaparecido atrás do horizonte da


planície junto à montanha, temos de nos pôr a caminho para nos dirigirmos às
terras que são nossas! Que cada um de vós atenda bem ao que vou dizer, e se
têm ainda a intenção de regressar para junto do velho general para comer e
dormir sem fazer nada, que volte para lá esta noite, e eu não o matarei. Mas
se, depois de se ter posto a caminho comigo esta noite, faltar ao juramento
que fizemos, então passá-lo-ei ao fio da minha espada.

Dizendo estas últimas palavras, Wang o Tigre desembainhou a sua


espada tão vivamente como o relâmpago sai da nuvem, e brandiu-a em frente
dos homens atentos. E eles ficaram tão perturbados que se desviaram caindo
uns sobre os outros e se olharam aterrados. Wang o Tigre ficou à espera e,
enquanto esperava,

90
houve cinco entre os mais velhos que se entreolharam
dubitativamente e fixaram a espada fulgurante que ele mantinha em
riste por cima das suas cabeças, depois, sem uma palavra, levantaram-
se, retiraram-se e desceram a montanha e ninguém tornou a vê-los.
Wang o Tigre seguiu-os com o olhar, mantendo sempre a espada imóvel
e clamou:

Há ainda mais?

Um grande silêncio reinou sobre os homens e, durante um


minuto, nem um só se mexeu. Depois, de repente, uma frágil silhueta
curvada separou-se da multidão e apressou-se a passar pela frente do
capitão. Era o filho de Wang Mais Velho. Mas quando Wang o Tigre viu
quem era, rugiu:

Tu não, pequeno idiota! Foste-me dado por teu pai, não és


livre!

E assim falando, tornou a meter a espada na bainha, e


murmurou com desprezo:

Nunca seria capaz de mergulhar esta boa lâmina num sangue


tão pálido. Não, chicotear-te-ei fortemente, como se chicoteia um
garoto!

E esperou que o rapaz retomasse o seu lugar, de cabeça baixa,


como sempre.

Então, Wang o Tigre continuou no tom habitual:

Agora está bem. Verifiquem as espingardas e prendam


solidamente o calçado aos pés e apertem o cinto, porque esta noite
vamos fazer uma grande marcha. Dormiremos de dia e marcharemos de
noite, para que os habitantes não saibam que atravessamos o território.
Mas de cada vez que chegarmos aos domínios de um senhor de guerra,
dir-vos-ei o seu nome, e se alguém vos perguntar quem somos,
respondereis: «Somos um bando errante que veio juntar-se ao senhor
desta região».

E assim aconteceu que à hora de pôr-do-sol, ainda com um


pouco de lusco-fusco, mas em que já se acendiam as estrelas, através
de uma noite sem lua, os homens meteram-se pelo desfiladeiro, cada
um cingido pelo cinturão, com a mochila às costas e a espingarda na
mão. Mas Wang o Tigre mandara apenas dar espingardas suplementares
aos homens que conhecia bem e em que podia confiar, pois havia
muitos entre esses homens que não tinham sido ainda postos à prova e
ele preferia perder um homem a uma espingarda. Os que tinham
cavalos levaram-nos pela rédea até ao sopé da montanha. Ao chegar lá,
antes de tomar a grande estrada para o Norte, Wang o Tigre mandou
fazer alto, e disse na sua voz rude:

Nem um só de vós deve deter-se a não ser onde eu mandar, e


não faremos qualquer paragem demorada antes do crepúsculo e numa
aldeia da minha escolha. Aí podereis comer e beber, que eu pagarei.

91
Dizendo isto, saltou para o cavalo, grande bicho de cor
arruivada, ossudo, e com longa cauda frisada, que provinha das
planuras da Mongólia, cavalo fortíssimo e infatigável. Era necessário
que fosse assim nessa noite, pois debaixo dele Wang o Tigre pusera a
maior parte do dinheiro que levava, e o que não podia levar no cavalo
entregara-o ao seu homem de confiança e a alguns outros menores
importâncias, e assim, se um deles cedesse a uma tentação que pode
muito bem assaltar qualquer pessoa, não seria grande o prejuízo. Mas,
apesar da sua cavalgadura ser resistente, Wang o Tigre não lhe exigia
rapidez. Compassivo, no fundo, moderou o andamento do cavalo e
manteve-o a passo, por consideração para com os seus homens que
não possuíam montadas e tinham de seguir a pé. De um e outro lado,
cavalgavam também os seus dois sobrinhos, a quem ele tinha
comprado burros, cujas curtas patas não podiam rivalizar com o passo
do cavalo. Dos seus homens, uns trinta seguiam a cavalo e os outros a
pé, e Wang o Tigre separou os seus cavaleiros do resto e pôs metade à
frente, metade atrás, e os soldados de infantaria no meio.

Assim foram avançando através da noite silenciosa, quilómetro


após quilómetro, parando agora e logo, quando Wang o Tigre gritava
que podiam descansar um momento, e voltando a partir assim que ele
o ordenava. E os seus homens, sem se queixar, seguiam-no porque
esperavam muito dele. Também Wang o Tigre se sentia satisfeito com
eles, e jurava de si para si que se lhe não falhassem, também ele não
lhes falharia a eles, e mais tarde, quando se tivesse tornado uma ilustre
personagem, daria acesso de posto a cada um daqueles soldados que
tinham sido os primeiros a segui-lo. Assim os olhando, pensando neles
como dependentes dele e nele confiantes, assim como as crianças
confiam nos que se ocupam delas, Wang o Tigre sentiu subir-lhe no
coração uma ternura para com aqueles homens, pois acontecia-lhe
enternecer-se assim, a sós consigo, e mostrava-se bondoso para com os
seus homens, deixando-os descansar um pouco mais tempo de vez em
quando, e eles então deitavam-se numa facha de terreno arrelvado, ou
à sombra dos zimbros como aqueles que se plantam em redor das
sepulturas.

Assim foram caminhando durante mais de vinte noites, e de


dia descansavam nas aldeias que Wang o Tigre indicava. Mas antes de
chegarem a uma aldeia, tinha o cuidado de se informar sobre quem era
o senhor do território, e se alguém perguntava que bando era aquele e
aonde iam aqueles homens, Wang o Tigre tinha a resposta pronta.

Portanto, em cada aldeia, quando os habitantes os viam


chegar, soltavam grandes lamentações, não sabendo já quanto tempo
aqueles soldados errantes ficariam, ou o que comeriam, ou que
mulheres poderiam desejar. Mas Wang o Tigre, nestes
93
primeiros dias, tinha altos desígnios e mantinha a trela apertada aos
seus homens, e tanto mais apertada quanto a sua estranha frigidez para com
as mulheres fazia com que ele se irritasse ao ver outros homens inflamarem-se
por causa delas. E dizia-lhes:

Não somos ladrões e eu não sou um capitão de bandidos! Quero


abrir um caminho melhor do que esse para a grandeza e havemos de vencer
pela ciência das armas e por meios honrosos e não devorando as subsistências
da população. Aquilo de que carecerdes, deverá ser comprado, eu o pagarei.
Recebereis todos os meses o vosso soldo. Mas não tocareis nas mulheres, a
não ser naquelas que se vos entregarem e cujo ofício é ter relações com os
homens por dinheiro; e deveis dirigir-vos a elas só quando absolutamente o
puderdes. Tereis cautela em não vos dirigirdes às que são demasiado
acessíveis e que têm uma doença infame, e que a propagam em torno de si.
Não toqueis nessas! E se eu souber que um dos meus homens tomou
ilegalmente uma esposa virtuosa ou uma virgem, esse homem matá-lo-ei sem
sequer lhe dar tempo de dizer o que fez!

