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TRADUTOLOGIA E HERMENÊUTICA NO FAZER

HISTORIOGRÁFICO: FONTES FRANCESAS DO SÉCULO XIX


TRANSLATOLOGY AND HERMENEUTICS IN HISTORIOGRAPHY:
FRENCH NINETEENTH-CENTURY SOURCES

Cristian Cláudio Quinteiro Macedo1


Graduando/UFRGS
cristian.macedo@ufrgs.br

RESUMO
A pesquisa que desenvolvo tem como tema o Institut Historique, com sede em Paris, cujo recorte temporal
compreende os anos de 1834 a 1836. Os documentos, obviamente, são em francês. Para manejá-los havia a
necessidade de aprofundar o domínio da língua, traduzi-los. Todavia, longe ser acessória, a tradução mostrou-se
parte constituinte da operação historiográfica em questão. Ao traduzir, se faz hermenêutica, se produz
conhecimento crítico sobre a fonte. História, tradutologia e hermenêutica caminharam juntas na pesquisa,
formando um quadro necessário e producente de interdisciplinaridade. Nesse espírito, buscou-se como
referencial teórico as ideias de dois conhecidos no meio historiográfico, Paul Ricoeur e Hans-Georg Gadamer,
que pensaram o traduzir, como gradação do processo hermenêutico. Para Gadamer, o passado não é evocado
puro, ele vem das fontes, dos documentos, ele é “traduzido”. No caso de fontes estrangeiras, há uma luz que
nelas se projeta, vinda da língua e da cultura do pesquisador. É uma “reiluminação”, onde o tradutor “procura
pôr-se por completo no lugar do autor”. Em Ricoeur, o tradutor serve a dois senhores (o estrangeiro e o leitor),
sofrendo uma dupla resistência “a do texto a traduzir e aquela da língua que acolhe a tradução”. Nesse jogo de
resistências é que se percebe a impossibilidade da tradução perfeita, mas, ao mesmo tempo, se constrói um
conhecimento que toca as duas culturas, um trânsito de sentido que só contribui com a historiografia.

Palavras-chave: Tradutologia. Hermenêutica. Historiografia. Gadamer. Ricoeur.

ABSTRACT
The research I do is on the Institut Historique, which had its headquarters in Paris, with its time frame covering
the years of 1834 to 1836. The documents are obviously in French. To work on them there was the need to
deepen the mastery of language, to translate them. However, far from being incidental, the translation proved to
be a constituent part of the historiographical operation in question. To translate, therefore doing hermeneutics, is
to produce critical knowledge about the source. History, translatology and hermeneutics walked together in the
research, forming a necessary and productive framework of interdisciplinarity. In that spirit, as a theoretical
referential, it was sought two known ideas amongst the historiographical circle, Paul Ricoeur and Hans-Georg
Gadamer, they thought the act of translating, as gradation of the hermeneutical process. For Gadamer, the past is
not evoked pure, it comes from the sources of the documents, it is "translated". In the case of foreign sources,
there is a light that in them is projected, coming from both the language and the culture of the researcher. It is a
"relighting", where the translator "seeks to put themselves completely in the place of the author”. In Ricoeur, the
translator serves two masters (the foreigner and the reader), suffering a double resistance "from the text to be
translated and the language that welcomes the translation". In this game of resistance is that one realizes the
impossibility of perfect translation, but at the same time, it builds a knowledge that touches the two cultures, a
traffic of meaning that only contributes to the historiography.

Keywords: translatology. Hermeneutics. Historiography. Gadamer. Ricoeur.

