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Logicas Do Reconhecimento
Logicas Do Reconhecimento
Curso Ministrado no
Departamento de Filosofia
Universidade de São Paulo
Primeiro semestre de 2017
1
BUTLER, Judith; Precarious life, Verso, p. 32
Desde os gregos, desde Antígona, nos perguntamos se um Estado que impede o
luto público de qualquer um (é há de se insistir aqui neste dimensão de
“qualquer um”), jogando-o em uma nudez da vida sem atributos e sem
virtualidade, tem ainda o direito de existir. Esta pergunta poderia ser mais uma
vez posta, como precisou ser várias vezes postas na história. O que acontece
quando há vidas impedidas de habitar o tempo do luto?
Mas eu gostaria ainda de trazer um terceiro fato. Na década de cinquenta,
o psicanalista Donald Winnicott recebeu uma paciente em seu consultório.
Tratava-se de uma mulher, por volta dos cinqüenta anos, que descobriu ter
construído uma vida na qual: “nada do que se passava realmente era
verdadeiramente importante para ela”2. Winnicott fala de um sentimento de não
“existir de fato”. Pois ela vive em um estado de dissociação no qual a parte “mais
importante dela mesma” encontra espaço em uma outra vida: uma vida
fantasmática. No entanto, nesta vida fantasmática onde ela pode conservar si
mesmo no interior da ilusão de onipotência própria ao que não precisaria se
confrontar com situações concretas para existir, ela descobre que fantasia como
um Outro. Winnicott remete tal alienação a situações infantis nas quais a
paciente, filha mais nova de um casal com várias crianças, relaciona-se com
outros internalizando um mundo já organizado. Assim, por exemplo, ela joga
com as crianças um “jogo dos outros”. Atividade que ela associa ao fantasiar.
Desta forma, ela podia: “observar-se jogando o jogo das outras crianças como se
ela observasse alguém outro no grupo do jardim de infância”3. Maneira de
afirmar que a paciente se sentia, na dimensão da fantasia, presa ao olhar do
Outro, jogando um jogo cujas regras não lhe parecem expressar algo que, de fato,
lhe concerne.
No entanto, a paciente produz um sonho importante para a sequência da
análise. Neste sonho, ela se debatia furiosamente com um tecido que deveria ser
cortado para produzir um vestido. Ela o cortava e recortava, fazia e desfazia, o
que lhe deixava exasperada. A interpretação de Winnicott girará em torno da
noção de “informidade” (formlessness). Tudo se passa como se o sonho mostrasse
como: “o meio ambiente tinha sido incapaz de lhe permitir, durante sua infância,
ser informe ‘recortando-lhe’ a partir de um padrão cujas formas tinham sido
concebidas por outros”4. A partir de tal interpretação, a paciente sente um
profundo sentimento de que, desde sua infância, ninguém havia reconhecido que
ela devia começar por ser informe.
O que estas situações tão distintas entre si tem em comum? Em que
experiência sociais como: manifestações de massa contra o sentimento de
desrespeito, vidas que não podem receber o luto público e uma mulher que se
sente jogando o jogo dos outros e que luta em seus sonhos contra um vestido
potencial por não saber o que fazer com sua informidade diriam respeito a um
problema simétrico? Haveria algo a unificar esses campos dispersos da política,
da moral e da clínica?
Creio que esta é talvez a melhor maneira de começarmos nosso curso
porque, de fato, ao menos para uma certa tradição filosófica, a resposta a darmos
a tais perguntas deveria ser necessariamente positiva. Nesses três casos, há um
nível fundamental da vida comum que foi bloqueado, produzindo com isto
2
WINNICOTT, Donald; Jeu et réalité: l’espace potential, Paris: Gallimard, 1987, p. 44
3
Idem
4
Idem, p. 50
situações que poderíamos chamar de “invisibilidade social”. Invisibilidade esta
que se traduz no sentimento de simplesmente não existir ou de ter uma
existência profundamente mutilada, como alguém preso entre a vida e a morte.
Ou seja, há em todos esses casos, de formas múltiplas, com intensidades
variáveis, a experiência de que a possibilidade de existência está inviabilizada. O
que nos coloca uma questão da maior importância e que certamente não será de
fácil resposta, uma questão que cada uma dessas situações nos coloca, a saber: o
que fenômenos como estes podem nos dizer a respeito do que entendemos por
“existência”?
Claro, há sempre aqueles que darão de ombros a questões como esta
dizendo que a determinação das condições de existência é um problema trivial
que se reduz a verificação de enunciados constatativos. Eles dirão então que algo
existe na medida que pode ser verificado pela percepção em condições normais.
A percepção constataria o que está lá, pronto para ser desvelado. E poderíamos
ainda naturalizar tais “condições normais” afirmando que elas corresponderiam
a padrões normativos gerais dos órgãos humanos. Padrões estes que, por sua
vez, poderiam ser potencializados a partir de instrumentos e condições de
laboratório.
Mas poderíamos também dizer que a determinação das condições de
existência não é dependente de enunciados constatativos. Nós não apenas
constatamos algo quando dizemos que algo existe. Nós produzimos algo, ou seja,
tratam-se de enunciados performativos. Muitas vezes, dizer que algo existe é
inclui-lo em um horizonte de experiência do qual ele não fazia parte, modificar
não apenas o estatuto de algo, mas a própria estrutura de tal horizonte. Dizer
que algo existe é inseri-lo em outra rede de efeitos. Pois a existência não é apenas
um fato, ela é um valor. Isto implicaria, entre outras coisas, colocar em questão
uma das mais fundamentais crenças do senso comum, a saber, a crença em uma
natureza meramente especular da percepção. Como se nossa percepção fosse
apenas um espelho do mundo, que pode ficar opaco às vezes, mas que também
pode ser polido até um grau elevado de translucidez.
Contra tal crença na especularidade da percepção poderíamos insistir
como o mundo humano estabelece uma relação profunda entre existência e algo
que devemos chamar aqui, algo que será o verdadeiro objeto de nosso curso e,
por isto, exigirá um movimento lento e detalhado de definição, de
“reconhecimento”. Se a existência não é um fato, mas um valor é porque toda
existência deve ser, necessariamente, existência reconhecida.
Neste sentido, poderemos dizer que aquilo em comum nos casos que
trouxe a vocês é: todos eles explicitam um sofrimento de inexistência devido à
impossibilidade de realização de exigências de reconhecimento. Ao sair às ruas
exigindo “respeito” é como se falássemos que até agora não existimos como
sujeitos políticos, não fomos reconhecidos no interior das dinâmicas sociais de
poder. Ao não admitir que certas vidas não possam ser objetos de luto, estamos a
dizer ser inaceitável que elas passem à invisibilidade, que lhes sejam negadas as
condições de reconhecimento. Ao dizer que para existir, ela precisava ser
reconhecida como informe, ser reconhecida para além da figura de uma boa
jogadora que joga o jogo dos outros, a paciente de Winnicott adoece por viver em
um mundo no qual as condições de reconhecimento de uma dimensão
fundamental de seu desejo foi negada.
Que este sentimento de reconhecimento negado perpasse a história de
nosso desejo, assim como nossa existência política e as possibilidades de
nomeação no interior da linguagem, isto apenas demonstra como não estamos
diante de dimensões de experiência completamente autônomas entre si e que
cabe à filosofia reconstruir o sistema de implicação entre campos que nossa
época gostaria de nos fazer acreditar que são radicalmente distintos. O que já
pode servir como uma primeira razão para analisarmos conceitos
aparentemente genéricos como “reconhecimento”. Pois talvez sua genericidade
tenha de fato uma função.
5
PLATÃO; Menon, 85d
penso quando represento algo, quando disponho algo diante de mim [como
vemos no sentido da palavra vor-stellen] fazendo do sujeito um fundamento
normativo para toda e qualquer existência? Ou penso quando consigo me
aproximar do que me despossui das minhas condições iniciais de representação
e de apreensão?
A este respeito, lembremos como todo reconhecimento é uma operação
reflexiva. Retomemos o sentido originário da noção de reflexão, este que aparece
pela primeira vez com John Locke e que se define como: “a observação que a
mente tem de suas próprias operações”6. Há uma experiência de auto-apreensão
do pensamento em toda reflexão, uma capacidade do pensamento inspecionar
seu próprio modo de apreensão. Neste sentido, a reflexividade imanente ao
reconhecimento tenta descrever estruturas de correlação fundamental entre
auto-referecialidade e referência a outro, entre relação a si e relação a outro. Esta
é uma das tensões fundamentais a sustentar os processos de reconhecimento e
ela nos leva a uma questão maior: em que condições a auto-referencia é, ao
mesmo tempo, uma referência a outro? Que tipo de autonomia podemos derivar
de uma operação na qual, de forma inesperada, a referência a si e a referência a
outro se confundem? Seria ainda possível falar em identidade no interior das
operações de reconhecimento? Reconhecer algo que é, ao mesmo tempo,
referência a si e referência a outro é ainda reconhecer uma identidade ou
precisaremos de um conceito mais preciso?
Como derivação direita deste ponto, teríamos a última consequência da
afirmação do vínculo entre reconhecimento e existência. Pois a noção de
reconhecimento, e ninguém melhor do que Hegel compreendeu isto, é
indissociável de uma compreensão da natureza conflitual da existência. Existir é
estar sob conflito. Proposição necessária se assumirmos que reconhecer é fazer
existir o que até agora não foi contado como existente, é reconfigurar os modos
atuais de existência. Pois esta exclusão não foi fruto de um acaso. Toda existência
está submetida a um jogo de forças, à perpetuação de uma configuração
específica de forças. Por outro lado, todo reconhecimento efetivo implica
modificações no jogo atual de forças, o que não pode ocorrer sem que emerja a
ordem do conflito. O que não produz conflitos não existe, existir é produzir
conflitos e este talvez seja um dos fundamentos de toda teoria do
reconhecimento digna deste nome.
No entanto, há de se lembrar que conflitos podem assumir, grosso modo,
duas formas fundamentais. Posso entrar em conflito por exigir um lugar no
interior do campo atual de visibilidade. Exijo a partilha de certos atributos, o
exercício de certos direitos que não me foram até agora conferidos. Neste caso,
notem como aceito a existência de algo como uma “gramática social de conflitos”.
Há uma gramática pressuposta que traduz os conflitos às determinações
possíveis e internas a um campo comum de regulação atualmente em operação.
Eu não coloco em questão o exercício de direitos e a determinação de atributos,
eu apenas exijo que eles também sejam aplicados a mim. Como se diz, eu peço o
que é meu.
Mas há situações nas quais posso entrar em conflito a respeito da
existência ou não de uma gramática comum de regulação. Posso dizer que o
conflito é a respeito da existência da própria gramática. Posso questionar que
6
LOCKE, John; Essay concerning the human understanding, Livro II, Capítulo I, parágrafo 4
exista uma gramática social de conflitos partilhada potencialmente por todos.
Assim, fica claro que posso ter um conflito sob regras e um conflito sobre regras e
este segundo caso é certamente o mais complexo. Pois este conflito colocará uma
questão fundamental a respeito dos modos de reconhecimento. Como
reconhecer o que nega a própria existência de uma gramática atual de condições
de reconhecimento? O que gostaria de mostrar é que, longe de uma simples
aporia, temos aqui uma dinâmica estruturante de algumas de nossas
experiências fundamentais.
Um retorno a Hegel
7
HONNETH, Axel; “Redistribution as recognition: a response to Nancy Fraser” in: HONNETH, Axel
and FRASER, Nancy; Redistribution or recognition, Nova York: Verso, 2003, p. 131
8
Idem, p. 132
um fundamento normativo pré-político para as dinâmicas sociais de
reconhecimento, ou seja, como horizonte valorativo de função transcendental
que funciona como um princípio formal de regulação das expectativas sociais de
emancipação. Algo que deve ser politicamente confirmado, e não politicamente
desconstruído.
Neste ponto faz sentido retornar a Hegel. De fato, é isto que gostaria de
propor a vocês na primeira parte de nosso curso, a saber, um retorno a Hegel.
Gostaria de mostrar como toda sua teoria do reconhecimento é construída como
uma crítica exatamente ao caráter regulador da individualidade moderna e seus
conceitos de pessoa, identidade e personalidade. Talvez vocês já devam ter
tomado conhecimento da tese de que a filosofia hegeliana seria a elaboração
filosófica de três acontecimentos maiores para a formação da individualidade
moderna e seu princípio de subjetividade, a saber, a reforma protestante e sua
noção de interioridade, a revolução francesa e seu sujeito universal de direitos, a
ascensão do livre-mercado e seus indivíduos que são proprietários de si, que
definem sua liberdade sobretudo como auto-pertencimento (self-ownership).
Sem desconsiderar a relação da filosofia hegeliana à elaboração
especulativa de tais acontecimentos históricos, gostaria de mostrar como há
outra leitura possível. Digamos que Hegel elabora filosoficamente a reforma
protestante, mas a partir de sua noção de conflito e resistência. Da mesma forma,
a revolução francesa, mas sua noção de “revolução” que abala o enraizamento
das práticas e modos de julgamentos em costumes, tradições e transmissões. Por
fim, Hegel leva em conta a ascensão do livre-mercado, mas a partir de sua
dinâmica paradoxal de produção de riqueza e aumento da espoliação, ou seja, de
sua regulação social imperfeita. Isto cria uma dupla tarefa de, ao mesmo tempo,
saber dar visibilidade a uma subjetividade capaz de colocar em questão tudo o
que aparecia arraigado em hábitos e tradições, abrindo espaço a uma potência de
negação até então nunca vista, e produzir institucionalidades que não repitam a
estrutura paradoxal do livre-mercado.
Tal situação produzirá a emergência de um conceito de sujeito
absolutamente singular que será recuperado em momentos maiores do
pensamento dos séculos XIX e XX. Neste sentido, gostaria de aproximar tais
questões que veremos em Hegel do horizonte de constituição da crítica de Marx
à alienação. Ou seja, trata-se de afirmar que há uma teoria do reconhecimento na
base da crítica marxista das sociedades capitalistas e de seus mecanismos de
alienação no trabalho. Teoria que só pode ser legível na linha direta das relações
entre Hegel e Marx. A crítica social de Marx não é apenas uma crítica da
espoliação econômica, sua critica da propriedade não é apenas uma crítica
econômica. Ela é a reflexão sobre um regime de sofrimento social, a saber, a
alienação, resultante de bloqueios em processos de reconhecimento. Por isto, ela
não é apenas uma crítica econômica, mas também uma crítica política e mesmo
moral.
9
Ver BUCK-MORSS, Susan; Hegel, Haiti and universal history, University of Pittsburgh Press, 2009
emergência de novos campos de conflitos sociais ligados ao sentimento de
desprezo social por grupos mais vulneráveis. Neste contexto, a noção de políticas
de reconhecimento retorna inicialmente sob a forma de reflexões sobre as
potencialidades imanentes a sociedades multiculturais (Charles Taylor) para se
transformar, ao final, no eixo de uma reconstrução sistêmica dos potenciais
normativos de uma sociedade capaz de preencher exigências de estima recíproca
e respeito mútuo de indivíduos (Axel Honneth).
Eu gostaria de mostrar como esses dois modelos representam uma
espécie de embate a respeito das potencialidades imanentes a uma teoria do
reconhecimento, como eles exploram tendências diversas internas às estratégias
hegelianas. Ao final, eu gostaria de propor a vocês um eixo de desdobramento
contemporâneo da temática do reconhecimento que dê conta de uma teoria da
emancipação adaptada à nossa era histórica. Tal teoria procurará deslocar a
discussões sobre liberdade para fora das estratégias próprias à afirmação da
autonomia, isto em uma tentativa de recuperar potencialidades próprias ao
primeiro modelo de reconhecimento proposto no interior da filosofia
contemporânea francesa. Ela procurará pensar determinações sociais para além
da estruturação social da identidade, recuperando com isto um elemento a meu
ver fundamental para a formação de sujeitos em Hegel e Marx.
Lógicas do reconhecimento
Aula 2
10
HOBBES, Thomas; Leviatã, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 109.
mas do medo recíproco que uns tinham dos outros”11. Esta definição determina
uma das condições centrais do estado de natureza, a saber, a insegurança e a
guerra iminente. Uma guerra que não é apenas o tempo da batalha, mas a
disposição contínua à violência contra o outro. É uma reflexão sobre a guerra que
funda a reflexão política moderna. Ou seja, o problema político fundamental em
Hobbes estará ligado ao destino da destrutividade. A saída do estado de natureza
e de sua guerra de todos contra todos, estado este resultante de uma igualdade
natural que não implica consolidação da experiência do bem comum mas conflito
perpétuo entre interesses concorrenciais, se faria pelas vias da internalização de
um “temor respeitoso” constantemente reiterado e produzido pela força de lei de
um poder soberano. Pois:
Proposição que ilustra como as individualidades seriam animadas por algo como
uma força de impulso dirigido ao excesso. Não pode haver bens comuns porque
há um desejo excessivo no seio dos indivíduos, desejo resultante da “natureza
ter dado a cada um direito a tudo”13 sem que ninguém esteja assentado em
alguma forma de lugar natural. Como lembrará Leo Strauss, a respeito de
Hobbes: “o homem espontaneamente deseja infinitamente” 14 . Tal excesso
aparece, necessariamente para Hobbes, não apenas através do egoísmo
ilimitado, mas também através da cobiça em relação ao que faz o outro gozar, da
ambição por ocupar lugares que desalojem aquele que é visto preferencialmente
como concorrente. Pois o excesso, como é traço comum de todos os homens, só
pode acabar como desejo pelo mesmo. “Muitos, ao mesmo tempo, têm o apetite
pelas mesmas coisas”15. A guerra será inevitável se lembrarmos que o direito
natural (jus naturalis) é o direito de tudo fazer para preservar minha própria
natureza, ou seja, minha vida. Da mesma forma, a lei natural (lex naturalis)
prescreve a proibição de fazer e aceitar aquilo que è destrutivo à minha vida.
Assim, Hobbes descreve como o aparecimento histórico de uma sociedade de
indivíduos liberados de toda forma de lugar natural ou de regulação coletiva
predeterminada só pode ser compreendido como o advento de uma “sociedade
da insegurança total”16.
Notemos pois como o conflito entre indivíduos se dá como consequência
necessária da expressão da natureza de seus desejos. É na verdade uma reflexão
sobre o desejo como disposição humana fundamental que inaugura uma das
bases da filosofia política moderna. O que demonstra como o desejo é, para os
modernos, uma categoria política por excelência. Segundo Hobbes, os desejos
são miméticos. Deseja-se o mesmo que o outro, vejo como o outro deseja para
11
HOBBES, Thomas; Do cidadão, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 28
12
HOBBES, Thomas; Do cidadão, op. cit., p. 7
13
Idem, p. 30
14
STRAUSS, Leo; The political philosophy of Thomas Hobbes, University of Chicago Press, 1963, p.
10
15
HOBBES, Do cidadão, p. 30
16
CASTEL, Robert; L’insécurité sociale: qu’est-ce qu’être protégé?, Paris: Seuil, 2003, p. 13
saber como desejar, ou seja, há desde o início uma certa forma de dependência
entre os seres humanos, mas esta racionalidade mimética não se traduz em
empatia ou tendência à cooperação. Ela se traduz em rivalidade e violência
direta. É a expressão do desejo que coloca os indivíduos na rota de uma luta de
vida ou morte. No entanto, esta luta não pode ser regulada pelos próprios
contendores. Dela, não emerge nada a não ser um impasse, já que todos os
indivíduos são portadores de força relativamente igual. A força maior de um não
irá muito mais além do que a força de dois ou três unidos. A luta só pode ser
superada então através da introdução de um terceiro elemento, que neutraliza a
rivalidade da relação dual, a saber, através da instauração do direito e do Estado.
No entanto, há de se entender melhor qual é a natureza deste direito. É ele
expressão da liberdade dos indivíduos e sua capacidade de criar instituições? Ou
é o Estado a expressão de uma coerção consentida, de uma restrição legítima
como condição para a não desagregação do laço social? Qual a natureza do pacto
que produz o advento do Estado?
A fim de responder tal questão percebamos que é contra a destrutividade
amedrontadora desse excesso que coloca os indivíduos em perpétuo movimento,
fazendo-os desejar o objeto de desejo do outro, levando-os facilmente à morte
violenta, que se faz necessário o Estado. Ou seja, como nenhuma forma de pacto
imanente entre indivíduos é possível, como a própria figura do indivíduo
portador de interesses já é a consolidação da inevitabilidade do conflito, já que
luto pelos meus interesses a despeito dos interesses do outro, não haverá outra
saída para a regulação social que o aparecimento de uma força externa chamada
de “governo” capaz de estabelecer um pacto feito da auto-restrição mútua e da
limitação de si.
Notemos, no entanto, um ponto importante. Este estado de natureza é
composto de indivíduos que parecem naturalizar princípios de conduta baseados
na concorrência, no sentimento de posse e na propriedade. Daí porque Hobbes
dirá que os três principais motivos de conflito são: a concorrência, a
desconfiança e a glória. Ou seja, e esta é uma tese avançada pela primeira vez por
Macpherson no clássico A teoria do individualismo possessivo, tudo se passa como
se Hobbes tivesse naturalizado a emergência do indivíduo moderno liberal em
situação de ator animado pela exigência de reconhecimento de seus interesses,
colocando-o no fundamento de uma antropologia normativa do humano. Mesmo
sem ser exatamente um teórico liberal, já que Hobbes submete o direito da
propriedade individual às condições de sobrevivência do Estado, vemos
claramente como sua teoria política é, na verdade, resultado da naturalização
antropológica dos pressupostos imanentes à individualidade liberal.
É verdade que Hobbes também afirma: “As paixões que fazem os homens
tenderem para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são
necessárias para uma vida confortável e a esperança de consegui-las por meio do
trabalho”20. Ou seja, parece não haver apenas um afeto, mas três: medo, desejo e
esperança. Da mesma forma, ele lembra que, sendo a força da palavra demasiado
fraca para levar os homens a respeitarem seus pactos, haveria duas maneiras de
reforçá-la: o medo ou ainda o orgulho e a glória por não precisar faltar com a
palavra. Tais considerações parecem abrir espaço à circulação de outros afetos
sociais, como a esperança e um tipo específico de amor-próprio ligado ao
reconhecimento de si como sujeito moral. Renato Janine Ribeiro, por exemplo,
insistirá que “pode-se reduzir a pares a multiplicidade das paixões: medo e
17
SCHMITT, Carl; Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un
symbole politique, Paris: Seuil, 2002, p. 95.
18
BODEI, Remo; Geometria delle passioni: Paura, speranza, felicità – filosofia e uso politico, Milão:
Feltrinelli, 2003, p. 86.
19
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op.cit., p. 6
20
HOBBES, Thomas; Leviatã, p. 111
esperança, aversão e desejo ou, em termos físicos, repulsão e atração. Mas não é
possível escutar a filosofia hobbesiana pela nota só do medo, que não existe sem
o contraponto da esperança”21.
No entanto, a antropologia hobbesiana faz com que tais afetos circulem
apenas em regime de excepcionalidade, o que fica claro em afirmações como: “de
todas as paixões, a que menos faz os homens tender a violar as leis é o medo.
Mais: excetuando algumas naturezas generosas, é a única coisa que leva os
homens a respeitá-las”22. Faltaria à maioria dos homens a capacidade de se
afastar da força incendiária das paixões e atingir esta situação de esfriamento na
qual o vínculo político não precisaria fazer apelo nem ao temor nem sequer ao
amor (que, enquanto modelo para a relação com o Estado, acaba por construir a
imagem da soberania à imagem paterna, modelando a política na família23). Ou
seja, o esfriamento das paixões aparece como função da autoridade soberana e
condição para a perpetuação do campo político, mesmo que tal esfriamento se
pague com a moeda da circulação perpétua de outras paixões que parecem nos
sujeitar à contínua dependência.
Por isto, mais do que expressão de uma compreensão antropológica
precisa, que daria a Hobbes a virtude do realismo político resultante da
observação desencantada da natureza humana, seu pensamento possui como
horizonte uma lógica do poder pensada a partir de uma limitação política, no
caso, a impossibilidade de pensar a política para além dos dispositivos que
transformam o amparo produzido pela segurança e pela estabilidade em afeto
mobilizador do vínculo social. Política na qual “o protego ergo obligo é o cogito
ergo sum do Estado”24. Difícil não chegar em uma situação na qual esperamos
finalmente por “um quadro jurídico no interior do qual não exista realmente
mais conflitos – apenas regras a colocar em vigor”25. O que fica claro em
afirmações como:
21
RIBEIRO, R.J.; Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu tempo, Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2004, p. 23
22
HOBBES, Leviatã, p. 253
23
Ver, por exemplo, RIBEIRO, op. cit., p. 53
24
SCHMITT, Carl; O conceito do político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 56
25
BALIBAR, Etienne; Violence et civilité, Paris: Galilée, 2010, p. 56
26
HOBBES, Thomas; Leviatã, op. cit., p. 146
Estado construído a partir da dessocialização de todo vínculo comunitário,
constituindo-se como o espaço de uma “relação de não-relações”27.
Não é por acaso que este Estado será comparado a um Leviatã. A metáfora
não poderia ser mais adequada. O Leviatã é um monstro aquático dotado de
força descomunal que aparece no Livro de Jó. O contexto de sua aparição é
sintomático. Sem entender os desígnios divinos, enfermo e despossuido de tudo
o que tinha, Jó expressa sua perplexidade. Sendo um servo temente, por que
sofre tanto? Jeová então lhe aparece não para lhe responder a apazigua-lo, mas
para mostrar a desmedida entre a ciência divina e a ciência humana. Ou seja, ele
está diante de Jó para dizer : quem es tu que questiona meus desígnios? Neste
contexto, Jeová apresenta a figura de duas forças descomunais: uma aquática (o
Leviatã) e outra terrestre (Behemooth). “Não há nada mais tremendo sobre a
terra que se lhe possa comparar”, dirá a Bíblia. Ou seja, fazer do Estado um
Leviatã é inscrever-lhe a força de uma imagem teológica que visa anular o
sofrimento e a restrição como disposição de revolta.
A única limitação que Hobbes reconhece ao poder do Estado é o direito
dos indivíduos à auto-defesa quando a vida está ameaçada pelo poder soberano,
o que decorre do respeito ao primeiro direito natural. Se o soberano atenta
contra minha vida, tenho o direito de a ele me contrapor, pois o que me liga a ele
é um pacto de proteção que não existe mais. No entanto, o soberano guarda o
direito de continuar sua ação contra mim já que pode tudo fazer para garantir a
proteção social e a permanência do Estado.