Ora, quando Wang o Tigre assim falava, cada um dos seus homens
detinha-se para o ouvir e para reflectir, pois viam-lhe os olhos fulgurar sob as
sobrancelhas e muito bem sabiam que, apesar do seu bom fundo, o capitão
não receava matar um homem. Os jovens soltavam murmúrios de admiração,
porque nesses tempos Wang o Tigre era o seu herói, e gritavam-lhe: «Ah,
Tigre... Ah, Tigre de sobrecenho negro!» E assim iam marchando ou se
detinham sob o seu comando e cada homem obedecia a Wang o Tigre ou, no
caso contrário, se escondia dos seus olhos.

Por numerosas razões, Wang o Tigre escolhera estabelecer-se numa


região não muito distante da terra natal, e era, entre outras, porque estaria
perto dos seus irmãos e assim se asseguraria de que receberia deles o dinheiro
necessário até lhe ser possível lançar imposto, evitando do mesmo passo o
perigo de lhe ser roubado por bandidos o dinheiro que lhe enviassem. Além
disso, se tivesse algum revés considerável e inesperado, tal como pode
acontecer a qualquer homem de quem se afaste o favor do Céu, ser-lhe-ia
possível desaparecer no seio dos concidadãos, e a sua família era tão
considerada e tão rica que ficaria protegido. Eis porque se dirigiu sem
hesitação para a cidade onde habitavam os irmãos.

Mas na véspera do dia em que chegaram à vista das muralhas da


cidade, Wang o Tigre irritou-se contra os seus homens, pois marchavam
rezingando; e ao chegar a noite, quando lhes ordenou que se pusessem a
caminho, demoraram tempo a preparar-se e Wang o Tigre ouviu alguns deles
murmurarem e queixarem-se, e um dizia:

Ora, há coisas melhores do que a glória e eu pergunto-me

94
se teremos feito bem em seguir um homem feroz e altivo como este!

E outro acrescentava:

Vale mais ter tempo de dormir e não ser obrigado a massacrar as


pernas, mesmo quando não haja de comer!

Na verdade, aqueles homens encontravam-se extenuados. Não


estavam habituados a marchar assim ininterruptamente, porque há vários
anos o general levava vida tão indolente -que o seu relaxamento contaminara
os seus soldados. E sabendo muito bem o que são seres ignorantes, Wang o
Tigre maldizia-os no fundo do seu coração, ao ver que eles se punham a
lamentar-se no momento em que se aproximavam das suas terras do Norte.
Esquecia-se de que, enquanto ele se alegrara de se dirigir para o Norte e se
felicitara por poder comprar o bom pão e por sentir outra vez o cheiro forte do
alho, tais coisas eram ainda novas para os seus homens. Uma noite em que
descansavam sob o zimbro, o seu homem de confiança disse-lhe em segredo:

É tempo de os deixarmos restabelecer-se em qualquer ponto uns


três dias seguidos e é tempo de lhes darmos um festim e de lhes concedermos
uma gratificação suplementar.

Wang o Tigre levantou-se de um salto e disse:

Mostrem-me o homem que fala em ficar para trás e eu meto-lhe uma


bala nas costas.

Mas o homem de confiança de lábio rachado puxou Wang o Tigre de


parte e cochichou-lhe para o acalmar:

Vamos, vamos, capitão, não fale assim. Suspenda a sua cólera. Os


soldados, no fundo, não passam de crianças, e mostrariam energia que não
julgaríeis possível, se tivessem perante eles a esperança de um pouco de
prazer, embora fosse apenas uma pequena recompensa, tal como um prato de
carne, um pichel de vinho novo ou um dia de ociosidade para se entregarem
ao jogo. São tão simples como isso, tão fáceis de contentar e prontos a
entristecer. Os olhos dos seus espíritos não estão abertos como os vossos, meu
capitão, e são incapazes de ver na frente deles mais que o tempo de uma
jornada.

Ora, Wang o Tigre sabia que o seu homem de confiança tinha razão,
e eis por que se aproximou dos seus homens que estavam estendidos,
fatigados e silenciosos, à sombra do zimbro, e lhes disse com mais afabilidade
do que era habitual:

Queridos irmãos, estamos todos perto da minha cidade, e perto da


aldeia onde nasci, e conheço todos os caminhos e atalhos para estes lados. Vós
fostes valentes e infatigáveis, durante todos estes dias e estas noites penosas,
e agora vou preparar-vos a devida recompensa. Levar-vos-ei até às aldeias que
circundam a minha própria povoação, mas não à minha própria aldeia, porque
os seus habitantes me são familiares e recearia ofendê-los. E man-

95
darei comprar algumas cabeças de gado, assim como porcos e patos
e gansos, e vós comereis tanto quanto vos apetecer. Tereis também vinho, e
aqui há o melhor do país, vinho capitoso e claro, cujos vapores facilmente se
dissipam. E cada homem terá três moedas de prata como recompensa.

Então os soldados ficaram satisfeitos e levantaram-se a rir e


puseram a espingarda ao ombro, caminharam naquela mesma noite até à
cidade, ultrapassaram-na, e Wang o Tigre guiou-os até às povoações situadas
para além da sua. Ali, fez alto e escolheu quatro povoações para aboletar nelas
os seus homens. Mas não os aboletou aí à força, como fazem os senhores de
guerra. Começou por ir pessoalmente de aldeia em aldeia, no alvor da
madrugada, à hora em que o fumo começa a escapar-se pelas portas
entreabertas, quando se aquecem os fogões para a primeira refeição; mandou
chamar os chefes da aldeia e disse-lhes delicadamente:

Pagarei em dinheiro tudo o que vos tomarmos e nenhum dos meus


homens deverá aproximar-se de mulher que lhe seja defesa. Tendes que
aboletar vinte e cinco homens.

Mas, apesar do seu tom delicado os anciãos da aldeia sentiam-se


muito inquietos, porque já tinham recebido promessas semelhantes de outros
senhores de guerra e que apesar disso lhes não tinham pago coisa alguma.
Olhavam Wang o Tigre pelo canto do olho, cofiando a barbicha e falando
baixinho uns com os outros, no limiar das casas, e acabaram por pedir a Wang
o Tigre um penhor da sua boa fé.

Então Wang o Tigre tirou generosamente o seu dinheiro, pois aqueles


eram conterrâneos, e deixou penhor na mão de um ancião de cada uma das
aldeias e advertiu particularmente os seus soldados antes de os deixar:

Deveis lembrar-vos de que estes homens eram amigos de meu pai, e


de que estais aqui na minha própria terra. Falai polidamente, não pegueis em
nada sem pagar e se qualquer dos meus soldados se dirigir a mulher que não
seja pública, matá-lo-ei!

Vendo a que ponto ele era duro, os seus homens prometeram-lhe em


alta voz e com muitos e sólidos juramentos não deixarem de fazer o que dizia.
Depois, quando ficaram todos aboletados e lhes deram de comer e o capitão
pagou bastante dinheiro para transformar em sorrisos os olhares desconfiados
dos camponeses, quando tudo ficou bem estabelecido, olhou os dois sobrinhos
e disse-lhes num capricho de bom humor, pois era-lhe na verdade grato
reencontrar-se na sua própria terra:

Eh! rapazes! Os vossos pais vão ficar contentes de vos ver e durante
sete dias vou eu descansar também, porque a nossa guerra espera-nos.

E dirigiu o seu cavalo para o Sul e passou diante da casa

96
de adobe sem se deter, pois não se aproximou muito de propósito e
os seus dois sobrinhos seguiam-no nos seus burros. Chegaram assim à cidade
e atravessaram outra vêz as velhas portas e chegaram a casa. pela primeira
vez, há muitos meses, um pálido sorriso iluminava a fisionomia do filho de-
Wang Mais Velho, que mostrou entusiasmo em dirigir-se para sua casa.

7-w. L.

97
CAPITULO X

DURANTE sete dias e sete noites, Wang o Tigre estanciou na


Grande Casa da cidade e os seus irmãos festejaram-no como o hóspede
de consideração. Quatro dias e quatro noites ficou nos aposentos do seu
irmão mais velho e este fez tudo quanto pôde para concitar as boas
graças do seu irmão mais novo. Mas tudo o que ele soube fazer foi
oferecer-lhe coisas que para si próprio considerava agradáveis, e assim
levou-o todas as noites às casas de chá onde havia cantoras e
tocadoras de alaúde, e levou-o ao teatro. Mas parecia que Wang Mais
Velho se dava mais prazer a si do que ao irmão, porque Wang o Tigre
era um homem estranho. Recusava-se a comer mais do que o
necessário para satisfazer o apetite e detinha-se então e ficava em
silêncio a ver comer os outros, e recusava-se a beber mais do que o
necessário para matar a sede.

