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CAPA DE
BERNARDO MARQUES
PEARL S. DUCK
OS FILHOS DE WANG
LUNG
TRADUÇÃO DO DR. JOSÉ MARINHO
EDIÇÃO «LIVROS DO BRASIL» LISBOA Bua dos Caetanos, 22
CAPÍTULO I
Wang Lung estava a morrer. Estava a morrer na sua pequenina e
sombria casa de adobe no meio dos campos, no quarto onde, rapaz ainda,
dormira, na mesma cama em que se deitara na noite de noivado. O quarto não
valia sequer uma das cozinhas da Grande Casa da cidade, que era também
sua, onde os seus filhos e os destes presentemente habitavam. Mas já que
tinha de morrer, agradava-lhe morrer aqui, no meio das suas terras, neste
compartimento com a mesa e as cadeiras de madeira por trabalhar, sob
aqueles cortinados de algodão.
Toda a cidade, por certo!gritou muito alto o filho mais velho, com
largo gesto. E ao longo das ruas toda essa gente abrirá alas, pois nunca se viu
enterro assim desde o tempo em que a célebre Casa de Hwang se encontrava
ainda em todo o seu esplendor.
Mas esse conforto não podia durar sempre, e uma hora chegou, com
o primeiro alvor do sexto dia, em que a morte do velho se cumpriu. Os dois
filhos estavam cansados de tanto esperar, porque não estavam habituados à
falta de comodidades de uma casa exígua como aquela, em que nunca tinham
tornado a viver desde a juventude, e, extenuados pela interminável morte do
pai, tinham ido deitar-se no pequeno pátio interior que ele outrora construíra,
na época em que tomara a sua primeira concubina, Lotus, época em que se
encontrava ainda em todo o vigor da idade. Ao retirar-se, no princípio da noite,
avisaram Flor de Pereira para que os chamasse, se o pai recomeçasse de-
repente a morrer outra vez, e foram descansar um pouco. Naquele leito que
Wang Lung outrora achara tão belo e onde amara tão apaixonadamente,
repousava agora o filho mais velho e lamentava-se de que a cama fosse dura e
tão desengonçada por já velha, e lamentava-se do quarto ser escuro e abafado
em plena Primavera. Mas uma vez que se deitou, adormeceu com sono pesado
e ruidoso, embara-
çando-se-lhe o curto sopro na gorja farta. Quanto a Wang
Segundo, estendeu-se numa camilha de bambu que se encontrava
encostada à parede e adormeceu com um sono leve e furtivo, como o
sono de um gato.
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Por este modo o reconfortava e no mesmo momento em que, ao som
da meiga voz, ele concitava as últimas pulsações, morreu. Mas não era homem
para morrer sossegadamente. Embora reconfortado, quando a alma se
arrancou dele, o coração no extremo arranque deu-lhe como que um grande
salto de cólera e os braços e as pernas agitaram-se-lhe tão violentamente que
a sua velha mão ossuda foi bater em plena face de Flor de Pereira, inclinada
para ele. A mão estalou-lhe em plena face numa bofetada tão violenta que ela
levou a mão ao rosto e murmurou:
Mas ele não lhe deu resposta. Então ela baixou os olhos e viu-o
estendido de través. Enquanto o olhava, exalou ele o último suspiro e não se
mexeu mais. com gesto ágil e discreto, ela compôs-lhe os velhos membros e
cobriu-o honestamente com os cobertores. Fechou com os seus dedos ternos
os olhos esbogalhados que já não viam, e contemplou por um instante o
sorriso, ainda subsistente no rosto, que lhe viera quando ela lhe dissera que
não morria.
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habitara com Wang Lung vivo, e ao quarto onde Wang Lung a
conduzira, certo dia em que o seu sangue corria ardente e forte apesar da
velhice e em que ele se sentia só no meio da sua Grande Casa. Mas o pátio
estava agora silencioso e em cada uma das portas da Grande Casa os sinais de
felicidade em papel vermelho tinham sido rasgados para mostrar que a morte
se achava ali; em cada um dos batentes da grande porta que abria para a rua
tinham colado papel branco, em sinal de morte. E Flor de Pereira vivia e
deitava-se ao lado do morto.
Era a primeira vez que Flor de Pereira tornava a ver Lotus desde o
dia em que esta, sabendo o que Wang Lung fizera, lhe mandou dizer que
desejava nunca mais tornar a vê-la, porque estava muito zangada por ele ter
tomado entre o seu pessoal uma rapariga escrava desde a infância. Ficara tão
cheia de ciúme e tão zangada que fingia até ignorar se Flor de Pereira estava
viva ou morta. Mas a verdade é que ela se sentia com curiosidade, e, agora
que Wang Lung morrera, tinha dito a Cuckoo, sua criada:
Agora, visto que o velhote morreu, já não tenho que querer mal a
essa rapariga e vou ver como ela está agora.
Palavra que isto deve custar um bom par de vinténs aos filhos!
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vê-las de noite na cama e puxar-lhes pelos cabelos, ou ouviam
arranhar de modo suspeito nas janelas, ou uma panela era de súbito arrancada
das mãos da cozinheira, ou uma taça escapava-se da mão de uma escrava que
se preparava para servir à mesa.
Flor de Pereira não tinha medo, e vivia agora sozinha com Wang
Lung como fizera quando ele vivia. Mas quando ela via chegar os padres com
suas túnicas amarelas, levantava-se e retirava-se para o quarto e aí ficava a
ouvir o seu lúgubre salmodiar e lento rufar dos seus tambores.
Toda a cidade sabia agora o dia que o geomante fixara para o funeral
de um homem de tanta consideração como Wang Lung, e nesse dia de fim de
Primavera e proximidades do Estio as mães, que não queriam chegar tarde ao
espectáculo, insistiam mais com os filhos para acabarem depressa a refeição
da manhã; os homens que trabalhavam nos campos pararam nesse dia, e nas
lojas, empregados e aprendizes entenderam-se de maneira a poderem assistir
ao funeral e ver passar o cortejo. Pois toda a gente na região conhecia Wang
Lung, sabia que ele fora outrora um pobre lavrador como qualquer outro, que
se tornara rico e fundara uma casa e deixava os filhos ricos. Todos os pobres
aspiravam a ver o enterro porque era coisa digna de meditação que um
homem tão pobre como eles próprios tivesse morrido rico e era um motivo de
secreta esperança para todos os pobres. Todos os ricos queriam ver o
espectáculo porque sabiam que os filhos de Wang Lung eram ricos, e eis
porque todos os ricos consideravam como um dever apresentar os seus
respeitos àquele importante defunto.
Mas até mesmo na casa de Wang Lung havia nesse dia confusão e
barulho, porque não era fácil pôr em ordem um tão grande enterro, e Wang
Primeiro perdia a cabeça diante de tudo o que ele tinha a fazer. E como era o
chefe da casa, via-se
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obrigado a olhar por tudo, pensar em centenas de pessoas e no luto
apropriado a cada um conforme a sua dignidade, e no aluguer das cadeirinhas
para as mulheres e as crianças. Andava de cabeça perdida mas, apesar disso,
sentia-se orgulhoso da sua importância e do facto de todos correrem para ele e
lhe perguntarem com grandes vozes o que deveria fazer-se na circunstância tal
ou tal. E sentia-se tão agitado que o suor lhe escorria pela cara como em pleno
Verão. O seu olhar errante caiu no segundo irmão, que se mantinha
serenamente de lado. Aquele sangue-frio foi o pretexto da expansão da cólera
do Wang Mais Velho, que exclamou:
Deixas-me tudo para mim e nem sequer sabes providenciar para que
tua mulher e teus filhos se vistam e se apresentem numa atitude decente.
Porque hei-de eu fazer seja o que for, quando tu próprio não estás
contente com o que fazes? Sabemos muito bem, eu e minha mulher, que nada
que se faça te agradará a ti ou a tua esposa, e desejamos, antes de mais nada,
agradar-vos!
Só havia nesse dia em toda a casa uma pessoa serena, e essa era
Flor de Pereira. De luto, com um vestido de cânhamo branco que só o de Lotus
suplantava, mantinha-se sossegadamente sentada à espera, ao lado de Wang
Lung. Vestira-se cedo e tinha também vestido de luto a idiota, mas aquela
pobre criatura não tinha ideia alguma do que isso significava e ria
continuamente e o vestido inabitual incomodava-a um pouco, a ponto de ela
fazer esforços para se livrar dele. Mas Flor de Pereira deu-lhe a comer um bolo
e arranjou um pedaço de pano vermelho para ela brincar, acabando assim por
acalmá-la.
Quanto a Lotus, nunca estivera numa tal aflição como nesse dia,
porque engordara de tal modo que não podia sentar-se num palanquim vulgar,
e experimentara um palanquim após outro, à medida que lhos traziam, e
gritava que nenhum servia e que não sabia por que motivo faziam agora
palanquins tão pequenos e tão estreitos, acabando por chorar. E o receio de
que lhe fosse impossível tomar parte no cortejo punha-a fora de si. Quando viu
a idiota
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vestida de luto, extravasou a sua cólera sobre ela e queixou-se
ruidosamente a Wang Lung:
E clamou que a idiota não devia mostrar-se num tal dia de cerimónia
pública.
Mas se Wang Terceiro a viu ou notou quem ela era, não o deu a
entender. Inclinou-se diante do caixão, vestiu o trajo de cânhamo que lhe fora
destinado, acendeu duas velas e reclamou novos manjares para os oferecer
em silêncio diante do caixão do pai.
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e quando ele lhes disse: «Façam o seu trabalho e fiquem certos de
que serão tratados nesta casa com justiça»calaram-se e dirigiram-se para as
cadeirinhas como se os soldados e as espingardas dispusessem de um poder
mágico.
É uma mulher como deve ser, que mostra o pesar devido pela perda
do homem que amava.
Que rico que ele devia ser para lhe dar tão boa vida a ponto de
engordar assim!
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olhava por entre os dedos e o espectáculo da multidão distraía-a
outra vez.
E ela não quis voltar à casa da cidade. Foi para a casa de adobe e
quando Wang Mais Velho insistiu com ela para regressar com eles à casa da
cidade e habitar com a família, pelo menos até às partilhas, ela abanou a
cabeça e respondeu:
Não, foi aqui que eu vivi com ele mais tempo, foi aqui que fui mais
feliz e ele deixou esta pobre menina confiada à minha guarda. Se voltarmos
para além, ela incomodará a Primeira Esposa, que também não gosta de mim,
e eis porque ficaremos aqui ambas na velha casa do meu senhor. Não devem
preocupar-se connosco. Quando eu precisar de qualquer coisa, pedir-vo-la-ei,
mas só hei-de precisar de muito pouco; viveremos aqui tranquilas com o velho
rendeiro e sua mulher, poderei assim olhar por vossa irmã, e cumprir a ordem
do meu senhor.