Por isto, não é possível dizer que o Estado opere aqui a partir de uma
lógica do reconhecimento. Ele opera, ao contrário, através da impossibilidade de
reconhecer aquilo que seria constitutivo da natureza humana. Pois há uma
violência elevada à condição de determinação metafísica do humano. Violência
que só pode aparecer como desagregação de todo e qualquer laço social. Notem
que há uma decisão, prenhe de consequências, que faz a violência vinda do
caráter excessivo do desejo ser expressa apenas como tendência à despossessão
do outro, de sua vida e de seus bens.
Cabe ao Estado usar o medo para impor aos indivíduos a limitação de seus
desejos e a restrição de suas possibilidades de reconhecimento. Cria-se assim
uma duplicidade fundamental na estrutura dos sujeitos que são cidadãos e
cidadãs de tal Estado. Como cidadão e cidadã do Estado ajo como sujeito capaz
de me auto-limitar, sujeito dotado de controle. No entanto, o que me vincula a tal
personalidade é um afeto responsável pela restrição e repressão de meus reais
impulsos. Por isto, a própria noção de personalidade será comparada por Hobbes
a uma máscara, recobrando o sentido originário do termo persona entre os
gregos. Máscara que não reconhece, mas que encobre algo a ser reprimido para
que o laço social possa existir. Como se vê, não é possível dizer que lá onde o
medo aparece como afeto político central o reconhecimento pode se realizar.
Medo social e reconhecimento são processos contrários, como vemos facilmente
em situações atuais concretas.
A função do amparo
27
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op. cit., p. 12
Mas nos atentemos para outro aspecto do nosso problema. Ele diz
respeito ao modelo geral de gestão social quando as exigências de
reconhecimento são bloqueadas. Pois o Estado não será apenas a instância que
opera a repressão. Ele será o gestor da lembrança contínua de que há algo a se
reprimir. Ele não será apenas o bombeiro da vida social, mas também o próprio
piromaníaco. Pois o fato fundamental no interior desta relação de não-relações é
a necessidade que a legitimação da soberania pela capacidade de amparo e
segurança tem da perpetuação contínua da imagem da violência desagregadora à
espreita, da morte violenta iminente caso o espaço social deixe de ser controlado
por uma vontade soberana de amplos poderes. O segredo da legitimidade do
Estado é a perpetuação da iminência da guerra de todos contra todos. O
fundamento fantasmático deste Estado será a figura do conflito social reduzida à
condição de guerra de todos contra todos. Daí uma conclusão importante de
Agamben: “A fundação não é um evento que se cumpra uma vez por todas in illo
tempore, mas é continuamente operante no estado civil na forma da decisão
soberana”28. Este mecanismo de fundação que necessita ser continuamente
reiterado diz muito a respeito da continuidade do medo como força de reiteração
da relação do Estado ao seu fundamento.
Sendo o Estado nada mais que “a guerra civil constantemente impedida
através de uma força insuperável”29, ele precisa provocar continuamente o
sentimento de desamparo, da iminência do estado de guerra, transformando-o
imediatamente em medo da vulnerabilidade extrema, para assim legitimar-se
como força de amparo fundada na perpetuação de nossa dependência. Na
verdade, devemos ser mais precisos e lembrar que a autoridade soberana tem
sua legitimidade assegurada não apenas por instaurar uma relação baseada no
medo para com o próprio soberano, mas principalmente por fornecer a imagem
do distanciamento possível em relação a uma fantasia social de desagregação
imanente no laço social e de risco constante da morte violenta. Uma fantasia
social que Hobbes chama de “guerra de todos contra todos”. É através da
perpetuação da iminência de sua presença que a autoridade soberana encontra
seu fundamento. É alimentando tal fantasia social que se justifica a necessidade
do “poder pacificador” da representação política, ou seja, do abrir mão de meu
direito natural em prol da constituição de um representante cujas ações
soberanas serão a forma verdadeira de minha vontade. Só assim o medo poderá
“conformar as vontades de todos”30 os indivíduos, como se fosse o verdadeiro
escultor da vida social.
É importante ainda salientar que essa fantasia pede uma dupla
fundamentação. Por um lado, ela apela à condição presente dos homens. Não
sendo uma hipótese histórica, o estado de natureza é uma inferência feita a
partir da análise das paixões atuais. Isto leva comentadores como Macpherson a
afirmar que, longe de ser uma descrição do ser humano primitivo, ou do ser
humano aparte de toda característica social adquirida, o estado de natureza
28
AGAMBEN, Giorgio; Homo sacer, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 115.
29
SCHMITT, Carl; Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un
symbole politique, op. cit., p. 86
30
HOBBES, Thomas; Leviatã, op. cit., p. 147
seria: “a abstração lógica esboçada do comportamento dos homens na sociedade
civilizada” 31.
Hobbes pede que lembremos como “todos os países, embora estejam em
paz com seus vizinhos, ainda assim guardam suas fronteiras com homens
armados, suas cidades com muros e portas, e mantém uma constante vigilância”.
Lembra ainda como os “particulares não viajam sem levar sua espada a seu lado,
para se defenderem, nem dormem sem fecharem – não só as portas, para
proteção de seus concidadãos – mas até seus cofres e baús, por temor aos
domésticos”32. Mas notemos um ponto central. A espada que carrego, as trancas
na minha porta e em meus baús, os muros da cidade na qual habito são índices
não apenas do desejo excessivo que vem do outro. Eles são índices indiretos do
excesso do meu próprio desejo. Como se Hobbes afirmasse: “olhe para suas
trancas e você verá não apenas seu medo em relação ao outro, mas o excesso de
seu próprio desejo que lhe desampara por querer lhe levar a situações nas quais
imperam a violência e o descontrole da força”. A retórica apela aqui a uma
universalidade implicativa.
De toda forma, como não se trata de permitir que configurações atuais
sejam, de maneira indevida, elevadas à condição de invariante ontológica, faz-se
absolutamente necessário também a produção contínua dessas construções
antropológicas do exterior caótico e do passado sem lei. Ou seja, mesmo não
sendo uma hipótese histórica, não há como deixar de recorrer à antropologia
para pensar o estado de natureza. Assim, aparecem construções como esta que
leva Hobbes a acreditar que:
sabemos disso também tanto pela experiência das nações selvagens que
existem hoje, como pelas histórias de nossos ancestrais, os antigos
habitantes da Alemanha e de outros países hoje civilizados, onde
encontramos um povo reduzido e de vida breve, sem ornamentos e
comodidades, coisas essas usualmente inventadas e proporcionadas pela
paz e pela sociedade34.
31
MACPHERSON, C.B.; The political theory of possessive individualism: Hobbes to Locke, Oxford
University Press, 1962, p. 26.
32
HOBBES, Thomas; Do cidadão, p. 14.
33
Idem, p. 110.
34
HOBBES, Thomas; Os elementos da lei natural e política, São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 70
criar um risco de contaminação da vida social pela violência exterior,
independente de onde esse exterior esteja, seja geograficamente no Novo Mundo
ou no Oriente Médio, seja historicamente em uma cena originária da violência.
Ao menos neste ponto, Carl Schmitt é o mais consequente dos hobbesianos
quando afirma que:
35
SCHMITT, Carl; O conceito de político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 32
Lógicas do reconhecimento
Aula 3
Na aula passada, vimos a emergência de uma teoria dos laços sociais fundada na
irredutibilidade da noção de conflito, mas que não dava espaço ao aparecimento
de uma dinâmica de desdobramentos de tais conflitos no interior de processos
de reconhecimento. Tratava-se da teoria política de Thomas Hobbes. Insisti com
vocês que Hobbes partia da defesa de uma violência imanente à relação entre
indivíduos no estado de natureza. Violência esta responsável pelo horizonte de
uma guerra de todos contra todos que nos levaria tendencialmente à
despossessão generalizada, à morte violenta e a relações sempre concorrenciais.
Vimos como Hobbes mobilizava uma verdadeira psicologia do desejo e dos
afetos como fundamento de suas reflexões políticas. Diante desta violência
imanente, o estado e o poder soberano apareciam como garantes de uma relação
de termos (os indivíduos) sem-relação entre si. Sua legitimidade estaria fundada
em um pacto social de proteção e de amparo que, ao mesmo tempo, era uma
forma de gestão e incitação do medo como afeto político central. No interior
deste pacto, a natureza humana deveria ser reprimida, sua agressividade e
violência ontológicas deveriam ser excluída do horizonte de reconhecimento
social. Assim, consolidava-se uma clivagem entre minha persona como cidadã e
cidadão do estado e minha psicologia, sempre prestes a fazer reemergir as
condições próprias ao estado de natureza.
Como havia dito na aula passada, Hobbes nos era importante por fornecer
o quadro de problemas que uma teoria do reconhecimento deverá lidar. Pois ela
deverá, inicialmente, quebrar o vínculo entre antropologia da violência e
legitimação do Estado. Isto implica operar duas saídas possível. A primeira seria
fornecer uma outra imagem antropológica, uma outra psicologia, insistindo, por
exemplo, na imanência de relações de empatia a fundar campos intersubjetivos
cuja primeira expressão é não-conflitual. Retira-se assim o conflito da posição de
fundamento da existência social, deslocando-o para o que pode ser regulado
devido à presença de um horizonte normativo de experiências de empatia. Esta
empatia pode estar presente na vida social, sendo necessária apenas reconstruir
as bases normativas de nossa sociedade a partir do que está presente em vários
campos da vida social, como fará Axel Honneth. Ou ela pode estar soterrada
pelos processos de modernização social, sendo necessário, de alguma forma,
recuperar a força de coesão do que foi reprimido em sua origem. Esta é, por
exemplo, a estratégia de Rousseau e de sua outra imagem do estado de natureza
baseado na compaixão e na expressão.
Haverá, no entanto, ainda outro caminho. Ele consistirá em conservar a
compreensão da centralidade do conflito como dado instaurador dos laços
sociais, mas procurando constituir um conceito mais amplo de conflito cuja
expressão não se reduza à despossessão dos bens e à morte violenta. Para tanto
será necessário, por exemplo, recusar o ponto de partida individualista que
vemos em Hobbes, insistindo na anterioridade das relações a desapeito de seus
termos e, ao mesmo tempo, retomando a teoria do desejo que serve de base a
Hobbes a fim de inseri-la no interior de uma noção mais ampla de “negatividade”
cuja satisfação e reconhecimento poderá se dar de formas variadas, como tentará
fazer Hegel. Ou seja, a estratégia aqui consiste também em modificar a base
antropológica da política, mas sem recusar a centralidade ontológica da noção de
conflito. Dentro desta dinâmica, poderemos ainda reinserir o conflito no interior
de uma lógica na qual a célula elementar não são as auto-afirmações individuais,
mas a experiência de pertencimento a uma classe, como faz Marx ao redescrever
a noção da sociedade como guerra civil diferida a partir da concepção reguladora
de luta de classes, e não mais a partir da noção de guerra de todos contra todos.
Ao final de nossa última aula eu dissera que vamos analisar cada uma
dessas alternativas. Neste sentido, gostaria de utilizar a aula de hoje para falar da
ausência de uma lógica do reconhecimento em Jean-Jacques Rousseau. Mesmo
sendo o teórico que primeiro descreverá a natureza do sofrimento social que
mobiliza sujeitos em direção ao reconhecimento, a saber, a alienação, a teoria
política de Rousseau não será uma teoria configurada a partir de problemas
ligados às lutas por reconhecimento. Mesmo intervendo a imagem antropológica
fornecida por Hobbes no estado de natureza, insistindo na importância da
compaixão e da empatia, seu contratualismo, assim como a centralidade de sua
noção de “vontade geral”, exigirão um certo esquecimento da natureza humana
que encontrará expressão apenas, de forma compensatória, no campo das artes
(em especial na música), e não no campo da política. Por isto, não haverá
dinâmicas de reconhecimento no campo social. Gostaria de expor de maneira
sistemática alguns pontos centrais da teoria de Rousseau importantes para
nosso debate.
36
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Discours sur l’origine de l’inegalité, in: Oeuvres complètes, La Pléiade,
p. 139
Não é uma grande infelicidade a estes primeiros homens, nem mesmo um
grande obstáculo à conservação, a nudez, a falta de habitação e a privação
de todas essas inutilidades que cremos necessárias. Se eles não tem a pele
aveludada, não tem por outro lado nenhuma necessidade disto em países
quentes, além de saberem muito bem, em países frios, apropriar-se desta
das bestas que venceram37.
37
Idem, p. 140
História da queda
38
Idem, p. 142
39
STAROBINSKI, Jean: Rousseau: a transparência e o obstáculo, p. 36
40
Idem, p. 23
um comércio independente. Mas desde que um homem teve necessidade
do socorro de outro, desde que se percebeu que seria útil a um de ter
provisões para dois, e igualdade desapareceu, a propriedade foi
introduzida, o trabalho adveio necessário e as vastas florestas se
transformaram em campos rudes que deveriam ser arados com o suor
dos homens e nos quais vimos rapidamente a miséria e a escravidão
germinar e crescer como musgos41.
41
ROUSSEAU, Idem, p. 171
42
Idem, p.173
43
Idem, p. 169
Rousseau como alienação na dimensão da aparência, o olhar do outro não é a
confirmação de si, mas uma forma de aprisionamento. Pois não é através do
reconhecimento que o humano realizaria sua essência, mas através do retorno à
voz da natureza, o que só é possível ainda na dimensão da experiência estética e,
em especial, da expressão musical.
Isto é resultado direto do ponto de partida de Rousseau. Da mesma
maneira que Hobbes, Rousseau aceita que a celular elementar da vida social são
os indivíduos, no seu caso, indivíduos em relação de imanência à natureza. Ou
seja, temos primeiros indivíduos isolados e, em um segundo momento, o artifício
da criação de relações. Neste sentido, a liberdade natural implica certo modo de
relação a si que podemos descrever como “relações de auto-pertencimento”,
relações nas quais afirmamos o fato de se pertencer apenas a si mesmo, o que a
vida social não pode realizar. No máximo, a vida social pode construir uma forma
compensatória de autonomia baseada na emergência de uma vontade geral. É
desta forma compensatória que fala O contrato social.
Um corpo político
44
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Le contrat social, p. 364
45
Idem,
46
Isto talvez nos explique porque, na justificação do contrato social: “a linguagem de Rousseau com
freqüência é tão abertamente utilitarista quanto a de Hobbes. Isto é o que você perde, mas avalie, em
compensação, o que você ganha” (LEBRUN, Gerard; “Contrato social ou negócio de otário?” In: A
filosofia e sua história, São Paulo: Cosac e Naify, 2006, p. 226). Por isto, se aceitamos entrar no
contrato social: “é por ter lido, no segundo livro, que as “pessoas privadas” que compõem a “pessoa
pública” permanecem “naturalmente independentes dela”, que elas continuam portanto a desfrutar um
direito natural enquanto homens e que “o Soberano não pode infligir aos súditos nenhuma que seja
inútil à comunidade” (idem, p. 230).
de um todo maior do qual os indivíduos receberão de certa maneira sua
vida e seu ser; de substituir uma existência física e independente que
todos nós recebemos da natureza por uma existência parcial e moral47.
Música e reconhecimento
47
Idem, p. 381
48
PRADO JR., Bento; A retórica de Rousseau, p. 103
49
DAHLHAUS, L´idée de la musique absolue, p. 49
veículo de formação moral por recuperar o vínculo entre natureza e cultura.
Lembremos do que diz Rousseau :
Quando pensamos que, de todos os povos da terra, todos o que têm uma
música e um canto, os europeus são os únicos que têm uma harmonia,
acordes, achando esta mistura agradável ; quando pensamento que o
modo durou tantos séculos sem que, em todas as nações que cultivaram
as belas-artes, nenhuma tenha conhecido esta harmonia, que nenhum
animal ou pássaro, nenhum ser na natureza produziu outro acorde que o
uníssono ou outra músical que a melodia ; que as línguas orientais, tão
sonoras, tão musicais, exercidas com tanta arte, nunca guiaram estes
povos voluptosos e apaixonados em direção à nossa harmonia ; que sem
ela suas músicas tiveram efeitos tão prodigiosos ; que com ela a nossa
tenha efeitos tão fracos ; que, enfím, estava reservado aos povos do norte,
cujos órgãos duros e grosseiros são mais tocados pelos ruídos e explosões
de vozes do que pela doçura dos acentos e melodias das inflexões,
fazerem esta grande descoberta e definí-la como princípio a todas regras
da arte ; quando, digo eu, levamos tudo isto em considerações, é muito
difícil não desconfiar que toda nossa harmonia é uma invenção gótica e
bárbara a respeito da qual nunca seríamos avisados se fôssemos mais
sensíveis as verdadeiras belezas da arte e à música realmente natural 50.
50
ROUSSEAU, Dictionnaire de musique
51
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Dictionnaire de musique, Paris: Actes Sud, 2007, p. 208
52
Idem, p. 207
Notemos como a crítica da alienação em Rousseau serve-se da música
como horizonte de reconstrução da capacidade instauradora da linguagem e
recuperação de dimensões sociais de autenticidade. Rousseau é consciente de
que a alienação social é indissociável da degradação da linguagem no espaço
político. Lembremos de como termina seu Ensaio sobre a origem das línguas:
“toda língua com a qual não nos fazemos escutar pelo povo em assembleia é uma
língua servil; é impossível que o povo seja livre e fale uma língua destas”53. Uma
língua que o povo em assembleia não escuta é aquela desprovida de eloquência,
afastada da persuasão por separar o povo, por ser apenas uma fala em nome
próprio, reduzida a sua condição instrumental de descrição de interesses. “A
primeira máxima da política moderna”, dirá Rousseau, é: “os sujeitos devem
permanecer separados” e é a língua degradada à sua dimensão instrumental e
comunicacional que os separa. A língua do povo em assembleia, ao contrário, é
aquela mais próxima do canto e da música. De certa forma, para Rousseau, não
há assembleia sem música.
No entanto, a força política da música exige a recusa de sua autonomia, a
recusa do desenvolvimento imanente de seus materiais. Para preencher sua
força política própria, a música deve se submeter a uma moral, ela não deve criar
um ethos a partir do desenvolvimento imanente de seus materiais. Por isto,
trata-se de exigir a fundamentação dos modos de expressão em um solo natural e
originário pensado como horizonte normativo estrito. Este solo natural não é um
campo de singularidades em produção, mas um campo de visibilidade da voz da
natureza. Pois: “a força da linguagem não reside no poder de fornecer imagens
das coisas, mas no poder de pôr a alma em movimento, de colocá-la numa
disposição que torne visível a ordem da natureza. A linguagem imita a natureza
quando colabora com a ordem, quando restitui, no interior da humanidade, a
ordem que seu nascimento tinha contribuído para apagar”54.
53
Idem, Essai sur l’origine des langues,
54
PRADO JR., Bento; A retórica de Rousseau, p. 161
Lógicas do reconhecimento
Aula 4
55
PINKARD, Terry; The sociality of reason, p. 9
Hegel partilha com pós-kantianos, como Fichte e Schelling, o diagnóstico
de que viveríamos em um momento histórico de cisão resultante da elevação do
princípio de subjetividade a condição de fundamento da razão moderna, assim
como de seus modos de racionalização social. Este princípio de subjetividade,
com sua condição de fundamento, exige que tudo aquilo que aspira validade seja
submetido à força da reflexão. Ele faz com que ser e reflexão seja pois o mesmo.
No entanto, isto parece inicialmente submeter o ser à dimensão estrita daquilo
que é ser-para-o-sujeito, e não ser em-si. Daí diagnósticos como este que
encontramos no prefácio da Fenomenologia:
56
HEGEL, Fenomenologia I, p. 24
57
WEBER, Ciência como vocação in Ensaios de sociologia, p. 182
Em uma análise hoje clássica, Hegel indica três acontecimentos que foram
paulatinamente moldando a modernidade em suas exigências: a reforma
protestante [com sua confrontação direta entre o crente e Deus através da
subjetividade da fé], a revolução francesa [que colocava o problema do Estado
Justo enquanto aquele capaz de conciliar aspirações de universalidade da Lei e
exigências dos indivíduos] e o Iluminismo [que, segundo Hegel, terá em Kant sua
realização mais bem acabada]. Em todos estes acontecimentos, o que parece
impulsiona-los é o aparecimento do que poderíamos chamar de “subjetividade”.
É a gênese desta subjetividade que deverá ser objeto da filosofia e de seus
processos de fundamentação.
Hegel poderia, no entanto, apelar a uma saída transcendental que visaria
definir o sujeito como mera condição formal de toda experiência possível. Isto
daria ao sujeito a universalidade necessária para não sermos empurrado a um
psicologismo subjetivista. Mas a saída transcendental de moldes kantianos era
insatisfatória para Hegel e para os pós-kantianos. Pois, primeiramente, ela criaria
sua universalidade através da supressão de todo processo histórico de gênese e
metamorfose das categorias do pensamento. As categorias do pensamento
aparecem assim como entidades estáticas e, por isto, indiferente ao mundo tal
como seria em-si. No entanto, dirá Hegel:
58
HEGEL, Enciclopédia, par. 246
remotos que a história da razão pode alcançar no admirável povo grego, a
matemática entrou na via segura de uma ciência59.
59
KANT, Crítica da razão pura, B VIII/B XI
60
HEGEL, Idem, p. 13. Lembrando, é claro, que a afirmação de Kant não é totalmente correta, já que:
‘a doutrina que ele vê como descoberta completa e perfeita de Aristóteles foi, de fato, uma confusa
versão peculiar da mistura tradicional entre elementos aristotélicos e estóicos” (KNEALE e KNEALE,
The development of logic, Oxford University Press)
reconhecer nossas demandas de liberdade. Ou seja, a razão não é só a
característica da estrutura cognitiva da consciência. Ela é sua força de
instauração de formas sociais.
Isto explica porque o jovem Hegel tentará uma saída ao princípio de
subjetividade constituinte em Kant fazendo apelo à recuperação de laços sociais
pretensamente marcados pelo reconhecimento mútuo e pela garantia de uma
ação social orientada para a emancipação, como seria o caso da polis grega e das
primeiras comunidades cristãs baseadas no amor. Este modelo, no entanto, será
paulatinamente abandonado por Hegel quando compreender que as sociedades
modernas de livre-mercado levaram a individualidade a um desenvolvimento tal,
assim como levaram processos de trabalho a um ponto tal de degradação, que
não seria mais possível apelar a modelos baseados em vínculos comunitários
substanciais.
Em seu lugar, o jovem Hegel construirá uma descrição fenomenológica de
etapas sociais de reconhecimento. Elas começam pelas exigências de satisfação
do desejo. Neste sentido, nos encontramos mais uma vez no ponto de partida de
Thomas Hobbes e de seu estado de natureza. No entanto, simplesmente não há
estado de natureza em Hegel. Comparemos, por exemplo, o movimento textual
do Leviatã e o movimento textual da Fenomenologia do Espírito. No primeiro
caso, temos um movimento sempre ascendente. Começa-se da descrição da
estrutura do desejo individual, expõe-se seus conflitos, evidencia-se seus
impasses e chega-se ao estado social. Em Hegel, temos uma espécie de dinâmica
de aprofundamento, no qual a consciência desvela a natureza mediada daquilo
que ela julgava imediato, desvela a natureza socialmente constituída daquilo que
lhe aparecia como natural. Por isto, perde o sentido em falar em algo como um
“estado de natureza”. Saí de cena as discussões sobre a natureza humana, mesmo
que a filosofia de Hegel procure compreender uma espécie de emergência do
social a partir da natureza, ou seja, a partir do movimento da vida, o que explica
porque a vida aparece como primeira figura do desejo no capítulo IV da
Fenomenologia do Espirito.
Mas tentemos dar o sentido do movimento geral desta dinâmica hegeliana
de aprofundamento. No caso de Hegel, e isto já está presente nos escritos de
juventude, o processo do desejo nos leva a uma dinâmica de conflitos que fará
emergir o trabalho em sua forma de trabalho alienado, trabalho feito no interior
de uma relação de submissão e de medo da morte. Daí porque a primeira figura
da consciência que trabalho é o servo. No entanto, pelas vias do trabalho as
relações de dependência levarão a uma modificação da consciência individual.
Ao trabalhar para um Outro, a consciência descobrirá habitada por uma
perspectiva que não é apenas sua, mas também de Outro. Daí o sentido de
afirmações surpreendentes como:
61
HEGEL, G.W.F.; Enciclopédia, par. 435
62
HEGEL, G.W.F.; Filosofia do Espírito, p. 36
ter que continuamente perder a si mesma, até chegar o momento em que ela
perceba que perdeu o que, de certa forma, ela nunca teve.
Lógicas dos reconhecimento
Aula 5
63
LUKACS, Gyorg; El joven Hegel, p. 442
estrutura e unidade do conceito [descrição de estados do mundo] é idêntica a estrutura
e unidade do eu”64. Assim, o questionamento sobre a verdade da certeza de si será,
necessariamente, questionamento a respeito da verdade sobre o saber dos objetos. É
tendo tais questões em vista que devemos ler o primeiro parágrafo do nosso trecho:
Encontramos aqui um resumo que visa mostrar o que realmente estava em jogo na
seção precedente. Enquanto consciência, a medida da verdade era fornecida pela
adequação entre representações mentais e objetos. No entanto, o objeto da experiência
sempre ultrapassava (ou melhor, sempre invertia) as representações naturais do
pensar. Em cada um destes momentos, a consciência parecia perder a objetividade da
sua certeza, ou seja, a crença de que seu saber era capaz de descrever estados de
coisas independentes e dotados de autonomia metafísica.
No entanto, Hegel afirma que surgiu agora aquilo que, na Introdução, ele havia
chamado de meta: ‘onde o saber não necessita ir além de si mesmo, onde o conceito
corresponde ao objeto e o objeto ao conceito”66, ou seja, surgiu uma certeza igual à
verdade. Este surgir eclode quando o saber compreende que seu objeto é a própria
consciência e que lá onde ele acreditava estar lidando com objetos autônomos, ele
estava lidando com a própria estrutura do saber enquanto o que determina a
configuração do que pode aparecer no interior do campo da experiência. “É para a
consciência que o Em-si do objeto e seu ser-para-um-Outro são o mesmo” 67. Daí
porque não se trata mais de tematizar a consciência como consciência de objeto, mas
como consciência de consciência, consciência das estruturas do pensar da
consciência, ou ainda, consciência de si (Selbstbewustssein).
