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CAPA DE
BERNARDO MARQUES
PEARL S. DUCK
OS FILHOS DE WANG
LUNG
TRADUÇÃO DO DR. JOSÉ MARINHO
EDIÇÃO «LIVROS DO BRASIL» LISBOA Bua dos Caetanos, 22
CAPÍTULO I
Wang Lung estava a morrer. Estava a morrer na sua pequenina e
sombria casa de adobe no meio dos campos, no quarto onde, rapaz ainda,
dormira, na mesma cama em que se deitara na noite de noivado. O quarto não
valia sequer uma das cozinhas da Grande Casa da cidade, que era também
sua, onde os seus filhos e os destes presentemente habitavam. Mas já que
tinha de morrer, agradava-lhe morrer aqui, no meio das suas terras, neste
compartimento com a mesa e as cadeiras de madeira por trabalhar, sob
aqueles cortinados de algodão.
Toda a cidade, por certo!gritou muito alto o filho mais velho, com
largo gesto. E ao longo das ruas toda essa gente abrirá alas, pois nunca se viu
enterro assim desde o tempo em que a célebre Casa de Hwang se encontrava
ainda em todo o seu esplendor.
Mas esse conforto não podia durar sempre, e uma hora chegou, com
o primeiro alvor do sexto dia, em que a morte do velho se cumpriu. Os dois
filhos estavam cansados de tanto esperar, porque não estavam habituados à
falta de comodidades de uma casa exígua como aquela, em que nunca tinham
tornado a viver desde a juventude, e, extenuados pela interminável morte do
pai, tinham ido deitar-se no pequeno pátio interior que ele outrora construíra,
na época em que tomara a sua primeira concubina, Lotus, época em que se
encontrava ainda em todo o vigor da idade. Ao retirar-se, no princípio da noite,
avisaram Flor de Pereira para que os chamasse, se o pai recomeçasse de-
repente a morrer outra vez, e foram descansar um pouco. Naquele leito que
Wang Lung outrora achara tão belo e onde amara tão apaixonadamente,
repousava agora o filho mais velho e lamentava-se de que a cama fosse dura e
tão desengonçada por já velha, e lamentava-se do quarto ser escuro e abafado
em plena Primavera. Mas uma vez que se deitou, adormeceu com sono pesado
e ruidoso, embara-
çando-se-lhe o curto sopro na gorja farta. Quanto a Wang
Segundo, estendeu-se numa camilha de bambu que se encontrava
encostada à parede e adormeceu com um sono leve e furtivo, como o
sono de um gato.
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Por este modo o reconfortava e no mesmo momento em que, ao som
da meiga voz, ele concitava as últimas pulsações, morreu. Mas não era homem
para morrer sossegadamente. Embora reconfortado, quando a alma se
arrancou dele, o coração no extremo arranque deu-lhe como que um grande
salto de cólera e os braços e as pernas agitaram-se-lhe tão violentamente que
a sua velha mão ossuda foi bater em plena face de Flor de Pereira, inclinada
para ele. A mão estalou-lhe em plena face numa bofetada tão violenta que ela
levou a mão ao rosto e murmurou:
Mas ele não lhe deu resposta. Então ela baixou os olhos e viu-o
estendido de través. Enquanto o olhava, exalou ele o último suspiro e não se
mexeu mais. com gesto ágil e discreto, ela compôs-lhe os velhos membros e
cobriu-o honestamente com os cobertores. Fechou com os seus dedos ternos
os olhos esbogalhados que já não viam, e contemplou por um instante o
sorriso, ainda subsistente no rosto, que lhe viera quando ela lhe dissera que
não morria.
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habitara com Wang Lung vivo, e ao quarto onde Wang Lung a
conduzira, certo dia em que o seu sangue corria ardente e forte apesar da
velhice e em que ele se sentia só no meio da sua Grande Casa. Mas o pátio
estava agora silencioso e em cada uma das portas da Grande Casa os sinais de
felicidade em papel vermelho tinham sido rasgados para mostrar que a morte
se achava ali; em cada um dos batentes da grande porta que abria para a rua
tinham colado papel branco, em sinal de morte. E Flor de Pereira vivia e
deitava-se ao lado do morto.
Era a primeira vez que Flor de Pereira tornava a ver Lotus desde o
dia em que esta, sabendo o que Wang Lung fizera, lhe mandou dizer que
desejava nunca mais tornar a vê-la, porque estava muito zangada por ele ter
tomado entre o seu pessoal uma rapariga escrava desde a infância. Ficara tão
cheia de ciúme e tão zangada que fingia até ignorar se Flor de Pereira estava
viva ou morta. Mas a verdade é que ela se sentia com curiosidade, e, agora
que Wang Lung morrera, tinha dito a Cuckoo, sua criada:
Agora, visto que o velhote morreu, já não tenho que querer mal a
essa rapariga e vou ver como ela está agora.
Palavra que isto deve custar um bom par de vinténs aos filhos!
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vê-las de noite na cama e puxar-lhes pelos cabelos, ou ouviam
arranhar de modo suspeito nas janelas, ou uma panela era de súbito arrancada
das mãos da cozinheira, ou uma taça escapava-se da mão de uma escrava que
se preparava para servir à mesa.
Flor de Pereira não tinha medo, e vivia agora sozinha com Wang
Lung como fizera quando ele vivia. Mas quando ela via chegar os padres com
suas túnicas amarelas, levantava-se e retirava-se para o quarto e aí ficava a
ouvir o seu lúgubre salmodiar e lento rufar dos seus tambores.
Toda a cidade sabia agora o dia que o geomante fixara para o funeral
de um homem de tanta consideração como Wang Lung, e nesse dia de fim de
Primavera e proximidades do Estio as mães, que não queriam chegar tarde ao
espectáculo, insistiam mais com os filhos para acabarem depressa a refeição
da manhã; os homens que trabalhavam nos campos pararam nesse dia, e nas
lojas, empregados e aprendizes entenderam-se de maneira a poderem assistir
ao funeral e ver passar o cortejo. Pois toda a gente na região conhecia Wang
Lung, sabia que ele fora outrora um pobre lavrador como qualquer outro, que
se tornara rico e fundara uma casa e deixava os filhos ricos. Todos os pobres
aspiravam a ver o enterro porque era coisa digna de meditação que um
homem tão pobre como eles próprios tivesse morrido rico e era um motivo de
secreta esperança para todos os pobres. Todos os ricos queriam ver o
espectáculo porque sabiam que os filhos de Wang Lung eram ricos, e eis
porque todos os ricos consideravam como um dever apresentar os seus
respeitos àquele importante defunto.
Mas até mesmo na casa de Wang Lung havia nesse dia confusão e
barulho, porque não era fácil pôr em ordem um tão grande enterro, e Wang
Primeiro perdia a cabeça diante de tudo o que ele tinha a fazer. E como era o
chefe da casa, via-se
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obrigado a olhar por tudo, pensar em centenas de pessoas e no luto
apropriado a cada um conforme a sua dignidade, e no aluguer das cadeirinhas
para as mulheres e as crianças. Andava de cabeça perdida mas, apesar disso,
sentia-se orgulhoso da sua importância e do facto de todos correrem para ele e
lhe perguntarem com grandes vozes o que deveria fazer-se na circunstância tal
ou tal. E sentia-se tão agitado que o suor lhe escorria pela cara como em pleno
Verão. O seu olhar errante caiu no segundo irmão, que se mantinha
serenamente de lado. Aquele sangue-frio foi o pretexto da expansão da cólera
do Wang Mais Velho, que exclamou:
Deixas-me tudo para mim e nem sequer sabes providenciar para que
tua mulher e teus filhos se vistam e se apresentem numa atitude decente.
Porque hei-de eu fazer seja o que for, quando tu próprio não estás
contente com o que fazes? Sabemos muito bem, eu e minha mulher, que nada
que se faça te agradará a ti ou a tua esposa, e desejamos, antes de mais nada,
agradar-vos!
Só havia nesse dia em toda a casa uma pessoa serena, e essa era
Flor de Pereira. De luto, com um vestido de cânhamo branco que só o de Lotus
suplantava, mantinha-se sossegadamente sentada à espera, ao lado de Wang
Lung. Vestira-se cedo e tinha também vestido de luto a idiota, mas aquela
pobre criatura não tinha ideia alguma do que isso significava e ria
continuamente e o vestido inabitual incomodava-a um pouco, a ponto de ela
fazer esforços para se livrar dele. Mas Flor de Pereira deu-lhe a comer um bolo
e arranjou um pedaço de pano vermelho para ela brincar, acabando assim por
acalmá-la.
Quanto a Lotus, nunca estivera numa tal aflição como nesse dia,
porque engordara de tal modo que não podia sentar-se num palanquim vulgar,
e experimentara um palanquim após outro, à medida que lhos traziam, e
gritava que nenhum servia e que não sabia por que motivo faziam agora
palanquins tão pequenos e tão estreitos, acabando por chorar. E o receio de
que lhe fosse impossível tomar parte no cortejo punha-a fora de si. Quando viu
a idiota
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vestida de luto, extravasou a sua cólera sobre ela e queixou-se
ruidosamente a Wang Lung:
E clamou que a idiota não devia mostrar-se num tal dia de cerimónia
pública.
Mas se Wang Terceiro a viu ou notou quem ela era, não o deu a
entender. Inclinou-se diante do caixão, vestiu o trajo de cânhamo que lhe fora
destinado, acendeu duas velas e reclamou novos manjares para os oferecer
em silêncio diante do caixão do pai.
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e quando ele lhes disse: «Façam o seu trabalho e fiquem certos de
que serão tratados nesta casa com justiça»calaram-se e dirigiram-se para as
cadeirinhas como se os soldados e as espingardas dispusessem de um poder
mágico.
É uma mulher como deve ser, que mostra o pesar devido pela perda
do homem que amava.
Que rico que ele devia ser para lhe dar tão boa vida a ponto de
engordar assim!
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olhava por entre os dedos e o espectáculo da multidão distraía-a
outra vez.
E ela não quis voltar à casa da cidade. Foi para a casa de adobe e
quando Wang Mais Velho insistiu com ela para regressar com eles à casa da
cidade e habitar com a família, pelo menos até às partilhas, ela abanou a
cabeça e respondeu:
Não, foi aqui que eu vivi com ele mais tempo, foi aqui que fui mais
feliz e ele deixou esta pobre menina confiada à minha guarda. Se voltarmos
para além, ela incomodará a Primeira Esposa, que também não gosta de mim,
e eis porque ficaremos aqui ambas na velha casa do meu senhor. Não devem
preocupar-se connosco. Quando eu precisar de qualquer coisa, pedir-vo-la-ei,
mas só hei-de precisar de muito pouco; viveremos aqui tranquilas com o velho
rendeiro e sua mulher, poderei assim olhar por vossa irmã, e cumprir a ordem
do meu senhor.
Mas também ele se sentia contente, porque sua esposa falara contra
a idiota e dissera que uma tal criatura não devia ser vista nos aposentos da
Casa Grande, especialmente onde havia mulheres grávidas, e, agora que Wang
Lung desaparecera, Lotus poderia ser muito mais cruel do que se atrevia a sê-
lo antes, o que ocasionaria aborrecimentos. Deixou, portanto, Flor de Pereira
aqui à sua vontade, e esta pegou na inocente pela mão e levou-a para aquela
casa de adobe onde cuidara de Wang Lung durante a sua velhice. Ali viveu e se
ocupou dela e dali só saía para visitar a sepultura de Wang Lung.
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balhar nos campos. Era a essas horas solitárias que, na
companhia da idiota, se dirigia ao túmulo de Wang Lung.
«Ah, meu senhor e meu pai, e o único pai que jamais tive!»
CAPÍTULO III
ORA, posto que o poderoso senhor estivesse morto e
enterrado, não podiam aindaesquecê-lo, porque lhe eram devidos três
anos de luto que os filhos devem tributar aos pais.
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mónio, e nem Wang Segundo, nem Wang Terceiro desejavam que as
terras ficassem inteiramente em poder do irmão mais velho, o que os tornaria
dependentes dele. Cada um dos irmãos aspirava a isso de uma maneira
peculiar, o mais velho porque queria saber quanto teria e se seria bastante ou
não para sua casa e as suas duas mulheres e para os seus numerosos filhos e
para os secretos prazeres que não podia recusar-se. O segundo irmão aspirava
a isso porque fazia grandes negócios de cereais, punha dinheiro a juros e
queria poder dispor da sua herança de maneira a desenvolver o seu comércio.
Quanto ao terceiro irmão, era tão estranho de maneiras e tão fechado consigo
que ninguém sabia o que ele desejava, e o seu rosto sombrio nunca mostrava
nada. Mas sentia-se impaciente e era possível, pelo menos, ver que se sentia
pressuroso em partir, posto ninguém soubesse o que ele contava fazer da sua
parte na herança e ninguém se atrevesse a perguntar-lho. Era o mais novo dos
três, mas toda a gente na casa tinha medo dele e os criados, homens e
mulheres, acorriam ao seu chamamento duas vezes mais depressa do que
para qualquer dos outros, sendo a Wang Mais Velho que respondiam mais
lentamente, embora este falasse no tom de patrão.
Mas dado que não tinham outro parente mais velho, tinham,
segundo a lei comum, de pedir a qualquer homem sério de entre os vizinhos
que viesse a casa deles dividir a herança perante uma assembleia de bons e
honrados cidadãos. E uma noite em que eles conversavam, sobre o que
convinha fazer, Wang Segundo disse:
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Sinto muito, irmão, que tenhas falado tão depressa, porque ia
justamente dizer: convidemos o pai da mãe de meus filhos a fazer-nos isso.
Mas, visto que foste tu a dizê-lo, está entendido, pedir-lho-emos. Apesar de
que eu próprio estava justamente para dizê-lo, e tu corres sempre muito
depressa a falar, na família, antes da tua vez.
A mim é-me indiferente! Mas seja o que for que façam, seja
depressa.
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não dar por isso e não se lhe alterou a fisionomia, como se
mantivesse o espírito distante e esperasse impacientemente que tudo
acabasse, para ir procurar o objecto dos seus desejos.
Então o negociante Liu, que era tão bom que julgava que os outros
eram bons também, olhou-a com simpatia e não se lembrou de quem ela era,
nem que a tivesse visto alguma vez senão como esposa de um bom burguês, e
disse-lhe com respeito:
Fala bem e como deve, porque o defunto era um bom senhor, como
sempre a todos ouvi. Portanto, decidirei o seguinte: vão dar-lhe vinte moedas
de prata por mês e será autorizada a habitar nos seus aposentos e terá os seus
servos e as suas escravas e os seus alimentos e além disso ainda algumas
peças de pano.
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Mas quando Lotus ouviu aquilo, e apurara o ouvido para não lhe
escapar palavra, circunvagou os olhares de um filho para outro, soltou um
agudo lamento, e disse:
Vinte moedas por mês há famílias inteiras que as não têm, e metade
disso ainda seria muito generoso em muitas casas, e não somenos, por morte
do senhor!
Se se lhe deve dar mais do que foi dito, o meu irmão mais velho
deverá fazê-lo da sua parte, pois é bem certo que vinte moedas é bastante e
mais do que bastante para ela, mesmo com a sua mania do jogo!
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muito tempo continuado assim, se Wang Terceiro, exasperado, não
se levantasse de súbito e, batendo com as sapatorras no sobrado, exclamasse:
Pode muito bem fazê-lo, visto que não é casado. Não tem, como nós,
que pensar nos filhos.
Mas o velho negociante, pelo seu lado, suspirou e tirou o lenço para
limpar o rosto, porque era um homem que vivia numa casa pacífica e não
estava habituado a gente como Lotus. Quanto a Lotus, teria talvez ainda
continuado a fazer barulho, se não fosse a expressão da fisionomia do terceiro
filho, que a fez considerar que o melhor era não continuar. Interrompeu
portanto subitamente a cena que estava fazendo e sentou-se, muito satisfeita
de si própria, e esforçando-se a princípio por manter um ar triste e amuado,
esqueceu-se depressa e começou a olhar com desplante para os homens,
enquanto tomava sementes de melancia de um prato que uma escrava lhe
estendia, fazendo-as estalar entre os dentes, que tinha fortes e brancos, a
despeito da idade. E sentiu-se por fim satisfeita.
Mas ela, que estava muito longe de esperar tais palavras, supôs que
a mandavam embora e não compreendendo, exclamou, com voz insegura e de
extremo desânimo:
Oh, senhor, não possuo casa minha, nem tenho neste Mundo
ninguém a não ser a pobre inocente que o meu falecido senhor me confiou e
não temos para onde ir! Oh, senhor, eu supunha que podíamos continuar a
viver na casa de adobe. Comemos muito pouco e só precisamos de roupa de
algodão porque enquanto viver nunca mais vestirei roupas de seda, agora que
o meu senhor morreu, e não incomodaremos pessoa alguma na Casa Grande!
Sim, mas não precisa de muito, porque nesta casa nunca passou de
uma escrava e estava habituada às comidas mais grosseiras e à roupa de
chita, até ao dia em que o meu velho senhor, já na sua velhice, se sentiu
maluco por ela, por causa daquela carinha pálida, e sem dúvida também
porque ela lhe fez algum feitiço... e no que se refere à idiota, quanto mais
depressa morrer, melhor!
Que a nova receba o mesmo que a velha. Sou eu quem lho dará!
Mas Lotus fazia caretas, e não ousando proferi-lo em voz alta, disse
entre dentes:
Não é justo que a mais velha e a mais nova sejam tratadas como
iguais... e principalmente aquela que foi minha própria escrava!
Assim dizia ela entre dentes e parecia pronta a recomeçar o barulho
de há pouco, mas o velho negociante, ao perceber isso, retomou depressa a
palavra:
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Está certo... está certo... Atribuo portanto vinte e cinco moedas
à senhora mais velha e vinte à mais nova...E continuou, dirigindo-se a
Flor de Pereira: volte para sua casa, e fique em paz, minha senhora.
Está autorizada a proceder como entender e terá vinte moedas de prata
por mês para seu sustento.
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Que é que o senhor iria fazer a tanto dinheiro?
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sem compreender nem perceber sequer o desprezo do irmão, visto
que se tinha por homem muito estimável.
Mas Wang Mais Velho, não podia imaginar que alguém fizesse
qualquer coisa pela qual lhe não pagassem. Portanto continuou:
E parecia ter mais ainda que dizer mas absteve-se disso e enquanto
os seus quatro soldados emalavam as suas coisas, mostrou muita impaciência.
Depois, seguido pelos quatro homens, afastou-se rapidamente, muito contente
por se ir embora, como se sentisse ainda submetido aqui ao domínio do seu
velho pai, sendo ele alguém que não queria submeter-se a império algum, de
espécie alguma.
Os outros filhos não aspiravam menos a ver-se livres do pai. O filho
mais velho aspirava ao fim dos três anos de luto e aspirava a colocar a
tabuinha do velho na pequena alcova situada acima do salão onde se
guardavam as outras tabuinhas, porque enquanto ela se encontrasse onde se
encontrava, afigurava-se-lhe que Wang Lung continuava a ter influência nos
filhos. Sim, o seu espírito estava ali, embuscado na tabuinha, espiando os
filhos, e o mais velho aspirava à liberdade de viver como bem lhe parecia e
gastar o dinheiro do pai como entendesse. Mas não podia, enquanto aquela
tabuinha ali estivesse, levar a mão livremente ao cinto e colher o prazer onde
o entendesse, e tinha ainda que passar aqueles anos de luto, nos quais não é
decente para um filho mostrar-se muito alegre. Era assim que sobre aquele
homem ocioso, cujo espírito corria constantemente atrás de prazeres novos, o
velho impunha ainda o seu poder restritivo.
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de alargar o seu comércio de cereais e comprar alguns dos
estabelecimentos de Liu, o negociante, que estava envelhecendo e cujo filho
era um letrado e não gostava do negócio do pai, e com um tal comércio Wang
Segundo poderia até exportar cereal da região para países estrangeiros. Mas
não fica bem empreenderem-se tão grandes coisas enquanto o luto dura ainda,
e eis porque Wang Segundo tinha de se revestir de paciência e de se calar,
com excepção apenas das ocasiões em que perguntava ao irmão, como quem
não pergunta nada:
Não sei, palavra. Não tenho ideia alguma, mas suponho que devo
conservar o bastante para nos alimentar, visto que não tenho uma profissão
como tu tens nem posso na minha idade começar uma.
Wang Mais Velho ouviu aquilo com a maior inveja, porque sabia que
tinha precisão de muito dinheiro e de muito mais do que tinha, e disse numa
voz fraca:
Enfim, veremos. Pode muito bem ser que eu venha a vender mais do
que pensava e ponha o dinheiro a render juntamente com o teu, mas havemos
de ver isso.
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a sua patroa ganha ao jogo, ou então participar nos lucros,
Cuckoo encorajava-a com todo o zelo a levar essa vida.
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Ora a dama não era daquelas que estão sempre prontas para a
réplica, e na verdade era incapaz de responder tão depressa como desejava, e
uma das razões que tinha para detestar a cunhada era que a esposa campónia
tinha uma língua muito acerada, embora grosseira, e antes que a esposa
cidadã conseguisse terminar um dos seus discursos que ela empreendia com
lentidão solene, a esposa campónia com um revirar de olhos e uma simples
palavra reduzia a nada a cidadã. E esta ficava tão mal-ferida que, quando
escravas e criadas assistiam à cena, tinham de se desviar o mais depressa
possível para dissimularem os sorrisos. Assim, quando Wang o mais velho
falou, olhou-o vivamente para ver se ele não zombava dela também, e viu-o
instalado numa poltrona de verga, sorrindo com o seu sorriso mole. Ergueu-se
então com ar rígido e gelado da cadeira de pau que sempre escolhia para se
sentar, e depois velando os olhos com um descer de pálpebras e fazendo um
momo com os lábios, disse:
Sei muito bem que também vós me desprezais, meu senhor! Desde
que trouxestes para casa aquela criatura vulgar, desprezastes-me
constantemente, e eu quereria nunca ter abandonado a casa de meu pai. Sim,
desejaria agora poder consagrar-me aos deuses e entrar para qualquer
instituição religiosa e assim faria se não fossem os meus filhos. Dediquei-me a
melhorar esta casa que é vossa, para fazer dela alguma coisa mais do que
uma simples casa de camponês, mas vós não mo agradeceis nada.
3-w. L.
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ingénua que tinha muito receio de sua esposa e era destituída da
menor personalidade. Quando Wang Mais Velho lhe pedia que viesse à noite ao
seu quarto, chegava até a balbuciar, curvando a cabeça:
E por vezes, ao ver até que ponto ela era tímida, Wang Mais Velho
enfurecia-se e jurava que na próxima ocasião tomaria uma raparigaça sólida e
de carácter agreste, que não tivesse medo de sua mulher, como acontecia com
todas. Mas outras vezes suspirava e dizia-se que, depois de tudo, era melhor
assim, porque pelo menos não havia questões entre as suas duas mulheres,
visto que a mais nova obedecia servilmente à senhora e não queria sequer
encará-la, se estava na sua presença.
Podes vir sem receio porque ela está muito indisposta para que eu a
incomode esta noite.
Certamente que sua esposa era uma mulher de coração frio, que se
sentiu muito satisfeita quando o seu tempo passou. Wang Mais Velho
concedeu-lhe a partir de então o respeito que lhe era devido e, durante o dia,
recorria para tudo a ela, o mesmo fazendo a rapariga, e à noite esta vinha ter
com ele, e assim conseguia viver em paz com as suas duas mulheres.
Ela diz, minha senhora, que vós sois tão orgulhosa que terrificais o
meu senhor e que ele nem sequer se atreve a amar a sua pequena concubina,
a menos que a senhora lhe dê licença e então só pelo tempo que lhe permitis,
e toda a multidão se ria!
Agora, ela está a dizer que vós vos preocupais mais com padres e
religiosas do que com os vossos filhos e que bem se sabe que essa gente é
secretamente partidária do mal!
Visto que o meu senhor se encontra agora na casa de chá e não está
ao corrente desta desordem vergonhosa e visto que seu irmão também não se
encontra aqui para orientar a sua casa, tenho eu de cumprir o meu dever. Não
quero que essa gentinha venha assim pôr-se de boca aberta diante da nossa
casa. Vais fechar o portão, e se a minha cunhada ficar lá fora, tanto pior para
ela; e se te perguntar quem te disse que fechasses o portão, dize-lhe que fui
eu, e que tens de me obedecer.
O velhote inclinou-se outra vez, saiu sem dizer palavra e fez como
lhe tinham mandado. Ora, a esposa campónia estava ainda ali e divertia-se
extraordinariamente com a risota da multidão e não viu os batentes da porta
fecharem-se lentamente atrás dela. Estavam já quase cerrados quando o velho
porteiro aproximou os lábios da pequena abertura e cochichou com voz rouca:
Pcht... senhora!
Ela então voltou-se e viu o que havia. Precipitou-se para empurrar os
batentes e, sempre com o filho ao seio, berrou para o velhote:
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Quem te mandou fechar-me cá fora, velho cachorro ?
Ora, Wang Mais Velho tinha ouvido várias vezes repetir durante a
noite pela mulher cada uma das palavras do que se passara e sua esposa de
tal maneira o tinha apertado, que desta vez ele lhe jurara não ser afável e
conciliador; não, desta vez estava decidido a fazer o que convinha que fizesse
o chefe, quando a dona da casa é ultrajada a tal ponto por uma mulher que é
sua inferior e que deveria mostrar-se respeitosa para com ela. E então, ao
ouvir o que dizia o irmão mais novo, lembrou-se de como fora advertido de
noite, e replicou num tom de tímida censura:
Mas tua mulher procedeu muito mal, ao falar à minha como falou
diante daquela gentinha e não basta pôr a coisa de parte. É preciso que lhe
apliques uma boa sova. Peço-te insistentemente que lhe apliques uma boa
sova.
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e ingénuas. Os homens não podem imiscuir-se em questões de
mulheres e nós, irmão mais velho, compreendemo-nos como homens que
somos. É certo que minha mulher se portou como uma parva e que não passa
de uma campónia. Repete a tua mulher que eu disse isto e que lhe apresento
as minhas desculpas pelo que minha mulher fez. As desculpas nada custam.
Separemos depois as nossas mulheres e os nossos filhos e ficaremos em paz,
meu irmão, e poderemos encontrar-nos na casa de chá, para discutirmos as
nossas questões um com o outro e viveremos em casa independentes.
Então Wang Segundo foi hábil. Viu logo que o irmão não sabia como
dar satisfação à mulher e eis porque lhe disse novamente:
Olha, irmão mais velho, dirás isto a tua mulher: «Separei de nós a
casa do meu irmão segundo, e tu nunca mais serás incomodada. Foi assim que
os castiguei».
E assim cada um dos dois irmãos deu satisfação a sua mulher, de tal
modo que cada uma das duas se considerou triunfante e considerou a outra
completamente vencida. Depois disso, os dois irmãos ficaram melhores amigos
que nunca e cada um se julgou homem muito inteligente e com a melhor
compreensão das mulheres.