Mas também ele se sentia contente, porque sua esposa falara contra
a idiota e dissera que uma tal criatura não devia ser vista nos aposentos da
Casa Grande, especialmente onde havia mulheres grávidas, e, agora que Wang
Lung desaparecera, Lotus poderia ser muito mais cruel do que se atrevia a sê-
lo antes, o que ocasionaria aborrecimentos. Deixou, portanto, Flor de Pereira
aqui à sua vontade, e esta pegou na inocente pela mão e levou-a para aquela
casa de adobe onde cuidara de Wang Lung durante a sua velhice. Ali viveu e se
ocupou dela e dali só saía para visitar a sepultura de Wang Lung.
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balhar nos campos. Era a essas horas solitárias que, na
companhia da idiota, se dirigia ao túmulo de Wang Lung.
«Ah, meu senhor e meu pai, e o único pai que jamais tive!»
CAPÍTULO III
ORA, posto que o poderoso senhor estivesse morto e
enterrado, não podiam aindaesquecê-lo, porque lhe eram devidos três
anos de luto que os filhos devem tributar aos pais.
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mónio, e nem Wang Segundo, nem Wang Terceiro desejavam que as
terras ficassem inteiramente em poder do irmão mais velho, o que os tornaria
dependentes dele. Cada um dos irmãos aspirava a isso de uma maneira
peculiar, o mais velho porque queria saber quanto teria e se seria bastante ou
não para sua casa e as suas duas mulheres e para os seus numerosos filhos e
para os secretos prazeres que não podia recusar-se. O segundo irmão aspirava
a isso porque fazia grandes negócios de cereais, punha dinheiro a juros e
queria poder dispor da sua herança de maneira a desenvolver o seu comércio.
Quanto ao terceiro irmão, era tão estranho de maneiras e tão fechado consigo
que ninguém sabia o que ele desejava, e o seu rosto sombrio nunca mostrava
nada. Mas sentia-se impaciente e era possível, pelo menos, ver que se sentia
pressuroso em partir, posto ninguém soubesse o que ele contava fazer da sua
parte na herança e ninguém se atrevesse a perguntar-lho. Era o mais novo dos
três, mas toda a gente na casa tinha medo dele e os criados, homens e
mulheres, acorriam ao seu chamamento duas vezes mais depressa do que
para qualquer dos outros, sendo a Wang Mais Velho que respondiam mais
lentamente, embora este falasse no tom de patrão.
Mas dado que não tinham outro parente mais velho, tinham,
segundo a lei comum, de pedir a qualquer homem sério de entre os vizinhos
que viesse a casa deles dividir a herança perante uma assembleia de bons e
honrados cidadãos. E uma noite em que eles conversavam, sobre o que
convinha fazer, Wang Segundo disse:
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Sinto muito, irmão, que tenhas falado tão depressa, porque ia
justamente dizer: convidemos o pai da mãe de meus filhos a fazer-nos isso.
Mas, visto que foste tu a dizê-lo, está entendido, pedir-lho-emos. Apesar de
que eu próprio estava justamente para dizê-lo, e tu corres sempre muito
depressa a falar, na família, antes da tua vez.
A mim é-me indiferente! Mas seja o que for que façam, seja
depressa.
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não dar por isso e não se lhe alterou a fisionomia, como se
mantivesse o espírito distante e esperasse impacientemente que tudo
acabasse, para ir procurar o objecto dos seus desejos.
Então o negociante Liu, que era tão bom que julgava que os outros
eram bons também, olhou-a com simpatia e não se lembrou de quem ela era,
nem que a tivesse visto alguma vez senão como esposa de um bom burguês, e
disse-lhe com respeito:
Fala bem e como deve, porque o defunto era um bom senhor, como
sempre a todos ouvi. Portanto, decidirei o seguinte: vão dar-lhe vinte moedas
de prata por mês e será autorizada a habitar nos seus aposentos e terá os seus
servos e as suas escravas e os seus alimentos e além disso ainda algumas
peças de pano.
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Mas quando Lotus ouviu aquilo, e apurara o ouvido para não lhe
escapar palavra, circunvagou os olhares de um filho para outro, soltou um
agudo lamento, e disse:
Vinte moedas por mês há famílias inteiras que as não têm, e metade
disso ainda seria muito generoso em muitas casas, e não somenos, por morte
do senhor!
Se se lhe deve dar mais do que foi dito, o meu irmão mais velho
deverá fazê-lo da sua parte, pois é bem certo que vinte moedas é bastante e
mais do que bastante para ela, mesmo com a sua mania do jogo!
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muito tempo continuado assim, se Wang Terceiro, exasperado, não
se levantasse de súbito e, batendo com as sapatorras no sobrado, exclamasse:
Pode muito bem fazê-lo, visto que não é casado. Não tem, como nós,
que pensar nos filhos.
Mas o velho negociante, pelo seu lado, suspirou e tirou o lenço para
limpar o rosto, porque era um homem que vivia numa casa pacífica e não
estava habituado a gente como Lotus. Quanto a Lotus, teria talvez ainda
continuado a fazer barulho, se não fosse a expressão da fisionomia do terceiro
filho, que a fez considerar que o melhor era não continuar. Interrompeu
portanto subitamente a cena que estava fazendo e sentou-se, muito satisfeita
de si própria, e esforçando-se a princípio por manter um ar triste e amuado,
esqueceu-se depressa e começou a olhar com desplante para os homens,
enquanto tomava sementes de melancia de um prato que uma escrava lhe
estendia, fazendo-as estalar entre os dentes, que tinha fortes e brancos, a
despeito da idade. E sentiu-se por fim satisfeita.
Mas ela, que estava muito longe de esperar tais palavras, supôs que
a mandavam embora e não compreendendo, exclamou, com voz insegura e de
extremo desânimo:
Oh, senhor, não possuo casa minha, nem tenho neste Mundo
ninguém a não ser a pobre inocente que o meu falecido senhor me confiou e
não temos para onde ir! Oh, senhor, eu supunha que podíamos continuar a
viver na casa de adobe. Comemos muito pouco e só precisamos de roupa de
algodão porque enquanto viver nunca mais vestirei roupas de seda, agora que
o meu senhor morreu, e não incomodaremos pessoa alguma na Casa Grande!
Sim, mas não precisa de muito, porque nesta casa nunca passou de
uma escrava e estava habituada às comidas mais grosseiras e à roupa de
chita, até ao dia em que o meu velho senhor, já na sua velhice, se sentiu
maluco por ela, por causa daquela carinha pálida, e sem dúvida também
porque ela lhe fez algum feitiço... e no que se refere à idiota, quanto mais
depressa morrer, melhor!
Que a nova receba o mesmo que a velha. Sou eu quem lho dará!
Mas Lotus fazia caretas, e não ousando proferi-lo em voz alta, disse
entre dentes:
Não é justo que a mais velha e a mais nova sejam tratadas como
iguais... e principalmente aquela que foi minha própria escrava!
Assim dizia ela entre dentes e parecia pronta a recomeçar o barulho
de há pouco, mas o velho negociante, ao perceber isso, retomou depressa a
palavra:
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Está certo... está certo... Atribuo portanto vinte e cinco moedas
à senhora mais velha e vinte à mais nova...E continuou, dirigindo-se a
Flor de Pereira: volte para sua casa, e fique em paz, minha senhora.
Está autorizada a proceder como entender e terá vinte moedas de prata
por mês para seu sustento.
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Que é que o senhor iria fazer a tanto dinheiro?
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sem compreender nem perceber sequer o desprezo do irmão, visto
que se tinha por homem muito estimável.
Mas Wang Mais Velho, não podia imaginar que alguém fizesse
qualquer coisa pela qual lhe não pagassem. Portanto continuou:
E parecia ter mais ainda que dizer mas absteve-se disso e enquanto
os seus quatro soldados emalavam as suas coisas, mostrou muita impaciência.
Depois, seguido pelos quatro homens, afastou-se rapidamente, muito contente
por se ir embora, como se sentisse ainda submetido aqui ao domínio do seu
velho pai, sendo ele alguém que não queria submeter-se a império algum, de
espécie alguma.
Os outros filhos não aspiravam menos a ver-se livres do pai. O filho
mais velho aspirava ao fim dos três anos de luto e aspirava a colocar a
tabuinha do velho na pequena alcova situada acima do salão onde se
guardavam as outras tabuinhas, porque enquanto ela se encontrasse onde se
encontrava, afigurava-se-lhe que Wang Lung continuava a ter influência nos
filhos. Sim, o seu espírito estava ali, embuscado na tabuinha, espiando os
filhos, e o mais velho aspirava à liberdade de viver como bem lhe parecia e
gastar o dinheiro do pai como entendesse. Mas não podia, enquanto aquela
tabuinha ali estivesse, levar a mão livremente ao cinto e colher o prazer onde
o entendesse, e tinha ainda que passar aqueles anos de luto, nos quais não é
decente para um filho mostrar-se muito alegre. Era assim que sobre aquele
homem ocioso, cujo espírito corria constantemente atrás de prazeres novos, o
velho impunha ainda o seu poder restritivo.
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de alargar o seu comércio de cereais e comprar alguns dos
estabelecimentos de Liu, o negociante, que estava envelhecendo e cujo filho
era um letrado e não gostava do negócio do pai, e com um tal comércio Wang
Segundo poderia até exportar cereal da região para países estrangeiros. Mas
não fica bem empreenderem-se tão grandes coisas enquanto o luto dura ainda,
e eis porque Wang Segundo tinha de se revestir de paciência e de se calar,
com excepção apenas das ocasiões em que perguntava ao irmão, como quem
não pergunta nada:
Não sei, palavra. Não tenho ideia alguma, mas suponho que devo
conservar o bastante para nos alimentar, visto que não tenho uma profissão
como tu tens nem posso na minha idade começar uma.
Wang Mais Velho ouviu aquilo com a maior inveja, porque sabia que
tinha precisão de muito dinheiro e de muito mais do que tinha, e disse numa
voz fraca:
Enfim, veremos. Pode muito bem ser que eu venha a vender mais do
que pensava e ponha o dinheiro a render juntamente com o teu, mas havemos
de ver isso.
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a sua patroa ganha ao jogo, ou então participar nos lucros,
Cuckoo encorajava-a com todo o zelo a levar essa vida.
