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Lógicas do Reconhecimento

Curso Ministrado no
Departamento de Filosofia
Universidade de São Paulo
Primeiro semestre de 2017

Professor Vladimir Safatle


Lógicas do reconhecimento
Aula 1

No ano de 2011, os países árabes conheceram grandes manifestações populares


pela primeira vez em décadas. Estas manifestações contra governos autoritários
foram catalizadores de descontentamento social, sentimento de injustiça
econômica e invisibilidade política. Dentre várias palavras de ordem utilizadas
em vista à mobilização e à consolidação da revolta, uma foi ouvida de forma mais
insistente. Ela tinha a peculiaridade de ser uma palavra que está entre o
sentimento moral e a demanda política, a saber, “Respeito”.
Este dado aparentemente anódino merece ser salientado. As pessoas não
se deixaram mobilizar imediatamente por um projeto de modificação da
estrutura econômica ou de demandas pontuais sobre direitos e benefícios. Elas
foram às ruas por se sentirem “desrespeitadas”, desprezadas, ou seja, por
entenderem que havia um nível elementar da vida social que lhes faltava, algo
que poderíamos chamar de “fundamento” da vida social. Fundamento no qual
encontramos práticas que explicitam como instituições e estruturas de poder
devem me reconhecer como sujeito político dotado de visibilidade, de voz. Há de
se levar em conta este fato: para além do que poderíamos definir como
motivações latentes, a mais importantes sequências de insurreições populares
do século XXI foi feita em nome de um sentimento profundo de desrespeito.
Há ainda um outro fato que gostaria de trazer a vocês. No ano de 2002,
Kamla Abu Said e sua irmã Amna foram mortas em meio ao conflito Israel-
Palestina enquanto trabalhavam em um fazendo em Gaza. Dias antes, Fatima
Zakarna e seus dois filhos, Bassen e Suhair também haviam sido mortos
enquanto colhiam folhas de uvas nos campos de Kabatyia. Tempos depois, um
palestino cidadão norte-americano que conhecia as vítimas quis publicar um
obituário no jornal San Francisco Chronicle. No entanto, o jornal recusou a
publicação afirmando que “não gostaria de ofender ninguém”. Diante da
repercussão da história, Judith Butler perguntou: é aceitável que a experiência
pública do luto seja vista por alguém como uma ofensa?1. A pergunta era, de fato,
necessária. Pois afirmar que há vidas que não podem ser objeto público de luto,
cujas mortes não podem ser objetos de um trabalho de memória é, sob quaisquer
circunstâncias, moralmente aceitável? Notem que se tratava neste caso de retirar
da vida sua dimensão de experiência que se transmuta em memória, ou seja,
tratava-se de reduzi-la à condição de uma vida sem a possibilidade de habitar o
tempo dos traços que resistem ao esquecimento, dos arquivos que desafiam a
contração do presente, dos corpos que se transformam em virtualidades a
construir outras formas de presença.
A questão que talvez devamos fazer é: não se trataria aqui de anular uma
dimensão (mais uma vez) fundamental do que chamamos de “vida social”?

1
BUTLER, Judith; Precarious life, Verso, p. 32
Desde os gregos, desde Antígona, nos perguntamos se um Estado que impede o
luto público de qualquer um (é há de se insistir aqui neste dimensão de
“qualquer um”), jogando-o em uma nudez da vida sem atributos e sem
virtualidade, tem ainda o direito de existir. Esta pergunta poderia ser mais uma
vez posta, como precisou ser várias vezes postas na história. O que acontece
quando há vidas impedidas de habitar o tempo do luto?
Mas eu gostaria ainda de trazer um terceiro fato. Na década de cinquenta,
o psicanalista Donald Winnicott recebeu uma paciente em seu consultório.
Tratava-se de uma mulher, por volta dos cinqüenta anos, que descobriu ter
construído uma vida na qual: “nada do que se passava realmente era
verdadeiramente importante para ela”2. Winnicott fala de um sentimento de não
“existir de fato”. Pois ela vive em um estado de dissociação no qual a parte “mais
importante dela mesma” encontra espaço em uma outra vida: uma vida
fantasmática. No entanto, nesta vida fantasmática onde ela pode conservar si
mesmo no interior da ilusão de onipotência própria ao que não precisaria se
confrontar com situações concretas para existir, ela descobre que fantasia como
um Outro. Winnicott remete tal alienação a situações infantis nas quais a
paciente, filha mais nova de um casal com várias crianças, relaciona-se com
outros internalizando um mundo já organizado. Assim, por exemplo, ela joga
com as crianças um “jogo dos outros”. Atividade que ela associa ao fantasiar.
Desta forma, ela podia: “observar-se jogando o jogo das outras crianças como se
ela observasse alguém outro no grupo do jardim de infância”3. Maneira de
afirmar que a paciente se sentia, na dimensão da fantasia, presa ao olhar do
Outro, jogando um jogo cujas regras não lhe parecem expressar algo que, de fato,
lhe concerne.
No entanto, a paciente produz um sonho importante para a sequência da
análise. Neste sonho, ela se debatia furiosamente com um tecido que deveria ser
cortado para produzir um vestido. Ela o cortava e recortava, fazia e desfazia, o
que lhe deixava exasperada. A interpretação de Winnicott girará em torno da
noção de “informidade” (formlessness). Tudo se passa como se o sonho mostrasse
como: “o meio ambiente tinha sido incapaz de lhe permitir, durante sua infância,
ser informe ‘recortando-lhe’ a partir de um padrão cujas formas tinham sido
concebidas por outros”4. A partir de tal interpretação, a paciente sente um
profundo sentimento de que, desde sua infância, ninguém havia reconhecido que
ela devia começar por ser informe.
O que estas situações tão distintas entre si tem em comum? Em que
experiência sociais como: manifestações de massa contra o sentimento de
desrespeito, vidas que não podem receber o luto público e uma mulher que se
sente jogando o jogo dos outros e que luta em seus sonhos contra um vestido
potencial por não saber o que fazer com sua informidade diriam respeito a um
problema simétrico? Haveria algo a unificar esses campos dispersos da política,
da moral e da clínica?
Creio que esta é talvez a melhor maneira de começarmos nosso curso
porque, de fato, ao menos para uma certa tradição filosófica, a resposta a darmos
a tais perguntas deveria ser necessariamente positiva. Nesses três casos, há um
nível fundamental da vida comum que foi bloqueado, produzindo com isto

2
WINNICOTT, Donald; Jeu et réalité: l’espace potential, Paris: Gallimard, 1987, p. 44
3
Idem
4
Idem, p. 50
situações que poderíamos chamar de “invisibilidade social”. Invisibilidade esta
que se traduz no sentimento de simplesmente não existir ou de ter uma
existência profundamente mutilada, como alguém preso entre a vida e a morte.
Ou seja, há em todos esses casos, de formas múltiplas, com intensidades
variáveis, a experiência de que a possibilidade de existência está inviabilizada. O
que nos coloca uma questão da maior importância e que certamente não será de
fácil resposta, uma questão que cada uma dessas situações nos coloca, a saber: o
que fenômenos como estes podem nos dizer a respeito do que entendemos por
“existência”?
Claro, há sempre aqueles que darão de ombros a questões como esta
dizendo que a determinação das condições de existência é um problema trivial
que se reduz a verificação de enunciados constatativos. Eles dirão então que algo
existe na medida que pode ser verificado pela percepção em condições normais.
A percepção constataria o que está lá, pronto para ser desvelado. E poderíamos
ainda naturalizar tais “condições normais” afirmando que elas corresponderiam
a padrões normativos gerais dos órgãos humanos. Padrões estes que, por sua
vez, poderiam ser potencializados a partir de instrumentos e condições de
laboratório.
Mas poderíamos também dizer que a determinação das condições de
existência não é dependente de enunciados constatativos. Nós não apenas
constatamos algo quando dizemos que algo existe. Nós produzimos algo, ou seja,
tratam-se de enunciados performativos. Muitas vezes, dizer que algo existe é
inclui-lo em um horizonte de experiência do qual ele não fazia parte, modificar
não apenas o estatuto de algo, mas a própria estrutura de tal horizonte. Dizer
que algo existe é inseri-lo em outra rede de efeitos. Pois a existência não é apenas
um fato, ela é um valor. Isto implicaria, entre outras coisas, colocar em questão
uma das mais fundamentais crenças do senso comum, a saber, a crença em uma
natureza meramente especular da percepção. Como se nossa percepção fosse
apenas um espelho do mundo, que pode ficar opaco às vezes, mas que também
pode ser polido até um grau elevado de translucidez.
Contra tal crença na especularidade da percepção poderíamos insistir
como o mundo humano estabelece uma relação profunda entre existência e algo
que devemos chamar aqui, algo que será o verdadeiro objeto de nosso curso e,
por isto, exigirá um movimento lento e detalhado de definição, de
“reconhecimento”. Se a existência não é um fato, mas um valor é porque toda
existência deve ser, necessariamente, existência reconhecida.
Neste sentido, poderemos dizer que aquilo em comum nos casos que
trouxe a vocês é: todos eles explicitam um sofrimento de inexistência devido à
impossibilidade de realização de exigências de reconhecimento. Ao sair às ruas
exigindo “respeito” é como se falássemos que até agora não existimos como
sujeitos políticos, não fomos reconhecidos no interior das dinâmicas sociais de
poder. Ao não admitir que certas vidas não possam ser objetos de luto, estamos a
dizer ser inaceitável que elas passem à invisibilidade, que lhes sejam negadas as
condições de reconhecimento. Ao dizer que para existir, ela precisava ser
reconhecida como informe, ser reconhecida para além da figura de uma boa
jogadora que joga o jogo dos outros, a paciente de Winnicott adoece por viver em
um mundo no qual as condições de reconhecimento de uma dimensão
fundamental de seu desejo foi negada.
Que este sentimento de reconhecimento negado perpasse a história de
nosso desejo, assim como nossa existência política e as possibilidades de
nomeação no interior da linguagem, isto apenas demonstra como não estamos
diante de dimensões de experiência completamente autônomas entre si e que
cabe à filosofia reconstruir o sistema de implicação entre campos que nossa
época gostaria de nos fazer acreditar que são radicalmente distintos. O que já
pode servir como uma primeira razão para analisarmos conceitos
aparentemente genéricos como “reconhecimento”. Pois talvez sua genericidade
tenha de fato uma função.

Existir é ser reconhecido

Mas voltemos por um instante a ideia de que reconhecimento seria,


principalmente, um modo de determinação de existência. Ao invés de começar por
fornecer a vocês aquela que seria a definição atualmente hegemônica de
reconhecimento, a saber, a relação mútua e simétrica entre indivíduos autônomos
em sua existência social, relação que exige uma mutualidade cooperativa entre
indivíduos, assim como a possibilidade de expressão e realização de seus
interesses autônomos e da consciência de suas auto-limitações recíprocas, eu
gostaria de construir com vocês uma outra compreensão do que está em jogo na
maneira que certa tradição filosófica trouxe à reflexão o problema do
reconhecimento. Eu gostaria de mostrar a vocês durante este curso que tal
definição de reconhecimento, tão presente atualmente na filosofia social, na
reflexão moral, na teoria política, na clínica do sofrimento psíquico, definição
para a qual convergem conceitos como intersubjetividade, ação comunicativa e
cooperação é insuficiente e irredutivelmente normativa.
Para tanto, seria o caso de começar com uma pergunta que se mostrará
simples apenas em aparência, a saber, o que significa dizer que só o que é
reconhecido existe? Que tipo de existência é esta que emerge a partir da
realização de dinâmicas de reconhecimento? Eu gostaria de insistir em três
consequências que definirão o horizonte a partir do qual o problema do
reconhecimento se desenvolverá a partir do século XIX.
A primeira consequência de uma afirmação que vincula reconhecimento e
existência é insistir que a existência é indissociável de algo que poderíamos
chamar de “estrutura implicativa”. Existir é produzir implicações, é estabelecer
relações implicativas, pois relações que transformam ambos os termos em
relação. Reconhecer seu desejo é, por exemplo, faze-lo, ao mesmo tempo, existir
e modificar meu próprio desejo. Esta implicação pode ser restrita, quando o
reconhecimento modificar apenas um conjunto de relações locais e
contextualmente determinada, ou genérica, quando modificar estruturas gerais
válidas em todo e qualquer contexto.
Neste sentido, devemos inicialmente distinguir “reconhecimento” e
“recognição”. Várias são as línguas que operam tal distinção: Anerkennung e
Rekognition, recognition e aknowledge, reconnaissance e recognition. Que nos
aproveitemos da força especulativa da linguagem ordinária. Pois esta distinção
permite a operacionalização de uma diferença filosoficamente relevante.
Reconhecer não deve ser entendido simplesmente como confirmar o que já
conheço, ver de novo, encontrar algo uma segunda vez, como se fosse questão de
re-conhecer, de re-apresentar, de re-presentar. Em todas essas situações,
encontramos o sentido de uma identificação que assimila o não conhecido ao
conhecido, o não visto ao já visto. Vejo alguém ao longe e reconheço se tratar de
um velho conhecido. Nada ocorreu, a não ser a adequação da representação ao
objeto representado. Como nada afinal ocorre quando Sócrates mostra, em
Menon, que o escravo sabe operar a duplicação da área do quadrado através da
dedução da diagonal, mesmo que não se dê conta disto. Sócrates apenas
atualizou o que já estava lá como reminiscência, o escravo apenas, como dirá
Platão, “recuperou a ciência”5. Por isto, não podemos dizer se tratar de
reconhecimento, o escravo não permite emergir algo que lhe modifica e que
modificaria também Sócrates. Sócrates continua mestre, o escravo continua
escravo, mesmo que saiba agora duplicar quadrados. Ele apenas operou uma
recognição.
No entanto, é verdade que este parece o sentido mais imediato do termo
“reconhecimento”, ou seja, confirmar o que já sei, assegurar-me da existência de
algo que já espero. Mas gostaria de insistir que esta identificação de
acontecimentos no interior de um sistema prévio de expectativas não saberia ter
força implicativa alguma. Pois implicar-me com algo é integrar ao meu horizonte
de experiência aquilo que até então dele não fazia parte. Implicação é uma
operação de assimilação do que não aparecia como meu, que pressupõe por isto
formas de transformação. Por isto, reconhecer é indissociável da compreensão
da existência como processo.
A importância histórica da noção de reconhecimento, fato que como
veremos ocorre a partir do início do século XIX no interior do idealismo alemão
através de Fichte e, principalmente, Hegel, só poderia ocorrer em uma era
histórica na qual a existência não será determinada como expressão de uma
substância, mas como desenvolvimento de um processo de alterações contínuas
desdobrando-se em um tempo prenhe de contingências. Desenvolvimento
processual que aparece nesta forma de associar, na mesma época que o
reconhecimento se consolidar como problema filosófico central, determinação
do ser e historicidade, desenvolvimento processual no interior do tempo. Pois se
reconhecer não é apenas produzir a recognição de algo é porque se trata de
permitir que algo implique minha própria existência, abrindo-lhe a um
movimento que não lhe era imanente, ou que só lhe é imanente de forma
retroativa, após o reconhecimento de algo que me aparece como outro.
Neste sentido, a segunda consequência de vincular reconhecimento e
existência é assumir uma tese forte a respeito da relação entre ser e pensar. Pois
afirmar que só aquilo que é reconhecido existe é uma das formas possíveis de
dizer que ser e pensar são pois o mesmo. O que não significa dizer que só o que é
atualmente pensado existe, tese que nos levaria a elevação da gramática atual do
pensamento a condição intransponível de determinação de existência. Na
verdade, temos a proposição de que o que é próprio ao que entendemos por
“ser” é indissociável de formas específicas de reflexividade. Há uma reflexividade
imanente ao ser. Ao pensar, não produzo necessariamente uma clivagem entre as
coisas tal como elas aparecem para mim e as coisas tais como seriam por si
mesmas. Ao pensar, eu permito que as coisas emerjam em sua existência.
Isto, como vocês podem imaginar exige muito a se dizer a respeito do que
pode significar “pensar” neste contexto. Afinal, poderíamos nos perguntar se