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vestiam de luto por Wang Lung tiraram-no e mostraram-se vestidos
com os alegres vestidos claros que traziam por baixo.
Ora, esta nova tabuinha, que era a definitiva, fora feita segundo as
regras, com uma linda madeira dura e fora colocada numa caixinha de madeira
de tamanho apropriado. Depois de a mandarem confeccionar e envernizar com
um verniz preto muito caro, os filhos de Wang Lung dirigiram-se ao mais
célebre letrado da cidade para inscrever nela o nome e o espírito de Wang
Lung.
Feito tudo isso, Wang Mais Velho pegou nela cuidadosamente com as
mãos ambas e foram todos juntos colocá-la no alto e pequeno compartimento
onde já se encontravam as outras, as dos dois velhos campónios que tinham
sido o pai e o avô de Wang Lung. As deles encontravam-se ali, naquela casa
tão rica, e nunca durante a sua vida teriam sequer pensado em ter tabuinhas
como apenas os ricos têm, e se pensavam até no que lhes poderia acontecer
depois da morte, era apenas para suporem que os seus nomes seriam escritos
num bocado de papel por qualquer indivíduo um pouco instruído e
dependurado na parede da casa de campo, onde ficaria pelo tempo que
demorasse a fazer-se em pedaços.
Mas quando Wang Lung viera habitar naquela casa da cidade, tinha
mandado fazer tabuinhas para os seus dois antepassados, como se também
eles tivessem vivido aqui, embora ninguém pudesse saber se os seus espíritos
ali estavam ou não.
Ora, era esse o tempo próprio para convidar hóspedes e fazer festas
de alegria, e Lotus pôs um vestido de seda azul claro com flores, demasiado
berrante para uma mulher tão gorda e tão velha, mas ninguém lhe fez a
observação, porque a conheciam muito bem, e todos participaram da festa. E
enquanto ela decorreu, riram-se muito e beberam, e Wang Mais Velho, que
gostava das grandes reuniões de ruidosa alegria, berrava constantemente:
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Mas o próprio Wang Segundo estava nesse dia alegre e não olhava a
nada. Aproveitou a ocasião de conversar particularmente com alguns
convidados, para ver se um ou outro desejava comprar mais terra do que
tinha, e espalhou o boato de que tinha uma boa porção de terra da qual
pretendia desfazer-se, e assim passou aquele dia, sentindo-se ambos os irmãos
satisfeitos por se ter quebrado o laço que os mantinha na dependência do
velho que repousava na terra.
Havia alguém que não se divertia com eles: era Flor de Pereira, que
lhes mandou as suas desculpas, dizendo: «O único ser que me dá
preocupações encontra-se um pouco melhor do que é costume e eu peço o
favor de me desculparem». E assim, visto como ninguém lamentou a sua
ausência, Wang Mais Velho mandou-lhe dizer que estava inteiramente
desculpada por não tomar parte na festa e só ela, nesse dia, não tirou o seu
trajo de luto, nem os sapatos brancos que usava, nem o cordãozinho branco
que lhe ligava os cabelos. Também não tirou à idiota esses símbolos de
tristeza. Enquanto os outros se divertiam, entregou-se ela à sua ocupação
favorita. Pegou na idiota pela mão e levou-a ao túmulo de Wang Lung, e ambas
se sentaram no chão. E aí, enquanto a idiota brincava, satisfeita por estar
perto de alguém que lhe mostrava amizade, Flor de Pereira passeou o olhar
pela terra. Esta estendia-se com os seus campos verdes dispostos em todos os
sentidos e embutidos uns nos outros por léguas e léguas, tão longe quanto a
vista podia alcançar. Aqui e além, uma pequena mancha azul parada ou em
movimento representava um camponês que trabalhava na sementeira de aveia
da Primavera. Do mesmo modo também, outrora, se curvara Wang Lung sobre
o fruto da sua terra, quando chegava a sua vez de a ter para si, e Flor de
Pereira lembrou-se de que, na sua velhice, ele lhe falava muitas vezes dos
anos anteriores ao nascimento dela, e gostava de lhe falar deles e de lhe
explicar como ele costumava lavrar este e plantar aquele.
40
CAPÍTULO IV
COMO os ramos de uma grande e velha árvore saem do robusto
tronco e divergem dele e cada um de outro, alongando-se e estendendo-se
cada um deles na sua própria direcção, embora tenham por origem a mesma
raiz, assim acontecia com os três filhos de Wang Lung; mas o mais enérgico e
o mais voluntarioso dos três era Wang Terceiro, o filho mais novo de Wang
Lung, soldado numa província do Sul.
Ora, Wang Terceiro não voltara a estar em relações com o pai desde
o dia em que fugira de casa, num violento acesso de cólera por seu pai ter
tomado, entre as serviçais de sua casa, quando já era velho, uma certa
rapariga ali mesmo educada, que era Flor de Pereira, e Wang Terceiro não
compreendera que a amava até ao momento de saber o que seu pai fizera.
Nessa mesma noite, depois de meditar durante todo o dia, correu para os
aposentos do pai; estava tão absorto na sua meditação, que entrou sem
reparar no compartimento onde o pai se encontrava com a rapariga. Ora, ele
irrompendo assim naquele quarto, ao sair das quentes trevas de uma noite de
Verão, viu-a ali sentada, silenciosa e pálida, e compreendeu nitidamente que a
amava. Então, subiu nele uma tal vaga de cólera contra o pai que não pôde
contê-la, pois era sujeito à cólera. Compreendendo que, se lhe dava tempo
41
de crescer, ela lhe faria estalar o coração, nessa mesma noite
fugiu de casa do pai. E como sempre aspirara às aventuras e a tornar-se
um herói sob uma qualquer bandeira de guerra, gastou o dinheiro que
tinha a afastar-se, na direcção do Sul, para o mais longe que lhe era
possível, e entrou ao serviço de um general que nessa época se
distinguira numa revolta. E Wang Terceiro era um homem tão alto, tão
robusto e tão feroz, o seu rosto tão sombrio e colérico, os lábios
apertavam-se-lhe sobre os grandes dentes brancos com ar tão duro,
que o general o tinha imediatamente notado e ligado à sua pessoa e o
fizera promover Wang Terceiro muito depressa, mais depressa mesmo
do que habitualmente, por tal modo que, de simples soldado, fez dele
um capitão com o comando de muitos homens. O Wang Terceiro estava
nesse posto quando se pôs a caminho para casa do pai.
43
que acabara por se convencer de que o próprio Céu lhe assinalara o
seu destino tal como o sonhara, e só tinha que esperar a chegada da sua hora
para o tomar nas mãos.
44
esta. não se enganara no seu destino e, com a sua herança, teria
tudo aquilo de que precisava, e o Céu protegia-o. Sim, muito acima de
qualquer outra consideração aparecia-lhe esta: podia agora dar o primeiro
passo na estrada indefinidamente ascendente do seu destino, porque sabia
que estava destinado a ser um grande homem.
Mas ninguém viu essa exultação no seu rosto. Ninguém viu jamais
fosse o que fosse naquele rosto duro e impassível; da mãe herdara ele aquele
olhar firme, aquela boca apertada e aquele seu ar de ter as qualidades do
rochedo na própria substância de que a sua carne era feita. Portanto, sem nada
dizer, foi ao seu quarto preparar-se para a longa viagem em direcção ao Norte,
e designou para o acompanharem quatro homens de confiança que tinha sob o
seu comando. Feitos os preparativos sumários, dirigiu-se para a grande e velha
casa da cidade que o general tomara para o seu uso pessoal e mandou um
soldado da guarda anunciá-lo, e o guarda voltou para lhe dizer que podia
entrar. Então Wang o Tigre entrou, ordenando aos seus homens que o
esperassem à porta, e dirigiu-se ao quarto onde o velho general estava a
acabar a refeição do meio dia.
Vieram hoje anunciar-me que meu pai morreu e que meus irmãos
me esperam para o enterrar.
Vai, meu filho, cumpre o teu dever para com teu pai e depois volta
para mim:
Aqui tens um presente para ti; não te prives de nada durante a tua
viagem:
E assim por conseguinte voltara Wang o Tigre a casa de seu pai. com
fervida impaciência esperou que se dividisse a herança e que lhe fosse
permitido regressar o mais depressa possível. Mas não quis pôr o seu plano em
prática antes de passarem os anos de luto. Não; era um homem escrupuloso,
que se empenhava em cumprir o dever e em virtude disso esperou. Mas agora
era-lhe fácil esperar, porque o seu sonho, estava certo disso, ia enfim realizar-
se. E passou os três anos a aperfeiçoar todos os meios para tal, a economizar o
seu dinheiro e a escolher e estudar os homens que esperava ver segui-lo.
46
CAPÍTULO V
Vou lá sem falta, mas de qual outro assunto temos que falar?
Não sei o que ele vai fazer deles, mas aparece amanhã e falaremos
outra vez disto.
Mas Wang Mais Velho era incapaz de acabar tão depressa fosse com
o que fosse e tinha, aliás, sempre tempo para tudo quanto aparecia, e eis
porque disse, com o humor divertido em que nesses dias se encontrava,
proveniente do facto de estar na posse do seu património:
47
E semicerrou os olhos, tomando um ar malicioso como se fosse dizer
uma coisa com muito espírito. Mas Wang Segundo, ao ver isso, sorriu um
pouco e disse no seu tom glacial:
E dizendo isto afastou-se, pois não lhe interessava nada deixar Wang
Mais Velho proferir as suas inconvenientes maneiras de ver, quando se
encontravam ali na rua, no meio dos passeantes dispostos sempre a parar e
escutar tudo o que se dizia.
4-w. L.
49
da parte da herança que me cabe, pois todo é pouco. Se
quiserdes emprestar-me do dinheiro vosso, reembolsar-vos-ei, com alto
juro, no dia em que tiver realizado o que empreendi fazer. Se tiverdes
filhos de mais de dezassete anos, enviai-mos também. Eu elevá-los-ei a
uma alta situação, mais alta do que imaginais, pois preciso de ter em
volta de mim homens do meu próprio sangue nos quais possa depositar
confiança para a minha grande aventura. Mandem-me o dinheiro e
mandem-me os vossos filhos, visto que eu os não tenho».
Wang Mais Velho tivera da esposa seis filhos, mas dos seis,
dois tinham morrido em pequenos e tivera um da sua concubina, a qual
estava prestes a dar de novo à luz, dentro de um ou dois meses, e todos
aqueles filhos que ele tinha eram sãos, excepto o terceiro, que uma
escrava deixara cair quando ele tinha ainda poucos meses, de maneira
que as costas tinham-lhe crescido tortas, formando um nó nos ombros,
e a cabeça, demasiado volumosa para ele, encaixava naquela corcova
como uma cabeça de tartaruga na concha. Wang Mais Velho mandara
vir um médico ou dois para o ver e prometera até um manto a certa
deusa do templo, se lhe curasse o filho, embora em circunstâncias
normais não acreditasse nessas coisas. Mas tudo foi inútil, visto que o
menino estava destinado a levar o seu fardo até à morte, e o único
prazer que o pai dele tirou foi privar a deusa do vestido prometido, visto
ela nada ter querido, fazer naquelas circunstâncias.
50
de reflectir um pouco. Por fim Wang Segundo ergueu os olhos e
disse:
O irmão mais velho hesitou então, porque não era homem para
decidir rapidamente por si próprio fosse o que fosse, visto ter-se atido desde
há anos às decisões da esposa, dizendo o que ela lhe sugeria que dissesse.
Wang Segundo, sabendo-o, disse habilmente:
Wang Mais Velho ficou muito contente por o ouvir falar assim e
respondeu:
Passaram todo esse dia nas suas terras, com excepção de uma
paragem ao meio-dia, para comerem numa hospedaria do caminho, e
examinaram a terra com atenção e viram o que faziam os rendeiros. E
os rendeiros mostraram-se humildes e inquietos na frente deles, visto
que aqueles senhores eram os novos proprietários, e Wang Segundo
tomou nota de cada parcela que convinha mais vender. Marcaram
também para vender todas as terras que pertenciam ao seu irmão,
excepto o pedaço que ficava em frente à casa de adobe. Mas por um
comum acordo os dois irmãos não se aproximaram dessa casa, assim
como não se aproximaram do montículo onde o pai repousava, sob uma
grande tamareira.
52
gastos. Wang Mais Velho teria dado de boa vontade o pedido
suplemento, mas Wang Segundo recusou, e disse ao burriqueiro:
Não, dei-te aquilo a que tens direito, e quanto ao que acontece aos
teus sapatos, não é comigo.
53
CAPÍTULO VI
E no dia marcado Wang Segundo disse ao irmão mais velho: Se o teu
segundo filho está pronto, então o meu
Nesse mesmo dia, como Wang Mais Velho estava de boa feição,
mandou vir o seu segundo filho e olhou atentamente aquele rapaz, para ver o
que valia e como se entenderia na carreira a que estava destinado. O rapaz
acorreu sem demora e ficou à espera na frente do pai. Era um adolescente de
pequena estatura e de aspecto muito frágil e delicado, bem longe de ser
bonito, muito tímido e facilmente intimidável, sempre com as mãos trémulas e
húmidas. Ali estava diante do pai, torcendo as mãos trémulas, sem saber o que
fazia, e baixava a cabeça, mas a todo o momento tornava a levantar
vivamente os olhos para deitar um olhar de lado ao pai e depois baixava outra
vez a cabeça.
Melhor seria que fosses o mais velho e que o mais velho estivesse no
teu lugar, pois é mais bem constituído que tu para ser um general, e tu tens
um ar tão débil que não sei se serás ou não capaz de te segurar a cavalo.
Apenas ditas estas palavras, eis que o rapaz se lança de joelhos e
implora o pai, juntando as mãos trémulas:
55
Wang Mais Velho ia jurar que não dissera palavra do caso, e
contudo a coisa soubera-se de uma maneira ou de outra. Na verdade,
Wang Mais Velho não podia guardar coisa alguma só para si. Era
constituído de tal modo que de cada vez que lhe ocorria um
pensamento ou que ruminava qualquer secreto projecto, os seus
trejeitos, suspiros, meias palavras e ares misteriosos bastavam, sem ele
dar por tal, para o trair. Teria jurado que nada dissera a ninguém, mas
dissera-o ao seu filho mais velho, cjissera-o durante a noite à sua
concubina e dissera-o em último lugar à sua esposa, tendo
forçosamente de fazê-lo para obter a sua aprovação. Expôs-lhe, aliás, o
caso tão bem que a dama, julgando que o filho ia chegar de um salto ao
posto de general, concordou imediatamente, embora emitisse a opinião
de que não merecia menos do que isso. Mas o filho mais velho, que era
um rapaz astucioso e que sempre sabia mais do que os outros
supunhampois afectava um ar tão lânguido que parecia não ver nada
afligira o seu irmão segundo e escarnecera dele, dizendo:
Ora este segundo filho de Wang Mais Velho era um rapaz que
não podia ver matar uma galinha sem fugir para qualquer lado, para
vomitar, e não podia quase suportar a carne no seu estômago
demasiado sensível. Quando ouviu o irmão mais velho dizer aquilo,
ficou perdido de medo e não soube que fazer. Não podia acreditar
naquilo e ficou toda a noite sem dormir. Mas nada podia fazer também,
a não ser esperar que o chamassem, e assim se lançara aos pés do pai,
pedindo compaixão.
56
a si próprio como um gorducho bem humorado, como deve ser um
general. Depois, suspirou outra vez e, olhando o magricelas do filho, disse-lhe:
Mas o filho de Wang Segundo não era um rapaz como esse. Era um
ser alegre e bulhento; tinha tido as bexigas loucas aos três anos e conservara
sempre as marcas delas, o que lhe valera o apelido de o Bexigoso, que em vez
do seu nome lhe era dado por toda a gente e até pelos parentes. Quando Wang
Segundo, depois de o mandar chamar, lhe disse: «Faz uma trouxa das tuas
roupas porque parto amanhã contigo para o Sul, pois vou dar-te a teu tio, o
soldado»ele pôs-se a dar saltos e cabriolas de satisfação, porque era um rapaz
sempre disposto a ver coisas novas e gostava de se gabar daquilo que vira.
Então qual é o motivo dessa viagem ao Sul, que vai custar tão bom
dinheiro?
Será uma aventura e eu não sei o que ele entende por elevar o rapaz
a uma alta situação, mas temos os outros rapazes que podemos meter nos
negócios, e só temos este com idade bastante para lhe mandar. Aliás, o meu
irmão manda também um.
Pois bem, se os filhos deles devem ser elevados até uma alta
situação, temos também de mandar os nossos, de outro modo eu ficarei a
ouvir perpetuamente a minha cunhada falar do filho como de um herói. É certo
que o nosso filho deve forçosamente vir a ser alguém, tão esperto é e tão
astuto em habilidades. E como muito bem diz, temos os outros para o
comércio.
57
E assim, no dia seguinte, Wang Segundo tomou consigo os
dois rapazes, cada um deles com a sua bagagem, que o filho de Wang
Mais Velho, sendo delicado e difícil, metera numa bela mala de pele de
porco. E embora tivesse os olhos ainda vermelhos de ter chorado,
demorou-se a ver se o seu criado a conduzia de forma conveniente, com
a parte superior para cima, de maneira a não se estragarem os livros.
Mas o filho de Wang Segundo não tinha livros, e reunira a roupa num
grande lenço de algodão azul, que ele próprio levava, correndo alegre
de tudo quanto via. Era um lindo e claro dia de Primavera. As ruas da
cidade estavam cheias dos primeiros produtos do campo e todos se
ocupavam a comprar ou a vender. Para aquele rapaz, era um bom ano e
um belo dia. Estava a caminho para uma viagem que nunca antes
fizera; a mãe cozinhara-lhe um petisco de que gostava, para comer
nessa manhã, e ele ficara todo contente. Mas o outro rapaz caminhava
com dignidade, lenta e silenciosamente. De cabeça baixa, mal olhava o
primo, e, de vez em quando, humedecia os lábios descorados como se
os sentisse muito secos.
58
para a pores na mala, ficando em trajos de debaixo e economizando
assim a tua melhor roupa.
Mas eu tenho melhores do que esta, pois esta é a que trago em casa
todos os dias.
Depois viajaram também dois dias por mar, num pequeno barco cheio de
gente e chegaram finalmente à cidade onde deviam encontrar aquele que
procuravam. Quando desceram do barco e se encontraram de novo em terra, Wang
Segundo alugou dois carrinhos, um para os dois rapazes, outro para si próprio. O
homem do dos rapazes queixou-se amargamente do duplo peso, mas Wang Segundo
explicou-lhe que eram ainda rapazes apenas, não homens, e que um deles era pálido
e magro e pesava menos que de costume, por causa do enjoo; à força de discussões e
pagando um pouco mais, mas não tanto como o custo de outro veículo, o homem
acabou mais ou menos por concordar. E os condutores dos carrinhos dirigiram-se à
casa e à rua cujo nome Wang Segundo lhes indicara e quando lá chegaram, tirou do
seio a carta, comparou os caracteres inscritos na porta com os do sobrescrito e viu
que eram os mesmos.
Olá, então julgam que podem entrar por esta porta assim sem mais
nada?
59
mento ar sério, porque nunca ainda se encontrara assim perto
de uma espingarda.
Mas o soldado não sabia ler e eis por que ele chamou outro
soldado. Este aproximou-se e depois de ter fitado durante um minuto os
visitantes e escutado toda a sua história, pegou na carta. Mas também
ele não sabia ler, e depois de lhe ter lançado um olhar levou-a para
dentro. Ao fim de alguns momentos, voltou e apontando o edifício,
disse:
60
outro, mexeu os pés e pôs-se a roer as unhas. E então Wang
Segundo disse a modo de desculpa:
É certo, irmão, que são apenas dois pobres seres, e temos pena de
não termos outros mais apropriados à tua benevolência. Mas o filho mais velho
de meu irmão é o principal herdeiro, e o que vem a seguir a este é corcunda, e
este bexigoso é o meu mais velho e o que vem a seguir não passa de uma
criança e eis por que estes dois são os melhores que por agora temos.
Wang o Tigre olhou então e viu ao lado da porta a bela mala de pele
de porco. E disse com certo desprezo:
Ao ouvir isto, o rapaz ficou cor de tijolo e saiu sem mais palavra,
ficando os dois irmãos sós. -
Não, estava a pensar que a maior parte dos homens da minha idade
tem filhos já crescidos, o que deve ser para um homem alguma coisa muito
reconfortante.
Não; há-de parecer-te, por certo, estranho, mas a verdade é que não
me interesso por mulheres; é uma coisa singular mas não tive nunca relações
com uma mulher...
61
Depois de terem comido, levantado a mesa e trazido o chá,
Wang Segundo preparou-se para perguntar a Wang o Tigre o que
contava fazer de todo o seu dinheiro e daqueles jovens, mas não sabia
como formular a pergunta, e, antes que encontrasse a maneira, Wang o
Tigre disse de súbito:
62
reunir um poderoso exército e estabelecer-me-ei em qualquer parte,
ao Norte da nossa região, e far-me-ei senhor de todo esse território. Depois,
quando for o senhor, alargarei os meus domínios e tornar-me-ei cada vez
maior, a cada guerra que travar...
Até que não haja ninguém acima de mim nesta nação ! respondeu
ele em voz contida, que parecia agora um trovão.
Ora tudo aquilo era a coisa mais estranha que Wang Segundo jamais
ouvira. Não era homem para sonhar grandes sonhos e o seu maior era ficar
sentado à noite em frente dos seus livros de contabilidade a recapitular o que
esse ano rendera e imaginar maneiras de aumentar o seu comércio no ano
seguinte. E então ficou a considerar fixamente o irmão, e viu-o tal qual era,
alto, sombrio, estranho, com olhos brilhantes como olhos de tigre, e negras
sobrancelhas rígidas semelhantes a bandeiras por cima dos olhos. Ao
considerá-lo fixamente assim, Wang Segundo sentiu-se impressionado, a ponto
de ter medo do irmão e não ousou dizer nada para o contrariar, pois havia no
olhar daquele homem uma expressão quase demente e aquele olhar era tão
poderoso que o próprio Wang Segundo percebeu no seu coração angustiado a
força daquele homem, seu irmão. Mas apesar de tudo era prudente, e não
pôde esquecer os seus hábitos de prudência, e eis porque ele tossicou e disse
na sua vozinha seca:
Mas que há em tudo isso para mim e nós todos e qual a garantia, se
te empresto o meu dinheiro?
63
O tom era tão frio e tão duro que Wang Segundo ficou um pouco
aterrado e disse, para se desculpar:
Não deves perguntar-me isto e aquilo rugiu ele, batendo outra vez
com a mão na mesa. Sei o que devo fazer e tenho necessidade de dinheiro até
ao momento em que possa fazer-me senhor de um território. Então, poderei
lançar impostos sobre a população como eu quiser. Mas agora preciso de
dinheiro. Ajuda-me e serás certamente recompensado. Não me ajudes... e
poderei muito bem esquecer que és do meu sangue
Sim, sim, está entendido, fá-lo-ei. Sou teu irmão. Mas quando
começaremos?
64
A colheita do trigo será daqui a poucos mesesrespondeu lentamente
Wang Segundo, reflectindo e hesitante enquanto falava, porque se sentia
atónito com tudo quanto acabava de ouvir.
Visto que é assim tão urgente, tenho de regressar sem demora para
ver o que posso fazer, porque as colheitas depressa se gastam e então os
camponeses julgam-se outra vez pobres e cheios de trabalho com a pouca
terra que têm a semear e parecer-lhes-á demasiado ter ainda mais terra.
5-w. L.
65
E concluiu que tudo estaria bem se fizesse todo o possível para o
ajudar a triunfar; pelo menos, por causa do filho, faria
Mas o pálido jovem que era o filho de Wang Mais Velho pôs-se a
chorar quando viu o tio partir; e como chorava muito alto, Wang Segundo saiu
mais depressa. Mas o barulho dos soluços perseguia-o, e por isso se apressou
a alcançar a porta dos leões, a fim de não mais os ouvir.
66
CAPÍTULO VII
COMEÇOU então aquela empresa, empresa tal que, se a alma de
Wang Lung não estivesse num país longínquo, teria feito levantar-se o seu
corpo da terra onde dormia, porque durante a sua vida ele odiara acima de
tudo a guerra e os soldados, e eis que a sua boa terra ia ser vendida por uma
tal causa. Mas dormia ali e ali continuou a dormir e não havia ninguém para
deter os filhos no caminho que levavam; não, não havia ninguém, a não ser
Flor de Pereira, que durante muito tempo não soube o que eles faziam. Os dois
filhos mais velhos receavam-na pela sua fidelidade a seu pai e ocultavam-lhe
os seus projectos.
67
!’!
que isso, como seu irmão mais velho, e os olhos chamejavam-lhe e
cochichou em voz rouca:
Disse sempre que o nosso irmão não era um rapaz como os outros.
Fui eu que pedi ao nosso pai que o tirasse dos campos e lhe desse um
preceptor para o instruir, como a filho de grande proprietário. O meu irmão não
esquecerá certamente o que o seu irmão mais velho fez por ele, e que sem
mim não passaria de um criado nas terras de seu pai.
Ora, fora decidido, visto que Wang o Tigre desejava dinheiro, que lhe
dariam a maior porção de terra isolada e era a mais afastada da cidade e era
cultivada agora por um só rendeiro, um homem em boa situação económica. O
negócio foi fechado com este pelos dois irmãos, e tiveram o cuidado à ida
como à vinda de não passar perto da terra onde habitava Flor de Pereira.
Flor de Pereira podia muito bem passar sem nunca ter ouvido
68
falar daquela venda, porque Wang Segundo era astuto além de toda
a medida, nunca aludindo a nada do que fazia, nem sequer ao trazer-lhe nos
devidos prazos a pensão que lhe fora atribuída. Eram vinte e cinco moedas que
ele lhe trazia todos os meses, como Wang o Tigre dissera, e da primeira vez
em que o fez, ela disse-lhe na sua voz suave:
Aceite-o, porque o meu irmão mais novo disse-me que devia tê-lo e
da sua parte o recebe.
Sim, talvez seja melhor assim, visto que a outra concubina, que é
mais velha, tem isso, e é justo que tenha um pouco menos. vou explicá-lo ao
meu irmão.
E assim ela podia muito bem não chegar a saber nada da venda da
terra se não acontecesse que, no mesmo ano em que o rendeiro comprara o
primeiro quinhão, o corcundinha filho de Wang Mais Velho seguisse de longe o
seu pai sem este dar por isso.
70
preocuparam com ele e não o obrigaram a aprender a ler nem
a fazer nada, e ele aprendeu desde cedo a subtrair-se aos olhos das
pessoas, e particularmente das outras crianças, que zombavam
cruelmente dele por causa da sua deformidade. Calcurriava as ruas ou
ia sozinho pelos campos além, mancando e levando às costas aquela
grande bossa.