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Ora a dama não era daquelas que estão sempre prontas para a
réplica, e na verdade era incapaz de responder tão depressa como desejava, e
uma das razões que tinha para detestar a cunhada era que a esposa campónia
tinha uma língua muito acerada, embora grosseira, e antes que a esposa
cidadã conseguisse terminar um dos seus discursos que ela empreendia com
lentidão solene, a esposa campónia com um revirar de olhos e uma simples
palavra reduzia a nada a cidadã. E esta ficava tão mal-ferida que, quando
escravas e criadas assistiam à cena, tinham de se desviar o mais depressa
possível para dissimularem os sorrisos. Assim, quando Wang o mais velho
falou, olhou-o vivamente para ver se ele não zombava dela também, e viu-o
instalado numa poltrona de verga, sorrindo com o seu sorriso mole. Ergueu-se
então com ar rígido e gelado da cadeira de pau que sempre escolhia para se
sentar, e depois velando os olhos com um descer de pálpebras e fazendo um
momo com os lábios, disse:
Sei muito bem que também vós me desprezais, meu senhor! Desde
que trouxestes para casa aquela criatura vulgar, desprezastes-me
constantemente, e eu quereria nunca ter abandonado a casa de meu pai. Sim,
desejaria agora poder consagrar-me aos deuses e entrar para qualquer
instituição religiosa e assim faria se não fossem os meus filhos. Dediquei-me a
melhorar esta casa que é vossa, para fazer dela alguma coisa mais do que
uma simples casa de camponês, mas vós não mo agradeceis nada.
3-w. L.
33
ingénua que tinha muito receio de sua esposa e era destituída da
menor personalidade. Quando Wang Mais Velho lhe pedia que viesse à noite ao
seu quarto, chegava até a balbuciar, curvando a cabeça:
E por vezes, ao ver até que ponto ela era tímida, Wang Mais Velho
enfurecia-se e jurava que na próxima ocasião tomaria uma raparigaça sólida e
de carácter agreste, que não tivesse medo de sua mulher, como acontecia com
todas. Mas outras vezes suspirava e dizia-se que, depois de tudo, era melhor
assim, porque pelo menos não havia questões entre as suas duas mulheres,
visto que a mais nova obedecia servilmente à senhora e não queria sequer
encará-la, se estava na sua presença.
Podes vir sem receio porque ela está muito indisposta para que eu a
incomode esta noite.
Certamente que sua esposa era uma mulher de coração frio, que se
sentiu muito satisfeita quando o seu tempo passou. Wang Mais Velho
concedeu-lhe a partir de então o respeito que lhe era devido e, durante o dia,
recorria para tudo a ela, o mesmo fazendo a rapariga, e à noite esta vinha ter
com ele, e assim conseguia viver em paz com as suas duas mulheres.
Ela diz, minha senhora, que vós sois tão orgulhosa que terrificais o
meu senhor e que ele nem sequer se atreve a amar a sua pequena concubina,
a menos que a senhora lhe dê licença e então só pelo tempo que lhe permitis,
e toda a multidão se ria!
Agora, ela está a dizer que vós vos preocupais mais com padres e
religiosas do que com os vossos filhos e que bem se sabe que essa gente é
secretamente partidária do mal!
Visto que o meu senhor se encontra agora na casa de chá e não está
ao corrente desta desordem vergonhosa e visto que seu irmão também não se
encontra aqui para orientar a sua casa, tenho eu de cumprir o meu dever. Não
quero que essa gentinha venha assim pôr-se de boca aberta diante da nossa
casa. Vais fechar o portão, e se a minha cunhada ficar lá fora, tanto pior para
ela; e se te perguntar quem te disse que fechasses o portão, dize-lhe que fui
eu, e que tens de me obedecer.
O velhote inclinou-se outra vez, saiu sem dizer palavra e fez como
lhe tinham mandado. Ora, a esposa campónia estava ainda ali e divertia-se
extraordinariamente com a risota da multidão e não viu os batentes da porta
fecharem-se lentamente atrás dela. Estavam já quase cerrados quando o velho
porteiro aproximou os lábios da pequena abertura e cochichou com voz rouca:
Pcht... senhora!
Ela então voltou-se e viu o que havia. Precipitou-se para empurrar os
batentes e, sempre com o filho ao seio, berrou para o velhote:
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Quem te mandou fechar-me cá fora, velho cachorro ?
Ora, Wang Mais Velho tinha ouvido várias vezes repetir durante a
noite pela mulher cada uma das palavras do que se passara e sua esposa de
tal maneira o tinha apertado, que desta vez ele lhe jurara não ser afável e
conciliador; não, desta vez estava decidido a fazer o que convinha que fizesse
o chefe, quando a dona da casa é ultrajada a tal ponto por uma mulher que é
sua inferior e que deveria mostrar-se respeitosa para com ela. E então, ao
ouvir o que dizia o irmão mais novo, lembrou-se de como fora advertido de
noite, e replicou num tom de tímida censura:
Mas tua mulher procedeu muito mal, ao falar à minha como falou
diante daquela gentinha e não basta pôr a coisa de parte. É preciso que lhe
apliques uma boa sova. Peço-te insistentemente que lhe apliques uma boa
sova.
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e ingénuas. Os homens não podem imiscuir-se em questões de
mulheres e nós, irmão mais velho, compreendemo-nos como homens que
somos. É certo que minha mulher se portou como uma parva e que não passa
de uma campónia. Repete a tua mulher que eu disse isto e que lhe apresento
as minhas desculpas pelo que minha mulher fez. As desculpas nada custam.
Separemos depois as nossas mulheres e os nossos filhos e ficaremos em paz,
meu irmão, e poderemos encontrar-nos na casa de chá, para discutirmos as
nossas questões um com o outro e viveremos em casa independentes.
Então Wang Segundo foi hábil. Viu logo que o irmão não sabia como
dar satisfação à mulher e eis porque lhe disse novamente:
Olha, irmão mais velho, dirás isto a tua mulher: «Separei de nós a
casa do meu irmão segundo, e tu nunca mais serás incomodada. Foi assim que
os castiguei».
E assim cada um dos dois irmãos deu satisfação a sua mulher, de tal
modo que cada uma das duas se considerou triunfante e considerou a outra
completamente vencida. Depois disso, os dois irmãos ficaram melhores amigos
que nunca e cada um se julgou homem muito inteligente e com a melhor
compreensão das mulheres.
38
vestiam de luto por Wang Lung tiraram-no e mostraram-se vestidos
com os alegres vestidos claros que traziam por baixo.
Ora, esta nova tabuinha, que era a definitiva, fora feita segundo as
regras, com uma linda madeira dura e fora colocada numa caixinha de madeira
de tamanho apropriado. Depois de a mandarem confeccionar e envernizar com
um verniz preto muito caro, os filhos de Wang Lung dirigiram-se ao mais
célebre letrado da cidade para inscrever nela o nome e o espírito de Wang
Lung.
Feito tudo isso, Wang Mais Velho pegou nela cuidadosamente com as
mãos ambas e foram todos juntos colocá-la no alto e pequeno compartimento
onde já se encontravam as outras, as dos dois velhos campónios que tinham
sido o pai e o avô de Wang Lung. As deles encontravam-se ali, naquela casa
tão rica, e nunca durante a sua vida teriam sequer pensado em ter tabuinhas
como apenas os ricos têm, e se pensavam até no que lhes poderia acontecer
depois da morte, era apenas para suporem que os seus nomes seriam escritos
num bocado de papel por qualquer indivíduo um pouco instruído e
dependurado na parede da casa de campo, onde ficaria pelo tempo que
demorasse a fazer-se em pedaços.
Mas quando Wang Lung viera habitar naquela casa da cidade, tinha
mandado fazer tabuinhas para os seus dois antepassados, como se também
eles tivessem vivido aqui, embora ninguém pudesse saber se os seus espíritos
ali estavam ou não.
Ora, era esse o tempo próprio para convidar hóspedes e fazer festas
de alegria, e Lotus pôs um vestido de seda azul claro com flores, demasiado
berrante para uma mulher tão gorda e tão velha, mas ninguém lhe fez a
observação, porque a conheciam muito bem, e todos participaram da festa. E
enquanto ela decorreu, riram-se muito e beberam, e Wang Mais Velho, que
gostava das grandes reuniões de ruidosa alegria, berrava constantemente:
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Mas o próprio Wang Segundo estava nesse dia alegre e não olhava a
nada. Aproveitou a ocasião de conversar particularmente com alguns
convidados, para ver se um ou outro desejava comprar mais terra do que
tinha, e espalhou o boato de que tinha uma boa porção de terra da qual
pretendia desfazer-se, e assim passou aquele dia, sentindo-se ambos os irmãos
satisfeitos por se ter quebrado o laço que os mantinha na dependência do
velho que repousava na terra.
Havia alguém que não se divertia com eles: era Flor de Pereira, que
lhes mandou as suas desculpas, dizendo: «O único ser que me dá
preocupações encontra-se um pouco melhor do que é costume e eu peço o
favor de me desculparem». E assim, visto como ninguém lamentou a sua
ausência, Wang Mais Velho mandou-lhe dizer que estava inteiramente
desculpada por não tomar parte na festa e só ela, nesse dia, não tirou o seu
trajo de luto, nem os sapatos brancos que usava, nem o cordãozinho branco
que lhe ligava os cabelos. Também não tirou à idiota esses símbolos de
tristeza. Enquanto os outros se divertiam, entregou-se ela à sua ocupação
favorita. Pegou na idiota pela mão e levou-a ao túmulo de Wang Lung, e ambas
se sentaram no chão. E aí, enquanto a idiota brincava, satisfeita por estar
perto de alguém que lhe mostrava amizade, Flor de Pereira passeou o olhar
pela terra. Esta estendia-se com os seus campos verdes dispostos em todos os
sentidos e embutidos uns nos outros por léguas e léguas, tão longe quanto a
vista podia alcançar. Aqui e além, uma pequena mancha azul parada ou em
movimento representava um camponês que trabalhava na sementeira de aveia
da Primavera. Do mesmo modo também, outrora, se curvara Wang Lung sobre
o fruto da sua terra, quando chegava a sua vez de a ter para si, e Flor de
Pereira lembrou-se de que, na sua velhice, ele lhe falava muitas vezes dos
anos anteriores ao nascimento dela, e gostava de lhe falar deles e de lhe
explicar como ele costumava lavrar este e plantar aquele.
40
CAPÍTULO IV
COMO os ramos de uma grande e velha árvore saem do robusto
tronco e divergem dele e cada um de outro, alongando-se e estendendo-se
cada um deles na sua própria direcção, embora tenham por origem a mesma
raiz, assim acontecia com os três filhos de Wang Lung; mas o mais enérgico e
o mais voluntarioso dos três era Wang Terceiro, o filho mais novo de Wang
Lung, soldado numa província do Sul.
Ora, Wang Terceiro não voltara a estar em relações com o pai desde
o dia em que fugira de casa, num violento acesso de cólera por seu pai ter
tomado, entre as serviçais de sua casa, quando já era velho, uma certa
rapariga ali mesmo educada, que era Flor de Pereira, e Wang Terceiro não
compreendera que a amava até ao momento de saber o que seu pai fizera.
