Você está na página 1de 15

Resumo: O artigo, em contraposição à doutrina tradicional, defende que o

casamento entre pessoas do mesmo sexo é contemplado pela Constituição da República,


o que se depreende de uma interpretação sistêmica do texto constitucional, que coloca
em relevo os princípios da vedação à discriminação e da dignidade da pessoa humana,
bem como do fato de que o matrimônio tem natureza de direito humano no âmbito
internacional, e de direito fundamental no plano interno. Assim, utilizando-se a técnica
da “interpretação conforme a Constituição”, conclui-se que a legislação
infraconstitucional tampouco constitui óbice ao casamento homossexual. Em caso de
resistência, a tutela de tal direito pode ser feita, no plano abstrato, com o manejo da
Ação Direta de Inconstitucionalidade, ou na esfera concreta, por meio das diversas
ações adequadas a tal fim. Por fim, demonstra-se que o reconhecimento da possibilidade
do casamento homoafetivo garante tutela legislativa adequada, de lege lata, a diversas
situações fáticas, especialmente nos campos do Direito de Família, de Sucessões,
Previdenciário e Tributário.

Palavras-chave: Família. Casamento homossexual. Constitucionalidade.


Homoafetividade. Princípio da igualdade e da vedação à discriminação. Princípio da
dignidade da pessoa humana.

Sumário: Introdução. 1 - Constitucionalidade do casamento homossexual. 2 -


Análise da legislação existente sobre o casamento. 3 - Efetivação prática do casamento
homossexual. Considerações finais. Referências bibliográficas.
3

Introdução

A admissão de entidades familiares formadas por homossexuais tem se dado de


forma gradativa no meio doutrinário e jurisprudencial.
Por se tratar de situação da realidade com implicações fáticas diversas, tais como
partilha de bens, herança, direitos previdenciários, dentre outros, não pôde ser por muito
tempo ignorada no cotidiano dos tribunais, que começaram a cuidar da questão, a
princípio, sob o ângulo de reconhecimento de existência de sociedade de fato entre
essas pessoas do mesmo sexo unidas com estabilidade, que construíram patrimônio
conjuntamente.
Aos poucos, a doutrina mais moderna foi se fortalecendo no sentido de que a
união homossexual deveria ser reconhecida como união estável, baseada no
entendimento de não haver óbice constitucional para tal. Vem ganhando espaço a
interpretação segundo a qual o art. 226, § 3º da Constituição da República, ao
mencionar a expressão “o homem e a mulher”, não necessariamente excluiu de sua
abrangência a possibilidade do reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo,
que seria plenamente condizente com uma interpretação analógica que considere os
princípios de igualdade e de dignidade da pessoa humana trazidos em seu conteúdo. Da
mesma forma, o texto do art. 1.723 do Código Civil, ao tratar da união estável como
sendo aquela constituída entre homem e mulher
A jurisprudência mais atualizada, seguindo o entendimento doutrinário acima
exposto, vem reconhecendo de maneira esparsa a existência da união estável
homossexual, ora regulando casos de pensão por morte, ora de guarda de menores, e até
mesmo, recentemente, de adoção por casal homossexual.
Algumas entidades federativas, de forma esparsa, também vêm reconhecendo e
conferindo direitos a companheiros homossexuais de seus servidores públicos.
É ainda inegável que o assunto vem ganhando mais abrangência no contexto
legislativo, sendo que o avanço mais explícito que se pode apontar nesse meio é o que
consta do texto da Lei 11.340/06, Lei Maria da Penha, que em seu art. 5º, § único,
dispõe que as relações pessoais mencionadas na citada lei, que trata de casos de
violência doméstica contra a mulher, “independem de orientação sexual”, desta forma
reconhecendo expressamente que a união homossexual é de fato entidade familiar.
4

Cabe ainda apontar que há em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de