Hegel afirma então que, enquanto consciência de si:
64
BRANDOM, Some pragmatist themes in Hegel´s idealism, pag. 210
65
HEGEL, Fenomenologia, par. 166
66
HEGEL, Fenomenologia, par. 80
67
HEGEL, Fenomenologia, par. 166
68
HEGEL, idem
Afirmações desta natureza podem se prestar a vários mal-entendidos. Pode
parecer que Hegel afirma, em uma bela demonstração de idealismo absoluto, que o Eu
não é apenas o que fornece a forma do que aparece (como em Kant ao insistir que o
objeto qualquer das categorias do entendimento era o correlato do Eu penso ou da
unidade da consciência), mas também o conteúdo, a matéria do que aparece. Só assim
Hegel poderia afirmar que o Eu é, ao mesmo tempo, o conteúdo da relação (entre
saber e objeto) e a própria relação (a forma através da qual o saber dispõe o que
aparece).
No entanto, lembremos como Hegel retomará colocações desta natureza no
parágrafo 167, ao lembrar que a consciência-de-si não e apenas a “tautologia sem
movimento do ‘Eu sou Eu’” pois “enquanto para ela a diferença não tem a figura do
ser, ela não é consciência-de-si”. A partir daí, Hegel pode então fornecer sua
definição de consciência-de-si:
69
HEGEL, Fenomenologia, par. 167
70
HEGEL, Fenomenologia, par. 36
afirmar que: “Toda constituição transcendental é uma instituição social”71, no sentido
de que tudo o que tem status normativo é uma realização social.
Esta dupla articulação só será possível se mostrarmos que a estrutura do Eu já
é, desde o início, uma estrutura social e que a idéia do Eu como individualidade
simplesmente constraposta à universalidade da estrutura social é rapidamente posta
em cheque a partir do momento em que compreendemos, de maneira correta, o que
está em jogo na gênese do processo de individualização de Eus socializados. Hegel,
de fato, quer levar às últimas conseqüências esta idéia de que o Eu já é desde o início
uma estrutura social mostrando as conseqüências desta proposição para a
compreensão do sujeito do conhecimento, do sujeito da experiência moral, o sujeito
do vínculo político e o sujeito da fruição estética. O Eu nunca é uma pura
individualidade, mas: “os indivíduos são eles mesmos de natureza espiritual e contém
neles estes dois momentos: o extremo da singularidade que conhece e quer para si e o
extremo da universalidade que conhece e quer o que é substancial”72.
No entanto, nada disto nos foi apresentado até agora no interior do texto da
Fenomenologia do Espírito. Novamente, os primeiros passos desta operação
complexa será apresentado de maneira abrupta. No parágrafo 167, ao lembrar que a
noção de “fenômeno”, enquanto “diferença que não tem em si nenhum ser” (já que é
apenas o aparecer para-um-Outro) não era figura da unidade da consciência-de-si
consigo mesma mas, ao contrário, era a própria clivagem (já que a essencialidade está
sempre em um Outro inacessível ao saber: a coisa-em-si), Hegel afirma: “Essa
unidade [da consciência-de-si] deve vir-a-ser essencial a ela, o que significa: a
consciência-de-si é desejo em geral (Begierde überhaupt)”73.
O que significa esta introdução do que Hegel chama aqui de “desejo em
geral”, ou seja, não desejo deste ou daquele objeto, mas desejo tomado em seu sentido
geral, como modo de relação entre sujeito e objeto? A partir do contexto, podemos
compreender que a unidade da consciência-de-si com o que havia se alojado no
“interior das Coisas” como essência para além dos fenômenos, unidade entre o saber e
a determinação essencial dos objetos só será possível a partir do momento em que
compreendermos as relações entre sujeito e objeto não apenas como relações de
conhecimento, mas primeiramente como relações de desejo e satisfação. Percebemos
agora o tamanho da inflexão em jogo na passagem da consciência à consciência-de-si.
A princípio, uma afirmação desta natureza pareceria algo totalmente
temerário. Estaria Hegel colocando em marcha alguma forma de psicologismo
selvagem que submete as expectativas cognitivas a interesses prático-finalistas? Ou
estaria ele insistindo, e aí na melhor tradição que encontramos também em Nietzsche
e Freud, que a razão configura seus procedimentos (ou seja, ela define o que é
racional e legítimo) através dos interesses postos na realização de fins práticos,
interesses que nos leva a recuperar a dignidade filosófica da categoria de “desejo”?
De fato, esta segunda alternativa parece ser o caso. Neste sentido, podemos
seguir um comentador que viu isto claramente, Robert Pippin: “Hegel parece estar
dizendo que o problema da objetividade, do que estamos dispostos a contar como uma
reivindicação objetiva é o problema de satisfação do desejo, que a ‘verdade’ é
totalmente relativizada por fins pragmáticos (...) Tudo se passa como se Hegel
estivesse reivindicando, como muitos fizeram nos séculos XIX e XX, que o que conta
71
BRANDOM, idem
72
Ver a este respeito SOUCHE-DAGUES, Négation et individualitá dans la pensée polítique
hégélienne
73
HEGEL, Fenomenologia, par. 167
como explicações bem-sucedidas dependem de quais problemas práticos queremos
resolver (...) que o conhecimento é uma função de interesses humanos”74.
No entanto, parece que Hegel estaria assim entrando com os dois pés em
alguma forma de relativismo que submete expectativas universalizantes de verdade a
contingência de contextos marcados por interesses e desejos particulares. A não ser
que Hegel seja capaz de mostrar que os interesses práticos não são guiados pelo
particularismo de apetites e inclinações mas que, ao se engajar na dimensão prática
tendo em vista a satisfação de seus desejos, os sujeitos realizam necessariamente as
aspirações universalizantes da razão. Mas como defender tal posição partindo da
centralidade do desejo na constituição da consciência-de-si?
Claro está que precisaríamos aqui adentrar na especificação do conceito
hegeliano de desejo. Devemos mostrar como o desejo naturalmente abole sua
perspectiva particularista para se reconciliar com a universalidade de uma espécie de
interesse geral. No entanto, Hegel não faz exatamente isto nos parágrafos seguintes.
Só teremos uma descrição mais adequada do processo do desejo entre os parágrafos
174 e 177. Neste trecho, teremos mais indicações a respeito deste modo de relação
entre sujeito e seu-Outro (no caso, o objeto) que Hegel já havia tematizado no
capítulo precedente ao falar da infinitude. A sua maneira, o desejo em Hegel será a
posição desta infinitude tematizada no final do capítulo sobre o entendimento. Mas
Hegel será agora obrigado a, de uma certa forma, distinguir duas modalidades de
desejo (o desejo vinculado à consumação do Outro e o desejo que forma – ou seja, o
trabalho), da mesma forma com que ele terá de distinguir duas modalidade de
infinitude: uma verdadeira e outra ruim.
O ciclo da vida
74
PIPPIN, The satisfaction of self-consciousness, p. 148
percepção, mas é também ser refletido sobre si; o objeto do desejo imediato é
um ser vivo75.
75
HEGEL, Fenomenologia, par. 168
76
HEGEL, Diferença dos sistemas filosóficos de Fichte e Schelling, p. 38
77
HYPPOLITE, Gênese e estrutura, p. 162
Neste sentido, não é por outra razão que Hegel apresenta a vida logo na
entrada da seção dedicada à consciência-de-si. Enquanto consciência que reconhece
as dicotomias nas quais uma razão compreendida a partir da confrontação entre
sujeito e objeto se enredara, a consciência-de-si procura um background normativo
intersubjetivamente partilhado a partir do qual todos os modos de interação entre
sujeito e objeto se extraem. A vida aparece inicialmente como este background. O que
Habermas vira muito bem ao afirmar: “Contra a encarnação autoritária da razão
centrada no sujeito, Hegel apresenta o poder unificador de uma intersubjetividade que
se manifesta sob o título de amor e vida”78.
No entanto, a vida é ainda uma figura incompleta porque seu movimento não
é para-si, ou seja, não é reflexivamente posto e apreendido. Mas não se trata, por
outro lado, de simplesmente negar, através de uma negação simples, o que a reflexão
sobre a vida traz. De fato, há uma certa continuidade entre a vida e a consciência-de-si
claramente posta por Hegel nos seguintes termos: “A consciência-de-si é a unidade
para a qual é a infinita unidade das diferenças, mas a vida é apenas essa unidade
mesma, de tal forma que não é ao mesmo tempo para si mesma”79.
Mas antes de avançarmos, devemos nos perguntar: como Hegel compreende a
vida e seu movimento, seu ciclo? De maneira esquemática, podemos dizer que a vida
é fundamentalmente compreendida a partir da tensão entre a universalidade da
unidade da vida e a particularidade do indivíduo ou da multiplicidade diferenciadora
das formas viventes. Por isto, ela pode aparecer como figura da infinitude, já que cada
um é encarnação da contradição entre unidade e indivíduo [lembrar dos estudos
posteriores de biologia, em especial os de Weismann, sobre soma – substância mortal-
e plasma – substância imortal]. Isto nos explica porque Hegel havia dito, ao
apresentar o conceito de infinitude no capítulo sobre o entendimento: “Essa infinitude
simples – ou o conceito absoluto – deve-se chamar a essência simples da vida, a lama
do mundo, o sangue universal”80. No nosso trecho, Hegel descreve o ciclo da vida do
parágrafo 169:
Todo o desenvolvimento do parágrafo 170 até o parágrafo 172 é uma longa descrição
sobre este processo de afirmação das diferenças contra o fundo de unidade da vida e
de dissolução, ou o perecimento, das mesmas diferenças através da afirmação do
fluxo contínuo da vida enquanto fluxo de multiplicidade de figuras que não subsistem.
Como bem lembra Hyppolite: “Pode-se partir da vida como todo (natura naturans) e
chegar aos indivíduos separados (natura naturata) e pode-se igualmente partir do
78
HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, p. 39
79
HEGEL, Fenomenologia, par. 168
80
HEGEL, Fenomenologia, par. 162
81
HEGEL, Fenomenologia, par. 169
indivíduo separado e reencontrar nela esta totalidade da vida”82. Daí porque Hegel
poderá afirmar, ao final, que a vida: “é o todo que se desenvolve, que dissolve seu
desenvolvimento e que se conserva simples nesse movimento”83.
Mas, como vimos, a vida só é esta infinitude para a consciência-de-si, ela não
para-si. Neste sentido, a infinitude presente na vida deve se manifestar à consciência-
de-si. Como a vida é o próprio meio do qual a consciência-de-si faz parte, ela deve
descobrir inicialmente em si mesma tal infinitude. E a primeira manifestação de tal
infinitude se dará através do desejo. Uma manifestação ainda imperfeita pois solidária
do aparecimento de um infinito ruim. Mas como pode uma infinitude ser ruim?
Hegel e o desejo
O sujeito intui no objeto sua própria falta (Mangel), sua própria unilateralidade
– ele vê no objeto algo que pertence à sua própria essência e que, no entanto,
lhe falta. A consciência-de-si pode suprimir esta contradição por não ser um
ser, mas uma atividade absoluta84.
A colocação não poderia ser mais clara. O que move o desejo é a falta que
aparece intuída no objeto. Um objeto que, por isto, pode se pôr como aquilo que
determina a essencialidade do sujeito. Ter a sua essência em um Outro (o objeto) é
uma contradição que a consciência pode suprimir por não ser exatamente um ser, mas
uma atividade, isto no sentido de ser uma reflexão que, por ser posicional, toma a si
mesma por objeto.
Mas, dizer isto é ainda dizer muito pouco. Pois se o desejo é falta e o objeto
aparece como a determinação essencial desta falta, então deveríamos dizer que, na
consumação do objeto, a consciência encontra sua satisfação. No entanto, não é isto o
que ocorre:
82
in HEGEL, Phénoménologie de l´Esprit, p. 148, nota 9
83
HEGEL, Fenomenologia, par. 171
84
HEGEL, Enciclopédia, par. 427 - adendo
85
HEGEL, Fenomenologia, par. 175
A contradição encontra-se aqui na seguinte operação: o desejo não é apenas
uma função intencional ligada à satisfação da necessidade animal, como se a falta
fosse vinculada à positividade de um objeto natural. Ele é operação de auto-posição
da consciência: através do desejo a consciência procura se intuir no objeto, tomar a si
mesma como objeto e este é o verdadeiro motor da satisfação. Através do desejo, na
verdade, a consciência procura a si mesma. Daí porque Hegel pode afirmar que,
inicialmente, o desejo aparece em seu caráter egoísta. Já na Filosofia do espírito, de
1805, Hegel oferece a estrutura lógica deste movimento que serve de motor para a
figura do desejo: "O desejante quer, ou seja, ele quer se pôr (es will sich setzen), se
fazer objeto (Gegenstande machen)"86. Isto implica inicialmente em tentar destruir o
Outro (o objeto) enquanto essência autônoma. No entanto, satisfazer-se com um
Outro aferrado à positividade de uma condição de mero objeto (no sentido
representacional) significa não realizar a auto-posição da consciência enquanto
consciência. A consciência só poderá se pôr se ela desejar um objeto que duplica a
própria estrutura da consciência. Ela só poderá se satisfazer ao desejar uma outra
consciência, ao intuir a si mesmo em uma outra consciência. “A consciência-de-si só
alcança satisfação em uma outra consciência-de-si”. Daí porque:
89
HEGEL, Enciclopedia, Add, par.426
Lógicas do reconhecimento
Aula 6
90
HEGEL, Fenomenologia, par. 178
91
HEGEL, Filosofia do Espírito
si. Daí porque Hegel pode dizer, a respeito das interações elementares entre
consciências-de-si:
92
HEGEL, Fenomenologia, par. 179
93
HEGEL, Fenomenologia, par. 182
assim resultado da intencionalidade dos agentes, mas determinação que só se
define na exterioridade da intenção.
94
HEGEL, Fenomenologia, par. 183
95
HEGEL, Fenomenologia, par. 184
figuras, mas sim em conceitos, o que significa: em um ser-em-si diferente, que
imediatamente para a consciência não é nada diferente dela”96. Se não levamos
em conta este primado, a via se abre para a antropologização excessiva do
discurso hegeliano em detrimento de considerações sobre sua articulação lógica.
Vejamos, por exemplo, como Hegel inicia a descrição deste movimento
dialético:
96
HEGEL, Fenomenologia I, p. 134. "Dem Denken sich des Gegenstand nicht in Vorstellungen, oder
Gestalten, sondern in Begriffen, das heit in einem unterschiednen Ansichsein, welches unmittelbar für
das Be wutsein kein unterschiednes von ihm ist" (HEGEL, PhG, p. 137)
97
HEGEL, Fenomenologia, par. 186
98
HEGEL, Fenomenologia do espírito I, p. 159 - Die Darstellung seiner aber als der reinen
Abstraction ...
99
HEGEL, Fenomenologia, par. 187
Para Hegel, o sujeito moderno não era simplesmente fundamento certo do
saber, mas também entidade que marcado pela indeterminação substancial. Ele é
aquilo que nasce através da transcendência em relação a toda e qualquer
naturalidade com atributos físicos, psicológicos ou substanciais. Como dirá
várias vezes Hegel, o sujeito é aquilo que aparece como negatividade que cinde o
campo da experiência e faz com que nenhuma determinação subsista. Na
Filosofia do Espírito, de 1805, ele não deixará de encontrar metáforas para falar
deste sujeito que aparece como o que é desprovido de substancialidade e de
determinação fixa:
O homem é esta noite, este nada vazio que contém tudo na simplicidade
desta noite, uma riqueza de representações, de imagens infinitamente
múltiplas, nenhuma das quais lhe vem precisamente ao espírito, ou que
não existem como efetivamente presentes (...) É esta noite que
descobrimos quando olhamos um homem nos olhos, uma noite que se
torna terrível, é a noite do mundo que se avança diante de nós100.
100
HEGEL, Filosofia do espírito, p. 13
101
HEGEL, Fenomenologia I, par. 32
para a consciência que não seja para ela momento evanescente
(verschwindendes Moment); que ela é somente puro ser-para-si. O
indivíduo que não arriscou a vida pode ser bem reconhecido como pessoa
[ou seja, como membro do vínculo social], mas não alcançou a verdade
desse reconhecimento como uma consciência-de-si independente [o que
demonstra que não se trata de descrever simplesmente o advento dos
modos de sociabilidade, mas de compreender como a consciência pode
ter a experiência da sua estrutura]102.
Esta distinção é fundamental. Hegel afirma que ser reconhecido como pessoa não
é o mesmo que ser reconhecido como uma consciência-de-si independente. Ou
seja, o horizonte normativo dos processos de reconhecimento em Hegel não se
reduzem ao reconhecimento da minha individualidade como própria de uma
“pessoa em geral” que tem certos direitos positivos e obrigações sociais
intersubjetivamente asseguradas. O que não poderia ser diferente se
lembrarmos que, ao menos no interior da tradição dialética, “pessoa” é uma
categoria derivada historicamente do direito romano de propriedade (dominus),
uma categoria que, por ainda guardar os traços de sua origem, era vista por
Hegel como “expressão de desprezo”103 devido à sua natureza meramente
abstrata e formal advinda da absolutização das relações de propriedade. Tal
articulação entre “pessoa” e “propriedade” servirá de fundamento para uma
larga tradição de reflexão que chegará até as discussões recentes sobre a “self-
ownership” como atributo fundamental da pessoa 104.
Na verdade, Hegel procura mostrar como a verdadeira autonomia da
consciência-de-si só pode ser posta em um terreno para além (ou mesmo para
aquém) da forma da pessoa jurídica portadora de diretos positivos e
determinações individualizadoras. Por isto, tudo nos leva a crer que Hegel insiste
que se trata de mostrar como a constituição dos sujeitos é solidária da
confrontação com algo que só se põe em experiências de negatividade e des-
enraizamento que se assemelham à confrontação com o que fragiliza nossos
contextos particulares e nossas visões determinadas de mundo, ou seja, que se
assemelha à morte. A astúcia de Hegel consistirá em mostrar como o demorar-se
diante desta negatividade é condição para a constituição de um pensamento do
que pode ter validade universal para os sujeitos.
Sendo assim, as tensões internas à teoria hegeliana do reconhecimento
também não podem ser pensadas a partir de dualidades como esta proposta por
Habermas ao afirmar:
102
HEGEL, Fenomenologia, par. 187
103
HEGEL, GWF; Fenomenologia do Espírito – vol. II, Rio de Janeiro: Petrópolis, 1992, p. 33
104
Ver, entre outros COHEN, G.A.; Self-ownership, freedom and equality, Cambridge University
Press, 1995.
responde, de maneira insubstituível, por uma biografia tão formadora
quanto singular105.
O senhor absoluto
107
HEGEL, Fenomenologia, par. 186
108
HEGEL, Fenomenologia, par. 32
109
HEGEL, Fenomenologia, par. 188
110
HEGEL, Fenomenologia, par. 188
doação imanente de sentido, como fundamento originário, mas como locus de
manifestação da negatividade do sujeito, como “vida do espírito”.
Dominação e servidão
Mas esta realização ainda está longe. De fato: “nessa experiência, vem a ser para
a consciência que a vida lhe é tão essencial quanto a pura consciência-de-si”111.
Isto implica em uma clivagem: a conscîência reconhece a essencialidade tanto da
vida quanto da pura abstração em relação ao Dasein natural. Por isto, Hegel fala
da dissolução da unidade do Eu como Eu simples que aparecia enquanto objeto
absoluto da consciência. Eu simples representado pela tautologia do “Eu=Eu”
[lembra da estrutura proposicional da igualdade/ a determinação particular é
idêntica à representação universal]. Esse Eu simples se dissolve em dois
momentos: uma pura consciência-de-si, independente e para quem o ser para-si
é a essência e uma consciência para-um-outro, consciência aferrada à coisidade
(Dingheit) e para quem o essencial é a vida ou o ser-para-um-outro. Esses dois
momentos “são como duas figuras opostas da consicência (...) Uma é o Senhor,
outra é o Escravo”112.
Mas, antes de continuarmos, notemos a ambigüidade deste “como se”.
Hegel joga, em vários momentos do texto, com uma dupla acepção do
antagonismo figurado na dialética do Senhor e do Escravo. Por um lado, ele
parece ser a exteriorização de uma clivagem interna à consciência na sua divisão
entre o reconhecimento da essencialidade tanto da vida quanto da posição de
pura abstração. Por outro lado, ele aparece como o resultado de uma
confrontação entre duas consciências-de-si independentes em um movimento
fundador dos processos de interação social. Esta duplicidade indica, na verdade,
que estamos diante de um modo de interação social que é, ao mesmo tempo,
processo de formação da consciência-de-si. Como dissera anteriormente,
estruturação de modos de socialização e processos de constituição do Eu
convergem necessariamente em Hegel, já que este não reconhece nenhuma
unidade originária da consciência-de-si.
Por outro lado, vale a pena contextualizar leituras que procuram encontrar,
neste momento da Fenomenologia do Espírito, as bases normativas de uma teoria da
gênese do social. Não como deixar de notar diferenças profundas de inflexão entre
esta versão do problema do reconhecimento apresentada na Fenomenologia e aquela
apresentada tanto na Filosofia do Espírito, de 1805, e na Enciclopédia em sua versão
de 1830. Por exemplo, na Filosofia do Espírito, de 1805, o problema do
reconhecimento é apresentado de maneira explícita em termos legais e políticos, já
que a luta por reconhecimento se organiza a partir de conceitos como: crime, lei, bens
e constituição. Nada disto desempenha papel central na apresentação própria à
Fenomenologia do Espírito. Podemos mesmo falar que: “Nesta versão do problema
do reconhecimento, Hegel está primariamente interessado no problema da
universalidade, a maneira através da qual a atividade determinada introduzida na
seção precedente, ainda que mediada através formas de interação social, pode ser bem
sucedida em sua determinação apenas se o que Hegel chama de “vontade particular”
se transforme em “vontade universal e essencial” 113 . É claro que isto não exclui
111
HEGEL, Fenomenologia,par. 189
112
HEGEL, Fenomenologia, par. 189
113
PIPPIN, He satisfaction of self-consciousness, p. 155
problemas políticos e legais, mas eles só podem ser compreendidos de maneira
correta (e reconfigurados em sua extensão) se apresentarmos primeiro os problemas
centrais que determinarão as bases mais amplas dos processos de reconhecimento:
eles tocam a questão do desejo, da relação à vida e à morte e do trabalho.
Os próximos seis parágrafos são extremamente condensados e tentam
dar conta dos desdobramentos da dissolução da unidade inicial do Eu simples.
Eles são organizados em duas perspectivas distintas. Entre os parágrafos 190 e
193, Hegel expõe os impasses do reconhecimento do ponto de vista do Senhor.
Dos parágrafos 194 a 196, Hegel expõe como o conceito de reconhecimento
poderá ser realizado através do Escravo.
O Senhor é logo apresentado como uma consciência que vive algo como
um impasse existencial ligado ao caráter parcial do seu reconhecimento.
Enquanto consciência que ainda procura realizar a noção de auto-identidade
como pura abstração de si, consciência que procura sustentar uma relação
imediata de si a si, o Senhor é certo de si através da afirmação da
inessencialidade de toda alteridade. No entanto, esta certeza é dependente da
negação reiterada da inessencialidade do Outro. Uma negação que não é a
destruição pura e simples do Outro, mas a sua dominação enquanto desprezo
pela sua essencialidade independente. Como sabemos, a necessidade desta
dominação contradiz a aspiração do Senhor em ser reconhecido como pura
identidade de si a si, já que ele é reconhecido como Senhor apenas por uma
consciência inessencial. Este conceito de reconhecimento não pode aspirar
validade universal. Vejamos como Hegel nos apresenta tal impasse.
Hegel primeiro lembra que o Senhor precisa afirmar sua independência
e sua dominação no interior de dois processos: na confrontação com outra
consciência-de-si e na confrontação com o objeto (que, no interior da seção
“consciência-de-si” aparece necessariamente como tendo sua verdade enquanto
objeto do desejo). Tais processos de dominação são organizados como
silogismos. O primeiro é enunciado da seguinte forma:
114
HEGEL, Fenomenologia,par. 190
anteriormente no momento de apresentação da satisfação do desejo como
consumação. Hegel demonstra continuar neste registro ao lembrar que a relação
imediata de si a si do senhor deve ser posta como: “pura negação da coisa, ou
como gozo (Genuss)”. O gozo aparece como satisfação posta na identidade
imediata de si a si, retorno à indiferenciação generalizada entre sujeito e objeto
através da destruição do objeto.
No entanto, o Senhor pode gozar da coisa e realizar a certeza de si mesmo
ligada à satisfação do desejo somente se esta coisa duplicar a estrutura da
consciência-de-si (já que o desejo é, na verdade, um modo de auto-posição do
sujeito). A astúcia do Senhor consiste pois em interpor o escravo entre ele e a
coisa. Desta forma, o Escravo trabalha a coisa e oferece, ao gozo do Senhor, uma
coisa trabalhada: “o senhor introduziu o escravo entre ele e a coisa, e assim se
conclui somente com a dependência da coisa, e puramente a goza: enquanto o
lado da independência deixa-o ao escravo, que a trabalha”115. Só uma coisa
trabalhada pode satisfazer um desejo compreendido fundamentalmente como
modo de auto-posição (até porque: “o trabalho é o ato de se fazer coisa”116). Isto
demonstra como o Senhor só pode negar/dominar a coisa, isto no sentido de
intuir no objeto sua própria falta, através do trabalho do Escravo. O gozo do
Senhor, enquanto posição imediata de si na coisa, é pois, em última instância,
impossível. Gozo impossível porque ele só pode ser alcançado através da
mediação resultante do trabalho do Escravo que, como veremos, se põe na coisa
[é esta consciência posta que o senhor deseja].
O impasse existencial do Senhor demonstra-se então nesta posição que
consiste em depender da mediação do Outro para realizar uma satisfação que se
quer imediata. A consciência inessencial fornece a verdade da certeza de si
mesmo do Senhor. A verdade da sua independência é pois dependência, a
verdade de sua imediatez é pois mediação. Daí porque Hegel pode falar: “é claro
que ali onde o senhor se realizou plenamente ele encontra algo totalmente
diverso de uma consciência independente, o que é para ele não é uma
consciência independente, mas uma consciência dependente”117.
Hegel então lembra que estamos aí diante de um processo parcial de
reconhecimento. O reconhecimento é uma reflexão duplicada que comporta
quatro momentos: a reflexão do ser para-si no ser em-si da primeira consciência,
a reflexão do ser para-si no ser em-si da segunda consciência, a reflexão do ser
em-si da primeira consciência no ser para-si da segunda consciência e a reflexão
do ser em-si da segunda consciência no ser para-si da primeira consciência. Estes
dois últimos movimentos são resultantes da compreensão de que a dimensão do
em-si, enquanto espaço do que se põe como objetividade, é um espaço de
interação social suportado pela presença reguladora da alteridade. Neste
sentido, temos aqui apenas a realização de dois processos: a reflexão do ser para-
si no ser em-si da segunda consciência (o Escravo através do trabalho) e a
reflexão do ser em-si da segunda consciência no ser para-si da primeira
consciência (o Senhor através da consumação e do gozo da coisa trabalhada pelo
Escravo). Daí porque Hegel afirma:
115
HEGEL, Fenomenologia, par. 190
116
HEGEL, Filosofia do Espírito, de 1805
117
HEGEL, Fenomenologia, par. 192
Para o reconhecimento propriamente dito, falta o momento em que o
senhor opera sobre o outro o que o outro opera sobre si mesmo; e o
escravo faz sobre si o que também faz o sobre outro. Portanto, o que se
efetuou foi um reconhecimento unilateral e desigual118.