Nessa mesma noite, depois de meditar durante todo o dia, correu para os
aposentos do pai; estava tão absorto na sua meditação, que entrou sem
reparar no compartimento onde o pai se encontrava com a rapariga. Ora, ele
irrompendo assim naquele quarto, ao sair das quentes trevas de uma noite de
Verão, viu-a ali sentada, silenciosa e pálida, e compreendeu nitidamente que a
amava. Então, subiu nele uma tal vaga de cólera contra o pai que não pôde
contê-la, pois era sujeito à cólera. Compreendendo que, se lhe dava tempo
41
de crescer, ela lhe faria estalar o coração, nessa mesma noite
fugiu de casa do pai. E como sempre aspirara às aventuras e a tornar-se
um herói sob uma qualquer bandeira de guerra, gastou o dinheiro que
tinha a afastar-se, na direcção do Sul, para o mais longe que lhe era
possível, e entrou ao serviço de um general que nessa época se
distinguira numa revolta. E Wang Terceiro era um homem tão alto, tão
robusto e tão feroz, o seu rosto tão sombrio e colérico, os lábios
apertavam-se-lhe sobre os grandes dentes brancos com ar tão duro,
que o general o tinha imediatamente notado e ligado à sua pessoa e o
fizera promover Wang Terceiro muito depressa, mais depressa mesmo
do que habitualmente, por tal modo que, de simples soldado, fez dele
um capitão com o comando de muitos homens. O Wang Terceiro estava
nesse posto quando se pôs a caminho para casa do pai.
43
que acabara por se convencer de que o próprio Céu lhe assinalara o
seu destino tal como o sonhara, e só tinha que esperar a chegada da sua hora
para o tomar nas mãos.
44
esta. não se enganara no seu destino e, com a sua herança, teria
tudo aquilo de que precisava, e o Céu protegia-o. Sim, muito acima de
qualquer outra consideração aparecia-lhe esta: podia agora dar o primeiro
passo na estrada indefinidamente ascendente do seu destino, porque sabia
que estava destinado a ser um grande homem.
Mas ninguém viu essa exultação no seu rosto. Ninguém viu jamais
fosse o que fosse naquele rosto duro e impassível; da mãe herdara ele aquele
olhar firme, aquela boca apertada e aquele seu ar de ter as qualidades do
rochedo na própria substância de que a sua carne era feita. Portanto, sem nada
dizer, foi ao seu quarto preparar-se para a longa viagem em direcção ao Norte,
e designou para o acompanharem quatro homens de confiança que tinha sob o
seu comando. Feitos os preparativos sumários, dirigiu-se para a grande e velha
casa da cidade que o general tomara para o seu uso pessoal e mandou um
soldado da guarda anunciá-lo, e o guarda voltou para lhe dizer que podia
entrar. Então Wang o Tigre entrou, ordenando aos seus homens que o
esperassem à porta, e dirigiu-se ao quarto onde o velho general estava a
acabar a refeição do meio dia.
Vieram hoje anunciar-me que meu pai morreu e que meus irmãos
me esperam para o enterrar.
Vai, meu filho, cumpre o teu dever para com teu pai e depois volta
para mim:
Aqui tens um presente para ti; não te prives de nada durante a tua
viagem:
E assim por conseguinte voltara Wang o Tigre a casa de seu pai. com
fervida impaciência esperou que se dividisse a herança e que lhe fosse
permitido regressar o mais depressa possível. Mas não quis pôr o seu plano em
prática antes de passarem os anos de luto. Não; era um homem escrupuloso,
que se empenhava em cumprir o dever e em virtude disso esperou. Mas agora
era-lhe fácil esperar, porque o seu sonho, estava certo disso, ia enfim realizar-
se. E passou os três anos a aperfeiçoar todos os meios para tal, a economizar o
seu dinheiro e a escolher e estudar os homens que esperava ver segui-lo.
46
CAPÍTULO V
Vou lá sem falta, mas de qual outro assunto temos que falar?
Não sei o que ele vai fazer deles, mas aparece amanhã e falaremos
outra vez disto.
Mas Wang Mais Velho era incapaz de acabar tão depressa fosse com
o que fosse e tinha, aliás, sempre tempo para tudo quanto aparecia, e eis
porque disse, com o humor divertido em que nesses dias se encontrava,
proveniente do facto de estar na posse do seu património:
47
E semicerrou os olhos, tomando um ar malicioso como se fosse dizer
uma coisa com muito espírito. Mas Wang Segundo, ao ver isso, sorriu um
pouco e disse no seu tom glacial:
E dizendo isto afastou-se, pois não lhe interessava nada deixar Wang
Mais Velho proferir as suas inconvenientes maneiras de ver, quando se
encontravam ali na rua, no meio dos passeantes dispostos sempre a parar e
escutar tudo o que se dizia.
4-w. L.
49
da parte da herança que me cabe, pois todo é pouco. Se
quiserdes emprestar-me do dinheiro vosso, reembolsar-vos-ei, com alto
juro, no dia em que tiver realizado o que empreendi fazer. Se tiverdes
filhos de mais de dezassete anos, enviai-mos também. Eu elevá-los-ei a
uma alta situação, mais alta do que imaginais, pois preciso de ter em
volta de mim homens do meu próprio sangue nos quais possa depositar
confiança para a minha grande aventura. Mandem-me o dinheiro e
mandem-me os vossos filhos, visto que eu os não tenho».
Wang Mais Velho tivera da esposa seis filhos, mas dos seis,
dois tinham morrido em pequenos e tivera um da sua concubina, a qual
estava prestes a dar de novo à luz, dentro de um ou dois meses, e todos
aqueles filhos que ele tinha eram sãos, excepto o terceiro, que uma
escrava deixara cair quando ele tinha ainda poucos meses, de maneira
que as costas tinham-lhe crescido tortas, formando um nó nos ombros,
e a cabeça, demasiado volumosa para ele, encaixava naquela corcova
como uma cabeça de tartaruga na concha. Wang Mais Velho mandara
vir um médico ou dois para o ver e prometera até um manto a certa
deusa do templo, se lhe curasse o filho, embora em circunstâncias
normais não acreditasse nessas coisas. Mas tudo foi inútil, visto que o
menino estava destinado a levar o seu fardo até à morte, e o único
prazer que o pai dele tirou foi privar a deusa do vestido prometido, visto
ela nada ter querido, fazer naquelas circunstâncias.
50
de reflectir um pouco. Por fim Wang Segundo ergueu os olhos e
disse:
O irmão mais velho hesitou então, porque não era homem para
decidir rapidamente por si próprio fosse o que fosse, visto ter-se atido desde
há anos às decisões da esposa, dizendo o que ela lhe sugeria que dissesse.
Wang Segundo, sabendo-o, disse habilmente:
Wang Mais Velho ficou muito contente por o ouvir falar assim e
respondeu:
Passaram todo esse dia nas suas terras, com excepção de uma
paragem ao meio-dia, para comerem numa hospedaria do caminho, e
examinaram a terra com atenção e viram o que faziam os rendeiros. E
os rendeiros mostraram-se humildes e inquietos na frente deles, visto
que aqueles senhores eram os novos proprietários, e Wang Segundo
tomou nota de cada parcela que convinha mais vender. Marcaram
também para vender todas as terras que pertenciam ao seu irmão,
excepto o pedaço que ficava em frente à casa de adobe. Mas por um
comum acordo os dois irmãos não se aproximaram dessa casa, assim
como não se aproximaram do montículo onde o pai repousava, sob uma
grande tamareira.
52
gastos. Wang Mais Velho teria dado de boa vontade o pedido
suplemento, mas Wang Segundo recusou, e disse ao burriqueiro:
Não, dei-te aquilo a que tens direito, e quanto ao que acontece aos
teus sapatos, não é comigo.
53
CAPÍTULO VI
E no dia marcado Wang Segundo disse ao irmão mais velho: Se o teu
segundo filho está pronto, então o meu
Nesse mesmo dia, como Wang Mais Velho estava de boa feição,
mandou vir o seu segundo filho e olhou atentamente aquele rapaz, para ver o
que valia e como se entenderia na carreira a que estava destinado. O rapaz
acorreu sem demora e ficou à espera na frente do pai. Era um adolescente de
pequena estatura e de aspecto muito frágil e delicado, bem longe de ser
bonito, muito tímido e facilmente intimidável, sempre com as mãos trémulas e
húmidas. Ali estava diante do pai, torcendo as mãos trémulas, sem saber o que
fazia, e baixava a cabeça, mas a todo o momento tornava a levantar
vivamente os olhos para deitar um olhar de lado ao pai e depois baixava outra
vez a cabeça.
Melhor seria que fosses o mais velho e que o mais velho estivesse no
teu lugar, pois é mais bem constituído que tu para ser um general, e tu tens
um ar tão débil que não sei se serás ou não capaz de te segurar a cavalo.
Apenas ditas estas palavras, eis que o rapaz se lança de joelhos e
implora o pai, juntando as mãos trémulas:
55
Wang Mais Velho ia jurar que não dissera palavra do caso, e
contudo a coisa soubera-se de uma maneira ou de outra. Na verdade,
Wang Mais Velho não podia guardar coisa alguma só para si. Era
constituído de tal modo que de cada vez que lhe ocorria um
pensamento ou que ruminava qualquer secreto projecto, os seus
trejeitos, suspiros, meias palavras e ares misteriosos bastavam, sem ele
dar por tal, para o trair. Teria jurado que nada dissera a ninguém, mas
dissera-o ao seu filho mais velho, cjissera-o durante a noite à sua
concubina e dissera-o em último lugar à sua esposa, tendo
forçosamente de fazê-lo para obter a sua aprovação. Expôs-lhe, aliás, o
caso tão bem que a dama, julgando que o filho ia chegar de um salto ao
posto de general, concordou imediatamente, embora emitisse a opinião
de que não merecia menos do que isso. Mas o filho mais velho, que era
um rapaz astucioso e que sempre sabia mais do que os outros
supunhampois afectava um ar tão lânguido que parecia não ver nada
afligira o seu irmão segundo e escarnecera dele, dizendo:
Ora este segundo filho de Wang Mais Velho era um rapaz que
não podia ver matar uma galinha sem fugir para qualquer lado, para
vomitar, e não podia quase suportar a carne no seu estômago
demasiado sensível. Quando ouviu o irmão mais velho dizer aquilo,
ficou perdido de medo e não soube que fazer. Não podia acreditar
naquilo e ficou toda a noite sem dormir. Mas nada podia fazer também,
a não ser esperar que o chamassem, e assim se lançara aos pés do pai,
pedindo compaixão.
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a si próprio como um gorducho bem humorado, como deve ser um
general. Depois, suspirou outra vez e, olhando o magricelas do filho, disse-lhe:
Mas o filho de Wang Segundo não era um rapaz como esse. Era um
ser alegre e bulhento; tinha tido as bexigas loucas aos três anos e conservara
sempre as marcas delas, o que lhe valera o apelido de o Bexigoso, que em vez
do seu nome lhe era dado por toda a gente e até pelos parentes. Quando Wang
Segundo, depois de o mandar chamar, lhe disse: «Faz uma trouxa das tuas
roupas porque parto amanhã contigo para o Sul, pois vou dar-te a teu tio, o
soldado»ele pôs-se a dar saltos e cabriolas de satisfação, porque era um rapaz
sempre disposto a ver coisas novas e gostava de se gabar daquilo que vira.