Lei 1.151/95, que instituiria a união civil entre homossexuais, tendo sido modificado,
alterando-se seu objeto para a regulamentação da parceria civil registrada entre pessoas
do mesmo sexo. O projeto, no entanto, ainda não chegou a ser votado em plenário.
Finalmente, trazemos a notícia de que estão em tramitação no Supremo Tribunal
Federal duas Argüições de Descumprimento a Preceito Fundamental que versam sobre
o reconhecimento da união estável homossexual; a ADPF 132, interposta pelo
Governador do Rio de Janeiro, e também a recente ADPF 178, proposta pela
Procuradora Geral da República em 02/07/09, que foi posteriormente reautuada como
Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277.
Porém, mesmo diante de todo este quadro de evolução positiva, pouco se
vislumbra ainda, no meio jurídico pátrio, a defesa do casamento homossexual como
vínculo formal, ou seja, como ato celebrado em cartório entre duas pessoas do mesmo
sexo que passem a ser, efetivamente cônjuges, com o mesmo status jurídico de pessoas
de sexo diverso que se casam da forma tradicional.
A adoção por casais homossexuais, as questões sucessórias, as questões
previdenciárias, a situação da divisão de bens do casal ao fim do relacionamento, os
casos de pensão alimentícia, os casos de guarda dos filhos gerados e criados no decorrer
relacionamento homossexual, as questões de direito tributário, enfim, todas as situações
do cotidiano que dependem de uma resolução efetiva sobre o reconhecimento do
casamento homossexual são prementes para que se proceda ao exame do tema.
A jurisprudência tem resolvido casuisticamente tais situações, porém é certo que
uma definição sobre a possibilidade de se efetivar na prática o casamento entre pessoas
de mesmo sexo solucionaria de modo mais eficaz e sistematizado os problemas acima
levantados, proporcionando maior segurança jurídica. Eis o motivo pelo qual se mostra
relevante o estudo desta matéria.

1. Constitucionalidade do Casamento Homossexual

É necessário investigar qual conceito de casamento pode ser extraído de uma


adequada análise do texto constitucional. Isto porque o direito civil está hoje
plenamente balizado pelos princípios constitucionais. Seus institutos, inclusive aqueles
ligados à regulamentação na área familiar, devem ser estudados primordialmente à luz
5

do texto maior. No dizer de Maria Berenice Dias, “agora, qualquer norma jurídica de
direito das famílias exige a presença de fundamento de validade constitucional”1.
A doutrina mais tradicional sempre interpretou a Constituição da República
como excluindo tanto o reconhecimento da união estável como do casamento
homossexual do conceito de família que ela protege. Tal interpretação deriva de uma
abordagem literal e restritiva do art. 226, § 3º da mesma, que, ao visar a dar proteção à
união estável, declara: “é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como
entidade familiar”.
É nesse sentido que raciocina Silvio de Salvo Venosa, ao defender que, “de fato,
no atual estágio legislativo e histórico da nação, a chamada sociedade homoafetiva não
pode ganhar status de proteção como entidade familiar.”2 Tal autor defende que deve
haver modificação social e legislativa para que se possa viabilizar o reconhecimento
jurídico da união homossexual.
Ainda nesta linha de entendimento, podemos citar a posição de Débora Vanessa
Caús Brandão, que rechaça a aplicação do princípio da igualdade para embasar a
extensão aos homossexuais do instituto da união estável, para em seguida afirmar: “O
texto constitucional não visou, em qualquer momento, à criação de outra posição (se é
que podemos assim dizer), além de homens e mulheres; portanto, à luz do ordenamento
jurídico brasileiro, as parcerias homossexuais não integram o direito de família”.3
Explicitando ainda mais seu posicionamento, declara que “somente emenda
constitucional tem competência para estender os mesmo direitos já conferidos às
famílias e entidades familiares às parcerias homossexuais”.4
Resumindo, esta doutrina mais tradicionalista enxerga o conceito constitucional
de casamento como se restringindo ao de pessoas de sexo diverso. Para esta posição, a
união estável entre pessoas do mesmo sexo só seria possível na ordem jurídica brasileira
mediante modificação do texto constitucional, através de emenda. E como a união
estável seria um reflexo do casamento, já que a lei deve facilitar sua conversão ao
mesmo, tampouco este se vislumbraria viável no cenário atual.
Entende-se, assim, por este ângulo, que a diversidade de sexos é parte intrínseca
do conceito de casamento presente na Constituição.