1
Agradeço ao CNPQ pela bolsa de Iniciação Científica a mim concedida que possibilitou a realização da
pesquisa, ao Fernando Felizardo Nicolazzi por me orientar e à Patrícia Chittoni Ramos Reuillard por me ensinar
a traduzir.
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O presente artigo, de maneira geral, trata do uso da tradução como ferramenta na
pesquisa histórica. Especificamente, tem um forte caráter pessoal, na medida em que, tanto as
referências bibliográficas quanto as impressões aqui recolhidas, dizem respeito à minha
iniciação científica, cujos resultados parciais foram apresentados em duas abordagens nos
primeiros EPHIS (MACEDO, 2014 e 2015).
A questão que norteia esse trabalho é: Qual o uso e a importância da tradução na
pesquisa histórica? Ou, na medida em que se trata de reflexões de caráter impressionista e
individual, melhor será apresentar a questão de forma mais específica, voltando-a para um
estudo de caso que a delimita da seguinte forma: Qual o uso e a importância da tradução na
pesquisa histórica que venho realizando em minha iniciação científica?
Lidando com a produção de historiadores franceses do século XIX e problematizando-
a dentro de uma perspectiva histórica, minha proposta sempre foi lançar mão do modelo
analítico hermenêutico de Paul Ricoeur (1976). A fim de aprimorar o conhecimento em língua
francesa e buscar técnicas que permitissem traduzir os textos para depois interpretá-los à luz
da hermenêutica, caminhei alguns metros, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas até o
Instituto de Letras da nossa universidade. A partir de 2013, realizei uma espécie de dupla
formação, cursando disciplinas de língua francesa e de prática de tradução no curso de
Bacharelado em Francês, além das obrigatórias de meu curso original (Bacharelado em
História).
Longe de ser acessória, como a entendia inicialmente, a tradução mostrou-se parte
constituinte da operação historiográfica que me propunha realizar. Logo percebi que ao se
traduzir uma fonte histórica se faz hermenêutica, se produz conhecimento crítico sobre ela.
Tradutologia e hermenêutica caminharam juntas na pesquisa, formando um quadro necessário
e producente de interdisciplinaridade.
Nessa perspectiva interdisciplinar (tradutologia-hermenêutica-história), o artigo
desenvolvido tentará responder a questão proposta acima. Para tanto, apresentará
primeiramente algumas informações acerca da Tradutologia, depois trará apontamentos da
abordagem filosófico-hermenêutica em relação à tradução, tratará do modelo funcionalista de
Christiane Nord aplicado nas traduções e, por fim, pontuará algumas reflexões acerca do uso
da tradução na pesquisa histórica.

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Tradução e Tradutologia

Amparo Hurtado Albir, no primeiro capítulo de seu já clássico Traducción y


traductología, deixa clara a diferença entre as duas. A tradução é “uma habilidade, um saber
fazer” em que se deve conhecer as formas de “resolver os problemas de tradução que se
colocam em cada caso”. Trata-se se de “um conhecimento operativo [que] se adquire
fundamentalmente pela prática”. Já a Tradutologia “é a disciplina que estuda a tradução”, é
“um saber sobre a prática tradutória” (HURTADO ALBIR, 2007, p. 25).
Existem vários enfoques teóricos na disciplina tradutológica. Hurtado Albir agrupou-
os em cinco principais:
1) Linguísticos, “baseados na aplicação de modelos procedentes da Linguística e que
incidem na descrição e comparação de línguas, sem entrar em considerações de
índole textual”;
2) Textuais, onde a tradução é vista como “operação textual (e não centrada no plano
da língua)”;
3) Cognitivos, focados “na análise dos processos mentais que o tradutor realiza”;
4) Comunicativos e socioculturais, que consideram sua função comunicativa, levando
em conta “os aspectos contextuais que rodeiam a tradução e destacando a
importância dos elementos culturais e sua recepção”.
5) Filosófico e hermenêutico, que “incidem na dimensão hermenêutica da tradução,
ou em aspectos filosóficos relacionados com ela e com reflexões pós-
estruturalistas da tradução” (Ibidem, p. 126-132).
Levando em conta as discussões que se dão ao longo da formação acadêmica sobre
hermenêutica e história, principalmente graças a Reinhardt Koselleck e seu debate com
Gadamer (PEREIRA, 2011) e pela influência de Paul Ricoeur nas reflexões históricas
(NICOLAZZI, 2003 e 2005), a opção pelo enfoque filosófico e hermenêutico da tradução foi
inevitável.