Então qual é o motivo dessa viagem ao Sul, que vai custar tão bom
dinheiro?
Será uma aventura e eu não sei o que ele entende por elevar o rapaz
a uma alta situação, mas temos os outros rapazes que podemos meter nos
negócios, e só temos este com idade bastante para lhe mandar. Aliás, o meu
irmão manda também um.
Pois bem, se os filhos deles devem ser elevados até uma alta
situação, temos também de mandar os nossos, de outro modo eu ficarei a
ouvir perpetuamente a minha cunhada falar do filho como de um herói. É certo
que o nosso filho deve forçosamente vir a ser alguém, tão esperto é e tão
astuto em habilidades. E como muito bem diz, temos os outros para o
comércio.
57
E assim, no dia seguinte, Wang Segundo tomou consigo os
dois rapazes, cada um deles com a sua bagagem, que o filho de Wang
Mais Velho, sendo delicado e difícil, metera numa bela mala de pele de
porco. E embora tivesse os olhos ainda vermelhos de ter chorado,
demorou-se a ver se o seu criado a conduzia de forma conveniente, com
a parte superior para cima, de maneira a não se estragarem os livros.
Mas o filho de Wang Segundo não tinha livros, e reunira a roupa num
grande lenço de algodão azul, que ele próprio levava, correndo alegre
de tudo quanto via. Era um lindo e claro dia de Primavera. As ruas da
cidade estavam cheias dos primeiros produtos do campo e todos se
ocupavam a comprar ou a vender. Para aquele rapaz, era um bom ano e
um belo dia. Estava a caminho para uma viagem que nunca antes
fizera; a mãe cozinhara-lhe um petisco de que gostava, para comer
nessa manhã, e ele ficara todo contente. Mas o outro rapaz caminhava
com dignidade, lenta e silenciosamente. De cabeça baixa, mal olhava o
primo, e, de vez em quando, humedecia os lábios descorados como se
os sentisse muito secos.
58
para a pores na mala, ficando em trajos de debaixo e economizando
assim a tua melhor roupa.
Mas eu tenho melhores do que esta, pois esta é a que trago em casa
todos os dias.
Depois viajaram também dois dias por mar, num pequeno barco cheio de
gente e chegaram finalmente à cidade onde deviam encontrar aquele que
procuravam. Quando desceram do barco e se encontraram de novo em terra, Wang
Segundo alugou dois carrinhos, um para os dois rapazes, outro para si próprio. O
homem do dos rapazes queixou-se amargamente do duplo peso, mas Wang Segundo
explicou-lhe que eram ainda rapazes apenas, não homens, e que um deles era pálido
e magro e pesava menos que de costume, por causa do enjoo; à força de discussões e
pagando um pouco mais, mas não tanto como o custo de outro veículo, o homem
acabou mais ou menos por concordar. E os condutores dos carrinhos dirigiram-se à
casa e à rua cujo nome Wang Segundo lhes indicara e quando lá chegaram, tirou do
seio a carta, comparou os caracteres inscritos na porta com os do sobrescrito e viu
que eram os mesmos.
Olá, então julgam que podem entrar por esta porta assim sem mais
nada?
59
mento ar sério, porque nunca ainda se encontrara assim perto
de uma espingarda.
Mas o soldado não sabia ler e eis por que ele chamou outro
soldado. Este aproximou-se e depois de ter fitado durante um minuto os
visitantes e escutado toda a sua história, pegou na carta. Mas também
ele não sabia ler, e depois de lhe ter lançado um olhar levou-a para
dentro. Ao fim de alguns momentos, voltou e apontando o edifício,
disse:
60
outro, mexeu os pés e pôs-se a roer as unhas. E então Wang
Segundo disse a modo de desculpa:
É certo, irmão, que são apenas dois pobres seres, e temos pena de
não termos outros mais apropriados à tua benevolência. Mas o filho mais velho
de meu irmão é o principal herdeiro, e o que vem a seguir a este é corcunda, e
este bexigoso é o meu mais velho e o que vem a seguir não passa de uma
criança e eis por que estes dois são os melhores que por agora temos.
Wang o Tigre olhou então e viu ao lado da porta a bela mala de pele
de porco. E disse com certo desprezo:
Ao ouvir isto, o rapaz ficou cor de tijolo e saiu sem mais palavra,
ficando os dois irmãos sós. -
Não, estava a pensar que a maior parte dos homens da minha idade
tem filhos já crescidos, o que deve ser para um homem alguma coisa muito
reconfortante.
Não; há-de parecer-te, por certo, estranho, mas a verdade é que não
me interesso por mulheres; é uma coisa singular mas não tive nunca relações
com uma mulher...
61
Depois de terem comido, levantado a mesa e trazido o chá,
Wang Segundo preparou-se para perguntar a Wang o Tigre o que
contava fazer de todo o seu dinheiro e daqueles jovens, mas não sabia
como formular a pergunta, e, antes que encontrasse a maneira, Wang o
Tigre disse de súbito:
62
reunir um poderoso exército e estabelecer-me-ei em qualquer parte,
ao Norte da nossa região, e far-me-ei senhor de todo esse território. Depois,
quando for o senhor, alargarei os meus domínios e tornar-me-ei cada vez
maior, a cada guerra que travar...
Até que não haja ninguém acima de mim nesta nação ! respondeu
ele em voz contida, que parecia agora um trovão.
Ora tudo aquilo era a coisa mais estranha que Wang Segundo jamais
ouvira. Não era homem para sonhar grandes sonhos e o seu maior era ficar
sentado à noite em frente dos seus livros de contabilidade a recapitular o que
esse ano rendera e imaginar maneiras de aumentar o seu comércio no ano
seguinte. E então ficou a considerar fixamente o irmão, e viu-o tal qual era,
alto, sombrio, estranho, com olhos brilhantes como olhos de tigre, e negras
sobrancelhas rígidas semelhantes a bandeiras por cima dos olhos. Ao
considerá-lo fixamente assim, Wang Segundo sentiu-se impressionado, a ponto
de ter medo do irmão e não ousou dizer nada para o contrariar, pois havia no
olhar daquele homem uma expressão quase demente e aquele olhar era tão
poderoso que o próprio Wang Segundo percebeu no seu coração angustiado a
força daquele homem, seu irmão. Mas apesar de tudo era prudente, e não
pôde esquecer os seus hábitos de prudência, e eis porque ele tossicou e disse
na sua vozinha seca:
Mas que há em tudo isso para mim e nós todos e qual a garantia, se
te empresto o meu dinheiro?
63
O tom era tão frio e tão duro que Wang Segundo ficou um pouco
aterrado e disse, para se desculpar:
Não deves perguntar-me isto e aquilo rugiu ele, batendo outra vez
com a mão na mesa. Sei o que devo fazer e tenho necessidade de dinheiro até
ao momento em que possa fazer-me senhor de um território. Então, poderei
lançar impostos sobre a população como eu quiser. Mas agora preciso de
dinheiro. Ajuda-me e serás certamente recompensado. Não me ajudes... e
poderei muito bem esquecer que és do meu sangue
Sim, sim, está entendido, fá-lo-ei. Sou teu irmão. Mas quando
começaremos?
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A colheita do trigo será daqui a poucos mesesrespondeu lentamente
Wang Segundo, reflectindo e hesitante enquanto falava, porque se sentia
atónito com tudo quanto acabava de ouvir.
Visto que é assim tão urgente, tenho de regressar sem demora para
ver o que posso fazer, porque as colheitas depressa se gastam e então os
camponeses julgam-se outra vez pobres e cheios de trabalho com a pouca
terra que têm a semear e parecer-lhes-á demasiado ter ainda mais terra.
5-w. L.
65
E concluiu que tudo estaria bem se fizesse todo o possível para o
ajudar a triunfar; pelo menos, por causa do filho, faria
Mas o pálido jovem que era o filho de Wang Mais Velho pôs-se a
chorar quando viu o tio partir; e como chorava muito alto, Wang Segundo saiu
mais depressa. Mas o barulho dos soluços perseguia-o, e por isso se apressou
a alcançar a porta dos leões, a fim de não mais os ouvir.
66
CAPÍTULO VII
COMEÇOU então aquela empresa, empresa tal que, se a alma de
Wang Lung não estivesse num país longínquo, teria feito levantar-se o seu
corpo da terra onde dormia, porque durante a sua vida ele odiara acima de
tudo a guerra e os soldados, e eis que a sua boa terra ia ser vendida por uma
tal causa. Mas dormia ali e ali continuou a dormir e não havia ninguém para
deter os filhos no caminho que levavam; não, não havia ninguém, a não ser
Flor de Pereira, que durante muito tempo não soube o que eles faziam. Os dois
filhos mais velhos receavam-na pela sua fidelidade a seu pai e ocultavam-lhe
os seus projectos.
67
!’!
que isso, como seu irmão mais velho, e os olhos chamejavam-lhe e
cochichou em voz rouca:
Disse sempre que o nosso irmão não era um rapaz como os outros.
Fui eu que pedi ao nosso pai que o tirasse dos campos e lhe desse um
preceptor para o instruir, como a filho de grande proprietário. O meu irmão não
esquecerá certamente o que o seu irmão mais velho fez por ele, e que sem
mim não passaria de um criado nas terras de seu pai.
Ora, fora decidido, visto que Wang o Tigre desejava dinheiro, que lhe
dariam a maior porção de terra isolada e era a mais afastada da cidade e era
cultivada agora por um só rendeiro, um homem em boa situação económica. O
negócio foi fechado com este pelos dois irmãos, e tiveram o cuidado à ida
como à vinda de não passar perto da terra onde habitava Flor de Pereira.
Flor de Pereira podia muito bem passar sem nunca ter ouvido
68
falar daquela venda, porque Wang Segundo era astuto além de toda
a medida, nunca aludindo a nada do que fazia, nem sequer ao trazer-lhe nos
devidos prazos a pensão que lhe fora atribuída. Eram vinte e cinco moedas que
ele lhe trazia todos os meses, como Wang o Tigre dissera, e da primeira vez
em que o fez, ela disse-lhe na sua voz suave:
Aceite-o, porque o meu irmão mais novo disse-me que devia tê-lo e
da sua parte o recebe.
Sim, talvez seja melhor assim, visto que a outra concubina, que é
mais velha, tem isso, e é justo que tenha um pouco menos. vou explicá-lo ao
meu irmão.
E assim ela podia muito bem não chegar a saber nada da venda da
terra se não acontecesse que, no mesmo ano em que o rendeiro comprara o
primeiro quinhão, o corcundinha filho de Wang Mais Velho seguisse de longe o
seu pai sem este dar por isso.