1
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais, 2007.p.36.
2
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 408.
3
BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias homossexuais: aspectos jurídicos. São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais, 2002. p. 125.
4
Ibid., p. 125.
6

Maria Celina Bodin de Moraes5, no entanto, sugere a aplicação de critérios


hermenêuticos mais modernos ao texto constitucional. Esta jurista explica que a
interpretação adotada pela doutrina tradicional usa da chamada teoria da norma geral
exclusiva, pela qual, ao regular um determinado comportamento, a norma exclui de sua
abrangência todos os demais comportamentos. Utiliza-se o argumento a contrario sensu
para definir que o que não está regulado explicitamente pela norma não pode ser
incluído em seu conteúdo.
Porém, este não é o melhor método interpretativo disponível para a leitura de
textos constitucionais, conforme a consagrada autora. Deve-se considerar que os
preceitos constitucionais têm natureza mais indeterminada e elástica que as de outros
tipos normativos. O texto deve ser entendido em conjunto com outros princípios
extraídos do mesmo diploma, de forma a sistematicamente harmonizar seu conteúdo.
Desta forma, ao compatibilizar o texto do art. 226, § 3º da Constituição com
outros princípios nela presentes, Maria Celina Bodin de Moraes chega à conclusão de
que “tem valor jurídico superior, evidentemente, o principio da não-discriminação,
previsto não somente no art. 3º, IV, CF mas também, e principalmente, no art. 3º, I,
através do objetivo fundamental de construção de uma sociedade que se pretende ‘livre,
justa e solidária’.”6
Luís Roberto Barroso ampara esse mesmo raciocínio, aduzindo ainda que a
norma do art. 226 § 3º da Constituição é de natureza inclusiva por excelência, uma vez
que foi criada no intuito de superar o preconceito contra as relações heterossexuais
existentes fora do casamento. Diz o mestre: “Tal norma foi o ponto culminante de uma
longa evolução que levou à equiparação entre companheira e esposa. Nela não se pode
vislumbrar uma restrição – e uma restrição preconceituosa – de direito”.7
Em sua excelente abordagem do tema, o Prof. Barroso salienta os quatro
importantes princípios constitucionais que devem embasar mais profundamente o
reconhecimento da constitucionalidade da união homoafetiva: princípio da igualdade,
princípio da liberdade pessoal, princípio da dignidade da pessoa humana e princípio da
segurança jurídica.
5
MORAES, Maria Celina Bodin de. A união entre pessoas do mesmo sexo: uma análise sob a
perspectiva civil-constitucional. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 1, p. 89-112,
jan/mar 2000, passim.
6
Ibid., p. 108.
7
BARROSO, Luís Roberto. Diferentes mas iguais: o reconhecimento jurídico das relações homoafetivas
no Brasil. Revista de Direito do Estado, [S. l.], v. 5, 2007. Disponível em:
<http://www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/diferentesmaisiguais.pdf>. Acesso em 10 de junho de 2009. p.
29.
7