118
HEGEL, Fenomenologia, par. 191
Lógicas do reconhecimento
Aula 7
É neste ponto que Hegel deixa o Senhor em seu impasse e passa à análise do
movimento dialético a partir da perspectiva do Escravo. “Sem dúvida, este aparece de
início fora de si, e não como a verdade da consciência-de-si”. Mas ele “entrará em si
como consciência retornando sobre si mesma e se converterá em verdadeira
independência” 119 . Ou seja, pelas vias da servidão, a consciência irá realizar a
reconciliação com a objetividade necessária para a realização do conceito de
consciência-de-si em sua estrutura de reconhecimento.
Hegel começa lembrando que a essencialidade do escravo parece estar
depositada no Senhor. É ele quem domina o seu fazer e consome o objeto de seu
fazer. Quer dizer, seu fazer lhe é estranho, assim como o objeto com o qual ela
confronta lhe é estranho. Há no entanto um conteúdo positivo neste estranhamento.
Pois isto implica que o escravo se elevou para além de sua singularidade, já que:
“Enquanto o escravo trabalha para o senhor, ou seja, não no interesse exclusivo da sua
própria singularidade, seu desejo recebe esta amplitude consistindo em não ser apenas
o desejo de um este, mas de conter em si o desejo de um outro”120. No entanto, ter seu
desejo vinculado ao desejo de um outro ainda não nos fornece a universalidade do
reconhecimento almejado pela consciência. o conflito produzido pelo desejo, conflito
119
HEGEL, Fenomenologia, par. 193
120
HEGEL, Enciclopédia, par. 433 - adendo
que aparece enquanto motor da DSE, não pode ser a mera colisão entre sistemas
particulares de interesses de duas consciências distintas, como quer comentadores
como Terry Pinkard e Jurgen Habermas 121 . Conflito através do qual Eu procuro
dominar o outro através da submissão do seu sistema de valoração e interesse à
perspectiva própria ao meu sistema, onde Eu procuro submeter o desejo do outro ao
meu desejo. Faz-se necessário que este outro não seja apenas um outro desejo
particular, mas que ele tenha algo da universalidade incondicional do que é essencial.
Hegel então se serve de um certo deslizamento que consiste em dizer que, no
interior desta experiência particular, já há algo da ordem de uma necessidade
universal que toca o modo de manifestação do que é essencial. Isto lhe permite operar
um certo giro de perspectiva que consiste em dizer: lá onde a consciência encontra-se
totalmente alienada, é lá que ela pode encontrar-se a si mesma, já que: “o espírito só
alcança sua verdade à medida que se encontra a si mesmo no dilaceramento
absoluto”122. Esta idéia de que a consciência deve se perder para poder se encontrar
está intimamente vinculada à maneira com que Hegel compreende a noção central de
“essência”. O parágrafo 194 é muito ilustrativo neste sentido. Hegel começa
lembrando que, para a consciência escrava, a essência está fora dela mesma, está
neste Senhor que encarna o puro para-si e que despreza o agir da consciência escrava
que aparece, para ela mesma, como algo de puramente estranho e oposto. Ela traz
assim a oposição dentro de si e não se reconhece mais em seu agir, que lhe aparece
como agir-para-um-Outro. Contudo, Hegel afirma que esta é condição necessária para
que ela experimente a essência e tenha nela mesma “essa verdade da pura
negatividade e do ser-para-si”. Logo em seguida, complementa:
Essa consciência sentiu a angústia, não por isto ou aquilo, não por este ou
aquele instante, mas sim através de sua essência toda, pois sentiu o medo da
morte, do senhor absoluto. Aí se dissolveu interiormente, em si mesma tremeu
em sua totalidade e tudo o que havia de fixo, nela vacilou. Entretanto, esse
movimento universal puro, o fluidificar-se absoluto de todo subsistir é a
essência simples da consciência-de-si, a negatividade absoluta, o puro ser-
para-si que assim é nessa consciência123.
121
Ver PINKARD, Hegel´s phenomenology: The sociality of reason, op. cit. e HABERMAS,
Caminhos da destranscendentalização In: Verdade e Justificação, op. cit.
122
HEGEL, Fenomenologia, par. 32
123
HEGEL, Fenomenologia, par. 194
sentimento do nulidade do egoísmo, o hábito da obediência (Gehorsams) é um
momento necessário da formação de todo homem. Sem ter a experiência deste
cultivo (Zucht) que quebra a vontade própria (Eigenwillen), ninguém advém
livre, racional e apto a comandar. E para advir livre, para adquirir a aptidão de
se auto-governar, todos os povos tiveram que passar pelo cultivo severo da
submissão a um senhor124.
Afirmações desta natureza servem a vários mal entendidos. Hegel não está
dizendo que a liberdade é apenas o nome que damos para um vontade
construída a partir da internalização de “dispositivos disciplinares” travestidos
de práticas de auto-controle. Não é qualquer submissão a um senhor que produz
a liberdade, mas apenas a um senhor que seja capaz de realizar exigências
incondicionais de universalidade, que tenha algo deste “senhor absoluto” que é a
morte. Isto nos explica porque, para Hegel, as grandes individualidades capazes
de submeter um povo produzem, necessariamente, o sentimento de que o
trabalho do Espírito é sem medida comum com toda e qualquer política finita,
com todo cálculo utilitarista baseado em “meu” sistema de interesses egoístas.
Por sinal, a maior de todas as ilusões consiste exatamente em ver na crítica
hegeliana do egoísmo uma estratégia astuta de esvaziamento do particular.
Hegel pode criticar o egoísmo porque não há nenhuma individualidade neste
“ego”, já que não há nada de individual no interior de um sistema de interesses
construído, na verdade, a partir de identificações e internalização de princípios
de conduta vindos de uma outra consciência determinada 125. Por isto, a
“dissolução da singularidade da vontade” pode aparecer como “liberação”.
Lebrun serve-se destas características da filosofia hegeliana para afirmar
que a formação da consciência-de-si é apenas a dissolução de um indivíduo
definido como o que se anula, renúncia incessante de si, ascese permanente.
Pois: “ganhar uma determinação acaba sempre por ser renúncia a uma diferença
que me individualizava, advir um pouco mais meu ser verdade na medida em
que sou um pouco menos meu ego”126. Neste sentido, tremer diante do mestre
absoluto seria tomar consciência da impotência de princípio que representa a
singularidade natural. Como se a liberação hegeliana fosse um passe de mágica
no qual o sentimento de fraqueza se transforma em legitimação da incapacidade
de resistir. Assim: “em troca de seus sofrimentos, é o gozo do universal que se
oferece à consciência – belo presente ...”127. Não estamos muito longe de Deleuze
vendo a dialética hegeliana como “idéia do valor do sofrimento e da tristeza,
valorização das ‘paixões tristes’ como princípio prático que se manifesta na
cisão, no dilasceramento”128.
Mas este trecho talvez desvele seu real foco se lembrarmos que, para Hegel, a
essência não é uma substância auto-idêntica que determina as possibilidades dos
modos de ser. A essência é a realização de um movimento de reflexão. Neste sentido,
124
HEGEL, Enciclopédia das ciências filosóficas, op. cit., § 435
125
Esta intuição hegeliana recebeu uma confirmação material através da psicanálise lacaniana e sua
descrição da gênese do Eu através a internalização da imagem de um outro que tem a função de tipo
ideal de conduta e de orientação do desejo. A este respeito, remeto ao capítulo “Desejo sem imagens”
In: SAFATLE, Lacan, São Paulo, Publifolha, 2007.
126
LEBRUN, L’envers de la dialectique, op. cit., p. 100
127
idem, p. 211
128
DELEUZE, Nietzsche et la philosophie, op. cit., p. 224
contrariamente ao ser que procurava sua fundamentação em determinações fixas, a
essência se põe como determinação reflexiva e relacional. Em outras palavras, a
essência é a unificação deste movimento reflexivo de pôr seu ser em um outro, cindir-
se e retornar a si desta posição. Daí porque Hegel pode afirmar que, quando o ser
encontra-se determinado como essência, ele aparece como: “um ser que em si está
negado todo determinado e todo finito”129, ou ainda, como “ser que pela negatividade
de si mesmo se mediatiza consigo” 130 . Neste sentido, Hegel insiste que a
internalização da negação de si própria à configuração da essência deve se manifestar
inicialmente como negatividade absoluta diante da permanência de toda
determinidade.
É neste sentido que a angústia deve ser compreendida como a
manifestação fenomenológica inicial desta essência que só pode se pôr através
do “fluidificar absoluto de todo subsistir”, ou seja, do negar a essencialidade de
toda determinidade aferrada em identidades opositivas. Manifestação inicial, daí
porque Hegel fala de “essência simples”, mas manifestação absolutamente
necessária. A angústia pode aqui ter esta função porque não se trata de um
tremor por isto ou aquilo, por este ou aquele instante, mas se trata aqui de uma
fragilização completa de seus vínculos ao mundo e à imagem de si mesmo. É esta
fragilização que traduz de maneira mais perfeita o que está em jogo neste “medo
diante da morte, do senhor absoluto”. O termo “angústia” tem aqui um uso feliz
porque ele indica exatamente esta posição existencial na qual o sujeito parece
perder todo vínculo do desejo em relação a um objeto, como se estivéssemos
diante de um desejo não mais desprovido de forma. No entanto, se a consciência
for capaz de compreender a angústia que ela sentiu ao ver a fragilização de seu
mundo e de sua linguagem como primeira manifestação do Espírito, deste
espírito que só se manifesta destruindo toda determinidade fixa, então a
consciência poderá compreender que este “caminho do desespero” é, no fundo,
internalização do negativo como determinação essencial do ser. Daí porque: “o
temor do senhor é o início [mas apenas o início] da sabedoria” 131. Neste sentido,
podemos mesmo dizer que, para Hegel, só é possível se desesperar na
modernidade, já que ele é a experiência fenomenológica central de uma
modernidade disposta a problematizar tudo o que se põe na posição de
fundamento para os critérios de orientação do julgar e do agir.
Ir ao fundamento
129
HEGEL, Ciência da lógica – doutrina da essência
130
HEGEL, Enciclopédia, par. 112
131
HEGEL, Fenomenologia, par. 195
a superação (Aufheben) de seu ser determinado (Bestimmtseins) que é seu
determinar”132. O que pode ser entendido da seguinte maneira: a indeterminação
do fundamento vem do fato dele servir de substrato comum entre determinações
opostas, daí porque Hegel poderá afirmar que o fundamento implica a identidade
entre a identidade e a diferença (die Einheit der Identität und des Unterschiedes).
Mas sendo o Eu o princípio sintético que fornece o fundamento da experiência,
assim como o princípio de ligação e unidade que determina o modo de
articulação entre o fundamento e aquilo que ele funda, então pensar a verdadeira
essência do fundamento como o que tem seu ser em um outro (sein Sein in einen
Anderen hat) exige a confrontação com um estado de diferenças não submetidas
à forma do Eu133.
Demoremos um pouco mais neste ponto. Sabemos que fundar é
determinar o existente através da sua relação a um padrão que me permite
orientar no pensamento. Por exemplo, ao mobilizar estruturas categoriais como
a causalidade, a modalidade para assegurar a inteligibilidade dos fenômenos,
determino a forma do existente. A partir deste recurso à forma como
fundamento posso garantir o critério do verdadeiro e do falso, do correto e do
incorreto, do adequado e do inadequado. Mas a aplicação de todas estas
estruturas aos fenômenos depende de uma decisão prévia e tácita sobre
princípios lógicos gerais de ligação e unidade capazes de constituir objetos da
experiência e fundar proposições de identidade e diferença. Estes princípios de
ligação (Verbindung) e unidade são derivados do Eu como unidade sintética de
apercepções, que aparece assim como o verdadeiro fundamento das
determinações. No entanto, a problematização de tais princípios é o verdadeiro
objeto da dialética. Por exemplo, quando Hegel constrói um witz ao dizer que,
para a consciência, “o ser tem a significação do seu” (das Sein die Bedeutung das
Seinen hat)134, ele tem em vista o fato de que ser objeto para a consciência
significa estruturar-se a partir de um princípio interno de ligação e unidade que
é modo da consciência apropriar-se do mundo, constituir o mundo a partir de
sua imagem, o que permite a Hegel ignorar a relevância das distinções kantianas
entre receptividade e espontaneidade.
A dialética precisa pois aceder a um fundamento não mais dependente da
forma auto-idêntica do Eu, o que é possível através da superação dos modos
naturalizados de determinação, através a fragilização das imagens de mundo que
orientam e constituem nosso campo estruturado de experiências. Tal fragilização
é descrita fenomenologicamente por Hegel através da angústia e da confrontação
com a morte.
Vemos assim como a confrontação com a morte permite à consciência-de-
si compreender o Espírito como aquilo que se expressa na multiplicidade de suas
determinações fragilizando-as todas, levando-as a confrontar-se com uma
potencia do pré-pessoal e do indeterminado que nos permite, inclusive,
recompreender o que vem a ser a diferença. A diferença em Hegel é esta potência
interna da in-diferença que corrói toda determinação. Ela será esta expressão do
132
HEGEL, Wissenschaft der Logik II, Frankfurt: Suhrkamp, 1986, p. 81
133
Longuenesse compreendeu isto bem ao afirmar que, para Hegel : “O fundamento é o herdeiro da
unidade de apercepção da Crítica da razáo pura” (LONGUENESSE, Hege let la critique de la
métaphysique, Paris: Vrin, 1981, p. 111).
134
HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 159
ser que nos leva a afirmar, com Scott Fitzgerald, que: “toda vida é um processo de
demolição”. Demolição que ocorre quando desvelamos esta “franja de
indeterminação da qual goza todo indivíduo”135. Não se trata exatamente de um
ganho de determinação e positividade, mas da assunção de um risco vinculado à
confrontação com aquilo que se coloca enquanto puramente indeterminado.
Nestas condições, submeter-se a um Senhor absoluto que dissolve tudo aquilo
que parecia fixo e determinado nada tem a ver com uma a dinâmica psicológica
da resignação, do ressentimento ou da necessidade da repressão.
O trabalho
No entanto, ainda não tocamos em um ponto essencial que irá estabilizar esta
dialética. Pois a angústia sentida pela consciência escrava não fica apenas em uma:
Hegel fará então uma gradação extremamente significativa que diz respeito ao
agir da consciência nas suas potencialidades expressivas. Hegel fala do serviço
(Dienen), do trabalho (Arbeiten) e do formar (Formieren). Esta tríade marca uma
realização progressiva das possibilidades de auto-posição da consciência no objeto do
seu agir. O serviço é apenas a dissolução em si (Auflösung an sich) no sentido da
completa alienação de si no interior do agir, que aparece como puro agir-para-um-
outro e como-um-outro. O trabalho implica em uma auto-posição reflexiva de si. No
entanto, Hegel não opera com uma noção expressivista de trabalho que veria sua
realização mais perfeita em uma certa compreensão do fazer estético como
manifestação das capacidades expressivas dos sujeitos. A consciência que trabalha
não expressa a positividade de seus afetos em um objeto que circulará no tecido
social. O trabalho não é a simples tradução da interioridade na exterioridade. De uma
certa forma, a categoria hegeliana de trabalho é inicialmente uma defesa contra a
angústia diante da negatividade da morte ou, ainda, uma superação dialética da
angústia, já que ele é auto-posição de uma subjetividade que sentiu o desaparecer de
todo vínculo imediato ao Dasein natural, que sentiu o tremor da dissolução de si.
Lembremos desta afirmação central de Hegel:
135
DELEUZE, Différence et répétition, 5 ed., Paris: PUF, 2000, p. 331
136
HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 132
mesma (...) no formar da coisa, torna-se objeto para o escravo sua própria
negatividade137.
141
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
142
Diógenes LAÉRCIO, Vida e lenda de filósofos ilustres- Zenão
143
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
Seu princípio é que a consciência é essência pensante e que uma coisa só
tem essencialidade, ou só é verdadeira e boa para ela à medida que a
consciência ai se comporta como essência pensante144.
144
HEGEL, Fenomenologia, par. 198
145
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
146
HEGEL, Fenomenologia, par. 199
147
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
148
HEGEL, Fenomenologia, par. 200
149
LEBRUN, La patience du concept, p. 408
Lógicas do reconhecimento
Aula 8
Tal definição nos permite dizer que os conceitos decisivos na filosofia hegeliana
do direito são “liberdade” e “vontade livre”, já que definem o campo da
racionalidade do direito. Trata-se, então, de demonstrar que a perspectiva
hegeliana nos traz elaborações importantes a respeito da relação necessária
entre reconhecimento da vontade livre e constituição moderna das instituições.
Como devem ser pensadas as instituições para que elas sejam capazes de dar
conta de demandas de reconhecimento depositadas no conceito de “liberdade”?
É possível pensar a liberdade fora de alguma garantia de reconhecimento
institucional?
Antes de entrarmos diretamente nestas discussões, notemos a
peculiaridade da compreensão do sentido da noção de “direito” para Hegel. Por
“direito”, Hegel entende algo a mais do que o ordenamento estatal de regulação
da vida social. “Direito” são: “Todos aqueles pressupostos sociais que se
mostraram necessários para a realização da ‘vontade livre’ de cada sujeito
individual”151. Tais pressupostos sociais englobam o ordenamento jurídico
atualmente existente com sua dinâmica conflitual interna, as instituições
políticas que compõe o Estado moderno, as relações intersubjetivas de amor que
se dão no interior da família, a disposição subjetiva formada a partir da
internalização de preceitos morais, a dinâmica do livre-mercado, entre outros.
Eles ainda devem estar, de uma certa forma, assegurados (ou em processo de
garantia) no interior dos quadros atuais do Estado moderno.
150
HEGEL, G.W.F. ; Grundlinien der Philosophie des Rechts, Frankfurt : Suhrkamp, 1986, par. 4. As
traduções aqui apresentadas vem, em grande parte, do trabalho de tradução de Marcos Müller.
151
HONNETH, Axel; Sofrimento de indeterminacao, São Paulo : Esfera Pública, 2006, p. 64
De fato, aí está boa parte da complexidade da aposta hegeliana: este
Estado não pode ser apenas um ideal, um dever ser. Se a função da filosofia do
direito é: “apresentar e conceitualizar o Estado como em si racional”152 é porque
ela deve ser capaz de apresentar, a partir de sua necessidade racional, o Estado
que está em vias de se realizar como resultado do projeto moderno. Ou seja, não
se trata nem do Estado atualmente realizado, nem de um Estado ideal, simples
ideia sem relação alguma com a efetividade atual. Trata-se de um Estado que
pode potencialmente se realizar, isto no sentido de algo que explora os conflitos
sociais atuais para se realizar.
Esta é uma maneira de lembrar que, afinal, um ordenamento jurídico
estatal está longe de ser algo monolítico e organicamente coeso. Antes, ele é o
resultado heteróclito da sedimentação de lutas sociais entre várias disposições
contrárias e mesmo contraditórias no interior da sociedade. O ordenamento
jurídico traz as marcas destas lutas e conflitos. Neste sentido, cabe à filosofia do
direito apresentar quais lutas e conflitos definiram a tendência de racionalidade
do ordenamento jurídico. Talvez seja por isto que Hegel precise terminar seu
prefácio à Filosofia do direito com a bela metáfora da filosofia como a coruja de
Minerva que levanta vôo apenas com a irrupção do crepúsculo. Pois a filosofia
procura mostrar como os conflitos sociais que dão forma ao direito, que
imprimem tendências no interior do direito, são mobilizações do Espírito na sua
procura em realizar o conceito de liberdade no interior da vida social. Uma
realização que nunca é linear, que nunca deixa de levar em conta dimensões
táticas e estratégicas do pensamento, assim como a configuração de situações
locais. Mas uma realização que, ao menos segundo Hegel, já teria sido capaz de
deixar marcas irreversíveis em nosso ordenamento jurídico, principalmente
depois do Código napoleônico e do impacto da Revolução Francesa.
Desta forma, por insistir que a vontade livre só pode ser pensada como
efetivação de pressupostos que devem estar em processo de institucionalização
na vida social, Hegel precisa fazer a crítica de dois modelos hegemônicos de
liberdade: um baseado na hipóstase das exigências de autenticidade e outro
baseado na hipóstase das exigências de autonomia. A hipóstase destes dois
modelos nos leva à perpetuação da contradição entre liberdade e instituição,
contradição inaceitável para Hegel. Pois a autenticidade, quando hipostasiada, só
poderia produzir uma noção de liberdade negativa que, quando utilizada como
guia para a ação política, nos leva diretamente ao terror. Já a autonomia, quando
hipostasiada, produz uma noção de livre-arbítrio que, ao servir de guia para a
ação política, acaba por levar a uma profunda atomização social produzida pela
elevação da categoria de “indivíduo” a elemento central da vida social. Vejamos
cada uma destas distorções do conceito de liberdade, que não deixam de tecer
relações entre si. Ao fim, poderemos compreender melhor qual é a especificidade
do conceito hegeliano.
152
HEGEL, ibidem, p. 26
ser um elemento do direito positivo lhe é contingente e não concerne à
sua natureza153.
Tal frase é decisiva. Hegel está a lembrar, entre outras coisas, que a liberdade
não pode ser confundida com a presumida autenticidade da espontaneidade
imediata dos sentimentos. Uma autenticidade que veria, nas leis, apenas a
coerção e a violência institucionalizada sob a forma do direito positivo, já que as
leis nunca seriam condizentes com aquilo que Hegel chamou, na Fenomenologia
do Espírito, de “as leis do coração”. Leis estas para as quais o curso do mundo é
necessariamente pervertido. Contra tal hipóstase da autenticidade, para a qual
todo direito é apenas uma forma velada de violência, Hegel quer defender
afirmações como: “A liberdade é apenas isto, conhecer e querer tais objetos
substanciais universais como o direito e a Lei e produzir uma realidade
(Wirklichkeit) que lhes é conforme : o Estado”154.
Uma afirmação desta natureza é facilmente objeto das piores confusões.
“Livre é a vontade que deseja a Lei”: não é difícil ouvir, nesta frase orwelliana, a
confissão de uma filosofia que parece não compreender o sentido de
experiências, tão comuns em nossas sociedades, de dissociação entre direito e
justiça. Pois o que dizer quando estamos diante de leis injustas? E,
principalmente, por que falar isto em um momento no qual o estado prussiano
estava animado pelo ímpeto do Congresso de Viena (1814-1815) e pela
Restauração anti-liberal que visava aplacar de vez a influência dos ideais da
Revolução Francesa? No entanto, devemos salientar um ponto fundamental:
“Não existe revolução na história da humanidade que não tenha sido apoiada e
celebrada por esse filósofo que também tem fama de ser um incurável homem da
ordem”155, seja a revolução americana, seja a revolução haitiana de Toussaint
L’ouverture, as revoltas da plebe contra os patrícios, a rebelião dos escravos sob
o comando de Spartacus, a revolta camponesa na época da reforma ou ainda a
revolução francesa.
Mas Hegel saberá ter palavras duras contra o jacobinismo e o terror
revolucionário. Hegel sabe que o terror é o resultado desastroso da primeira
manifestação de um conceito de liberdade que tem no seu bojo o momento da
liberdade negativa enunciada em nome da autenticidade entusiasmada do
sentimento. Ele é a “liberdade absoluta” transformada em fúria da destruição,
pois liberdade que não reconhece nenhuma possibilidade de sua
institucionalização, que vê todo direito como perda da espontaneidade livre do
entusiasmo revolucionário e que, por isto, se volta contra tudo que procura
determiná-la, contra todo governo. Como Hegel dirá na Fenomenologia do
Espírito, para esta liberdade absoluta: “O que se chama governo é apenas a facção
vitoriosa, e no fato mesmo de ser facção, reside a necessidade de sua queda, ou
inversamente, o fato de ser governo o torna facção e culpado”156. Afinal, o terror
jacobino nada tem a ver com a simples violência totalitária do Estado contra
setores descontentes da sociedade civil. Na verdade, ele foi o movimento
autofágico de destruição da sociedade e de auto-destruição do Estado, isto até o
153
Idem, par. 3
154
HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, Frankfurt : Suhrkamp, 1986, p. 82
155
LOSURDO, Domenico, Hegel, Marx e a tradição liberal, São Paulo : Unesp, 1997, p. 155
156
HEGEL, Fenomenologia do Espírito, vol II, Petrópolis: Vozes, 1991, p. 97.
momento em que os próprios líderes jacobinos terminaram na guilhotina. O
jacobinismo é a figura reflexiva do terror que se volta contra si mesmo.
No entanto, e isto se esquece muitas vezes, Hegel não deixa de salientar
que tal momento negativo da liberdade é um momento necessário da história do
Espírito. Para compreender isto, devemos definir melhor o que Hegel entende
por “liberdade negativa”. No parágrafo 5 da sua Filosofia do direito, Hegel faz a
seguinte afirmação:
No entanto, e este ponto deve ser salientado, Hegel lembra que é exclusivo do
querer humano esta capacidade de abstrair-se de tudo, de transcender toda
determinação posta. Por isto, ele deve insistir que :
157
HEGEL, Grundlilien ..., par. 5
De fato, Hegel reconhece que a pura indeterminação da vontade só pode
nos levar a um impasse tanto existencial quanto político. Podemos dizer que nos
dois casos, não se vai além de uma “estetização da violência”, seja da violência
contra si que se realiza na insatisfação absoluta, na inadequação recorrente de
todo agir e julgar, seja da violência política contra toda e qualquer instituição. No
entanto, um dos problemas maiores da modernidade, ao menos segundo Hegel,
problema este que está na base da sua filosofia do direito, pode ser
compreendido da seguinte forma: como viabilizar o reconhecimento
institucional de sujeitos pensados enquanto modos singulares de confrontação
com o que se oferece como indeterminado e negativo? Sendo assim, tudo se
passa como se fosse questão de pensar a política e a continuidade dos ideais da
Revolução Francesa após o impasse jacobino.