70
preocuparam com ele e não o obrigaram a aprender a ler nem
a fazer nada, e ele aprendeu desde cedo a subtrair-se aos olhos das
pessoas, e particularmente das outras crianças, que zombavam
cruelmente dele por causa da sua deformidade. Calcurriava as ruas ou
ia sozinho pelos campos além, mancando e levando às costas aquela
grande bossa.
Ora não era senão a pobre idiota de Wang Lung, e estava ali
sentada ao Sol como tinha por costume, mas era agora no corpo mulher
feita, e mais do que isso, porque passara já os quarenta anos e tinha
fios brancos nos cabelos. Mas era a mesma pobre menina ali sempre a
fazer caretas e torcer nas mãos a sua ponta de trapo. O corcunda
olhava-a com espanto, pois nunca até então a vira, e com o seu ar
malicioso pôs-se a imitá-la e a fazer carantonhas, e deu-lhe com tanta
força estalos com os dedos debaixo do nariz, que a pobre criatura
começou a soltar gritos de terror.
71
Creio na verdade que a tua boca tem um certo ar de semelhança
com a boca do meu falecido senhor, que descansa agora além, sob a
tamareira. E ele faz-me tanta falta, que eu gostaria que tu viesses aqui muitas
vezes, visto teres um ar de parecença com ele.
Eu queria que não me fizesse chorar assim... Não sei porque choro
assim...
72
Mas o garoto exclamou, no jeito de se vangloriar: Sim, ele vai tornar-
se o maior general e eu acho que um soldado, se é corajoso e bom herói, é a
coisa mais maravilhosa que se pode ser. E nós vamos todos ser grandes com
ele. Todos os meses, o meu pai e o meu segundo tio enviam dinheiro ao meu
tio soldado, em previsões da época em que ele será uma grande
personalidade, e um feio homem de beiço rachado é que vem buscar o
dinheiro. Mas um dia tudo isso voltará à nossa mão, pois ouvi meu pai explicá-
lo assim a minha mãe.
E de onde vem todo esse dinheiro, não me dirás? Será o teu segundo
tio que o tira do seu comércio para o emprestar?
73
tinham verdadeiramente feito das boas terras que tinham recebido
de seu pai, principalmente da terra que ele lhes mandara conservar para as
futuras gerações da família.
Pois embora Wang Lung tivesse morrido, vivia sempre para Flor de
Pereira e, para ela, a sua alma andava sempre em redor dos campos e sentia
que ele certamente saberia quando os vendessem. Sim, de cada vez que uma
fresca e suave brisa lhe batia de súbito no rosto de dia ou de noite, ou que um
pé de vento redemoinhava na estrada, desses ventos que outros receiam por
causa do que têm de estranho, levando-os a dizer que são almas errantes que
passam, Flor de Pereira erguia o rosto e sorria quando um tal vento lhe soprava
na face, e isso porque julgava poder ser a alma do velho que tinha sido um pai
para ela e mais querido do que o pai que a vendera.
74
Quando chegou ao portão da casa da cidade, franqueou-o sem fazer
anunciar a sua vinda. O velho porteiro, sentado ali, no limiar, meneando a
cabeça, com os lábios entreabertos, mostrando um dos três únicos dentes que
lhe restavam na boca, teve um sobressalto quando ela passou pela frente dele,
mas reconheceu-a e recomeçou a menear a cabeça. Como tinha projectado,
Flor de Pereira seguiu direita a casa de Wang Mais Velho, pois, embora o
detestasse cordialmente, tinha mais esperança de comover este do que o
coração ávido de Wang Segundo. Sabia também que Wang Mais Velho raras
vezes era voluntariamente desagradável e sabia que, se ele era um pouco
ingénuo, não deixava também por vezes de mostrar bom coração, e acontecia-
lhe até ser benévolo, se isso de momento o não perturbava demais. Mas ela
temia os pequeninos olhos semicerrados do segundo filho.
E recentemente dissera-lhe:
Disse isso quando soube que Flor de Pereira dava a sua atenção às
religiosas do convento situado não longe da casa de adobe. Eis por que Flor de
Pereira a vinha agora procurar. A linda escrava não demorou a voltar,
passeando por aqui e por além olhares furtivos para ver se o rapaz ainda ali se
encontrava, e disse:
Ora, aconteceu que naquele dia Wang Mais Velho se levantara muito
tarde, porque fora a um banquete na noite anterior, num lindo restaurante da
cidade. Fora um soberbo festim regado com os melhores vinhos e detrás da
cadeira de cada conviva uma linda cantora de aluguer estava encarregada de
lhe servir de beber, cantar e palrar e fazer tudo quanto o conviva a quem ela
era destinada pudesse ainda ter desejo de lhe mandar fazer. Wang Mais Velho
comera lautamente e bebera mais do que habitualmente e a sua cantora, uma
rapariguinha muito bonita de não mais de dezassete anos, era tão hábil de
seduções que dir-se-ia habituada aos homens pelo menos há dez anos.
Mas Wang Mais Velho bebera tanto que, mesmo já de manhã, não se
recordava de tudo o que se passara na noite precedente, e chegou à sala
sorridente, bocejando e espreguiçando-se, sem reparar que se encontrava ali
alguém que chegara antes dele. Na verdade, os seus olhos demoravam a
aperceber-se, naquela manhã, fosse do que fosse, porque sorria a sós consigo
e, pensando interiormente na rapariguinha, lembrava-se de que ela lhe metera
a ágil mãozinha entre a túnica e o pescoço, para o arreliar quando ele brincava
com ela. E ao tornar a pensar naquilo, disse de si para si que perguntaria ao
amigo que o convidara onde habitava aquela rapariguinha e a que casa pública
pertencia, e que iria lá procurá-la, para ver o que valia.
Então Flor de Pereira disse, num tom de violência que ninguém lhe
ouvira ainda:
Não, não senhor... soube-o dos lábios de alguém que diz a verdade.
(Não quis revelar por quem o soubera, com receio de que aquele homem
batesse no seu pobre filho corcunda; eis por que se absteve de proferir o nome
do rapaz e prosseguiu): Já não reconheço os filhos do meu senhor ao ver como
são capazes de lhe desobedecer assim. Fraca e indigna como sou, tenho o
dever de falar e de lhe dizer isto: o meu senhor não deixará de se vingar! Não
está tão longe como julgam e a sua alma anda ainda a peregrinar pela sua
terra, e quando a vir vendida, achará maneira de se vingar dos filhos que se
recusam a obedecer a seu pai!
Ao ouvir aquilo, Flor de Pereira abriu a boca para falar, mas antes
que tivesse proferido uma palavra, a esposa de Wang Mais Velho entrou.
Estava nesse dia mal disposta e zangada com o seu senhor, porque o sentira
entrar em casa embriagado e a falar de uma rapariga qualquer com quem
estivera. Ao vê-lo, então, lançou-lhe um olhar de desprezo, de maneira que ele
se apressou a sorrir e a dirigir-lhe um pequeno cumprimento negligente, como
se nada houvesse entre eles, mas sem deixar de air olhando disfarçadamente,
e sentindo-se muito satisfeito de que
77
Flor de Pereira ali estivesse, porque a sua esposa era demasiado
orgulhosa para lhe dizer o que tinha a dizer-lhe de outra maneira que não fosse
a sós. Mostrou grande volubilidade e afectou interesse por tactear o bule que
estava em cima da mesa, a ver se estava ainda quente e disse:
Ah! Eis a mãe dos meus filhos. Talvez já tenhas o chá quentinho... Eu
ainda não comi e estava a preparar-me para ir à casa de chá, para o tomar ali.
Vou-me e não as incomodo... Sei muito bem que as senhoras têm coisas a
dizer umas às outras que não são próprias para que nós outros, homens, as
ouçamos.
Ninguém pode imaginar o que é a minha vida com este homem! Dei-
lhe a minha mocidade e a minha beleza, e nunca me queixei, apesar de tudo
quanto lhe suportei, mesmo depois de ter tido três filhos, mesmo depois de ele
ter tomado para sua companhia uma vulgar rapariga do povo, uma daquelas
que eu poderia ter contratado por criada. Não, tudo eu suportei, mostrei-me
paciente perante tudo quanto ele fazia, embora não tenha sido de modo algum
habituada a maneiras tão vulgares como as suas.
Todos sabemos muito bem como sois uma boa esposa e ouvi às
religiosas que sois capaz de aprender os ritos sagrados mais depressa do que
qualquer irmã conversa a quem os tenham ensinado.
E começou a falar das orações que rezava e quantas vezes por dia, e
afirmou que chegaria a fazer voto de renunciar a comer carne, e que convinha
a todos os mortais pensarem a sério no futuro, visto que só há Céu e inferno
como lugares de descanso para todas as almas, até ao momento de se renovar
o amargo
78
ciclo da vida, e os bons têm a sua recompensa como os maus têm a
deles.
Não sei, minha senhora, o que o seu senhor lhe conta dos seus
negócios, mas se pudesse por vezes lembrar-lhe a última recomendação do
pai, que foi não vender a terra, pedir-lhe-ia que o fizesse. O meu próprio
senhor trabalhou toda a vida para reunir estas terras, a fim de que os seus
filhos de cem gerações possam repousar num sítio seguro e não é, certamente,
bem que já nesta geração sejam vendidas. Solicito o seu auxílio, senhora!
Quando Flor de Pereira ouviu uma vez mais o que já ouvira, ficou
mais tranquila, pensando que devia ser verdade. Sentiu-se, portanto, um
pouco reconfortada. Inclinou-se e despediu-se com a sua meiguice calma e
com todos os sinais de respeito pela dama, de modo a deixá-la bem disposta e
satisfeita consigo própria. E Flor de Pereira voltou à casa de adobe.
80
CAPÍTULO VIII
6-w.l.
81
o seu cobertor, atá-lo às costas e pegar na espingarda, se a tinha,
tomando também a do camarada, se era possível fazê-lo sem o acordar; ora
isto não era fácil porque, segundo o regulamento, cada homem dormia deitado
em cima da espingarda, de tal modo que, se alguém fazia um movimento para
a agarrar debaixo dele, acordava e podia dar o alarme. Esta medida provinha
de que uma espingarda era um objecto muito precioso, que podia vender-se
por um monte de dinheiro, e havia quem roubasse uma espingarda para a
vender depois das grandes perdas ao jogo ou pelo facto de estar meses sem
receber soldo, pois não havia guerra, e por isso também nem despojos nem
outras entradas de dinheiro. Sim, se um soldado perdia a sua espingarda, era
uma coisa grave, porque se compram as espingardas nos países estrangeiros e
muito distantes. Nessa noite, portanto, os homens que saíram sub-
repticiamente levaram as espingardas que puderam, mas não conseguiram ao
todo mais de vinte ou cerca disso, além das suas próprias, porque os soldados
dormiam todos com grandes precauções. Vinte, no entanto, já era qualquer
coisa pois lhes permitia aumentar o seu número em vinte homens.