De fato, ao prever, no art. 3º, IV, que desequiparações baseadas em origem, sexo
e raça, entre outros, são contrárias aos objetivos fundamentais do país, a Constituição
não deixou margem para discriminação jurídica baseada em orientação sexual. Desta
forma, à luz do princípio da igualdade, conclui-se que “a Constituição é refratária a
todas as formas de preconceito e discriminação, binômio no qual hão de estar
abrangidos o menosprezo ou a desequiparação fundada na orientação sexual das
pessoas”.8 Diante disto, não prevalecem argumentos que versem sobre padrões de
normalidade moral ou compatibilidade com valores cristãos, mesmo porque o próprio
texto constitucional os afasta ao estipular expressamente que o casamento é ato civil,
dentro de um Estado laico. Tampouco merece prosperar a tese de que a situação é
ontologicamente desigual por conta da impossibilidade de procriação dentro da relação
homossexual, uma vez que esta deixou há muito de ser considerada característica sine
qua non da entidade familiar (vide o casamento de pessoas estéreis), se tratando apenas
de mais um resquício da visão cristã do matrimônio.
Certo é ainda afirmar que a Constituição que protege a liberdade de religião, de
pensamento e de expressão não poderia deixar de tutelar a liberdade de estabelecer laços
familiares de acordo com a orientação sexual de cada indivíduo. Neste sentido, é
oportuno o ensinamento de Gustavo Tepedino, que ao analisar a nova tutela da família
trazida no bojo da Constituição, aponta como um de seus elementos a “liberdade (de
forma) para a constituição da família, vinculada à funcionalização (desta mesma
liberdade individual de planejar a convivência familiar) ao princípio da dignidade da
pessoa humana e à paternidade responsável.”9
Taísa Ribeiro Fernandes também aborda o aspecto da liberdade de constituição
familiar, nos seguintes termos: “Quando a Constituição reconheceu que a união estável
entre o homem e mulher é uma entidade familiar, merecedora da proteção do Estado,
estava se referindo a um modelo de criação da família, (...) sem, absolutamente, excluir,
desprezar ou proibir outros, dado que, neste tema, resguardada a moral e os bons
costumes, impera a liberdade, a autonomia das pessoas interessadas.”10
Gustavo Tepedino, continuando na análise dos princípios constitucionais que
devem ser aplicados às entidades familiares, especialmente no que diz respeito à

8
Ibid., p. 13-14.
9
TEPEDINO, Gustavo. [Opinião doutrinária]. Disponível em <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/grupos-de-
trabalho/dir-sexuais-reprodutivos/docs_atuacao/ parecer%20tepedino.pdf/>. Acesso em 12 de junho de
2009. p. 7.
10
FERNANDES, Taísa Ribeiro. Uniões homossexuais e seus efeitos jurídicos. São Paulo: Ed. Método,
2004. p. 94.
8

dignidade da pessoa humana, assim se exprime: “Nessa esteira, torna-se manifestamente


inconstitucional a restrição de modelos familiares por conta da orientação sexual dos
conviventes, com a admissão somente de famílias constituídas por casais
heterossexuais.”11
De posse dessas ferramentas de interpretação, temos que os elementos que se
podem extrair do texto constitucional como sendo formadores da entidade familiar, tais
como estabilidade, seriedade e propósito de constituição de família, devem ser
harmonizados com a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social e a vedação à
discriminação.
Os juristas Luís Roberto Barroso e Gustavo Tepedino levantaram as linhas
argumentativas acima expostas na defesa do reconhecimento da união estável
homossexual, a fim de dar subsídios a representação apresentada pela Procuradoria
Federal de Direitos do Cidadão para propositura de ADPF sobre o tema12. Com base em
seus pareceres, foi proposta a ADPF 178 em 02/072009, pela Procuradoria Geral da
república. Entendemos que o mesmo raciocínio desenvolvido para este fim também
pode ser utilizado para defesa do casamento homossexual propriamente dito.
Maria Berenice Dias afirma que o elemento que melhor exprime a noção do que
seja o casamento é o de “comunhão de vidas ou comunhão de afetos”13. É possível
entender que todas as demais características do casamento apontadas comumente pela
doutrina são plenamente compatíveis com a relação estável e duradoura de pessoas do
mesmo sexo, sem que com isso se degenere a natureza do instituto.
Por exemplo, estão presentes em uniões homoafetivas as finalidades de
instituição de uma unidade familiar, de prestação de auxílio mútuo, de estabelecimento
de deveres patrimoniais, de criação e educação conjunta de eventuais filhos, entre
outras. Tais finalidades, no entanto, são dificultadas diante da atual omissão no
reconhecimento de tais uniões. Em vista da possibilidade de se estabelecer efetivamente
o vínculo conjugal entre pessoas do mesmo sexo, a regulamentação das situações fáticas
decorrente do matrimônio é automática.
Gustavo Tepedino, em seu parecer, aponta: “De uma maneira geral, afirma-se
que a caracterização de uma entidade familiar depende da presença dos requisitos da