E posto acompanhasse o seu irmão mais velho a essas casas


de chá onde vão os homens para se divertirem com mulheres,
permanecia rígido e frio e de espada pendente ao cinturão que não
desafivelava, e tudo considerava com olhar sombrio. Se não parecia
descontente, também não se mostrava satisfeito, e não parecia notar
que nenhuma cantora fosse superior a qualquer outra pela beleza da
voz ou da fisionomia, embora várias o tivessem notado, tentadas pelo
seu másculo vigor e pelo seu bom aspecto, até ao ponto de fazerem
tudo por conciliar as suas boas graças. Iam pousar-lhe nos ombros as
pequeninas mãos e lançavam-lhe olhares lânguidos, que demoravam
longamente nele. Mas ele permanecia rígido e impassível, examinando-
as a todas da mesma forma, com o habitual rictus dos seus lábios, e se
lhe acontecia dizer-lhes qualquer coisa, em vez das coisas a que estão
habituadas as mulheres bonitas, dizia:

Esta canção parece-me igual ao piar dos gaios!

E uma vez em que uma encantadora criaturinha, pintada e

99
de boca deliciosa, o fixava obstinadamente, cantando a sua
cançoneta, ele atirou-lhe estas palavras: «Estou farto disto tudo!»
Levantou-se desabrido e foi-se embora, e Wang Mais Velho teve de o
seguir, conquanto fosse contra sua vontade deixar uma tão boa
representação.

A verdade era que Wang o Tigre herdara da mãe as suas


maneiras taciturnas, de modo que nunca dizia nada senão em caso de
necessidade e as suas palavras eram então de uma tão amarga
franqueza que depois de as ouvir uma ou duas vezes se tinha receio até
de o ver entreabrir os lábios.

Foi assim que ele falou, um dia em que a esposa de Wang Mais
Velho teve a ideia de vir solicitá-lo um pouco e dizer-lhe algumas boas
palavras em favor do seu segundo filho. Entrou uma tarde no quarto em
que Wang o Tigre estava a beber chá, estando Wang Mais Velho sentado
ao pé de uma mesinha, a beber vinho. Entrou com passinho miúdo, o ar
modesto, os olhos baixos, e inclinou-se e requebrou-se sem sequer olhar
os homens. Mas quando a viu chegar, Wang Mais Velho limpou a cara à
pressa e serviu-se de uma chávena de chá, em vez de vinho que tinha
ali quente, num pichel de estanho.

Ela entrou com ar doente e passos vacilantes, e sentou-se


numa cadeira inferior àquela que por direito lhe cabia, embora Wang o
Tigre se tivesse levantado e lhe fizesse sinal para se sentar mais alto.
Mas a esposa disse-lhe, e adoptou a sua vòzinha aflautada, como
nesses dias fazia, sempre que não se esquecesse ou não estivesse
encolerizada:

Não, cunhado, eu sei qual o meu lugar, e não passo de uma


pobre e indigna mulher. E se alguma vez o esqueço, o meu senhor não
deixa de mo lembrar, visto que possui tantas mulheres melhores e mais
dignas do que eu.

Dito isto, lançou um olhar de lado a Wang Mais Velho, de tal


maneira que ele se sentiu desassossegado e murmurou, numa voz
desanimada:

Ora vamos, senhora, quando é que eu...

E começou a procurar em si próprio se fizera recentemente


alguma coisa de especial de que ela pudesse ter ouvido falar em seu
desabono. A verdade é que tinha voltado a encontrar-se com a cantora
que era jovem e gentil e que tanto lhe agradara numa noite de festa, e
começara a ir vê-la e a pagar-lhe uma quantia certa, e tinha a intenção
de a instalar em qualquer ponto da cidade, com uma pensão, como
fazem os homens quando não lhes agrada sobrecarregar a sua vida
caseira com o embaraço de uma nova mulher, e a desejam no entanto o
bastante para a reservarem para si, pelo menos por algum tempo. Mas
isso não o tinha ele ainda realizado, porque a mãe da pequena vivia
ainda e era uma velha muito ávida, que não queria contentar-se com a
soma que

100
Wang Mais Velho oferecia pela filha. E assim ele julgara que
sua esposa não podia ter ouvido falar disso. Limpou outra vez o rosto
com a manga, desviando os olhos dela, e bebeu o seu chá lentamente a
grandes goles sonoros.

Mas a esposa, que nesse momento não estava a pensar nele,


prosseguiu sem dar atenção à sua resmunguice:

Disse de mim para mim que, embora humilde como sou, não
passando de uma pobre mulher, nem por isso sou menos a mãe do meu
filho e devo agradecer ao meu cunhado o que fez pelo nosso indigno
filho segundo. Embora os meus agradecimentos nada valham para uma
personalidade como vós, é no entanto para mim um prazer fazer aquilo
que devo e assim faço, a despeito de todos os fardos e de todas as
privações que tenho de suportar.

Neste ponto, lançou um novo olhar ao seu senhor, que coçou a


cabeça, a olhou apatetadamente e ficou de novo a transpirar, porque
não sabia o que ela iria dizer e era tão obeso que transpirava por uma
pequena coisa. Mas ela continuou:

Apresento-lhe portanto os meus agradecimentos, cunhado, e


embora indignos, afirmo-lhe que nascem de um coração puro. Quanto
ao meu filho, direi que se há rapaz digno da sua benevolência, é bem
esse, que é o rapaz mais amável, o melhor, o mais gentil, e tão
inteligente! Sou sua mãe e embora digam que as mães vêem sempre os
filhos pelo melhor, não deixarei por isso de repetir que vos demos o
melhor filho que temos, o meu senhor e eu.

Entretanto, Wang o Tigre não tinha mexido um dedo e olhava-a


fixamente, como tinha por costume quando alguém falava, e fitava as
pessoas de modo tão estranho que não era possível saber se ele ouvia
o que se dizia ou não, excepto quando vinha a sua resposta que, neste
caso, veio, brutal e súbita:

Se assim é, cunhada, tenho grande pena por meu irmão e por


si. Esse rapaz é o mais tímido e o mais fraco que eu jamais vi e não há
nele mais fel do que numa galinha. Tenho pena de que me não tenhais
dado o vosso filho mais velho. É um rapagão enérgico e eu podia tê-lo
posto à prova e fazer qualquer coisa dele. Mas o vosso segundo filho
está sempre a choramingar, o que me dá constantemente a impressão
de transportar comigo um pobre passarinho. Não se pode pensar em
educá-lo, porque não tem nenhuma disposição, e desse modo nada há a
fazer dele. Não, os dois filhos dos meus irmãos causaram-me
desapontamento, porque o vosso é demasiado mole e demasiado
tímido e o seu cérebro vai-se em lágrimas, e o outro rapaz serve, é
enérgico e suficientemente rude para o nosso género de vida, mas é
irreflectido, gosta de se rir, é um pândego, e eu não sei se um pândego
pode ir muito longe. Sinto não ter eu próprio um filho para empregar,
agora que preciso de um.

Ora ninguém sabe o que a dama poderia ter respondido a

101
um tal discurso, mas Wang Mais Velho estava trémulo, porque sabia
que nunca ninguém falara tão claro a sua mulher, e o rubor subiu-lhe às faces
e abriu a boca para dar uma resposta azeda. Mas, antes que tivesse tempo de
dizer uma palavra, o filho mais velho saiu de repente de detrás de um
cortinado onde estava a ouvir e exclamou fogosamente:

Oh, deixe-me ir, mãe... quero partir!