5
PLATÃO; Menon, 85d
penso quando represento algo, quando disponho algo diante de mim [como
vemos no sentido da palavra vor-stellen] fazendo do sujeito um fundamento
normativo para toda e qualquer existência? Ou penso quando consigo me
aproximar do que me despossui das minhas condições iniciais de representação
e de apreensão?
A este respeito, lembremos como todo reconhecimento é uma operação
reflexiva. Retomemos o sentido originário da noção de reflexão, este que aparece
pela primeira vez com John Locke e que se define como: “a observação que a
mente tem de suas próprias operações”6. Há uma experiência de auto-apreensão
do pensamento em toda reflexão, uma capacidade do pensamento inspecionar
seu próprio modo de apreensão. Neste sentido, a reflexividade imanente ao
reconhecimento tenta descrever estruturas de correlação fundamental entre
auto-referecialidade e referência a outro, entre relação a si e relação a outro. Esta
é uma das tensões fundamentais a sustentar os processos de reconhecimento e
ela nos leva a uma questão maior: em que condições a auto-referencia é, ao
mesmo tempo, uma referência a outro? Que tipo de autonomia podemos derivar
de uma operação na qual, de forma inesperada, a referência a si e a referência a
outro se confundem? Seria ainda possível falar em identidade no interior das
operações de reconhecimento? Reconhecer algo que é, ao mesmo tempo,
referência a si e referência a outro é ainda reconhecer uma identidade ou
precisaremos de um conceito mais preciso?
Como derivação direita deste ponto, teríamos a última consequência da
afirmação do vínculo entre reconhecimento e existência. Pois a noção de
reconhecimento, e ninguém melhor do que Hegel compreendeu isto, é
indissociável de uma compreensão da natureza conflitual da existência. Existir é
estar sob conflito. Proposição necessária se assumirmos que reconhecer é fazer
existir o que até agora não foi contado como existente, é reconfigurar os modos
atuais de existência. Pois esta exclusão não foi fruto de um acaso. Toda existência
está submetida a um jogo de forças, à perpetuação de uma configuração
específica de forças. Por outro lado, todo reconhecimento efetivo implica
modificações no jogo atual de forças, o que não pode ocorrer sem que emerja a
ordem do conflito. O que não produz conflitos não existe, existir é produzir
conflitos e este talvez seja um dos fundamentos de toda teoria do
reconhecimento digna deste nome.
No entanto, há de se lembrar que conflitos podem assumir, grosso modo,
duas formas fundamentais. Posso entrar em conflito por exigir um lugar no
interior do campo atual de visibilidade. Exijo a partilha de certos atributos, o
exercício de certos direitos que não me foram até agora conferidos. Neste caso,
notem como aceito a existência de algo como uma “gramática social de conflitos”.
Há uma gramática pressuposta que traduz os conflitos às determinações
possíveis e internas a um campo comum de regulação atualmente em operação.
Eu não coloco em questão o exercício de direitos e a determinação de atributos,
eu apenas exijo que eles também sejam aplicados a mim. Como se diz, eu peço o
que é meu.
Mas há situações nas quais posso entrar em conflito a respeito da
existência ou não de uma gramática comum de regulação. Posso dizer que o
conflito é a respeito da existência da própria gramática. Posso questionar que

6
LOCKE, John; Essay concerning the human understanding, Livro II, Capítulo I, parágrafo 4
exista uma gramática social de conflitos partilhada potencialmente por todos.
Assim, fica claro que posso ter um conflito sob regras e um conflito sobre regras e
este segundo caso é certamente o mais complexo. Pois este conflito colocará uma
questão fundamental a respeito dos modos de reconhecimento. Como
reconhecer o que nega a própria existência de uma gramática atual de condições
de reconhecimento? O que gostaria de mostrar é que, longe de uma simples
aporia, temos aqui uma dinâmica estruturante de algumas de nossas
experiências fundamentais.

Um retorno a Hegel

Recapitulando. Temos então na temática do reconhecimento um modo de


determinação de existência que é, ao mesmo tempo, implicativo, reflexivo e
conflitual, com níveis diversos de conflitualidade. O que gostaria de fazer neste
curso é não apenas descrever a emergência histórica deste conceito de
reconhecimento implicativo, reflexivo e conflitual, mas também expor sua
presença no pensamento contemporâneo, sua capacidade de tensionamento das
reflexões políticas, morais e clínica da vida contemporânea. Neste sentido, o
curso tem uma função dupla.
Em um primeiro momento, será questão de descrever como o problema
do reconhecimento aparece no interior do idealismo alemão. Veremos como é
através do problema do reconhecimento que se inicia o que poderíamos chamar
de “guinada materialista do idealismo”. Pois o reconhecimento nos abre para a
tematização da gênese das estruturas da consciência através das relações
concretas de trabalho, desejo e linguagem. Se a consciência só é enquanto
reconhecida, então serão os campos concretos de reconhecimento que
determinarão sua estrutura, seus modos de apreensão e pensamento. A filosofia
deverá assim se direcionar à compreensão das modalidades concretas de
trabalho, de desejo e de linguagem enquanto expressões de uma gênese social da
consciência. Gênese esta que demonstra como toda proposição de validade
deverá ser historicamente situada.
Mesmo que a emergência do conceito, em sua forma explícita, deva ser
remetida a Fichte e seus Fundamentos do direito natural, é com Hegel que
encontramos o pleno desenvolvimento do problema do reconhecimento, isto em
um movimento que perpassa seus textos de juventude (em especial o
manuscrito intitulado Sistema da eticidade) até alcançar a Fenomenologia do
Espírito, para ser retomado na Enciclopédia e nos Princípios da Filosofia do
Direito. Nós faremos este trajeto procurando mostrar como ele explicita as fontes
de uma dialética materialista. Ou seja, a tese a ser defendida aqui é: o problema
do reconhecimento é a maneira hegeliana de retirar a filosofia de uma orientação
transcendental, integrando uma perspectiva genética das estruturas da
consciência que nos permite a tematização do caráter formador da história e dos
processos materiais de organização do trabalho, de determinação do desejo e
realização social da linguagem.
Em Hegel, a temática do reconhecimento será ainda uma maneira
inovadora de compreender a natureza dos conflitos sociais. No entanto, aqui
veremos uma segunda hipótese. Pois há de se perguntar o que teria de realmente
inovador na maneira compreender conflitos sociais não apenas como conflitos
de redistribuição de riquezas, de revolta contra a espoliação e contra a ausência
de diretos dados a certas classes privilegiadas, mas como lutas por
reconhecimento. Pois a questão fundamental só pode aparecer com a pergunta:
mas, afinal, o que Hegel tem em vista quando insiste em uma dimensão
estruturante da luta por reconhecimento na determinação de todo e qualquer
sujeito?
Como veremos, esta pergunta é mais complicada do que poderia
inicialmente parecer. No entanto, ela é decisiva se não quisermos entrar na
ilusão retroativa que consiste a encontrar em toda filosofia sensível à
importância das relações intersubjetivas (como Rousseau, Hobbes, Locke ou até
mesmo Pascal e os moralistas franceses com sua consciência do caráter
constitutivo do amor-próprio e da estima na determinação social dos sujeitos) a
presença implícita do problema do reconhecimento. Hegel está a pensar em uma
dificuldade bastante específica vinculada a emergência de um conceito de sujeito
cujas determinações ontológicas será necessário precisar. Pois veremos como
Hegel lembra que há vários níveis de reconhecimento, mas há um nível
fundamental cuja falta implicará necessariamente uma alienação social
determinante.
Neste sentido, lembremos como, por exemplo, a propriedade é uma forma
de reconhecimento. Ter uma propriedade é exigir que outros reconheçam minha
posse, é levar outros a verem, em minhas propriedades, uma determinação
fundamental de minha pessoa. Da mesma forma, o contrato é um regime de
reconhecimento, pois ele implica meu reconhecimento como sujeito provido de
certos direitos de gozo de bens, de usufruto. A pessoa é, por sua vez, outro
regime de reconhecimento que me define como objeto de normatividades
jurídicas específicas. A identidade social é, por fim, também uma forma de
reconhecimento. Mas será algo parecido a tais determinações que Hegel tem em
vista? As lutas por reconhecimento das quais fala Hegel seriam lutas sociais
levadas a cabo por sujeitos que querem ser reconhecidos como pessoas, como
proprietários, como portadores de direitos assegurados por relações contratuais,
como identidade sociais? Ou Hegel está a dizer que há uma dimensão de
reconhecimento para além de tais determinações e é ela que nos coloca
problemas reais, é ela que, para nós, é difícil a pensar.
Notem como esta questão nos é contemporânea. Pois uma corrente
fundamental das discussões contemporâneas de reconhecimento, esta que
apareceu no interior da Terceira geração da Escola de Frankfurt (em especial
Axel Honneth) dirá ainda hoje, entre outras coisas, que: “sujeitos esperam da
sociedade, acima de tudo, reconhecimento de suas demandas de identidade”7. O
que não poderia ser diferente para alguém que afirmará: “sujeitos percebem
procedimentos institucionais como injustiça social quando veem aspectos de sua
personalidade, que acreditam ter direito ao reconhecimento, serem
desrespeitados”8.
Afirmações como estas colocam no horizonte regulador dos processos de
reconhecimento um conceito de “integridade pessoal” cujo pressuposto
fundamental é a naturalização de facto das estruturas das noções psicológicas de
“indivíduo”, “identidade” e “personalidade”. A consequência maior desta
pressuposição será definir a própria gênese da individualidade moderna como

7
HONNETH, Axel; “Redistribution as recognition: a response to Nancy Fraser” in: HONNETH, Axel
and FRASER, Nancy; Redistribution or recognition, Nova York: Verso, 2003, p. 131
8
Idem, p. 132
um fundamento normativo pré-político para as dinâmicas sociais de
reconhecimento, ou seja, como horizonte valorativo de função transcendental
que funciona como um princípio formal de regulação das expectativas sociais de
emancipação. Algo que deve ser politicamente confirmado, e não politicamente
desconstruído.
Neste ponto faz sentido retornar a Hegel. De fato, é isto que gostaria de
propor a vocês na primeira parte de nosso curso, a saber, um retorno a Hegel.
Gostaria de mostrar como toda sua teoria do reconhecimento é construída como
uma crítica exatamente ao caráter regulador da individualidade moderna e seus
conceitos de pessoa, identidade e personalidade. Talvez vocês já devam ter
tomado conhecimento da tese de que a filosofia hegeliana seria a elaboração
filosófica de três acontecimentos maiores para a formação da individualidade
moderna e seu princípio de subjetividade, a saber, a reforma protestante e sua
noção de interioridade, a revolução francesa e seu sujeito universal de direitos, a
ascensão do livre-mercado e seus indivíduos que são proprietários de si, que
definem sua liberdade sobretudo como auto-pertencimento (self-ownership).
Sem desconsiderar a relação da filosofia hegeliana à elaboração
especulativa de tais acontecimentos históricos, gostaria de mostrar como há
outra leitura possível. Digamos que Hegel elabora filosoficamente a reforma
protestante, mas a partir de sua noção de conflito e resistência. Da mesma forma,
a revolução francesa, mas sua noção de “revolução” que abala o enraizamento
das práticas e modos de julgamentos em costumes, tradições e transmissões. Por
fim, Hegel leva em conta a ascensão do livre-mercado, mas a partir de sua
dinâmica paradoxal de produção de riqueza e aumento da espoliação, ou seja, de
sua regulação social imperfeita. Isto cria uma dupla tarefa de, ao mesmo tempo,
saber dar visibilidade a uma subjetividade capaz de colocar em questão tudo o
que aparecia arraigado em hábitos e tradições, abrindo espaço a uma potência de
negação até então nunca vista, e produzir institucionalidades que não repitam a
estrutura paradoxal do livre-mercado.
Tal situação produzirá a emergência de um conceito de sujeito
absolutamente singular que será recuperado em momentos maiores do
pensamento dos séculos XIX e XX. Neste sentido, gostaria de aproximar tais
questões que veremos em Hegel do horizonte de constituição da crítica de Marx
à alienação. Ou seja, trata-se de afirmar que há uma teoria do reconhecimento na
base da crítica marxista das sociedades capitalistas e de seus mecanismos de
alienação no trabalho. Teoria que só pode ser legível na linha direta das relações
entre Hegel e Marx. A crítica social de Marx não é apenas uma crítica da
espoliação econômica, sua critica da propriedade não é apenas uma crítica
econômica. Ela é a reflexão sobre um regime de sofrimento social, a saber, a
alienação, resultante de bloqueios em processos de reconhecimento. Por isto, ela
não é apenas uma crítica econômica, mas também uma crítica política e mesmo
moral.

Dois modos de reconhecimento

Feito isto, eu gostaria de apresentar a vocês dois modelos de recuperação


da temática do reconhecimento no século XX. Um estará ligado à filosofia
francesa contemporânea e seus desdobramentos. Ele se inicia com um
comentário da Fenomenologia do Espírito, feito por Alexandre Kojève e se
desdobrará de forma hegemônica até os anos cinquenta. O outro estará ligado a
segunda e terceira geração da Escola de Frankfurt, assim como a certos setores
da filosofia anglo-saxã sensíveis ao pensamento hegeliano, e se desdobrará,
principalmente, do início dos anos noventa até hoje.
O primeiro modelo aparece nos anos trinta através da elevação da luta
por reconhecimento a eixo central de uma interpretação de Hegel produzida na
França. Tal interpretação articulava temáticas de Heidegger a Hegel e Marx,
estava fundada na elevação do desejo a eixo fundamental de análise dos
processos sociais de reconhecimento. Sartre, Merleau-Ponty, Lacan, Bataille,
Blanchot, Eric Wail, Raymond Aron. Todos eles foram, de uma forma ou outra,
influenciados pela construção do campo de problemas propostos por Kojève.
Poderíamos começar por nos perguntar por que foi apenas nos anos
trinta que a tematização específica do problema do reconhecimento emergiu
novamente. Qual é a configuração histórica que produz esta emergência
conceitual filosófica? A hipótese que gostaria de trabalhar com vocês é: foi a
constituição de um horizonte revolucionário nos anos vinte (Revolução Russa,
Revolução alemã abortada etc.) que fará a problemática do reconhecimento
emergir outra vez, da mesma forma como foi o horizonte de Revolução Francesa
que levou Hegel a tematizar as dinâmicas de reconhecimento a partir da
desestabilização das relações de dominação e servidão, da emancipação em
relação à servidão (lembraria aqui de intepretações, como a de Susan Buck-
Morss, que verão na revolução dos escravos no Haiti uma das referências
importantes da dialética hegeliana do senhor e do escravo 9). A presença de um
horizonte revolucionário efetivo leva a filosofia a tematizar reversões de poder
em relações de dominação e servidão que abrem a possibilidade de uma
existência emancipada a partir do reconhecimento do desejo. Ou seja, é neste
momento que o desejo aparecerá como categoria política pela primeira vez de
forma clara no século XX. Como se as possibilidades abertas pelas reversões das
relações de poder nos levassem necessariamente à tematização da natureza
política do desejo, à tematização dos regimes de sua alienação como condição
fundamental de emancipação social.
Esta perspectiva será desdobrada e ganhará novas inflexões nos trabalhos
de dois dos mais atentos alunos de Kojève, a saber, Jacques Lacan e Georges
Bataille. Por isto, gostaria de mostrar a vocês como a temática do
reconhecimento do desejo se desdobrará nos dois casos, seja através de uma
teoria do desejo que visa abrir a uma existência capaz de se afirmar contra os
mecanismos de alienação e suas formas de sofrimento psíquico (Lacan), seja
através de uma teoria da soberania que se colocará como contraposição à
reprodução material da sociedade do trabalho (Bataille). Lacan será responsável
por compreender sintomas, inibições e angústias que produzem o sofrimento
psíquico como déficits de reconhecimento a serem tratados por uma clínica
desmedicalizada, baseada na reorientação da palavra do analisando. Veremos os
detalhes deste modelos, assim como sua vinculação a um horizonte mais amplo
de recuperação da temática do reconhecimento.
No entanto, haverá um segundo modelo de recuperação da temática do
reconhecimento. Este não será solidário de um horizonte revolucionário, mas de
uma certa retração das potencialidades de transformação social global, com a

9
Ver BUCK-MORSS, Susan; Hegel, Haiti and universal history, University of Pittsburgh Press, 2009
emergência de novos campos de conflitos sociais ligados ao sentimento de
desprezo social por grupos mais vulneráveis. Neste contexto, a noção de políticas
de reconhecimento retorna inicialmente sob a forma de reflexões sobre as
potencialidades imanentes a sociedades multiculturais (Charles Taylor) para se
transformar, ao final, no eixo de uma reconstrução sistêmica dos potenciais
normativos de uma sociedade capaz de preencher exigências de estima recíproca
e respeito mútuo de indivíduos (Axel Honneth).
Eu gostaria de mostrar como esses dois modelos representam uma
espécie de embate a respeito das potencialidades imanentes a uma teoria do
reconhecimento, como eles exploram tendências diversas internas às estratégias
hegelianas. Ao final, eu gostaria de propor a vocês um eixo de desdobramento
contemporâneo da temática do reconhecimento que dê conta de uma teoria da
emancipação adaptada à nossa era histórica. Tal teoria procurará deslocar a
discussões sobre liberdade para fora das estratégias próprias à afirmação da
autonomia, isto em uma tentativa de recuperar potencialidades próprias ao
primeiro modelo de reconhecimento proposto no interior da filosofia
contemporânea francesa. Ela procurará pensar determinações sociais para além
da estruturação social da identidade, recuperando com isto um elemento a meu
ver fundamental para a formação de sujeitos em Hegel e Marx.
Lógicas do reconhecimento
Aula 2

Eu gostaria de começar nosso curso a partir de uma reflexão sobre a emergência


do pensamento do conflito social no interior da filosofia moderna. Ou seja, para
entender o que estava em jogo na constituição do problema do reconhecimento
no início do século XIX, precisamos começar por nos perguntar em que condições
a ideia de conflito aparece como o fundamento para a caracterização da natureza
dos laços sociais no século XVII, como ela aparece e que tipo de questões tal
emergência produz. Neste sentido, é inegável que a referência central é a teoria
social de Thomas Hobbes. Não que Hobbes tenha uma teoria do reconhecimento.
Na verdade, com Hobbes a filosofia moderna apresenta a matriz de uma teoria
do conflito social claramente fundada em uma antropologia e capaz de produzir
uma reflexão sobre a constituição das instituições e do Estado. No entanto, a
dimensão do conflito social não será inscrita no interior de dinâmicas de
reconhecimento. Ela não poderá ser inscrita, já que o conflito será expressão, na
verdade, de uma antropologia da dominação, de uma antropologia que visa
mostrar como laços sociais só podem ser, inicialmente, relações de dominação e
servidão. Ou seja, a sociedade instaura-se a partir de relações tendencialmente
assimétricas.
Como estas relações assimétricas não podem, para Hobbes, desembocar
em dinâmicas de reconhecimento, elas servirão para a constituição daquilo que
poderíamos chamar de fundamento fantasmático para a legitimação do poder
soberano. Pois como não é possível passar do conflito ao reconhecimento, o
conflito fica reduzido à condição de horizonte latente de destruição potencial do
laço social. Um horizonte que será continuamente mobilizado pelo poder
soberano como sua estratégia de legitimação e de paralisia das transformações
na estrutura de poder da vida social. Neste sentido, podemos dizer que a reflexão
de Thomas Hobbes tem o interesse de mostrar o tipo de relação de poder que
emerge quando a vida social é incapaz de abrir espaço a dinâmicas de
reconhecimento. Hobbes coloca, a sua maneira, o problema que as teorias do
reconhecimento de Hegel e teóricos posteriores tentarão resolver.