11
TEPEDINO, Gustavo, op. cit., p. 10
12
Representação disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/grupos-de-trabalho/dir-sexuais-reprodutivos/
docs_atuacao/represent.05.12.2006.pdf/>
13
DIAS, Maria Berenice, op. cit., p. 139.
9

seriedade, estabilidade e propósito de constituição de família.”14 E a partir daí explicita


que tais requisitos estão presentes na união estável homossexual.
Ora, nos parece ilógico defender que as pessoas de mesmo sexo possam
constituir um certo tipo de família, a saber, a união estável, que se define a partir da
situação fática de se encontrarem juntas há certo tempo com estabilidade, mas que não
possam optar desde logo por formar uma relação que lhes trará maior segurança
jurídica, com um vínculo formal reconhecido pelo Estado, ou seja, o casamento.
Devemos ressaltar, neste ponto, que o casamento constitui direito humano e
fundamental, de acordo com a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, que
em seu Artigo XVI, assim dispõe:
“1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça,
nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma
família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua
dissolução.
2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos
nubentes.
3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção
da sociedade e do Estado.”
No mesmo sentido, há disposição sobre o direito ao casamento na Convenção
Interamericana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que em seu
Artigo 17, afirma:
2. É reconhecido o direito do homem e da mulher de contraírem casamento e de
constituírem uma família, se tiverem a idade e as condições para isso exigidas pelas
leis internas, na medida em que não afetem estas o princípio da não-discriminação
estabelecido nesta Convenção.
Negar aos homossexuais a possibilidade de contrair matrimônio é deixar de lhes
conferir um direito fundamental básico, de ter sua família oficialmente reconhecida e
protegida pelo Estado, desde sua formação inicial. E está claro no texto acima citado
que a vedação à discriminação deve ser especialmente repudiada no que tange a este
direito familiar. Não entraremos aqui no mérito de ter o texto da citada Convenção
caráter constitucional ou supralegal, mas concluímos que resta assentado no âmbito
internacional que o matrimônio é um direito da pessoa humana, pelo que se impõe que
seja garantido a todos em um Estado democrático.

14
TEPEDINO, Gustavo, op. cit., p. 12.
10

Consideramos que deve ser repelido um entendimento do texto constitucional


tímido, que vislumbre apenas o reconhecimento da união estável, mas não a
confirmação do direito ao matrimônio para os cidadãos homossexuais. Não existe
racionalidade que o justifique, já que as mesmas características que tipificam a união
estável homoafetiva como entidade familiar também legitimam que se busque a
proteção constitucional do casamento para as relações homossexuais.
Concluindo, na análise empreendida neste tópico, vislumbra-se que o casamento
entre pessoas do mesmo sexo é constitucional. Desta forma, os regramentos sobre
obrigações alimentares, regimes de bens do casamento, possibilidade de adoção
conjunta ou de reconhecimento de filiação, etc,, a se aplicarem ao mesmo, são aqueles
já existentes para cônjuges heterossexuais, conferindo-se, assim, maior atendimento ao
princípio da segurança jurídica.

2. Análise da Legislação Existente sobre o Casamento

O principal objeto de análise, no que concerne à regulamentação sobre o


casamento na legislação pátria atual, é o Código Civil.
A doutrina mais tradicional considera que o texto da lei explicita que o
casamento tem como requisito a diversidade de sexo dos nubentes, por utilizar
expressamente em diversos artigos a expressão “homem e mulher”. Diante, disto, um
casamento celebrado entre pessoas de mesmo sexo seria inexistente.
Neste sentido, citamos Maria Helena Diniz, que afirma: “Se duas pessoas de
mesmo sexo (...) convolarem núpcias, ter-se-á casamento inexistente, uma farsa.(...) Se
porventura, o magistrado deparar com caso da espécie, deverá tão-somente pronunciar
sua inexistência, negando a tal união o caráter matrimonial.”15 Ou seja, a doutrinadora
aqui não vislumbra sequer caso de anulação do ato, uma vez que tal casamento nem
chegaria a ter entrado no mundo da existência jurídica.
Há também quem sustente que a lei deveria ser alterada para conter menção
expressa à possibilidade de duas pessoas de mesmo sexo contraírem núpcias. No
entanto, em não havendo tal alteração legislativa, não seria possível admitir a
possibilidade de efetivação do casamento homossexual, diante da lacuna gerada pela
omissão legislativa.