Ora não era senão a pobre idiota de Wang Lung, e estava ali
sentada ao Sol como tinha por costume, mas era agora no corpo mulher
feita, e mais do que isso, porque passara já os quarenta anos e tinha
fios brancos nos cabelos. Mas era a mesma pobre menina ali sempre a
fazer caretas e torcer nas mãos a sua ponta de trapo. O corcunda
olhava-a com espanto, pois nunca até então a vira, e com o seu ar
malicioso pôs-se a imitá-la e a fazer carantonhas, e deu-lhe com tanta
força estalos com os dedos debaixo do nariz, que a pobre criatura
começou a soltar gritos de terror.
71
Creio na verdade que a tua boca tem um certo ar de semelhança
com a boca do meu falecido senhor, que descansa agora além, sob a
tamareira. E ele faz-me tanta falta, que eu gostaria que tu viesses aqui muitas
vezes, visto teres um ar de parecença com ele.
Eu queria que não me fizesse chorar assim... Não sei porque choro
assim...
72
Mas o garoto exclamou, no jeito de se vangloriar: Sim, ele vai tornar-
se o maior general e eu acho que um soldado, se é corajoso e bom herói, é a
coisa mais maravilhosa que se pode ser. E nós vamos todos ser grandes com
ele. Todos os meses, o meu pai e o meu segundo tio enviam dinheiro ao meu
tio soldado, em previsões da época em que ele será uma grande
personalidade, e um feio homem de beiço rachado é que vem buscar o
dinheiro. Mas um dia tudo isso voltará à nossa mão, pois ouvi meu pai explicá-
lo assim a minha mãe.
E de onde vem todo esse dinheiro, não me dirás? Será o teu segundo
tio que o tira do seu comércio para o emprestar?
73
tinham verdadeiramente feito das boas terras que tinham recebido
de seu pai, principalmente da terra que ele lhes mandara conservar para as
futuras gerações da família.
Pois embora Wang Lung tivesse morrido, vivia sempre para Flor de
Pereira e, para ela, a sua alma andava sempre em redor dos campos e sentia
que ele certamente saberia quando os vendessem. Sim, de cada vez que uma
fresca e suave brisa lhe batia de súbito no rosto de dia ou de noite, ou que um
pé de vento redemoinhava na estrada, desses ventos que outros receiam por
causa do que têm de estranho, levando-os a dizer que são almas errantes que
passam, Flor de Pereira erguia o rosto e sorria quando um tal vento lhe soprava
na face, e isso porque julgava poder ser a alma do velho que tinha sido um pai
para ela e mais querido do que o pai que a vendera.
74
Quando chegou ao portão da casa da cidade, franqueou-o sem fazer
anunciar a sua vinda. O velho porteiro, sentado ali, no limiar, meneando a
cabeça, com os lábios entreabertos, mostrando um dos três únicos dentes que
lhe restavam na boca, teve um sobressalto quando ela passou pela frente dele,
mas reconheceu-a e recomeçou a menear a cabeça. Como tinha projectado,
Flor de Pereira seguiu direita a casa de Wang Mais Velho, pois, embora o
detestasse cordialmente, tinha mais esperança de comover este do que o
coração ávido de Wang Segundo. Sabia também que Wang Mais Velho raras
vezes era voluntariamente desagradável e sabia que, se ele era um pouco
ingénuo, não deixava também por vezes de mostrar bom coração, e acontecia-
lhe até ser benévolo, se isso de momento o não perturbava demais. Mas ela
temia os pequeninos olhos semicerrados do segundo filho.
E recentemente dissera-lhe:
Disse isso quando soube que Flor de Pereira dava a sua atenção às
religiosas do convento situado não longe da casa de adobe. Eis por que Flor de
Pereira a vinha agora procurar. A linda escrava não demorou a voltar,
passeando por aqui e por além olhares furtivos para ver se o rapaz ainda ali se
encontrava, e disse:
Ora, aconteceu que naquele dia Wang Mais Velho se levantara muito
tarde, porque fora a um banquete na noite anterior, num lindo restaurante da
cidade. Fora um soberbo festim regado com os melhores vinhos e detrás da
cadeira de cada conviva uma linda cantora de aluguer estava encarregada de
lhe servir de beber, cantar e palrar e fazer tudo quanto o conviva a quem ela
era destinada pudesse ainda ter desejo de lhe mandar fazer. Wang Mais Velho
comera lautamente e bebera mais do que habitualmente e a sua cantora, uma
rapariguinha muito bonita de não mais de dezassete anos, era tão hábil de
seduções que dir-se-ia habituada aos homens pelo menos há dez anos.
Mas Wang Mais Velho bebera tanto que, mesmo já de manhã, não se
recordava de tudo o que se passara na noite precedente, e chegou à sala
sorridente, bocejando e espreguiçando-se, sem reparar que se encontrava ali
alguém que chegara antes dele. Na verdade, os seus olhos demoravam a
aperceber-se, naquela manhã, fosse do que fosse, porque sorria a sós consigo
e, pensando interiormente na rapariguinha, lembrava-se de que ela lhe metera
a ágil mãozinha entre a túnica e o pescoço, para o arreliar quando ele brincava
com ela. E ao tornar a pensar naquilo, disse de si para si que perguntaria ao
amigo que o convidara onde habitava aquela rapariguinha e a que casa pública
pertencia, e que iria lá procurá-la, para ver o que valia.
Então Flor de Pereira disse, num tom de violência que ninguém lhe
ouvira ainda:
Não, não senhor... soube-o dos lábios de alguém que diz a verdade.
(Não quis revelar por quem o soubera, com receio de que aquele homem
batesse no seu pobre filho corcunda; eis por que se absteve de proferir o nome
do rapaz e prosseguiu): Já não reconheço os filhos do meu senhor ao ver como
são capazes de lhe desobedecer assim. Fraca e indigna como sou, tenho o
dever de falar e de lhe dizer isto: o meu senhor não deixará de se vingar! Não
está tão longe como julgam e a sua alma anda ainda a peregrinar pela sua
terra, e quando a vir vendida, achará maneira de se vingar dos filhos que se
recusam a obedecer a seu pai!
Ao ouvir aquilo, Flor de Pereira abriu a boca para falar, mas antes
que tivesse proferido uma palavra, a esposa de Wang Mais Velho entrou.
Estava nesse dia mal disposta e zangada com o seu senhor, porque o sentira
entrar em casa embriagado e a falar de uma rapariga qualquer com quem
estivera. Ao vê-lo, então, lançou-lhe um olhar de desprezo, de maneira que ele
se apressou a sorrir e a dirigir-lhe um pequeno cumprimento negligente, como
se nada houvesse entre eles, mas sem deixar de air olhando disfarçadamente,
e sentindo-se muito satisfeito de que
77
Flor de Pereira ali estivesse, porque a sua esposa era demasiado
orgulhosa para lhe dizer o que tinha a dizer-lhe de outra maneira que não fosse
a sós. Mostrou grande volubilidade e afectou interesse por tactear o bule que
estava em cima da mesa, a ver se estava ainda quente e disse:
Ah! Eis a mãe dos meus filhos. Talvez já tenhas o chá quentinho... Eu
ainda não comi e estava a preparar-me para ir à casa de chá, para o tomar ali.
Vou-me e não as incomodo... Sei muito bem que as senhoras têm coisas a
dizer umas às outras que não são próprias para que nós outros, homens, as
ouçamos.
Ninguém pode imaginar o que é a minha vida com este homem! Dei-
lhe a minha mocidade e a minha beleza, e nunca me queixei, apesar de tudo
quanto lhe suportei, mesmo depois de ter tido três filhos, mesmo depois de ele
ter tomado para sua companhia uma vulgar rapariga do povo, uma daquelas
que eu poderia ter contratado por criada. Não, tudo eu suportei, mostrei-me
paciente perante tudo quanto ele fazia, embora não tenha sido de modo algum
habituada a maneiras tão vulgares como as suas.
Todos sabemos muito bem como sois uma boa esposa e ouvi às
religiosas que sois capaz de aprender os ritos sagrados mais depressa do que
qualquer irmã conversa a quem os tenham ensinado.
E começou a falar das orações que rezava e quantas vezes por dia, e
afirmou que chegaria a fazer voto de renunciar a comer carne, e que convinha
a todos os mortais pensarem a sério no futuro, visto que só há Céu e inferno
como lugares de descanso para todas as almas, até ao momento de se renovar
o amargo
78
ciclo da vida, e os bons têm a sua recompensa como os maus têm a
deles.
Não sei, minha senhora, o que o seu senhor lhe conta dos seus
negócios, mas se pudesse por vezes lembrar-lhe a última recomendação do
pai, que foi não vender a terra, pedir-lhe-ia que o fizesse. O meu próprio
senhor trabalhou toda a vida para reunir estas terras, a fim de que os seus
filhos de cem gerações possam repousar num sítio seguro e não é, certamente,
bem que já nesta geração sejam vendidas. Solicito o seu auxílio, senhora!
Quando Flor de Pereira ouviu uma vez mais o que já ouvira, ficou
mais tranquila, pensando que devia ser verdade. Sentiu-se, portanto, um
pouco reconfortada. Inclinou-se e despediu-se com a sua meiguice calma e
com todos os sinais de respeito pela dama, de modo a deixá-la bem disposta e
satisfeita consigo própria. E Flor de Pereira voltou à casa de adobe.
80
CAPÍTULO VIII
6-w.l.
81
o seu cobertor, atá-lo às costas e pegar na espingarda, se a tinha,
tomando também a do camarada, se era possível fazê-lo sem o acordar; ora
isto não era fácil porque, segundo o regulamento, cada homem dormia deitado
em cima da espingarda, de tal modo que, se alguém fazia um movimento para
a agarrar debaixo dele, acordava e podia dar o alarme. Esta medida provinha
de que uma espingarda era um objecto muito precioso, que podia vender-se
por um monte de dinheiro, e havia quem roubasse uma espingarda para a
vender depois das grandes perdas ao jogo ou pelo facto de estar meses sem
receber soldo, pois não havia guerra, e por isso também nem despojos nem
outras entradas de dinheiro. Sim, se um soldado perdia a sua espingarda, era
uma coisa grave, porque se compram as espingardas nos países estrangeiros e
muito distantes. Nessa noite, portanto, os homens que saíram sub-
repticiamente levaram as espingardas que puderam, mas não conseguiram ao
todo mais de vinte ou cerca disso, além das suas próprias, porque os soldados
dormiam todos com grandes precauções. Vinte, no entanto, já era qualquer
coisa pois lhes permitia aumentar o seu número em vinte homens.
82
demasiado cedo em luta com os soldados do Estado, que eram por
vezes enviados contra os senhores da guerra, tais como Wang o Tigre tinha
intenção de ser. Não receava, no entanto, nem um nem outro desses dois
perigos, porque a cólera do velho general depressa se esvaía, e, quanto ao
Estado, era aquela uma época em que acabara uma dinastia sem que
nenhuma outra se lhe viesse substituir, de modo que o Estado se encontrava
fraco, os bandidos prosperavam e os senhores da guerra lutavam com ardor
uns contra os outros para obter a mais alta situação, e não havia ninguém que
disso os impedisse.
Foi portanto àquele templo que Wang o Tigre se dirigiu naquela noite
sombria levando consigo o pálido filho de Wang Mais Velho. Era muitas vezes
um enigma para ele saber o que faria daquele tímido e timorato jovem. O
outro, o Bexigoso, alegrara-se com a aventura e partira muito alegremente a
fazer o que lhe diziam, mas este escondia-se, para que o não vissem; quando
Wang o Tigre, numa voz de trovão, lhe gritou que o seguisse, ele deslizou
estremecendo atrás do tio, e quando Wang o Tigre voltou para ele a luz do
archote aceso, notou que o rapaz estava coberto de suor. Então, berrou-lhe
com desprezo:
Ah! Tu vieste!
E clamava-lhes:
85
bandeiras desfraldadas, iluminando e alterando de instante a
instante a expressão da sua fisionomia. Quando acabou de falar, todos os
homens se puseram em pé e um imenso clamor se ergueu da multidão:
E era bem esse o aspecto de Wang o Tigre, tão esbelto e alto ele era
e de movimentos ágeis, com um rosto a estreitar no queixo e de malares
salientes e muito altos, vivos olhos brilhando de um duro fulgor e acima deles
as compridas sobrancelhas pretas pesando sobre os olhos e ensombrando-os
de tal modo que, quando fixava o olhar, pareciam os olhos espiar e luzir no
fundo de uma caverna. Quando erguia as sobrancelhas, os olhos pareciam
saltar de debaixo delas e todo o rosto se lhe alargava de súbito como o de um
tigre no momento de saltar.
Wang o Tigre ficou muito satisfeito por tudo isso que possuía.
Sobrara comida ainda para três dias, e concebeu portanto o projecto de
partir de noite tão depressa quanto possível para novas terras, no
Norte. Mesmo quê não detestasse aquela região meridional, teria ido
para outro sítio, porque o velho general era tão indolente que há dez
anos ou mais não se. mexera daquele ponto e vivia à custa dos
habitantes, acabrunhando-os com
87
impostos muito além do que lhes era possível pagar, tomando
por isso uma boa parte dos seus cereais. com tais processos, reduzira a
população à miséria e já nada tinha a tirar dela, e eis porque Wang o
Tigre tinha de partir em busca de países menos explorados.
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que nada tinha a temer, porque aqueles homens quase há um
ano não recebiam soldo e só permaneciam fiéis para terem a
possibilidade de nada fazer e de serem, apesar de tudo, sustentados.
Mas se lhes fosse exigido combater, exigiriam o soldo antes de se
decidirem a tal e Wang o Tigre sabia que, quando se chegasse a isso, o
velho general se recusaria a pagar-lhes e que por isso dentro de um ou
dois dias a sua cólera arrefeceria, encolheria os ombros e voltaria para
junto das suas mulheres, e os seus soldados voltariam a dormir ao Sol,
só acordando para comerem e adormecerem outra vez.
89
CAPÍTULO IX
DURANTE três dias, Wang o Tigre permitiu aos seus homens que se
divertissem e eles comeram tanto quanto puderam e beberam os odres de
vinho até às fezes. Quando ficaram satisfeitos, como não se tinham sentido há
muitos meses, cheios e fartos de comida, e depois de dormirem à saciedade,
levantaram-se fortes, quesilentos e apaixonados. Ora, Wang o Tigre vivera
durante todos esses anos no meio dos soldados e aprendera a conhecer bem
os homens, e sabia como se devem manejar indivíduos robustos, vulgares e
ignorantes, como se deve espiar e aproveitar o que eles dizem, e como se
deve fingir dar-lhes liberdade, mantendo-os o mais possível na trela da sua
própria vontade. E assim, quando ouviu os seus homens travarem facilmente
disputas e ameaçarem-se uns aos outros, a propósito de nada ou por causa de
ninharias, e quando viu que alguns começavam a pensar nas mulheres e a
correr após elas, compreendeu que chegara a hora em que era necessário
empreender qualquer coisa de penoso.
90
houve cinco entre os mais velhos que se entreolharam
dubitativamente e fixaram a espada fulgurante que ele mantinha em
riste por cima das suas cabeças, depois, sem uma palavra, levantaram-
se, retiraram-se e desceram a montanha e ninguém tornou a vê-los.
Wang o Tigre seguiu-os com o olhar, mantendo sempre a espada imóvel
e clamou:
Há ainda mais?
91
Dizendo isto, saltou para o cavalo, grande bicho de cor
arruivada, ossudo, e com longa cauda frisada, que provinha das
planuras da Mongólia, cavalo fortíssimo e infatigável. Era necessário
que fosse assim nessa noite, pois debaixo dele Wang o Tigre pusera a
maior parte do dinheiro que levava, e o que não podia levar no cavalo
entregara-o ao seu homem de confiança e a alguns outros menores
importâncias, e assim, se um deles cedesse a uma tentação que pode
muito bem assaltar qualquer pessoa, não seria grande o prejuízo. Mas,
apesar da sua cavalgadura ser resistente, Wang o Tigre não lhe exigia
rapidez. Compassivo, no fundo, moderou o andamento do cavalo e
manteve-o a passo, por consideração para com os seus homens que
não possuíam montadas e tinham de seguir a pé. De um e outro lado,
cavalgavam também os seus dois sobrinhos, a quem ele tinha
comprado burros, cujas curtas patas não podiam rivalizar com o passo
do cavalo. Dos seus homens, uns trinta seguiam a cavalo e os outros a
pé, e Wang o Tigre separou os seus cavaleiros do resto e pôs metade à
frente, metade atrás, e os soldados de infantaria no meio.
Ora, quando Wang o Tigre assim falava, cada um dos seus homens
detinha-se para o ouvir e para reflectir, pois viam-lhe os olhos fulgurar sob as
sobrancelhas e muito bem sabiam que, apesar do seu bom fundo, o capitão
não receava matar um homem. Os jovens soltavam murmúrios de admiração,
porque nesses tempos Wang o Tigre era o seu herói, e gritavam-lhe: «Ah,
Tigre... Ah, Tigre de sobrecenho negro!» E assim iam marchando ou se
detinham sob o seu comando e cada homem obedecia a Wang o Tigre ou, no
caso contrário, se escondia dos seus olhos.
94
se teremos feito bem em seguir um homem feroz e altivo como este!
E outro acrescentava:
Ora, Wang o Tigre sabia que o seu homem de confiança tinha razão,
e eis por que se aproximou dos seus homens que estavam estendidos,
fatigados e silenciosos, à sombra do zimbro, e lhes disse com mais afabilidade
do que era habitual:
95
darei comprar algumas cabeças de gado, assim como porcos e patos
e gansos, e vós comereis tanto quanto vos apetecer. Tereis também vinho, e
aqui há o melhor do país, vinho capitoso e claro, cujos vapores facilmente se
dissipam. E cada homem terá três moedas de prata como recompensa.
Eh! rapazes! Os vossos pais vão ficar contentes de vos ver e durante
sete dias vou eu descansar também, porque a nossa guerra espera-nos.
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de adobe sem se deter, pois não se aproximou muito de propósito e
os seus dois sobrinhos seguiam-no nos seus burros. Chegaram assim à cidade
e atravessaram outra vêz as velhas portas e chegaram a casa. pela primeira
vez, há muitos meses, um pálido sorriso iluminava a fisionomia do filho de-
Wang Mais Velho, que mostrou entusiasmo em dirigir-se para sua casa.
7-w. L.
97
CAPITULO X
99
de boca deliciosa, o fixava obstinadamente, cantando a sua
cançoneta, ele atirou-lhe estas palavras: «Estou farto disto tudo!»
Levantou-se desabrido e foi-se embora, e Wang Mais Velho teve de o
seguir, conquanto fosse contra sua vontade deixar uma tão boa
representação.
Foi assim que ele falou, um dia em que a esposa de Wang Mais
Velho teve a ideia de vir solicitá-lo um pouco e dizer-lhe algumas boas
palavras em favor do seu segundo filho. Entrou uma tarde no quarto em
que Wang o Tigre estava a beber chá, estando Wang Mais Velho sentado
ao pé de uma mesinha, a beber vinho. Entrou com passinho miúdo, o ar
modesto, os olhos baixos, e inclinou-se e requebrou-se sem sequer olhar
os homens. Mas quando a viu chegar, Wang Mais Velho limpou a cara à
pressa e serviu-se de uma chávena de chá, em vez de vinho que tinha
ali quente, num pichel de estanho.
100
Wang Mais Velho oferecia pela filha. E assim ele julgara que
sua esposa não podia ter ouvido falar disso. Limpou outra vez o rosto
com a manga, desviando os olhos dela, e bebeu o seu chá lentamente a
grandes goles sonoros.
Disse de mim para mim que, embora humilde como sou, não
passando de uma pobre mulher, nem por isso sou menos a mãe do meu
filho e devo agradecer ao meu cunhado o que fez pelo nosso indigno
filho segundo. Embora os meus agradecimentos nada valham para uma
personalidade como vós, é no entanto para mim um prazer fazer aquilo
que devo e assim faço, a despeito de todos os fardos e de todas as
privações que tenho de suportar.
101
um tal discurso, mas Wang Mais Velho estava trémulo, porque sabia
que nunca ninguém falara tão claro a sua mulher, e o rubor subiu-lhe às faces
e abriu a boca para dar uma resposta azeda. Mas, antes que tivesse tempo de
dizer uma palavra, o filho mais velho saiu de repente de detrás de um
cortinado onde estava a ouvir e exclamou fogosamente:
Eis a maior insânia que jamais ouvi. És o filho mais velho e o chefe
da casa, depois do teu pai. Como poderíamos nós deixar-te ir para a guerra e
talvez até entrares numa batalha e morrer? Nada poupámos por amor de ti;
mandámos-te a todas as escolas da cidade e demos-te letrados para te
ensinarem, e chegámos até a mandar-te para o Sul frequentar uma escola.
Como poderíamos nós deixar-te ir para a guerra? (Depois, vendo que Wang
Mais Velho permanecia em silêncio e abanava a cabeça, continuou com
secura). Terei eu também de tomar sozinha este fardo sobre os meus ombros?
A tua mãe tem razão, filho. Ela tem sempre razão, não podemos
comprometer-te em tal aventura.
Toma lá, filho, e vai comprar qualquer coisa que te agrade ou gasta-o
ao jogo ou no que quiseres.
E retirou-se.
Então Wang o Tigre olhou para o irmão mais velho com severa
piedade e calaram-se durante um momento. Wang Mais Velho recomeçou a
beber, embora o fizesse agora sem gosto, e o seu largo rosto exprimisse
melancolia. Por fim, disse mais pensativamente do que lhe era hábito, e
soltando um profundo suspiro antes de falar:
Há uma coisa que é para mim um enigma e é esta: que uma mulher
possa ser tão meiga e tão dócil perante a vontade de um homem quando é
jovem e que com a idade se torne uma pessoa completamente diferente e seja
vexante e atormentadora e destituída de todo o bom senso, a ponto de tornar
um homem maluco. Desejaria poder passar sem as mulheres, pois estou
convencido de que a segunda virá a ser como a primeira, e que são todas
assim. E olhou o irmão com estranha inveja e ar tão tristonho como o de uma
criança crescida, e continuou tristemente: Tu és feliz, mais feliz do que eu;
estás livre de mulheres e livre da terra. Eu encontro-me ligado duplamente. Se
eu próprio não administro, não tiro nada dela, porque os malditos camponeses
são todos uns ladrões, aliados contra o proprietário, por mais
103
justo e por melhor que ele seja. E quanto ao meu intendente, quem
ouviu falar alguma vez de um intendente honrado?Nos grossos lábios passou-
lhe um sorriso dolorido e, suspirando outra vez, olhou novamente o irmão, e
depois continuou: Sim, tu és feliz. Não tens terra e não estás ligado a
nenhuma mulher.
Ora, quando Wang o Tigre chegou à casa do seu segundo irmão, não
pôde deixar de se maravilhar ao ver como ela era diferente da outra, e como
ali reinava uma boa disposição, a despeito das disputas e das questões entre
os pequenos. Todo o barulho e o bom humor se concentrava na esposa
campónia de Wang Segundo. Era uma bulhenta e exuberante companheira, e
de todas as vezes que falava, a sua voz alta e sonora ressoava pela casa fora.
E embora perdesse a paciência vinte vezes por dia e vinte vezes por dia desse
sapatadas nos filhos para a direita e para a esquerda, com a manga
constantemente arregaçada até ao cotovelo, e às vezes até lançasse uma tal
bofetada na cara de um, de tal maneira que toda a casa se enchia de gritos e
berrata desde pela manhã até à noite, e embora cada criado gritasse mais
fortemente do que a patroa, isso não a impedia também de ser boa, dentro das
suas maneiras brutais, agarrando num filho que passava para lhe dar um beijo
rechonchudo no pescoço gorducho. E conquanto fosse económica, se acaso um
filho vinha pedir-lhe dinheiro para comprar a um vendedor que passava na rua
um pau de açúcar cândi ou uma taça de qualquer guloseima quente ou um pau
de cana de açúcar ou qualquer outra coisa de que as crianças gostam, ela não
deixava de mergulhar a mão nas profundezas da blusa para de lá tirar a
pequena moeda. Naquela casa ruidosa e apaixonada, Wang Segundo circulava
tranquilo, sereno e ocupado nos seus secretos planos, e sentia-se sempre
muito contente com todos e ele e a mulher viviam em perfeita harmonia.
Nesses dias, Wang o Tigre pôs de lado, pela primeira vez, os seus
projectos de glória e enquanto os seus homens descansavam e se divertiam,
ele vivia na casa do irmão, encontrando nela alguma coisa que lhe agradava.
Compreendia porque seu sobrinho o Bexigoso, sempre alegre e risonho,
provinha daquela casa, e por que motivo o outro estava sempre tímido e cheio
de medo. Sentia o contentamento que reinava entre Wang Segundo e a mulher
e sentia também o contentamento que tinham os filhos, posto que muitas
vezes não estivessem lavados e nenhum criado se ocupasse com eles, excepto
para lhes dar de comer durante o dia, ou para
104
à noite os deitar numa cama ou noutra. Mas todos os filhos da
ninhada eram alegres e Wang o Tigre seguia-os por toda a parte com os
olhos, tendo no coração uma estranha emoção. Havia um garotinho de
cinco anos ou cerca disso pelo qual Wang o Tigre se interessava
sobretudo, pois era o rapazinho mais bonito e mais rechonchudo, e
Wang o Tigre gostaria de conciliar a sua amizade. Mas quando ele,
hesitante, estendia a mão ao menino, ou pegava numa moeda para lhe
oferecer, o pequeno tornava-se de repente grave e metia os dedos na
boca, considerava o rosto sombrio de Wang o Tigre, e fugia, abanando a
cabeça. E Wang o Tigre sentia-se tão penalizado por aquela recusa
como se o rapaz fosse um homem, embora se esforçasse por sorrir e
esconder o seu despeito.
105
nou-se rápido e inclinou-se, e apresentando-lhe outra vez
desculpas, retirou-se o mais depressa que pôde. Mas ouviu o riso
escarninho das velhas que tinham recomeçado já a jogar e esse riso
perseguiu-o até ao pátio.
106
inclinava a cabeça sobre o túmulo do pai e estava caída na relva à
maneira das mulheres quando choram e supõem que não há ninguém nas
proximidades e que podem chorar sem ser consoladas. Não longe encontrava-
se sua irmã, a idiota, que não via há muitos anos e que tinha agora os cabelos
quase brancos e o rosto fanado e encarquilhado. Sentada numa mancha de Sol
outonal, brincava com um pedaço de trapo vermelho, dobrando-o e tornando a
dobrá-lo e sorrindo de o ver assim vermelho, ao Sol. E agarrado docilmente à
blusa como uma criança a quem foi dada ordem de fazer qualquer coisa que
lhe agrada, estava sentado um rapazinho trôpego e corcunda. Voltava o rosto
com uma expressão de tristeza para a mulher que chorava e franzia a boca,
prestes a chorar também, por amor dela.
E continuou a correr.
Mas o homem não se voltou. Então Wang o Tigre soltou uma grande
praga e gritou ao Bexigoso:
Esse teu maldito primo não é para mim mais que um fardo e nunca
será outra coisa! Vai buscá-lo e dize-lhe que deve vir ou que eu não o quero
mais!