O fantasma da guerra total

Partamos da definição célebre de Hobbes:

Durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz


de mantê-los todos em temor respeitoso eles se encontram naquela
condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens
contra todos os homens10.

Daí porque: “a origem de todas as grandes e duradouras sociedades não


provém da boa vontade recíproca que os homens teriam uns para com os outros,

10
HOBBES, Thomas; Leviatã, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 109.
mas do medo recíproco que uns tinham dos outros”11. Esta definição determina
uma das condições centrais do estado de natureza, a saber, a insegurança e a
guerra iminente. Uma guerra que não é apenas o tempo da batalha, mas a
disposição contínua à violência contra o outro. É uma reflexão sobre a guerra que
funda a reflexão política moderna. Ou seja, o problema político fundamental em
Hobbes estará ligado ao destino da destrutividade. A saída do estado de natureza
e de sua guerra de todos contra todos, estado este resultante de uma igualdade
natural que não implica consolidação da experiência do bem comum mas conflito
perpétuo entre interesses concorrenciais, se faria pelas vias da internalização de
um “temor respeitoso” constantemente reiterado e produzido pela força de lei de
um poder soberano. Pois:

se os bens forem comuns a todos, necessariamente haverá de brotar


controvérsias sobre quem mais gozará de tais bens, e de tais
controvérsias inevitavelmente se seguirá o tipo de calamidades, as quais,
pelo instinto natural, todo homem é ensinado a esquivar12.

Proposição que ilustra como as individualidades seriam animadas por algo como
uma força de impulso dirigido ao excesso. Não pode haver bens comuns porque
há um desejo excessivo no seio dos indivíduos, desejo resultante da “natureza
ter dado a cada um direito a tudo”13 sem que ninguém esteja assentado em
alguma forma de lugar natural. Como lembrará Leo Strauss, a respeito de
Hobbes: “o homem espontaneamente deseja infinitamente” 14 . Tal excesso
aparece, necessariamente para Hobbes, não apenas através do egoísmo
ilimitado, mas também através da cobiça em relação ao que faz o outro gozar, da
ambição por ocupar lugares que desalojem aquele que é visto preferencialmente
como concorrente. Pois o excesso, como é traço comum de todos os homens, só
pode acabar como desejo pelo mesmo. “Muitos, ao mesmo tempo, têm o apetite
pelas mesmas coisas”15. A guerra será inevitável se lembrarmos que o direito
natural (jus naturalis) é o direito de tudo fazer para preservar minha própria
natureza, ou seja, minha vida. Da mesma forma, a lei natural (lex naturalis)
prescreve a proibição de fazer e aceitar aquilo que è destrutivo à minha vida.
Assim, Hobbes descreve como o aparecimento histórico de uma sociedade de
indivíduos liberados de toda forma de lugar natural ou de regulação coletiva
predeterminada só pode ser compreendido como o advento de uma “sociedade
da insegurança total”16.
Notemos pois como o conflito entre indivíduos se dá como consequência
necessária da expressão da natureza de seus desejos. É na verdade uma reflexão
sobre o desejo como disposição humana fundamental que inaugura uma das
bases da filosofia política moderna. O que demonstra como o desejo é, para os
modernos, uma categoria política por excelência. Segundo Hobbes, os desejos
são miméticos. Deseja-se o mesmo que o outro, vejo como o outro deseja para

11
HOBBES, Thomas; Do cidadão, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 28
12
HOBBES, Thomas; Do cidadão, op. cit., p. 7
13
Idem, p. 30
14
STRAUSS, Leo; The political philosophy of Thomas Hobbes, University of Chicago Press, 1963, p.
10
15
HOBBES, Do cidadão, p. 30
16
CASTEL, Robert; L’insécurité sociale: qu’est-ce qu’être protégé?, Paris: Seuil, 2003, p. 13
saber como desejar, ou seja, há desde o início uma certa forma de dependência
entre os seres humanos, mas esta racionalidade mimética não se traduz em
empatia ou tendência à cooperação. Ela se traduz em rivalidade e violência
direta. É a expressão do desejo que coloca os indivíduos na rota de uma luta de
vida ou morte. No entanto, esta luta não pode ser regulada pelos próprios
contendores. Dela, não emerge nada a não ser um impasse, já que todos os
indivíduos são portadores de força relativamente igual. A força maior de um não
irá muito mais além do que a força de dois ou três unidos. A luta só pode ser
superada então através da introdução de um terceiro elemento, que neutraliza a
rivalidade da relação dual, a saber, através da instauração do direito e do Estado.
No entanto, há de se entender melhor qual é a natureza deste direito. É ele
expressão da liberdade dos indivíduos e sua capacidade de criar instituições? Ou
é o Estado a expressão de uma coerção consentida, de uma restrição legítima
como condição para a não desagregação do laço social? Qual a natureza do pacto
que produz o advento do Estado?
A fim de responder tal questão percebamos que é contra a destrutividade
amedrontadora desse excesso que coloca os indivíduos em perpétuo movimento,
fazendo-os desejar o objeto de desejo do outro, levando-os facilmente à morte
violenta, que se faz necessário o Estado. Ou seja, como nenhuma forma de pacto
imanente entre indivíduos é possível, como a própria figura do indivíduo
portador de interesses já é a consolidação da inevitabilidade do conflito, já que
luto pelos meus interesses a despeito dos interesses do outro, não haverá outra
saída para a regulação social que o aparecimento de uma força externa chamada
de “governo” capaz de estabelecer um pacto feito da auto-restrição mútua e da
limitação de si.
Notemos, no entanto, um ponto importante. Este estado de natureza é
composto de indivíduos que parecem naturalizar princípios de conduta baseados
na concorrência, no sentimento de posse e na propriedade. Daí porque Hobbes
dirá que os três principais motivos de conflito são: a concorrência, a
desconfiança e a glória. Ou seja, e esta é uma tese avançada pela primeira vez por
Macpherson no clássico A teoria do individualismo possessivo, tudo se passa como
se Hobbes tivesse naturalizado a emergência do indivíduo moderno liberal em
situação de ator animado pela exigência de reconhecimento de seus interesses,
colocando-o no fundamento de uma antropologia normativa do humano. Mesmo
sem ser exatamente um teórico liberal, já que Hobbes submete o direito da
propriedade individual às condições de sobrevivência do Estado, vemos
claramente como sua teoria política é, na verdade, resultado da naturalização
antropológica dos pressupostos imanentes à individualidade liberal.

O medo como afeto que funda o laço social

Neste sentido, há de se estar atento para o circuito de afetos que


constituirá o fundamento possível desta forma de vida social. Pois a
possibilidade mesma da existência do governo e, por consequência, ao menos
neste contexto, a possibilidade de estabelecer relações através de contratos que
determinem lugares, obrigações, previsões de comportamento, fornecendo à
sociedade sua racionalidade, estaria vinculada à circulação do medo como afeto
instaurador e conservador de relações de autoridade. A emergência do indivíduo
moderno é indissociável da elevação do medo à condição de afeto social central.
Ninguém melhor que Carl Schmitt descreve os pressupostos desta passagem
hobbesiana do estado de natureza ao contrato fundador da vida em sociedade:

Este contrato é concebido de maneira perfeitamente individualista. Todos


os vínculos e todas as comunidades são dissolvidos. Indivíduos
atomizados se encontram no medo, até que brilhe a luz do entendimento
criando um consenso dirigido à submissão geral e incondicional à
potência suprema17.

Notemos o sentido da elevação do medo como afeto político instaurador


de laços sociais. Esse medo teria a força de estabilizar a sociedade, paralisar o
movimento e bloquear o excesso das paixões, viabilizando assim a perpetuação
de nossas formas sociais. Isto leva comentadores, como Remo Bodei, a insistir
em uma “cumplicidade entre razão e medo”, não apenas porque a razão seria
impotente sem o medo, mas principalmente porque o medo seria, em Hobbes,
uma espécie de “paixão universal calculadora” por permitir o cálculo das
consequências possíveis a partir da memória dos danos, fundamento para a
deliberação racional e a previsibilidade da ação18. Ou ainda, como dirá Esposito,
em Hobbes, o medo “não determina apenas fuga e isolamento, mas também
relação e união. Não se limita a bloquear e imobilizar, mas ao contrário, leva a
refletir e neutralizar o perigo: não tem parte com o irracional, mas com a razão. É
uma potência produtiva. Politicamente produtiva: produtiva de política”19. Por
isto, o medo ligado à força coercitiva da soberania, ou seja, o medo que tenho do
soberano, deve ser visto apenas como certa astúcia para defender a vida social
de medo maior:

porque os vínculos das palavras são demasiado fracos para refrear a


ambição, a natureza, a avareza, a cólera e outras paixões dos homens, se
não houver o medo de algum poder coercitivo – coisa impossível de supor
na condição de simples natureza, em que os homens são todos iguais, e
juízes do acerto dos seus próprios temores (2003, p. 119).

É verdade que Hobbes também afirma: “As paixões que fazem os homens
tenderem para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são
necessárias para uma vida confortável e a esperança de consegui-las por meio do
trabalho”20. Ou seja, parece não haver apenas um afeto, mas três: medo, desejo e
esperança. Da mesma forma, ele lembra que, sendo a força da palavra demasiado
fraca para levar os homens a respeitarem seus pactos, haveria duas maneiras de
reforçá-la: o medo ou ainda o orgulho e a glória por não precisar faltar com a
palavra. Tais considerações parecem abrir espaço à circulação de outros afetos
sociais, como a esperança e um tipo específico de amor-próprio ligado ao
reconhecimento de si como sujeito moral. Renato Janine Ribeiro, por exemplo,
insistirá que “pode-se reduzir a pares a multiplicidade das paixões: medo e

17
SCHMITT, Carl; Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un
symbole politique, Paris: Seuil, 2002, p. 95.
18
BODEI, Remo; Geometria delle passioni: Paura, speranza, felicità – filosofia e uso politico, Milão:
Feltrinelli, 2003, p. 86.
19
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op.cit., p. 6
20
HOBBES, Thomas; Leviatã, p. 111
esperança, aversão e desejo ou, em termos físicos, repulsão e atração. Mas não é
possível escutar a filosofia hobbesiana pela nota só do medo, que não existe sem
o contraponto da esperança”21.
No entanto, a antropologia hobbesiana faz com que tais afetos circulem
apenas em regime de excepcionalidade, o que fica claro em afirmações como: “de
todas as paixões, a que menos faz os homens tender a violar as leis é o medo.
Mais: excetuando algumas naturezas generosas, é a única coisa que leva os
homens a respeitá-las”22. Faltaria à maioria dos homens a capacidade de se
afastar da força incendiária das paixões e atingir esta situação de esfriamento na
qual o vínculo político não precisaria fazer apelo nem ao temor nem sequer ao
amor (que, enquanto modelo para a relação com o Estado, acaba por construir a
imagem da soberania à imagem paterna, modelando a política na família23). Ou
seja, o esfriamento das paixões aparece como função da autoridade soberana e
condição para a perpetuação do campo político, mesmo que tal esfriamento se
pague com a moeda da circulação perpétua de outras paixões que parecem nos
sujeitar à contínua dependência.
Por isto, mais do que expressão de uma compreensão antropológica
precisa, que daria a Hobbes a virtude do realismo político resultante da
observação desencantada da natureza humana, seu pensamento possui como
horizonte uma lógica do poder pensada a partir de uma limitação política, no
caso, a impossibilidade de pensar a política para além dos dispositivos que
transformam o amparo produzido pela segurança e pela estabilidade em afeto
mobilizador do vínculo social. Política na qual “o protego ergo obligo é o cogito
ergo sum do Estado”24. Difícil não chegar em uma situação na qual esperamos
finalmente por “um quadro jurídico no interior do qual não exista realmente
mais conflitos – apenas regras a colocar em vigor”25. O que fica claro em
afirmações como:

entre os homens são muitos os que se julgam mais sábios e mais


capacitados do que os outros para o exercício do poder público. E esses
esforçam-se por empreender reformas e inovações, uns de uma maneira e
outros doutra, acabando assim por levar o país à perturbação e à guerra
civil26.

As reformas e inovações são um convite à perturbação e à guerra civil.


Pois o estado hobbesiano é, acima de tudo, um Estado de proteção social, ou seja,
Estado baseado na promessa de amparo, que se serve de todo poder possível,
instaurando um domínio de legalidade própria neutro em relação a valores e
verdade. Estado que precisa realizar sua tarefa sem constrangimento externo
algum, ou seja, como uma máquina administrativa que desconhece coerções em
sua função de assegurar a existência física daqueles que domina e protege. Um

21
RIBEIRO, R.J.; Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu tempo, Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2004, p. 23
22
HOBBES, Leviatã, p. 253
23
Ver, por exemplo, RIBEIRO, op. cit., p. 53
24
SCHMITT, Carl; O conceito do político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 56
25
BALIBAR, Etienne; Violence et civilité, Paris: Galilée, 2010, p. 56
26
HOBBES, Thomas; Leviatã, op. cit., p. 146
Estado construído a partir da dessocialização de todo vínculo comunitário,
constituindo-se como o espaço de uma “relação de não-relações”27.
Não é por acaso que este Estado será comparado a um Leviatã. A metáfora
não poderia ser mais adequada. O Leviatã é um monstro aquático dotado de
força descomunal que aparece no Livro de Jó. O contexto de sua aparição é
sintomático. Sem entender os desígnios divinos, enfermo e despossuido de tudo
o que tinha, Jó expressa sua perplexidade. Sendo um servo temente, por que
sofre tanto? Jeová então lhe aparece não para lhe responder a apazigua-lo, mas
para mostrar a desmedida entre a ciência divina e a ciência humana. Ou seja, ele
está diante de Jó para dizer : quem es tu que questiona meus desígnios? Neste
contexto, Jeová apresenta a figura de duas forças descomunais: uma aquática (o
Leviatã) e outra terrestre (Behemooth). “Não há nada mais tremendo sobre a
terra que se lhe possa comparar”, dirá a Bíblia. Ou seja, fazer do Estado um
Leviatã é inscrever-lhe a força de uma imagem teológica que visa anular o
sofrimento e a restrição como disposição de revolta.
A única limitação que Hobbes reconhece ao poder do Estado é o direito
dos indivíduos à auto-defesa quando a vida está ameaçada pelo poder soberano,
o que decorre do respeito ao primeiro direito natural. Se o soberano atenta
contra minha vida, tenho o direito de a ele me contrapor, pois o que me liga a ele
é um pacto de proteção que não existe mais. No entanto, o soberano guarda o
direito de continuar sua ação contra mim já que pode tudo fazer para garantir a
proteção social e a permanência do Estado.
Por isto, não é possível dizer que o Estado opere aqui a partir de uma
lógica do reconhecimento. Ele opera, ao contrário, através da impossibilidade de
reconhecer aquilo que seria constitutivo da natureza humana. Pois há uma
violência elevada à condição de determinação metafísica do humano. Violência
que só pode aparecer como desagregação de todo e qualquer laço social. Notem
que há uma decisão, prenhe de consequências, que faz a violência vinda do
caráter excessivo do desejo ser expressa apenas como tendência à despossessão
do outro, de sua vida e de seus bens.
Cabe ao Estado usar o medo para impor aos indivíduos a limitação de seus
desejos e a restrição de suas possibilidades de reconhecimento. Cria-se assim
uma duplicidade fundamental na estrutura dos sujeitos que são cidadãos e
cidadãs de tal Estado. Como cidadão e cidadã do Estado ajo como sujeito capaz
de me auto-limitar, sujeito dotado de controle. No entanto, o que me vincula a tal
personalidade é um afeto responsável pela restrição e repressão de meus reais
impulsos. Por isto, a própria noção de personalidade será comparada por Hobbes
a uma máscara, recobrando o sentido originário do termo persona entre os
gregos. Máscara que não reconhece, mas que encobre algo a ser reprimido para
que o laço social possa existir. Como se vê, não é possível dizer que lá onde o
medo aparece como afeto político central o reconhecimento pode se realizar.
Medo social e reconhecimento são processos contrários, como vemos facilmente
em situações atuais concretas.