Hermenêutica e tradução

Considerado o pai da hermenêutica moderna, Friedrich Schleiermacher também se


debruça sobre o problema da tradução. Inicialmente usado como base para uma conferência
de 1813, o texto Sobre os diferentes métodos de traduzir foi publicado em 1838 e é
considerado primordial aos estudos de tradução. Nele, Schleiermacher descreve os dois
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caminhos possíveis para o tradutor diante de um texto em língua estrangeira: ou leva o autor
até o leitor, produzindo um texto no qual o autor pareceria ter escrito na língua do leitor; ou
leva este até aquele, deixando visíveis as marcas do estilo e da língua de partida
(SCHLEIERMACHER, 2007).
Em verdade, não há como desvincular as reflexões hermenêuticas das tradutórias em
Schleiermacher. Celso Braida, tradutor da sua obra para o português, afirma que sua
hermenêutica nasceu de um “impulso inicial determinado pela necessidade teórica de explicar
e justificar um procedimento prático, qual seja, o da interpretação e tradução de textos antigos
clássicos” (SCHLEIERMACHER, 1999, p.14).
Após consolidada a hermenêutica como disciplina científica, principalmente pelas
contribuições de Wilhelm Dilthey e Martin Heidegger, é na obra Hans-Georg Gadamer que se
pode ver novamente a tradução como objeto de reflexão nesse campo. Gadamer, em sua obra
fundamental Verdade e Método, dedicará interessantes páginas sobre o tema.
Levando em conta que é na linguagem que se realiza um acordo entre interlocutores,
Gadamer entende que o papel do tradutor é o de permitir esse acordo, mas entre interlocutores
distantes. O texto de partida, em língua estrangeira à do leitor, precisa ser traduzido para que
se produza o entendimento. O tradutor precisa manter o sentido, lançando mão da forma que a
língua do leitor tem à disposição. Nessa perspectiva, Gadamer afirma que “toda tradução já é,
por isso, uma interpretação, a qual o tradutor deixa amadurecer na palavra que se lhe oferece”
(GADAMER, 1997, p. 559-560).
Para o autor, o problema hermenêutico na tradução não dizia respeito ao “correto
domínio da língua”, mas ao “correto acordo sobre um assunto”. O texto de chegada seria fruto
da compreensão do tradutor. Gadamer escreveu que “como toda interpretação, a tradução
implica uma reiluminação. Quem traduz tem de assumir a responsabilidade dessa
reiluminação”. Nesse sentido, a boa tradução “torna-se mais clara e mais fluente que o
original” (Ibidem, p.562-563).
Apesar de parecer que a tradução como reiluminação daria maior liberdade ao tradutor
na confecção de seu texto de chegada, ainda assim Gadamer trata da questão autor-leitor
explorada por Schleiermacher:

o tradutor tem que manter [...] o direito de sua língua materna à qual traduz e, no
entanto, deixar valer junto a si o estranho e inclusive o adverso do texto e sua
expressão. Todavia, esta descrição do fazer do tradutor talvez esteja muito resumida.
Mesmo nas situações extremas, nas quais deve-se traduzir de uma língua a outra, o
tema mal se pode separar da língua. Somente o reproduzirá de verdade aquele
tradutor que consiga trazer à fala o tema que o texto lhe mostra, e isto quer dizer que

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venha a encontrar uma linguagem que não somente seja a sua, mas também a
adequada ao original (Ibidem, p. 564).

Sem exigir uma escolha do tradutor, entre atender mais um do que outro, Gadamer
apresenta um paradoxo ao propor que o tema do original só pode ser reproduzido
verdadeiramente numa linguagem que atenda a ele (original) e a língua da cultura do texto de
chegada. Seguindo o enfoque hermenêutico, é em Paul Ricoeur que veremos caminhos de
solução a esse paradoxo.
Ricoeur se demora na reflexão das questões tradutórias em seu livro Sobre a
Tradução. Para ele, traduzir é estar em um jogo de “grandes dificuldades” e “pequenas
felicidades”. Evocando Walter Benjamin, Ricoeur faz sua abordagem na perspectiva
freudiana de “trabalho” entendendo a tradução como “trabalho de lembrança” e “trabalho de
luto”. Na mesma medida em que deve “salvar”, a tradução não consegue evitar perdas em
elementos do texto de partida (RICOEUR, 2004, p. 7-8).
Entre o autor estrangeiro e o leitor, o tradutor é o mediador, o servidor desses dois
senhores. Cada um deles apresenta, àquele que serve, duas resistências: a da obra (por ser
estrangeira) e, do outro lado, do desejo do leitor de se apropriar do texto. Ao longo de sua
operação, o tradutor se vê diante delas, ora cedendo ao estrangeiro, ora domesticando o texto
para atender ao leitor. Todavia, nesse processo ele percebe que a tradução ideal é impossível,
para realizá-la ter-se-ia que vencer o paradoxo de servir totalmente os “dois senhores”
(Ibidem, p. 9).
A confecção de um duplo idêntico em língua estrangeira não é factível. Renunciar ao
ideal de tradução perfeita é no que consiste o trabalho de luto proposto por Ricoeur. Luto este
que permite levar o leitor ao autor e, ao mesmo tempo, levar o autor ao leitor, ou seja, realizar
as duas vias propostas por Schleiermacher, mas sem ter que escolher necessariamente apenas
uma. A felicidade do tradutor está em hospedar o estrangeiro na língua de chegada, trazê-lo e
acolhê-lo em sua diferença (Ibidem, p.19).
Gadamer e Ricoeur apresentam abordagens hermenêuticas diferentes, apesar de
próximas em alguns pontos2. Independente disso, suas reflexões acerca da tradução e do papel
mediador do tradutor frente ao texto, à linguagem e aos participantes do processo (autor e
leitor), são imprescindíveis a quem deseja bem fundamentar sua ação tradutória e
compreender a dimensão interpretativa que há nela.