Como veremos, esta é questão de difícil equação. Toda a complexidade
vem do fato da liberdade dever ser capaz de determinar seus objetos no interior
da vida social, de fazê-los reconhecer, mas sem simplesmente anular o momento
negativo que é imanente ao conceito moderno de liberdade e que encontrou sua
expressão inicial deformada no terror jacobino. Assim, de uma maneira bastante
peculiar, o Estado que Hegel procura pensar é o Estado pós-revolucionário
constitucional, Estado capaz de levar em conta as exigências de reconhecimento e
de universalidade postas em circulação pela Revolução Francesa.
O formalismo do livre-arbítrio
158
FLEISCHMANN, Eugène; La philosophie politique de Hegel, Paris : Gallimard, 1992, p. 118
159
Idem, par. 112
o próximo com inteligência; um amor não inteligente talvez lhe faria mais danos
que o ódio”. Esta cláusula de relativização pode parecer anódina, mas ela acaba
por introduzir um princípio de fragmentação ligado à individualidade e aos
motivos psicológicos que interferem na aplicação da máxima. Pois o que pode ser
um “amor inteligente” a não ser aquele que me parece como tal a partir das
experiências afetivas que tive e do modelo de amor que recebi? Se esse for o
caso, posso ter convicção de agir de forma correta, mas tal convicção não é
expressão de segurança ontológica alguma. Mesmo que a máxima em questão
seja universal, seu modo de aplicação passará sempre por inflexões individuais, o
que nos explica, neste caso, porque experiências afetivas na qual amo o outro
como a mim mesmo são tão prenhes de mal-entendidos. Nada impede o que
aparece a mim como “amor inteligente” ser sentido pelo outro como algo
profundamente danoso, isto devido à natureza diversa de suas experiências
afetivas.
A única maneira de não cair em alguma forma de relativismo profundo
aqui seria apelar a uma dimensão institucional que, por ser intersubjetivamente
partilhada e por estar na base da formação de todas as individualidades,
forneceria a coesão social necessária para práticas serem avaliadas de maneira
relativamente segura. O que explica porque Hegel faz um comentário
aparentemente temerário como: “Mas o bem fazer essencial e inteligente é, em
sua figura mais rica e mais importante, o agir inteligente universal do Estado.
Comparado com esse agir, o agir do indivíduo como indivíduo é, em geral, algo
tão insignificante que quase não vale a pena falar dele”160.
Essa é a maneira hegeliana de dizer que não há ação moral sem a
referência a normas institucionais que reconheço como justas e legítimas por já
se demonstrarem capazes de garantir as condições sociais para a realização da
liberdade. Podemos criticar a crença hegeliana de que tais normas encontrariam
sua figura exemplar no Estado moderno, podemos também relativizar o
“princípio de jurisprudência” que me leva a projetar ações futuras a partir das
consequências realizadas por ações semelhantes no passado, mas isto não
invalida a compreensão hegeliana de que, ao invés de nos referirmos a
normatividades transcendentais, devemos procurar a fundamentação de
julgamentos morais a partir da racionalidade de instituições sociais.
Este é o pano de fundo para compreender porque Hegel insiste várias
vezes que a vontade livre que delibera, não delibera sob a forma do arbítrio. Pois
quem diz arbítrio, diz escolha como se não houvesse nenhuma determinação
causal exterior à própria espontaneidade da decisão individual. Mas Hegel insiste
que uma escolha feita nestas circunstâncias é uma abstração em relação aos
processos efetivos de determinação do sentido da ação. Ela não perceberá quão
pouco há a escolher quando a situação na qual a ação se insere não é
reflexivamente apreendida. Por isto, ele deve dizer : “visto que somente o
elemento formal da autodeterminação livre é imanente ao arbítrio, e o outro
elemento, em contrapartida, lhe é algo dado, o arbítrio, se é que ele deve ser a
liberdade, pode com certeza ser chamado uma ilusão”. Em certo sentido, a ação
moral é aquela que permite a realização do Estado justo.
160
HEGEL, Georg F. W. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 1991,
parágrafo 425
O risco da atomização social
Hegel sabe que sua época também conhece tal “crise de legitimidade”. Sua
descrença em relação ao fortalecimento do indivíduo como elemento de
contraposição a tal tendência vem, entre outras coisas, da consciência das suas
conseqüências catastróficas no plano sócio-econômico. Pois a atomização social
não implica apenas transferência do pólo de decisão sobre a orientação da
conduta para os ombros dos indivíduos. Ela implica também um modo atomizado
de compreensão da dinâmica da vida social, compreensão da vida social como
justaposição de vontades individuais. Fato que não deve nos surpreender já que
modelos de reflexão sobre a estrutura do sujeito moral servem, normalmente,
como modelos gerais para a compreensão dos modos de ação social a partir de
valores e normas. Agimos moralmente da mesma forma que agimos socialmente,
ou seja, utilizando a mesma estrutura de julgamento e orientação.
Sendo assim, podemos dizer que os modelos da autonomia individual e do
livre-arbítrio acabam por produzir uma imagem da sociedade como conjunto de
normas, instituições e regras capazes de garantir a plena realização dos sistemas
particulares de interesses que se orientam a partir de sua própria visão sobre a
realização do bem e das riquezas. Hegel é um dos primeiros a compreender que,
quando transplantado para a esfera das relações econômicas tal processo
produz, necessariamente, pauperização e alienação social. Neste ponto,
podemos sentir a importância da leitura hegeliana dos economistas britânicos.
Tal leitura fora fundamental para a compreensão hegeliana da complexidade
funcional das sociedades modernas.
Esta passagem em direção à economia política é justificada. Como Hegel
opera com um conceito de liberdade para o qual a definição das condições
sociais de sua efetivação é um problema interno à própria definição do conceito,
ele deve poder descrever as situações nas quais o funcionamento da vida social
não fornece mais os pressupostos para a realização as aspirações, entre outras,
da autonomia individual. Um pressuposto fundamental está relacionado ao
funcionamento da esfera econômica, base da constituição daquilo que Hegel
entende por sociedade civil. Podemos dizer isto porque, para Hegel, problemas
de redistribuição e de alienação na esfera econômica do trabalho são um setor
decisivo de problemas mais gerais de reconhecimento social.
Neste sentido, por exemplo, processos de pauperização não serão vistos
por Hegel apenas como problemas de “justiça social”, mas sim como problemas
de condições de efetivação da liberdade. Pois não é possível ser livre sendo
miserável. Livres escolhas são radicalmente limitadas na pobreza e, por
conseqüência, na subserviência social. Posso ter a ilusão de que, mesmo com
restrições, continuo a pensar livremente, a deliberar a partir de meu livre-
161
HEGEL, ibidem, par. 138
arbítrio individual. Um pouco como o estóico Epiteto, que dizia ser livre mesmo
sendo escravo. No entanto, uma liberdade que se reduziu à condição de puro
pensamento é simplesmente inefetiva, isto no sentido dela determinar em muito
pouco as motivações para o nosso agir.
Já o jovem Hegel afirmava que, ao procurar a realização do bem e das
riquezas através da referência a seu próprio sistema particular de interesses, a
sociedade conhece um processo de multiplicação de necessidades e afirmação
dos interesses. Da mesma forma que as necessidades se desdobram, os meios
para satisfazê-las se multiplicam e se complexificam, criando assim tanto a
riqueza, o refinamento, quanto o desenvolvimento e, principalmente, o
aprofundando a dependência entre os homens. O que leva Hegel a afirmar:
“Enquanto existência real, as necessidades e os meios advém ser para outro
através dos quais as necessidades e o trabalho de cada um é reciprocamente
condicionado”162. Pois meu trabalho advém um meio para a satisfação dos
outros, assim como minha satisfação depende do trabalho dos outros. É a isto
que Hegel chama de “sistema de necessidades”.
No entanto, Hegel insiste que este sistema de necessidades construído
através da múltipla dependência dos trabalhos tem como conseqüência
inelutável a divisão do trabalho. Desde sua juventude, Hegel percebe que o
desenvolvimento das sociedades modernas de livre mercado exige uma
especialização cada vez maior dos trabalhos, fruto da complexificação dos
objetos produzidos e da ampliação da produção em larga escala. Hegel sabe que
tal processo leva necessariamente à simplificação e à abstração mecânica na
esfera do trabalho que, por fim, produz a substituição do homem pela máquina,
como vemos no parágrafo 198 dos Princípios da filosofia do direito. Neste sentido,
ele é talvez o primeiro a compreender que a mecanização e a automatização são
conseqüências inelutáveis das sociedades modernas. Conseqüências que
produzem um sofrimento social de alienação devido à dependência dos sujeitos a
um modo de exteriorização que os mortificam. Ou seja, ao procurar a realização
do bem e das riquezas através da referência a seu próprio sistema particular de
interesses, ocorre uma modificação fundamental na estrutura do trabalho como
espaço de reconhecimento.
No entanto, Hegel reconhece outro problema social grave devido ao modo
de organização do trabalho nas sociedades liberais. Ele está indicado no seguinte
trecho dos Princípios da filosofia do direito:
162
Idem, Grundlinien ..., op. cit., par. 192
sentimento e ao gozo de outras faculdades da sociedade civil, em especial
dos proveitos espirituais163.
A resposta que Hegel dará contra estes dois riscos de desagregação da vida social
impulsionados pela hipóstase de modelos de liberdade baseados na autonomia e
a autenticidade passará pelo fortalecimento do Estado. Para que este
fortalecimento seja possível sem que ele implique mera violência, algo destes
dois modelos deve ser conservado.
Por um lado, o Estado deverá dar um objeto à liberdade negativa, dar uma
forma institucional à negação impedindo que os indivíduos se petrifiquem em
determinações sociais estanques (como “membro de um estamento”,
“representante de um interesse de classe”). Isto será apresentado através das
considerações hegelianas sobre a guerra. Através da guerra, o Estado completará
um intrincado processo de formação das individualidades através da
internalização do caráter formador da experiência da negatividade da morte.
Este é um tema recorrente em Hegel e podemos encontrá-lo, por exemplo, na
163
HEGEL, ibidem, par. 243
164
Idem, par. 244
Fenomenologia do Espírito, à ocasião da compreensão do confrontar-se com a
morte como ir em direção ao fundamento da existência165. Se voltarmos à outro
momento da Fenomenologia, este dedicado à seção “Espírito”, encontraremos
colocações como:
165
Discuti este ponto em SAFATLE, Vladimir; O amor é mais frio que a morte : negatividade,
infinitude e indeterminação na teoria hegeliana do desejo, op. cit.
166
HEGEL, ibidem, p. 455
167
SOUCHE-DAGUES, Liberté et négativité dans la pensée politique de Hegel, Paris : Vrin, 1997, p.
26.
Há várias formas de se pensar tal processo sem precisar passar por esta apologia
hegeliana da guerra, certamente questionável e dificilmente defensável, não
apenas nas condições atuais, mas já em sua época. Por isto, para além da
enunciação literal, devemos saber como recuperar tal motivo que, no fundo,
expõe a relação necessária entre negatividade e Estado.
Se o problema das exigências de autenticidade pode ser regulado desta
forma, o problema da autonomia exigirá, por sua vez, um Estado que forneça as
condições sociais para a autonomia reencontrar-se nos sistemas sociais de
julgamento. Isto nós vemos no interior das considerações hegelianas sobre a
eticidade. Ela deve fornecer a estrutura institucional para que as aspirações
individuais de autonomia sejam efetivadas. Tal estrutura engloba, inclusive, a
obrigação estatal de lutar contra a fratura social inerente ao funcionamento da
sociedade civil no interior da dinâmica capitalista de desenvolvimento. A vida
ética não é indiferente à questão social, à obrigação de institucionalização de
políticas de combate à pauperização (consequência que podemos derivar da
Filosofia do direito, mesmo que ela não esteja descrita na obra). No entanto,
devemos analisar melhor o tipo de consolidação de costumes e modos de
julgamento que a noção de “eticidade” aplicada à vida moderna pode ser capaz
de garantir.
Notemos apenas que o Estado moderno tem uma dupla função
aparentemente contraditória. Ele deve acolher a experiência de indeterminação
que habita as individualidades e ele deve fornecer as determinações necessárias
para a efetivação da autonomia através da constituição de um conjunto de leis
positivas universalizáveis. Ele fornece um conjunto de regras sociais, assim como
fornece o modo de expressão daquilo que, nos sujeitos, é refratário à
determinação no interior de regras sociais. Ele, ao mesmo tempo, cria instituições
e gere a indeterminação. Para ser mais claro, para Hegel, o Estado é uma
instituição capaz de gerir a indeterminação, de superá-la sem simplesmente
negá-la. O Estado deve realizar o que a sociedade civil não é capaz de realizar
(como políticas de redistribuição que permitam dar realidade às demandas
sócias de reconhecimento) e, principalmente, deve retirar os sujeitos de sua
completa imersão na mera condição de indivíduos providos de sistemas
particulares de interesses. De uma certa forma, o Estado des-individualiza os
sujeitos. No entanto, esta des-individualizacao é condição para a liberdade, pois é
possibilidade de abertura do sujeito para algo mais do que a forma isolada e
atomizada do indivíduo. Pois Hegel sabe que podemos sofrer por não sermos um
indivíduo, ou seja, por não termos conseguido nos realizado como
individualidade capaz de se fazer reconhecer no interior da vida social. No
entanto, podemos sofrer também por ser apenas um indivíduo, um sofrimento
que ganha a forma do isolamento, do esvaziamento e incapacidade de se orientar
no interior da ação social.
Lógicas do reconhecimento
Aula 9
168
Tópico muito bem desenvolvido por Moishe Postone ao afirmar: “O trabalho social não é somente o
objeto da exploração e dominação, mas é, ele próprio, o terreno da dominação. A forma não pessoal,
abstrata, ‘objetiva’ de dominação carcterística do capitalismo está aparentemente relacionada à
dominação dos indivíduos por seu trabalho social” (POSTONE, Moishe; Tempo, trabalho e dominação
social, São Paulo: Boitempo, 2014, p. 150)
169
MARX, Karl; Manuscritos. …, p. 94
com a valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção a
desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente
mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma
mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em
geral170.
Espoliação e monopólio
De fato, que o salário seja expressão da espoliação econômica, eis algo que
Marx defende ao lembrar como o processo de valorização do Capital pressupõe
salários habituais compatíveis com uma mera existência animal, como cavalos
que recebem apenas o suficiente para poder trabalhar. A produção da riqueza
econômica não se traduz em aumento paulatino e constante dos salários. Marx
compreende este aparente paradoxo a partir da dinâmica monopolista inerente
ao desenvolvimento do capitalismo:
170
Idem, p. 80
171
MARX, Karl; Manuscritos…, pp. 26-27
172
Idem, p. 28
aumentam também as necessidades, demandas e exigências, o que significa que a
pobreza absoluta pode diminuir enquanto a relativa aumentar:
Isto explica porque, quanto mais o trabalhador produz, menos tem para
consumir. A pobreza relativa implica diminuição gradativa do que consigo
consumir em relação às exigências renovadas do meu sistema de interesse. Desta
forma, fica claro como Marx compreende a figura do trabalho assalariado como a
perpetuação de uma forma de espoliação e sofrimento. Neste sentido, poderia
parecer que uma saída consistiria na adoção de políticas de aumento substancial
dos salários, como queria Proudhom com sua tentativa de organizar as lutas
sociais a partir da pauta do aumento ou mesmo da igualdade dos salários. Para
Marx, o problema central não é apenas os baixos salários, mas a redução do
trabalho à forma da mercadoria que se vende, de qualidade que se abstrai. Ou
seja, sua crítica não é apenas à espoliação econômica, mas é uma crítica do
trabalho assalariado enquanto tal, ou seja, uma crítica à ideia de trabalho em
vigor nas sociedades modernas. Isto fica claro quando Marx disser, em uma
afirmação de grande importância: “o trabalho – não apenas nas condições atuais,
mas também na medida em que, em geral, sua finalidade é a mera ampliação da
riqueza – é pernicioso, funesto”174.
Esta colocação é importante por nos lembrar que a dominação no
trabalho não está ligada apenas à impossibilidade dos produtores imediatos
disporem de sua própria produção e dos produtos por eles gerados. Não se trata
apenas de uma questão de apropriação e dominação consciente, através da
“cooperação histórico-universal dos indivíduos”; apropriação destes “poderes
que, nascidos da ação de alguns homens sobre os outros, até agora se impunham
sobre eles, e os dominavam na condição de potências absolutamente
estranhas”175. Pois, se não nos perguntarmos sobre a extensão real de tal
domínio, correremos o risco de deixar dois problemas intocados, a saber, o fato
da produção do valor (a “mera ampliação da riqueza”), como forma de riqueza e
de determinação de objetos, permanecer no centro das estruturas de dominação
abstrata176 e, principalmente, o fato da relação sujeito/objeto continuar a ser
pensada sob a forma do próprio (como expressão da consciência, seja ela falsa ou
histórico-universal) e da propriedade (seja ela individual ou comunal, injusta ou
justamente distribuída).
O problema relativo à reflexão do trabalho acaba por definir-se como um
problema de “redistribuição de propriedade”, redistribuição do que se dispõe
diante de mim como aquilo que tem, na sua identidade para comigo, sua
173
MARX, Karl; Manuscritos …, p. 31
174
MARX, Karl; Manuscritos …, p. 30
175
MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 61
176
Cf. POSTONE, idem, p. 151
verdadeira essência. Neste sentido, é difícil não aceitar que “o sujeito histórico
seria nesse caso uma versão coletiva do sujeito burguês, constituindo-se e
constituindo o mundo por meio do ‘trabalho’”177. Por isto, ao menos dentro de tal
perspectiva, não faria sentido falar do trabalho como categoria de contraposição
ao capitalismo, já que ele estaria organicamente vinculado às estruturas
disciplinares de formação da natureza utilitária das relações próprias à
individualidade liberal e seus direitos de propriedade, expressando apenas
amplos processos de reificação.
Gattungsleben
Esta caracterização do homem como “ser sem espécie definida”, “ser sem medida
adequada”, de onde se segue sua possibilidade de produzir segundo a medida de
qualquer espécie, abre a possibilidade para uma indiferença genérica em relação
à determinação própria a toda espécie nas suas relações de transformação do
meio-ambiente, o que lhe leva a encontrar a medida inerente ao próprio
objeto179. Liberado da condição de ser apenas objeto para-um-outro, o objeto
pode ser expressão daquilo que, no sujeito, não se reduz à condição de ser para-
um-outro. Daí porque encontrar a medida inerente ao objeto é, ao mesmo tempo,
superar a alienação do sujeito. E o que, no sujeito, não se reduz a tal condição de
ser para-um-outro, é o que nele não se configura sob a forma de espécie alguma,
não tem imagem de espécie alguma pois é sua “vida do gênero” (Gattungsleben)
que se objetifica no objeto trabalhado. O termo vem de Feuerbach que, ao
procurar estabelecer distinções entre humanidade e animalidade, dirá que:
177
Idem, p. 99
178
MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad. modificada]
179
Não será a última vez que Marx usará a potência de indeterminação do sujeito para construir um
espaço de reconhecimento não-alienado. De certa forma, tal “ser sem espécie definida” adianta, do
ponto de vista ontológico, a “classe dos desprovidos de classe” na qual Marx encontrará o proletariado,
como veremos de maneira mais articulada na terceira parte deste livro.
De fato é o animal objeto para si mesmo como indivíduo – por isto ele tem
sentimento de si – mas não como gênero – por isto, falta-lhe a consciência,
cujo nome deriva de saber. Onde existe consciência existe também a
faculdade para a ciência. A ciência é a consciência dos gêneros. Na vida,
lidamos com indivíduos, na ciência com gêneros. Mas somente um ser
para o qual seu próprio gênero, sua quididade, torna-se objeto , pode ter
por objeto outras coisas ou seres de acordo com a natureza essencial
deles 180
180
FEUERBACH, Ludwig; A essência do cristianismo, Petrópolis: Vozes, 2007, p. 35
181
FEUERBACH, Ludwig; A essência do cristianismo, op. cit., p. 39. Neste sentido, devemos assumir
a crítica de Zizek, para quem “o sujeito tem de reconhecer em sua alienação da substância a separação
da substância de si mesmo. Essa sobreposição é o que se perdeu na lógica feuerbachiano-marxiana da
desalienação na qual o sujeito supera sua alienação reconhecendo-se como o agente ativo que pôs o que
aparece para ele como seu pressuposto substancial” (ZIZEK, Slavoj; Menos de que nada, op. cit., p.
101).
não reconhece sua própria imagem por não ter uma forma essencial que lhe seja
própria? O que dizer se aceitarmos que a experiência do espelho é confrontação
com algo do qual não nos apropriamos por completo, mas que nos atravessa
produzindo o sentimento de uma profunda impropriedade?
Esta é apenas uma maneira figurada de afirmar que a universalidade que
passa à existência não pode existir como mais uma espécie, não pode se
determinar tal como se determinam espécies particulares, como se disséssemos
algo como: “existem cavalos, bois, abelhas e ... animais”. Pois não estamos diante
de uma universalidade por partilha de atribuição. De certa forma, “animais” só
podem vir à existência através da desarticulação do campo de determinações
que permite a organização das diferenças predicáveis responsáveis pela
particularização dos existentes. Neste sentido, estamos diante de uma
universalidade por excesso em relação ao espaço de manifestação de
particularidades. Esta é outra maneira de dizer que a universalidade a ser
reconhecida não deve ser compreendida como determinação normativa capaz de
definir, por si só, o sentido daquilo que ela subsume, mas como a força de
descentramento da identidade autárquica dos particulares182. A universalidade é,
neste contexto, apenas a generalização da impossibilidade do particular ser
idêntico a si mesmo e a transformação desta impossibilidade em processo de
constituição de relações. Aceitando tal conceito de universalidade, deveremos
dizer que o trabalho que expressa a “vida do gênero” deve ser compreendido
como a fonte inesgotável dos possíveis que passa à existência, mas sem nunca
determinar-se por completo em um valor particular de uso totalmente
funcionalizado. Por isto, ela pode impulsionar os objetos trabalhados a uma
processualidade sempre aberta sob a forma de devir contínuo.
Neste sentido, a expressão laboral de uma vida que é vida do gênero,
Gattungsleben, só poderia se dar como problematização do objeto trabalhado
enquanto propriedade especular das determinações formais da consciência,
enquanto aquilo do qual a consciência se apropria por completo no interior de
um plano construtivo. A vida que se expressa como vida do gênero é o que nos
libera das amarras das formas de determinação atual da consciência, de seus
modos de apropriação, sem nos levar a uma universalidade que é apenas a figura
da individualidade universalizada. Pois há de se aceitar a noção de que “o comum
não é característica do próprio, mas do impróprio ou, mais drasticamente, do
outro; de um esvaziamento – parcial ou integral – da propriedade em seu
negativo; de uma desapropriação que investe e descentra o sujeito proprietário,
forçando-o a sair de si mesmo”183. Por isto, a vida que se expressa como vida do
gênero é o que há de impróprio em nós e o que permite ao trabalho aparecer
como expressão do estranhamento enquanto afeto de relação do sujeito a si.
182
Desenvolvi melhor esta ideia, a propósito da leitura adorniana de Hegel, em SAFATLE, Vladimir:
“Os deslocamentos da dialética” In: ADORNO, Theodor; Três estudos sobre Hegel, São Paulo: Unesp,
2013
183
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op. cit., p. XIV
propriedade comunal. O segundo é: “a figuração necessária e o princípio
enérgico do futuro próximo”184 capaz de fornecer aquilo que Marx chama de uma
superação positiva da propriedade privada.
Sobre o primeiro, Marx o descreve como uma generalização de todas as
relações sociais sob a forma das relações de propriedade: “o domínio da
propriedade material é tão grande frente a ele que ele quer aniquilar tudo que
não é capaz de ser possuído por todos como propriedade privada”185. Na
verdade, a relação por propriedade permanece sendo a relação da comunidade
com o mundo das coisas, mesmo que no lugar da propriedade privada tenhamos
agora a propriedade comunal. Uma propriedade comunal que pressupõe um
certo retorno à simplicidade que é, para Marx, apenas expressão da negação
abstrata do mundo inteiro da cultura.
Marx chega a afirmar que a comunidade das mulheres, no qual a mulher
advém uma propriedade comunitária e comum, seria o segredo deste
comunismo rude:
Desta forma, fica claro como, para Marx, não se trata de passar da
propriedade privada à propriedade comunal, mas de abandonar os modelos de
relação (intersubjetiva, entre sujeito e objeto) sob a forma da possessão. Assim,
aparece uma distinção importante entre apropriação (Aneigung) e possessão
(besitzen) que abre à compreensão para a verdadeira superação da propriedade
produzida pelo comunismo. No comunismo, as apropriações não são possessões
e creio que este é um ponto fundamental, a saber, compreender o que são
apropriações que não se deixam pensar como possessões, ou seja,
estabelecimento de afinidades miméticas com o que não se determina como
minha possessão.
Assim, se no comunismo é possível falar de uma “verdadeira ressurreição
da natureza, do naturalismo realizado do homem e do humanismo da natureza
levado a efeito”187 é porque, no comunismo de Marx, a natureza não é mais
compreendida como o que se submete à relações de posse, nem mesmo de posse
coletiva. No comunismo, circulam objetos que não são a confirmação do
individualismo possessivo, objetos são produzidos que não são resultantes do
interesse individual, que não são marcados pelo sentido do ter e pela submissão
do objeto à funcionalidade da utilidade. Lembremos a este respeito como
“interesse” é a realização de uma síntese entre as paixões e o cálculo, é a
184
MARX, Karl; Manuscritos…, p. 114
185
Idem, p. 103
186
MARX, Karl; Manuscrito …, p. 104
187
Idem, p, 107
submissão da esfera das paixões à forma do que pode ser calculado, do que pode
ser pensado sob o prisma utilitário.
Ao falar desta apropriação que não é possessão, que não é submissão aos
princípios utilitários, Marx afirma:
188
MARX, Karl; idem, p. 108
Lógicas do reconhecimento
Aula 10
Crise e revolução
189
MARX e ENGELS, Manifesto Comunista, p. 39
190
Ver BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, p. 364
Para tanto, faz-se necessário que o advento do proletariado impulsione um
processo de luta de classe que exigirá a organização da massa de despossuídos em
classe e sua união em partido comunista. Este processo chegaria a uma “hora
decisiva” na qual mesmo o setor dos ideólogos burgueses compreenderiam
teoricamente o momento histórico em geral. Uma hora decisiva na qual a guerra civil
implícita na sociedade se transformaria em guerra aberta e declarada com a derrubada
violenta da burguesia. Assim: “a passagem ao comunismo seria pois iminente desde
que as formas e contradições da sociedade civil burguesa fossem completamente
desenvolvidas”191.