A função do amparo

27
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op. cit., p. 12
Mas nos atentemos para outro aspecto do nosso problema. Ele diz
respeito ao modelo geral de gestão social quando as exigências de
reconhecimento são bloqueadas. Pois o Estado não será apenas a instância que
opera a repressão. Ele será o gestor da lembrança contínua de que há algo a se
reprimir. Ele não será apenas o bombeiro da vida social, mas também o próprio
piromaníaco. Pois o fato fundamental no interior desta relação de não-relações é
a necessidade que a legitimação da soberania pela capacidade de amparo e
segurança tem da perpetuação contínua da imagem da violência desagregadora à
espreita, da morte violenta iminente caso o espaço social deixe de ser controlado
por uma vontade soberana de amplos poderes. O segredo da legitimidade do
Estado é a perpetuação da iminência da guerra de todos contra todos. O
fundamento fantasmático deste Estado será a figura do conflito social reduzida à
condição de guerra de todos contra todos. Daí uma conclusão importante de
Agamben: “A fundação não é um evento que se cumpra uma vez por todas in illo
tempore, mas é continuamente operante no estado civil na forma da decisão
soberana”28. Este mecanismo de fundação que necessita ser continuamente
reiterado diz muito a respeito da continuidade do medo como força de reiteração
da relação do Estado ao seu fundamento.
Sendo o Estado nada mais que “a guerra civil constantemente impedida
através de uma força insuperável”29, ele precisa provocar continuamente o
sentimento de desamparo, da iminência do estado de guerra, transformando-o
imediatamente em medo da vulnerabilidade extrema, para assim legitimar-se
como força de amparo fundada na perpetuação de nossa dependência. Na
verdade, devemos ser mais precisos e lembrar que a autoridade soberana tem
sua legitimidade assegurada não apenas por instaurar uma relação baseada no
medo para com o próprio soberano, mas principalmente por fornecer a imagem
do distanciamento possível em relação a uma fantasia social de desagregação
imanente no laço social e de risco constante da morte violenta. Uma fantasia
social que Hobbes chama de “guerra de todos contra todos”. É através da
perpetuação da iminência de sua presença que a autoridade soberana encontra
seu fundamento. É alimentando tal fantasia social que se justifica a necessidade
do “poder pacificador” da representação política, ou seja, do abrir mão de meu
direito natural em prol da constituição de um representante cujas ações
soberanas serão a forma verdadeira de minha vontade. Só assim o medo poderá
“conformar as vontades de todos”30 os indivíduos, como se fosse o verdadeiro
escultor da vida social.
É importante ainda salientar que essa fantasia pede uma dupla
fundamentação. Por um lado, ela apela à condição presente dos homens. Não
sendo uma hipótese histórica, o estado de natureza é uma inferência feita a
partir da análise das paixões atuais. Isto leva comentadores como Macpherson a
afirmar que, longe de ser uma descrição do ser humano primitivo, ou do ser
humano aparte de toda característica social adquirida, o estado de natureza

28
AGAMBEN, Giorgio; Homo sacer, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 115.
29
SCHMITT, Carl; Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un
symbole politique, op. cit., p. 86
30
HOBBES, Thomas; Leviatã, op. cit., p. 147
seria: “a abstração lógica esboçada do comportamento dos homens na sociedade
civilizada” 31.
Hobbes pede que lembremos como “todos os países, embora estejam em
paz com seus vizinhos, ainda assim guardam suas fronteiras com homens
armados, suas cidades com muros e portas, e mantém uma constante vigilância”.
Lembra ainda como os “particulares não viajam sem levar sua espada a seu lado,
para se defenderem, nem dormem sem fecharem – não só as portas, para
proteção de seus concidadãos – mas até seus cofres e baús, por temor aos
domésticos”32. Mas notemos um ponto central. A espada que carrego, as trancas
na minha porta e em meus baús, os muros da cidade na qual habito são índices
não apenas do desejo excessivo que vem do outro. Eles são índices indiretos do
excesso do meu próprio desejo. Como se Hobbes afirmasse: “olhe para suas
trancas e você verá não apenas seu medo em relação ao outro, mas o excesso de
seu próprio desejo que lhe desampara por querer lhe levar a situações nas quais
imperam a violência e o descontrole da força”. A retórica apela aqui a uma
universalidade implicativa.
De toda forma, como não se trata de permitir que configurações atuais
sejam, de maneira indevida, elevadas à condição de invariante ontológica, faz-se
absolutamente necessário também a produção contínua dessas construções
antropológicas do exterior caótico e do passado sem lei. Ou seja, mesmo não
sendo uma hipótese histórica, não há como deixar de recorrer à antropologia
para pensar o estado de natureza. Assim, aparecem construções como esta que
leva Hobbes a acreditar que:

os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do


governo de pequenas famílias, cuja concórdia depende da concupiscência
natural, não possuem nenhuma espécie de governo, e vivem nos nossos
dias daquela maneira brutal que antes referi33.

Ou seja, sociedades sem Estado como nós, os povos de muitos lugares da


América, são mobilizadas continuamente para lembrar à sociedade europeia
porque a soberania é legítima. No interior desta lógica de legitimação, esta é
nossa função. Ou ainda:

sabemos disso também tanto pela experiência das nações selvagens que
existem hoje, como pelas histórias de nossos ancestrais, os antigos
habitantes da Alemanha e de outros países hoje civilizados, onde
encontramos um povo reduzido e de vida breve, sem ornamentos e
comodidades, coisas essas usualmente inventadas e proporcionadas pela
paz e pela sociedade34.

Sociedades da violência e sociedades da penúria estão à nossa espreita seja em


uma diferença geográfica, seja em uma diferença histórica. Na verdade, sempre
deverá haver um “povo selvagem da América” à mão, o Estado sempre deverá

31
MACPHERSON, C.B.; The political theory of possessive individualism: Hobbes to Locke, Oxford
University Press, 1962, p. 26.
32
HOBBES, Thomas; Do cidadão, p. 14.
33
Idem, p. 110.
34
HOBBES, Thomas; Os elementos da lei natural e política, São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 70
criar um risco de contaminação da vida social pela violência exterior,
independente de onde esse exterior esteja, seja geograficamente no Novo Mundo
ou no Oriente Médio, seja historicamente em uma cena originária da violência.
Ao menos neste ponto, Carl Schmitt é o mais consequente dos hobbesianos
quando afirma que:

Palavras como Estado, república, sociedade, classe e ademais soberania,


Estado de direito, absolutismo, ditadura, plano, Estado neutro ou total etc.
são incompreensíveis quando não se sabe quem deve ser, in concreto,
atingido, combatido, negado e refutado com tal palavra35.

Já temos aqui os problemas que uma teoria do reconhecimento deverá


lidar. Ela deve, inicialmente, quebrar o vínculo entre antropologia da violência e
legitimação do Estado. Isto implica operar duas saídas possível. A primeira seria
fornecer uma outra imagem antropológica, insistindo, por exemplo, na
imanência de relações de empatia a fundar campos intersubjetivos cuja primeira
expressão é não-conflitual. Retira-se assim o conflito da posição de fundamento
da existência social, deslocando-o para o que pode ser regulado devido à
presença de um horizonte normativo de experiências de empatia. Esta empatia
pode estar presente na vida social, sendo necessária apenas reconstruir as bases
normativas de nossa sociedade a partir do que está presente em vários campos
da vida social, como fará Axel Honneth. Ou ela pode estar soterrada pelos
processos de modernização social, sendo necessário recuperar a força de coesão
do que foi reprimido em sua origem. Esta é, por exemplo, a estratégia de
Rousseau e de sua outra imagem do estado de natureza baseado na compaixão,
na expressão e na cooperação.
Haverá, no entanto, ainda outro caminho. Ele consistirá em conservar a
compreensão da centralidade do conflito como dado instaurador dos laços
sociais, mas procurando constituir um conceito mais amplo de conflito cuja
expressão não se reduza à despossessão dos bens e à morte violenta. Para tanto
será necessário, por exemplo, retomar a teoria do desejo que serve de base a
Hobbes e inseri-la no interior de uma noção mais ampla de “negatividade” cuja
satisfação e reconhecimento poderá se dar de formas variadas, como tentará
fazer Hegel. Ou seja, a estratégia aqui consiste também em modificar a base
antropológica da política, mas sem recusar a centralidade ontológica da noção de
conflito. Dentro desta dinâmica, poderemos ainda reinserir o conflito no interior
de uma lógica na qual a célula elementar não são as auto-afirmações individuais,
mas a experiência de pertencimento a uma classe, como faz Marx ao redescrever
a noção da sociedade como guerra civil diferida a partir da concepção reguladora
de luta de classes, e não mais a partir da noção de guerra de todos contra todos.
Veremos cada um destes casos no decorrer de nosso curso.

35
SCHMITT, Carl; O conceito de político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 32
Lógicas do reconhecimento
Aula 3

Na aula passada, vimos a emergência de uma teoria dos laços sociais fundada na
irredutibilidade da noção de conflito, mas que não dava espaço ao aparecimento
de uma dinâmica de desdobramentos de tais conflitos no interior de processos
de reconhecimento. Tratava-se da teoria política de Thomas Hobbes. Insisti com
vocês que Hobbes partia da defesa de uma violência imanente à relação entre
indivíduos no estado de natureza. Violência esta responsável pelo horizonte de
uma guerra de todos contra todos que nos levaria tendencialmente à
despossessão generalizada, à morte violenta e a relações sempre concorrenciais.
Vimos como Hobbes mobilizava uma verdadeira psicologia do desejo e dos
afetos como fundamento de suas reflexões políticas. Diante desta violência
imanente, o estado e o poder soberano apareciam como garantes de uma relação
de termos (os indivíduos) sem-relação entre si. Sua legitimidade estaria fundada
em um pacto social de proteção e de amparo que, ao mesmo tempo, era uma
forma de gestão e incitação do medo como afeto político central. No interior
deste pacto, a natureza humana deveria ser reprimida, sua agressividade e
violência ontológicas deveriam ser excluída do horizonte de reconhecimento
social. Assim, consolidava-se uma clivagem entre minha persona como cidadã e
cidadão do estado e minha psicologia, sempre prestes a fazer reemergir as
condições próprias ao estado de natureza.
Como havia dito na aula passada, Hobbes nos era importante por fornecer
o quadro de problemas que uma teoria do reconhecimento deverá lidar. Pois ela
deverá, inicialmente, quebrar o vínculo entre antropologia da violência e
legitimação do Estado. Isto implica operar duas saídas possível. A primeira seria
fornecer uma outra imagem antropológica, uma outra psicologia, insistindo, por
exemplo, na imanência de relações de empatia a fundar campos intersubjetivos
cuja primeira expressão é não-conflitual. Retira-se assim o conflito da posição de
fundamento da existência social, deslocando-o para o que pode ser regulado
devido à presença de um horizonte normativo de experiências de empatia. Esta
empatia pode estar presente na vida social, sendo necessária apenas reconstruir
as bases normativas de nossa sociedade a partir do que está presente em vários
campos da vida social, como fará Axel Honneth. Ou ela pode estar soterrada
pelos processos de modernização social, sendo necessário, de alguma forma,
recuperar a força de coesão do que foi reprimido em sua origem. Esta é, por
exemplo, a estratégia de Rousseau e de sua outra imagem do estado de natureza
baseado na compaixão e na expressão.
Haverá, no entanto, ainda outro caminho. Ele consistirá em conservar a
compreensão da centralidade do conflito como dado instaurador dos laços
sociais, mas procurando constituir um conceito mais amplo de conflito cuja
expressão não se reduza à despossessão dos bens e à morte violenta. Para tanto
será necessário, por exemplo, recusar o ponto de partida individualista que
vemos em Hobbes, insistindo na anterioridade das relações a desapeito de seus
termos e, ao mesmo tempo, retomando a teoria do desejo que serve de base a
Hobbes a fim de inseri-la no interior de uma noção mais ampla de “negatividade”
cuja satisfação e reconhecimento poderá se dar de formas variadas, como tentará
fazer Hegel. Ou seja, a estratégia aqui consiste também em modificar a base
antropológica da política, mas sem recusar a centralidade ontológica da noção de
conflito. Dentro desta dinâmica, poderemos ainda reinserir o conflito no interior
de uma lógica na qual a célula elementar não são as auto-afirmações individuais,
mas a experiência de pertencimento a uma classe, como faz Marx ao redescrever
a noção da sociedade como guerra civil diferida a partir da concepção reguladora
de luta de classes, e não mais a partir da noção de guerra de todos contra todos.
Ao final de nossa última aula eu dissera que vamos analisar cada uma
dessas alternativas. Neste sentido, gostaria de utilizar a aula de hoje para falar da
ausência de uma lógica do reconhecimento em Jean-Jacques Rousseau. Mesmo
sendo o teórico que primeiro descreverá a natureza do sofrimento social que
mobiliza sujeitos em direção ao reconhecimento, a saber, a alienação, a teoria
política de Rousseau não será uma teoria configurada a partir de problemas
ligados às lutas por reconhecimento. Mesmo intervendo a imagem antropológica
fornecida por Hobbes no estado de natureza, insistindo na importância da
compaixão e da empatia, seu contratualismo, assim como a centralidade de sua
noção de “vontade geral”, exigirão um certo esquecimento da natureza humana
que encontrará expressão apenas, de forma compensatória, no campo das artes
(em especial na música), e não no campo da política. Por isto, não haverá
dinâmicas de reconhecimento no campo social. Gostaria de expor de maneira
sistemática alguns pontos centrais da teoria de Rousseau importantes para
nosso debate.

Isolamento e compaixão no estado de natureza

Guardemos de confundir o homem selvagem como os homens que temos


diante de nossas olhos. A natureza trata todos os animais abandonados a
seus cuidados com uma predileção tal que parece assim mostrar como ela
é ciumenta deste direito36.

Esta é uma das primeiras características do estado de natureza, segundo


Rousseau, a saber, a ausência de falta. Rousseau não partilha a visão do estado de
natureza como estado de penúria no interior do qual seria necessário lutar para
sobreviver, pois estaríamos sempre as voltas com a experiência da finitude da
vida. De certa maneira, não seria errado dizer que a experiência da falta é uma
criação da vida social. Se a natureza fornece este horizonte de amparo que dá aos
animais e aos humanos o espaço potencial de realização de seus desejos e
necessidades, então a falta não pode ser uma condição contínua de um desejo
que está sempre a procura de novos objetos.
Rousseau traz algo do cinismo grego em sua descrição do estado de
natureza. Pois eram o cínicos que definiam a liberdade como uma liberação em
relação às necessidades socialmente produzidas, a liberdade como uma
restrição, pois quanto menos preciso mais livre sou, menos dependente sou de
artifícios e engenhos para encontrar a satisfação. Retornar a uma certa condição
de animalidade é, de certa forma, o horizonte da realização da liberdade. Assim:

36
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Discours sur l’origine de l’inegalité, in: Oeuvres complètes, La Pléiade,
p. 139
Não é uma grande infelicidade a estes primeiros homens, nem mesmo um
grande obstáculo à conservação, a nudez, a falta de habitação e a privação
de todas essas inutilidades que cremos necessárias. Se eles não tem a pele
aveludada, não tem por outro lado nenhuma necessidade disto em países
quentes, além de saberem muito bem, em países frios, apropriar-se desta
das bestas que venceram37.