15
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. 23ª ed. rev. atual. e ampl.
São Paulo: Saraiva, 2008. p. 54.
11

Oportuno lembrar ainda a consistente posição de Maria Berenice Dias, que


defende não haver impedimento constitucional ou legal para o casamento entre pessoas
do mesmo sexo. Diz ela: “O que obstaculiza a realização do casamento é somente o
preconceito. Aliás, a construção doutrinaria sobre casamento inexistente tem como
único ponto de sustentação a alegada impossibilidade do casamento homossexual.”16
Demonstrado que o casamento homossexual não antagoniza com o espírito
constitucional, mas ao contrário, a se harmoniza com a melhor interpretação dos
princípios de igualdade e dignidade da pessoa humana, é certo dizer que a legislação é
que deve se adequar ao melhor entendimento constitucional.
Desta forma, deve-se analisar se é possível fazer uma interpretação do texto da
lei de acordo com a norma constitucional, ou se devemos considerar o conteúdo do
Código Civil como simplesmente contrário à Constituição, o que levaria à sua não
subsistência.
De uma leitura cuidadosa do texto legal, afere-se que é possível aplicar a este a
técnica da “interpretação conforme”. Assim, pode-se entender que quando o Código se
refere a “homem e mulher”, não está restringindo, impondo limitações inconstitucionais
à proteção da entidade familiar, e que tal expressão deve ser suavizada e entendida
como não exclusiva.
Assim, o art. 1.514, que estabelece que “o casamento se realiza no momento que
o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, sua vontade de estabelecer vínculo
conjugal, e o juiz os declara casados”, deve ser lido como se referindo simplesmente a
nubentes, sem distinção de sexo, devendo ambos manifestar sua vontade, de toda forma.
O art. 1.565 afirma que “pelo casamento, homem e mulher assumem
mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da
família”. Tal texto veio assegurar que, dentro do casamento, não mais perdura a posição
de superioridade do homem sobre a mulher, existente no antigo Código Civil de 1916.
Uma norma que se presta a trazer maior igualdade entre cônjuges não pode ser lida de
forma a excluir a possibilidade de casamento entre dois homens ou duas mulheres. Da
mesma forma, basta usar de técnica hermenêutica que se coadune com o espírito da
norma e da Constituição.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao art. 1.567, que versa sobre a direção da
sociedade conjugal, que deve ser exercida “em colaboração, pelo marido e pela mulher,

16
DIAS, Maria Berenice, op. cit., p. 144.
12

sempre no interesse do casal e dos filhos”. Basta que se leia simplesmente “por ambos
os cônjuges” no lugar de “pelo marido e pela mulher”, pois a intenção do legislador, ao
enunciar o nome da mulher ao lado do do marido foi apenas a de deixar explícita a
situação de igualdade que ambos os parceiros gozam dentro do matrimônio.
Desta forma, conclui-se que é viável interpretar o Código Civil para que as
mesma normas existentes para regulamentação do casamento heterossexual se estendam
ao casamento entre pessoas de mesmo sexo.
Por outro lado, se fosse necessário criar uma legislação especial que tratasse do
casamento homossexual como um instituto diferente do casamento que já temos hoje, aí
sim se criaria uma situação de desigualdade. Assim, o Projeto de Lei 1.151/95, que
atualmente tramita na Câmara de Deputados, e que visa a instituir a chamada “parceria
civil registrada”, pode ser visto como eivado de inconstitucionalidade. Por que criar um
gênero diferente de união para os homossexuais, se já existe em nosso direito um ato
que atende a seus interesses tanto quanto ao de heterossexuais? Por que presumir que a
situação demandaria uma resposta legislativa diferenciada, com conseqüências jurídicas
mais restritas? Não há real motivo para invocar aqui uma desequiparação, a não ser o do
conservadorismo, que resiste em intitular casamento o que ontologicamente o é, sob o
pífio argumento de que se estaria enfraquecendo ma instituição tradicional ao alargar-se
sua abrangência. Tal entendimento não pode prosperar, a nosso ver.