E ali, diante de todos eles, impaciente e belo na sua juventude,


passava vivamente os olhos de um rosto para outro. Trazia uma túnica azul
forte, da cor das penas do pavão, tal como os jovens senhores gostam de usar,
e sapatos de couro de fabrico estrangeiro, e tinha no dedo um anel de jade e
usava os cabelos cortados segundo a moda mais recente e alisados atrás com
óleo aromático. Era pálido como os filhos das casas ricas que nunca foram
obrigados a trabalhar nem a queixar-se ao Sol, e as suas mãos eram lânguidas
como mãos de mulher. Mas havia com isso tudo qualquer coisa de muito
enérgico no seu aspecto, e apesar do trajar luxuoso e da palidez, tinha o olhar
vivo e ardente. Nem se movia com languidez quando se esquecia de que era
moda para os jovens da cidade parecerem lânguidos e desabusados. Então,
como agora, e sempre que estava animado pela chama do desejo, sabia
apresentar-se sem langor algum.

Mas a mãe pôs-se a soltar altos gritos:

Eis a maior insânia que jamais ouvi. És o filho mais velho e o chefe
da casa, depois do teu pai. Como poderíamos nós deixar-te ir para a guerra e
talvez até entrares numa batalha e morrer? Nada poupámos por amor de ti;
mandámos-te a todas as escolas da cidade e demos-te letrados para te
ensinarem, e chegámos até a mandar-te para o Sul frequentar uma escola.
Como poderíamos nós deixar-te ir para a guerra? (Depois, vendo que Wang
Mais Velho permanecia em silêncio e abanava a cabeça, continuou com
secura). Terei eu também de tomar sozinha este fardo sobre os meus ombros?

Então Wang Mais Velho corroborou timidamente:

A tua mãe tem razão, filho. Ela tem sempre razão, não podemos
comprometer-te em tal aventura.

Mas o rapaz, embora tivesse perto de dezanove anos, começou a


bater com o pé no chão, a chorar, a berrar e correu até dar com a cabeça na
porta, gritando:

Vou envenenar-me, se não puder fazer o que me agradar!

Então os pais levantaram-se em grande aflição e a dama gritou


através da porta que era preciso mandar buscar o criado do patrão mais novo,
e quando o homem chegou, aterrado, gritou-lhe:

Leva o menino para qualquer parte, para se divertir. Trata de distraí-


lo e de lhe fazer passar a cólera.
102
E Wang Mais Velho apressou-se a tirar do cinto um bom punhado de
dinheiro e obrigou o filho a pegar nele, dizendo:

Toma lá, filho, e vai comprar qualquer coisa que te agrade ou gasta-o
ao jogo ou no que quiseres.

A princípio, o rapaz repeliu o dinheiro e fez como se não quisesse


aceitar tal consolo, mas o criado animou-o e exortou-o com tanto jeito que, ao
fim de um momento, o rapaz pegou no dinheiro como se fosse contra vontade
e depois correndo para um lado e para outro e gritando que queria partir e ir
com o tio, deixou-se levar.

Quando a cena acabou, a dama deixou-se cair numa cadeira e com


um suspiro de desolação, balbuciou:

Foi sempre assim... um voluntarioso... nunca soubemos como


proceder com ele... é mais difícil de educar do que aquele que lhe demos.

Wang o Tigre, que ficara a considerar gravemente toda a cena,


observou então:

É mais fácil de educar ali onde se encontra uma vontade do que


quando ela não existe. Eu poderia fazer alguma coisa deste rapaz se o tivesse.
Toda esta tempestade provém exactamente de ele não ter sido educado.

Mas a dama estava já demasiado vexada para poder suportar mais e


não pôde tolerar ouvir dizer que os seus filhos não eram bem educados.
Levantou-se, portanto, com o seu ar majestoso e articulou, fazendo um
cumprimento:

Têm sem dúvida muito que dizer um ao outro.

E retirou-se.

Então Wang o Tigre olhou para o irmão mais velho com severa
piedade e calaram-se durante um momento. Wang Mais Velho recomeçou a
beber, embora o fizesse agora sem gosto, e o seu largo rosto exprimisse
melancolia. Por fim, disse mais pensativamente do que lhe era hábito, e
soltando um profundo suspiro antes de falar:

Há uma coisa que é para mim um enigma e é esta: que uma mulher
possa ser tão meiga e tão dócil perante a vontade de um homem quando é
jovem e que com a idade se torne uma pessoa completamente diferente e seja
vexante e atormentadora e destituída de todo o bom senso, a ponto de tornar
um homem maluco. Desejaria poder passar sem as mulheres, pois estou
convencido de que a segunda virá a ser como a primeira, e que são todas
assim. E olhou o irmão com estranha inveja e ar tão tristonho como o de uma
criança crescida, e continuou tristemente: Tu és feliz, mais feliz do que eu;
estás livre de mulheres e livre da terra. Eu encontro-me ligado duplamente. Se
eu próprio não administro, não tiro nada dela, porque os malditos camponeses
são todos uns ladrões, aliados contra o proprietário, por mais

103
justo e por melhor que ele seja. E quanto ao meu intendente, quem
ouviu falar alguma vez de um intendente honrado?Nos grossos lábios passou-
lhe um sorriso dolorido e, suspirando outra vez, olhou novamente o irmão, e
depois continuou: Sim, tu és feliz. Não tens terra e não estás ligado a
nenhuma mulher.

Wang o Tigre replicou com desprezo:

Não tenho nenhuma espécie de relações com mulheres.

E sentiu-se muito satisfeito quando se passaram os quatro dias e


pôde ir para casa de Wang Segundo.

Ora, quando Wang o Tigre chegou à casa do seu segundo irmão, não
pôde deixar de se maravilhar ao ver como ela era diferente da outra, e como
ali reinava uma boa disposição, a despeito das disputas e das questões entre
os pequenos. Todo o barulho e o bom humor se concentrava na esposa
campónia de Wang Segundo. Era uma bulhenta e exuberante companheira, e
de todas as vezes que falava, a sua voz alta e sonora ressoava pela casa fora.
E embora perdesse a paciência vinte vezes por dia e vinte vezes por dia desse
sapatadas nos filhos para a direita e para a esquerda, com a manga
constantemente arregaçada até ao cotovelo, e às vezes até lançasse uma tal
bofetada na cara de um, de tal maneira que toda a casa se enchia de gritos e
berrata desde pela manhã até à noite, e embora cada criado gritasse mais
fortemente do que a patroa, isso não a impedia também de ser boa, dentro das
suas maneiras brutais, agarrando num filho que passava para lhe dar um beijo
rechonchudo no pescoço gorducho. E conquanto fosse económica, se acaso um
filho vinha pedir-lhe dinheiro para comprar a um vendedor que passava na rua
um pau de açúcar cândi ou uma taça de qualquer guloseima quente ou um pau
de cana de açúcar ou qualquer outra coisa de que as crianças gostam, ela não
deixava de mergulhar a mão nas profundezas da blusa para de lá tirar a
pequena moeda. Naquela casa ruidosa e apaixonada, Wang Segundo circulava
tranquilo, sereno e ocupado nos seus secretos planos, e sentia-se sempre
muito contente com todos e ele e a mulher viviam em perfeita harmonia.

Nesses dias, Wang o Tigre pôs de lado, pela primeira vez, os seus
projectos de glória e enquanto os seus homens descansavam e se divertiam,
ele vivia na casa do irmão, encontrando nela alguma coisa que lhe agradava.
Compreendia porque seu sobrinho o Bexigoso, sempre alegre e risonho,
provinha daquela casa, e por que motivo o outro estava sempre tímido e cheio
de medo. Sentia o contentamento que reinava entre Wang Segundo e a mulher
e sentia também o contentamento que tinham os filhos, posto que muitas
vezes não estivessem lavados e nenhum criado se ocupasse com eles, excepto
para lhes dar de comer durante o dia, ou para

104
à noite os deitar numa cama ou noutra. Mas todos os filhos da
ninhada eram alegres e Wang o Tigre seguia-os por toda a parte com os
olhos, tendo no coração uma estranha emoção. Havia um garotinho de
cinco anos ou cerca disso pelo qual Wang o Tigre se interessava
sobretudo, pois era o rapazinho mais bonito e mais rechonchudo, e
Wang o Tigre gostaria de conciliar a sua amizade. Mas quando ele,
hesitante, estendia a mão ao menino, ou pegava numa moeda para lhe
oferecer, o pequeno tornava-se de repente grave e metia os dedos na
boca, considerava o rosto sombrio de Wang o Tigre, e fugia, abanando a
cabeça. E Wang o Tigre sentia-se tão penalizado por aquela recusa
como se o rapaz fosse um homem, embora se esforçasse por sorrir e
esconder o seu despeito.