107
espectro e tão ofegante como se, a correr, tivesse dado a volta
às muralhas da cidade. E balbuciou, entre suspiros:
108
Depois de fazer tudo quanto lhe cumpria como irmão, em tão
tristes circunstâncias, montou a cavalo e afastou-se. E, à medida que ia
seguindo, sentia-se mais triste do que antes e viu-se obrigado a
endurecer-se e a recordar-se por várias vezes de que nunca tinha batido
nem maltratado de modo algum o rapazinho, não havendo ninguém
que pudesse supor que ele se encontrava desesperado a ponto de se
tirar a si próprio a vida, e Wang o Tigre disse-se repetidas vezes que
assim fora decretado pelo Céu e que nenhum ser humano poderia ter
impedido aquele caso, pois a vida de qualquer ser está sob o poder
celeste. Assim se forçou a esquecer o pálido rapazinho e o aspecto que
tinha com a cabeça pendente do braço do pai. E Wang o Tigre disse de
si para si:
111
o solo. Essas terras tinham ainda outro valor e era que as
populações não eram muito pobres, enviando cereais aos mercados.
Então um interpelou-o:
Quando der essa ordem, sereis livres! Mas ainda não combatestes
por mim. Julgais então que vou conceder-vos as recompensas de batalha antes
da batalha?
Quando Wang o Tigre chegou à orla da região de que ouvira falar, fez
subir o seu cavalo ruivo para cima do alto túmulo monumental de um rico que
ali se encontrava, e desse observatório lançou uma vista de olhos pela região.
Era a terra mais bela que jamais vira. Estendia-se na sua frente, ondulando em
pequenas colinas baixas e em longos vales onde verdejava já um pouco o
8-w. L.
113
trigo de Inverno que há pouco brotara da terra. A Noroeste, as
colinas erguiam-se bruscamente e tornavam-se montanhas cavadas,” cheias
de falésias que se recortavam nítidas no céu límpido. As casas dos habitantes
da região estavam esparsas por pequenas aldeias e lugares, boas casas de
adobe bem tratadas, muitas das quais tinham os telhados recentemente
cobertos do colmo proveniente da colheita desse ano. Havia até algumas casas
de tijolo e cobertas de telhas. Nos pátios de entrada, bastante perto dele para
serem nitidamente visíveis, havia medas de palha. Ouvia-se perfeitamente na
distância o cacarejar das galinhas que acabavam a postura, e de vez em
quando o vento trazia-lhe pedaços de canção que um campónio cantava ao
amanhar os seus campos. Era uma belíssima terra e o coração saltou-lhe no
peito ao contemplá-la. Mas não tinha a intenção de se dirigir lá com trajo
militar e montado no cavalo ruivo, para deixar um rumor de guerra espalhar-se
demasiado cedo na população. Olhou e traçou um itinerário por um caminho
sinuoso até às montanhas, onde poderia esconder-se com os seus soldados e
reconhecer a força do inimigo, antes que ninguém pudesse saber sequer que
ele viera.
114
Procuramos abrigo para esta noite.
115
se atirou de barriga para o chão, supondo chegada a sua última
hora. Mas Wang o Tigre gritou-lhes:
Além deste dinheiro, tenho ainda mais e nada mais quero de vós do
que um abrigo por pouco tempo, como qualquer homem pode, sendo
necessário, pedir a uma igreja.
Mas Wang o Tigre não lhe prestou atenção. Interpelou o seu homem
de confiança, empolgando-o e sacudindo-o, e ordenou-lhe que se levantasse,
comesse e fosse à estalagem, no caso de alguns dos homens por lá passarem
naquela manhã. Então, o homem de confiança levantou-se, ainda tonto de
sono, esfregando a cara com ambas as mãos e bocejando de maneira horrível.
Mas vestiu-se rapidamente, mergulhou uma tijela no caldeirão e bebeu o caldo
de sorgo que o acólito estava a cozinhar. Depois, afastou-se e desceu a
montanha, com o ar de um sólido rapagão, se visto apenas de costas e não de
frente. E Wang o Tigre, que o seguia com os olhos, apreciava-o pela sua
fidelidade.
116
Depois, como Wang o Tigre esperava naquele dia que os seus
homens se reunissem naquele lugar solitário, traçou o plano do que ia realizar
e decidiu quem escolheria como homens de confiança para seus auxiliares e
conselheiros. Reservou também determinados trabalhos a certo número de
homens, uns para espiões e outros para corregedores, e outros ainda para
obterem combustível, cozinhar, cuidar das armas e limpá-las, assim atribuindo
a parte que a cada um cabia na vida comum. E pensou que devia manter dura
autoridade sobre todos, e recompensá-los somente ali e quando a recompensa
era justa, e que devia organizar tudo sob o seu absoluto comando. Tinha de
dispor da vida e da morte.
Assim fez o velho sacerdote, visto que não havia outro recurso, e os
padres transportaram todos os deuses, sobre os seus pedestais, excepto o
Buda dourado, que era demasiado volumoso, pois receavam que, caindo, se
fizesse em mil pedaços e isso trouxesse a maldição sobre todos. Os soldados
ficaram, portanto, na grande sala com ele, e os padres cobriram-lhe a cara
com um pedaço de pano, para que os não visse e não se ofendesse com os
pecados que não podiam deixar de cometer.
118
tendo o seu fiel Beiço Rachado. E a este, com grande severidade,
disse:
Nada tem a recear de mim, capitão. A sua mão será mais capaz de o
trair do que eu próprio.
Ora, o que Wang o Tigre por este modo soube foi que os habitantes
odiavam e temiam o Leopardo, aquele capitão de ladrões, porque de ano para
ano ele se tornava mais exigente, quando não vinha até devastar-lhes as
propriedades e os campos. A sua desculpa era que aumentava de ano para ano
o número de homens que tinha a sustentar e que protegia a população dos
Outros bandidos. É certo que o seu bando se tornara cada vez mais
considerável, de ano para ano, porque todos os ociosos da região
119
que não queriam trabalhar e todos os que tinham cometido qualquer
crime fugiam para a sua toca, na montanha do Grande Dragão, e alinhavam
sob o estandarte do Leopardo. Se fossem homens fortes e valentes, eram
benvindos, e se eram fracos e covardes, destinavam-nos a servirem os outros.
Vinham até mulheres, mulheres ousadas, cujos maridos tinham morrido e que
não se preocupavam com a sua reputação, boa ou má, e até alguns homens,
ao juntarem-se ao bando, traziam as suas mulheres consigo, e havia outras
raptadas e cativas, para prazer dos soldados. E era também verdade que o
Leopardo mantinha à distância da região os outros capitães de bandidos.
Quanto a mim, senti tão pouco receio que continuei o meu caminho
até à grande cidade, onde fica o governo de todo aquele departamento e
informei-me aí também, verificando que têm medo. Todos os anos, nos dias de
festa, o Leopardo tem uma exigência e os negociantes vêem-se obrigados a
dar-lhe um monte de dinheiro, de outro modo ele ameaça atacar a própria
cidade. E eu disse ao sujeito que me contava isto, um vendedor de croquetes
de porco, os melhores que jamais comi... têm aqui muito boa carne de porco,
meu capitão, e põem alho nos cozinhados, e eu sentir-me-ia muito contente se
aqui ficasse... e eu disse-lhe: «Mas porque é que o vosso governador não
manda os seus soldados baterem-se e lutar com esse bandido para
protegerem a população?» E o fabricante dos croquetes de porco... é um bom
120
homem, pois deu-me mais um bocado de croquete além do que
paguei... respondeu-me: «O nosso governador fica mergulhado nos vapores do
ópio, com receio da própria sombra e o general que mantém para dirigir o seu
exército nunca esteve na guerra e nem sabe sequer pegar numa espingarda...
é um homenzinho sempre colérico e agitado, que se preocupa mais com saber
se a sua sopa está bem apurada do que informar-se do que nos possa
acontecer! Quanto ao governador, gostaria que visses os guardas que ele
mantém em volta de si e a quem paga cada vez mais, com medo que se
voltem contra ele ou se deixem comprar por alguém, e gasta dinheiro como
quem lança fora o chá já servido e insípido. E, com isso tudo, tem tanto medo
que estremece e treme só de ouvir proferir o nome do Leopardo; aspira a ver-
se livre dele e no entanto não mexe um dedo para isso e todos os anos dá mais
dinheiro ao Leopardo para o ter sossegado!» Eis o que me contou aquele
vendedor. E como eu acabava de comer os croquetes e vi que ele não tinha
vontade de me dar mais, mesmo se eu pagasse mais um, fui para mais longe
conversar com um mendigo que estava sentado ao Sol, num canto entre duas
paredes, a tirar os piolhos da roupa. Era um velho mágico, que passava a vida
a mendigar pelas ruas daquela cidade. Depois de falarmos de uma porção de
coisas, ele disse-me que o governador parecia mais disposto a fazer qualquer
coisa este ano, porque tinha chegado aos ouvidos dos seus superiores que ele
deixava um ladrão dominar naquelas regiões. E como há muita gente que
deseja apanhar o seu lugar, vão apresentar uma queixa contra ele no tribunal,
acusando-o de não cumprir o seu dever. E se ele for posto fora, há uma dúzia
de cavalheiros que disputarão para ficarem com o cargo, visto que essas
regiões são excelentes e dão muito rendimento. E isso é até motivo de
sofrimento para os habitantes, que dizem: «Vamos, vamos, sustentámos
aquela velha raposa, que deixou de ser ávida como era outrora, e se vem outra
de apetite devorador será preciso matar-lhe a fome desde o começo».
Serás tu bastante corajoso para uma certa coisa que te vou explicar?
Vou pôr-te à prova. Vais arranjar uma pequena fisga como a dos
rapazes que andam aos pássaros e dirigir-te-ás àquela montanha de dois picos.
Chegarás aí pelo anoitecer, como se te tivesses perdido no caminho e tivesses
medo dos animais ferozes da montanha, e irás chorar à porta da toca. Quando
te deixarem entrar, dirás que és filho de um lavrador do vale e que vieste à
montanha aos pássaros e que não deste pelo cair da noite, que te perdeste, e
suplicas naquele lugar um abrigo para passares a noite. Se não te deixarem
entrar, pede-lhes então pelo menos um guia até ao córrego. Serve-te bem dos
olhos... espreita tudo, verifica quantos homens estão ali, quantas espingardas,
e com que se parece o Leopardo, para tudo isso me contares. Serás bastante
valente para tal?
123
libertou das montanhas e surgiu, alta, nos céus, continuou à
espreita. Mas o rapaz decididamente não vinha. Por fim, o vento refrescou e
Wang o Tigre recolheu-se. Sentiu o coração opresso ao verificar aquilo de que
antes não se apercebera: que, se o rapaz não voltasse, lhe faria um pouco de
falta, porque era um tal brincalhão, que não havia maneira de o fazer zangar.
Wang o Tigre soltou uma gargalhada breve e abafada como lhe era
hábito, sempre que estava verdadeiramente satisfeito, e disse num tom duro:
Nada.
Ao ouvir isto, o rapaz riu muito alto, pois compreendia que o tio tinha
dito aquilo por graça; e sentou-se num degrau do limiar do templo e
respondeu:
Não, não foi ele. Caí por cima de um tronco de árvore, porque o
musgo está húmido e escorregadio, e um ramo rasgou-me a perna. Estou a
morrer de fome, tio!
124
depois de nos apoderarmos da região. Têm lá casas e é exactamente
como uma pequena aldeia. E eu fiz o que me disse, meu tio. Quando chegou a
noite, fui manquejando, a chorar, até à porta, com os pássaros mortos no seio.
Certas aves dessa montanha são de cor mais singular e mais brilhante. Um
que abati tinha o
corpo amarelo vivo como ouro, e eu tenho-o ainda, era tão bonito...
E, ao dizer isto, tirou do seio uma ave amarela que lhe ficou
pendente da mão, flácida e morta, como um pouco de ouro mole. Wang o Tigre
tinha pressa de ouvir a narrativa do rapaz e irritou-se com aquela puerilidade
do pormenor da ave morta; mas conteve-se e deixou-o contar a história à sua
maneira, e assim o rapaz continuou e pôs a ave cuidadosamente no altar ao
seu lado, e olhou sucessivamente as fisionomias dos homens que o ouviam.
Perto dele, flamejava o archote que Wang o Tigre mandara acender e enterrar
nas cinzas do incensório, no altar. O rapaz continuou:
125
pendi que ouvira dizer que eles eram muito valentes e que tinham
por chefe não um homem, mas o corpo de um homem com uma cabeça de
Leopardo, e disse: «Gostaria muito de o ver, mas tenho grande receio de ver
semelhante fenómeno». Puseram-se então a rir todos à minha custa, e um
disse: «Vem cá, vou-to mostrar». E levou-me a uma janela e, permanecendo na
obscuridade, olhei para dentro de uma sala onde havia archotes a arder e onde
o chefe estava sentado. É um indivíduo na verdade singular e monstruoso,
meu tio, tem o aspecto de um leopardo, e estava a beber com uma mulher
ainda nova. Ela parecia também muito selvagem, mas bonita, apesar de
selvagem, e bebiam juntos vinho de um cântaro. Ele primeiro, e depois ela.
Oh, muitos homens, meu tio respondeu logo o rapaz. Três vezes o
nosso número de combatentes e muitos servos e mulheres e crianças, que
correm por todos os lados, e muitos rapazes como eu. Perguntei a um deles
quem era o seu pai e ele respondeu-me que o não sabia, porque não tinham
pais separados e só conheciam as mães, mas não os pais. E também isso é
uma coisa estranha. Todos os combatentes têm espingardas, mas os servos só
têm foices e facas e outros utensílios da vida campestre. Mas, no alto das
falésias que rodeiam a sua toca, têm grandes montões de rochedos redondos
empilhados, para os fazerem rolar pela montanha abaixo sobre aqueles que os
ataquem, e há apenas um desfiladeiro que leva ao abrigo, pois são por todos
os lados precipícios, estando sempre esculcas no desfiladeiro. Mas quando eu
passei, a sentinela estava a dormir e eu deslizei junto dela sem dar por mim.
Dormia tão pesadamente que me teria sido possível apoderar-me da
espingarda que estava ao lado dele pousada no rochedo; roncava tão bem que
poderia ter-me apoderado dela. Mas não o fiz, apesar da tentação, pois podiam
ter pensado que eu não era o que parecia.
Muito valentes replicou o rapaz. Uns são altos, outros baixos, uns
conversavam depois de acabarem de comer e não me davam atenção. E
assim, passados momentos, fiquei com os rapazes e ouvi-os queixarem-se do
Leopardo, porque ele não queria dividir os despojos segundo as regras e
guardava uma excessiva parte para si e era ávido de todas as mulheres
bonitas e não permitia que os outros as tivessem antes de ele se aborrecer
delas. Não partilhava, como irmãos devem fazer, diziam, e julgava-se muito
elevado, posto fosse por nascimento um indivíduo vulgar, e não sabe nem ler
nem escrever, e eles estão fartos da sua altivez.
126
Ora, agradou muito aquilo a Wang o Tigre, quando o ouviu, e
reflectiu nisso enquanto o rapaz continuava a contar uma coisa e outra, e
falava do que comera e fazia valer a sua astúcia. Wang o Tigre, pelo seu lado,
pensava e arquitectava planos, e ao fim de um momento viu que o rapaz tinha
contado tudo e já não fazia mais que repetir-se e puxar pelos miolos para
encontrar um último pormenor que lhe permitisse reter por mais tempo ainda
a atenção e a admiração dos homens. Então Wang o Tigre levantou-se e
ordenou ao rapaz que fosse imediatamente dormir e avisou os homens de que
era tempo de se porem a trabalhar porque estava a nascer o Sol, e o archote
estava no fim; a sua chama vacilante empalidecia na luz do Sol levante.
Reflecti e fiz os meus planos e creio que posso dar o golpe sem
perder um só homem nem uma só espingarda. Devemos evitar a batalha,
atendendo a que eles estão naquele lugar defendido e são em número tão
superior a nós. A coisa que há a fazer, quando se mata uma centopeia, é
esmagar-lhe a cabeça e então as suas cem patas ficam loucas e correm daqui
para ali umas contra as outras, e inofensivas. Será assim que nós mataremos a
cabeça venenosa desse bando de ladrões.
É disso que vou tratar replicou Wang o Tigre e aqui está o meu
plano. Vocês ajudar-me-ão. Vamos disfarçar-nos o melhor possível em soldados
regulares e iremos ter com o governador da região e dizer-lhe que somos
valentes soldados errantes e que solicitamos prestar serviço sob as suas
ordens, serviço secreto como guarda privada, e comprometer-nos-emos a
matar o Leopardo. Está agora receoso de perder o lugar e aceitará plenamente
o nosso auxílio. Eis o meu plano. Dir-lhe-ei que simule uma trégua com os
bandidos e convide o Leopardo e os seus principais oficiais para um grande
banquete. Quando chegar o momento, e ele poderá indicá-lo deixando cair da
mão a taça de vinho e partir-se no meio do chão, vocês e eu sairemos do nosso
esconderijo, cairemos em cima dos ladrões e matá-los-emos. Eu dispersarei
secretamente alguns dos nossos através da cidade e eles cairão em cima dos
bandidos de menor importância que se recusem a alinhar sob a minha
bandeira. Mataremos assim a cabeça da centopeia, o que não é difícil.
Os três homens de confiança viram que a coisa podia muito bem
fazer-se, ficaram tomados de admiração e apressaram-se a concordar. Depois
de ter falado ainda um pouco acerca da
127
maneira como realizariam o plano, Wang o Tigre despediu-os e fez
reunir os seus homens na grande sala do templo. Mandou os homens de
confiança ver se os padres não estavam em proximidades de onde os
pudessem ouvir e expôs o seu plano aos homens reunidos. Depois de o
ouvirem, aclamaram-no em uníssono: Bravo! Bravo! Ah, Tigre das
Sobrancelhas Negras!
128
CAPÍTULO XII
Wang o Tigre dirigiu-se à cidade, com os seus homens de confiança,
e, quando lá chegaram, foram direitos à porta do palácio do governador. Ali,
Wang o Tigre disse altivamente aos guardas indolentemente encostados aos
leões de pedra:
9-w. L.
129
corridas e o silêncio reinava por toda a parte. O homem que os guiava
parou no limiar e tossiu, e um criado chegou a uma janela e perguntou:
Mas Wang o Tigre gritou muito alto, e sua voz parecia pôr ecos de trovão
naquele pátio tranquilo:
O servo olhou-os com ar indeciso, mas viu no olhar de Wang o Tigre uma
autoridade irresistível, e supôs que aqueles homens fossem enviados por qualquer
funcionário superior. Voltou, portanto, para dentro e sacudiu o velho governador
adormecido e ele acordou dos seus sonhos, levantou-se, lavou-se, vestiu a cabaia, foi
sentar-se na sala de audiências e disse ao criado que os mandasse entrar. Então Wang
o Tigre entrou altivo e ruidosamente e fez-lhe a vénia devida, mas sem se inclinar
demasiado profundamente nem com excessivo respeito.
Quanto ao velho governador, esse ficou cheio de terror pela selvageria que
aqueles homens mostravam na sua presença. Ergueu-se à pressa e convidou-os a
sentarem-se e mandou trazer bolos, vinho e fruta. Proferiu as habituais fórmulas de
polidez que se dirigem a um hóspede, e Wang o Tigre replicou-lhe com o mínimo de
polidez possível. Por fim, concluídos esses ritos, disse nitidamente:
130
infestada por uns terríveis ladrões e se Vossa Honra quer tomar-nos
ao seu serviço, temos um plano.
Por eles lhes mandou dizer que se ia tornando velho e que ia deixar
o seu cargo e que outro viria substituí-lo. Mas antes de partir tinha o desejo de
assegurar-se de que não deixava nenhum inimigo e assim queria que o
Leopardo e os seus chefes viessem jantar e banquetear-se com ele e que
prometia recomendá-los ao novo governador. Quando os ladrões ouviram
aquilo, desconfiaram, mas Wang o Tigre previra isso também, recomendando
ao governador que mandasse espalhar o boato de que se ia embora. Os
bandidos, portanto, informaram-se junto dos habitantes, e ouviram a mesma
história. E assim acreditaram nela e pensaram que seria uma boa coisa se o
novo governador pudesse ser influenciado em favor deles, receá-los e pagar-
lhes as quantias que lhe exigissem, dispensando-os assim de travar batalha.
Aceitaram a trégua que o velho governador lhes propunha, e mandaram-lhe
dizer que viriam uma certa noite sem Lua.
131
Ora aconteceu que nessa data choveu muito e a noite estava
sombria, nevoenta e tempestuosa, mas os ladrões cumpriram a promessa e
chegaram vestidos com os seus melhores trajos e com as suas armas afiadas,
trazendo cada homem na mão a sua espada desembainhada e fulgurante. Os
pátios ficaram cheios de homens, que puseram de guarda, e alguns ficaram na
rua, em frente do portão, para se precaverem contra alguma traição. Mas o
velho governador desempenhava muito bem o seu papel, e se os seus velhos
joelhos trôpegos tremiam debaixo da túnica, nem por isso tinha menos no
rosto o ar calmo, nem a atitude era menos cortês: mandou aos seus homens
que pusessem de lado todas as armas, e quando os ladrões não viram outras
armas senão as suas, ficaram mais tranquilos.
132
velho governador começou a tremer, o rosto tornou-se-lhe cor de
cinza e balbuciou:
Mas, apesar de tudo, tinha de o fazer, e eis porque, com a sua destra
espada, impeliu para um canto o Leopardo que, entorpecido pela comida e
pelo vinho, não podia usar de todos os seus recursos. Demais, a situação era
sem esperança para o Leopardo, que aprendera por si próprio tudo o que
sabia, enquanto Wang o Tigre fora instruído militarmente e conhecia a esgrima
a fundo. Um momento chegou em que o Leopardo não conseguiu defender-se
com a necessária rapidez e Wang o Tigre enterrou a espada na barriga
133
do seu adversário, torceu-a vigorosamente e o sangue e a água
jorraram. Mas quando o Leopardo caiu por terra e morreu, lançou a Wang o
Tigre um olhar tal como Wang o Tigre não devia nunca esquecê-lo em toda a
sua vida, tão duro e feroz era. E aquele homem tinha bem efectivamente o
aspecto de um leopardo, porque os seus olhos não eram negros como são os
olhos dos comuns mortais, mas eram amarelos claro como âmbar. Quando
Wang o Tigre o viu enfim estendido, imóvel, e com aqueles olhos amarelos
muito abertos e fixos, disse de si para si que aquele era um autêntico leopardo,
porque, além dos olhos, o crânio era largo no cimo e estreitava para trás da
maneira mais estranha e mais bestial. Os homens de confiança reuniram-se
então para felicitar o seu capitão, mas Wang o Tigre, que continuava a segurar
a espada sangrenta e considerava fixamente o morto, não pareceu dar por tal
e disse com tristeza:
Não preciso.
Esta espada será o único despojo com que fico. Nunca vi espada
assim.
133
de Porcos. Aquilo a que acabava de assistir, dera-lhe volta ao
estômago e estava a vomitar. E Wang o Tigre, ao vê-lo, disse com
benevolência, pois sabia que era a primeira vez que o rapaz via matar
homens :
Foi bom que não te viessem os vómitos antes. Vai até ao pátio
tomar um pouco de ar.
135
dominar-se e compreendeu que tinha de se mostrar cruel e duro,
senão traí-lo-iam. E assim, voltou-se para eles com ar ameaçador, fez silvar no
ar a sua bela espada, e rugiu:
Então Wang o Tigre respondeu, num tom duro, pois estava ainda
encolerizado:
136
ele matara um apenas, e na verdade um capitão não pode apertar
demasiado os seus ignorantes e selváticos subordinados, pelo receio de que
eles se revoltem e o façam em pedaços. Deixou portanto o guarda estendido
morto no chão e continuaram a avançar até à entrada do covil.
137
se passava, e conservou o filho de seu irmão junto de si, e não quis
que o rapaz tomasse parte na pilhagem. Disse-lhe:
E assim conservou o rapaz junto de si, e isso foi uma sorte porque
aconteceu uma coisa inesperada. Encontrando-se Wang o Tigre apoiado à sua
espada e olhando as casas incendiadas onde o fogo começava já a fumegar e a
palpitar debaixo das cinzas, o rapaz soltou de repente um grande grito. Wang o
Tigre voltou-se e viu uma espada cair de alto em cima dele. Nesse mesmo
instante ergueu a sua arma para aparar o golpe, deslizando a lâmina polida e
caindo-lhe ainda na mão, mas tão de leve que lhe fez apenas uma pequena
arranhadura, antes de cair.
Mas Wang o Tigre saltou nas trevas, mais rápido do que um tigre, e
agarrou alguém que trouxe para o clarão dos incêndios. Era uma mulher.
Mas antes que Wang o Tigre pudesse dizer uma palavra, a mulher
torcera-se e voltara-se, e quando notou que ele a tinha segura e que não teria
forças para se libertar, deitou a cabeça para trás e escarrou em cheio nos olhos
de Wang o Tigre. Ora nunca tal até então lhe acontecera e era uma coisa tão
desgostante e tão ignóbil que ele ergueu a mão e deu uma bofetada à cativa
como quem dá um safanão num menino teimoso, e a sua dura mão deixou-lhe
os sinais dos dedos impressos a vermelho na face, e gritou-lhe:
138
cordas. E, enquanto se debatia, maldizia-os a todos, e
particularmente a Wang o Tigre, com injúrias tais como raras vezes se tinham
ouvido em qualquer parte tão abundantes e tão ignóbeis. Wang o Tigre não
deixou de a vigiar enquanto os homens a prendiam e quando ela ficou
solidamente presa e atada e os homens voltaram para os seus prazeres, Wang
o Tigre pôs-se a caminhar na frente dela de cá para lá, e de cada vez que
passava deitava-lhe um olhar. Olhava-a de cada vez com mais demora e maior
espanto. Notava que era nova e que tinha um lindo rosto claro e duro, lábios
delgados e vermelhos, fronte alta e lisa, e olhos penetrantes e cintilantes de
cólera. Sim, aquele rosto era belo, mesmo agora, ao contorcionar-se de ódio
por ele, de cada vez que passava junto dela, e de cada uma dessas vezes,
olhava-o fixamente e escarrava-lhe.
Mas Wang o Tigre não fez caso, e teve apenas um sorriso duro, por
supor que se tratava de qualquer astúcia. Ela suplicou-lhe assim de todas as
vezes que ele se aproximava, mas ele não respondia. Por fim, ao passar mais
uma vez, viu-a de cabeça pendente e silenciosa. Mas não se aproximou: não
queria receber outro escarro, e pensava que ela se fingia adormecida de
fraqueza. Como passou várias vezes sem ela fazer o menor movimento,
mandou o rapaz ver, e o rapaz foi, segurou-a pelo queixo, ergueu-lhe o rosto, e
verificou que a mulher estava realmente desmaiada.