82
demasiado cedo em luta com os soldados do Estado, que eram por
vezes enviados contra os senhores da guerra, tais como Wang o Tigre tinha
intenção de ser. Não receava, no entanto, nem um nem outro desses dois
perigos, porque a cólera do velho general depressa se esvaía, e, quanto ao
Estado, era aquela uma época em que acabara uma dinastia sem que
nenhuma outra se lhe viesse substituir, de modo que o Estado se encontrava
fraco, os bandidos prosperavam e os senhores da guerra lutavam com ardor
uns contra os outros para obter a mais alta situação, e não havia ninguém que
disso os impedisse.
Foi portanto àquele templo que Wang o Tigre se dirigiu naquela noite
sombria levando consigo o pálido filho de Wang Mais Velho. Era muitas vezes
um enigma para ele saber o que faria daquele tímido e timorato jovem. O
outro, o Bexigoso, alegrara-se com a aventura e partira muito alegremente a
fazer o que lhe diziam, mas este escondia-se, para que o não vissem; quando
Wang o Tigre, numa voz de trovão, lhe gritou que o seguisse, ele deslizou
estremecendo atrás do tio, e quando Wang o Tigre voltou para ele a luz do
archote aceso, notou que o rapaz estava coberto de suor. Então, berrou-lhe
com desprezo:
Ah! Tu vieste!
E clamava-lhes:
85
bandeiras desfraldadas, iluminando e alterando de instante a
instante a expressão da sua fisionomia. Quando acabou de falar, todos os
homens se puseram em pé e um imenso clamor se ergueu da multidão:
E era bem esse o aspecto de Wang o Tigre, tão esbelto e alto ele era
e de movimentos ágeis, com um rosto a estreitar no queixo e de malares
salientes e muito altos, vivos olhos brilhando de um duro fulgor e acima deles
as compridas sobrancelhas pretas pesando sobre os olhos e ensombrando-os
de tal modo que, quando fixava o olhar, pareciam os olhos espiar e luzir no
fundo de uma caverna. Quando erguia as sobrancelhas, os olhos pareciam
saltar de debaixo delas e todo o rosto se lhe alargava de súbito como o de um
tigre no momento de saltar.
Wang o Tigre ficou muito satisfeito por tudo isso que possuía.
Sobrara comida ainda para três dias, e concebeu portanto o projecto de
partir de noite tão depressa quanto possível para novas terras, no
Norte. Mesmo quê não detestasse aquela região meridional, teria ido
para outro sítio, porque o velho general era tão indolente que há dez
anos ou mais não se. mexera daquele ponto e vivia à custa dos
habitantes, acabrunhando-os com
87
impostos muito além do que lhes era possível pagar, tomando
por isso uma boa parte dos seus cereais. com tais processos, reduzira a
população à miséria e já nada tinha a tirar dela, e eis porque Wang o
Tigre tinha de partir em busca de países menos explorados.
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que nada tinha a temer, porque aqueles homens quase há um
ano não recebiam soldo e só permaneciam fiéis para terem a
possibilidade de nada fazer e de serem, apesar de tudo, sustentados.
Mas se lhes fosse exigido combater, exigiriam o soldo antes de se
decidirem a tal e Wang o Tigre sabia que, quando se chegasse a isso, o
velho general se recusaria a pagar-lhes e que por isso dentro de um ou
dois dias a sua cólera arrefeceria, encolheria os ombros e voltaria para
junto das suas mulheres, e os seus soldados voltariam a dormir ao Sol,
só acordando para comerem e adormecerem outra vez.
89
CAPÍTULO IX
DURANTE três dias, Wang o Tigre permitiu aos seus homens que se
divertissem e eles comeram tanto quanto puderam e beberam os odres de
vinho até às fezes. Quando ficaram satisfeitos, como não se tinham sentido há
muitos meses, cheios e fartos de comida, e depois de dormirem à saciedade,
levantaram-se fortes, quesilentos e apaixonados. Ora, Wang o Tigre vivera
durante todos esses anos no meio dos soldados e aprendera a conhecer bem
os homens, e sabia como se devem manejar indivíduos robustos, vulgares e
ignorantes, como se deve espiar e aproveitar o que eles dizem, e como se
deve fingir dar-lhes liberdade, mantendo-os o mais possível na trela da sua
própria vontade. E assim, quando ouviu os seus homens travarem facilmente
disputas e ameaçarem-se uns aos outros, a propósito de nada ou por causa de
ninharias, e quando viu que alguns começavam a pensar nas mulheres e a
correr após elas, compreendeu que chegara a hora em que era necessário
empreender qualquer coisa de penoso.
90
houve cinco entre os mais velhos que se entreolharam
dubitativamente e fixaram a espada fulgurante que ele mantinha em
riste por cima das suas cabeças, depois, sem uma palavra, levantaram-
se, retiraram-se e desceram a montanha e ninguém tornou a vê-los.
Wang o Tigre seguiu-os com o olhar, mantendo sempre a espada imóvel
e clamou:
Há ainda mais?
91
Dizendo isto, saltou para o cavalo, grande bicho de cor
arruivada, ossudo, e com longa cauda frisada, que provinha das
planuras da Mongólia, cavalo fortíssimo e infatigável. Era necessário
que fosse assim nessa noite, pois debaixo dele Wang o Tigre pusera a
maior parte do dinheiro que levava, e o que não podia levar no cavalo
entregara-o ao seu homem de confiança e a alguns outros menores
importâncias, e assim, se um deles cedesse a uma tentação que pode
muito bem assaltar qualquer pessoa, não seria grande o prejuízo. Mas,
apesar da sua cavalgadura ser resistente, Wang o Tigre não lhe exigia
rapidez. Compassivo, no fundo, moderou o andamento do cavalo e
manteve-o a passo, por consideração para com os seus homens que
não possuíam montadas e tinham de seguir a pé. De um e outro lado,
cavalgavam também os seus dois sobrinhos, a quem ele tinha
comprado burros, cujas curtas patas não podiam rivalizar com o passo
do cavalo. Dos seus homens, uns trinta seguiam a cavalo e os outros a
pé, e Wang o Tigre separou os seus cavaleiros do resto e pôs metade à
frente, metade atrás, e os soldados de infantaria no meio.
Ora, quando Wang o Tigre assim falava, cada um dos seus homens
detinha-se para o ouvir e para reflectir, pois viam-lhe os olhos fulgurar sob as
sobrancelhas e muito bem sabiam que, apesar do seu bom fundo, o capitão
não receava matar um homem. Os jovens soltavam murmúrios de admiração,
porque nesses tempos Wang o Tigre era o seu herói, e gritavam-lhe: «Ah,
Tigre... Ah, Tigre de sobrecenho negro!» E assim iam marchando ou se
detinham sob o seu comando e cada homem obedecia a Wang o Tigre ou, no
caso contrário, se escondia dos seus olhos.
94
se teremos feito bem em seguir um homem feroz e altivo como este!
E outro acrescentava:
Ora, Wang o Tigre sabia que o seu homem de confiança tinha razão,
e eis por que se aproximou dos seus homens que estavam estendidos,
fatigados e silenciosos, à sombra do zimbro, e lhes disse com mais afabilidade
do que era habitual:
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darei comprar algumas cabeças de gado, assim como porcos e patos
e gansos, e vós comereis tanto quanto vos apetecer. Tereis também vinho, e
aqui há o melhor do país, vinho capitoso e claro, cujos vapores facilmente se
dissipam. E cada homem terá três moedas de prata como recompensa.
Eh! rapazes! Os vossos pais vão ficar contentes de vos ver e durante
sete dias vou eu descansar também, porque a nossa guerra espera-nos.
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de adobe sem se deter, pois não se aproximou muito de propósito e
os seus dois sobrinhos seguiam-no nos seus burros. Chegaram assim à cidade
e atravessaram outra vêz as velhas portas e chegaram a casa. pela primeira
vez, há muitos meses, um pálido sorriso iluminava a fisionomia do filho de-
Wang Mais Velho, que mostrou entusiasmo em dirigir-se para sua casa.
7-w. L.
97
CAPITULO X
99
de boca deliciosa, o fixava obstinadamente, cantando a sua
cançoneta, ele atirou-lhe estas palavras: «Estou farto disto tudo!»
Levantou-se desabrido e foi-se embora, e Wang Mais Velho teve de o
seguir, conquanto fosse contra sua vontade deixar uma tão boa
representação.
Foi assim que ele falou, um dia em que a esposa de Wang Mais
Velho teve a ideia de vir solicitá-lo um pouco e dizer-lhe algumas boas
palavras em favor do seu segundo filho. Entrou uma tarde no quarto em
que Wang o Tigre estava a beber chá, estando Wang Mais Velho sentado
ao pé de uma mesinha, a beber vinho. Entrou com passinho miúdo, o ar
modesto, os olhos baixos, e inclinou-se e requebrou-se sem sequer olhar
os homens. Mas quando a viu chegar, Wang Mais Velho limpou a cara à
pressa e serviu-se de uma chávena de chá, em vez de vinho que tinha
ali quente, num pichel de estanho.
100
Wang Mais Velho oferecia pela filha. E assim ele julgara que
sua esposa não podia ter ouvido falar disso. Limpou outra vez o rosto
com a manga, desviando os olhos dela, e bebeu o seu chá lentamente a
grandes goles sonoros.
Disse de mim para mim que, embora humilde como sou, não
passando de uma pobre mulher, nem por isso sou menos a mãe do meu
filho e devo agradecer ao meu cunhado o que fez pelo nosso indigno
filho segundo. Embora os meus agradecimentos nada valham para uma
personalidade como vós, é no entanto para mim um prazer fazer aquilo
que devo e assim faço, a despeito de todos os fardos e de todas as
privações que tenho de suportar.
101
um tal discurso, mas Wang Mais Velho estava trémulo, porque sabia
que nunca ninguém falara tão claro a sua mulher, e o rubor subiu-lhe às faces
e abriu a boca para dar uma resposta azeda. Mas, antes que tivesse tempo de
dizer uma palavra, o filho mais velho saiu de repente de detrás de um
cortinado onde estava a ouvir e exclamou fogosamente:
Eis a maior insânia que jamais ouvi. És o filho mais velho e o chefe
da casa, depois do teu pai. Como poderíamos nós deixar-te ir para a guerra e
talvez até entrares numa batalha e morrer? Nada poupámos por amor de ti;
mandámos-te a todas as escolas da cidade e demos-te letrados para te
ensinarem, e chegámos até a mandar-te para o Sul frequentar uma escola.
Como poderíamos nós deixar-te ir para a guerra? (Depois, vendo que Wang
Mais Velho permanecia em silêncio e abanava a cabeça, continuou com
secura). Terei eu também de tomar sozinha este fardo sobre os meus ombros?
A tua mãe tem razão, filho. Ela tem sempre razão, não podemos
comprometer-te em tal aventura.
Toma lá, filho, e vai comprar qualquer coisa que te agrade ou gasta-o
ao jogo ou no que quiseres.
E retirou-se.