De fato, há um traço distintivo central entre os humanos em estado de natureza e


estes que fazem parte da vida social, um traço de explica em larga medida como é
possível que a falta não seja o princípio regulador da experiência do desejo. Se o
humano pode ser “só, despreocupado (oisif) e sempre vizinho do perigo” sem
que isto seja fonte de ansiedade é porque no estado de natureza não se conhece a
propriedade. Não temos indivíduos vinculados a propriedades, nem indivíduos
vinculados a necessidade e ao desejo de se fazer reconhecer em suas
propriedades. Os humanos são sós, seus encontros são intermitentes, suas
preocupações se vinculam a auto-conservação em um espaço natural vasto no
interior do qual eles estão em contínua mobilidade. Mas para tanto eles podem
contar com sua força e habilidade. Por isto, os humanos aparecem inicialmente
como nômades solitários.
Notem que, se em Hobbes, o estado de natureza era composto de
indivíduos em relação de concorrência e violência, era porque os desejos eram
compreendidos inicialmente como miméticos. Deseja-se o mesmo que o outro,
vejo como o outro deseja para saber como desejar, ou seja, há desde o início uma
certa forma de dependência entre os seres humanos, mas esta racionalidade
mimética não se traduz em empatia ou tendência à cooperação. Ela se traduz em
rivalidade e violência direta. É a expressão do desejo que coloca os indivíduos na
rota de uma luta de vida ou morte. Se este mimetismo próprio ao desejo se
traduz em rivalidade e não em empatia é porque Hobbes naturaliza um modo de
relação às coisas e a si mesmo que se expressa na forma de relações de
propriedade. Não há uma história da emergência das relações de propriedade
em Hobbes porque elas são naturais, elas estão lá desde o início da existência
histórica dos seres humanos.
Não há esta dimensão originariamente mimética do desejo em Rousseau,
assim como não há uma naturalidade das relações de propriedade. Os humanos
não conservam, eles consomem. Eles não se territorializam, mas estão em
nomadismo. Estes indivíduos isolados não conhecem a desigualdade, a não ser
esta produzida pela diferença de idade, de saúde, de força do corpo e de
qualidade da alma, a saber, isto que Rousseau chama de “desigualdade física”.
Mas esta desigualdade física não se traduz em “desigualdade política ou moral”.
No entanto, mesmo estando em nomadismo, os humanos tem um sentimento que
os vincula, a saber, a piedade ou a compaixão. Esta piedade é, principalmente, a
impossibilidade de sustentar uma posição de indiferença em relação ao
sofrimento do outro. Ela não é uma forma de prática cooperativa, mas regime de
implicação afetiva a partir da identificação do sofrimento, mesmo que seja uma
implicação intermitente. Mesmo sendo isolados, os humanos em estado de
natureza não são indiferentes a sorte de outros humanos.

37
Idem, p. 140
História da queda

Mas, sendo assim, poderíamos nos perguntar como se dá a saída do


estado de natureza, o que significa a instauração da vida social. Rousseau se
serve de dois fenômenos para descrever a emergência da vida social e da
corrupção desta relação imanente à natureza. O primeiro é aquilo que ele chama
de “faculdade de aperfeiçoamento”. Só os humanos teriam esta faculdade que
nos empurra a um aperfeiçoamento constante, enquanto os animais se
desenvolveriam apenas até os limites de seus próprios instintos. No entanto, se
na aurora do iluminismo a perfectibilidade era vista como a fonte da criação e
felicidade humana, em Rousseau ela é a causa de todos seus males:

Esta faculdade distintiva e quase ilimitada é a fonte de todos os males do


homem. É ela que o tira, à força do tempo, desta condição originária na
qual corriam dias tranquilos e inocentes. É ela que, fazendo eclodir com
os séculos suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o transforma ao fim e
ao cabo em tirano de si mesmo e da natureza38.

Ou seja, Rousseau fornece aqui alguns dos temas fundadores da crítica do


progresso, pois seu Discurso sobre a origem da desigualdade será uma “história
da civilização como progresso da negação do dado natural”39. O primeiro destes
temas consiste em dizer que o desenvolvimento não era apenas uma forma de
conhecimento da natureza e de si, mas de uma dominação técnica de si e do
mundo que nos distancia, que marca com um véu, esta condição originária que
seria o espaço de afirmação da emergência do sentido. O advento da vida social é
algo como uma queda: “Porque o homem é perfectível, não cessou de acrescentar
suas invenções aos dons da natureza. E desde então s história universal,
embaraçada pelo peso continuamente crescente de nossos artifícios e de nosso
orgulho, adquire o andamento de uma queda acelerada na corrupção: abrimos os
olhos com horror para um mundo de máscaras e de ilusões mortais, e nada
assegura ao observador (ou ao acusador) de que ele próprio seja poupado pela
doença universal”40. Isto faz da história da técnica a história do afastamento do
sentido, uma história da alienação no sentido mais forte do termo, a saber,
tomar-se por um outro, estar preso ao olhar de um outro.
Neste ponto, lembremos de outro fenômeno responsável pela saída do
estado de natureza, um fenômeno ligado ao exercício da faculdade de
perfectibilidade, a saber, a emergência do trabalho cooperativo. Em Rousseau, o
trabalho cooperativo não é fonte de emancipação, mas uma das principais fontes
de alienação. Pois o trabalho cooperativo é expressão de relações de
dependência e com tais relações de dependência aparecem a necessidade do
artifício, da conquista do olhar e da estima do outro:

Enquanto os homens se aplicavam apenas a obras que podiam ser


realizadas por um e a artes que não necessitavam do concurso de várias
mãos eles viveram livres, saudáveis, bons e felizes tanto quanto podia ser
por sua própria natureza e continuaram a gozar entre eles das doçuras de

38
Idem, p. 142
39
STAROBINSKI, Jean: Rousseau: a transparência e o obstáculo, p. 36
40
Idem, p. 23
um comércio independente. Mas desde que um homem teve necessidade
do socorro de outro, desde que se percebeu que seria útil a um de ter
provisões para dois, e igualdade desapareceu, a propriedade foi
introduzida, o trabalho adveio necessário e as vastas florestas se
transformaram em campos rudes que deveriam ser arados com o suor
dos homens e nos quais vimos rapidamente a miséria e a escravidão
germinar e crescer como musgos41.

A indústria e o trabalho impõem um regime de atividade baseado na


cooperação dos esforços, na previsão e calculo, no acúmulo tendo em vista a luta
prévia contra situações desfavoráveis no futuro. Desta forma, o trabalho quebra
a imanência à natureza, impondo uma atividade que não é mais atividade
imediata. Por outro lado, o estabelecimento de relações de trabalho e produção
se funda em tendência imanentes de exploração e dominação. Pois, com as
relações de produção, não estamos apenas a falar do advento da propriedade,
mas principalmente do reconhecimento da importância da sanção do outro, a
necessidade de reconhecimento do outro como condição para a justificação de
minha atividade. Isto é indissociável, para Rousseau, do avento de um ser-para-
outro que implica perda de si. Assim, Rousseau espera articular de forma
profunda problema moral e problema econômico.
Em suma, o espaço de reconhecimento social é sempre o espaço da perda
de si já que o advento da vida social é a alienação da potência normativa da
origem, isto devido à indissociabilidade entre vida social e propriedade. A vida
social implica dependência e esta dependência leva os homens a garantir a
estima dos outros, a cultivar a aparência e a sempre preocupar-se com ela. Eles
se tornam então: “enganadores e artificiais”42 ao submeterem seus desejos a
demandas de reconhecimento. Notemos como Rousseau descreve a emergência
do desejo de reconhecimento:

Nós nos acostumamos a nos juntar diante de cabanas ou em volta de uma


grande árvore. O canto e a dança, verdadeiras crianças do amor e do lazer,
transformaram-se no divertimento ou ainda na ocupação dos homens e
mulheres despreocupados e congregados. Cada um começou a olhar os
outros e a querer ser olhado por eles, e a estima pública teve um preço.
Este que cantava ou dançava melhor, o mais bonito, o mais forte, o mais
eloquente se transformou no mais considerado e este foi o primeiro passo
para a desigualdade e, ao mesmo tempo, o primeiro passo em direção ao
vício43.

Fica claro assim como Rousseau não distingue demandas de


reconhecimento e processos de alienação. Pois o estabelecimento de relações
sociais não é compreendido como constituição de um campo móvel de
incorporação das singularidades. As relações sociais são solidárias de dinâmicas
de alienação e contra tal sofrimento social haveria de se retornar à
normatividade natural, se isto fosse possível. As modificações implicativas
produzidas pelas demandas de reconhecimento são sempre compreendidas por

41
ROUSSEAU, Idem, p. 171
42
Idem, p.173
43
Idem, p. 169
Rousseau como alienação na dimensão da aparência, o olhar do outro não é a
confirmação de si, mas uma forma de aprisionamento. Pois não é através do
reconhecimento que o humano realizaria sua essência, mas através do retorno à
voz da natureza, o que só é possível ainda na dimensão da experiência estética e,
em especial, da expressão musical.
Isto é resultado direto do ponto de partida de Rousseau. Da mesma
maneira que Hobbes, Rousseau aceita que a celular elementar da vida social são
os indivíduos, no seu caso, indivíduos em relação de imanência à natureza. Ou
seja, temos primeiros indivíduos isolados e, em um segundo momento, o artifício
da criação de relações. Neste sentido, a liberdade natural implica certo modo de
relação a si que podemos descrever como “relações de auto-pertencimento”,
relações nas quais afirmamos o fato de se pertencer apenas a si mesmo, o que a
vida social não pode realizar. No máximo, a vida social pode construir uma forma
compensatória de autonomia baseada na emergência de uma vontade geral. É
desta forma compensatória que fala O contrato social.

Um corpo político

Tal como Hobbes, Rousseau fala da emergência de um corpo político, mas de um


corpo que não tem a configuração de um Leviatã no qual o poder soberano se
concentra, de maneira indivisível, nas mãos do detentor do poder executivo. Há
uma soberania a animar o corpo político de Rousseau, mas se trata de uma
soberania popular que tem no espaço da assembleia popular sua expressão
máxima. Esta assembleia é expressão de um princípio de igualdade moral ou
política fundamental. Desta forma, Rousseau espera poder instaurar uma
totalidade social baseada na igualdade como virtude que modera os apetites e
nos afasta do caráter egoísta dos interesses. Como vimos, este corpo político é
uma espécie de suplemento de um outro corpo perdido, a saber, a natureza como
uma espécie de corpo nômade no qual os indivíduos podiam circular em
imanência.
Lembremos inicialmente como a condição fundamental para o advento de
um corpo político soberano é a emergência da vontade geral. A vontade geral não
é a somatória de vontades particulares, ou seja, uma vontade de todos. Ela é a
expressão de um desejo de liberdade baseado, inicialmente, na ideia de auto-
legislação. A alienação dos interesses particulares na vontade geral permite a
constituição de um Eu comum, de um corpo político unitário capaz de defender e
proteger a pessoa e seus bens. Defender não apenas do outro, como vemos em
Hobbes, mas principalmente defender-se do próprio poder, defender-se dos
efeitos de usurpação do poder quando alienamos a soberania popular a um
outro, seja ele um príncipe, seja qualquer forma de representante. Por isto,
Rousseau dirá que o povo não obedece a um soberano, ele não passa alguma
espécie de contrato com ele. Na verdade, o povo se manifesta através do
exercício da soberania. Ele pode derrubar governos, ele deve ratificar leis, ele se
reúne em assembleia, ele não tem representantes. Nenhum deputado ou príncipe
representa o povo, pois a soberania não é algo que possa ser representado sem
ser perdido. Neste sentido, deputados e príncipes são apenas “comissários” do
povo.
O verdadeiro soberano é assim o corpo composto pelos particulares que
lhe formam e que se associam a fim de garantir a liberdade civil. Pois: “o que o
homem perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado
a tudo o que lhe tenta e que ele pode alcançar. O que ele ganha é a liberdade civil
e a propriedade de tudo o que ele possui”44. Notemos a estrutura da retórica de
Rousseau. Sabendo que não mais é possível fazer apelo a uma relação à physis
soterrada pelo processo civilizacional, Rousseau que realizar uma liberdade que
ainda signifique pertencimento de si apelando a uma lógica própria às
individualidades proprietárias: veja quanto se perde e quanto se ganha;
deixamos o caráter ilimitado do desejo, mas ganhamos a segurança da
propriedade. Daí porque Hegel dirá, a respeito de Rousseau:

No entanto, como ele apreendeu a vontade em sua forma determinada


como vontade singular (como fez posteriormente Fichte) e como ele
apreendeu a vontade geral não como o que a vontade tem de racional em
si e para si, mas apenas como o elemento comum que surge desta vontade
singular enquanto consciente, a reunião dos indivíduos singulares no
Estado se transforma em um contrato45.

Hegel critica Rousseau por pensar a vontade a partir da noção de vontade


individual, vontade que, ao menos em sua perspectiva, não advém exatamente
vontade geral, mas vontade comum, ou seja, associação de diversas vontades que
não desejam um objeto universal, mas que desejam as condições para a
afirmação de seus sistemas particulares de interesses46. De fato, como nos
lembra Gérard Lebrun ao insistir na “raiz ultra-individualista do contrato”, no
momento do Contrato social, o homem é ainda “aquele que olha para si mesmo”.
Seu desejo de adquirir a liberdade civil provém de uma reivindicação que nasce
no nível da sua independência natural. Sua entrada na união civil é feita
unicamente em nome de seu amor por si mesmo. Ou seja, as condições de
estabelecimento do contrato social não são recuperações da natureza reprimida,
mas regulação da vida social a partir da realidade de uma alienação de base.
Notemos ainda que este desejo de liberdade civil é também desejo de liberdade
moral, de auto-legislação, já que vem de Rousseau a ideia de que liberdade é dar
para si mesmo sua própria lei.
Estes pontos podem explicar porque, para fazer emergir um corpo
político, é necessário um legislador. Este legislador é a figura instauradora de um
povo, como Licurgo, Moisés. Diz Rousseau:

Este que ousa empreender a instituição de um povo deve se sentir em


estado de mudar, por assim dizer, a natureza humana; de transformar
cada individuo que, por si mesmo, é um todo perfeito e solitário em parte

44
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Le contrat social, p. 364
45
Idem,
46
Isto talvez nos explique porque, na justificação do contrato social: “a linguagem de Rousseau com
freqüência é tão abertamente utilitarista quanto a de Hobbes. Isto é o que você perde, mas avalie, em
compensação, o que você ganha” (LEBRUN, Gerard; “Contrato social ou negócio de otário?” In: A
filosofia e sua história, São Paulo: Cosac e Naify, 2006, p. 226). Por isto, se aceitamos entrar no
contrato social: “é por ter lido, no segundo livro, que as “pessoas privadas” que compõem a “pessoa
pública” permanecem “naturalmente independentes dela”, que elas continuam portanto a desfrutar um
direito natural enquanto homens e que “o Soberano não pode infligir aos súditos nenhuma que seja
inútil à comunidade” (idem, p. 230).
de um todo maior do qual os indivíduos receberão de certa maneira sua
vida e seu ser; de substituir uma existência física e independente que
todos nós recebemos da natureza por uma existência parcial e moral47.

Como lembrará bem Bento Prado Júnior, é necessário uma relação à


exterioridade para que a vida social possa ser instituída em sua proximidade à
natureza: “apenas o estrangeiro que não partilha dos preconceitos e dos
interesses dessa humanidade local, pode aproximar-se da condição
extraordinária que é a do legislador48.
Mas o que acontece como esta natureza humana deixada para trás? Ela
ainda terá alguma força de implicar o campo de experiência humana? Pois
podemos nos perguntar se esta transformação produzida pelo legislador, se esta
mudança da própria natureza humana não seria sem produzir uma certa
nostalgia social. A vida política não parece não pode dar conta desta nostalgia. No
máximo, ela transmutar a experiência de auto-pertencimento própria ao estado
de natureza em desejo de igualdade (forma única de impedir a servidão) e de
autonomia. Por isto, em algum nível, ela ainda fala aos humanos como indivíduos
marcados pela experiência do individualidade possessivo
No entanto, há um ponto no qual a vida política se deixa aproximar da voz
da natureza, no qual esta nostalgia se transmuta em proximidade a uma
linguagem de pura presença. Este ponto se dá através da música e do uso da
música como paradigma para a reinstauração da ordem social.

Música e reconhecimento

A fim de compreender a configuração do paradigma musical em


Rousseau, lembremo-nos do sentido de uma das querelas mais importantes das
quais ele participou, a saber, a chamada querela dos bufões. Grosso modo, trata-
se de uma contraposição entre, de um lado, uma noção de modernidade musical
vinculada ao primado da harmonia e das regras estritas de uma progressão
harmônica derivada da teoria fisicalista do som, harmonia que abria as portas
para uma polifonia contrapontística controlada pelo centro harmônico e para
uma definição de estruturação da forma musical absolutamente autônoma em
relação a tudo o que seria extra-musical (Jean-Phillipe Rameau); de outro, uma
reação que insistia no primado da melodia e da simplicidade monofônica
inspirada no canto. Posição rousseauista que Dahlhaus caracterizou bem: “Um
sentimentalismo que ama ver-se estimulado pela música, um racionalismo que
quer programas, uma pintura musical na música instrumental e a nostalgia de
uma antiguidade que opõe, à polifonia moderna, confusa e savant, uma
simplicidade tocante da monofonia grega – eis os compostos da estética musical
de Rousseau”49.
Para Rousseau, tratava-se de, através da defesa da centralidade da
melodia, sustentar a estrutura mimética da racionalidade musical. Mimetismo
entre música e a expressão natural da linguagem com suas entonações e acentos.
Isto o permitia vincular a música à uma pedagogia da arte capaz de servir de

47
Idem, p. 381
48
PRADO JR., Bento; A retórica de Rousseau, p. 103
49
DAHLHAUS, L´idée de la musique absolue, p. 49
veículo de formação moral por recuperar o vínculo entre natureza e cultura.
Lembremos do que diz Rousseau :

Quando pensamos que, de todos os povos da terra, todos o que têm uma
música e um canto, os europeus são os únicos que têm uma harmonia,
acordes, achando esta mistura agradável ; quando pensamento que o
modo durou tantos séculos sem que, em todas as nações que cultivaram
as belas-artes, nenhuma tenha conhecido esta harmonia, que nenhum
animal ou pássaro, nenhum ser na natureza produziu outro acorde que o
uníssono ou outra músical que a melodia ; que as línguas orientais, tão
sonoras, tão musicais, exercidas com tanta arte, nunca guiaram estes
povos voluptosos e apaixonados em direção à nossa harmonia ; que sem
ela suas músicas tiveram efeitos tão prodigiosos ; que com ela a nossa
tenha efeitos tão fracos ; que, enfím, estava reservado aos povos do norte,
cujos órgãos duros e grosseiros são mais tocados pelos ruídos e explosões
de vozes do que pela doçura dos acentos e melodias das inflexões,
fazerem esta grande descoberta e definí-la como princípio a todas regras
da arte ; quando, digo eu, levamos tudo isto em considerações, é muito
difícil não desconfiar que toda nossa harmonia é uma invenção gótica e
bárbara a respeito da qual nunca seríamos avisados se fôssemos mais
sensíveis as verdadeiras belezas da arte e à música realmente natural 50.