Wang o Tigre esperou assim que os sete dias tivessem


passado. A sua insólita ociosidade tornava-o mais pensativo do que de
ordinário o era, e vendo aquelas duas casas cheias de crianças, sentiu
não ter um filho ligado a si. E pensava também um pouco nas mulheres,
pois era a primeira vez que habitava numa casa onde havia esposas e
criadas e escravas jovens a correrem daqui para ali. E sentia por vezes
em si um estranho e doce alvoroço quando via uma esbelta rapariga de
costas para ele, ocupada em qualquer trabalho caseiro, e lembrava-se
de que Flor de Pereira lhe aparecera assim, naqueles mesmos lugares
onde ele vivera quando rapaz. Mas quando a rapariga se voltava e lhe
via o rosto, sentia a mesma perturbação de outrora, e a verdade era
que se produzira na sua juventude um tal emparedamento das vivas
nascentes que, ao aspecto de um qualquer rosto de mulher, se lhe fazia
uma pausa no coração e se desviava.

Mas na ociosidade em que se encontrava e com aquela leve


turbação de outrora, sentia-se nervoso e agitado, e uma tarde ocorreu-
lhe ir apresentar os seus respeitos a Lotus, porque era na parte de casa
que Lotus habitava que lhe acontecia outrora ver Flor de Pereira, e tinha
um secreto desejo de voltar a ver os aposentos e o pátio. Dirigiu-se
portanto a casa de Lotus, depois de lhe ter mandado anunciar a sua
visita, e Lotus ergueu-se da mesa onde estava a jogar com as amigas.
Mas não ficou por muito tempo. Circunvagando os seus olhares pelo
quarto, recordou-se de tudo, e lamentou então ter vindo. Levantou-se e
sentiu-se outra vez perturbado e não quis ficar. Mas Lotus, que não
compreendia o seu ar preocupado, exclamou:

Fique, porque eu tenho um pote de gengibre com açúcar, raiz


de lotus em doce e muitas daquelas outras coisas que agradam aos
jovens. Não me esqueci do que são rapazes, não! Apesar de estar assim
velha-e gorda, lembro-me bem de como vocês todos são!
E pousou-lhe a mão no braço e riu com o seu grosso riso,
lançando-lhe olhares de lado. Ele então detestou-a de repente e tor-

105
nou-se rápido e inclinou-se, e apresentando-lhe outra vez
desculpas, retirou-se o mais depressa que pôde. Mas ouviu o riso
escarninho das velhas que tinham recomeçado já a jogar e esse riso
perseguiu-o até ao pátio.

Mas enquanto se afastava, sentia que a sua agitação ia


aumentando. A sua vida era agora muito longe dali. Era-lhe necessário
pôr-se a caminho. Logo que tivesse visitado o túmulo do pai, como era
seu dever e especialmente antes de empreender a aventura, desejaria
estar a caminho e longe daqueles lugares.

E assim, portanto, no dia seguinte de manhã, o sexto dia,


disse a Wang Segundo:

Ficarei apenas o tempo necessário para queimar um pouco de


incenso no túmulo de meu pai, de outro modo os meus homens tornar-
se-ão moles” e preguiçosos e temos ainda longa jornada a fazer. Que
tens tu a dizer-me a propósito das quantias de que preciso ?

E Wang Segundo respondeu:

Nada, a não ser que te darei todos os meses aquilo que


combinámos.

Mas Wang o Tigre exclamou com impaciência:

Podes ter a certeza de que te reembolsarei um dia de tudo


quanto me emprestares! vou agora à sepultura de meu pai. E tu,
portanto, prepara as coisas de maneira que os dois rapazes estejam
prontos a partir comigo e que não bebam nem comam hoje demasiado,
pois partiremos amanhã de manhã ao nascer do dia.

E afastou-se, quase lamentando ter de levar consigo mais uma


vez o filho do seu irmão mais velho, mas não sabendo como recusar,
com receio de que isso fizesse nascer inveja. E, ao partir, tomou um
punhado de incenso de uma provisão que havia em casa e dirigiu-se à
sepultura do pai.

Ora os dois, pai e filho, tinham vivido muito longe um do outro,


quando viviam juntos, e até mesmo a infância de Wang o Tigre fora
amarga porque o pai lhe dizia que devia ficar ligado à terra, e Wang o
Tigre crescera no ódio à terra. Odiava-a agora e, ao aproximar-se da
casa de adobe que era sua, odiava-a; embora tivesse sido ali que, ainda
criança, habitara, porque fora então uma prisão para ele e julgara
nunca mais se poder dela libertar. Não passou portanto ao pé dela, mas
deu uma volta e, atravessando um pequeno bosque, chegou ao
montículo onde estavam abertas as sepulturas da família.

E quando se ia a aproximar com passo rápido, ouviu um ruído


abafado, como de alguém a chorar, e ao ouvi-lo perguntou-se quem
poderia estar a chorar sobre aquela sepultura, pois sabia que Lotus
estava a jogar e não podia encontrar-se ali. Amorteceu então o passo,
aproximou-se e olhou através das árvores. Era o mais estranho
espectáculo que até então vira. Flor de Pereira

106
inclinava a cabeça sobre o túmulo do pai e estava caída na relva à
maneira das mulheres quando choram e supõem que não há ninguém nas
proximidades e que podem chorar sem ser consoladas. Não longe encontrava-
se sua irmã, a idiota, que não via há muitos anos e que tinha agora os cabelos
quase brancos e o rosto fanado e encarquilhado. Sentada numa mancha de Sol
outonal, brincava com um pedaço de trapo vermelho, dobrando-o e tornando a
dobrá-lo e sorrindo de o ver assim vermelho, ao Sol. E agarrado docilmente à
blusa como uma criança a quem foi dada ordem de fazer qualquer coisa que
lhe agrada, estava sentado um rapazinho trôpego e corcunda. Voltava o rosto
com uma expressão de tristeza para a mulher que chorava e franzia a boca,
prestes a chorar também, por amor dela.

Wang o Tigre ficou-se imobilizado de surpresa, a ouvir Flor de Pereira


lamentar-se com a sua discreção habitual, como se as lágrimas viessem do
mais profundo dela própria. E, de repente, não pôde mais. Deixou cair o
incenso ali onde se encontrava, deu meia volta e afastou-se a passo rápido,
respirando a fortes haustos, mas sem se aperceber disso.

Atravessou em sentido inverso rapidamente os campos por onde


viera e só uma coisa sentia: que devia fugir para longe daqueles lugares,
daquela terra... daquela mulher... e ir-se embora tratar do que lhe dizia
respeito. E voltando-se sob o duro Sol de Outono que caía brilhante e claro nos
campos, nada via do que olhava, não notava beleza alguma na paisagem.

Ao nascer do dia, estava a pé e montado no seu cavalo ruivo. O


cavalo relinchava e escarvava o chão no ar gelado, os seus cascos batiam
fortemente no empedrado da rua, e o jovem Bexigoso, satisfeito com tudo que
comera na refeição da manhã, montava o seu burro, e assim foram os dois até
à porta de Wang Mais Velho, para trazer o outro rapaz. Mas logo um criado saiu
precipitadamente da porta e, correndo desalmadamente, exclamou:

Que desgraça!... Que maldição sobre esta casa!