139
causa dos despojos e reuniram-se ao seu sinal. E ele, então,
exprimindo-se numa voz muito forte e imperiosa, ao mesmo tempo que
segurava a espingarda carregada e pronta a disparar sobre quem quer que não
quisesse obedecer-lhe, disse-lhes assim:
140
Wang o Tigre e os seus homens chegaram finalmente às portas da
cidade.
Há uma coisa que lhe devo dizer, meu capitão. É melhor evitar
trapalhadas com esta mulher. Ela tem cara de raposa e olhos de raposa e as
mulheres assim só têm metade de humanas e a outra metade de raposa, e são
bruxas muito perigosas. Deixe-me dar-lhe uma boa punhalada e assim se
acabe com ela.
Ora, Wang o Tigre ouvira falar muitas vezes das coisas que são
capazes de fazer as mulheres que são meio raposas, mas era tão ousado e
temerário que riu alto e respondeu:
Não tenho medo nem dos homens nem dos espíritos e isto não
passa de uma mulher!
141
CAPITULO XIII
QUANDO Wang o Tigre chegou àqueles mesmos pátios onde na noite
anterior levara a cabo tamanha proeza, seguindo-o os seus homens com passo
mal seguro, porque estavam muito fatigados, encontraram esses pátios limpos
e repostos no primitivo estado. Os mortos tinham sido tirados e o sangue
esfregado e lavado com água. Guardas e criados estavam todos no seu posto,
e quando Wang o Tigre atravessou a porta e avançou tão arrogante como um
rei, sentiram-se aterrados e todos se apressaram a inclinar-se.
143
antes do nascer do Sol, revestido do seu trajo de aparato, e mandara
preparar os mais finos manjares. Quando viu entrar Wang o Tigre, sentiu-se
impressionado e até perturbado, porque, embora reconhecido a Wang o Tigre
pelo que este fizera, sabia contudo que um homem daqueles não consentiria
servir a outro por nada, e receava que o que Wang o Tigre lhe pudesse pedir
como recompensa fosse tanto que se lhe tornasse ainda mais pesado do que o
fora Leopardo.
Mas um momento veio em que foi impossível evitar por mais tempo
falar acerca do que se tinha passado. Depois de ter olhado para a direita e
para a esquerda, menos para Wang o Tigre, o velho governador abriu a boca
para falar. Mas Wang o Tigre absteve-se de ir em seu auxílio, porque agora
tinha a força, e bem sabia o estado em que se encontrava o coração do velho
governador. Contentou-se com manter os olhos continuamente fixos no
nervoso velho, porque tinha a consciência de que assim o atemorizava, e tal
consciência era agradável ao espírito malicioso que havia nele. Por fim, o velho
governador começou, na sua vozinha entrecortada e esganiçada:
Pode estar certo de que jamais esquecerei o que fez a noite passada
e nunca poderei agradecer-lhe bastante ter-me libertado do flagelo que sofri
durante anos, assegurando a paz da minha velhice. E que lhe direi, a si que me
libertou, e como o recompensarei, a si que é para mim mais do que um filho? E
como recompensar os seus nobres soldados? Peça-me o que quiser, ainda que
seja o meu lugar, e pertencer-lhe-á.
144
assim nos nossos dias. No entanto, eu não poderei fechar os olhos
em paz, mesmo depois de morto, se não lhe der os meus agradecimentos de
maneira precisa. Fale e diga-me o que mais lhe poderá agradar.
E disse com os seus botões que em tal caso estava perdido, porque
aquele estranho indivíduo de negras sobrancelhas que lhe caíra do Céu tinha
um aspecto mais feroz do que o próprio Leopardo, e era mais hábil. Ao menos
o Leopardo era -de todos conhecido, e sabia-se o que exigiria. E, pensando
isto, o velho governador pô-se a gemer alto sem dar conta. Mas Wang o Tigre,
exprimindo-se francamente, acrescentou:
10-w. L.
145
o general, que chegou passados momentos. Era um
homenzinho compassado, de barriga proeminente, que usava um
uniforme de guerra de corte estrangeiro. Deixando crescer uma
barbicha de pêlos raros, levantava em escova as sobrancelhas e fazia
todo o possível por parecer valente e cruel. Chegou arrastando a longa
espada e batendo os tacões com força a cada passo. Chegou, inclinou-
se e procurou dar-se ares ferozes.
146
E o governador, penalizado, seguiu com os olhos o pequeno general
que se retirava, suspirou e disse de si para consigo que ao fim e ao cabo tinha
sido um homem de guerra muito cómodo e que, se não tinha destroçado os
ladrões, não era contudo penoso tê-lo no palácio, excepto quando se irritava a
propósito de qualquer pequeno pormenor de alimentação ou de bebida,
questões, aliás, fáceis de resolver. Em seguida, o velho governador lançou um
olhar furtivo a Wang o Tigre e sentiu-se muito pouco à vontade porque Wang o
Tigre tinha um aspecto juvenil e rude, ar violento e ferozMaslimitou-se a dizer,
no seu tom calmo:
Tudo isto lhe trará glória. Responderá que tomou a seu soldo um
valente que suprimiu os ladrões e que conservou o valente e os seus homens
como guarda particular. Obrigará o general... e eu porei a minha força atrás da
sua... a escrever uma carta na qual peça autorização para se reformar e me
nomeie seu substituto, e assim o senhor terá a glória de me ter tomado a seu
soldo e de, graças a mim, ter destruído os ladrões.
Então, embora a seu pesar, o velho governador viu que o plano não
era mau e começou a ficar mais bem disposto, salvo que receava ainda Wang
o Tigre e temia as suas violências, no caso de algum dia se voltar contra ele.
Mas Wang o Tigre deixou-o ter medo, porque isso lhe convinha, e sorriu com o
seu frio sorriso.
Esperou, pois, com certo prazer e curioso de ver até que ponto ela
estaria domesticada. Estava sentado, sozinho, numa sala, e tinha
147
Mas quando ouviu aquilo, a jovem lançou para trás, com uma
sacudidela, a cabeleira esparsa. Tinham-lhe cortado os cabelos, mas
tinham crescido novamente e desciam-lhe agora quase até aos ombros.
Ela resmungou:
Não estou doida, a menos que seja de ódio contra ele!
148
mulher vulgar ou ignorante. Contemplou-a com atenção e viu que,
embora fina e reduzida agora a extrema magreza, se mostrava ainda bela e
altiva, e nada tinha de uma grosseira campónia. Os seus pés eram contudo
grandes, parecendo nunca terem sido comprimidos, o que não era uso
naquelas regiões para uma mulher pertencente a boa família. Perdia-se,
portanto, no meio daquelas contradições e limitava-se a considerá-la. E
examinava-lhe as belas sobrancelhas negras, que se lhe torciam por cima dos
olhos encolerizados, e lábios finos que deixavam ver os dentes brancos e
polidos. E estando assim a olhar para ela, deu conta de que era a mais bela
mulher que jamais vira. Sim, mesmo com o rosto pálido, macilento e
encolerizado, era bela. E foi assim que acabou por dizer, lentamente:
149
impassível, bateu as pálpebras, deu um grito, voltou-se e disse para
os guardas:
Então Wang o Tigre, sorrindo com aquele seu sorriso sem alegria,
disse-lhe:
Então Wang o Tigre sentiu ainda mais desejo de saber quem ela
seria; era grande a sua curiosidade de saber como chegara a encontrar-se no
covil dos bandidos e tinha vontade de conhecer a história dela. E assim,
quando o guarda voltou, abanando a cabeça e dizendo: «Tem-me passado
muita selvagem pelas mãos, durante a minha vida, mas nenhuma como esta
pantera» Wang o Tigre disse-lhe:
Dize ao chefe da prisão que quero saber quem ela é e porque estava
no covil.
150
Depois, enquanto esperava que lhe ocorresse uma ideia, Wang
o Tigre mandou o seu fiel Beiço Rachado para o Sul, à sua antiga casa, e
ordenou-lhe que contasse a seus irmãos tudo quanto lhe acontecera e o
grande êxito que obtivera, como o realizara perdendo só alguns homens
e como se entrincheirara naquela região. Preveniu contudo o seu
mensageiro, dizendo-lhe:
151
e exercitava os seus homens e obrigava-os a aprender todas as
manhas da guerra e do combate que ele próprio conhecia, e a maneira de
fingir, de acatar e de fazer uma emboscada, e a arte de se retirar sem perdas.
Tudo o que sabia lhes ensinava, porque não era sua intenção ficar toda a vida
naquela pequena aposentadoria de um governador de departamento. Não, os
seus sonhos iam-se desenvolvendo nele, e deixava-os tornarem-se tão grandes
quanto fossem.
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CAPÍTULO XIV
O Inverno era muito longo e frio naquelas regiões, e na época dos
ventos gelados e na fúria das tempestades de neve não tinha outro recurso
senão ficar nos pátios do governador, na função que era agora a sua e esperar
a chegada da Primavera. Forte do prestígio das suas funções, reclamava
incessantemente do governador novos impostos para os seus oito mil
soldados. Sim, tinha até lançado sobre todas as terras um imposto em seu
benefício, que se chamava imposto para a protecção do povo pelo exército do
Estado, mas este exército era na realidade o próprio exército particular de
Wang o Tigre, e ele instruía-o, exercitava-o e preparava-o para lhe servir a
ambição de poderio, quando julgasse chegado o momento. Cada camponês de
toda a região pagava qualquer coisa por cada casa de campo que possuía, e
pagava-o para Wang o Tigre; e como os ladrões tinham desaparecido e o seu
covil fora queimado e já não tinham que recear o Leopardo, a gente do povo
não se cansava de tecer elogios a Wang o Tigre e todos estavam prontos a
pagar-lhe bem, mas ainda não sabiam bem até que ponto seria.
Havia também outros impostos que Wang o Tigre fizera com que o
governador estabelecesse para ele, alguns sobre os estabelecimentos e os
mercados, e todos os viajantes que cruzassem aquela cidade, que era ponto de
passagem entre o Norte e o Sul, pagavam imposto, e todos os negociantes
pagavam tributo sobre as mercadorias que transportavam numa ou noutra
direcção, e assim o dinheiro ia entrando incessante e secretamente nas
reservas de Wang o Tigre. Tinha também todo o cuidado de evitar que o
dinheiro passasse por muitas mãos, sabendo que não há no Mundo mão que
de boa vontade largue tanto dinheiro quanto recebeu. Designou os seus
próprios homens de confiança para velarem pela cobrança, e embora eles
falassem brandamente a todos, conformes com as ordens dele, dava-lhes
poder sobre todo
153
aquele que surpreendessem a exigir mais do que o devido, e
avisava os homens de confiança de que ele próprio os castigaria caso o
enganassem. Estava mais ao abrigo da traição do que muitos, porque
toda a gente o receava como homem implacável. Mas sabia-se também
que era justo, e sabia-se que não matava ninguém sem razão e por
simples prazer.
154
Por isso recorria naturalmente aos conselheiros, que não deixavam
nunca de o adular, e quando eles diziam: «Ah, este homem é criminoso e
aquele tem o direito por si»o velho governador apressava-se a aprová-los e a
dizer: «É o que eu estava a pensar... é o que eu estava a pensar». E quando
eles exclamavam: «Fulano deve ter um bom castigo, é muito insubordinado» o
velho governador gaguejava: «Sim... sim, castigue-se!»
Desejava vê-la livre e contudo não queria que ficasse livre a ponto
de poder ir-se embora. E admirou-se consigo próprio ao dar-se conta de que se
preocupava com o que ela pudesse fazer. Admirava-se, no íntimo do seu
coração, e, desconcertado, mandou vir secretamente ao seu quarto de dormir
o seu homem de confiança Beiço Rachado, e disse-lhe:
155
com aquele jeito que ele tem para isso, fazendo correr tão pouco
sangue.
Ela chegou por fim, no meio de dois guardas. Vestia uma simples
blusa de algodão e calças de fazenda vulgar, azul pálido. Mas não era aquele
trajo comum que a transformava. Comia agora bem, e à magreza do seu corpo
substituíra-se uma plenitude de formas que não lhe prejudicava no entanto a
esbelteza. Linda não podia ser, porque os traços do seu rosto eram demasiado
acentuados, mas era ousada e bela. Entrou com o passo firme, sem se
apressar e sem timidez, e parou em frente de Wang o Tigre, num silêncio
expectante.
Porque está ela agora tão calma, tendo-se mostrado antes tão
desvairada?
Não sabemos; só sabemos que quando saiu pela última vez parecia
fraca e abatida, como se tivesse saído dela um génio mau, e desde então tem-
se conservado assim.
156
facto, importo-me!» A custo as reteve, pois como podia ele dizer
semelhante coisa diante de todos os seus guardas e diante daquela mulher?
Bruscamente gritou:
E ao dizer isto ergueu a cabeça e olhou para Wang o Tigre com uma
repentina simplicidade aparente.
157
CAPÍTULO XV
SE Wang o Tigre fosse um homem grosseiro, vulgar e desprovido da
noção do que era justo e decente, ter-se-ia provavelmente limitado a apossar-
se daquela mulher, visto ela não ter nem pai, nem irmão, nem ninguém que a
protegesse, usando dela como entendesse. Mas a hora longínqua da sua
juventude, que fora para ele como que uma pancada no seu coração, tornava-o
ainda delicado e o seu prazer era avivado por pensar que saberia esperar,
apesar de toda a sua paixão, até poder torná-la sua esposa. Além disso, queria
que ela fosse esposa, porque ao seu amor pessoal por ela, que crescia nele de
hora para hora, se misturava também o desejo de ter dela um filho, o seu filho,
o seu primeiro filho, e só uma mulher leal pode dar a um homem o seu
verdadeiro filho. Sim, metade do ímpeto do seu secreto desejo dela consistia
em imaginar que filho procriariam ambos, ele com a sua força e a sua elevada
estatura e tudo o que tinha a legar, ela com a sua beleza de raposa e o seu
espírito intrépido. Para Wang o Tigre, quando nisso pensava, era como se o seu
filho já existisse.
159
quando o requisitassem. Embora já fosse agora tão forte naquela
região, que podia apoderar-se do que quisesse sem pagar nada e sem que
ninguém ousasse protestar, não obstante pagava tudo, porque era um homem
justo.
Poderia haver muito pior do que este senhor de guerra que exerce a
sua autoridade sobre nós. É suficientemente forte para manter longe os
ladrões e ele próprio não nos rouba. Não vejo que mais se possa pedir neste
mundo.
Ela era bem diferente de Flor de Pereira, e por causa dessa primeira
imagem de mulher deposta na sua memória, sempre pensara que havia de
amar sobretudo as mulheres doces e pálidas. Mas agora já não queria saber
disso, e dizia de si para consigo que não lhe importava saber quem ela era
nem quê, logo que a possuísse e a prendesse para sempre a si por meio dos
filhos.
Ninguém foi durante esses dias procurá-lo para o que quer que
fosse, porque os seus homens de confiança o viam por inteiro entregue ao seu
desejo. Mas consultaram-se uns e outros secretamente, porque tinham ouvido
o que constava, e fizeram todos
160
os esforços para apressar as bodas, de modo que pudessem estar
terminadas e o chefe acalmado e pronto a voltar a ser o homem de antes e
conduzi-los avante, quando a ocasião se apresentasse.
Quanto a Wang o Tigre, durante todo o dia das suas núpcias, agiu
como num sonho e não sabia o que fazer, sentindo que as horas do dia
caminhavam tão lentamente. Parecia-lhe que cada sua respiração demorava
uma hora e que o Sol nunca chegaria a arrastar-se até ao zénite, e quando lá
chegou, que nunca mais dali sairia. Era-lhe impossível estar alegre como se
sentem os homens nas suas núpcias, porque nunca fora alegre, e conservava-
se silencioso como sempre e ninguém se atrevia a gracejar. Teve muita sede
durante todo aquele dia, bebeu muito vinho, mas foi incapaz de comer fosse o
que fosse, porque se sentia enfartado como se tivesse comido forte refeição.
11 -w. L.
161
Em certo momento, no meio da noite, voltou-se para ela e disse num
murmúrio abafado:
Que importa, se estou aqui? Mas um dia ou outro lhe direi quem sou.
Digno senhor, não lho quisemos dizer ontem, por ser um dia de
alegria, mas ouvimos boatos provenientes do Norte. O governador da província
soube que o senhor se apoderou do governo e manda uma expedição contra
nós.
Eu... eu também ouvi dizer isso... quando fui ao mercado para ver
como é que nesta cidade prendem os porcos, e um carniceiro esteve a
explicar-mo.
Mas Wang o Tigre estava amolecido e pela primeira vez não podia
decidir-se a pensar na guerra. Teve o seu leve sorriso e disse:
162
entre dentes, simulando não ter nada a contar, ela disse-lhe
imperiosamente:
Wang o Tigre acorreu como nunca fizera a qualquer chamada, sorrindo com
doçura tal como jamais alguém lhe vira. Ela sentou-se no leito e ele sentou-se ao lado
dela e pegou-lhe na ponta da manga que se pôs a torcer entre os dedos. Sentia-se
mais intimidado na sua presença do que ela na dele, e baixava os olhos, sorrindo.
Não sou mulher para o embaraçar com a minha presença, se tiver de dar
batalha, e diz-se que vem a caminho contra si um exército.
A notícia não podia ter chegado à capital da província em tão pouco tempo.
163
Tem menos homens do que o exército provincial, e quando um guerreiro vê
que o seu exército é mais pequeno do que o do inimigo, deve usar de astúcia.
Ele teve então o seu riso silencioso e respondeu com o seu modo áspero:
Isso sei-o eu bem, pois caso contrário não serias agora minha.
A estas palavras ela baixou rapidamente os olhos como que para esconder
um sentimento que eles poderiam deixar ver, mordeu o lábio inferior e respondeu:
Leve-o com os seus soldados, sob boa escolta, e explique-lhe que deve
dizer o que lhe mandar. Mande-o ao encontro do general da província, com um
homem de confiança de cada lado, para ouvir o que disser, e, se ele não disser o que
lhe tiver recomendado, que tenham os sabres prontos a mergulhar-lhos na barriga e
esse será o sinal da batalha. Mas ele não tem mais fel do que um frango, e fará o que
lhe indicar. Deve dizer que nada se fez sem o seu consentimento; que o boato de uma
revolta provém simplesmente de se ter revoltado o velho general, e que, sem o
senhor, que veio libertá-lo, os Selos do Estado teriam sido roubados e ele próprio teria
perdido a vida.
O ardil pareceu excelente a Wang o Tigre, que ouvira a mulher falar sem
tirar os olhos do rosto dele. Viu todo o plano
164
desenrolado diante de si, levantou-se, ficou silencioso a pensar no
que a mulher valia, e saiu para executar o que lhe sugerira e dissera, seguido
de perto por ela. Ordenou a um dos homens de confiança que fosse buscar o
velho governador e que o trouxesse à sala de audiência. Então a mulher teve
um capricho. Irem ambos sentar-se na sala de audiência, onde o velho
governador compareceria diante deles. Wang o Tigre consentiu, porque tal
atitude deixaria o velho completamente manietado. E assim se instalaram no
estrado, Wang o Tigre no cadeirão esculpido e a mulher ao lado, noutra
cadeira.
Então Wang o Tigre gritou-lhe, no seu tom brutal e duro, com pouca
delicadeza:
O fraco velho não podia fazer outra coisa senão prometer, e disse,
gemendo:
Estou na ponta da sua espada. Seja como diz. Sou um velho e não
tenho filhos, que me importa a vida?
165
seus aposentos, onde o esperava a sua velha mulher, que nunca dali
saía. Era certo que não tinha filhos, porque os dois que ela lhe dera tinham
morrido ainda antes de saberem falar.
Entre esses senhores de guerra, era ainda Wang o Tigre um dos mais
ínfimos e quase desconhecido entre os grandes, excepto quando os homens de
guerra tagarelavam entre si, em qualquer reunião ou banquete, e um deles
disse:
166
paredes, e em todos os lugares onde passa gente, e essas
proclamações eram expedidas pelo senhor de guerra da província. Dizia ele
que, visto o potentado ser tão mau e o povo estar de tal modo oprimido, lhe
era impossível suportar semelhantes crimes à face do Céu. Embora fraco e
destituído de engenho, não podia contudo deixar de intervir para salvar o
povo. E feita a proclamação, preparou-se para a guerra.
Como sois ingratos, que nem quereis sequer pagar para a vossa
própria salvação! E quem havia de pagar para sustentar os soldados que vão
combater por vós e garantir a vossa segurança ?
Não proceda com muita violência contra esse novo pequeno general
que tem o nome de Wang o Tigre, porque eu soube que é um ousado e valente
soldado e preciso de gente como ele sob a minha bandeira. A Nação inteira vai
dividir-se, talvez nesta Primavera, e, caso não seja este ano, pelo menos no
que vem ou no seguinte, e os senhores do Norte vão declarar-se contra os do
Sul. Trate, pois, o homem com gentileza.
Está enganado, meu senhor. Wang o Tigre não é um ladrão mas meu
próprio capitão e o meu novo general, que protege o meu palácio e me salvou
de uma revolta do meu próprio séquito.
Quando Wang o Tigre soube que tudo ficava por ali, rejubilou e
reconduziu triunfante os seus homens. Impôs por seu turno uma taxa
suplementar sobre todo o sal da cidade e em menos de duas vezes trinta dias
tinha as dez mil moedas e mais algumas, porque aquela cidade possuía muito
sal e expediam-no mesmo para outras partes e havia quem dissesse que
também para outros países.
168
viver e as crianças de ser alimentadas. Assim toda a gente
continuava a ganhar a vida, gemendo à aproximação do flagelo e
fazendo o seu trabalho enquanto esperavam o que lhes iria acontecer.
169
gular, e depois de ter matado a sede que dela tinha e de se ter
recostado comodamente, conversava com ela como durante toda a vida não
conversara com ninguém. Confiava-lhe todos os planos que arquitectava,
terminando todos os seus sonhos por estas palavras:
E Wang o Tigre nunca notava nela frieza alguma, tão ardente ele
próprio era.
170
em que Wang o Tigre não pensara quando escolhera para seu
domínio uma região do interior das terras. Não havia nenhum porto costeiro
sob o seu domínio e os outros portos estavam tão bem guardados que não
podia contar com fazer entrar espingardas secretamente por eles. Não sabia,
além disso, nenhuma língua estrangeira, e não tinha junto de si ninguém que
as soubesse, de modo que não havia maneira de tratar com os negociantes
estrangeiros e parecia-lhe que o único recurso era uma pequena batalha em
qualquer parte para adquirir as espingardas de que os seus homens careciam.
Ora Wang o Tigre voltou a pensar naquilo por várias vezes, e parecia-
lhe que aquela mulher era muito hábil, e fez um plano em conformidade com o
que ela sugerira. No dia seguinte, chamou o seu sobrinho o Bexigoso, que se
desenvolvera muito durante aquele último ano e que mantinha sempre perto
de si para pequenas diligências especiais que tinha de mandar fazer, e disse-
lhe:
Vai procurar o teu pai e finge teres ido a casa fazer uma visita e nada
mais, mas quando estiveres a sós com ele explica-lhe que tenho necessidade
de três mil espingardas e que estou cruelmente embaraçado por não as ter.
Vêm homens de toda a parte, mas faltam espingardas para eles, e são-me
inúteis sem espingardas. Explica-lhe que, sendo ele negociante e traficando
com a costa marítima, pode imaginar um meio para as conseguir. Mando-te a
ti, visto o plano dever ser mantido secreto, e tu seres do meu próprio sangue.
173
Dizia isto para troçar um pouco o primo, pois todos sabiam que
Wang o Proprietário e a sua senhora repetiam sempre que contavam fazer
daquele filho um letrado e que na próxima estação iria fazer o exame neste ou
naquele centro de ciência e assim se tornaria num grande homem. Mas vinha a
estação e passava o ano e o seguinte, e nunca lá ia. Ora o Bexigoso sabia que
o seu primo ia a caminho não de uma escola qualquer mas de alguma casa de
chá, e que com certeza acabava de sair da cama, ainda fatigado da noite que
passara em qualquer parte. Mas o filho de Wang o Proprietário, que era
elegante e desdenhoso, examinou o primo e disse-lhe:
E voltou à conversa.
E o filho respondeu:
174
em volta e o contemplavam em silêncio, pois era para eles um
estranho, escutando avidamente tudo o que dizia.
Não tardou que a mãe se aproximasse também para tornar a encher
a sua tigela, porque tinha muito apetite e comia ainda muito tempo depois de
o marido ter acabado e se ter ido embora. E contemplando também o filho
disse-lhe:
Tenho boas roupas, mas não as vesti desta vez, e comemos carne
todos os dias.
Quê ?!.. Meu irmão dá carne todos os dias aos seus soldados ?
Fala-me da mulher dele! É uma coisa singular que não nos tenha
convidado para o casamento.
175
Wang o Negociante escutou-o muito atento, sem o interromper, até o
filho ter dito tudo o que tinha a dizer, e, quando chegou ao fim, a expressão do
seu rosto não mudou. Ao passo que Wang o Proprietário se teria mostrado
espantado, abrindo muito os olhos e jurando que era uma coisa impossível de
realizar, Wang o Negociante tornara-se agora secretamente tão rico que nada
era para ele impossível e, se hesitava, era para ver se a coisa, uma vez
realizada, lhe daria ou não lucro. Tinha dinheiro colocado por toda a parte, e
havia muito quem lhe pedisse emprestado tanto quanto podiam. Tinha até
dinheiro nos templos budistas, emprestado aos sacerdotes sobre as terras dos
templos, porque nessa época o Mundo não era já devoto como outrora, e só as
mulheres, e geralmente as velhas, estavam dispostas a prestar culto aos
deuses, e muitos templos tinham empobrecido e visto diminuídos os seus
florescentes bens. Wang o Negociante tinha também dinheiro em navios que
sulcavam os rios e os mares; tinha-o num caminho de ferro, e colocara uma
bela soma num lupanar da cidade, embora não fosse nunca cliente do seu
próprio estabelecimento. E o seu irmão mais velho nunca teria imaginado,
quando ia jogar àquela nova grande casa de jogo aberta havia um ou dois
anos, que era um estabelecimento do seu próprio irmão. Mas era um negócio
que rendia muito, e Wang o Negociante contava com a comum natureza dos
homens.
E o jovem respondeu:
176
Ele disse-me: Explica a meu irmão que, se não tem confiança na
minha palavra, pode tomar toda a terra que lhe deixei em garantia, até ao
momento em que eu tiver recolhido o dinheiro suficiente para pagar as
espingardas. Tenho nas minhas mãos todos os rendimentos desta região, mas
não posso dar uma grande quantia de um momento para o outro sem fazer
sofrer os meus homens.
Pai, é exacto que meu tio é um grande homem. Devia ver como
todos o temem! Mas é também um homem bom, porque não mata ninguém
por matar. Até o governador da província tem medo dele. Nada receia... Quem,
a não ser ele, teria tido coragem para casar com uma mulher a quem toda a
gente chama uma raposa! E se obtiver essas espingardas, isso dar-lhe-á mais
poder do que nunca.