A discussão de Rousseau vincula a expressão musical à “voz da natureza” que se


expressa sem afetação através da objetividade própria à entonação e aos acentos
da fala comum. O que explica porque Rousseau insistirá no canto (raiz de toda
fala) como fundamento da expressão musical. Esta expressão musical próxima da
fala instaura, por sua vez, um regime de presença garantido pela partilha de um
fundamento ancorado no seio da natureza, pensada aqui como polo positivo
doador de sentido, como transparência e proximidade.
Tal proximidade, e este ponto é decisivo, teria a força de instaurar um
espaço político comum baseado na autenticidade dos costumes e na limitação da
disseminação da representação devido ao ideal estético de clareza e
comunicação (o que explica boa parte da luta de Rousseau contra uma música na
qual a expressão melódica estaria submetida aos jogos e modulações
harmônicas). Esse naturalismo musical, que submete a música ao “prazer moral
da imitação”51 enquanto sonha com o advento de uma comunidade política por
vir (ou seja, há uma submissão completa entre música e moral em Rousseau, tal
como houvera antes em Platão), faz da expressão do compositor o uso consciente
de efeitos objetivamente determinados. Ou seja, faz da expressão do compositor
a mera imitação dos afetos objetivamente dispostos. Daí porque o compositor
deve: “conhecer ou sentir o efeito de todos os caráteres a fim de levar
exatamente este que ele escolheu ao grau que lhe convém”52. Da mesma forma,
os instrumentos terão sua expressão própria: a flauta é tenra, o trompete é
guerreiro, a trompa é majestosa, etc. Ou seja, aqui também trata-se muito mais
de representação de regimes gerais e estáveis de afecção do espírito, de uso
objetivo de uma paleta de efeitos disponíveis, do que propriamente de expressão.

50
ROUSSEAU, Dictionnaire de musique
51
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Dictionnaire de musique, Paris: Actes Sud, 2007, p. 208
52
Idem, p. 207
Notemos como a crítica da alienação em Rousseau serve-se da música
como horizonte de reconstrução da capacidade instauradora da linguagem e
recuperação de dimensões sociais de autenticidade. Rousseau é consciente de
que a alienação social é indissociável da degradação da linguagem no espaço
político. Lembremos de como termina seu Ensaio sobre a origem das línguas:
“toda língua com a qual não nos fazemos escutar pelo povo em assembleia é uma
língua servil; é impossível que o povo seja livre e fale uma língua destas”53. Uma
língua que o povo em assembleia não escuta é aquela desprovida de eloquência,
afastada da persuasão por separar o povo, por ser apenas uma fala em nome
próprio, reduzida a sua condição instrumental de descrição de interesses. “A
primeira máxima da política moderna”, dirá Rousseau, é: “os sujeitos devem
permanecer separados” e é a língua degradada à sua dimensão instrumental e
comunicacional que os separa. A língua do povo em assembleia, ao contrário, é
aquela mais próxima do canto e da música. De certa forma, para Rousseau, não
há assembleia sem música.
No entanto, a força política da música exige a recusa de sua autonomia, a
recusa do desenvolvimento imanente de seus materiais. Para preencher sua
força política própria, a música deve se submeter a uma moral, ela não deve criar
um ethos a partir do desenvolvimento imanente de seus materiais. Por isto,
trata-se de exigir a fundamentação dos modos de expressão em um solo natural e
originário pensado como horizonte normativo estrito. Este solo natural não é um
campo de singularidades em produção, mas um campo de visibilidade da voz da
natureza. Pois: “a força da linguagem não reside no poder de fornecer imagens
das coisas, mas no poder de pôr a alma em movimento, de colocá-la numa
disposição que torne visível a ordem da natureza. A linguagem imita a natureza
quando colabora com a ordem, quando restitui, no interior da humanidade, a
ordem que seu nascimento tinha contribuído para apagar”54.

53
Idem, Essai sur l’origine des langues,
54
PRADO JR., Bento; A retórica de Rousseau, p. 161
Lógicas do reconhecimento
Aula 4

Na aula de hoje, começaremos a discutir o conceito de reconhecimento, tal como


aparece na filosofia hegeliana. A insistência na centralidade dos processos de
reconhecimento é uma inovação filosófica fundamental produzida por Hegel,
mesmo que o conceito apareça pela primeira vez com Fichte. Tal centralidade
dos processos de reconhecimento indicará um regime de saída do idealismo que
será explorado em toda sua extensão principalmente, como veremos, por setores
maiores do pensamento do século XX. Isto implicará não apenas assumir a
gênese social da consciência cognitiva, ou seja, a maneira com que ela submete
processos de conhecimento a estruturas sociais de reconhecimento. Pois, como
disse em outra aula, o reconhecimento nos abre para a tematização da gênese
das estruturas da consciência através das relações concretas de trabalho, desejo
e linguagem. Se a consciência só é enquanto reconhecida, então serão os campos
concretos de reconhecimento que determinarão sua estrutura, seus modos de
apreensão e pensamento. A filosofia deverá assim se direcionar à compreensão
das modalidades concretas de trabalho, de desejo e de linguagem enquanto
expressões de uma gênese social da consciência. Gênese esta que demonstra
como toda proposição de validade deverá ser historicamente situada. Posição
cujas consequências estão muito bem expressas em afirmações como esta de
Robert Brandom: “Toda determinação transcendental é uma instituição social”.
Por isto, havia dito a vocês que a temática do reconhecimento representava o
eixo de uma guinada materialista no interior do idealismo alemão, um
materialismo que não é simplesmente a expressão do empirismo e de seus sense
data, mas de um materialismo histórico que a partir de então paulatinamente irá
se configurar.
No entanto, a defesa hegeliana das dinâmicas de reconhecimento trará
consequências maiores também para a compreensão de conceitos reguladores
centrais de nossas formas de vida, como liberdade, identidade, individualidade,
autonomia e emancipação. O reconhecimento é uma peça fundamental de todo
pensamento dialético, não apenas por enraizar nossas proposições sobre estado
de coisas em gêneses sociais, mas também por expor modalidades de
determinação de si que passam pela desarticulação das distinções estritas entre
identidade e diferença, entre referência-a-si e referência-a-outro, o que implica
uma verdadeira “metamorfose categorial” a respeito do que devemos
compreender por “si mesmo”. É a natureza desta desarticulação, sua extensão e
radicalidade, que colocará problemas para vários setores do pensamento do
século XX. É esta sua força de descentramento que, a meu ver, ainda está sub-
explorada. Por isto, parece-me que uma maneira privilegiada para entrar em
dimensões importantes de nosso debate filosófico contemporâneo seja propondo
um certo retorno a Hegel, um retorno às tensões próprias a seu texto.
Notemos ainda que vimos em nosso trajeto como a filosofia social do
século XVII e XVIII, em especial Hobbes e Rousseau, não tinham a sua disposição
um conceito de reconhecimento enquanto horizonte regulador de dinâmicas de
conflito social. Isto produzia, no caso de Hobbes, uma filosofia que pensava a
emergência de corpos políticos baseados na gestão social de uma psicologia que
visava a naturalização de relações concorrenciais, belicistas e possessivas. Uma
psicologia que visava fornecer as bases para a naturalização do conceito
moderno de indivíduo, transforma-lo em um conceito pré-político e ligado a um
processo de determinação meramente psicológica. Neste sentido, a instauração
do estado de sociedade só era possível através da repressão contínua do que
aparecia como natureza humana, obrigando com isto a mobilização contínua do
medo como afeto social. Este circuito de afetos baseado no medo, fruto da
aceitação da fantasia social da guerra de todos contra todos, aparecia como a
mais profunda contradição em relação a práticas de reconhecimento. Não pode
haver reconhecimento lá onde há medo social.
No caso de Rousseau, vimos como a liberdade civil pressupunha uma
autonomia que representava, a sua maneira, um esquecimento da natureza
humana em sua relação de imanência ao corpo da natureza. De onde se seguia o
fato das demandas de reconhecimento serem compreendidas, em larga medida,
de maneira negativa, como processos de alienação e dependência da estima do
outro. Dependência esta que criava o cultivo da aparência e a perda da
transparência. Aqui também a emergência de um corpo político, sob as formas
do contrato social e da vontade geral, tinha que lidar com as limitações
existenciais próprias da elevação da individualidade moderna à célula elementar
da vida social. A vontade geral nascia da possibilidade de motivações para a ação
que não se resumiam a emulação dos interesses individuais. No entanto, ela
implicava a instauração de uma segunda natureza na qual a independência era
transmutada em coesão social no interior de um “Eu comum”. Neste processo, a
soberania popular não implica lidar com uma primeira natureza perdida e sua
nostalgia. Esta nostalgia continuará a assombrar os laços sociais, mas mesmo
esta primeira natureza não será objeto de reconhecimento, no que o termo tem
de determinação de singularidades. Sua emergência será a marca do retorno a
uma origem na qual a generalidade da voz da natureza fala através dos humanos.
De toda forma, tanto a filosofia de Hobbes quanto a de Rousseau tinham
ao menos um ponto em comum: parte-se dos indivíduos isolados em estado de
natureza para alcançarmos as condições possíveis de emergência de um corpo
político. Em Hegel, veremos estratégias completamente distintas. Ao insistir na
centralidade dos processos de reconhecimento, Hegel lembra que a célula
elementar da vida social não são indivíduos atomizados, mas relações. Ou seja, é
certo afirmarmos que, no seu caso, as relações vem antes de seus termos. Ou
seja, o que temos inicialmente são relações, os indivíduos são abstrações, e não o
contrário (os indivíduos seriam “reais” e as relações seriam “abstrações”). Hegel
age como quem diz: a consciência não é prévia às relações intersubjetivas. Na
verdade, ela é seu produto. O que há de concreto no mundo são as relações e sua
força produtiva, não as disposições individuais de conduta. No entanto, a
consciência não é um mero produto, um simples suporte de relações
intersubjetivas. Ela é também o que força as estruturas intersubjetivas a
operarem a partir de conflitos que não são apenas conflitos a respeito da melhor
aplicação de normas sociais intersubjetivamente partilhadas, mas são conflitos a
respeito da legitimidade de tais normas. Esta tensão de difícil manejo é possível
para Hegel, sem necessariamente substancializar a consciência porque, como
veremos, ele tem à sua disposição o conceito de “negatividade”, que se mostrará
central em toda nossa discussão. Mas antes de entrar na exposição da estrutura
conceitual hegeliana, há de entender as matizes de sua trajetória até a
tematização do problema do reconhecimento.
Fenomenologia do Espírito e reconhecimento

O texto mais importante sobre a teoria do reconhecimento de Hegel é, sem


dúvida, sua Fenomenologia do Espírito, de 1806. Nela, encontramos a primeira
formulação acabada do problema do reconhecimento através de várias figuras da
consciência (como a dialética do senhor e do escravo, o mal e seu perdão, entre
outras). Elas serão retomadas e desenvolvidas principalmente em duas obras
posteriores: a Enciclopédia das ciências filosóficas e os Fundamentos da Filosofia
do direito.
De certa forma, o movimento que anima a Fenomenologia do Espírito está
sintetizado na afirmação, presente em sua Introdução: “o caminho do erro é o
caminho da verdade”. Em Hegel, “fenomenologia” significa o estudo da maneira
com que a consciência erra, a maneira com que ela aliena-se na dimensão do que
lhe aparece. No entanto, este sistema de erros é um caminho em direção ao
saber, pois algo acumula-se às costas da consciência, mesmo que ela não perceba.
Isto a ponto do saber aparecer como indissociável da compreensão deste
processo em sua direção. O verdadeiro objeto do saber é a compreensão do
sentido do caminho em sua direção.
Assim, em um movimento contínuo, veremos a consciência procurar
adequar sua certeza à verdade, e para tanto ela partira da certeza mais
elementar, a saber, a certeza da objetividade dos dados imediatos do sentido.
Desde o início, ela se verá enredada em contradições a partir do momento em
que tentará exteriorizar sua certeza, falar sobre ela, expressa-la em um espaço
intersubjetivo. Ela descobrirá que não há relação imediata entre a consciência e
seu objeto, que todas essas relações são mediadas pela estrutura de uma
linguagem que não é simplesmente “minha”, mas que é fruto de uma experiência
social. Neste caminho, ela descobrirá como a estrutura do objeto tem a estrutura
do Eu. O que a princípio para uma proposição idealista típica que reduz o objeto
à projeção da estrutura de categorização do sujeito. No entanto, Hegel quer
mostrar que é o Eu que irá se modificar a partir de seus fracassos em adequar
seu conceito ao objeto, a certeza à verdade. Neste momento, a consciência deixa
de ser “consciência de objeto” e passa a ser “consciência-de-si”. Pois
compreende-se a emergência de um “Eu que é Nós, de um Nós que é Eu”. Ou seja,
não é o Eu isolado como subjetividade constituinte que se confronta aos objetos.
São as estruturas sociais de relações que determinam as formas gerais da
experiência.
No entanto, dizer isto é ainda dizer pouco. Pois há de se entender como
analisar tais estruturas sociais. No caso de Hegel, podemos dizer que o problema
central consiste em entender o que as move. Qual é o motor do movimento das
estruturas sociais e de suas modificações históricas. É para responder esta
questão que Hegel mobilizará o tema do reconhecimento. É através de lutas por
reconhecimento que as estruturas se movem e se modificam. É forçando
processos incompletos e parciais de reconhecimento que elas se transformam.
Ou seja, a história na Fenomenologia do Espírito é uma história de lutas por
reconhecimento.
Quando for capaz de apreender tal história, quando se ver como sujeito
transindividual que atualiza tal história e age no presente a partir dela, a
consciência-de-si não será mais consciência-de-si. Ela será Espírito. Neste
sentido, Espírito não é uma espécie de entidade metafísica superior que teria
parte com a secularização de um conceito divino de providência.
Quando Hegel fala em Espírito, podemos compreender isto, a princípio, de
uma maneira não-metafísica. Atualmente, quando falamos sobre sujeitos
socializados que procuram julgar, orientar racionalmente suas ações e usos da
linguagem, lembramos inevitavelmente da necessidade de um background
pensado um “sistema de expectativas” fundamentado na existência de um saber
prático cultural e de um conjunto de pressupostos que define, de modo pré-
intencional, o contexto de significação. Este background indica que toda ação e
todo julgamento pressupõem um “espaço social partilhado” capaz de garantir a
significação da ação, do julgamento e, principalmente, de nossos modos de
estruturar relações.
Como disse, este background é, em larga medida, pré-intencional e pré-
reflexivo. Não colocamos normalmente a questão sobre a gênese deste saber
prático cultural que fundamenta nossos espaços sociais. Sua validade não
aparece como objeto de problematização. No entanto, podemos imaginar uma
situação na qual os sujeitos socializados irão procurar apreender de maneira
reflexiva aquilo que aparece a eles como fundamento para suas práticas e
julgamentos racionais, podemos pensar uma situação na qual eles procurem
compreender o processo de formação cultural que os levou a tais modos de
orientação da conduta. Podemos ainda achar que tais modos de orientação não
devem ter apenas uma validade historicamente determinada e restrita a espaços
sociais particulares, mas só podem ser válidos se puderem ser defendidos
enquanto universais. Neste momento, estaremos muito próximos daquilo que
Hegel compreende por Espírito. Devemos, neste ponto, seguir a definição de um
comentador de Hegel que viu claramente isto: “Espírito é uma forma de vida
autoconsciente, ou seja, uma forma de vida que desenvolveu várias práticas
sociais a fim de refletir a respeito do que ela toma por legítimo/válido
(authoritative) para si mesma no sentido de saber se estas práticas podem dar
conta de suas próprias aspirações e realizar os objetivos que elas colocaram para
si mesmas (...) Espírito não denota, para Hegel, uma entidade metafísica, mas
uma relação fundamental entre pessoas que medeia suas consciências-de-si, um
meio através do qual pessoas refletem sobre o que elas tomaram por válidos
para si mesmas”55. É a este horizonte que as prática de reconhecimento em Hegel
procuram nos levar. Mas para compreendê-lo de maneira mais efetiva, teremos
que passar da Fenomenologia do Espírito à Filosofia do direito. Pois é lá que este
horizonte normativo do Espírito estará mais claramente posto.