3. Efetivação Prática do Casamento Homossexual

Pelo raciocínio aduzido no presente trabalho, o melhor instrumento para


efetivação pratica do casamento homossexual no Brasil seria o ajuizamento de Ação
Direta de Inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal, de forma que se
declarasse a necessidade de se fazer a “interpretação conforme” dos artigos do Código
Civil que mencionem as expressões “homem e mulher” ou “marido e mulher”.
Entendemos que deve-se buscar que o STF declare inconstitucional qualquer
outra interpretação do texto legal que, contrariando a igualdade e a dignidade humana,
conduza à impossibilidade do casamento homossexual.
Seria possível também, a exemplo das Argüições de Descumprimento a Preceito
Fundamental propostas para o reconhecimento da união estável homoafetiva, a
propositura de ADPF, considerando que o Estado incorre em atos omissivos e
comissivos de desrespeito a preceito constitucional ao não aceitar a celebração de
13

casamentos entre pessoas de mesmo sexo. Entendemos, no entanto, que tal não seria a
solução mais técnica, diante da generalidade do argumento, pelo que primeiramente
buscaríamos a direta declaração de inconstitucionalidade de interpretações de textos
legais que negassem o casamento homossexual. No entanto, trazemos que a propositura
das Arguições já mencionadas ocorreu no sentido do entendimento trazido pelo
Ministro Celso de Mello no julgamento da ADI 3.300 MC/DF, cuja ementa
reproduzimos abaixo:
“União civil entre pessoas do mesmo sexo. Alta relevância social e jurídico-
constitucional da questão pertinente às uniões homoafetivas. Pretendida qualificação
de tais uniões como entidades familiares. Doutrina. Alegada inconstitucionalidade
do art. 1º da lei nº 9.278/96. Norma legal derrogada pela superveniência do art.
1.723 do novo Código Civil (2002), que não foi objeto de impugnação nesta sede de
controle abstrato. Inviabilidade, por tal razão, da ação direta. Impossibilidade
jurídica, de outro lado, de se proceder à fiscalização normativa abstrata de normas
constitucionais originárias (cf, art. 226, § 3º, no caso). Doutrina. Jurisprudência
(STF). Necessidade, contudo, de se discutir o tema das uniões estáveis
homoafetivas, inclusive para efeito de sua subsunção ao conceito de entidade
familiar: matéria a ser veiculada em sede de ADPF?”
Entendemos não ser o caso de controle de constitucionalidade de normas
originárias, especialmente no que tange ao casamento homossexual, que defendemos ao
longo do trabalho ser plenamente compatível com o texto original da Constituição da
República.
De fato, temos que posteriormente à propositura da ADPF 178 pela Procuradoria
Geral da República, foi a mesma recebida e reautuda na forma de Ação Direta de
Inconstitucionalidade, sob o nº 4277, tendo em vista entendimento de não terem restado
cabalmente demonstrados os atos lesivos praticados pelo Poder Público que
justificassem a propositura da demanda em forma de ADPF.
Outro mecanismo que poderia ser adotado para dar efetividade ao entendimento
aqui defendido seria o já manejado pela Defensoria Pública do Estado do Espírito
Santo, que ingressou com Ação Civil Pública em 07/05/09, autuada sob nº
024.09.011981-9, correndo junto à 2ª Vara de Fazenda Pública de Vitória, na qual
requer que os cartórios do Espírito Santo sejam levados a proceder à habilitação e
casamento de pessoas do mesmo sexo (obrigação de fazer).
De toda forma, é sabido que a legitimidade para a propositura de tais ações é
restrita, pelo que vislumbra-se ainda uma outra alternativa: que qualquer casal
14

homossexual interessado em proceder ao registro de seu casamento, quando impedido


pelos serviços notariais, recorra ao Judiciário através de ação ordinária individual.
Afinal, o Judiciário não pode se furtar a apreciar lesão ou ameaça a direito, devendo
aferir no caso concreto a inconstitucionalidade de qualquer interpretação de texto de lei
que seja restritiva do direito ao casamento homossexual.