177
arroz dessa maneira, e tinha de o fazer em segredo, mas realizava
um grande lucro com a operação, que lhe dava bem para oferecer grandes
«luvas» às autoridades. Eram estas pouco rígidas e, convenientemente
subornadas, fechavam os olhos aos dois pequenos navios, que ele conservava
intencionalmente pequenos, e guardavam a sua indignação e o seu zelo pela
lei para os navios estrangeiros ou ainda para outros que não lhes davam lutro
algum.
E Wang o Negociante pensou nos seus dois navios que voltavam por
vezes vazios desse outro país ou então só meio carregados de panos de
algodão e de chita estrangeira, e pensou que poderia facilmente arranjar as
coisas de maneira a passar de contrabando espingardas estrangeiras entre
essas mercadorias. Se fosse apanhado, ficaria quite com uma distribuição de
dinheiro para um lado e para outro e daria aos seus capitães alguma coisa
para lhes tapar a boca e tornar o silêncio agradável a todos. Sim, podia fazer
isso. E então, depois de ter olhado à volta para verificar que não havia
ninguém nas proximidades, nem clientes, nem criados, falou assim ao filho,
por entre, dentes, sem mover os lábios e muito suavemente:
Ora, Wang o Tigre nada dissera a tal respeito ao sobrinho e foi por
isso que este se limitou a coçar hesitante a cabeça e a olhar para o pai. E
respondeu:
Assim, pois, munido desta resposta, o rapaz voltou para junto do tio,
e partiu logo na manhã seguinte. Mas, nessa noite, dormiu em sua casa e a
mãe cozinhou para ele um prato de que gostava, pequenos bolos de pão
cozidos com alho e carne de porco dentro, uma guloseima muito delicada.
Comeu quanto pôde daqueles bolos e o que sobrou meteu-o no seio para ir
comendo pelo caminho. Depois, sentado no burro, empreendeu a viagem de
regresso para junto de Wang o Tigre.
175
CAPÍTULO XVII
DURANTE o mês seguinte, aconteceu uma coisa tal como Wang o
Tigre, na sua presunção, não teria acreditado ser verdadeira se lha tivessem
contado. A febre da guerra propagou-se por toda a região, quando se soube
que os grandes senhores supremos declaravam a guerra uns aos outros e
cindiam o país em duas partes. Naquela febre surgiam bandos de todos os
lados, o espírito belicoso despontava por toda a parte, pois os homens que
estavam ociosos e sem trabalho ou os que não queriam trabalhar; os que
gostavam da aventura e os filhos que não se davam com os pais; os jogadores
que tinham perdido ao jogo e todos os descontentes aproveitavam o momento
para se revelarem e fazerem uma demonstração qualquer.
179
expuseram-lhe os seus males. Comunicaram-lhe que os gatunos se
iam tornando mais ousados por causa da impunidade e vinham já de noite
para roubar, e quando não encontravam tudo o que desejavam, matavam sem
remorsos famílias inteiras de camponeses. Mas Wang o Tigre não sabia se
devia ou não acreditar no que lhe contavam, porque, quando mandara espiões
para interrogar os camponeses, havia-os tão medrosos que receavam falar e
negavam tudo. E foi por isso que, durante certo tempo, Wang o Tigre nada fez,
não dando importância àquilo, pois todo o seu espírito estava ocupado na
escolha do momento propício para se declarar na grande guerra.
Há alguma coisa que não lhe corre bem, para estar assim com ar tão
sombrio e zangado?Esperou um momento, deu uma risadinha aguda, e
continuou:Espero que não, pois de outro modo recearia que me matasse com
esse olhar sombrio com que está agora!
180
desenhados. Tinha agora os cabelos lisos e brilhantes atados no
pescoço por uma pequena rede de seda preta, e das orelhas pendiam-lhe anéis
de ouro.
Wang o Tigre teve o seu sorriso mudo, por a ouvir dizer aquilo, tão
inteligente lhe pareceu o plano, e atraíu-a a si, porque estavam sós no quarto e
os guardas saíam e ficavam diante da porta todas as vezes que ela entrava, e
contentou o seu desejo de lhe percorrer a carne macia com as mãos rudes.
Respondeu:
Nunca houve mulher que tivesse tanta sabedoria como tu! Que
abençoado foi o dia em que matei o Leopardo!
181
Em momento algum reparou no desaparecimento da carta do irmão,
porque a mulher pegara nela e guardara-a no seio, tão abaixo que as mãos
dele não lhe tinham tocado.
Não faça barulho, meu tio! Não diga à sua mulher que estou aqui.
Mas venha à rua quando puder, esperá-lo-ei na primeira esquina. Tenho uma
coisa para lhe dizer e é da maior urgência.
E o jovem murmurou:
Sua mulher mandou-me levar esta carta a alguém, mas eu não sei a
quem, porque não a abri. Ela perguntou-me se eu sabia ler e eu respondi que
não. Como havia eu de saber, tendo sido criado no campo! Ela então deu-me a
carta e disse-me que a entregasse a um certo homem que me encontraria esta
noite na casa de chá do subúrbio do norte e deu-me uma moeda de prata pelo
recado.
182
Meteu a mão no peito e tirou uma carta, de que Wang o Tigre
se apoderou sem uma palavra. Sem uma palavra caminhou com largas
passadas pelo beco fora até uma ruazita onde um velhote tinha aberto
uma loja solitária onde vendia água quente, e aí, à luz vacilante da
pequena lâmpada de azeite que pendia de um prego espetado na
parede, abriu a carta e leu. E à medida que lia ia vendo claramente que
havia uma conspiração. Ela... a sua mulher... tinha falado a alguém das
espingardas! Sim, podia ver que se entendera com alguém para o trair,
e aqui na carta fazia uma última recomendação. Escrevia:
183
Mas Wang o Tigre não esperou. Embora visse a que ponto ela era
bela, como uma estátua de alabastro ao, luar, e tendo consciência de que
acima da sua raiva havia nele uma dor pior do que a morte, não se deteve. De
momento, queria apenas lembrar-se de que ela o enganara e quisera traí-lo, e
no seu furor ergueu a espada e mergulhou-lha sem hesitação na garganta, que
se oferecia enquanto que a cabeça pendia sobre o ’travesseiro. Mergulhou-a de
um golpe, e em seguida tirou-a e limpou-a à coberta de seda.
Mas Wang o Tigre não quis demorar-se a pensar no que fizera. Saiu
em passos largos para o pátio, chamou, os seus homens acorreram, e, na sua
cólera, lançou-lhes as ordens em voz brutal e segura. Precisava agora de ir em
socorro do Falcão, sem perda de um minuto, e ver se não poderia atingir as
espingardas antes dos ladrões. Levou consigo todos os homens disponíveis,
excepto duzentos que deixou sob as ordens do seu fiel Beiço Rachado
promovido a capitão.
Está uma coisa no meu quarto de dormir! Vai lá, leva-a para fora e
atira-a a um canal ou a um pântano! Trata disso antes do meu regresso!
Durante essa noite e dia seguinte, errou Wang o Tigre por toda a
região, com os seus homens, à procura do Falcão, e o Sol dardejava sobre eles,
porque era um dia sem vento. Mas Wang o Tigre não quis descansar os
homens, porque a preocupação o tornava a ele próprio incapaz de repouso e,
ao cair da tarde, na grande estrada que vai de Norte para Sul, encontrou o
Falcão, à frente do seu destacamento.
184
Então, ia jurar que não tens as espingardas!
Mas o Falcão não era peco e o seu humor era muito vivo e
orgulhoso. Decidido, respondeu acaloradamente, e sem nenhuma
palavra de cortesia:
185
Vamos combater os ladrões!
Boa sorte!
Mas eram mais os que não diziam nada e olhavam com raiva os
soldados que atravessavam os seus campos de trigo, de couves e de melões,
porque não acreditavam que dos soldados pudesse vir nenhum bem, tão fartos
estavam deles.
Não, não vi chefe nenhum. Consegui chegar tão perto que ouvi
até o que diziam. São muito ignorantes e sem experiência da vida de
bandidos, porque o desfiladeiro não está guardado e estão a disputar
uns com os outros por causa das casas menos arruinadas.
Eram boas notícias. Wang o Tigre gritou uma ordem aos seus
homens e lançou-se à escalada do desfiladeiro, e ao mesmo tempo que
corria soltava grandes gritos e ordenava aos seus homens que se
precipitassem no covil e que cada um deles matasse pelo menos um
ladrão, e depois sustassem a fuzilaria para ele parlamentar.
Assim fizeram, Wang o Tigre pôs-se de lado, os seus homens
precipitaram-se no covil, deram uma salva e os bandidos caíam
186
mortos por todos os lados, contorcendo-se e vomitando
imprecações ao morrer ou enquanto agonizavam. Era exacto que não
esperavam por nada, e só pensavam nas casas e na sua instalação.
Deviam estar reunidos no covil de três a cinco mil, como formigas num
formigueiro, todos ocupados a erguer paredes de terra e a transportar
traves e palha para cobrir os tectos e fazendo projectos de futura
grandeza. Ao serem assim surpreendidos, todos abandonaram o
trabalho e se puseram a correr de um lado para o outro, desorientados,
e Wang o Tigre verificou que não havia ali ninguém para lhes dar
instruções nem tinham chefe determinado. Pela primeira vez, um
raiozinho de Sol penetrou no coração de Wang o Tigre, porque bem
sabia quem se lhes devia vir juntar, e viu que cedo ou tarde teria de vir
combater contra a mulher a quem amava, e que melhor fora tê-la
matado, como fizera.
É só por pouco tempo, pois em breve partirei para a guerra. Não vou
contentar-me toda a vida com uma pequena sede de distrito para minha
capital.
E dizia isso sempre a todos, com feroz amargura, porque já não tinha
mulher e, sem ele se aperceber disso, pensar num homem com uma mulher
enchia-o de raiva:
Se algum dos meus soldados deita os olhos para uma mulher que
lhe seja proibida, mato-o!
188
traziam as mesmas notícias, e era que os generais sudistas tinham
sido repelidos uma vez mais, e que o Norte estava novamente vitorioso. Nisso
acreditou logo Wang o Tigre, tanto mais que durante as últimas semanas não
tinha sido solicitado como anteriormente pelo general da província para
mandar as suas tropas a combater por ele.
191
pátio lateral, com a sua velha esposa que estava agora a morrer de
consumpção. Era, à sua maneira, um bom velho letrado. Mas tinha tão pouco
o hábito de homens como Wang o Tigre, e assustava-se tanto todas as vezes
que Wang o Tigre lhe dirigia a palavra, que não podia fazer outra coisa senão
cruzar as mãos e dizer muito depressa:
Por outro lado, não podia deixar de sentir cruelmente a falta dela.
Sem ela, via agora a vida estender-se diante de si longa e insignificante, e ele
próprio duvidava de poder vir um dia a ser grande. E se tal acontecesse
pensava de que lhe valeria isso, se não tinha filho em favor do qual alcançasse
o poderio, e se tudo morreria com ele e tudo quanto possuía iria para outros? O
amor que tinha pelos irmãos e pelos filhos dos irmãos não tinha força para o
fazer lutar por eles com as armas e a astúcia. E no seu quarto escuro e
silencioso, a sós, gemia:
«Quando a matei, matei dois, e o outro era o filho que poderia vir a
ter dela!»
Por fim, quando lhe parecia que ia enlouquecer, deu-se nele uma
reviravolta. Apercebeu-se de que, apesar de morta, aquela mulher ia ser tão
seguramente causadora da sua morte como se fosse viva e pudesse ter levado
a cabo os seus desígnios. E de repente fez-se duro, teve a ilusão de que falava
ao fantasma da mulher para a desafiar, e disse de si para consigo:
13-w. L.
193
«Então não pode qualquer mulher ter um filho? E não é um filho o
que eu desejo, mais do que uma simples mulher? Quero ter um filho, quero
tomar uma mulher, ou duas, ou três, até ter um filho».
Quanto a Wang o Tigre, não podia fazer outra coisa além de esperar
o que o tempo traria e o que por ele fariam os irmãos. Obrigou-se, enquanto
esperava, a fazer o plano das suas guerras e a pensar nos meios de se
engrandecer. E esforçava-se por se fatigar o mais possível para à noite
conciliar o sono.
194
CAPÍTULO XIX
195
estava prestes a responder, deteve-se, porque se lembrou de
que, quando as pessoas são estranhas ao exército e não estão ao
corrente das coisas guerreiras, se mostram enojadas e não podem
suportar que se mate e se morra como convém a soldados cujo mister é
matar e serem mortos, quando não podem escapar pela astúcia. Foi por
isso que respondeu simplesmente:
«Aqui está uma ocasião em que o meu irmão mais velho vai
ter ensejo de se mostrar mais sabedor do que eu, pois se há alguma
coisa de que ele perceba é de mulheres, e eu que mulher conheço além
da minha?»
196
rou que Wang o Proprietário tivesse pedido chá e vinho, e depois,
reparando nas horas, pediu carnes e outros pratos. O criado afastou-se por fim,
e Wang o Negociante entrou abruptamente no assunto:
O nosso irmão mais novo deseja uma mulher, porque a dele morreu
e desta vez recorre a nós. Pensei que era uma coisa que, melhor do que eu, tu
podes arranjar.
Mas, isso vem mesmo em boa ocasião, pois deitei os olhos para as
raparigas casadoiras da cidade, por causa do meu filho, e conheço todas as
apresentáveis. Tenho agora o projecto de casar o meu mais velho com uma
rapariga de dezanove anos, filha do irmão mais novo do governador... rapariga
muito séria e bem comportada, e a mãe do meu filho viu algumas amostras
dos seus bordados e trabalhos de costura. Não é bonita, mas é muito honesta.
O único aborrecimento é que meu filho está com a ideia tola de escolher ele
próprio esposa... ouviu falar no Sul dessa moda nova.
«Eu farto-me de lhe dizer que por cá não se admite que as coisas se
façam assim, e que, além disso, pode depois escolher outras que lhe agradem.
Quanto ao pobre corcunda, a mãe deseja ter um padre na família, e seria
lamentável desperdiçar para isso um filho que não tenha as costas tortas.
Das raparigas que viste, há alguma que possa convir para nosso
irmão, e estarão os pais dispostos a vê-la entrar numa casa para desposar um
homem que já foi casado?
197
delicadas como aquela, e deixou à sua memória o tempo
necessário para passar em revista as raparigas, uma após outra, e para
recapitular tudo o que se lembrava de ter ouvido dizer delas. E depois
respondeu:
Mas parece-te que ela poderá ser uma boa dona de casa e que
lhe será útil? Ele próprio sabe ler e escrever muito bem, e, mesmo
quando o não soubesse, podia alugar um letrado para o fazer em vez
dele. Não vejo que tenha necessidade de toda essa ciência numa
esposa.
198
aquecer; mas tirava-as constantemente para apalpar as galinhas que
um vendedor lhe estava a oferecer. A neve fazia com que as galinhas
estivessem mais baratas do que de costume, e a dama desejava acrescentar
uma galinha ou duas à sua reserva. Quando Wang o Negociante se aproximou,
ela não ergueu os olhos e continuou o seu exame. Mas o marido disse-lhe, ao
passar junto dela para entrar em casa:
O meu irmão mais novo deseja uma esposa, porque a que tinha
morreu de repente. Não percebo nada de mulheres, mas tu tens tido de há dois
anos para cá ocasião de procurar mulheres para os nossos filhos. Haverá
alguma que sirva para lhe mandar ?
Se ela não fala muito, já não é mau. Trata disso, e depois do noivado
manda-se-lhe.
Pois bem, tenho pena por ele vir a ter uma mulher escolhida pelo
vosso irmão, pois este que mulheres conhece, além das fáceis? E garanto que,
se ele deixar a esposa meter-se nisso, ela acaba por arranjar uma espécie de
freira, pois ouvi dizer que anda agora tão tola com padres e freiras que o gosto
dela seria ver a casa toda a rezar e a fazer palhacices. Chega bem ir ao templo
quando alguém está com febre ou se uma mulher não tem
199
filhos ou coisa assim, mas quer-me parecer que os deuses são como
todos nós, e as pessoas de que mais gostamos não são as que passam a vida a
importunar-nos e a pedir-nos isto e aquilo!
E depois de ela meter os braços por baixo da cadeira para tirar dali
as galinhas e explicar que as pagavam agora por menos do que habitualmente,
ele interrompeu-a e disse:
Ora esse dia ficava próximo do fim do ano, e Wang o Tigre, quando
lho anunciaram, preparou-se para se dirigir a casa dos seus irmãos para se
casar pela segunda vez. Não tinha gosto por isso mas, apesar de tudo, estava
resolvido, e eis porque pôs de lado todas as hesitações e deu as suas
instruções aos três homens de confiança que designou para velarem pelo
exército em vez dele, e deixou o sobrinho para o avisar se sobreviesse
qualquer dificuldade durante a sua ausência.
Então o rapaz reconheceu-o, pois ouvira dizer que tinha um tio que
era general e sonhava muitas vezes com ele e perguntava-se com o que ele se
parecia. E exclamou com veemência:
É o meu tio?
Sim, ouvi dizer em qualquer lado que o meu irmão tinha um filho
assim. É estranho, porque somos todos direitos e fortes, e o meu pai era
também assim, um velho muito direito e forte como poucos, até mesmo na sua
velhice.
201
E enquanto esperava que o rapaz satisfizesse o seu desejo, apareceu
alguém à porta. Era Flor de Pereira. Wang o Tigre reconheceu-a
imediatamente, pois ela não tinha mudado muito, a não ser que era agora
mais magra e frágil do que outrora, e o seu rosto, sempre pálido e de forma
oval, estava agora coberto de uma rede de finas rugas que se desenhavam
levemente na pele pálida. Mas os seus cabelos tinham permanecido tão lisos e
tão negros como outrora. Então Wang o Tigre inclinou-se, muito rígida e
profundamente, mas sem descer do cavalo, e Flor de Pereira fez-lhe uma
pequena saudação, e preparava-se para se afastar vivamente, quando Wang o
Tigre a interpelou:
Está bem.
Quando a idiota tiver morrido, entrará para o convento que fica perto
daqui e far-se-á religiosa. Já não come carne e sabe muitas orações de cor e é
já religiosa laica. Mas não quer retirar-se do Mundo nem cortar os cabelos
antes de que a idiota morra, porque o meu avô lha confiou.
Wang o Tigre ouviu aquilo com uma vaga sensação dolorosa e ficou
por momentos silencioso. Disse enfim, compassivamente, ao rapaz:
202
alterou-se-lhe, tornando-se entrecortada, e erguendo os olhos
para Wang o Tigre, exclamou:
Sim, vou ser padre... Mas, oh, como desejaria ser são! Nesse
caso, seria soldado... se me quisesse, tio!
Bem sei.
203
aparentemente solitário como estava quando viera, seguido pelos
seus soldados e pelo carro aos solavancos. Foi assim que Wang o Tigre levou a
esposa para os seus domínios. Passados um ou dois meses, chegou a sua
segunda mulher, conduzida pelo pai, e ele recebeu-a também, visto que lhe
era indiferente ter uma ou duas.
204
CAPÍTULO XX
E como a Primavera se ia adiantando e as cerejeiras floridas de
branco e os pessegueiros cor-de-rosa pálido flutuavam como leves nuvens na
terra verde, Wang o Tigre reuniu conselho a respeito da guerra com os seus
homens de confiança, e ficaram apenas à espera de duas coisas. A primeira
era ver como a guerra recomeçaria entre os senhores do Norte e os do Sul,
porque as tréguas que haviam feito no ano_ anterior eram muito exíguas e
precárias, não passando de tréguas de Inverno, estação em que não convém
travar batalha por causa do vento, da neve e da lama.
acordo para longas tréguas. A outra razão pela qual Wang o Tigre
e não queria passar por menos inteligente do que ele, embora não
205
e miserável, e os porcos são tão deploràvelmente magros que
não podem dar carne para comer. Vi esses porcos e juro-lhes que os
seus lombos são tão aguçados como foices e que é possível saber
quantos filhos uma porca tem na barriga antes de ela os dar à luz. Não
é um país que mereça uma guerra para alcançar o seu domínio.
Há uma região onde ficava outrora o meu país natal, mas hoje
nada me prende já a ela, e fica a sueste desta mesma região, entre a
terra em que estamos e o mar, país muito rico e que de um lado é
limitado pelo mar. Há ali um departamento que fica ao longo de um rio
que se lança no mar, e é um país produtivo, com muitos campos férteis,
uma série de colinas pouco elevadas, e o rio é muito rico em peixe. O
governo do departamento é a única grande cidade, mas há muitas
aldeias, vilas e os habitantes são económicos e vivem bem.
Sim, mas não é provável que um sítio tão bom não tenha o seu
senhor de guerra. Quem é ele?
206
habituais, depois da batalha, visto que murmuram uns com os
outros e se queixam de serem mantidos aqui muito apertados e de não
terem sob a sua bandeira os privilégios que dão os outros senhores de
guerra. Se não tiverem o direito de pilhagem, não se batem.
Wang o Tigre seguiu então à frente dos seus soldados e fez constar
entre os habitantes da cidade que ia outra vez fazer a
208
guerra por eles contra um inimigo que vinha do Sul invadi-los.
Os habitantes ficaram aterrados e, desejosos de lhe agradar, a
corporação dos negociantes deu-lhe um presente em dinheiro, e muitos
cidadãos acompanharam o exército naquele dia, à sua partida da
cidade, detendo-se todos a verem arvorar a bandeira de Wang o Tigre e
assistindo ao sacrifício de incenso e de um porco oferecido para obter
bom êxito na guerra.
209
a toda a pressa, por causa do barulho que fazia toda aquela
massa de homens e, por vezes, se estava atado à charrua, levava
consigo esta e o próprio homem que a guiava. E então os soldados riam
com grandes gargalhadas, mas Wang o Tigre, se o notava, detinha-se
delicadamente à espera ’que o homem dominasse outra vez o animal.
210
a vossa cidade e mostrá-la assim tão pobre e mesquinha ?
Oferecendo tão miserável soma, amesquinhais-vos a vós próprios!
Volta a dizer ao teu senhor que ele pode combater-me se isso lhe apraz.
Porque haveria eu de ter-lhe medo? Nunca ouvi falar desse cãozinho de regaço que se
chama Wang o Tigre.
Que poderão ainda ter de comer para que haja alguém capaz
de empunhar uma espingarda?
213
o acampamento, Wang o Tigre espreitava, ofegante, e viu um
homem novo ainda adiantar-se para ele lentamente, trazendo uma
bandeira branca na extremidade de uma vara de bambu. Então Wang o
Tigre gritou aos seus homens que se pusessem em linha, e colocou-se
justamente atrás deles para esperar o parlamentado. Quando este
chegou bastante próximo para poder ser ouvido, gritou:
Então Wang o Tigre pôs-se a rir com o seu riso seco e disse:
Fique então, e passe aqui a vida se lhe agradar, isso não nos
incomoda!
Então Wang o Tigre sentiu a sua velha cólera negra subir nele
e disse de si para si que era surpreendente ver um inimigo na última
extremidade enviar um mensageiro tão descortês que não tinha sequer
cumprido um único rito de polidez, e pensou de si para si que aquele
era o jovem mais impertinente que jamais vira. Quanto mais nele
pensava, mais a sua cólera aumentava, e de repente e antes de ele
próprio se dar conta disso, perdeu a cabeça e disse a um soldado:
Pega na espingarda e deita-me abaixo aquele sujeito!
214
podia significar. Mas admirou-se mais ainda quando viu o jovem
estendido na frente dele e já com a palidez da morte, mas sem ter de modo
algum o aspecto de um faminto. Não, quando Wang o Tigre deu ordem de lhe
despirem a roupa, para lhe ver a carne, viu que o jovem, se não estava gordo,
tinha no entanto muito bom aspecto para dar a perceber que se alimentara de
alguma coisa.
Se este indivíduo está assim, que é que eles têm de comer que lhes
permite aguentarem-se tão bem contra mim? (E, com uma blasfémia,
continuou): Ora, posso tão bem como eles passar a minha vida neste cerco!
Que nos faz ter acima de nós um senhor ou outro? Julga que temos
alguma estima por aquele velho bandido que nos reduziu quase à fome com os
seus impostos? General, se quiser tratar-nos compassivamente e impedir os
seus soldados de nos prejudicarem, sentir-nos-emos muito satisfeitos de o
termos no lugar dele.
Mas Wang o Tigre azedava à medida que o Verão avançava. Maldizia
o calor e as miríades de moscas que apareciam no monte de esterco que
necessariamente fazem numerosos soldados, e os mosquitos que saíam da
água estagnada do fosso, e pensava com irritação na cidade onde estavam os
seus aposentos e onde as suas duas mulheres o esperavam, e a sua cólera
tornava-o menos afectuoso do que outrora e os seus homens tornavam-se
muito insubordinados e ele não os impedia de o serem.
215
e negra ao luar e que se lhe afigurava inexpugnável. Enquanto a
olhava, sentiu-se outra vez muito encolerizado, verdade seja que a cólera
nunca nessa época o abandonava, e jurou a si próprio muito ferozmente fazer
pagar caro a todos os homens, mulheres e até crianças da cidade o dissabor
daquela guerra em que se empenhara. Nesse momento, viu deslizar pela negra
muralha uma sombra, uma sombra que se deslocava para a parte inferior.
Considerou-a fixamente e deteve-se. Custou-lhe a princípio admitir que a tinha
visto realmente, mas à força de olhar acabou por verificar que qualquer coisa
de pequeno e sombrio se deslocava como um caranguejo por entre a hera e os
arbustos secos presos à velha muralha. Notou finalmente que era um homem.
Sim, um homem que, ao chegar à parte mais baixa da muralha, saltou para o
chão e se adiantou para a zona banhada pelo luar. Viu então que ele agitava na
mão um pano branco.
E o homem respondeu:
Venho apenas por meu respeito. O general sob cujas ordens sirvo foi
incorrecto comigo. É um sujeito grosseiro e odioso, selvagem e sem educação,
e eu sou um homem de sangue nobre. Meu pai era mesmo um letrado e eu
estou habituado à delicadeza. O general humilhou-me diante dos meus
próprios soldados.
216
Ora um homem pode perdoar muitas coisas, mas nunca pode perdoar que
o humilhem. Tal humilhação não foi só um insulto a mim próprio como aos meus
antepassados que hoje represento, e os antepassados dele, se acaso os conhece,
eram gente que os meus considerariam criados.