Por outro lado, Marx e Engels rejeitam a tese, muito difundida no movimento
operário da época, de uma transformação pela educação. Neste sentido, as Teses sobre
Feuerbach são exemplares na sua pergunta: “quem afinal irá educar os educadores?”
e na sua confrontação entre a mudança pela educação e a prática revolucionária. Por
isto, esta fração comunista não “educa” a massa proletária. A princípio, ela expressa
“o movimento histórico que se desenvolve diante dos nossos olhos”, ela nomeia o que
ocorre através de um nome próprio. Tal colocação é, mais uma vez, fruto da crença de
Marx e Engels em uma expressão imanente do real que não pode se reduzir a um
discurso ideológico. Expressão imanente baseada nas noções de contradição, de
antagonismo, assim como de um diagnóstico que eleva a alienação a condição de
sofrimento social fundamental nas sociedades modernas ocidentais e a exteriorização
do ser do gênero a condição de seu horizonte de superação.
O fracasso da revolução
No entanto, com a Revolução de 1848, Marx se depara com algo que ele não
esperava no Manifesto Comunista, a saber, o fracasso da revolução que parecia tão
iminente, com a consequente adesão de uma parte do socialismo francês ao
bonapartismo, com a passividade operária diante do golpe de Estado de Luís
Bonaparte. Esta experiência histórica é tão importante que, a partir de 1852, Marx só
voltará a publicar um livro em 1859, a saber, Para a crítica da economia política. É a
partir do fracasso da revolução que Marx se volta de maneira mais sistemática à
crítica da economia política. Como se fosse questão de procurar, na estrutura da
racionalidade da vida social moderna e de seus modos de reprodução material da vida,
as causas fundamentais para o bloqueio da assunção do proletariado a condição de
sujeito revolucionário.
Marx irá então se colocar a questão: como se perde uma revolução? Qual a
operação que não leva a uma revolução, mas a uma “parodia” de transformação, a
uma “mascarada”, a um falso movimento. Esta discussão é fundamental por nos
mostrar como, no interior da teoria política de Marx, haverá a distinção entre uma
verdadeira revolução e uma transformação meramente aparente. Isto a ponto de
podermos dizer que o capitalismo será então um espaço de produção contínua de
transformações aparentes que visam evitar uma transformação real.
Inicialmente, Marx fala em diversas ocasiões que a revolução de fevereiro de
1848, que derrubou a monarquia de Luís Filipe, ocorreu “cedo demais”. Ou seja, não
havia um processo proletário amadurecido. A revolução foi impulsionada pela crise
econômica com sua “devastação do comércio e da indústria”192 que tornou a tirania da
aristocracia financeira ainda mais insuportável. Ela ainda se serviu da divisão da
191
BALIBAR, Etienne; La philosophie de Marx, p. 79
192
MARX, Karl; As lutas de classe na França, p. 42
burguesia entre a aristocracia financeira, ligada à monarquia que vigora na França
entre 1830 e 1848, e a burguesia industrial, que sofrerá diretamente com a crise e
encontra-se distante do centro de decisões do poder. Por isto, entre fevereiro e junho
de 1848, mês das revoltas populares e das barricadas em Paris, o movimento ocorreu
de forma retroativa. Tudo se passa como se as condições necessárias para a revolução
proletária fossem se desenvolver depois da queda da monarquia. Este processo
retroativo não é, no entanto, a fonte do fracasso da revolução. A respeito das causas
do fracasso, lembremos das palavras de Marx:
Genealogia do proletariado
193
MARX, Karl; O 18 do brumário, p. 35
194
RANCIÈRE, Jacques; “Politics, identification and subjectivation” in: RAJCHMAN, John; The
identity in question, Nova York: Routledge, 1995, p. 67
pobreza”195. Exemplo claro neste sentido é o uso do termo feito por Saint-Simon. É
entre os saint-simonistas que a dicotomia entre proletários e burgueses será descrita
pela primeira vez, ainda que em um horizonte de reconciliação possível de interesses.
Neste sentido, mais do que cunhar o uso social do termo, o feito de Marx
encontra-se em vincular o conceito de proletariado a uma teoria da revolução ou,
antes, a uma teoria das lutas de classe que é a expressão da “história da guerra civil
mais ou menos oculta na sociedade existente”196. Daí porque Marx falará, a respeito
dos saint-simonistas e de outros socialistas “crítico-utópicos”: “Os fundadores desses
sistemas compreendem bem o antagonismo de classes, assim como a ação dos
elementos dissolventes na própria sociedade dominante. Mas não percebem no
proletariado nenhuma iniciativa histórica, nenhum movimento político que lhes seja
peculiar”197.
A sua maneira, Marx partilha com Hobbes a compreensão da vida social como
uma guerra civil imanente. No entanto, como não se trata de pensar as condições para
a formação da sociedade como associação de indivíduos, mas parar de pensar a vida
social a partir da elevação do indivíduo como célula elementar, esta guerra não será a
expressão da dinâmica concorrencial entre indivíduos desprovidos de relações
naturais entre si. Ela será uma guerra de classes no interior da qual uma das classes
aparece como o conjunto daqueles que nada mais dispõem. Por isto, uma guerra que
só pode levar não a vitória de uma classe sobre outra, mas à destruição do princípio
que constitui as classes, a saber, o trabalho e a propriedade como atributo fundamental
dos indivíduos. O que explica porque Marx deverá ser claro:
195
STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the lumpemproletariat” In:
Representations, vol 0, n. 31, p. 84
196
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; Manifesto Comunista, São Paulo: Boitempo, p. 50
197
Idem, p. 66
198
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 98
199
Idem, Manifesto Comunista, p. 43
200
Idem, p. 45
201
Idem, p. 51
burguesia é o local no qual se realiza uma impressionante operação de auto-negação
que não é apenas a auto-negação dos interesses de uma classe, mas a auto-negação da
própria “produção da vida” vigente até agora com suas relações entre sujeitos, entre
sociedade e natureza, entre o sujeito e si mesmo.
Como vimos, tal auto-negação é impulsionada pela produção do excesso. A
burguesia produz crises descritas como “epidemias de superprodução” que destroem
grande parte das forças produtivas já criadas. No entanto, tal desordem produzida pela
burguesia e sua escalada global não é apenas o anúncio da destruição. Ela é a
produção involuntária de novas relações que tem em seu germe a forma de outro
mundo:
Isto demonstra como, segundo Marx, a revolução só pode ser feita pela classe dos
despossuídos de predicado e profundamente despossuídos de identidade. Classe
formada por “indivíduos histórico-universais, empiricamente universais, em vez de
indivíduos locais” 203 . Para que apareçam indivíduos histórico-universais, faz-se
necessário uma certa experiência de negatividade que, desde Hegel, é condição para a
fundamentação da verdadeira universalidade. Tal experiência, o proletariado a sofre
através da despossessão completa de si descrita por Marx em termos como:
202
Idem, A ideologia alemã, p. 58
203
MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 58
204
MARK, Karl; Manifest der Kommunistischen Partei in
http://www.marxists.org/deutsch/archiv/marx-engels/1848/manifest/1-bourprol.htm
permitir que os proletários tenham uma nação, uma família burguesa, uma moral e
uma religião. Tais normatividades são negadas em uma negação sem retorno. No
entanto, tal negação não leva o proletariado a aparecer como “essa massa indefinida,
desestruturada e jogada de um lado para outro, que os franceses denominam la
bohème”205 e que Marx define como “lumpemproletariado”206. Vale a pena discutir
melhor este ponto porque não foram poucos aqueles que tentaram, desde Bakunin,
transformar o conceito de lumpemproletariado no verdadeiro conceito com força
revolucionária207.
Tal como acontece com o conceito de proletariado, o conceito de
lumpemproletariado não descreve imediatamente um agente econômico, mas um tipo
de sujeito político, ou antes, uma espécie de anti-sujeito político. Lembremos da
estranha extensão que o termo toma no 18 do brumário:
Difícil não ler esta série descrita por Marx com seus literatos e amoladores de tesoura
sem se lembrar da Enciclopédia fantástica de Borges. Pois o que totaliza esta série não
é a suposta analogia entre seus elementos a partir do desenraizamento social. A este
respeito, lembremos como em Luta de classe na França, Marx chega a descrever a
própria aristocracia financeira como “o renascimento do lumpemproletariado nos
cumes da sociedade burguesa”. Há um lumpemproletariado no baixo nível do estrato
social e no alto nível, sendo os do alto nível perfeitamente enraizados à escroqueria
funcional do capitalismo financeiro.
O que os une é, na verdade, uma certa concepção de improdutividade, uma
diferenciação entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, mas diferenciação
concebida do ponto de vista da produtividade dialética da história. Pois o
lumpemproletariado é uma massa desestruturada cuja negatividade não se coloca
como contradição em relação às condições do estado atual da vida. Neste sentido, ele
é a representação social da categoria de negatividade improdutiva. Por isto, trata-se de
uma massa heterogênea que pode ganhar homogeneidade desde que encontre um
termo unificador que lhe dará estabilidade no interior da situação política existente.
Tal termo, no 18 do brumário, não é outro que Napoleão III, “o chefe do
lumpemproletariado”. Aquele que dá homogeneidade a tal heterogeneidade social, a
história mesma repetida como farsa e que deve se confessar enquanto farsa para poder
se manter.
205
MARX, Karl; O 18 brumário de Luis Bonaparte, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 91
206
Ver, por exemplo, THOBURN, Nicholas; “Difference in Marx: the lumpenproletariat and the
proletarian unamable”; Economy and Society Volume 31 Number 3 August 2002: 434–460
207
Como vemos, por exemplo, em STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the
lumpemproletariat” In: Representations, vol 0, n. 31, p. 84 e LACLAU, Ernesto; La razón populista,
op. cit.
208
MARX, Karl; O 18 do brumário, op. cit., p. 91
No entanto, há de se insistir como o modelo de estabilização produzido por
Napoleão III é uma espécie de estabilização na anomia. Através de Napoleão III, a
heterogeneidade do lumpemproletariado permanece radicalmente passiva, permanece
como ação anti-política, pois acomoda-se à gestão do desenraizamento social, seus
crimes romantizados não se transformam em ação de transformação alguma. Na
verdade, essa desestruturação e indefinição anômica do lumpemproletariado é própria
de quem ainda conserva a esperança de retorno da ordem, ou que não é capaz de
conceber nada fora de uma ordem que ele mesmo sabe estar completamente
comprometida. O que faz suas ações políticas serem apenas “paródias” de
transformações, “comédias”, ou ainda, “mascaradas”: todos termos usados por Marx
no 18 de brumário para falar de revoluções que são, na verdade, tentativas de
estabilização no caos. O lumpemproletariado representa uma negatividade que não
pode ser integrada no processo dialético porque ele representa o congelamento da
negatividade em uma espécie de cinismo social.
Já o caso do proletariado é marcado pela ausência de qualquer expectativa de
retorno. O proletariado é uma heterogeneidade social que simplesmente não pode ser
integrada sem que sua condição passiva se transforme em atividade revolucionária.
Por isto, ao ser desprovido de propriedade, de nacionalidade, de laços com modos de
vida tradicionais e de confiança em normatividades sociais estabelecidas, ele pode
transformar seu desamparo em força política de transformação radical das formas de
vida. Para tanto devemos compreender que a afirmação da condição proletária não se
confunde com alguma forma de demanda de reconhecimento de formas de vida
desrespeitadas, claramente organizadas em suas particularidades. Ao contrário, a
afirmação de tal condição proletária gera a classe destes sujeitos sem predicados
descritos da seguinte forma em A ideologia alemã:
209
MARX, Karl; A ideologia alemã, op. cit., p. 56
A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma
de sociedade em que os indivíduos passam (übergehen) com facilidade de um
trabalho a outro, e em que o tipo determinado do trabalho é para eles
contingente e por conseguinte, indiferente. Nesse caso, o trabalho deveio, não
somente enquanto categoria, mas na efetividade, meio para a criação de
riqueza em geral e, como determinação, deixou de estar ligado aos indivíduos
em sua particularidade. Um tal estado de coisas encontra-se no mais alto grau
de desenvolvimento na mais moderna forma de existência da sociedade
burguesa – os Estados Unidos210.
Apropriar-se
210
MARX, Karl; Grundrisse, op. cit., p. 58
211
MARX, Karl; A ideologia alemã, op.cit., p. 98
212
MARX, Karl; Crítica da filosofia do direito de Hegel – introdução, São Paulo: Boitempo, 2005, p.
156
hegeliana do sujeito (embora Marx desqualificasse tal assimilação por ver, em Hegel,
uma elaboração meramente abstrata do problema), o proletariado só supera sua
alienação ao se confrontar com o caráter profundamente indeterminado do
fundamento e conservar algo desta indeterminação 213 . Seu papel de redenção
(Erlösung) só pode ser desempenhado à condição de assumir sua natureza de
dissolução (Auflösung). Como dirá Balibar, o advento do proletário como sujeito
político é o aparecimento de um “sujeito como vazio” 214 que não é, em absoluto,
privado de determinações práticas. Essa manifestação de um vazio em relação às
determinações identitárias atuais leva-nos a compreender que o reconhecimento de si
só é possível à condição de uma crítica profunda de toda tentativa de reinstaurar
identidades imediatas entre sujeito e seus predicados.
Se este for o caso, então poderemos dizer que a luta de classes em Marx não é
simplesmente um conflito moral motivado pela defesa das condições materiais para a
estima simétrica entre sujeitos dispostos a se fazerem reconhecer a partir da
perspectiva da integralidade de suas personalidades, como quer alguns como Axel
Honneth. A abolição da propriedade privada deve acompanhar necessariamente a
abolição de uma economia psíquica baseada na afirmação da personalidade como
categoria identitária. Insistamos neste ponto lembrando de um importante trecho do
Manifesto Comunista:
213
Sobre este ponto da filosofia hegeliana, tomo a liberdade de remeter ao meu SAFATLE, Vladimir;
Grande hotel abismo: para uma reconstrução da teoria do reconhecimento, São Paulo: Martins
Fontes, 2012.
214
BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, Paris: PUF,
2011, p. 260.
215
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich: Manifesto Comunista, op. cit., p. 50
216
HEGEL, GWF; Fenomenologia do Espírito – vol. II, Rio de Janeiro: Petrópolis, 1992, p. 33
Encontramos claramente em Marx esta crítica já presente em Hegel. Lembremos mais
uma vez como Marx insistirá, por exemplo, que a noção de liberdade pressuposta pela
Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1793, era calcada em larga
medida na absolutização do indivíduo proprietário. Daí uma colocação como:
A coisa toda seria muito simples se houvesse apenas a infelicidade da luta que
opõe ricos e pobres. A solução do problema foi encontrada muito cedo. Basta
suprimir a causa da dissensão, ou seja, a desigualdade de riquezas, dando a
cada um uma parte igual de terra. O mal é mais profundo. Da mesma forma
que o povo não é realmente o povo, mas os pobres, os pobres por sua vez não
são realmente os pobres. Eles são apenas o reino da ausência de qualidade, a
efetividade da disjunção primeira que porta o nome vazio de ‘liberdade’, a
propriedade imprópria, o título do litígio. Ele são eles mesmos a união
distorcida do próprio que não é realmente próprio e do comum que não é
realmente comum218.
217
MARX, Karl; Sobre a questão judaica, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 49.
218
RANCIÈRE, Jacques; Le mésentente: politque et philosophie, Paris: Galiée, 1995, p. 34
Lógicas do reconhecimento
Aula 11
219
SARTRE, Question de méthode, pag. 22.
220
Ver textos sobre Hegel em KOYRÈ, Alexandre; Estudos sobre a história do pensamento filosófico
Forense Universitária: Rio de Janeiro.
221
WAHL, Jean; Le malheur de la conscience dans la philosophie de Hegel
222
BORCH-JACOBSEN; Mikkel, Lacan: the absolute master, pag. 4.
condição de chave para a compreensão do livro. Segundo, a construção de uma
espécie de teoria hegeliana da linguagem inspirada na dialética do Conceito.
Kojève transformou a Fenomenologia do Espírito em uma antropologia
filosófica, vendo na Dialética do Senhor e do Escravo seu momento fundamental.
Segundo Kojève, encontramos, primeiro, a quietude passiva da consciência
solitária absorvida pela contemplação do objeto. Neste momento, a consciência
não se diferencia do puro Sentimento de si do animal. Absorvida nesta
contemplação de um ser exterior e objetivo chamada de connaissance223, a
consciência se esquece. Quanto mais ela é consciência da coisa menos ela é
consciência de si. É, pois, necessário que este mundo sem fissuras seja quebrado
e a consciência, chamada a si, seja impelida a deixar de falar da coisa e falar dela
mesma. Quer dizer, seja impelida a dizer: ‘Eu’, acedendo à condição de
consciência-de-si. “Compreender o homem pela compreensão de sua origem,
dirá Kojève, é compreender a origem do Eu revelado pela palavra”224.
Em Kojève, o que impele a consciência a dizer ‘Eu’ é a temporalidade
originária: vir-a-ser que engendra a negatividade do Desejo. Quando o homem
prova um desejo ele toma, necessariamente, consciência de si. “O desejo revela-
se sempre como meu desejo, e por revelar o desejo, é necessário se servir da
palavra ‘Eu’”225. Aqui, Desejo: “com efeito é apenas uma nada revelado, um vazio
irreal”226 e, como tal, é o ser do sujeito. Não se trata do Desejo de um objeto
específico mas, antes, pura Ação transformadora que nega o dado criando um ser
novo. A este respeito, Kojève gostava de dar o exemplo da fome. A fome é o
desejo de transformar, através de uma ação (o ato de comer), a coisa
contemplada, negando-a em sua realidade independente e assimilando seu ser à
mim.
A compreensão do Desejo como ser do sujeito impede que o homem seja
pensado enquanto Ser que é eternamente idêntico a si mesmo. O homem deve
ser pensado como um nada, um vazio, ação negadora que nadifica o Ser para
transformá-lo e, neste mesmo movimento, se transformar. Seu verdadeiro Ser
(Sein) é vir-a-ser (Werden) chamado Tempo e História.
O Desejo, definido como pura negatividade, como desejo de nada que
possa ser nomeado, ou, ainda, como falta-a-ser, só pode encontrar satisfação em
outro Desejo. É só em outro Desejo, em um não-ser, que a pura negatividade
pode satisfazer-se. Isto marca a diferença irredutível entre o Desejo humano e
seu congênere animal. O animal deseja o ser e se satisfaz com esta coisa
naturalmente dada. Ele não transcende a Natureza abstratamente negada. Já o
homem não deseja uma coisa mas, sim, outro Desejo. O homem é aquele que se
alimenta de Desejos. Daí advém o adágio: “O desejo do homem é o desejo do
outro (ainda com a minúscula)” e, consequentemente, a necessidade do
reconhecimento do Desejo de um pelo outro.
A versão antropológica da lógica hegeliana do reconhecimento foi levada a
cabo por Kojève nos termos que se seguem. Desejar um desejo é: “querer
substituir a si mesmo pelo valor desejado por este Desejo”227. Eu quero que o
valor desejado pelo outro seja o valor que represento. Eu quero que o outro
223
Em contraposição ao savoir que é o saber de si que, ao mesmo tempo, é saber do objeto.
224
KOJÈVE, Alexandre; Introduction à la lecture de Hegel, pag. 11
225
KOJÈVE, Alexandre; op. cit. pag.166.
226
idém, pag. 12
227
KOJÈVE, Alexandre; pag. 14
reconheça meu valor, aquilo que sou, como o que ele deseja. De onde percebemos
que este desejo de reconhecimento só pode engendrar uma luta, chamada por
Kojève, de puro prestígio. Luta através da qual a consciência arrisca sua vida
para ser reconhecida enquanto pura negatividade livre de qualquer aderência à
determinidade. Em outras palavras, o sujeito arriscará sua vida biológica a fim
de satisfazer seu desejo não-biológico.
Sabemos que esta luta deve acabar na servidão de uma das consciências e
não na sua morte. Afinal, com a morte de uma das consciências não há
reconhecimento. É preciso, então, que uma ceda, ou seja, que reconheça sem ser
reconhecida. De fato, uma cederá por temer a morte e se aferrar à vida. Assim,
efetiva-se uma dissimetria na relação entre as duas consciências. Uma reconhece,
outra é reconhecida228.
Aquela que é reconhecida sem reconhecer será chamada de Senhor: o ser
que é somente para-si. Sua relação com o outro é de pura negatividade. Para ele,
o outro não tem essência alguma. O Senhor representa o momento da reflexão-
em-si, o momento do Gozo da identidade imediata consigo mesmo. Aquela
consciência que reconhece sem ser reconhecida é o Escravo: o ser em-si, ou seja,
o lado da objetividade que encontra sua determinidade no outro. O Escravo está
retido na coisidade, na vida, no ser-para-um-outro. Logo, sua essência lhe
aparece como estando em um mais-além de si mesmo. Ele não tem
essencialidade nenhuma e, por isto, representa o momento da reflexão-no-Outro.
O fim desta dialética nós conhecemos. Por um lado, o Senhor vive em um
impasse existencial pois só é reconhecido por uma consciência desprovida de
essencialidade. Seu reconhecimento é uma ilusão e sua liberdade é fundada em
um impasse229. Mas por outro lado, ao temer a morte submetendo-se ao Senhor,
o Escravo provou a angústia do Nada. “Ele se viu como nada, ele compreendeu
que toda a sua existência era apenas uma morte ‘superada’, ‘suprimida’
(aufgehoben)”230. Só ele chegou à verdade do Ser ao compreender que o desejo
de ser pura negatividade, pura abstração de si, só se realiza na morte. Ele
desvelou a essência do ser como ser-para-a-morte. Pois: “‘o ser verdadeiro do
Homem é, em última análise, sua morte enquanto fenômeno consciente”231.
No caso de Kojève o problema é como satisfazer este Desejo que só se
realiza na morte sem apelar para o suicídio (que não seria uma forma de
satisfação). Como o infinito da absoluta liberdade que nega toda determinidade
pode reconciliar-se com o finito e, enfim, aparecer? Em termos kojèveanos: como
o homem pode tornar-se Deus e, assim, ser Sábio alcançando o Saber Absoluto? A
resposta deve ser procurada do lado do Escravo. Através das vias do Trabalho, o
Escravo alcança a verdadeira liberdade. É verdade que só o Trabalho não liberta
mas, transformando o Mundo, negando a coisa dada: “o Escravo se transforma e
cria assim as condições objetivas novas que lhe permitirão retomar a Luta
228
Descombes têm uma boa ilustração do impasse lógico originado pela introdução do problema da
alteridade na filosofia francesa contemporânea: “Nova versão da narrativa do encontro de Sexta-Feira
por Robinson Crusoé, a fenomenologia do outro não cessa de apresentar as múltiplas faces da
contradição: o outro é para mim um fenômeno, mas eu sou também um fenômeno para ele.
Manifestamente, um de nós está sobrando no papel de sujeito e deverá se contentar em ser, para si-
mesmo, o que ele é para o outro” DESCOMBES, Vincent; Le même et l’autre, pag. 33.
229
Não é por outra razão que a dialética do reconhecimento deve terminar em uma sociedade sem
Senhores e Escravos. O que significa dizer: em uma sociedade situada no fim da História.
230
KOJÈVE,Alexandre; Introduction à la lecture de Hegel, pag. 175
231
idém, pag. 566.
libertadora pelo reconhecimento que ele, em um primeiro momento, recusou por
medo da morte” 232 . Trabalhando, o Escravo dá forma objetiva à pura
negatividade que se manifestou nele através do medo da morte. Por isto, em
Hegel o trabalho é desejo refreado, desejo que forma.
Se concordarmos com Kojève a respeito da similitude estrutural entre
Trabalho e Discurso podemos chegar à conclusão final. A astúcia da Razão abre
as portas para que a consciência seja consciência-de-si capaz de unificar saber de
si e saber do mundo através de um Discurso que é a própria revelação-do-ser-
pela-palavra de forma completa e adequada. Uma revelação que é a apresentação
do homem como ser-para-a-morte233. Em Kojève a idéia de ser-para-a-morte está
profundamente ligada à noção do homem enquanto vir-a-ser. Para o ser-
natural, idêntico a si mesmo e estático, toda mudança radical é sempre imposta
de fora e significa sua aniquilação. O ser humano, ao contrário, pode transcender
a si mesmo e vir a ser um ser-Outro sem, com isto, deixar de ser o que é, ou seja,
ser humano. Por isto, Kojève pode afirmar que, enquanto para o animal, a causa
de sua morte é externa, para o homem ela lhe é interna. Ele mesmo é a causa de
sua morte por ser vir-a-ser e aniquilação de sua natureza dada. Conclusão: o
homem é a doença mortal do animal.
No momento em que o homem se conscientiza de sua finitude absoluta,
abandonando a ideia de um mais-além e tomando a palavra de um Discurso que
é morte encarnada, que é “vida que suporta a morte e nela se conserva”, ele pode
satisfazer-se. Ele pode enfim alcançar a condição de Sábio portador do Saber
Absoluto, Sábio consciente de si por ser capaz de “encarar o negativo e demorar-
se junto dele”234. A luta entre Senhor e Escravo cessa e a História, então,
encontra seu fim: “Assim, Saber Absoluto ou Sabedoria e aceitação consciente da
morte, compreendida como nadificação completa e definitiva, são a mesma
coisa”235.
O fim da História e das lutas de dominação e servidão marcaria o advento
do Estado Universal homogêneo do qual o Sábio seria cidadão. Como o Discurso
pode enunciar a última palavra e revelar o Ser não há mais necessidade da ação
negadora do homem. O Sábio pode, então, dedicar-se ao cultivo do snobismo
através da arte, do jogo, do amor etc. Aqui, para além dos enganos da satisfação
animal do desejo ilustrada na destruição infinita ruim do consumo, a verdadeira
negatividade encontra satisfação nas representações formalizadas e
teatralizadas do sujeito. Ela deleita-se na artificialidade leve das ações gratuitas e
sem finalidade. Se a História não fala mais, então o Sábio fabrica, ele mesmo, a
negatividade gratuita.
Anos depois de ministrar seus seminários, já como membro do alto
escalão do corpo diplomático francês, Kojève encontrará a melhor configuração
desta subjetividade pós-histórica no modo de vida japonês. A estilização
presente na vida cotidiana japonesa através das figuras da cerimônia do chá, do
ikebana, dos bonsaïs, das gueixas era, aos olhos de Kojève, a própria
democratização do snobismo. “O Japão é um país com oitenta milhões de snobs”.
Daí, a conclusão inevitável: “se o humano se funda sobre a negatividade, o fim do
232
idém; pag. 32
233
Cf. KOJÈVE, Alexandre. Idém, pag. 553.
234
HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito, pag. 38.
235
idém, pg. 540.
discurso da história oferece duas vias, japonisar o Ocidente ou americanisar o
Japão, quer dizer, fazer amor de uma forma natural ou à maneira de macacos”236.