2
Sobre as semelhanças e diferenças entre suas ideias ver LAUXEN (2012).
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Tipologia funcional da tradução

Uma fundamentação filosófico-hermenêutica, apesar de importantíssima, não


evidencia uma prática tradutória, isto é, não dá os caminhos operacionais do processo de
traduzir. A dimensão interpretativa de Gadamer ou a dimensão ética de Ricoeur não são
suficientes para que nos debrucemos diante dos documentos e produzamos translatos de
qualidade e úteis à operação historiográfica. Para tanto, há que se buscar perspectivas de
tradução dentro da ciência tradutológica.
Entre as perspectivas tradutórias, a que mais atendeu à prática relacionada à pesquisa
desenvolvida foi a funcionalista, em especial a elaborada pela tradutóloga alemã Christiane
Nord.
O funcionalismo entende a tradução como ação comunicativa, uma produção de um
texto em uma língua de chegada que leva em conta o seu escopo. Ou seja, a finalidade da
tradução tem enorme importância no processo. A função que a tradução, ou translato,
exercerá deve ser especificada antes do início do trabalho. Nesse sentido, surge a noção de
encargo que se unirá às figuras até então centrais no processo tradutório: o escritor e o leitor.
Para o tradutor profissional, seu cliente é quem emite o encargo. Mais do que ao texto
original, o tradutor deve lealdade a todos os participantes da ação (cliente, público da língua
de chegada, autor do texto de partida) que, segundo Nord, “precisam poder acreditar que o
encargo foi executado da melhor maneira possível” (NORD, 2016, p.14).
A tradutóloga propõe dois tipos de tradução: a de função instrumental e a de função
documental. Enquanto na primeira “o translato atua, em uma nova ação comunicativa na
cultura de chegada, como instrumento para alcançar um objetivo comunicativo” (Ibidem, p.
19), na segunda o translato documenta uma ação comunicativa ocorrida na cultura do texto de
partida (Ibidem, p.16).
A tradução instrumental pode ser equifuncional (quando o texto de chegada tem o
mesmo objetivo comunicativo do texto de partida), heterofuncional (quando o texto de
chegada não pode cumprir as mesmas funções do texto de partida) e homóloga (traduções de
textos artísticos e traduções livres) (Ibidem, p. 19-20).
A tradução documental é distribuída em quatro subtipos:
1) palavra por palavra (privilegia as estruturas morfológicas, lexicais e sintáticas
do texto de partida — o que muitas vezes acarreta uma falta de sentido no texto de
chegada);
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2) literal (é diferente da tradução palavra por palavra apenas na medida em que,
quando há uma estrutura sintática da língua de partida que não tenha correspondência
na língua de chegada, o tradutor substitui essa estrutura para dar sentido ao texto);
3) filológica (também chamada de estrangeirizadora e de erudita, reproduz o
conteúdo além da forma, levando ao limite a tolerância gramatical da língua de
chegada para transmitir o pensamento expresso no texto de partida);
4) exotizante (quando o estranho é aceito para obter um efeito estrangeirizador no
texto de chegada — muito comum em textos literários) (Ibidem, p. 16-18).

A tradução na pesquisa histórica

Diante dos escritos de historiadores do Institut Historique de France, atribuí como


encargo tradutório a elaboração de textos de chegada que pudessem ter a função de fonte
documental para minha pesquisa. Dentro da tipologia funcional da tradução, aquela que mais
se ajustava a essa função era a documental, em seu subtipo filológica. Uma tradução
documental filológica, já brevemente apresentada na seção acima,

reproduz o texto base o mais literalmente possível (sem violar as normas do sistema
da língua meta), porém acrescentando as explicações necessárias sobre a cultura
base ou certas características específicas da língua de partida em notas re rodapé ou
glossários (NORD, 2009, p. 228).