E continuou a correr.

Então Wang o Tigre sentiu subir nele a impaciência e berrou:


Que maldição? O que é uma maldição é que o Sol esteja já acima do
horizonte e que eu não tenha ainda partido!

Mas o homem não se voltou. Então Wang o Tigre soltou uma grande
praga e gritou ao Bexigoso:

Esse teu maldito primo não é para mim mais que um fardo e nunca
será outra coisa! Vai buscá-lo e dize-lhe que deve vir ou que eu não o quero
mais!

O jovem Bexigoso deixou-se escorregar do burro abaixo e entrou a


correr. Wang o Tigre desceu do cavalo mais devagar, dirigiu-se à porta e
entregou as rédeas ao porteiro. Mas sem lhe dar tempo de ir mais longe, o
rapaz saíra, branco como um

107
espectro e tão ofegante como se, a correr, tivesse dado a volta
às muralhas da cidade. E balbuciou, entre suspiros:

Nunca mais, nunca mais vem... morreu... enforcou-se!

Que dizes, macaquito? berrou Wang o Tigre.

E, de um salto, penetrou em casa do irmão.

Era grande o alvoroço. Homens, mulheres e criados estavam


reunidos em volta de qualquer coisa no pátio, e por sobre o rumor das
exclamações ouviam-se os uivos desesperados de uma mulher, e era a
mãe do pequeno que assim gritava. Mas Wang o Tigre afastou a gente
para o lado e no centro da multidão avistou Wang Mais Velho. O seu
largo rosto estava amarelo como uma vela velha e convulsionado de
soluços, e sustentava nos braços o corpo do seu segundo filho. O rapaz
estava estendido no chão, sob o belo sol matinal, morto; a cabeça caía-
lhe para trás, nos braços do pai. Enforcara-se com o cinto, numa trave
do quarto em que dormia com o irmão mais velho, e o irmão de nada se
apercebera até de manhã, ao acordar, porque dormia com sono
profundo depois de ter bebido muito, na noite anterior, numa alegre
orgia. Quando acordou ao alvorecer e viu pendente a delgada silhueta,
supôs a princípio que era uma peça de roupa e perguntou-se por que
motivo estava ali pendurada, mas quando olhou de mais perto, soltou
tais gritos que acordou a casa inteira.

Então Wang o Tigre, quando alguém lhe contou aquela


história, e umas vinte outras pessoas ajudaram a contá-la, ficou a olhar
o sobrinho morto com a mais estranha emoção, e durante um momento
teve pena daquele rapazinho como nunca sentira quando ele vivia.
Agora que estava morto parecia ainda mais débil e mais frágil. E
quando Wang Mais Velho ergueu os olhos e viu o irmão, balbuciou:

Nunca teria suposto que este meu filho escolhesse a morte de


preferência a seguir contigo! Deves tê-lo tratado muito mal para fazeres
com que te odiasse tanto! É uma sorte para ti seres meu irmão,
porque... se o não fosses...

Não, irmãodisse Wang o Tigre mais docemente do que


costumava, não o tratei mal: Ele tinha até um burro para montar,
quando outros, mais velhos,, iam a pé. Mas também eu nunca poderia
supor que ele fosse assim corajoso para se dar a morte. Ter-me-ia sido
possível fazer qualquer coisa dele se tivesse sabido que ele tinha em si
a coragem de morrer.
Ficou a considerar um momento o cadáver. Mas o tumulto
recomeçou de súbito, quando o criado que tinha saído voltou com um
geomante e com sacerdotes providos dos seus tambores e
acompanhados por todos aqueles cujo dever é intervir quando ocorre
um caso de morte assim estranho, e Wang o Tigre aproveitou-se do
tumulto para se ir embora, esperar numa sala, sozinho.

108
Depois de fazer tudo quanto lhe cumpria como irmão, em tão
tristes circunstâncias, montou a cavalo e afastou-se. E, à medida que ia
seguindo, sentia-se mais triste do que antes e viu-se obrigado a
endurecer-se e a recordar-se por várias vezes de que nunca tinha batido
nem maltratado de modo algum o rapazinho, não havendo ninguém
que pudesse supor que ele se encontrava desesperado a ponto de se
tirar a si próprio a vida, e Wang o Tigre disse-se repetidas vezes que
assim fora decretado pelo Céu e que nenhum ser humano poderia ter
impedido aquele caso, pois a vida de qualquer ser está sob o poder
celeste. Assim se forçou a esquecer o pálido rapazinho e o aspecto que
tinha com a cabeça pendente do braço do pai. E Wang o Tigre disse de
si para si:

«Nem sequer os filhos são uma bênção, segundo parece».

E quando assim se reconfortou, sentiu-se melhor e interpelou


cordialmente o jovem Bexigoso:

Vamos, meu rapaz, há um longo caminho à nossa frente e


temos de nos meter a ele!
CAPITULO XI

Chegaram de manhã cedo às aldeolas onde estavam os homens


acantonados e o seu homem de confiança de beiço rachado veio ao seu
encontro e disse:

Chega em boa altura, capitão, porque os soldados descansaram já,


estão bem alimentados e aspiram a um pouco mais de liberdade.

Reune-os então, quando eles tiverem concluído a sua refeição da


manhã ordenou Wang o Tigre. Vamos pôr-nos em marcha para estarmos
amanhã a meio caminho das nossas terras.

Ora, durante esses dias em que Wang o Tigre estivera em casa de


Wang Segundo, reflectira muito nas terras que tomaria para seu próprio
senhorio, e falara delas com seu irmão, que era prudente e avisado, e pareceu
a ambos que as terras que ficavam para além dos limites da província vizinha
eram muito boas para esse desígnio, as melhores que era possível encontrar.
Essas regiões ficavam bastante afastadas do país de Wang Lung para que, no
caso de uma necessidade imperiosa, não se visse obrigado a sobrecarregar
aqueles que eram os seus próprios concidadãos, e ficavam ao mesmo tempo
bastante próximas para que, se ele fosse vencido numa guerra, pudesse
procurar refúgio entre os seus. Além disso, ficavam bastante próximas para
que o dinheiro de que ele precisasse até ao seu estabelecimento pudesse ser-
lhe trazido facilmente e sem correr grande perigo de ser roubado. Quanto às
próprias terras, eram terras excelentes e famosas em que a fome não era
muito frequente, uma parte, altas, e as outras baixas, e havia montanhas que
poderiam servir de asilo e de refúgio. Havia, além disso, uma certa estrada que
servia de passagem aos viajantes, do Norte para o Sul, e esses”viajantes
podiam muito bem pagar direito de passagem. Havia também duas ou três
grandes cidades e um pequeno burgo, de maneira que Wang o Tigre não ficaria
dependente por completo da população que cultivava

111
o solo. Essas terras tinham ainda outro valor e era que as
populações não eram muito pobres, enviando cereais aos mercados.

Em relação a todas essas vantagens havia apenas um


inconveniente, e era que existia já nessa região um senhor de guerra,
tendo Wang o Tigre de o expulsar primeiro, se quisesse atingir o
máximo de prosperidade, pois não há região suficientemente rica para
poder manter dois senhores de guerra. Ora, quem era esse senhor de
guerra e de que forças dispunha, eram coisas que Wang o Tigre
ignorava, pois nada de certo pôde saber por seu irmão, a não ser que
alguém tinha ouvido chamar-lhe o Leopardo, porque ele tinha uma
fronte singular inclinada para trás e um crânio como têm os leopardos,
e governava a população com dureza, de modo que toda a gente o
odiava.

Por consequência, Wang o Tigre sabia que devia dirigir-se


àquelas terras em segredo e não em som de guerra e de bandeira
desfraldada. Não, devia dirigir-se para lá furtivamente, dividindo o seu
exército em pequenos bandos, de maneira que estes não se
afigurassem mais perigosos do- que bandos de soldados desertores, e
procuraria qualquer abrigo numa montanha e desse ponto exploraria o
país com os seus homens de confiança, para ver que género de senhor
de guerra tinha a combater e a quem devia tomar as terras que já
sentia terem-lhe Sido reservadas pelo destino.