Considerações Finais

No presente artigo, procuramos demonstrar a viabilidade do casamento


homossexual no direito pátrio atual diante de interpretações constitucionais mais
sofisticadas do que as tradicionalmente trazidas para justificar sua impossibilidade.
Já existe doutrina e alguma jurisprudência defendendo o reconhecimento da
união estável homoafetiva no estágio atual de nosso direito, inclusive aguarda-se
decisão definitiva do STF sobre o tema em sede de controle concentrado. No entanto,
talvez por uma questão tática, talvez por timidez ou conservadorismo doutrinário,
poucos são os que abertamente esposam a tese da possibilidade de se realizar o
casamento propriamente dito entre pessoas do mesmo sexo no Brasil.
É possível que a timidez que ensejou a propositura de ação de controle
concentrado (a referida ADI 4277) visando apenas ao reconhecimento da união estável
seja até mesmo prejudicial à causa que almeja defender. Isto porque é tese tradicional
no direito pátrio e no âmbito do próprio STF não ser possível dar status de união estável
a relacionamentos que não possam ser convertidos em casamento. Assim,
lamentavelmente, inferimos como provável a rejeição da tese esposada na inicial desta
ação por conta justamente de sua falta de ousadia. Deveria a mesma estar levando os
argumentos ali explicitados ao raciocínio final de que há possibilidade da realização do
casamento entre pessoas do mesmo sexo no atual cenário jurídico pátrio.
Entendemos que não há motivo para evitar a defesa de tal tese. Os mesmo
princípios constitucionais que embasam o reconhecimento da união estável homoafetiva
também sustentam a possibilidade de se reconhecer o casamento homossexual. O
caráter de entidade familiar da união de duas pessoas do mesmo sexo faz com que a
proteção constitucional dirigida às famílias em geral também as abranja.
Assim, abrindo-se a possibilidade, na prática, da realização do matrimônio entre
homossexuais, estaremos caminhando rumo a um direito civil mais arejado e moderno,
15

que melhor protege os cidadãos, fornecendo-lhes segurança jurídica ao reconhecer e


legitimar situações fáticas nas quais se encontram.
É inegável que deve ser conferida formalidade jurídica ao vínculo estabelecido
entre pessoas que se unem em uma relação de afeto, com intuito de constituir família, de
construir uma vida em comum, tal como a que já se confere ao matrimônio
heterossexual. Toda pessoa deve ter direito ao estado civil de casado, direito a ver sua
orientação sexual reconhecida como legítima pelo Estado laico em que vive, pois o
matrimônio é um direito fundamental, já reconhecido como direito humano em âmbito
internacional há tempos.
16

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, Luís Roberto. Diferentes mas iguais: o reconhecimento jurídico das


relações homoafetivas no Brasil. Revista de Direito do Estado, [S. l.], v. 5, 2007.
Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/diferentesmaisiguais.pdf>.
Acesso em 10 de junho de 2009.
BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias homossexuais: aspectos jurídicos. São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4ª ed. rev. atual. e ampl. São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. 23ª ed. rev.
atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008.
FERNANDES, Taísa Ribeiro. Uniões homossexuais e seus efeitos jurídicos. São
Paulo: Ed. Método, 2004.
MORAES, Maria Celina Bodin de. A união entre pessoas do mesmo sexo: uma análise
sob a perspectiva civil-constitucional. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de
Janeiro, v. 1, p. 89-112, jan/mar 2000.
TEPEDINO, Gustavo. [Opinião doutrinária]. Disponível em <http://pfdc.pgr.
mpf.gov.br/grupos-de-trabalho/dir-sexuais-reprodutivos/docs_atuacao/parecer%20tepe
dino.pdf/>. Acesso em 12 de junho de 2009.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 8ª ed. São Paulo: Atlas,
2008.

Você também pode gostar