Os primeiros passos em direção ao reconhecimento

No entanto, as primeira formulações sobre o problema do reconhecimento em


Hegel devem ser creditadas a seus manuscritos de juventude, em especial o
chamado Sistema da eticidade e o curso sobre a Filosofia do Espírito, de 1805.
Neles, encontramos de forma clara a maneira com que a tarefa filosófica de Hegel
se vincula a um diagnóstico de época que é, ao mesmo tempo, socio-histórico e
filosófico.

55
PINKARD, Terry; The sociality of reason, p. 9
Hegel partilha com pós-kantianos, como Fichte e Schelling, o diagnóstico
de que viveríamos em um momento histórico de cisão resultante da elevação do
princípio de subjetividade a condição de fundamento da razão moderna, assim
como de seus modos de racionalização social. Este princípio de subjetividade,
com sua condição de fundamento, exige que tudo aquilo que aspira validade seja
submetido à força da reflexão. Ele faz com que ser e reflexão seja pois o mesmo.
No entanto, isto parece inicialmente submeter o ser à dimensão estrita daquilo
que é ser-para-o-sujeito, e não ser em-si. Daí diagnósticos como este que
encontramos no prefácio da Fenomenologia:

Tomando a manifestação dessa exigência [do Absoluto] em seu contexto


mais geral e no nível em que presentemente se encontra o espírito
consciente-de-si [ou seja, trata-se de compreender o que o presente
coloca como exigência do espírito], vemos que esse foi além da vida
substancial que antes levava no elemento do pensamento; além desta
imediatez de sua fé, além da satisfação e segurança da certeza que a
consciência possuía devido à sua reconciliação com a essência e a
presença universal dela – interior e exterior. O espírito não só foi além –
passando ao outro extremo da reflexão, carente-de-substância, de si sobre
si mesmo – mas ultrapassou também isso. Não somente está perdida para
ele sua vida essencial; está também consciente dessa perda e da finitude
que é seu conteúdo. [Como o filho pródigo], rejeitando os restos da
comida, confessando sua abjeção e maldizendo-a, o espírito agora exige da
filosofia não tanto o saber do que ele é, quanto resgatar por meio dela,
aquela substancialidade e densidade do ser [que tinha perdido]”56.

Como vemos, Hegel compreende claramente a modernidade como um


momento de cisão. O espírito teria perdido a imediatez da sua vida substancial,
ou seja, nada lhe apareçeria mais como substancialmente fundamentado em um
poder capaz de unificar as várias esferas de valores sociais. Não haveria mais
recurso à autoridade da tradição ou à certeza da imediatez. Ao contrário, a
modernidade pode ser compreendida como este momento que está
necessariamente às voltas com o problema da sua auto-certificação. Isto
significa: ela não pode mais procurar em outras épocas os critérios para a
racionalização e para a produção do sentido de suas esferas de valores. Ela deve
criar e fundamentar suas normas a partir de si mesma. Isto significa que a
substancialidade que outrora enraizava os sujeitos em contextos sociais
aparentemente não-problemáticos está fundamentalmente perdida. Como dirá,
cem anos depois, Max Weber: “O destino de nossos tempos é caracterizado pela
racionalização e intelectualização e, acima de tudo, pelo desencantamento do
mundo. Precisamente, os valores últimos e mais sublimes retiraram-se da vida
pública, seja para o reino transcendental da vida mística, seja para a fraternidade
das relações humanas e pessoais”57. Ou seja, aquilo que fornecia o enraizamento
dos sujeitos através da fundamentação das práticas e critérios da vida social não
é mais substancialmente assegurado.

56
HEGEL, Fenomenologia I, p. 24
57
WEBER, Ciência como vocação in Ensaios de sociologia, p. 182
Em uma análise hoje clássica, Hegel indica três acontecimentos que foram
paulatinamente moldando a modernidade em suas exigências: a reforma
protestante [com sua confrontação direta entre o crente e Deus através da
subjetividade da fé], a revolução francesa [que colocava o problema do Estado
Justo enquanto aquele capaz de conciliar aspirações de universalidade da Lei e
exigências dos indivíduos] e o Iluminismo [que, segundo Hegel, terá em Kant sua
realização mais bem acabada]. Em todos estes acontecimentos, o que parece
impulsiona-los é o aparecimento do que poderíamos chamar de “subjetividade”.
É a gênese desta subjetividade que deverá ser objeto da filosofia e de seus
processos de fundamentação.
Hegel poderia, no entanto, apelar a uma saída transcendental que visaria
definir o sujeito como mera condição formal de toda experiência possível. Isto
daria ao sujeito a universalidade necessária para não sermos empurrado a um
psicologismo subjetivista. Mas a saída transcendental de moldes kantianos era
insatisfatória para Hegel e para os pós-kantianos. Pois, primeiramente, ela criaria
sua universalidade através da supressão de todo processo histórico de gênese e
metamorfose das categorias do pensamento. As categorias do pensamento
aparecem assim como entidades estáticas e, por isto, indiferente ao mundo tal
como seria em-si. No entanto, dirá Hegel:

Todas as revoluções, nas ciências não menos que na história mundial,


provêm (kommen) somente de que o Espírito agora, para entender e
perceber a si, para tomar posse de si, modificou (geändert hat) suas
categorias, apreendendo-se (sich erfassend) mais verdadeira e
profundamente, mais intimamente e com mais coesão (einiger)”58.

Ou seja, para Hegel, ao procurar apreender-se verdadeira e


profundamente, o Espírito produz necessariamente uma “modificação de
categorias”, um movimento no interior da própria significação destas
determinações universais do pensar. Tais modificações não são apenas
acompanhadas por aquilo que o século XX chamará de “mudança de paradigma
científico” e que Hegel descreve como “revolução” na ciência. Elas são
necessariamente acompanhadas por amplas mutações em nossas formas de vida
às quais Hegel alude ao falar de revoluções na história mundial. Por isto, sua
Ciência da lógica será, primeiramente, uma crítica a ideias como esta:

Pode-se reconhecer que a lógica, desde remotos tempos, seguiu a via


segura, pelo fato de desde Aristóteles, não ter dado um passo atrás, a não
ser que se leve à conta de aperfeiçoamento a abolição de algumas
sutilezas desnecessárias ou a determinação mais nítida de seu conteúdo.
Também é digno de nota que não tenha até hoje progredido, parecendo,
por conseguinte, acabada e perfeita, tanto quanto se nos pode afigurar (...)
Que a lógica tenha sido tão bem sucedida deve-se ao seu caráter limitado,
que a autoriza e mesmo a obriga a abstrair de todos os objetos do
conhecimento e suas diferenças, tendo nela o entendimento que se ocupar
apenas consigo próprio o com sua forma (...) Desde os tempos mais

58
HEGEL, Enciclopédia, par. 246
remotos que a história da razão pode alcançar no admirável povo grego, a
matemática entrou na via segura de uma ciência59.

Estas afirmações de Kant no segundo prefácio à Crítica da razão pura sintetizam


admiravelmente tudo contra o qual Hegel luta em sua filosofia. Não é por outra
razão que a primeira frase da Ciência da Lógica é exatamente uma lamentação:

A modificação completa que afetou o modo de pensar filosófico desde


mais ou menos vinte cinco anos entre nós, a perspectiva mais elevada que
a auto-consciência do Espírito alcançou a respeito de si mesmo neste
período de tempo teve, até agora, pouca influência na forma (Gestalt) da
lógica60.

A confrontação não poderia ser mais clara. Hegel vê como bloqueio


fundamental o fato da lógica “não ter até hoje progredido” e ter pago, como preço
desta estaticidade, a impossibilidade de tematizar a Coisa mesma (die Sache
selbst). Isto nos leva ao segundo problema com uma estratégia transcendental, a
saber, a universalidade de categorias estáticas nos obriga a constituir uma
espécie de “objetividade para nós” que, para Hegel, equivale a estar a um passo
de uma profissão de fé cética. Pois não há modificação de categorias porque as
coisas em-si e os processos concretos não afetam nossas formas de apreendê-los.
Nada que ocorre no tempo será capaz de modificar a forma pura do tempo. Nada
que ocorre no espaço será capaz de modificar as condições de uma estética
transcendental do espaço.
Contra isto, o jovem Hegel irá procurar submeter as estruturas do
conhecimento às dinâmicas de reconhecimento. Isto significará não só se
perguntar pelas condições sociais do conhecimento, ou seja, pela maneira com
que processos históricos coletivos determinam a forma do pensar. Isto
significará também se perguntar como a consciência emerge, quais são as
condições materiais de sua emergência e de suas modificações, como estas
condições determinarão as potencialidades práticas de suas ações em suas
expectativas de racionalidade.
Pois há de se entender que, quando Hegel fala em razão, ele não está a
pensar apenas na capacidade de se orientar no julgamento e de deliberar através
da procura pelo melhor argumento no interior de um processo marcado pelo ato
de dar e compreender razões. Processo este que pressupõe a existência de um
fundamento comum de avaliação de enunciados a partir de uma espécie de
gramática geral partilhada por todos os atores. Razão é, para Hegel, uma forma
de vida que se incarna em instituições e práticas sociais tendo em vista a
efetivação das condições de liberdade. Forma marcada pela reflexividade e pela
capacidade que tenho de me ver como agente das instituições e práticas que me
determinam, isto no sentido de ver minha vontade como atuante no interior das
determinações fundamentais da vida social. Esta razão, como fica claro, é
indissociável da capacidade humana de constituir relações capazes de garantir e

59
KANT, Crítica da razão pura, B VIII/B XI
60
HEGEL, Idem, p. 13. Lembrando, é claro, que a afirmação de Kant não é totalmente correta, já que:
‘a doutrina que ele vê como descoberta completa e perfeita de Aristóteles foi, de fato, uma confusa
versão peculiar da mistura tradicional entre elementos aristotélicos e estóicos” (KNEALE e KNEALE,
The development of logic, Oxford University Press)
reconhecer nossas demandas de liberdade. Ou seja, a razão não é só a
característica da estrutura cognitiva da consciência. Ela é sua força de
instauração de formas sociais.
Isto explica porque o jovem Hegel tentará uma saída ao princípio de
subjetividade constituinte em Kant fazendo apelo à recuperação de laços sociais
pretensamente marcados pelo reconhecimento mútuo e pela garantia de uma
ação social orientada para a emancipação, como seria o caso da polis grega e das
primeiras comunidades cristãs baseadas no amor. Este modelo, no entanto, será
paulatinamente abandonado por Hegel quando compreender que as sociedades
modernas de livre-mercado levaram a individualidade a um desenvolvimento tal,
assim como levaram processos de trabalho a um ponto tal de degradação, que
não seria mais possível apelar a modelos baseados em vínculos comunitários
substanciais.
Em seu lugar, o jovem Hegel construirá uma descrição fenomenológica de
etapas sociais de reconhecimento. Elas começam pelas exigências de satisfação
do desejo. Neste sentido, nos encontramos mais uma vez no ponto de partida de
Thomas Hobbes e de seu estado de natureza. No entanto, simplesmente não há
estado de natureza em Hegel. Comparemos, por exemplo, o movimento textual
do Leviatã e o movimento textual da Fenomenologia do Espírito. No primeiro
caso, temos um movimento sempre ascendente. Começa-se da descrição da
estrutura do desejo individual, expõe-se seus conflitos, evidencia-se seus
impasses e chega-se ao estado social. Em Hegel, temos uma espécie de dinâmica
de aprofundamento, no qual a consciência desvela a natureza mediada daquilo
que ela julgava imediato, desvela a natureza socialmente constituída daquilo que
lhe aparecia como natural. Por isto, perde o sentido em falar em algo como um
“estado de natureza”. Saí de cena as discussões sobre a natureza humana, mesmo
que a filosofia de Hegel procure compreender uma espécie de emergência do
social a partir da natureza, ou seja, a partir do movimento da vida, o que explica
porque a vida aparece como primeira figura do desejo no capítulo IV da
Fenomenologia do Espirito.
Mas tentemos dar o sentido do movimento geral desta dinâmica hegeliana
de aprofundamento. No caso de Hegel, e isto já está presente nos escritos de
juventude, o processo do desejo nos leva a uma dinâmica de conflitos que fará
emergir o trabalho em sua forma de trabalho alienado, trabalho feito no interior
de uma relação de submissão e de medo da morte. Daí porque a primeira figura
da consciência que trabalho é o servo. No entanto, pelas vias do trabalho as
relações de dependência levarão a uma modificação da consciência individual.
Ao trabalhar para um Outro, a consciência descobrirá habitada por uma
perspectiva que não é apenas sua, mas também de Outro. Daí o sentido de
afirmações surpreendentes como:

A submissão (Unterwerfung) do egoísmo do escravo forma o início da


verdadeira liberdade dos homens. A dissolução da singularidade da
vontade, o sentimento de nulidade do egoísmo, o hábito da obediência
(Gehorsams) é um momento necessário da formação de todo homem. Sem
ter a experiência deste cultivo (Zucht) que quebra a vontade própria
(Eigenwillen), ninguém advém livre, racional e apto a comandar. E para
advir livre, para adquirir a aptidão de se auto-governar, todos os povos
tiveram que passar pelo cultivo severo da submissão a um senhor61.

Esta heteronomia ganhará múltiplas figuras, mas será o início de uma


estrutura descentrada fundamental para o advento da noção de Espírito. A
consciência verá esta heteronomia, por exemplo, em chave teológica, como o
culto a um Deus cuja vontade ela não compreende e cuja língua ela não entende.
Figura esta tematizada através do que Hegel chama de “consciência infeliz”. Ou
seja, Hegel mostra como as dinâmicas do trabalho estão no fundamento das
forma de relação ao Outro que comporão as relações sociais em seu sentido mais
amplo.
Neste sentido, há de se lembrar como em seus escritos de juventude,
Hegel submete até mesmo o amor como estrutura de reconhecimento às
dinâmicas do trabalho. Por exemplo, no curso sobre a Filosofia do Espírito, ele
dirá que o amor é uma forma de: “supressão em si-mesmo dos dois [opostos];
cada um é igual ao outro justamente nisto que lhe é oposto; ou o outro, este que o
outro é para si, é ele mesmo. Exatamente porque cada um se sabe no outro, cada
um renunciou a si mesmo”62. No entanto, esta intuição de si no outro aparece
depois que o trabalho foi apresentado como um ato de se fazer outro, de tomar a
forma de um objeto. Isto a ponto de Hegel afirmar que o amor se realiza na
família, principalmente através da concepção da criança “produto do trabalho”
do amor.
No entanto, se Hegel oferece uma versão de uma filosofia da praxis
através desta centralidade do trabalho, seu conceito de trabalho não é
simplesmente fenomenológico. Os escritos de juventude mostram como ele lida
com uma compreensão historicamente precisa da emergência da sociedade do
trabalho. Por exemplo, no Sistema da eticidade, Hegel insiste que a circulação dos
objetos trabalhados pressupõe o valor como abstração capaz de viabilizar a
troca. Tais processos de abstração impedem toda forma efetiva de
reconhecimento. Ele compreende que o advento do trabalho cooperativo
inaugura um processo de “trabalho mecânico” no qual não é mais o gozo singular
que conta, mas a produção do excedente. Ou seja, em todas as situações nos
deparamos com formas de alienação vinculadas a configurações precisas dos
processos materiais de produção.
No entanto, é próprio de Hegel um movimento singular no qual a
alienação é superada pelo próprio processo que ela coloca em marcha. Há um
movimento dialético que tem como objeto a própria alienação. O que não poderia
ser diferente, já que para Hegel toda forma de exteriorização (Entausserung) é
uma forma de alienação (Entfremdung). Não há exteriorização que não sejam, em
seu primeiro momento, modalidade de alienação. Ou seja, de certa forma, tudo se
passa como se a alienação fosse necessária para que os processos de
reconhecimento pudessem ocorrer, tudo se passa como se elas fossem
paradoxalmente não apenas uma perda de si, mas uma formação de si. Pois a
experiência da alienação será também a experiência da inefetividade e da
irrealidade das relações imediatas e imanentes. Ela será a condição para a
emergência de uma consciência do caráter constitutivo das estruturas
relacionais, mesmo que tal consciência seja produzida à condição da consciência

61
HEGEL, G.W.F.; Enciclopédia, par. 435
62
HEGEL, G.W.F.; Filosofia do Espírito, p. 36
ter que continuamente perder a si mesma, até chegar o momento em que ela
perceba que perdeu o que, de certa forma, ela nunca teve.
Lógicas dos reconhecimento
Aula 5