236
KOJÈVE, Alexandre; Entrevista para Quinzaine littéraire 01/07/68 in LABARRIÈRE, Pierre-Jean
et JARCZYK,Gwendoline; De Kojève à Hegel, pag. 100.
237
KOJÈVE, Alexandre; Introduction à la lecture de Hegel, pag. 540)
238
KOJÈVE, Alexandre; ILH, pag. 452
239
idém, pag. 564
240
idém, pag. 373.
241
LABARRIÈRE, Pierre-Jean et JARCZYK, Gwedoline: Hegeliana, pag. 55. Esta citação é
interessante por vir de autores de uma tradição totalmente anti-kojèveana e, mesmo assim, convergir
com as proposições deste.
242
KOJÈVE, Alexandre; ILH, pag. 574.
Neste ponto, faz-se necessário levantar uma distinção importante. Não se
trata de afirmar que a nomeação anula uma pretensa riqueza concreta do
particular em prol da sua transformação em um universal abstrato. Se assim
fosse, tudo se passaria como se existisse uma espécie de domínio do inefável
depositado em um para-além da nossa linguagem cotidiana. Nesta perspectiva de
interpretação, a universalidade abstrata da palavra seria sempre ultrapassada
pela riqueza das determinações particulares da Coisa mesma. O advento da
linguagem inauguraria a perda intransponível da imanência. Daí a conclusão: no
domínio da linguagem cotidiana, é o ser que se esvairia, recusando qualquer
tentativa de nomeação. É o ser que pediria silêncio. É a Verdade que recusar-se-
ia a subjugar-se à palavra; da mesma forma como o desejo é aquilo que se recusa
a ser nomeado. Estaríamos condenados a viver em um mundo sustentado por
palavras vazias. Palavras que não revelam a luminosidade do ser. Estaríamos
condenados ao silêncio.
Como vimos, esta não é exatamente a conclusão de Kojève. A palavra que
revela o Ser chega no momento em que o homem se conscientiza de sua finitude
absoluta, abandonando a ideia de um mais-além, de um inefável, e toma a letra de
um Discurso que é morte encarnada, que é “vida que suporta a morte e nela se
conserva”. É neste momento que a infinitude pode ser revelada. Em Hegel, a
infinitude verdadeira é caracterizada por ser a negação absoluta de toda
determinidade finita. Kojève deu, à esta infinitude, a figura de um Desejo que é
pura negatividade capaz de negar toda determinidade.
Todo o problema consiste em como Gozar a satisfação de um Desejo que
só se realiza na morte. Como perpetuar a pura abstração de si sem aniquilar-se
definitivamente? No fundo, trata-se de uma espécie de versão antropogênica para
o clássico problema do modo de aparecimento da infinitude, sendo que aparecer
só pode significar ‘ser representada em uma determinação finita’243. A solução
kojèveana para o problema da apresentação do infinito será encontrada no
momento em que o sujeito abrir mão desse Gozo, que é em si impossível já que
só se realiza na aniquilação absoluta da morte, para alcançá-lo na forma
invertida de uma espécie de morte simbolizada e sempre presentificada.
Lembremo-nos da afirmação de Alexandre, o ser verdadeiro do homem só pode
ser sua morte enquanto fenômeno consciente.
243
Vale a pena notar que se trata de um problema estruturalmente muito semelhante àquele que anima
a luta de vida ou morte na Dialética do Senhor e do Escravo tal como Hegel a descreve. Tanto é assim
que o encontramos a afirmar que: “Porém a apresentação de si como pura abstração da consciência-de-
si consiste em mostrar-se como pura negação de sua maneira de ser objetiva, ou em mostrar que não
está vinculado a nenhum ser-aí determinado, nem à singularidade universal do ser-aí em geral, nem à
vida”(Cf. HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do espírito, pag. 128). O problema aqui consiste em saber
como a pura negatividade pode encarnar-se na determinidade, ou seja, como a consciência pode ter a
experiência do estar-aí do puro Eu. Problema similar àquele apresentado por Lacan através da noção de
palavra plena..
Lógicas do reconhecimento
Aula 12
244
LACAN, E., p. 216
245
LACAN, E, p. 289
246
LACAN, S VI, sessão do 13/05/59
247
LACAN, E. p. 279
A realização intersubjetiva do desejo, ou seja, a reflexividade própria ao
reconhecimento do desejo do sujeito pelo Outro apresentava-se como a essência
da cura analítica. Tratava-se da possibilidade de assunção do desejo do sujeito na
primeira pessoa do singular no interior de um campo lingüístico
intersubjetivamente partilhado. De onde se seguia a afirmação: “O sujeito
começa a análise falando de si sem falar a você, ou falando a você sem falar de si.
Quando ele for capaz de falar de si a você, a análise estará terminada”248.
Percebemos aqui que, para Lacan nos anos cinquenta, dialética, diálogo,
intersubjetividade e reconhecimento eram termos convergentes. Na verdade, a
dialética nomearia a estrutura lógica do diálogo intersubjetivo que opera na
análise. Um diálogo particular já que seria capaz de produzir o reconhecimento
do desejo. A lógica dialética ficava assim reduzida a formalização de relações
intersubjetivas próprias a uma modalidade muito específica de diálogo chamada
às vezes por Lacan de : “maiêutica analítica”249.
Esta maneira de articular dialética e intersubjetividade levou Lacan a
aproximar dialética hegeliana e dialética platônica a fim de falar da “dialética da
consciência de si, tal como ela se realiza de Sócrates até Hegel”, isto contra a
opinião do próprio Hegel250. É claro que tal operação levanta várias questões,
sendo que a maior delas é: estaríamos diante de um retorno da dialética a sua
matriz dialógica ? De fato, Lacan não parece temer tal retorno já que afirma :
Neste sentido, Lacan não fazia outra coisa que seguir a perspectiva de
leitura do hegelianismo francês de sua época. Pois era Hyppolite que perguntava
: “O que significa, originariamente, o termo ‘dialética’ a não ser a arte da
discussão e do diálogo?”252.
Lembremos que o hegelianismo francês da primeira metade do século XX
– meio do qual Lacan saiu – procurou colocar em evidência a estrutura
linguística intersubjetiva que estaria na base da formação do caráter relacional
da consciência-de-si. Até um certo ponto para Kojève, mas principalmente para
Hyppolite, a dialética da identidade e da diferença se desenvolverá no campo
lingüístico do reconhecimento intersubjetivo : “A única possibilidade de resolver
a determinação opaca na transparência do universal, de desatar o nó”, dirá
Hyppolite, “é de comunicar através da linguagem, de aceitar o diálogo” 253; até
porque : “A linguagem diz as coisas, mas ela diz também o eu que fala e
248
LACAN; E, p. 373
249 LACAN, E, p. 109.
250
LACAN, E., p. 292. Lacan faz tal aproximação sem levar em conta a afirmação de Hegel sobre a
maiêutica socrática: "A dialética que visa dissolver (aufzulösen) o particular para produzir o universal
não é ainda a verdadeira dialética" (HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, 19/64).
251
LACAN, S I, p. 317.
252
HYPPOLITE, Logique et existence, Paris: PUF, p. 12
253
HYPPOLITE, idem, p. 23
estabelece a comunicação entre os diversos eu, ela é o instrumento universal de
reconhecimento mútuo”254.
Esta compreensão da dialética como diálogo capaz de dissolver a
opacidade do particular através do reconhecimento intersubjetivo era a chave
que Hyppolite usava para aproximar psicanálise e fenomenologia hegeliana.
Assim, ele falará de uma função de inconsciência da consciência que aproximaria
o inconsciente freudiano e a estrutura de desconhecimentos, fundamento do
movimento próprio a Verneinung. Com tal estratégia, ele podia afirmar que :
“desconhecer não é não conhecer. Desconhecer é conhecer para poder
reconhecer e para poder dizer um dia : eu sempre soube”255. A opacidade do
inconsciente seria anulada através de uma palavra que reconhece um saber
recalcado e esquecido. A dialética aqui é convergente por não reconhecer
nenhum limite a operações de conceitualização e de simbolização próprias ao
saber da consciência. Aqui, como será posteriormente o caso em Habermas e em
Ricoeur, a interpretação analítica aparece como uma auto-reflexão que opera
através de processos de rememoração256.
Um exemplo privilegiado da maneira com que Lacan pensa os usos clínicos da dialética do reconhecimento é dado neste
momento pela sua leitura do caso Dora, de Freud.
O motor da interpretação é dado por inversões da palavra do paciente. O analista procura mostrar o que o
paciente desconhece, ou seja, o que ele pressupõe sem poder pôr. Neste sentido, a interlocução analítica pode permitir ao
sujeito receber sua própria mensagem de uma maneira invertida. O que não é outra coisa que a utilização clínica da
fórmula : "na linguagem, nossa mensagem nos vem do Outro sob uma forma invertida"257.
Esse processo aparece no caso Dora sob a forma de uma sucessão de três inversões dialéticas mas cuja última
não teria sido elaborada por Freud devido à ausência de uma interpretação capaz de levar Dora a reconhecer o valor do
que lhe aparecia como objeto de seu desejo. Vejamos de perto em que consistiam tais inversões e até onde elas podem
nos levar.
Dora era uma histérica levada a Freud devido a uma intenção de suicídio seguida de um desmaio. Ela
apresentava também sintomas de depressão e alguns sintomas de "conversão" motivados pelo desgosto do gozo sexual.
Um desgosto resultante do que Freud chamava de inversão do afeto (Affektverkehrung).
Sua análise se coloca inicialmente sob o signo da reivindicação dirigida ao pai. Ela reclama que o amor de seu
pai lhe fora roubado pela ligação deste com uma amante, a Sra. K. Como em uma espécie de troca, ele a ofereceu às
assiduidades do marido da amante, o Sr. K. A primeira inversão consistirá em mostrar como o sujeito desconhece (no
sentido de denegar) que esta configuração do estado do mundo dos objetos de seu desejo é suportada e pressuposta por
seu próprio desejo. O sujeito coloca como limite uma diferença exterior que, na verdade, é : "a manifestação mesma de
seu ser atual"258. Dora deve pois se reconhecer naquilo que ela nega como absolutamente estrangeiro e fora de seu desejo.
Neste sentido, o primeiro papel da interpretação analítica consistiria em permitir ao sujeito internalizar de maneira
reflexiva uma diferença interna que lhe apareceu inicialmente como um limite externo. E aqui Lacan pensa sobretudo em
afirmações freudianas como : "Ela tinha razão : seu pai não queria levar em conta o comportamento do Sr. K em relação à
sua filha, isto a fim de não ser incomodado na sua relação com a Sra. K. Mas ela havia feito exatamente a mesma coisa. Ela
havia sido cúmplice desta relação e tinha descartado todos os índices que testemunhavam sua verdadeira natureza" 259.
Tal relação de cumplicidade a respeito de um estado de coisas cujo motor primeiro é o desejo do pai revela
como o desejo de Dora estaria vinculado, de maneira constitutiva, ao desejo do Outro paterno. É em torno deste desejo
que gira todo o drama. A primeira inversão leva pois ao desvelamento de uma relação edípica constituída pela
identificação paterna.
O que vimos até agora com Dora foi a assunção pelo sujeito de sua história
através de procedimentos de construção e de interpretação analítica de forte
tendência hermenêutica. O inconsciente aparece como algo que, graças ao
progresso da simbolização na análise, teria sido: enfim, algo que será realizado
no simbólico. O que permitirá a integração exaustiva das determinações
opacas que davam corpo aos conteúdos recalcados.
No entanto, notemos como a interpretação de Lacan terminará. Tomemos, por
exemplo, o segundo sonho trazido por Dora e no qual o dado principal é a
morte do pai. Uma morte anunciada através de uma carta da mãe na qual se
lê: "Agora ele está morto e, se você quiser (?), pode vir". Freud associa tal carta
à carta deixada por Dora na qual ela ameaçava suicidar-se a fim de
amedrontar o pai levando-o a deixar a Sra. K. Isto permite a Freud
compreender a morte do pai como manifestação de um desejo de vingança de
Dora devido a um amor edípico traído. Por outro lado, com a morte do pai, as
interdições sobre o saber da sexualidade seriam levantadas, o que o sonho
figura através da leitura que Dora faz de um dicionário. Para Freud, isto
significa reconhecer o desejo inconsciente de substituir o amor ao pai pelo
investimento libidinal no Sr. K. Mas Freud não desenvolve o fato de que Dora
associa o "se você quiser" aos termos de uma carta da Sra. K que a convidava à
casa do lago. Tal associação poderia revelar o valor da identificação
homossexual de Dora à Sra. K permitindo, com isto, a consolidação de uma
outra via de interpretação.
É neste sentido que Lacan criticará o final de análise proposto por Freud. Nós
vimos como Freud e Lacan reconheciam a importância da identificação de
Dora à Sra. K. Freud chega a falar de um "amor inconsciente no sentido mais
260
FREUD, GW vol. V, p. 214 « Das Bewutmachen des vardrängten Gegensatzes ist dann der Weg,
um dem überstarken Gedanken seine Verstärkung ze entziehen »
261
LACAN, E., p. 220
262
LACAN, S IV, p. 141
263
LACAN, S I, p. 18 (citação modificada)
profundo" e a reconhecer o amor de Dora à Sra. K como elemento central da
história do desejo da paciente. Mas este dado continuará marginal no conjunto
da economia da interpretação freudiana. Ao contrário, Freud prefere ver aí
uma identificação ao lugar do sujeito-rival enquanto lugar da escolha paterna
de objeto. O que lhe permite compreender o comportamento de Dora como o
comportamento de uma mulher ciumenta em relação ao amor do pai. A
questão central para Freud será pois: "por que o amor edípico foi reavivado
neste momento da história do desejo do sujeito?". Sua resposta é
programática: trata-se de um sintoma que visa exprimir aquilo que está
presente no inconsciente: o amor pelo Sr. K. Resultado incontornável se
seguirmos os postulados de uma hermenêutica edípica.
Lacan, por sua vez, prefere levar o final de análise em direção ao
desvelamento daquilo que ele chama de "valor real" do objeto que a Sra. K
representa para Dora: "ou seja, não um indivíduo, mas um mistério, o mistério
de sua própria feminilidade; nós queremos dizer, de sua feminilidade
corporal"264.A fascinação de Dora pela Sra. K encontraria sua raiz na questão
maior para uma histérica: "O que é uma mulher?". Questão que toca a
estrutura de sua posição subjetiva através da sexuação de seu corpo. Mas não
se trata aqui de ver na imagem da Sra. K uma resposta capaz de saturar a
questão sobre o mistério do feminino. Se este fosse o caso, a análise
terminaria na assunção da identificação narcísica com uma imagem na
posição de eu ideal.
Na verdade, a terceira inversão traz uma inversão interna no valor da
imagem do feminino representada pela Sra. K. Ao invés da simples imagem da
fascinação narcísica, ela deve ser desvelada como imagem de um mistério, no
sentido de algo fundamentalmente desprovido de determinação objetiva e de
representação consciente adequada.
Neste sentido, Lacan tenta desdobrar as conseqüências clínicas do fato de
que: "não há simbolização do sexo da mulher enquanto tal"265. Tal ausência de
determinação significante do sexo feminino permite a Lacan afirmar que: "o sexo
feminino tem um caráter de ausência, de vazio, de buraco que faz com que ele
seja menos desejável que o sexo masculino no que ele tem de provocante"266.
Afirmação aparentemente "falocêntrica", mas apenas aparente.
De qualquer forma, para Dora, da imagem da Sra. K poderia advir
exatamente esta imagem "de ausência, de vazio, de buraco" que aparece como
abertura em direção ao reconhecimento da inadequação fundamental do sujeito
às representações imaginárias do sexual. Neste sentido, podemos dizer que a
identificação de Dora à Sra. K poderia ser equivalente a uma dissolução do eu
enquanto totalidade de um corpo sem falhas, já que seria reconhecimento de si
naquilo que é desprovido de determinação objetiva.
Notemos que a terceira inversão é estruturalmente distinta das outras
duas. Enquanto que as duas primeiras eram passagens no oposto, este é o
desvelamento de uma contradição interna à própria determinação da imagem da
Sra. K. Uma contradição entre sua posição de imagem fantasmática que sustenta
o pensamento identificador do eu de Dora e seu valor de negação de toda
264
LACAN, E., p. 220
265
LACAN, S III, p. 198.
266
LACAN, S III, p. 199.
determinidade. Ela indica a tentativa de inscrição do valor do sexual como
negação irredutível.
Tal maneira de compreender o valor da imagem da Sra. K inscreve-se em
um movimento geral que concerne a reformulação lacaniana do pensamento do
sexual. Se a psicanálise vê a realidade sexual como lugar de verdade, como locus
originário do sentido da linguagem dos sintomas, então a melhor estratégia para
impedir que dela advenha uma hermenêutica sexual é transformar o sentido do
sexual em pura opacidade. O sexual será assim presença do negativo e do não-
idêntico no sujeito. O advento do sexual será sempre ligado ao trauma vindo da:
"inadequação radical do pensamento à realidade do sexo"267. Inadequação que
indica como: "o sexual se mostra por negatividades de estrutura" 268. Tal sexual
traumático está vinculado ao real da pulsão que foi forcluído, de onde vem sua
resistência aos procedimentos simbólicos de nomeação.
Vemos assim se desenhar um polo de tensão que deixa a metapsicologia
lacaniana necessariamente instável e móvel. Trata-se de uma tensão entre
imperativos de reconhecimento mútuo e a irreflexividade de um conceito de
sujeito pensado a partir da negatividade do desejo em seu vínculo ao sexual.
Como reconhecer um desejo que é presença do sexual como pura opacidade
vinda de uma negatividade sem inversões? Como produzir o reconhecimento do
real do sexo, que é definido exatamente como aquilo que permanece fora dos
processos de simbolização? Em suma, nesta tensão entre o sexual e os
imperativos de reconhecimento aloja-se uma tensão entre subjetividade e
intersubjetividade que será marca constitutiva do pensamento lacaniano. O motor
do progresso da praxis lacaniana estará pois na tentativa de encontrar o ponto
que impede tal tensão de anular um dos polos, o que, em um caso, poderia
produzir a redução do sujeito à dimensão de um gozo mudo próximo da psicose
(irreflexividade do sujeito sem imperativos de reconhecimento) e, no outro, a
alienação absoluta do particular no genérico da estrutura (imperativos de
passagem ao Simbólico sem irreflexividade do sujeito). Um motor como o
verdadeiro solo dialético da psicanálise lacaniana só pode ser encontrado em
suas considerações sobre a pulsão e o gozo. Assim, o conceito lacaniano de
intersubjetividade era desde sempre marcado por esta tensão entre a negatividade
do que se aloja na subjetividade e a dialética do reconhecimento.
267
LACAN, S XIV, sessão do 18/01/67
268
LACAN, AE, p. 380
“Os antigos colocavam o acento sobre a tendência, enquanto que nós, nós o
colocamos sobre o objeto (...) nós reduzimos o valor da manifestação da
tendência, e nós exigimos o suporte do objeto pelos traços prevalentes do
objeto”269.
Tal proposição lacaniana, feita com uma ponta de nostalgia a respeito da vida
amorosa dos antigos, é, na verdade, a exposição de todo um programa analítico de
cura. Enunciada em 1960, ela trazia atrás de si uma longa reflexão a respeito do
destino do desejo no final de análise. Colocar o acento sobre a tendência desprovida
de objeto aparece aqui como uma solução possível para romper um certo ciclo
alienante do desejo preso às amarras do Imaginário; ruptura fundamental como
indicação da proximidade do final de análise.
A este respeito, vale a pena relembrar alguns princípios básicos que serviram
de guia para as primeiras reflexões lacanianas. Até o final dos anos cinqüenta, há um
conceito central na metapsicologia lacaniana: o desejo puro.
A respeito do desejo puro, notemos que, na teoria lacaniana, a característica
principal do desejo é ser desprovido de todo procedimento natural de objetificação.
Ele é fundamentalmente sem objeto, desejo de "nada de nomeável" 270 . Aqui,
escutamos o leitor atento de Kojève. O mesmo Kojève que tentava costurar o ser-
para-a-morte heideggeriano à Begierde hegeliana a fim de afirmar que a verdade do
desejo era ser “revelação de um vazio”271, ou seja, pura negatividade que transcendia
toda aderência natural e imaginária. Um estranho desejo incapaz de se satisfazer com
objetos empíricos e arrancado de toda possibilidade imediata de realização fenomenal.
Mas por que esta pura tendência que insiste para além de toda relação de objeto
transformou-se em algo absolutamente incontornável para Lacan? Nós podemos
fornecer aqui uma explicação geral.
Lacan desenvolveu uma teoria da constituição dos objetos a partir sobretudo
de considerações sobre o narcisismo. Neste momento do pensamento lacaniano, tanto
os objetos quanto os outros indivíduos empíricos são sempre projeções narcísicas do
eu. Lacan chega a falar do caráter egomórfico dos objetos do mundo empírico. De
onde se segue um narcisismo fundamental guiando todas as relações de objeto, assim
como a necessidade de atravessar este regime narcísico de relação através de uma
crítica ao primado do objeto na determinação do desejo. Lacan é claro a respeito deste
narcisismo fundamental. Ele dirá, por exemplo, que: “A relação objetal deve sempre
submeter-se à estrutura narcísica e aí se inscrever” 272 . E ele dará um caráter
epistemológico a sua crítica do primado do objeto ao afirmar que : “todo progresso
científico [e todo progresso analítico] consiste em dissolver o objeto enquanto tal"273.
Este motivo da crítica ao primado do objeto aparecerá em Lacan
principalmente através da crítica às relações reduzidas a dimensão do Imaginário, já
que o Imaginário lacaniano designa, na sua maior parte, a esfera das relações que
compõem a lógica do narcisismo com suas projeções e introjeções 274. Aqui, faz-se
necessário salientar um ponto importante: o objeto empírico aparece necessariamente
como objeto submetido à engenharia do Imaginário e à lógica do fantasma. A
269
LACAN, S VII, p. 117
270
LACAN, S II, p. 261
271
KOJÈVE, Introduction à la lecture de Hegel, p. 12
272
LACAN, S I, p. 197
273
LACAN, S II, p. 130
274
"Nós consideramos o narcisismo como a relação imaginária central para a relação interhumana "
(LACAN, S III, p. 107)
possibilidade de fixação libidinal a um objeto empírico não-narcísico ainda não é
posta. Assim, a fim de livrar o sujeito da fascinação por objetos que são, no fundo,
produções narcísicas, restava à psicanálise “purificar o desejo” de todo e qualquer
conteúdo empírico. Subjetivar o desejo no seu ponto brutal de esvaziamento. Haveria
uma outra possibilidade através da tentativa de determinar as modalidades possíveis
de uma experiência de objeto que não estivesse inscrita a priori em uma lógica
narcísica. De fato, tal hipótese ganhará relevância na segunda metade da trajetória
intelectual lacaniana, o que pode nos explicar as estratégias posteriores de pensar o
final de análise através da identificação do sujeito com o objeto desprovido de
estrutura de apreensão, ou seja, com o objeto como resto opaco, como dejeto. O que
nos permitirá repensar a questão do destino da categoria de objeto na clínica analítica.
Mas, por enquanto, insistamos na via da purificação do desejo. Lacan
percebeu claramente que a psicanálise nascera em uma situação histórica na qual o
sujeito era compreendido como entidade não-substancial, desnaturada e marcada pelo
selo de uma "liberdade negativa" que lhe permitia nunca ser totalmente idêntica a suas
representações e identificações. A operação de 'purificação do desejo' escondia assim
uma estratégia maior. No fundo, tudo se passava como se Lacan projetasse a função
transcendental própria ao conceito moderno de sujeito em uma teoria do desejo (o que
nos explica como foi possível à psicanálise desenvolver uma teoria não-psicológica
do desejo). A aproximação lacaniana entre, por exemplo, o sujeito do inconsciente e a
estruitura do cogito cartesiano era uma das conseqüências de tal estratégia. O que
Badiou sublinhou bem ao lembrar que: "o que ainda vincula Lacan (mas este ainda é
a perpetuação moderna do sentido) à época cartesiana da ciência é pensar que seja
necessário sustentar o sujeito no puro vazio da substração se quiseremos salvar a
verdade [do regime fantasmático de apresentação de objetos]"275.
Isto permitiu a Lacan concluir que, para além das realizações fenomenais,
haveria uma "permanência transcendental do desejo"276. O que nos envia à
definição canônica do sujeito como falta-a-ser, já que:
O desejo é uma relação do ser à falta. Esta falta é falta de ser propriamente
dita. Não se trata de falta disto ou daquilo, mas falta de ser através da qual o
ser existe277.
Neste caso, esta estranha falta que não é disto ou daquilo é o próprio regime de
experiência subjetiva da estrutura transcendental do desejo. Transcendental
porque a falta-a-ser é uma condição a priori de constituição do mundo dos
objetos do desejo humano. Podemos falar aqui de a priori porque a falta não
seria derivada de nenhuma perda empírica. Para Lacan, não há nada parecido a
uma origem empírica do desejo. O que explica por que Lacan parece tentar fazer
uma verdadeira ' dedução transcendental' do desejo puro. Contrariamente a
Freud, ele não identifica a causa da falta à perda do objeto materno produzida
275
BADIOU, L'être et l'événement, Paris: Seuil, 1988, p. 472. É tal articulação entre
transcendentalidade e negatividade na função do sujeito que permitirá a comentadores como Slavoj
Zizek ler Kant de maneira 'lacaniana', como vemos em afirmações coimo: "o ensinamento maior da
consciência de si transcendental é totalmente oposto à transparência de si absoluta e à presença a si.
Sou consciente de mim mesmo, eu me volto de maneira reflexiva em direção a mim mesmo porque
nunca posso 'encontra mim mesmo' na dimensão numenal, como a Coisa que sou atualmente" (ZIZEK,
Slavoj, The ticklish subject, London: Verso, 2000, p. 304)
276
LACAN, S VIII, p..
277
LACAN, SII, p. 261.
pela interdição vinda da Lei do incesto. É verdade que Lacan afirmará: "o objeto
da psicanálise não é o homem, mas o que lhe falta - não uma falta absoluta, mas
falta de um objeto "278. No entanto, devemos sublinhar que tal objeto que lhe
falta não é exatamente um objeto empírico.
278
LACAN, AE, p. 211
279
LACAN, S XI, p. 172
conceito positivo de intencionalidade. Mas, de qualquer forma, ela disponibiliza
um contrapeso ao problema da heteronomia completa do sujeito.