Fez como tinha projectado. Quando os seus homens se


reuniram ao sair das aldeias e quando cada homem comeu e se
aqueceu bebendo bom vinho para se defender contra o vento agreste
que luta com o calor do Sol, depois de verificar que tudo fora pago e de
perguntar aos camponeses: «Os meus homens fizeram em vossas casas
alguma coisa que não deviam ?»e de lhes ouvir responder com
entusiasmo: «Não, nada de mau fizeram e nós desejávamos que todos
os soldados fossem como os vossos!» então Wang o Tigre, contente,
levou os seus homens para além das aldeias e, depois de os reunir em
torno de si, falou-lhes das terras para onde queria conduzi-los, dizendo:

São as melhores terras que se podem encontrar seja onde for,


e existe só um senhor a combater. Há também nesse país um vinho
capitoso, tal como nunca provastes.

Quando os homens ouviram aquilo, soltaram gritos de alegria


e clamaram:

Leve-nos para lá, capitão... são terras assim que


desejamos!
Então Wang o Tigre respondeu-lhes, com o seu severo sorriso:

Não é tão fácil como isso, porque devemos antes informar-nos


da força do senhor que a« mantém na sua posse. Se os seus homens
forem em número grande demais para nós, temos de procurar as
maneiras de os chamar para o nosso lado, sepa-
112
rando-os dele, e cada um de nós deve tornar-se um espião para ver
e ouvir. Ninguém deve saber porque vimos, de outro modo estamos perdidos.
Eu irei pessoalmente ver onde poderemos estabelecer o nosso acampamento,
e o meu fiel Beiço~Rachado instalar-se-á na fronteira, numa aldeola chamada
Vale da Paz. Ficará ali, na hospedaria de que eu ouvi falar, e que é a última da
rua, tendo por insígnia uma garrafa de vinho dependurada na frontaria.
Esperar-vos-á aí para vos dizer o nome do lugar onde eu marque o ponto de
encontro. Agora ides dispersar-vos em grupos de três, cinco e sete, e flanar por
um lado e outro como, se fôsseis desertores, e se alguém vos perguntar onde
ides, perguntai-lhe onde está Leopardo, pois ides juntar-vos a ele. Darei a cada
um três moedas de prata para comer, até nos reencontrarmos. Mas há uma
coisa que digo a todos: se me chegar aos ouvidos que alguém ofendeu um
humilde ou olhou para uma mulher que lhe seja defesa, eu não perguntarei
quem é, mas matarei dois homens por cada homem deste género de quem
ouvir falar.

Então um interpelou-o:

Mas, meu capitão, nós nunca teremos a liberdade de fazer o que


fazem soldados?

E Wang o Tigre respondeu-lhe:

Quando der essa ordem, sereis livres! Mas ainda não combatestes
por mim. Julgais então que vou conceder-vos as recompensas de batalha antes
da batalha?

O homem calou-se então e ficou atemorizado, porque Wang o Tigre


era bem conhecido pelo seu humor brusco e como sempre disposto a usar da
espada, e não era homem que fosse possível comover com uma palavra
espirituosa ou uma frase divertida dita no momento próprio. Mas sabiam-no
também justiceiro e os homens que o seguiram eram de muito boa têmpera
para saberem o que era justo. Na verdade, ainda não tinham combatido, e
consentiam de boa vontade em esperar enquanto lhes dessem boa comida,
cama e soldo.

Wang o Tigre seguiu-os com o olhar enquanto eles se dispersavam


em pequenos grupos e, quando assim se dispersaram, pagou-lhes do dinheiro
em reserva que possuía, e com o jovem Bexigoso no seu burro e o homem de
confiança de beiço rachado numa mula, que Wang o Tigre lhe comprara na
aldeia, puseram-se os três a caminho em direcção a Noroeste.

Quando Wang o Tigre chegou à orla da região de que ouvira falar, fez
subir o seu cavalo ruivo para cima do alto túmulo monumental de um rico que
ali se encontrava, e desse observatório lançou uma vista de olhos pela região.
Era a terra mais bela que jamais vira. Estendia-se na sua frente, ondulando em
pequenas colinas baixas e em longos vales onde verdejava já um pouco o

8-w. L.
113
trigo de Inverno que há pouco brotara da terra. A Noroeste, as
colinas erguiam-se bruscamente e tornavam-se montanhas cavadas,” cheias
de falésias que se recortavam nítidas no céu límpido. As casas dos habitantes
da região estavam esparsas por pequenas aldeias e lugares, boas casas de
adobe bem tratadas, muitas das quais tinham os telhados recentemente
cobertos do colmo proveniente da colheita desse ano. Havia até algumas casas
de tijolo e cobertas de telhas. Nos pátios de entrada, bastante perto dele para
serem nitidamente visíveis, havia medas de palha. Ouvia-se perfeitamente na
distância o cacarejar das galinhas que acabavam a postura, e de vez em
quando o vento trazia-lhe pedaços de canção que um campónio cantava ao
amanhar os seus campos. Era uma belíssima terra e o coração saltou-lhe no
peito ao contemplá-la. Mas não tinha a intenção de se dirigir lá com trajo
militar e montado no cavalo ruivo, para deixar um rumor de guerra espalhar-se
demasiado cedo na população. Olhou e traçou um itinerário por um caminho
sinuoso até às montanhas, onde poderia esconder-se com os seus soldados e
reconhecer a força do inimigo, antes que ninguém pudesse saber sequer que
ele viera.

Ao terminar a tarde, mas antes do pôr-do-sol, chegaram ao pé da


montanha coberta de árvores, em direcção à qual tinham cavalgado horas
seguidas, e Wang o Tigre desceu do cavalo fatigado e começou a escalar uma
grande escadaria de pedra que levava ao cimo. Subiu a escada escoltado pelos
dois companheiros, cujas montadas tropeçavam nos pedregulhos, e à medida
que subiam a montanha tornava-se mais selvagem e cavava-se em precipícios
que a estrada contornava, e por entre os rochedos e as árvores saltavam
torrentes e crescia a erva espessa e bravia. Os musgos que cobriam as pedras
eram aveludados, mas ofereciam poucos sinais de passos humanos, excepto
na parte central, como se só uma ou duas pessoas tivessem passado por ali.
Quando se pôs o Sol, tinham chegado ao fim daquele caminho da montanha,
que acabava num templo construído de pedra dura e encostado à falésia, de
tal maneira que esta lhe servia na realidade de muralha posterior. O templo
estava quase oculto no meio das árvores, mas podia-se avistá-lo porque as
suas velhas paredes vermelhas lançavam um fulgor ao Sol poente. Era tão só
um pequeno templo vetusto e em ruínas, cujas portas estavam fechadas.

Wang o Tigre subiu até ali e durante um momento encostou o ouvido


à porta fechada. Mas, como não ouvira nada, começou a bater na porta com o
cabo do chicote. Passou muito tempo sem vir ninguém e então ele enfureceu-
se e começou a bater violentamente. Por fim, a porta entreabriu-se e apareceu
a cabeça rapada de um padre, com a cara cheia de rugas. E Wang o Tigre
disse-lhe:

114
Procuramos abrigo para esta noite.

E a voz de Wang o Tigre ressoou dura, seca e nítida naquele local


sereno.

O padre abriu a porta um pouco mais e respondeu numa voz fraca:

Então não há estalagens e casas de chá nas aldeias? Nós somos


apenas uma pobre comunidade de alguns homens que deixaram o Mundo.
Dispomos só da mais miserável alimentação, sem nenhuma parte de carne, e
só bebemos água.

E, considerando Wang o Tigre, os joelhos cansados tremiam-lhe sob


a túnica.

Mas Wang o Tigre meteu-se à força entre os batentes da porta,


passou adiante do velho padre e gritou ao jovem companheiro e ao homem de
confiança:

Ora eis o lugar que procuramos!