Então uma luz começou a brilhar para Wang o Tigre, pois bem sabia que a
ironia e a humilhação são capazes de fazer nascer no coração de um homem o ódio
mais feroz, mesmo contra um amigo, e que um homem fará tudo para se vingar, se o
humilharam, principalmente se é um homem altivo, tal como aquele pelo seu aspecto
o bem parecia. E Wang o Tigre de chofre perguntou-lhe:
Então Wang o Tigre deu meia volta, penetrou na sua tenda e ordenou que
introduzissem o homem, sem conservar consigo mais de cinco ou seis soldados, para
o protegerem contra uma possível traição. Mas não havia nele ideia alguma de
traição, mas só de vingança e foi o que verificou Wang o Tigre, pois o homem disse-
lhe:
Sinto-me tão cheio de ódio e raiva que estou disposto a passar outra vez o
muro para o lado de lá e abrir-vos a porta. Só vos peço uma coisa, é que nos tomeis
sob as vossas bandeiras a mim e àqueles homens que estão sob as minhas ordens e
que eu estimo, e que nos protejais, para que o bandido, se não for morto, não me
mande apanhar e matar, pois é meu figadal inimigo.
Mas Wang o Tigre não quis receber um tão generoso socorro grátis e sem
outra recompensa a não ser essa, e eis por que disse, olhando bem de frente o
homem que estava de pé, diante dele, entre dois soldados:
217
aqueles que se entregarem com as suas espingardas. Nem um,
asseguro-vos, será morto. Quanto a vós, sereis capitão no meu exército, e dar-
vos-ei duzentas moedas em dinheiro a vós e cinco moedas a cada homem
munido da sua espingarda que me trouxerdes.
Então o rosto contraído do homem desanuviou-se e ele exclamou
calorosamente:
218
T
traição. No entanto, Wang o Tigre tinha confiança naquele
homem porque sabia que o desejo de vingança é a mais segura forma
de ódio.
220
estúpida obstinação e porque eles não tinham descoberto maneira
de lhe abrir as portas. E apesar disso, quando os seus soldados chegaram num
péssimo estado a pedir-lhe de comer, ele gritou-lhes mum misto de furor e
pesar:
«Não serei eu capaz de suportar por esse filho o que outros são
obrigados a suportar durante três curtos dias?»
Foi assim que ele se endureceu para os três dias e que se firmou na
sua promessa.
221
que retiniam. Permaneciam assim, tão alheios e mudos que os
julgaríeis mortos, e Wang o Tigre sentia no seu coração uma vergonha
que o impedia de se deter a conversar fosse com quem fosse.
Caminhava de cabeça alta e fingia não ver as pessoas mas apenas as
lojas. Havia nestas lojas muitas mercadorias como ele ainda não vira,
dado que aquela cidade ficava na margem sul do rio, e o rio se lançava
no mar, o que permitia conduzir para ali aquelas mercadorias. Sim,
Wang o Tigre viu muitas curiosidades estrangeiras que ainda não vira,
mas elas estavam agora dispostas sem cuidado e cobertas de poeira,
como se ninguém tivesse vindo há muito fazer compras.
Mas havia duas coisas que ele naquela cidade não encontrava.
Deu meia volta, voltou a casa porque não podia suportar ver
aquela-cidade que agora era sua. Sentia-se abatido, de mau humor, e
lançara injúrias aos seus soldados e berrava-lhes que se afastassem do
seu caminho, pois não podia suportar ouvir-lhes as grossas gargalhadas
de satisfação nem ver-lhes os olhos brilhantes de luxúria aplacada, e
olhava com furor os anéis de ouro que tinham metido nos dedos e os
relógios de fabrico estrangeiro que exibiam e todos os objectos
análogos de que se tinham apoderado. Viu até anéis de ouro nos dedos
dos seus homens de confiança, na mão brutal do Falcão um anel de
ouro, e um anel de jade no polegar do Matador de Porcos, polegar tão
grosso e rude que o anel ficara a meio caminho da falange, recusando-
se a entrar mais. Mas apesar de tudo, usava-o assim. Ao ver tudo isso,
Wang o Tigre sentiu-se muito afastado e muito diferente de todos
aqueles homens e murmurou de si para si que eram indivíduos vis e
bestiais e que ele se encontrava solitário nas profundidades do seu ser.
Foi sentar-se sozinho no seu quarto, de muito mau humor, e gritava
pelo menor motivo se alguém se aproximava dele.
Então Wang o Tigre não pôde impedir-se de aprovar uma tão boa
manha e com espanto e admiração exclamou:
223
chefe e chefe de toda a região que mantinha sob o seu domínio. Sou
eu agora o chefe e acrescento este país ao domínio que a Norte já possuo. É
para as minhas mãos que terão de vir agora os réditos e eu pedir-lhe-ei todos
os meses uma certa quantia fixa, além de uma parte dos réditos.
Estamos nas suas mãos. Dê-nos apenas um mês ou dois, para nos
refazermos...Depois, esperou um momento e continuou com muita
amargura:Que nos importa quem nos governe desde que tenhamos paz,
possamos prosseguir os nossos negócios, ganhar a nossa vida e alimentar os
nossos filhos ? Juro-lhe que eu e os meus concidadãos estamos dispostos a
pagar-lhe tudo o que for razoável, desde que seja bastante forte para afastar
os outros senhores de guerra e vivamos em paz durante a nossa geração.
224
mercados daquela cidade encherem-se outra vez e em ver os víveres
expostos nos cestos dos vendedores alinhados, ao longo das ruas ou nos
balcões, e julgava ver homens e mulheres engordarem de dia para dia e os
rostos perderem a sua cor pardacenta e lívida para retomarem as cores claras
e douradas da saúde. Durante todo o Inverno, Wang o Tigre manteve-se
naquela cidade, apurando os seus réditos e reorganizando os seus interesses e
alegrou-se quando começou a ver nascer meninos e mulheres amamentarem
os filhos. Sentia, ao vê-lo, despertar-se-lhe no coração um sentimento profundo
que não compreendia e apossou-se dele o desejo de voltar e perguntou de si
para si, pela primeira vez, o que seria feito das suas mulheres. E projectou
regressar a casa no fim do ano.
15-w. L.
223
Wang o Tigre nunca vira. Eram de excelente aço sem rugosidades
nem buracos de espécie alguma, e tão bem polidas que deviam ser obra de
um hábil ferreiro. Estas peças de artilharia eram pesadas, tão pesadas que só
para as levantar eram precisos vinte homens empregando toda a sua energia.
Tais canhões excitavam muito a curiosidade de Wang o Tigre e ele
tinha desejo de ver como os disparavam, mas ninguém sabia como proceder, e
também não se podiam encontrar balas para eles. Mas acabaram por descobrir
num velho armazém duas bolas redondas de ferro, e ocorreu a Wang o Tigre a
ideia de que eram destinadas às peças de artilharia. Encantado com a
descoberta, mandou trazer para o ar livre uma das peças que foi instalada
diante de um velho templo que tinha atrás um largo onde não havia casas. A
princípio, ninguém quis oferecer-se para experimentar o canhão, mas Wang o
Tigre ofereceu uma grande recompensa em dinheiro, e por fim apresentou-se o
capitão que traíra a cidade, desejoso da recompensa e de conciliar as boas
graças do seu chefe. Vira outrora fazer fogo com peças de artilharia, e dispôs
tudo como convinha e muito habilmente atou um archote na ponta de uma
longa vara e chegou fogo ao canhão de longe. Quando se viu começar a
fumarada, todos os assistentes correram à desfilada até respeitosa distância e
se puseram de longe à espera. O canhão disparou com um fragor de trovão,
que fez tremer a terra e rugir os céus, o fumo e o fogo saltaram, de tal modo
que até Wang o Tigre se sentiu abalado e que por instantes o seu coração
perturbado deixou de pulsar. Quando aquilo acabou, toda a gente foi ver e no
sítio onde antes se encontrava o velho templo havia agora um montão de
ruínas e poeira. Então Wang o Tigre, perante um brinquedo tão divertido e tão
bela arma de guerra como aquela peça de artilharia, foi tomado de um acesso
de alegria e exclamou:
Mas por que motivo o seu antigo comandante não se serviu dela
contra nós?
226
229
Mas a outra mulher não pôde resistir ao desejo de fazer valer
que procurara um rapaz, porque a mulher letrada tivera uma rapariga.
Erguendo-se portanto também, apressou-so a dizer, embora raras vezes
falasse por causa dos seus dentes escuros e das brechas nos sítios onde
lhe faltavam, e mantendo, por isso, os lábios cerrados-:
Também não sabia que dizer àquelas duas mulheres, num tal
momento, visto que as suas conversas se referiam sempre às coisas de
guerra; limitou-se portanto a sorrir um pouco fixamente, enquanto os
soldados que o acompanhavam soltavam gritos de admiração diante do
filho do seu general. E quando ele ouviu aquelas exclamações, sentiu
um tal prazer que murmurou:
230
não estava agora dependente dos filhos dos irmãos, porque tinha um
filho para prolongar a sua vida depois dele e para aumentar os seus domínios
de guerra. Ocorreu-lhe depois outro pensamento e foi que tinha também uma
filha. Passou então um breve momento a perguntar-se o que faria dela, e
deteve-se diante da gelosia de uma janela, a torcer os pêlos da barba,
pensando na sua filha de modo reticente, porque era uma rapariga e por fim
disse-se, não sem alguma dúvida:
A partir desse dia, Wang o Tigre viu uma nova finalidade naquelas
suas duas mulheres, pois imaginava que lhe nasceriam delas ainda outros
filhos, filhos fiéis e leais, que nunca o trairiam como seria capaz de fazer outro
que não tivesse nas veias o seu próprio sangue. E não voltou a usar daquelas
duas mulheres para consolo do seu coração e da sua carne. O seu coração fora
consolado ao primeiro aspecto do seu filho, e da sua carne esperava ver ainda
nascerem-lhe filhos, valentes soldados que se manteriam ao seu lado e o
secundariam quando se tivesse tornado velho e fraco. E assim, portanto, ia
regularmente até junto das suas duas esposas, e não mais a uma do que a
outra, apesar de toda a secreta emulação que elas punham em obter o seu
favor, e sentia-se contente com cada uma da sua maneira, porque não
procurava junto de ambas senão uma e a mesma coisa, e não esperava mais
de uma que da outra. Já o não perturbava, agora que tinha o filho, não viver
com uma mulher o autêntico amor.
231
esposa absorvera o resto do ópio que ficara do marido e assim o
seguira de seu próprio alvedrio. Ninguém o sentiu, porque era velha e doente,
nunca saía dos seus aposentos e Wang o Tigre nunca a vira. Encomendou
portanto outro caixão e quando tudo ficou prestes, mandou os dois defuntos
com três criados para os transportarem à sua terra, na província vizinha.
Depois, Wang o Tigre dirigiu um relatório nos termos adequados aos seus
superiores, que deviam ser informados do caso, e enviou a missiva pelo seu
fiel Beiço Rachado, acompanhado por alguns soldados. E Wang o Tigre disse
em segredo ao homem de confiança:
232
CAPÍTULO XXII
ORA Wang o Tigre tinha sempre em mente que lhe era necessário
aumentar o seu território e melhorar a sua situação em favor do filho, e eis por
que o dizia muitas vezes a si próprio- e procurava imaginar como o alcançaria,
onde poderia insinuar-se e alcançar vitória, no fim de qualquer grande guerra,
como poderia avançar para o sul do rio e apoderar-se de um ou dois
departamentos vizinhos, num ano de fome em que os habitantes vivessem
atormentados pela seca e pela inundação. Mas aconteceu que, durante alguns
anos, não houve grande guerra geral, e que no governo central se sucederam
homens fracos e ineptos, e se é certo que não havia ainda paz assegurada,
também não houve grande explosão de guerra, nem momento de que um
grande senhor da guerra pudesse aproveitar-se, sem se aventurar
excessivamente.
233
passariam, e olhando o filho via nele, não o rapazinho que ele
era, mas o jovem guerreiro que desejava que ele fosse, e sem se dar
conta disso, contrariava o filho de muitas maneiras.
234
andavam em manobras. E quando Wang o Tigre lhe perguntou
o que estava a ver, indicou com o dedo um rapazito nu e queimado pelo
Sol que, num campo próximo, escarranchado no dorso de um búfalo,
contemplava o imponente espectáculo dos soldados, e o rapaz
respondeu:
235
E quase fora de si, torcia-se na cadeira.
A minha mãe estava a cortar uma blusa para a minha irmã mais
nova num tecido vermelho com desenhos de flores, e a minha irmã mais velha,
cuja mãe não é a minha, estava a ler para me mostrar que sabia ler. Gosto
mais dela do que das minhas duas outras irmãs, porque me compreende
quando lhe falo e não ri a
236
propósito de tudo e de nada como elas. Tem uns olhos muito grandes
e quando se penteia, os cabelos descem-lhe até às pernas. Mas nunca fica
muito tempo a ler. É turbulenta e gosta de conversar.
Esta resposta foi grata a Wang o Tigre, que disse com prazer: As
mulheres são todas assim. Têm de estar sempre a conversar a propósito seja
do que for.
237
espetada nos cabelos, uma flor vermelha de romeira ou um
jasmim branco muito odorífero e porque gostava acima de tudo de usar
na trança um cacho de flores de canafístula, e Wang o Tigre não podia
suportar as flores de canafístula por causa do seu perfume suave mas
penetrante, detestando essa espécie de perfume. Achava-a também
excessivamente ruidosa na sua alegria, caprichosa e obstinada, com
todos os defeitos que detestava nas mulheres, e detestava acima de
tudo a alegria que iluminava os olhos do filho e o sorriso que se lhe
abria nos lábios, quando a irmã chegava. Só ela tinha o dom de lhe dar
alegria e de correr e brincar com ele no pátio.
238
filho e era assim que velava por que cada hora da existência do
menino, excepto as passadas a comer e a dormir, fosse ocupada por uma ou
outra lição. Obrigava-o a levantar-se cedo e a praticar os seus exercícios de
guerra com os homens de confiança e quando acabara e comera a sua
primeira refeição, passava a manhã com os seus livros e depois de ter comido
outra vez, o novo preceptor tomava conta dele durante a tarde e ensinava-lhe
toda a espécie de coisas.
Ora este novo preceptor era um jovem tal como Wang o Tigre ainda
não vira. Usava uma farda militar ocidental e óculos no nariz, era robusto e
desempenado. Sabia correr e saltar e conhecia a esgrima; sabia disparar toda
a espécie de armas de guerra estrangeiras Umas, segurava-as na mão e elas
estalavam., lançando chamas, e outras, disparava-as como uma espingarda,
premindo o gatilho, e havia ainda muitas de outros géneros. Wang o Tigre
ficava sentado junto deles, enquanto o filho aprendia todos aqueles processos
de guerra, e posto o não pudesse confessar, ficava conhecendo muitas coisas
que jamais vira nem ouvira dizer, e dava-se conta da sua ingenuidade ao
sentir-se orgulhoso daquelas duas peças de artilharia estrangeiras, as únicas
que possuía. Sim, via que sabia muito pouco, mesmo em matéria de guerra,
dado que havia mais a conhecer do que imaginara. Ficava muitas vezes pela
noite além a conversar com o novo preceptor do filho, aprendia toda a sorte de
maneiras engenhosas de matar, a morte mandada pelos ares que se abate
sobre os homens, e a morte que vagueia nas entranhas do mar e delas surge
subitamente, e a morte que voa a mais léguas de distância do que alcança a
vista dos homens, e que de súbito cai e explode sobre o inimigo. Wang o Tigre
escutava tudo aquilo maravilhado e dizia:
239
què eles não passam de um grupo de indolentes, que só gostam de
comer e beber. Se comprar novos instrumentos de guerra e se fixar as
horas do dia em que eles se exercitarão para aprenderem a servir-se deles,
verei se é possível habilitá-los.
240
E Wang o Tigre esperou, mas fulgor algum apareceu nos olhos do
rapaz, que se absteve de saltar para o cavalo, empunhar as rédeas e
experimentar a sela, parecendo esperar apenas autorização de se retirar.
Que pode ele então desejar mais? Tem tudo quanto eu sonhava na
sua idade e até mais do que eu sonhara. Sim, que não teria eu dado para ter
um preceptor tão instruído como o seu, e para ter uma bela espingarda como a
dele e agora um cavalinho negro impetuoso, com uma sela e umas rédeas
vermelhas e um chicote vermelho de cabo de prata!»
241
CAPÍTULO XXIII
A cada Primavera que acabava por suceder enfim ao Inverno
interminável, Wang o Tigre sentia em si o novo despertar da sua ambição por
guerras maiores, e a cada Primavera olhava em torno de si para ver o que
podia fazer para se engrandecer. Enviava espiões em reconhecimento, para
tentar averiguar o aspecto que tomariam as guerras gerais desse ano e como
poderia adaptar uma guerra particular à grande, e esperava, repetia-se ele,
que os espiões estivessem de volta e que a estação aquecesse bastante e que
a hora chegasse em que sentisse que o destino o chamava. Mas a verdade era
que Wang o Tigre ultrapassara a juventude e agora que tinha o filho estava
mais tranquilo e satisfeito e perdera a sua antiga ansiedade impaciente pela
guerra. A cada Primavera se repetia que devia, por amor mesmo do filho, partir
em expedição e realizar o que projectava fazer ao longo da sua vida, mas
parecia haver qualquer forte razão imediata que o levava a adiar para o ano
seguinte o seu projecto. Não que houvesse grandes guerras gerais durante a
juventude do filho. Havia apenas em todo o país uma porção de pequenos
senhores de guerra, cada um dos quais defendia o seu minúsculo domínio
pessoal, e nem um só grande homem que se revelasse superior a todos os
outros. Por essa razão também, Wang o Tigre julgava mais seguro esperar um
ano ainda e quando nesse novo ano também passava a Primavera, adiava para
o seguinte, e estava certo de que, um dia ou outro, quando soasse a hora do
destino, estaria ainda à altura de qualquer vitória que pretendesse.
243
solicitar a influência de Wang o Tigre, seu irmão, junto da autoridade
provincial, para obter que o jovem fosse posto em liberdade. Wang o Tigre
escutou a história, e viu aí excelente ocasião de experimentar o seu poder na
capital provincial e o seu valimento junto do general da província. Adiou, por
consequência, para um ano depois, a guerra em que pensara, e decidiu fazer o
que os irmãos lhe pediam, e não sem certo orgulho por eles, mais velhos,
terem vindo pedir um favor ao mais novo, e não sem algum desprezo derivado
do facto de um dos filhos deles ter sido metido na prisão, coisa que nunca
poderia acontecer ao seu.
Este filho de Wang o Proprietário andava então nos seus vinte e oito
anos e não estava casado, nem sequer noivo. A razão de tão singular
circunstância era que na adolescência frequentara durante um ou dois anos
uma escola de novo tipo, fundada na cidade, e aprendera muitas coisas, e uma
das coisas que aí aprendeu foi que era para um jovem uma servidão abjecta e
coisa fora de moda deixar-se casar pelos seus pais com uma rapariga escolhida
por eles, e que os rapazes deviam ser eles próprios a escolher as meninas com
quem se deviam casar, meninas que eles conheciam, com quem tinham
conversado e pelas quais sentissem verdadeiro amor. E portanto, quando Wang
o Proprietário fez a recapitulação de todas as raparigas em idade casadoira
para fixar numa delas a escolha para o seu filho mais velho, o dito filho
mostrou-se muito rebelde. Fez uma cena, amuou e declarou que ele próprio
escolheria a sua esposa.
E como é que uma menina decente seria capaz de se deixar ver por
ti de bastante perto para poderes conversar com ela e saberes se lhe tens
amor ou não? E quem é mais capaz de ta escolher do que teus pais que te
fizeram e te conhecem todas as tendências de espírito e de carácter?
Nem a senhora nem meu pai sabem nada além dos velhos costumes
já postos de lado, e ignoram portanto que no Sul todas as pessoas ricas e
instruídas deixam os seus filhos escolher por si! (E quando viu seu pai e sua
mãe entreolharem-se e o pai limpar a testa com a manga e a mãe franzir os
lábios, exclamou ainda): Então casem-me, eu sairei de casa e não voltarão a
ver-me!
Ora a verdade era que o rapaz não encontrara rapariga por quem se
tivesse apaixonado e da qual pudesse fazer sua esposa, porque as mulheres
que conhecera eram daquelas que se podem comprar facilmente, mas não
quis confessá-lo, e limitou-se a franzir os lábios vermelhos e a contemplar com
ar amuado as lindas unhas dos dedos; mas tinha o ar tão violento e obstinado
que dessa vez e de todas as outras que os pais falaram do caso, acabaram por
acalmá-lo dizendo:
Mas depois dessas conversas, logo que ele saía, pois não se
mantinha muito tempo no mesmo sítio, a esposa olhava o marido com ar de
censura e dizia-lhe:
Foi o senhor quem lhe ensinou essas coisas, com as suas maneiras
dissolutas, e foi com o seu próprio pai que ele aprendeu
245
a satisfazer-se com tais raparigas, em vez de preferir uma mulher
honesta.
Enquanto assim dizia, passava a manga pelos olhos e limpava-os um
após outro, considerando-se ultrajada. Quanto a Wang o Proprietário, sentia-se
inquieto. Sabia que aqueles brandos começos podiam originar tempestade,
pois quanto mais a dama envelhecia, mais se tornava virtuosa e de humor
difícil. Por isso levantou-se para se escapulir, dizendo, num tom muito
submisso:
Sabes como agora que já sinto os anos, não procedo como outrora, e
esforço-me por atender às tuas advertências. Se tiveres maneira de nos tirar
desta tormentosa situação, prometo-te seguir o teu conselho.
Vai lá dentro buscar qualquer coisa para a tua senhora, porque ela
está prestes a encolerizar-se. Leva-lhe o chá ou um dos seus livros de orações
ou qualquer outra coisa, e conta-lhe loas e diz que este ou aquele padre disse
dela isto ou aquilo!
246
enquanto comia, e ia buscar água para lhe banhar os pés e trazia-lhe
meias lavadas e pantufas. Era também a ela que confiava todos os seus
pesares e rancores, e o principal era o que tinha contra os rendeiros. Contava-
lhe todas as suas recriminações. Dizia-lhe:
Não creio que eles consigam fazer grande trapaça, o senhor é tão
inteligente! É o mais inteligente dos homens que eu conheço!
247
sozinha uma linda jovem. Ora, se ela fosse uma rapariga
vulgar e ele também um rapaz vulgar, ela deveria cobrir o rosto com a
manga do vestido e retirar-se o mais depressa possível. Mas ela não fez
nada disso. Olhou muito calmamente o filho de Wang o Proprietário,
olhou-o de frente e demoradamente, mas sem ar de sedução, e perante
aquele olhar calmo e directo, nada tímido, foram os olhos do rapaz que
primeiro se baixaram. Viu, como toda a gente podia tê-lo visto, que,
apesar de toda a sua audácia, era uma rapariga muito decente e uma
das que pertenciam já aos novos tempos. Usava os cabelos negros
curtos, não tinha os pés comprimidos e usava a saia comprida e sem
pregas, à maneira das novas raparigas, e como a Primavera estava a
acabar, a saia era feita de uma seda fina de cor castanha.
248
teve o efeito de uma taça de vinho que lhe chegassem aos lábios
sequiosos. Nada mais disse e foi jogar. Mas, enquanto jogava, mantinha-se
distraído, pois sentia as chamas envolver-lhe o coração e o fogo ardia nele.
Não tardou a excusar-se eapressou-se a voltar a casa e a fechar-se à chave no
seu quarto. Ali, sozinho, sentiu-se ligado àquela rapariga por todos os laços.
Era uma vergonha pensava que ela tivesse também, como ele, de sofrer a
tirania dos pais, e dizia de si para consigo que se recusaria a unir-se a ela de
outro modo que não fosse pelos livres meios de que homens e mulheres
usavam em tempos livres. Não, não queria nenhum intermediário, nem os pais,
nem sequer o seu amigo, irmão dela. Depois, com pressa febril, tirou da sua
estante os livros que lera e consultou-os para ver que género de cartas esses
heróis enviam às suas livres amorosas, e escreveu uma carta análoga.
Sim, escreveu àquela rapariga e assinou com o seu nome o que lhe
escrevia, e começou a carta pelas fórmulas de delicadeza adequadas. Mas
disse-lhe também que era um espírito livre e que via acontecer o mesmo com
ela, sendo ela portanto para ele como a luz do Sol, o colorido de uma flor de
peónia, o som da flauta, e acrescentava que, num instante, ela lhe arrancara o
coração do peito. Quando acabou de escrever a carta, mandou-a pelo criado
particular, e depois de a ter mandado ficou à espera da resposta em sua casa,
num estado tão febril que os pais não sabiam o que ele tinha. Como o criado
voltou a anunciar-lhe que a resposta viria mais tarde, o jovem viu-se obrigado
a continuar à espera, e enquanto esperava, maldizia aquela espera, detestava
toda a gente na casa, dava palmadas nos irmãos e nas irmãs mais pequenos
logo que lhe chegavam ao alcance; berrava contra os criados de tal modo que
a concubina do pai acabou por exclamar:
249
traseiras da casa da rapariga. Tinham ambos receio, e tanto um
como o outro se empenhavam em o não mostrar, e nesses apressados
encontros e em muitas cartas trocadas entre eles, à força de gorjetas aos
criados e disfarçando os seus nomes nas cartas, aquele amor tornou-se cada
vez mais ardente. E dado que nem homem nem rapariga jamais puderam
passar sem uma coisa que vivamente desejam, assim aconteceu então com
eles. Ao terceiro encontro, o jovem disse com todo o ardor:
E eu, pelo meu lado, vou prevenir meu pai de que me envenenarei
se não puder ser tua.
Pois quê, com esse valdevinos que passa o tempo em todas as casas
de prazer de má fama?
250
falava em enforcar-se, e Wang o Proprietário sentia-se
completamente desmoralizado.
Não quero dar atenção ao que dizem os velhos. Fujamos juntos para
qualquer parte. Quando o souberem, deixar-nos-ão casar, por vergonha. Sei
que o meu pai me adora, porque sou sua filha única e a minha mãe morreu, e
tu, pelo teu lado, és o filho mais velho de teu pai.
Olhem por ela. Se a deixarem sozinha e se ela por acaso fizer o que
diz, respondereis pela sua morte.
E afastou-se como se não ouvisse os gritos e as lamentações da
filha, e as criadas, receando tornarem-se responsáveis, não se atreveram a
deixá-la, o que fez com que ela tivesse de resignar-se a viver.
252
autoridade da província, para que venha uma ordem de cima ao
nosso governador e este ordene ao comissário de polícia que ponha o vosso
filho em liberdade. E nesse momento será ocasião de empregar um pouco de
dinheiro aqui e ali, para ajudar as coisas.
Ora, Wang o Tigre, além do dever que tinha de ajudar os irmãos, viu
ser aquela uma óptima ocasião de experimentar o seu poder e a sua
influência. Escreveu por conseguinte ao general da província a humilde carta
que convinha, preparou presentes e remeteu tudo pelo seu homem de
confiança, acompanhado por uma escolta, para o preservar dos bandidos.