Por enquanto, podemos fornecer aqui uma hipótese capaz de nos guiar na
compreensão desta posição paradoxal do sujeito lacaniano. Lacan guarda um
elemento próprio à função transcendental presente no conceito moderno de
sujeito, mas não se trata do poder transcendental de constituição das
coordenadas da 'realidade objetiva'. Neste sentido, o sujeito lacaniano não pode
ser um puro sujeito transcendental, já que tal poder não lhe pertence nem de fato
(ele não é um ego transcendental), nem de direito (sua função lógica não consiste
na faculdade de síntese própria a uma unidade sintética de percepções).
Parece-me que, ao articular seu conceito de sujeito através de figuras da
subjetividade moderna tão distantes umas das outras quanto podem ser o cogito
cartesiano, o sujeito da vontade livre kantiana e a consciência desejante de Hegel,
Lacan procura um certo caráter de transcendência ligado, na modernidade, à
articulação do conceito de função transcendental do sujeito.
Não se trata aqui de compreender a transcendência simplesmente como
esta ilusão própria ao uso da razão e sempre presente quando ela procura
aplicar um princípio efetivo para-além dos limites da experiência possível -
noção de transcendência que só pode ser antinômica ao questionamento
transcendental, como bem demonstrou Kant. Lacan é marcado por um
pensamento da transcendência no qual se cruzam as reflexões vindas da
fenomenologia alemã (a transcendência do Dasein) e do hegelianismo (a
negatividade da Begierde). Neste sentido, basta lembrarmos de Kojève falando da
negatividade do desejo como: "o ato de transcender o dado que lhe é dado e que
é em si mesmo"280. "O ato de transcender" deve ser compreendido aqui como
negação que põe a não-adequação entre o ser do sujeito e os objetos da
dimensão do empírico, como apresentação de uma não-saturação do ser do
sujeito no interior do campo fenomenal. Tal transcendência não põe princípio
efetivo algum para além da experiência possível. O que nos explica porque
devemos compreendê-la como transcendência negativa. Podemos assim dizer
que o sujeito para Lacan é uma transcendência sem transcendentalidade, ao
menos sem o caráter constitutivo da objetividade próprio ao sujeito
transcendental. A hipótese aqui consiste em dizer que, com Lacan, a
subjetividade está inicialmente ligada aos modos de manifestação desta
transcendência negativa e a intersubjetividade é o espaço possível de auto-
apresentação da subjetividade.
280
KOJÈVE, Introduction à la lecture de Hegel, op.cit, p. 13
Lógicas do reconhecimento
Aula 14
281
Ver, por exemplo, FROMM, Erich; Arbeiter und Angestellte am Vorabend des Dritten Reiches: eine
sozialpsychologische Untersuchung, Stuttgart: Deutsche Verlags- Anstalt, 1980
282
HABERMAS, Jurgen: A nova intransparência: a crise do Estado de bem estar social e o
esgotamento das energias utópicas, Novos estudos Cebrap, n. 18, setembro de 1987, p. 105
filosófico”283. Aceito que o pretenso papel privilegiado do proletariado não
passava de um “dogma”, o investimento no discurso da luta de classes como eixo
central de organização e constituição das identidades no interior dos embates
políticos perde necessariamente sua força para abrir espaço a outros candidatos.
Mas para a consolidação da centralidade atual do conceito de
reconhecimento, foi necessário que tal perda na crença revolucionária do
proletariado fosse acompanhada de um fenômeno suplementar vinculado à
mutação do sistema de expectativas ligado a um dos eixos centrais do
desenvolvimento das lutas políticas, a saber, o universo do trabalho. Tal mutação
pode ser compreendida se seguirmos Luc Boltanski e Eve Chiapello a fim de
afirmar que, desde as revoltas de maio de 68, um novo “ethos” do capitalismo
começou a ser formado.
A crítica social que se desenvolve a partir de maio de 1968 visava,
principalmente, o trabalho e sua incapacidade em dar conta de exigências de
autenticidade. Visto como o espaço da rigidez do tempo controlado, dos horários
impostos, da alienação taylorista e da estereotipia de empresas fortemente
hierarquizadas, o trabalho fora fortemente desvalorizado pelos jovens de 68.
Vários estudos do início dos anos setenta demonstram consciência dos riscos de
uma profunda desmotivação dos jovens em relação aos valores presentes no
mundo do trabalho, preferindo atividades flexíveis, mesmo que menos
renumeradas.
O resultado de tal crítica teria sido a reconfiguração do núcleo ideológico
da sociedade capitalista e a consequente modificação do ethos do trabalho.
Valores como: segurança, estabilidade, respeito à hierarquia funcional e à
especialização, valores estes que faziam do mundo do trabalho um setor
fundamental de imposição de identidades fixas e rígidas, deram lugar a outro
conjunto de valores vindos diretamente do universo de crítica do trabalho.
Capacidade de enfrentar riscos, flexibilização, maleabilidade, desterritorialização
resultante de processos infinitos de re-engenharia compõem atualmente um
novo núcleo ideológico. Com esta modificação, o universo do trabalho nas
sociedades capitalistas estaria mais apto a aceitar demandas de reconhecimento
da individualidade e a modificar a matriz da experiência de alienação, retirando
tal matriz da temática da espoliação econômica a fim de deslocá-la em direção à
temática da imposição de uma vida inautêntica, ou seja, vida desprovida do
espaço de desenvolvimento de exigências individuais de auto-realização. Com
este deslocamento da espoliação à inautenticidade no interior da crítica do
trabalho, abria-se mais uma porta para secundarizar o conceito de luta de classes
e elevar o problema do reconhecimento a dispositivo político central.
Por fim, devemos lembrar como esta mutação acaba por se encontrar com
outra série de modificações ligadas, por sua vez, à compreensão, ocorrida a
partir dos anos setenta, das lutas de grupos historicamente vulneráveis e
espoliados de direitos (como negros, gays, mulheres) enquanto lutas de
afirmação cultural das diferenças. Isto significa afirmar que elas não foram
apenas compreendidas como setores de uma luta mais ampla de ampliação de
direitos universais a grupos até então excluídos, mas como processos de
afirmação das diferenças diante de um quadro universalista pretensamente
283
HONNETH, Axel; “Redistribution as recognition”, In: FRASER e HONNETH; Redistribution or
recognition, Verso: New York, 2003, p. 116
comprometido com a perpetuação de normas e formas de vida próprias a grupos
culturalmente hegemônicos. Muito colaborou para isto o desenvolvimento das
temáticas ligadas ao multiculturalismo.
Desde 1957, o termo aparecera a fim de descrever a realidade multi-
linguística da Federação Suíça. No entanto, foi no Canadá que o
multiculturalismo chegou a ser implementado, pela primeira vez, como política
de Estado. Marcado tanto pelo conflito entre as comunidades anglófonas e
francófonas quanto por uma elevada taxa de imigração, o Canadá adotou, em
1971, sob o governo social-democrata de Pierre Elliot Trudeau, o Announcement
of Implementation of Policy of Multiculturalism within Bilingual Framework.
Através dele, o país se auto-definia como uma sociedade multicultural que
reconhecia, inclusive, a necessidade de políticas específicas financiadas pelo
Estado visando a preservação de tal multiplicidade. Em 1988, estas políticas
foram reforçadas através da implementação do Canadian Multiculturalism Act.
Vários outros países, majoritariamente anglo-saxões (além dos Países Baixos),
seguiram o quadro canadense de constituição de políticas multiculturais de
Estado. Não é de se estranhar ter sido um filósofo canadense, Charles Taylor, um
dos primeiros a recuperar o conceito de reconhecimento exatamente no interior
de um debate sobre o multiculturalismo.
Esta tendência multicultural foi uma peça hegemônica na orientação
política de esquerda a partir dos anos oitenta devido, principalmente, ao seu
potencial de defesa de minorias étnico-culturais e à possibilidade de ser
acoplada a práticas de institucionalização da diversidade de orientações sexuais.
Ao mesmo tempo, o desenvolvimento de uma reflexão filosófica sensível à
natureza disciplinar de estruturas de poder que visavam impor normatividades
no campo da sexualidade, do desejo, da normalidade psíquica, da estrutura da
família, da constituição dos papeis sociais, forneceu o quadro conceitual para
desdobrar o impacto de tais lutas. Mesmo que autores como Michel Foucault,
Gilles Deleuze e Jacques Derrida não tenham sido responsáveis pela recuperação
da teoria do reconhecimento - o que não poderia ser diferente devido ao anti-
hegelianismo explícito dos dois primeiros e mitigado no caso do terceiro - é
inegável que sua forma de crítica à compreensão marxista tradicional dos
embates políticos, assim como sua defesa ética do primado da diferença em
muito colaboraram para a consolidação de um quadro filosófico mais propício à
recuperação da centralidade do problema do reconhecimento da alteridade
como problema político central. Desta forma, estavam dadas as condições gerais
para que a compreensão filosófica das lutas políticas passasse necessariamente
de uma abordagem centrada no conflito de classe a uma abordagem centrada em
múltiplas formas de reconhecimento no campo da cultura, da vida sexual, das
etnias e no desenvolvimento das potencialidades individuais da pessoa. Uma
multiplicidade de campos que teriam sido levados ao centro da cena política
depois da aceitação tácita da impossibilidade de uma política revolucionária
baseada na instrumentalização da luta de classes.
Sendo assim, ao menos no interior desta leitura, teríamos de admitir que
o conceito de reconhecimento estaria limitado geograficamente à descrição de
lutas sociais em países do chamado primeiro mundo, que já teriam realizado a
integração do proletariado à classe média, assim como já teriam aceito a
necessidade do descentramento de suas matrizes culturais através da abertura à
afirmação tolerante de formas de vida em contínua variação. Não por outra
razão, volto a insistir, um dos primeiros usos da segunda recuperação do
conceito de reconhecimento esteve exatamente vinculado à reflexão sobre a
dinâmica social das sociedades multiculturais, como podemos ver no texto
supracitado de Charles Taylor.
Mas esta leitura não condiz com a realidade histórica do re-aparecimento
do conceito no interior da filosofia social. Como sabemos, em 1992 ele foi
retomado. Ou seja, exatamente no momento em que se inicia a lenta
desintegração das conquistas econômicas dos ditos Estados do Bem estar social,
com o desmantelamento dos direitos trabalhistas, a privatização (gradual ou
total) da previdência e o sucateamento da educação, da saúde e de outros
serviços públicos. Uma desintegração que ocorreu no momento em que vários
teóricos afirmavam entrarmos em uma era “pós-ideológica”, ou seja, marcada
pelo fim da crença em transformações sociais revolucionárias com a
consequente aceitação do horizonte normativo das democracias liberais como
estágio final das lutas sociais.
Isto talvez explique porque críticos - principalmente de matriz marxista,
mas não apenas eles - desta importância dada ao conceito de reconhecimento
insistiram estarmos aqui diante de uma espécie de conceito meramente
compensatório. Pois tudo se passaria como se, dada a impossibilidade de
implementar políticas efetivas de transformação dos modos de produção e luta
radical contra a desigualdade, nos restasse apenas discutir políticas
compensatórias de reconhecimento. Da mesma forma, dado o fato do Capital
aparecer, de maneira agora inquestionável, como única instância capaz de
ocupar o espaço da universalidade no interior do liberalismo das sociedades
multiculturais, nos restaria simplesmente reinventar demandas de
reconhecimento de identidades comunitárias, em suas múltiplas formas,
tentando dar à comunidade um sentido que não se reduzisse a um mero espaço
de restrição. Por fim, dada a impossibilidade de transformações sociais de larga
escala, nos restaria discutir a natureza moral de nossas demandas sociais.
284
HONNETH, Axel; “Redistribution as recognition”, op. cit., p. 114
reconhecimento para suas tradições e formas de vida no interior de um
horizonte capitalista de valor”285.
A estratégia de Honneth baseava-se em uma assimilação do problema da
redistribuição de riquezas a um quadro mais amplo de discussões referentes ao
reconhecimento. Para tanto, foi necessário compreender o sentimento social de
injustiça econômica como expressão possível das “fontes motivacionais do
descontentamento social e da resistência”286. Abria-se assim a possibilidade, ao
menos para Honneth, de criar um quadro motivacional unitário centrado na
ideia de que “sujeitos esperam da sociedade, acima de tudo, reconhecimento de
suas demandas de identidade”287. O que não poderia ser diferente para alguém
que afirma que “sujeitos percebem procedimentos institucionais como injustiça
social quando veem aspectos de sua personalidade, que acreditam ter direito ao
reconhecimento, serem desrespeitados”288. Isto já estava presente em seu
primeiro livro sobre o assunto, Luta por reconhecimento:
285
HONNETH; idem, p. 123
286
Idem, p. 125
287
Idem, p. 131
288
Idem, p. 132
289
Idem, p. 176
290
Idem, p. 177
291
Idem, p. 131. Por procurar desde há muito defender tal perspectiva, Honneth pode afirmar que, em
Marx “a luta de classes não significa, primeiramente, um afrontamento estratégico visando a aquisição
de bens ou de instrumentos de poder. Ela constitui um conflito moral cuja questão é a ‘emancipação’
já que, mais importante do que demandas materiais teria sido o sentimento de
desrespeito em relação a formas de vida que clamam por reconhecimento. Ao
insistir na centralidade da experiência moral do sentimento de “desrespeito”
como motor das lutas políticas, elevando-o a condição de base motivacional para
todo e qualquer conflito, Honneth pode inscrever problemas de redistribuição no
interior do quadro geral de demandas morais. Assim, sendo a vulnerabilidade
social ligada à pauperização compreendida, principalmente, como expressão
material da impossibilidade da realização de exigências morais de respeito, abre-
se as portas para afirmar que “a distinção entre empobrecimento econômico e
degradação cultural é fenomenologicamente secundária”292, já que conflitos por
redistribuição não poderiam ser compreendidos como independentes de toda e
qualquer experiência de desrespeito social.
Notem como Honneth aceita a premissa hegeliana de que a existência de
“obrigações intersubjetivas” seria uma “condição quase natural de todo processo
de socialização humana”. Mas tais obrigações intersubjetivas teriam uma
dinâmica de desenvolvimento caracterizada pela progressão em direção a
formas cada vez mais exigentes de individualidade. Progressão que faz das lutas
e conflitos sociais conflitos éticos marcados pela expectativa de reciprocidade e
estima. No entanto, ele acredita que o Hegel da Fenomenologia do Espírito
reenquadra o problema do reconhecimento em uma teoria da consciência em
seus processos progressivos de automediação. Esta é uma interpretação de
Habermas que consiste a afirmar que o Hegel de maturidade teria perdido o
potencial de uma intersubjetividade primeira, isto em prol do recentramento da
filosofia a partir do sujeito. Isto traria consequências para a filosofia política,
como a tendência a pensar as relações sociais a partir do modelo da relação entre
a consciência e as instâncias de poder. Assim, ao invés da análise dos processos
de mutualidade e dependência intersubjetiva, teríamos um “desenvolvimento
monológico” que explicaria a importância dada às relações individualizadas com
o Estado.
Relações materiais
do trabalho, condição essencial de que depende, ao mesmo tempo, a estima simétrica entre sujeitos e a
consciência individual de si” (HONNETH, Axel; Kampf um Anerkennung: Zu moralischen Grammatik
sozialer Konflikte, Frankfurt: Suhrkamp, 1992, p. 233)
292
Idem, p. 171
existência de uma tendência fortemente cooperativa e comunicacional no
interior das primeiras experiências de interação social. Por esta razão, ela é
fundamental para o projeto de Honneth, assim como para sua critica de modelos,
a seu ver, insuficientes. O filósofo alemão deriva a tese da intersubjetividade
primária da teoria das relações de objeto de Donald Winnicott e sua forma de
compreender as relações de amor e de dependência mútua entre mãe e bebê.
Tais relações de amor constituiriam uma base sólida para o desenvolvimento da
capacidade de ser si mesmo em um outro. Desta forma:
Ou seja, segundo tal perspectiva, levamos para esferas mais amplas da vida social
e para relações afetivas em idade madura a crença na exteriorização tranquila de
necessidades e sentimentos, uma crença que seria resultado da experiência
intersubjetiva de amor e de afirmação de si presente inicialmente na relação
entre mãe e bebê. Tal relação poderia ser chamada de “intersubjetiva” por ela
ser, ao menos segundo Honneth, simétrica. Como se o bebê dependesse da mãe
da mesma forma que a mãe dependeria do bebê, isto no interior de uma relação
de “identificação emocional” onde a criança aprende a adotar a perspectiva de
uma segunda pessoa. Tal mútua dependência poderia resolver-se através da
consolidação de uma posição de cooperação e de segurança emocional que
permitiria, à criança, desenvolver sua “consciência individual de si”. Posição na
qual o amor aparecia como uma “simbiose refratada pelo reconhecimento” e pelo
respeito à autonomia.
Neste sentido, o reconhecimento jurídico como sujeito do direito
forneceria a universalidade de relações que o amor desconhece. Tal
reconhecimento se constitui através de um alargamento histórico progressivo no
qual o sistema jurídico deve ser a expressão de interesses universalizáveis de
todos os membros da sociedade. O que exige a compreensão recíprocas dos
membros da sociedade como livres e iguais. No entanto, o reconhecimento
jurídico diz respeito a qualidades universais que me fazem como pessoa em
geral. Faz-se ainda necessário um nível de reconhecimento que assegure a
posição social de qualidades características que me diferenciam dos demais, sem
que isto implique necessariamente em quebra do princípio formal de igualdade.
Este terceiro nível nos abre ao problema da estima social e se funda na existência
de uma comunidade de valores culturalmente definidos pela coletividade.
293
HONNETH, Axel; Kampf um Anerkennung: zu moralischen Grammatik sozialer Konflikte.
Frankfurt: Suhrkamp, 1992, p. 171
de si pelo outro. Pois a segurança emocional gerada pelo caráter bem sucedido
das demandas de amor no interior do núcleo familiar estaria na base das
demandas sociais de reconhecimento da autonomia individual e da afirmação de
seus sistemas particulares de interesse. Elas estariam também na base da
profunda sensibilidade dos sujeitos para experiências de desprezo e de injustiça.
Desta forma, Honneth constrói uma antropologia psicanalítica para orientar
processos de interação social onde não há lugar para antagonismos insuperáveis.
Antropologia profundamente familiarista capaz de fornecer os fundamentos
morais dos conflitos sociais.
Honneth espera que tal antropologia psicanalítica seja compatível com
aspectos da reflexão sobre conflitos sociais no interior da tradição dialética de
Hegel e Marx. Para ele, a ideia fundamental de Hegel seria que “a luta pelo
reconhecimento constitui a força moral que impulsiona a realidade vital social
humana em direção ao desenvolvimento e o progresso” (HONNETH, 1992, p.
227). Pois a experiência moral de desprezo de minha dignidade de sujeito agente
e desejante estaria na origem dos movimentos de resistência social e de
sublevação coletiva. Sendo assim, o progresso histórico em direção à liberdade
seria a história da realização, cada vez mais universal, de uma antropologia
psicanaliticamente orientada. Mas para Hegel entrar neste horizonte serão
necessários alguns ajustes.
O principal deles está na maneira com a qual Honneth lê a dialética
hegeliana do senhor e do escravo. Honneth reconhece na referida dialética um
“fato transcendental” que aparece como prerrequisito para toda a sociabilidade
humana. Mas, em suas mãos, tal dialética será o movimento de conquista
paulatina de uma capacidade de “auto-restrição” através da qual aprendo a
limitar as ilusões de onipotência de meu desejo ao entrar em contato com a
irredutibilidade do desejo do outro. Desta forma “ego e alter ego reagem um ao
outro restringindo ou negando seus respectivos desejos egoístas” (HONNETH,
2010, p. 30).
Por projetar o conflito de interesses individuais como base da luta
hegeliana de reconhecimento,294 Honneth poderá compreender até mesmo a luta
de classes marxista dentro de um quadro de exigências morais de
autorrealização individual e de estima simétrica entre sujeito. Ele se apoia em
certas tendência detectadas nos escritos político-históricos e nos escritos de
juventude de Marx para afirmar que
294
Como fizeram também Pinkard, 1994 e Habermas, 2004
políticos de Marx, contrariamente a suas análises do capitalismo, interpretam as
lutas de classe a partir da noção de uma ruptura ética.
No entanto, há uma dificuldade importante a ser salientada nesta
estratégia. Vimos até agora como Honneth funda o sofrimento de injustiça e
desprezo, que nos levam à ação política, em um terreno pré-político, marcado
por questões constitucionais normalmente ligadas à discussão sobre a gênese da
individualidade moderna, da “consciência individual de si”. Ou seja, a própria
gênese da individualidade moderna aparece como um fenômeno pré-político.
Algo que deve ser politicamente confirmado, e não politicamente desconstruído.
Desta forma, os sentimentos de injustiça e desprezo são normalmente
compreendidos como resultantes do bloqueio da possibilidade de afirmação
social e de reconhecimento jurídico de traços da identidade individual. Ou seja,
ao menos neste caso, reconhecimento e identidade caminham necessariamente
juntos.
Isto talvez explique porque os exemplos privilegiados de lutas de
reconhecimento para Honneth sejam as lutas pela afirmação das “diferenças
antropológicas” 295 próprias às lutas feministas, assim como aquelas pelos
direitos dos negros e homossexuais. Elas seriam exemplos deste “processo
prático no interior do qual experiências individuais de desprezo são
interpretadas como vivências típicas de todo um grupo, de forma a motivar a
reivindicação coletiva de ampliação de relações de reconhecimento” (HONNETH,
1992, p. 260). Ou seja, experiências de desprezo ligadas a atributos de indivíduos
em afirmação de suas diferenças culturais são interpretadas como violência que
não afetam apenas o Eu individual. No entanto, ainda não saímos da esfera da
afirmação de atributos individuais da pessoa e da construção social de
identidades.
Isto explica, por exemplo, porque sua recuperação do conceito de
“patologias sociais” será, em larga medida, ligada às discussões sobre o bloqueio
nas “condições sociais de auto-realização individual” (HONNETH, 2006, p. 35).
Como se a realização de si devesse, naturalmente, ser pensada respeitando as
estruturas do indivíduo ou, segundo Honneth leitor de Freud, as estruturas do
“ego racional”. Por outro lado, isto nos explica porque os modelos de sofrimento
privilegiados por Honneth sejam a anomia social e o sofrimento de
indeterminação identitária.296
295
Sobre o conceito de “diferença antropológica” ver, sobretudo, Balibar, 2011.
296
Como podemos ver em Honneth, 2005a
pela ordem social. Uma situação como esta não gera anomia, mas, se quisermos
utilizar um termo proposto por Durkheim, “egoísmo” ou, ainda, revoltas políticas
direcionadas ao reconhecimento de particularidades ou à ampliação do direito
de escolha e decisão. Temos anomia, ao contrário, quando as demandas deixam
de ser determináveis, deixam de ter forma específica devido a um
enfraquecimento das normas com sua capacidade de individualização e de
limitação das paixões. Por isto, ao falar das causas sociais do suicídio, Durkheim
deve lembrar que os suicídios motivados pela anomia se distinguem tanto
daqueles motivados por uma individualização excessiva (os suicídios egoístas)
quanto dos motivados por uma individualização insuficiente (suicídios
altruístas). Neste contexto de anomia entra-se em um “estado de
indeterminação” (DURKHEIM, 2005, p. 275) (ou, se quisermos utilizar um
vocabulário de Honneth, em um “sofrimento de indeterminação”) no qual
nenhuma individualização é possível devido ao fato da sociedade estar, entre
outras coisas, submetida à “inorganização característica de nosso estado
econômico” (p. 286) com sua “sede de coisas novas, de gozos ignorados, de
sensações inominadas, mas que perdem todo seu sabor desde que são
conhecidas” (p. 285). Diante de promessas constantes de gozo, produzidas pela
sociedade capitalista em ascensão, toda satisfação limitada é insuportável
exatamente por ser uma limitação, toda escolha identitária é sem sentido
exatamente por ser uma multidão de recusas. Daí as reprimendas de Durkheim
contra “este mal do infinito, que a anomia aporta sempre consigo” (p. 304) e que
só pode produzir cólera, decepção e lassidão exasperada por uma sensibilidade
superexcitada.
Como Durkheim opera com um conceito quantitativo de diferença entre
normal e patológico,297 reconhecerá que um certo grau de anomia é necessário.
Assim, para ele, “toda moral do progresso e do aperfeiçoamento é inseparável de
um certo grau de anomia” (p. 417). No entanto, algo nas condições particulares
do progresso em nossa sociedade produz uma situação anormal e patológica de
anomia. Contra isto, Durkheim sugere um reforço das estruturas institucionais
que passe, sobretudo, pela consolidação de vínculos comunitários ligados aos
agrupamentos profissionais.
Quando recuperar o conceito de patologia social, Honneth irá à sua
maneira partir deste diagnóstico de Durkheim, mas acrescentando um elemento.
Trata-se da compreensão de como, nos últimos trinta ou quarenta anos, esta
situação de anomia social foi institucionalizada, transformando-se em um modo
de gestão do sofrimento social e uma mola propulsora da ideologia neoliberal do
estágio atual do capitalismo. Lembremos aqui de afirmações como:
297
Como fica claro em: DURKHEIM, 2004.
da liberdade tornam-se agora ideologias da desinstitucionalização, é a
emergência de vários sintomas individuais de vazio interior, de
sentimento de ser supérfluo e desprovido de determinação (HONNETH,
2010, p. 207-208).
Como podemos perceber, o diagnóstico não poderia ser mais próximo do quadro
fornecido por Durkheim. Exigências de autorrealização individual se
transformaram em “ideologias da desinstitucionalização”, ou seja, em processo
de enfraquecimento da capacidade de coesão e organização das normas sociais.
Com isto, produz-se uma desregulação das normas sociais paga com patologias
ligadas ao sentimento depressivo de esvaziamento e à incapacidade de ação.
Assim como teóricos sociais como Luc Boltanski e Eve Chiapello (1999),
Honneth compreende claramente como tal anomia virou uma “força produtiva”
da economia capitalista em era de flexibilização e desregulação contínuas. Ele
compreende também, tal como vimos no capítulo anterior, como essa gestão
social da anomia é paga com o desenvolvimento exponencial de patologias
ligadas à desregulação da capacidade de constituir identidades, como a
depressão e seu “cansaço de ser si mesmo”,298 a insegurança narcísica e os
transtornos de personalidade borderline. Mas, como gostaria de insistir, sua
resposta não parece escapar da procura em reconstruir as bases normativas para
institucionalidades capazes de garantir o desenvolvimento bem sucedido de
indivíduos. Ela ignora que o problema não se encontra nos processos de
desinstitucionalização, mas no impacto de outra forma de regulação social ligada
à expropriação psíquica do estranhamento.
298
Ver, a este respeito, o influente livro de Ehrenberg, 2000.