Então Wang o Tigre olhou para o irmão mais velho com severa
piedade e calaram-se durante um momento. Wang Mais Velho recomeçou a
beber, embora o fizesse agora sem gosto, e o seu largo rosto exprimisse
melancolia. Por fim, disse mais pensativamente do que lhe era hábito, e
soltando um profundo suspiro antes de falar:
Há uma coisa que é para mim um enigma e é esta: que uma mulher
possa ser tão meiga e tão dócil perante a vontade de um homem quando é
jovem e que com a idade se torne uma pessoa completamente diferente e seja
vexante e atormentadora e destituída de todo o bom senso, a ponto de tornar
um homem maluco. Desejaria poder passar sem as mulheres, pois estou
convencido de que a segunda virá a ser como a primeira, e que são todas
assim. E olhou o irmão com estranha inveja e ar tão tristonho como o de uma
criança crescida, e continuou tristemente: Tu és feliz, mais feliz do que eu;
estás livre de mulheres e livre da terra. Eu encontro-me ligado duplamente. Se
eu próprio não administro, não tiro nada dela, porque os malditos camponeses
são todos uns ladrões, aliados contra o proprietário, por mais
103
justo e por melhor que ele seja. E quanto ao meu intendente, quem
ouviu falar alguma vez de um intendente honrado?Nos grossos lábios passou-
lhe um sorriso dolorido e, suspirando outra vez, olhou novamente o irmão, e
depois continuou: Sim, tu és feliz. Não tens terra e não estás ligado a
nenhuma mulher.
Ora, quando Wang o Tigre chegou à casa do seu segundo irmão, não
pôde deixar de se maravilhar ao ver como ela era diferente da outra, e como
ali reinava uma boa disposição, a despeito das disputas e das questões entre
os pequenos. Todo o barulho e o bom humor se concentrava na esposa
campónia de Wang Segundo. Era uma bulhenta e exuberante companheira, e
de todas as vezes que falava, a sua voz alta e sonora ressoava pela casa fora.
E embora perdesse a paciência vinte vezes por dia e vinte vezes por dia desse
sapatadas nos filhos para a direita e para a esquerda, com a manga
constantemente arregaçada até ao cotovelo, e às vezes até lançasse uma tal
bofetada na cara de um, de tal maneira que toda a casa se enchia de gritos e
berrata desde pela manhã até à noite, e embora cada criado gritasse mais
fortemente do que a patroa, isso não a impedia também de ser boa, dentro das
suas maneiras brutais, agarrando num filho que passava para lhe dar um beijo
rechonchudo no pescoço gorducho. E conquanto fosse económica, se acaso um
filho vinha pedir-lhe dinheiro para comprar a um vendedor que passava na rua
um pau de açúcar cândi ou uma taça de qualquer guloseima quente ou um pau
de cana de açúcar ou qualquer outra coisa de que as crianças gostam, ela não
deixava de mergulhar a mão nas profundezas da blusa para de lá tirar a
pequena moeda. Naquela casa ruidosa e apaixonada, Wang Segundo circulava
tranquilo, sereno e ocupado nos seus secretos planos, e sentia-se sempre
muito contente com todos e ele e a mulher viviam em perfeita harmonia.
Nesses dias, Wang o Tigre pôs de lado, pela primeira vez, os seus
projectos de glória e enquanto os seus homens descansavam e se divertiam,
ele vivia na casa do irmão, encontrando nela alguma coisa que lhe agradava.
Compreendia porque seu sobrinho o Bexigoso, sempre alegre e risonho,
provinha daquela casa, e por que motivo o outro estava sempre tímido e cheio
de medo. Sentia o contentamento que reinava entre Wang Segundo e a mulher
e sentia também o contentamento que tinham os filhos, posto que muitas
vezes não estivessem lavados e nenhum criado se ocupasse com eles, excepto
para lhes dar de comer durante o dia, ou para
104
à noite os deitar numa cama ou noutra. Mas todos os filhos da
ninhada eram alegres e Wang o Tigre seguia-os por toda a parte com os
olhos, tendo no coração uma estranha emoção. Havia um garotinho de
cinco anos ou cerca disso pelo qual Wang o Tigre se interessava
sobretudo, pois era o rapazinho mais bonito e mais rechonchudo, e
Wang o Tigre gostaria de conciliar a sua amizade. Mas quando ele,
hesitante, estendia a mão ao menino, ou pegava numa moeda para lhe
oferecer, o pequeno tornava-se de repente grave e metia os dedos na
boca, considerava o rosto sombrio de Wang o Tigre, e fugia, abanando a
cabeça. E Wang o Tigre sentia-se tão penalizado por aquela recusa
como se o rapaz fosse um homem, embora se esforçasse por sorrir e
esconder o seu despeito.
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nou-se rápido e inclinou-se, e apresentando-lhe outra vez
desculpas, retirou-se o mais depressa que pôde. Mas ouviu o riso
escarninho das velhas que tinham recomeçado já a jogar e esse riso
perseguiu-o até ao pátio.
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inclinava a cabeça sobre o túmulo do pai e estava caída na relva à
maneira das mulheres quando choram e supõem que não há ninguém nas
proximidades e que podem chorar sem ser consoladas. Não longe encontrava-
se sua irmã, a idiota, que não via há muitos anos e que tinha agora os cabelos
quase brancos e o rosto fanado e encarquilhado. Sentada numa mancha de Sol
outonal, brincava com um pedaço de trapo vermelho, dobrando-o e tornando a
dobrá-lo e sorrindo de o ver assim vermelho, ao Sol. E agarrado docilmente à
blusa como uma criança a quem foi dada ordem de fazer qualquer coisa que
lhe agrada, estava sentado um rapazinho trôpego e corcunda. Voltava o rosto
com uma expressão de tristeza para a mulher que chorava e franzia a boca,
prestes a chorar também, por amor dela.
E continuou a correr.
Mas o homem não se voltou. Então Wang o Tigre soltou uma grande
praga e gritou ao Bexigoso:
Esse teu maldito primo não é para mim mais que um fardo e nunca
será outra coisa! Vai buscá-lo e dize-lhe que deve vir ou que eu não o quero
mais!
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espectro e tão ofegante como se, a correr, tivesse dado a volta
às muralhas da cidade. E balbuciou, entre suspiros:
108
Depois de fazer tudo quanto lhe cumpria como irmão, em tão
tristes circunstâncias, montou a cavalo e afastou-se. E, à medida que ia
seguindo, sentia-se mais triste do que antes e viu-se obrigado a
endurecer-se e a recordar-se por várias vezes de que nunca tinha batido
nem maltratado de modo algum o rapazinho, não havendo ninguém
que pudesse supor que ele se encontrava desesperado a ponto de se
tirar a si próprio a vida, e Wang o Tigre disse-se repetidas vezes que
assim fora decretado pelo Céu e que nenhum ser humano poderia ter
impedido aquele caso, pois a vida de qualquer ser está sob o poder
celeste. Assim se forçou a esquecer o pálido rapazinho e o aspecto que
tinha com a cabeça pendente do braço do pai. E Wang o Tigre disse de
si para si:
111
o solo. Essas terras tinham ainda outro valor e era que as
populações não eram muito pobres, enviando cereais aos mercados.
Então um interpelou-o:
Quando der essa ordem, sereis livres! Mas ainda não combatestes
por mim. Julgais então que vou conceder-vos as recompensas de batalha antes
da batalha?
Quando Wang o Tigre chegou à orla da região de que ouvira falar, fez
subir o seu cavalo ruivo para cima do alto túmulo monumental de um rico que
ali se encontrava, e desse observatório lançou uma vista de olhos pela região.
Era a terra mais bela que jamais vira. Estendia-se na sua frente, ondulando em
pequenas colinas baixas e em longos vales onde verdejava já um pouco o
8-w. L.
113
trigo de Inverno que há pouco brotara da terra. A Noroeste, as
colinas erguiam-se bruscamente e tornavam-se montanhas cavadas,” cheias
de falésias que se recortavam nítidas no céu límpido. As casas dos habitantes
da região estavam esparsas por pequenas aldeias e lugares, boas casas de
adobe bem tratadas, muitas das quais tinham os telhados recentemente
cobertos do colmo proveniente da colheita desse ano. Havia até algumas casas
de tijolo e cobertas de telhas. Nos pátios de entrada, bastante perto dele para
serem nitidamente visíveis, havia medas de palha. Ouvia-se perfeitamente na
distância o cacarejar das galinhas que acabavam a postura, e de vez em
quando o vento trazia-lhe pedaços de canção que um campónio cantava ao
amanhar os seus campos. Era uma belíssima terra e o coração saltou-lhe no
peito ao contemplá-la. Mas não tinha a intenção de se dirigir lá com trajo
militar e montado no cavalo ruivo, para deixar um rumor de guerra espalhar-se
demasiado cedo na população. Olhou e traçou um itinerário por um caminho
sinuoso até às montanhas, onde poderia esconder-se com os seus soldados e
reconhecer a força do inimigo, antes que ninguém pudesse saber sequer que
ele viera.
114
Procuramos abrigo para esta noite.
115
se atirou de barriga para o chão, supondo chegada a sua última
hora. Mas Wang o Tigre gritou-lhes:
Além deste dinheiro, tenho ainda mais e nada mais quero de vós do
que um abrigo por pouco tempo, como qualquer homem pode, sendo
necessário, pedir a uma igreja.
Mas Wang o Tigre não lhe prestou atenção. Interpelou o seu homem
de confiança, empolgando-o e sacudindo-o, e ordenou-lhe que se levantasse,
comesse e fosse à estalagem, no caso de alguns dos homens por lá passarem
naquela manhã. Então, o homem de confiança levantou-se, ainda tonto de
sono, esfregando a cara com ambas as mãos e bocejando de maneira horrível.
Mas vestiu-se rapidamente, mergulhou uma tijela no caldeirão e bebeu o caldo
de sorgo que o acólito estava a cozinhar. Depois, afastou-se e desceu a
montanha, com o ar de um sólido rapagão, se visto apenas de costas e não de
frente. E Wang o Tigre, que o seguia com os olhos, apreciava-o pela sua
fidelidade.
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Depois, como Wang o Tigre esperava naquele dia que os seus
homens se reunissem naquele lugar solitário, traçou o plano do que ia realizar
e decidiu quem escolheria como homens de confiança para seus auxiliares e
conselheiros. Reservou também determinados trabalhos a certo número de
homens, uns para espiões e outros para corregedores, e outros ainda para
obterem combustível, cozinhar, cuidar das armas e limpá-las, assim atribuindo
a parte que a cada um cabia na vida comum. E pensou que devia manter dura
autoridade sobre todos, e recompensá-los somente ali e quando a recompensa
era justa, e que devia organizar tudo sob o seu absoluto comando. Tinha de
dispor da vida e da morte.
Assim fez o velho sacerdote, visto que não havia outro recurso, e os
padres transportaram todos os deuses, sobre os seus pedestais, excepto o