Aquele general, quando recebeu os presentes e leu a carta, reflectiu um
momento e pareceu-lhe estar ali um meio útil de conciliar o apoio de Wang o
Tigre, no caso de uma guerra, afigurando-se-lhe bom negócio assegurar-se tal
favor mandando soltar da prisão um jovem. Quanto ao comissário de polícia,
que o era numa pequena cidade, era personalidade demasiado mesquinha
para que isso o afectasse. E assim mandou a nota que lhe pedia Wang o Tigre,
avisando o governador da província, e este enviou uma ordem imperativa ao
prefeito do departamento, que, por seu turno, enviou outra ordem imperativa
ao da cidade onde ficava a Casa dos Wang.
253
estava de novo em liberdade e o seu amor um tanto acalmado com
a prisão.
A rapariga, essa estava mais obstinada do que nunca e foi queixar-se
outra vez ao pai. Ele estava um pouco mais bem disposto, agora que
compreendia como a família dos Wang era poderosa, que influente senhor de
guerra era um dos três irmãos e como Wang o Negociante tinha dinheiro.
Enviou um intermediário a Wang o Proprietário, dizendo-lhe:
Mas, para Wang o Tigre, todo aquele caso não tinha grande
importância, a não ser nisto: era agora um homem poderoso naquela província
e sabia que o general o tinha por alguém cujo favor vale a pena conciliar, e o
coração encheu-se-lhe de orgulho. Terminada a questão, já à Primavera
sucedera o Estio e Wang o Tigre disse consigo que visto ter tido uma tão
grande preocupação e o ano estar já adiantado, convinha ainda dessa vez
adiar a expedição para o ano seguinte. Resignou-se a isso, tanto mais
facilmente por, no princípio daquele Verão, os seus espiões terem começado a
vir fazer-lhe os seus relatos, dizendo que corria o boato de uma guerra
qualquer lá muito para o Sul, mas não se sabia ainda que guerra era, nem
quem a dirigia. Quando Wang o Tigre ouviu isso, compreendeu plenamente o
valor do seu exército para o general da província e por que motivo este
procurava conciliar os seus favores. E esperou, portanto, outra Primavera para
ver o que ela traria.
E como sempre fazia, Wang o Tigre passava todo o seu tempo com o
filho. O rapaz cumpria gravemente os seus deveres e Wang o Tigre sentia
prazer em seguir com os olhos o jovem, nas suas maneiras silenciosas. Ficava-
se muitas vezes a olhá-lo, gostando de fitar-lhe o rosto sério, meio infantil,
meio juvenil. E assim, quando estava a estudar o rosto do filho, inclinado sobre
qualquer livro ou sobre o seu trabalho, Wang o Tigre sentia-se surpreendido
com a expressão tão familiar que encontrava nas faces angulosas do rapaz e
na energia da boca. Não era uma boca bonita, mas era bastante firme e muito
decidida para rapaz tão novo ainda.
254
no leito de morte, e que o rosto vermelho do rapaz fosse muito
diferente do rosto pálido da morta. Mas mais profundamente gravado em Wang
o Tigre do que qualquer nítida recordação, um sentimento lhe dizia que o seu
filho tinha as atitudes lentas e o ar calado de sua mãe e que a gravidade desta
se encontrava nos lábios e nos olhos do seu filho. E quando Wang o Tigre se
apercebeu, no filho, daquela vaga expressão familiar, pareceu-lhe que o seu
coração se reacendia mais com isso, que amava o filho mais profundamente
ainda e que, por uma razão que não compreendia, o tinha mais estreitamente
ainda ligado a si.
255
CAPÍTULO XXIV
Não posso dizer que ele não faz progressos, pois faz conforme e
exactamente o que se lhe explica, mas nunca vai além disso. É como se no que
faz não pusesse nada de si.
257
Filho, faz isso com entusiasmo, se queres ser-me agradável.
258
l
intenção, porque estava de algum modo desapontado sem bem
saber porquê, exclamou:
Mas, pelo menos até que ele pudesse ver como se orientaria aquela
nova guerra e como poderia adaptar-se a ela, Wang o Tigre não empreendia
guerras por sua conta. Conservava os seus rendimentos e comprava os
apetrechos de guerra de que carecia. E já não precisava de pedir ao seu irmão
Wang o Negociante que o ajudasse, porque tinha agora um porto próprio na foz
do rio que possuía e alugava navios e importava de contrabando, muito
facilmente, as suas armas, dos países estrangeiros. Se havia personalidades
acima dele que disso tinham conhecimento, calavam-se, por saberem que ele
era um general do seu partido e -que cada espingarda que possuía era uma arma
a favor deles, na luta que devia chegar um dia ou outro, dado que a paz em parte
alguma pode durar eternamente.
Ora, durante esses quinze anos ou mais em que Wang o Tigre fora um
grande senhor de guerra, a sorte favorecera-o de muitas maneiras, a principal das
quais era não ter havido grandes fomes
259
nas suas regiões. Houvera pequenas fomes num lugar ou
noutro, pois assim deve necessariamente acontecer sob um céu cruel,
mas não houvera fome em todas as regiões ao mesmo tempo, de
maneira que, se uma parte estava com fome, não havia necessidade de
a apertar muito, podia lançar impostos noutro lado, onde os habitantes
não tinham fome ou a sofriam menos cruel. Isso o fazia ele com prazer,
porque era homem justo e não tomava de boa vontade a moribundos o
pouco de que dispõem, como fazem certos senhores de guerra.
260
guerra, terrível fome se abateu sobre todas as partes do seu
território e se espalhou de um extremo ao outro como uma cruel epidemia.
Era essa para Wang o Tigre uma prova das mais penosas, que este
ainda não suportara. Estava, aliás, em pior situação do que os outros, porque
enquanto esses só têm a sua própria família a sustentar, ele tinha de prover às
necessidades de uma imensa horda composta unicamente de homens muito
ignorantes, inclinados a queixar-se, e que só se sentiam satisfeitos se estavam
bem alimentados e bem pagos, e que eram fiéis apenas enquanto recebiam o
que consideravam ser-lhe devido. Os rendimentos deixaram pouco a pouco de
vir, primeiro de um lugar, depois de outro, até que cessaram de todo, e por
fim, como as águas tinham ficado a cobrir os campos durante o Verão e como,
quando veio o Outono, não houve colheita, faltaram no Inverno seguinte os
rendimentos, excepto o do ópio, de que se fazia naquelas regiões contrabando,
mas até mesmo esse rendimento estava muito diminuído, dado que os
habitantes não podiam comprar e que por isso os contrabandistas levavam
então as suas
261
mercadorias para outros pontos. Os próprios impostos sobre o sal
cessaram, porque as águas inundaram as minas, e os «potiers» ceramistas já
não faziam odres para vinho, visto que nesse ano não houvera vinho novo.
Wang o Tigre estava numa grande aflição e pela primeira vez depois
de tantos anos em que era senhor de guerra e exercia a sua autoridade, no
último mês desse ano foi-lhe impossível pagar aos seus soldados.
262
de esperança. E inspiravam alguma compaixão a Wang o Tigre que
sofreava o cavalo para não lhe passar por cima. Esperava que um dos seus
guardas viesse agarrar a miserável criatura e pô-la de lado, e Wang o Tigre
passava sem olhar para trás. Algumas vezes o homem ficava estendido no
lugar para onde o tinham lançado, mas outras vezes soltava um uivo selvagem
e, com um salto, lançava-se à água, pondo fim dessa maneira a si e ao seu
tormento.
Mas, no entanto, suponho que é tão duro para eles morrer como se
fossem governantes e homens como nós.
263
CAPÍTULO XXV
Durante aquela viagem, Wang o Tigre lamentou muitas vezes o ter
que levar o filho consigo. Mas, na verdade, nunca ousaria deixá-lo, com receio
das más disposições de alguns homens. Apesar disso, se receava pelo filho se
o deixasse, receava quase outro tanto levá-lo a casa dos irmãos. Receava a
moleza dos jovens e receava o grosseiro amor do dinheiro característico dos
comerciantes. Deu, portanto, ordem ao seu fiel Beiço Rachado para não
abandonar sequer por um instante o seu jovem senhor, e além disso indicou
dez velhos soldados veteranos para se manterem dia e noite junto do filho, e
preveniu este de que teria de não interromper os estudos. Mas não se atreveu
a dizer-lhe: «Meu filho, não deves ir para junto das mulheres»pois não sabia se
o rapaz tinha ou não pensado nisso. Durante os anos em que Wang o Tigre
tivera o filho junto de si, nos seus aposentos pessoais, não convivera ali com
mulheres, nem com criadas, nem com escravas, nem com cortesãs, e o jovem
não conhecia de modo algum mulheres, com excepção da sua mãe e de suas
irmãs, e nos últimos anos Wang o Tigre nem sequer o deixava ir sozinho fazer
as raras visitas que devia à mãe, mandando acompanhá-lo por um guarda.
Desse modo, Wang o Tigre protegera o filho, sentindo mais ciúmes daquele
filho do que outros homens têm das mulheres a quem amam.
265
até à Mongólia um homem que trouxera de lá dois cavalos
exactamente semelhantes, excepto em que um era um pouco mais
pequeno do que o outro, e ambos robustos e de crina castanha, e os
olhos brancos e de grande mobilidade. E era uma música suave aos
ouvidos de Wang o Tigre ouvir as pessoas exclamarem na rua, quando
paravam a ver passar os soldados:
266
Esta dissensão causava ao jovem marido frequentes aborrecimentos,
e ele não tinha a possibilidade de consolar-se recorrendo às suas antigas
distracções, porque a sua jovem esposa o vigiava, conhecia todas as casas de
prazer e era tão atrevida que não -receava segui- lo a rua e exclamava que iria
onde ele fosse, que nos nossos dias as mulheres já não ficavam fechadas em
casa e que os homens e as mulheres eram iguais. com tais ditos, divertia de
tal maneira a gente que passava nas ruas que, por simples pudor, o jovem
marido renunciou às suas antigas distracções, pois a considerava
suficientemente atrevida para o seguir por toda a parte. Aquela mulher era tão
ciumenta que quis romper com todos os hábitos e todos os desejos naturais
que o marido tinha. Ele não podia sequer olhar uma jovem escrava e se tinha a
pouca sorte de se aproximar de um lupanar com os amigos, ela não deixava de
o acolher no regresso a casa com gritos e soluços tais que era um escândalo
em casa. Uma vez, um amigo a quem ele se queixava deu-lhe este conselho:
Ora, naquela casa de seu pai, onde os seus dois irmãos viviam ainda
tão facilmente e tão bem, era como se não reinasse fome na terra e como se
os campos de semeadura não estivessem cobertos por toalhas de água, e
como se ninguém tivesse privações em parte alguma. Mas como Wang o
Proprietário e Wang o Negociante sabiam muito bem o que se passava fora da
sua calma residência, quando Wang o Tigre lhes expôs as suas dificuldades e
por que viera, e quando acabou por dizer: «É do interesse de ambos salvar-me
deste perigo, porque o meu poder os salva a vocês, também»eles sabiam
muito bem que ele dizia a verdade.
É certo que nos anos em que o Wang Mais Velho fora proprietário e
enquanto vendia a terra, nem sempre fora um patrão cómodo. Para homem tão
fraco e indolente como era, sabia muito bem questionar com o pessoal e até
injuriá-lo. O seu ódio pela terra estendia-se aos homens que a cultivavam para
ele e
268
odiava-os, não só por causa da terra, mas também porque estava
frequentemente muito atrapalhado de dinheiro para atender às necessidades
da sua casa e às suas próprias, e era duplamente amargo porque se lhe
afigurava que os seus feitores retinham de caso pensado o que lhe era devido
e lhe fora transmitido pelo pai E as coisas chegaram a ponto tal que, quando
os seus feitores o viam vir, erguiam os olhos ao céu e diziam entre dentes:
«Vamos ter por certo chuva, visto que os maus génios andam ca por fora!» E
muitas vezes insultavam-no, dizendo:
«Não sois um bom filho de vosso pai, porque ele era um homem
compassivo depois de enriquecer, e, até mesmo na velhice, lembrava-se de
que outrora penara como nós, e nunca nos apertava por causa do aluguer,
nem nos reclamava o grão em tempos de fome. Mas nunca sofrestes e a
misericórdia não tem domicílio no vosso coração!»
Assim tinha surgido o ódio contra ele, que se tornou manifesto nesse
ano tão duro. E de noite, quando o portão estava aferrolhado, havia quem ali
viesse bater e deitar-se nos degraus, exclamando:
«Nós estamos a morrer de fome e vocês têm ainda arroz para comer
e para fazer vinho1» E outros gritavam, ao passarem diante da porta, até
mesmo em pleno dia:«Oh, se pudéssemos matar estes ricos e retomar-lhes o
que eles nos roubaram!»
269
Em tempos maus como estes, devia vir para a cidade e habitar na
Casa Grande.
Não, não posso. Não tenho medo e há aqueles que contam comigo
para viver.
Mas como o frio do Inverno se ia agravando, tinha por vezes medo,
porque havia homens que eram levados ao desespero pela fome e pelo vento
feroz que soprava sobre as águas geladas onde eles viviam em barcos ou
seguros como podiam nos cimos das árvores, e irritavam-se por Flor de Pereira
sustentar ainda a idiota e o corcunda e murmuravam, até em frente dela,
quando lhes dava de comer:
270
a mulher do feitor e um trabalhador dos campos ao outro montículo
onde estavam os túmulos da família, e ali, num sítio um pouco baixo, mas
ainda dentro do perímetro tumular, enterraram a idiota.
271
Por meio destas últimas palavras, dirigia uma discreta censura
a Wang o Proprietário, porque a soma que este dera, quando a mãe do
pequeno e ele decidiram destinar o filho a essa vida, era demasiado
mesquinha, mas ele, se compreendeu a censura, não deu nada a
perceber, e limitou-se a sentar-se para esperar os irmãos, visto que
estava muito pesado e lhe era penoso ficar em pé. Mas Wang o Tigre
continuava a fitar o corcundinha e dirigiu-lhe outra vez a palavra:
E tu preferes, na verdade, ir para o templo a ir para outra
parte ?
Sim, visto que não posso ser diferente do que sou. (E após
uma pausa, continuou): uma veste de padre talvez me esconda a
corcunda.
Não sabes o que dizes! Eu, pela minha parte, sei, pois vivi lá
adolescente, que é uma existência muito odiosa e simplória, e aspirava
constantemente a sair de lá!
Trago aqui um ovo muito fresco da única galinha que me resta, para
si!
Não, deve-o comer a senhora porque precisa mais dele do que eu.
Não tenho licença de o comer, e, se a tivesse, estou bastante nutrida para o
que é necessário Mas mesmo que o não estivesse, não poderia comê-lo, por
causa dos votos!
273
de então a sua existência, e Wang o Tigre nunca mais tornou a
vê-la.
274
é o meu dever quando os educo como devem sê-lo os filhos de um
senhor!
Não lhe foi possível adiantar mais, porque uma tosse rouca e
constante, que nesses anos o importunava, lhe subiu nesse momento do peito
e lhe abafou a voz. Emudecido, viu-se reduzido a mostrar a cólera no gesto,
com os olhos mais cavados no rosto largo, enquanto um vivo rubor lhe
incendiava o pescoço. Mas Wang o Negociante teve um pequeno sorriso, ao ver
que o irmão compreendera o intento da censura, e não achou necessário
acrescentar mais nada.
E foi estendendo o pincel a Wang o Tigre, de tal modo que este não
pôde fazer outra coisa senão pegar nele e apor o seu nome no fim do contrato.
Depois, Wang o Negociante acrescentou ainda, sempre com o seu sorriso:
275
também. Ao considerar o nobre aspecto do filho assim
inclinado, Wang o Tigre sentiu subir nele um orgulho suave e forte.
Afigurava-se-lhe que os espíritos dos antepassados se reuniam ali
próximo para ver aquele tão belo descendente da sua raça e sentiu que
estava cumprindo o seu dever para com a família. Quando tudo acabou
e o incenso se consumiu até ao fim na caçoleta, Wang o Tigre montou a
cavalo, o filho imitou-o, e, acompanhados pela escolta, regressaram por
terreno seco à sua própria região.
276
CAPÍTULO XXVI
277
O preceptor fez um aceno afirmativo com a cabeça. Wang o Tigre
olhou para o filho com pesar e finalmente perguntou:
Ora, era muito raro que Wang o Tigre perguntasse ao filho o que
queria, porque ele próprio sabia muito bem aquilo para que o destinava, mas
tinha alguma esperança de que o rapaz se recusasse a ir, pois isso lhe serviria
a ele de desculpa. Mas o rapaz, que estava a olhar para um renque de lírios
brancos que cresciam à sombra de um «zimbro», ergueu vivamente os olhos e
disse:
Mas, vejamos, para que escola poderias tu ir, a não ser para uma
escola de guerra, e para que te serviriam todos os livros que estudaste, tu que
deves ser um senhor de guerra ?
Mas à noite, quando ficou sozinho no seu quarto, Wang o Tigre pôs-
se a pensar no filho que ia partir para tão longe dele. Invadiu-o uma espécie de
terror, ao ver o que poderia acontecer ao filho, em países onde os homens
eram tão enganadores e tãotraidores, e ordenou à sentinela que chamasse o
seu fiel Beiço Rachado. Quando este apareceu, Wang o Tigre voltou-se para
olhar o medonho rosto dedicado e disse, num tom meio súplice e não como um
senhor fala ao servo:
Aquele meu filho, meu único filho, vai partir amanhã para uma
escola de guerra, e o preceptor acompanha-o. Mas como posso eu saber os
secretos intentos de um homem que passou tantos anos em países estranhos?
Os olhos escondem-se-lhe por detrás dos óculos e os lábios por detrás do
bigode, e parece-me um desconhecido quando penso que o meu filho deve
confiar-se-lhe inteiramente. Tu vais portanto seguir com o meu filho porque a ti
conheço-te eu bem, e a ninguém conheço como te conheço a ti, que ficaste
comigo desde o tempo em que eu vivia pobre e solitário e eras já então o que
és agora, depois que me tornei rico e poderoso. O meu filho é o maior bem que
possuo. Tu vais velar por ele em meu lugar.
Ora, coisa singular, quando Wang o Tigre disse aquilo, Beiço Rachado
tomou a palavra com energia. E tamanha era a sua enérgica sinceridade que
as palavras lhe sibilavam por entre os dentes: \
Meu general, nesta única coisa não lhe obedecerei eu; fico junto de
si. Se o jovem general deve partir, eu escolherei cinquenta homens de escol, já
de certa idade, e ensinar-lhes-ei o seu dever para com ele, mas eu ficarei onde
estou. Não sabe até que ponto lhe é necessário ter junto de si um homem
dedicado, porque, num exército tão grande como o seu, há sempre
descontentamentos e vontades venenosas, um que se mostra indignado e
outro que fala de um general melhor, e correm agora boatos esquisitos de uma
estranha nova guerra que se prepara lá para o Sul.
279
É uma sorte ter o sabre e o pescoço aqui tão perto um do
outro...
280
comeu nada, nada pensou enquanto o último dos homens que
mandara com o filho como mensageiros não chegou a fazer-lhe o seu relato.
Voltavam de tantas em tantas horas de lugares diferentes, escalados no
caminho e cada um trazia o seu relato. Um-dizia:
E que podia ter ele que dizer a um ser assim ?perguntou Wang o
Tigre, estupefacto.
Soubemos que uma estranha guerra está a subir do Sul para o Norte,
guerra que provém de uma espécie de revolta ou revolução e não uma boa
guerra habitual, entre senhores de guerra.
Então Wang o Tigre, que nesses dias estava de muito mau humor,
respondeu com certo tom depreciativo:
Isso não é novo: Quando eu era pequeno, ouvi falar de uma guerra
de revolução e fui-me bater nela, supondo que realizava um nobre feito. Mas,
apesar de tudo, não foi mais do que uma como as outras. Enquanto os
senhores de guerra lutaram contra
281
a dinastia, estiveram unidos, mas quando alcançaram vitória e
o trono foi derrubado, separaram-se e de novo surgiu a cizânia entre
eles.
282
excessos e principalmente porque assim se lhe frustravam os
rendimentos das mercadorias em trânsito, de que precisava muito para se
libertar de Wang o Negociante, e ficou tão furioso que sentiu necessidade de
matar alguém. Começou a berrar pela casa e gritou aos seus capitães ordem
de mandarem os seus soldados repartidos por grupos, numa expedição através
de toda a região. Por cada cabeça de bandido que lhe trouxessem, daria como
recompensa uma moeda de prata.
283
cercar e de não deixarem saída alguma pela qual alguém pudesse
escapar-se. Depois, com outros soldados, percorreu a galope a aldeia,
apoderando-se de todos os homens, novos e velhos, no número total de cento
e setenta e três.
Depois de os mandar atar com cordas uns aos outros, Wang o Tigre
deu ordem de os conduzir a uma eira que ficava em frente da casa do chefe da
aldeia, e ali, do cimo do cavalo, lançou um olhar fulminante àqueles
miseráveis. Uns choravam e tremiam, outros estavam cor de barro, mas
alguns, que conheciam já o extremo desespero, mantinham-se rígidos e
intrépidos. Só os velhos aceitavam o seu destino, dada a sua idade avançada,
e todos esperavam a morte.
Mas quando viu que os tinha todos à sua mercê, Wang o Tigre sentiu
arrefecer-se em si a cólera assassina. Já não sabia matar com o rigor de
outrora; o movimento de piedade do filho perante os miseráveis famintos
tornara-o mais fraco. E, para ocultar a sua presente fraqueza, carregou o
sobrecenho, apertou os lábios e rugiu para os camponeses:
284
CAPÍTULO XXVII
ASSIM ocupou Wang o Tigre os meses durante os quais o filho o
deixou sozinho na sua casa vazia. Quando expulsou mais uma vez os ladrões
dos seus domínios e vieram as colheitas que resolveram as dificuldades,
porque os habitantes tinham outra vez de comer, tomou consigo umaparte do
exército e, no Outono, quando os ventos não tinham ainda refrescado e o Sol já
não conservava o mesmo ardor, percorreu uma vez mais todas as suas terras,
dizendo por várias vezes que devia pôr tudo em ordem para o filho, quando
este voltasse. Porque, agora, Wang o Tigre concebera o projecto de lhe
entregar o generalato naquelas regiões e de lhe oferecer o seu grande
exército, só conservando para si uma pequena escolta. Teria então cinquenta’ e
cinco anos e o filho vinte, e seria um homem. Ao perseguir com os olhos da
fantasia aqueles belos sonhos, Wang o Tigre percorria as suas terras. Via já em
imaginação o filho do filho, enquanto com os olhos materiais olhava os
habitantes e o campo e enquanto ia pensando nos rendimentos que possuía e
nas promessas de uma boa colheita. Agora, que a fome mais uma vez
desaparecera, as terras produziam bem, apesar de mostrarem, como as
pessoas, sinais daqueles dois anos de fome: a terra porque as colheitas iam
ainda atrasadas, e as pessoas porque se viam ainda muitas faces chupadas, e
se apresentavam em maior número velhos e gente nova. Mas a vida
recomeçara e consolava Wang o Tigre ver muitas mulheres outra vez grávidas.
E dizia de si para consigo:
285
No decurso da viagem, chegou à cidade que outrora cercara e onde
o seu sobrinho o Bexigoso exercia, há bastantes anos, o comando em seu
nome. Wang o Tigre mandou à frente mensageiros, para anunciar a sua vinda,
e olhou atentamente à direita e à esquerda, para ver como a cidade se
comportara sob a autoridade do sobrinho.
Ora, Wang o Tigre não precisou de muitos dias para discernir tudo
quanto se tinha passado e para compreender a significação dos grandes
banquetes que lhe ofereciam os negociantes e também o governador. Notava
perfeitamente que o seu sobrinho transpirava
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debaixo da farda, e teve um sorriso mudo e sarcástico, num dia em
que caíra o vento e o Sol escaldava, dia em que o sobrinho teve de despir a
túnica por causa do calor, o que deixou ver que as duas partes do dólman não
abotoavam por baixo da faixa. E Wang o Tigre pensou de si para si:
Ora vamos, sobrinho, já que levas tão boa vida e já que a cidade é
tão rica, podemos aumentar os impostos! Tenho» tido que fazer grandes
despesas para manter o meu filho no Sul e, pensando nele, tenho pensado em
ir acrescentando os nossos rendimentos enquanto está longe. Sacrifica-te,
portanto, um pouco e eleva para o dobro os impostos que me são destinados!
’,
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Sim, mas como tenho a força, tomarei eu próprio aquilo que
não querem dar-me quando o peço delicadamente.
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aos dias, e pesavam sobre ele negras e tristes como outrora, no
passado. Nesses momentos, duvidava de si e sentia-se velho, duvidava de que,
mesmo na Primavera, fosse capaz de fazer qualquer nova conquista. Nesses
momentos, de olhar perdido nas brasas, com doloroso sorriso, mordiscava a
barba e pensava tristemente no mais profundo de si:
«Pode muito bem ser que nenhum homem realize jamais tudo
quanto se propunha fazer». Passados momentos, pensava ainda: «Suponho
que um homem, quando lhe nasce um filho, faz no decorrer da vida suficientes
projectos para ocupar três gerações».
Então, para lhe dar prazer e para lhe dar prova da sua estima, Wang
o Tigre bebia. E por isso conseguia dormir, mesmo naquele Inverno, porque se
sentia dessa maneira confortado, e quando bebia punha ardentemente a sua fé
no filho, e escapava-lhe que jamais tivesse existido entre eles qualquer
dissentimento. Nesses tempos, nunca ocorreu ao espírito de Wang o Tigre que
os sonhos do filho pudessem diferir dos dele, e vivia na expectativa da
Primavera.
Ora, Wang o Tigre bebera muito naquela noite, por causa do frio, e
teve dificuldade em voltar a si. Passou a mão pela boca e murmurou:
Onde está o teu preceptor?... Porque estás aqui, meu filho? Ao que o
jovem respondeu sem quase mexer os lábios:
Zangámo-nos e eu deixei-o.
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subir por ele a sua cólera assassina, como não acontecera desde que
matara a ex-mulher do Leopardo. Empunhou a espada estreita e acerada que
estava em cima da mesa e clamou com um rugido:
E ficou pronto, à espera, com o rosto calmo e duro à luz das velas.
Então, o jovem, que via o pai ficar assim com a boca escondida pela
mão e a espada por terra; tornou a cobrir o peito, e tomou a palavra, num tom
calmo e razoável, como se estivesse a falar para um velho:
Pai, julgo que não compreende. Nenhum dos que são já velhos
compreendem. Não concebem a Nação no seu conjunto, não vêem como ela é
fraca e desprezada...
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Assim falou o filho de Wang o Tigre, que fora sempre tão paciente.
Depois, olhou o pai, e no mesmo instante sentiu-se envergonhado. Calou-se, o
rubor invadiu-lhe as faces e, baixando os olhos, pôs-se a desabotoar
lentamente o cinto de couro e deixou-o cair no chão onde os cartuchos
retiniram. E nada mais disse.
da mesa.
Só então Wang o Tigre tirou a mão dos lábios. Pegou com avidez na
taça de vinho, levou-a aos lábios e bebeu longamente. Era bom... quente, tão
bom! Pousou a taça e murmurou:
Mais. \
LISBOA