Entrou, portanto, sem atenção alguma para com os padres. Penetrou


no templo pela grande sala onde se encontravam os deuses, que eram, como o
templo, muito velhos e cujos dourados se lhes iam escamando nos corpos de
barro. Mas Wang o Tigre não lhes concedeu sequer um olhar. Passou além
deles, penetrou nos compartimentos laterais do fundo onde viviam os
sacerdotes, e escolheu para si um pequeno alojamento mais bem conservado
que os outros e limpo não há muito tempo. Ali, desafivelou a espada, e o
homem de confiança andou a furar por aqui e por ali e encontrou de comer,
embora apenas um pouco de arroz.

Mas naquela noite, quando Wang o Tigre se estava a meter na cama


no quarto que escolheu, ouviu um profundo gemido abafado sair da sala onde
se encontravam os deuses e levantou-se e saiu para ver o que era. Os cinco
velhos padres do templo estavam ali, com os seus dois pequenos acólitos,
filhos de camponeses que lhes tinham sido deixados como reconhecimento de
qualquer súplica atendida. Todos eles, ajoelhados, dirigiam as suas
lamentações ao Buda, cujo vulto dominador se erguia a meio da sala, apoiado
no seu grande ventre, e, gemendo, pediam ao deus que os socorresse. A
chama da tocha acesa vacilava sob o vento nocturno, e à luz incerta da chama,
as sete pessoas estavam ajoelhadas e rezavam em coro.

Ora, Wang o Tigre ficou a considerá-los e a ouvi-los e notou que


rezavam para serem protegidos contra ele. E eis o que eles exclamavam:

Protege-nos... protege-nos dos ladrões!

Ao ouvir aquilo, Wang o Tigre pôs-se a gritar violentamente. E, ao


ouvirem-lhe a voz inesperada, os padres levantaram-se de um salto, e, na sua
precipitação, tropeçaram nas sotainas, com excepção de um velho padre que
era abade daquele templo e que

115
se atirou de barriga para o chão, supondo chegada a sua última
hora. Mas Wang o Tigre gritou-lhes:

Eu não vou fazer-lhes mal, velhos estúpidos! Vejam, vejam, tenho


dinheiro. Porque têm medo de mim?

E, enquanto falava, abriu a bolsa do cinto e mostrou-lhes o dinheiro


que ali tinha, e verdade seja que era mais dinheiro do que eles nunca tinham
visto. E continuou:

Além deste dinheiro, tenho ainda mais e nada mais quero de vós do
que um abrigo por pouco tempo, como qualquer homem pode, sendo
necessário, pedir a uma igreja.

O espectáculo do dinheiro reconfortou muito os padres. Olharam uns


para os outros, dizendo:

É qualquer capitão de soldados que matou um homem que não


deveria ter matado, ou que perdeu o favor do seu general e deve por
conseguinte esconder-se durante algum tempo. Ouvimos falar de um capitão
assim.

Quanto a Wang o Tigre, deixou-os acreditar no que quisessem. Sorriu


com o seu sorriso breve e sem alegria, e voltou a deitar-se.

No dia seguinte de manhã, Wang o Tigre levantou-se e saiu para a


parte central do templo. Era uma manhã brumosa, as nuvens enchiam os vales
e escondiam aquela cumeada a todos os olhares e ela ficava solitária e
invisível aos olhos do mundo. No entanto, a frescura do ar sugeriu-lhe que o
Inverno não demorava, e que havia muito a fazer antes da vinda das neves,
porque os seus homens dependiam dele para a alimentação e o agasalho e
para os vestuários contra o frio. Voltou portanto ao templo e foi a uma cozinha,
onde dormiam o seu homem de confiança e o jovem companheiro. Tinham-se
coberto de palha, dormiam ainda e o sopro do homem silvava através do seu
lábio fendido. Dormiam profundamente, embora já um acólito estivesse a
encher cuidadosamente de palha a abertura do forno de tijolo e de debaixo da
tampa de madeira do caldeirão de ferro posto em cima dos tijolos soprava um
jacto de vapor. Ao ver Wang o Tigre, o acólito teve um movimento de recuo e
escondeu-se.

Mas Wang o Tigre não lhe prestou atenção. Interpelou o seu homem
de confiança, empolgando-o e sacudindo-o, e ordenou-lhe que se levantasse,
comesse e fosse à estalagem, no caso de alguns dos homens por lá passarem
naquela manhã. Então, o homem de confiança levantou-se, ainda tonto de
sono, esfregando a cara com ambas as mãos e bocejando de maneira horrível.
Mas vestiu-se rapidamente, mergulhou uma tijela no caldeirão e bebeu o caldo
de sorgo que o acólito estava a cozinhar. Depois, afastou-se e desceu a
montanha, com o ar de um sólido rapagão, se visto apenas de costas e não de
frente. E Wang o Tigre, que o seguia com os olhos, apreciava-o pela sua
fidelidade.

116
Depois, como Wang o Tigre esperava naquele dia que os seus
homens se reunissem naquele lugar solitário, traçou o plano do que ia realizar
e decidiu quem escolheria como homens de confiança para seus auxiliares e
conselheiros. Reservou também determinados trabalhos a certo número de
homens, uns para espiões e outros para corregedores, e outros ainda para
obterem combustível, cozinhar, cuidar das armas e limpá-las, assim atribuindo
a parte que a cada um cabia na vida comum. E pensou que devia manter dura
autoridade sobre todos, e recompensá-los somente ali e quando a recompensa
era justa, e que devia organizar tudo sob o seu absoluto comando. Tinha de
dispor da vida e da morte.

Além disso, decidiu consagrar todos os dias várias horas para


exercitar os seus homens nos ardis e manobras da guerra, para que
estivessem prontos quando chegasse o momento de lutar. Não se atrevia a
gastar muitos cartuchos para as espingardas, nos exercícios, dado que ainda
não tinha muitos para lá das suas necessidades. Mas contava ensinar-lhes tudo
quanto pudesse.

E assim, portanto, esperou impacientemente, naquela serena


cumeada da montanha e antes do fim do dia eram já cinquenta homens ou
mais que se lhe tinham juntado e no fim do dia imediato quase mais outros
cinquenta. Os poucos restantes nunca mais chegaram e parece que
desertaram para outra causa. Wang o Tigre esperou ainda dois dias, mas eles
não vieram, e ele mortificou-se com isso, não por causa dos homens mas
porque, com cada um deles, perdera uma boa espingarda e uma centena de
cartuchos.

Ora, quando os velhos padres viam aquela horda de homens reunir-


se no seu pacífico templo, ficaram desesperados, sem saber o que haviam de
fazer. Então Wang o Tigre reconfortou-os, dizendo-lhes por várias vezes:

Tudo lhes será pago e não têm motivo de receio.

Mas o velho chefe da comunidade respondeu, na sua vozinha fina,


pois era muito velho e a carne que lhe cobria os ossos estava seca e
pergaminhada pela idade:

Não é só por recearmos não ser indemnizados, mas porque há coisas


que o dinheiro não compensa. Este templo era um lugar muito tranquilo e
chama-se até o Templo da Santa Paz. A nossa pequena comunidade vive neste
lugar fora do Mundo há muitos, anos. Eis agora esse lugar ocupado pelos
vossos jovens soldados ardentes e famintos, com cuja chegada a paz
desapareceu daqui. Empurram-se na parte do templo onde se encontram os
deuses, escarram por todos os lados, nunca se inclinam perante as imagens,
fazem as suas necessidades como e onde lhes apraz e mostram-se grosseiros
e selvagens em tudo quanto fazem.

Wang o Tigre respondeu-lhe:

É mais fácil para vocês e para os seus deuses mudarem


117
de lugar do que a mim mudar os hábitos dos meus homens, que são
soldados. Transportem portanto os deuses para a sala mais afastada e eu dir-
lhes-ei que esse lugar lhes fica interdito. E deste modo ficarão em paz.

Assim fez o velho sacerdote, visto que não havia outro recurso, e os
padres transportaram todos os deuses, sobre os seus pedestais, excepto o