Ao separar os textos para tradução, acreditava estar realizando uma ação que
antecederia a prática historiadora. Após traduzir as fontes, o passo seguinte seria a crítica
documental, com base na hermenêutica textual, a fim de recolher elementos para confirmar ou
não minha hipótese de trabalho. No entanto, a operação historiográfica já estava ocorrendo.
Cada palavra, cada frase daquele francês oitocentista trazia problemas de tradução que
levavam a uma constante pesquisa em obras coevas, como enciclopédias, gramáticas,
dicionários bilíngues e monolíngues e também obras científicas e literárias.
Na prática, as afirmações de Gadamer, de que a tradução é um processo hermenêutico,
se realizavam. Perguntas tradutórias se misturaram a perguntas históricas, o que permitiu que
a produção historiográfica fosse concretizada ao mesmo tempo em que a tradução era feita,
seguindo os protocolos tradutológicos funcionalistas.
O rigor diante da melhor tradução de um termo, por exemplo, leva a uma questão
básica: o que significa? Quando tratamos de uma fonte histórica, a pergunta ganha um caráter

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temporal: o que significava? É uma questão que atende ao mesmo tempo às demandas
tradutórias, hermenêuticas e históricas. A interpretação, nesse sentido, é movimento
intelectual do tradutor, do hermeneuta e do historiador diante da sua matéria-prima que é o
texto.
Levando em conta que problemas exigem ferramentas específicas para serem
resolvidos, mergulhar em outra cultura, deslocada de nós em tempo e espaço, exige
compreender documentos. A compreensão histórica que prescinde dos documentos escritos e
sua leitura crítica, quando se volta a um contexto distante do pesquisador, passa a exigir o
conhecimento da língua estrangeira como nova ferramenta. É claro que é bem possível que se
produza uma pesquisa histórica sem aprofundado conhecimento da (ou até mesmo
desconhecer a) língua em questão. Aí se lança mão de fontes e bibliografia traduzidas, mas
não é o que parece ser recorrente em nosso meio. Talvez por que, na prática, os historiadores
perceberam que a ação de traduzir um documento propicia a apropriação de elementos
culturais e de informações ofertadas pelo texto que já denotam uma ação hermenêutica.
Quando um historiador lê criticamente um documento em língua estrangeira, demorando-se
em cada termo, em cada palavra, em cada expressão, procurando ou percebendo equivalências
na sua língua e na sua cultura, ele está no que Gadamer, Ricoeur e outros filósofos chamaram
de círculo hermenêutico. A partir de sua cultura, leituras, disciplina científica, contexto, ou
seja, a partir de seu horizonte histórico, o pesquisador busca adentrar o horizonte histórico de
seu objeto. Nessa fusão de horizontes nascem ideias, traduções, interpretações. As questões
do tradutor se unem às questões do historiador e as respostas servem aos dois.
Dessa forma, a tradução pode ser vista como constituinte dos procedimentos
metodológicos da operação historiográfica visando o estrangeiro. Mesmo que muitos
documentos não sejam traduzidos na integralidade, mas lidos e interpretados, todo esse
cabedal será aproveitado na tradução dos trechos que aparecerão no corpo de artigos, teses e
dissertações históricas. Bem provável que todo o historiador que traduz seus documentos não
o faça em uma etapa prévia à interpretação e à crítica. Ao mesmo tempo em que traduz, ele
realiza todo o conjunto de procedimentos que redundam no texto historiográfico e toda vez
que retorna ao documento com perguntas históricas ele melhora a tradução. E quando retorna,
buscando resolver problemas tradutórios, mais se aprofunda hermeneuticamente nele, em seu
contexto de produção, em seu horizonte histórico.

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Considerações finais

Diante da questão “Qual o uso e a importância da tradução na pesquisa histórica que


venho realizando em minha iniciação científica?”, creio que a resposta passa pela operação
interdisciplinar que ela enseja. Tradutologia, Hermenêutica e História se interpenetraram
durante todo o processo.
Longe de ser acessória, a tradução passou a ser uma das ferramentas de análise da
operação historiográfica. Ao contrário do que acreditava, não basta o conhecimento de uma
língua estrangeira para traduzir satisfatoriamente um texto. Existem muitas outras
competências envolvidas, como conhecimentos específicos, protocolos a serem seguidos e
decisões tradutórias que se tomam com fundamentação teórico-prática.
O uso da tradução foi além da fase inicial da pesquisa. Ele persiste até hoje. Isso se
deu na medida em que percebi a sua enorme importância no processo e o quanto ela pode
atender às demandas do historiador.

Referências

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