Na aula de hoje, começaremos a leitura do capítulo IV da Fenomenologia do Espírito,


privilegiando a emergência do problema do reconhecimento no interior do texto.
Antes de começar nossa leitura, gostaria de lembrar como esta é uma das páginas
mais comentadas da história da filosofia contemporânea. Por isto, nosso exercício de
leitura não poderá ser feito desconhecendo quão polêmicas são essas páginas. O que
não poderia ser diferente para um dispositivo filosófico que procura articular, em um
mesmo movimento, reflexão sobre a gênese da consciência cognitiva, uma descrição
fenomenológica da natureza das relações sociais, a emergência dos impasses nos
processos de auto-determinação e auto-identidade, além de uma teoria filosófica do
desejo e do trabalho.
Lembremos, inicialmente, como o jovem Marx verá neste trecho um dos eixos
da filosofia hegeliana por compreender, através da tópica da luta de dominação e
servidão, além da centralidade dada aos processos de reconhecimento mediados pelo
trabalho, a possibilidade de uma guinada materialista no interior do idealismo alemão.
O texto fundamental a este respeito é o capítulo dos Manuscritos econômico-
filosóficos intitulado “Crítica da dialética e da filosofia hegeliana em geral”. Dentro
da tradição marxista, Lukacs voltará à centralidade.
Nos século XX, a partir dos anos 30, será a leitura de Alexandre Kojève que
dará a essas páginas a posição de chave-mestra para abrir o pensamento hegeliano.
Será o primeiro momento que o problema do reconhecimento será explicitamente
tematizado enquanto tal. Kojève chega a começar sua leitura da Fenomenologia do
Espírito a partir do capítulo IV, isto a fim de deixar evidente o caráter inaugural do
advento da consciência-de-si. Sua leitura será influente no cenário francês, seja para
desdobra-la, como será o caso de Georges Bataille, Eric Weil, Maurice Blanchot e
Jacques Lacan, seja para recusá-la, como será o caso de Jean-Paul Sartre e mesmo de
Gilles Deleuze, que irá contrapor o escravo hegeliano ao senhor nietzscheano em
Nietzsche e a filosofia.
Quando a temática do reconhecimento retornar à filosofia alemã, agora dentro
das gerações posteriores da Escola de Frankfurt, o recurso ao pensamento hegeliano
passará preferencialmente pela Filosofia do direito, e não exatamente pela
Fenomenologia do Espírito. Dois exemplos privilegiados das leituras feitas da
dialética do senhor e do escravo nesta seara será “Caminhos da
destranscendentalização”, de Jürgen Habermas e “Do desejo ao reconhecimento:
fundamentos hegelianos da consciência-de-si”, de Axel Honneth.
Já no interior do recente hegelianismo norte-americano, teremos um debate
constante a respeito da dialética do senhor e do escravo feito por Robert Pippin
(“Hegel sobre consciência-de-si: desejo e morte na Fenomenologia do Espírito”),
John McDowell (“O Eu perceptivo e o self empírico: em direção a uma leitura
heterodoxa da Dialética do senhor e do escravo na Fenomenologia de Hegel”) e o
texto de Robert Brandom: “A estrutura do desejo e do reconhecimento”.
Lembremos ainda de dois trabalhos singulares que trazem novas dimensões
relevantes de leitura. Primeiro, um trabalho na confluência entre estas três tradições, a
saber, Seja meu corpo: dominação e servidão na filosofia hegeliana, de Judith Butler
e Catherine Malabou. Segundo, a interpretação de Susan Buck-Morss a respeito da
ligação entre a elaboração da dialética do senhor e do escravo e a revolta dos escravos
no Haiti (Hegel e Haiti).
Esta pluralidade de estratégias de leituras nos coloca um problema importante
de interpretação. Por isto, sugiro em um primeiro momento retornar ao texto de Hegel
a fim de propor uma leitura que tentará ser imanente aos dispositivos colocados em
circulação por Hegel. Isto nos permitirá, em um segundo momento, medir melhor o
impacto das leituras posteriores em sua capacidade de explorar dimensões esquecidas
do texto.

Eu e objeto como duplos

Talvez a maneira mais adequada de ler esse trecho da Fenomenologia do


Espírito seja lembrando desta afirmação de Lukacs: “na época da redação da
Fenomenologia, Hegel concebe sua filosofia como a forma intelectual de uma nova
forma da história universal”63. De fato, Hegel escreve a Fenomenologia no momento
da invasão das tropas francesas na Alemanha. Fato que ele compreende como a
oportunidade da Alemanha romper o atraso e abrir suas portas para um tempo
reinstaurado. Sua filosofia será assim a expressão de uma época pós-revolucionária
que faz emergir uma nova figura do tempo histórico e da consciência. Hegel quer
produzir a escrita deste tempo, daí a forma completamente singular e inovadora com
que a Fenomenologia do Espírito será escrita. Ela é uma espécie de romance de
formação que descreve o despertar da consciência em direção à apreensão reflexiva
de sua própria essência. E no interior deste movimento, o primeiro momento
fundamental de ruptura ocorre quando a consciência rompe a ilusão de uma apreensão
imediata do mundo enquanto objeto da experiência dotado de estruturas e
determinações naturalizadas. Ela havia se confrontado ao mundo a partir das
estruturas da sensibilidade, da percepção e do entendimento. Em todos esses casos,
seu objeto parecia fruto de categorias naturalizadas. Por isto, a primeira ruptura
fundamental dirá respeito a descoberta de que a essência do mundo humano é o
próprio ser humano.
É tendo tal reversão em vista que devemos abordar o capítulo IV da
Fenomenologia. Lembremos inicialmente de seu título: “B. Consciência de si: a
verdade da certeza de si mesmo”. Este era o título original da nossa seção. Neste
sentido, ele se diferencia da seção precedente: “A. Consciência”, com seus três
capítulos dedicados à certeza sensível, à percepção e ao entendimento. O subtítulo da
seção é, na verdade, um comentário do seu sentido. Hegel usará expediente
semelhante apenas em outra seção: “C. (AA) Razão: certeza e verdade da razão”.
No caso da consciência de si, o subtítulo não poderia ser mais apropriado.
Com a consciência de si, entramos naquilo que Hegel chama de “terra pátria da
verdade”. Ou seja, a verdade encontra enfim seu fundamento. Ao contrário, na seção
“Consciência”, a verdade encontrava-se alienada em solo estranho, já que ela sempre
era pensada como adequação a um objeto independente que trazia, em si mesmo, a
verdadeira medida do saber.
Mas vemos que, inicialmente, esta verdade não é apresentada como “a verdade
do objeto”, mas “a verdade da certeza de si mesmo”; quer dizer, a consciência de si
apresenta a natureza verdadeira da certeza subjetiva de si, da certeza subjetiva da
minha própria auto-identidade e auto-constituição. Neste sentido, podemos dizer que
nossa seção visa mostrar como o desvelamento da verdadeira natureza da certeza
subjetiva de si será o fundamento para a re-orientação do saber verdadeiro sobre os
objetos do mundo. Operação possível devido ao postulado idealista de que “a

63
LUKACS, Gyorg; El joven Hegel, p. 442
estrutura e unidade do conceito [descrição de estados do mundo] é idêntica a estrutura
e unidade do eu”64. Assim, o questionamento sobre a verdade da certeza de si será,
necessariamente, questionamento a respeito da verdade sobre o saber dos objetos. É
tendo tais questões em vista que devemos ler o primeiro parágrafo do nosso trecho:

Nos modos precedentes da certeza, o verdadeiro é para a consciência algo


outro que ela mesma. Mas o conceito deste verdadeiro desaparece
(verschwindet) na experiência que a consciência faz dele. O objeto se mostra,
antes, não ser em verdade com era imediatamente em si: o ente da certeza
sensível, a coisa concreta da percepção, a força do entendimento, pois esse
Em-si resulta ser uma maneira, como o objeto é somente para um outro. O
conceito de objeto se supera no objeto efetivo, a primeira representação
imediata se supera na experiência e a certeza vem a perder-se na verdade.
Surgiu porém agora o que não emerge nas relações anteriores, a saber, uma
certeza [subjetiva] igual à sua verdade [objetiva], já que a certeza é para si
mesma seu objeto, e a consciência é para si mesma a verdade. Sem dúvida, a
consciência é também nisso um ser-outro, isto é, a consciência diferencia
(unterscheidet) [algo de si mesmo] mas de tal forma que ela é, ao mesmo
tempo, um não-diferenciar (nicht Unterschiedenes) [já que este algo diferente
ainda é ela mesma]65.

Encontramos aqui um resumo que visa mostrar o que realmente estava em jogo na
seção precedente. Enquanto consciência, a medida da verdade era fornecida pela
adequação entre representações mentais e objetos. No entanto, o objeto da experiência
sempre ultrapassava (ou melhor, sempre invertia) as representações naturais do
pensar. Em cada um destes momentos, a consciência parecia perder a objetividade da
sua certeza, ou seja, a crença de que seu saber era capaz de descrever estados de
coisas independentes e dotados de autonomia metafísica.
No entanto, Hegel afirma que surgiu agora aquilo que, na Introdução, ele havia
chamado de meta: ‘onde o saber não necessita ir além de si mesmo, onde o conceito
corresponde ao objeto e o objeto ao conceito”66, ou seja, surgiu uma certeza igual à
verdade. Este surgir eclode quando o saber compreende que seu objeto é a própria
consciência e que lá onde ele acreditava estar lidando com objetos autônomos, ele
estava lidando com a própria estrutura do saber enquanto o que determina a
configuração do que pode aparecer no interior do campo da experiência. “É para a
consciência que o Em-si do objeto e seu ser-para-um-Outro são o mesmo” 67. Daí
porque não se trata mais de tematizar a consciência como consciência de objeto, mas
como consciência de consciência, consciência das estruturas do pensar da
consciência, ou ainda, consciência de si (Selbstbewustssein).
Hegel afirma então que, enquanto consciência de si:

O Eu é o conteúdo da relação e a relação mesma, defronta um Outro [pois


toma a si mesmo como objeto] e ao mesmo tempo o ultrapassa; e esse Outro,
para o Eu, é apenas ele próprio [já que ele toma a si mesmo como objeto]68.

64
BRANDOM, Some pragmatist themes in Hegel´s idealism, pag. 210
65
HEGEL, Fenomenologia, par. 166
66
HEGEL, Fenomenologia, par. 80
67
HEGEL, Fenomenologia, par. 166
68
HEGEL, idem
Afirmações desta natureza podem se prestar a vários mal-entendidos. Pode
parecer que Hegel afirma, em uma bela demonstração de idealismo absoluto, que o Eu
não é apenas o que fornece a forma do que aparece (como em Kant ao insistir que o
objeto qualquer das categorias do entendimento era o correlato do Eu penso ou da
unidade da consciência), mas também o conteúdo, a matéria do que aparece. Só assim
Hegel poderia afirmar que o Eu é, ao mesmo tempo, o conteúdo da relação (entre
saber e objeto) e a própria relação (a forma através da qual o saber dispõe o que
aparece).
No entanto, lembremos como Hegel retomará colocações desta natureza no
parágrafo 167, ao lembrar que a consciência-de-si não e apenas a “tautologia sem
movimento do ‘Eu sou Eu’” pois “enquanto para ela a diferença não tem a figura do
ser, ela não é consciência-de-si”. A partir daí, Hegel pode então fornecer sua
definição de consciência-de-si:

A consciência-de-si é a reflexão, a partir do ser do mundo sensível e


percebido; é essencialmente o retorno a partir do ser-Outro (die Rückkehr als
dem Anderssein)69.

Ou seja, a consciência-de-si é este movimento de refletir-se no ser do mundo sensível


e percebido e retornar a si desta alienação no que tem valor de um Outro, de um
oposto à consciência. Ou seja, o Outro que o Eu traz consigo não é apenas uma outra
consciência, mas um outra consciência que porta um outra perspectiva de apreensão
do mundo, uma perspectiva que, de uma certa forma, me descentra. Nem toda outra
consciência é um Outro para mim, mas apenas aquela que traz uma perspectiva que
entra em conflito com minha perspectiva. Neste sentido, o Outro pode ser não apenas
uma outra consciência, mas também aquilo que resiste a meu modo de apreensão do
mundo. Esta definição de consciência-de-si é idêntica à definição hegeliana de
“experiência”: “Experiência é justamente o nome desse movimento em que o
imediato, o não-experimentado, ou seja, o abstrato – quer do ser sensível, quer do
Simples apenas pensado – se aliena e depois retorna a si dessa alienação; e por isso –
como é também propriedade da consciência – somente então é exposto em sua
efetividade e verdade”70. Isto apenas demonstra como a experiência fenomenológica é
necessariamente experiência de constituição reflexiva da consciência-de-si.

Desejo, interação social e a terra pátria da verdade

No entanto, há ainda uma segunda razão para a passagem da consciência à


consciência-de-si. Não se trata apenas de dizer que, em um dado momento do trajeto
fenomenológico, a consciência descobre que o objeto tem a mesma estrutura do Eu
(sendo que este “mesmo” implica em uma igualdade especulativa, igualdade que
internaliza a diferença). Como eu dissera anteriormente, a grosso modo, a consciência
compreende que sua expectativas cognitivo-instrumentais são dependentes de modos
de interação social e de práticas sociais. Em última análise, toda operação de
conhecimento depende de uma configuração prévia de um “background” normativo
socialmente partilhado, no qual todas as práticas sociais aceitas como racionais estão
enraizadas, e aparentemente não-problemático que orienta as aspirações da razão em
dimensões amplas. Esta idéia foi posta de maneira elegante por Robert Brandom ao

69
HEGEL, Fenomenologia, par. 167
70
HEGEL, Fenomenologia, par. 36
afirmar que: “Toda constituição transcendental é uma instituição social”71, no sentido
de que tudo o que tem status normativo é uma realização social.
Esta dupla articulação só será possível se mostrarmos que a estrutura do Eu já
é, desde o início, uma estrutura social e que a idéia do Eu como individualidade
simplesmente constraposta à universalidade da estrutura social é rapidamente posta
em cheque a partir do momento em que compreendemos, de maneira correta, o que
está em jogo na gênese do processo de individualização de Eus socializados. Hegel,
de fato, quer levar às últimas conseqüências esta idéia de que o Eu já é desde o início
uma estrutura social mostrando as conseqüências desta proposição para a
compreensão do sujeito do conhecimento, do sujeito da experiência moral, o sujeito
do vínculo político e o sujeito da fruição estética. O Eu nunca é uma pura
individualidade, mas: “os indivíduos são eles mesmos de natureza espiritual e contém
neles estes dois momentos: o extremo da singularidade que conhece e quer para si e o
extremo da universalidade que conhece e quer o que é substancial”72.
No entanto, nada disto nos foi apresentado até agora no interior do texto da
Fenomenologia do Espírito. Novamente, os primeiros passos desta operação
complexa será apresentado de maneira abrupta. No parágrafo 167, ao lembrar que a
noção de “fenômeno”, enquanto “diferença que não tem em si nenhum ser” (já que é
apenas o aparecer para-um-Outro) não era figura da unidade da consciência-de-si
consigo mesma mas, ao contrário, era a própria clivagem (já que a essencialidade está
sempre em um Outro inacessível ao saber: a coisa-em-si), Hegel afirma: “Essa
unidade [da consciência-de-si] deve vir-a-ser essencial a ela, o que significa: a
consciência-de-si é desejo em geral (Begierde überhaupt)”73.
O que significa esta introdução do que Hegel chama aqui de “desejo em
geral”, ou seja, não desejo deste ou daquele objeto, mas desejo tomado em seu sentido
geral, como modo de relação entre sujeito e objeto? A partir do contexto, podemos
compreender que a unidade da consciência-de-si com o que havia se alojado no
“interior das Coisas” como essência para além dos fenômenos, unidade entre o saber e
a determinação essencial dos objetos só será possível a partir do momento em que
compreendermos as relações entre sujeito e objeto não apenas como relações de
conhecimento, mas primeiramente como relações de desejo e satisfação. Percebemos
agora o tamanho da inflexão em jogo na passagem da consciência à consciência-de-si.
A princípio, uma afirmação desta natureza pareceria algo totalmente
temerário. Estaria Hegel colocando em marcha alguma forma de psicologismo
selvagem que submete as expectativas cognitivas a interesses prático-finalistas? Ou
estaria ele insistindo, e aí na melhor tradição que encontramos também em Nietzsche
e Freud, que a razão configura seus procedimentos (ou seja, ela define o que é
racional e legítimo) através dos interesses postos na realização de fins práticos,
interesses que nos leva a recuperar a dignidade filosófica da categoria de “desejo”?
De fato, esta segunda alternativa parece ser o caso. Neste sentido, podemos
seguir um comentador que viu isto claramente, Robert Pippin: “Hegel parece estar
dizendo que o problema da objetividade, do que estamos dispostos a contar como uma
reivindicação objetiva é o problema de satisfação do desejo, que a ‘verdade’ é
totalmente relativizada por fins pragmáticos (...) Tudo se passa como se Hegel
estivesse reivindicando, como muitos fizeram nos séculos XIX e XX, que o que conta

71
BRANDOM, idem
72
Ver a este respeito SOUCHE-DAGUES, Négation et individualitá dans la pensée polítique
hégélienne
73
HEGEL, Fenomenologia, par. 167
como explicações bem-sucedidas dependem de quais problemas práticos queremos
resolver (...) que o conhecimento é uma função de interesses humanos”74.
No entanto, parece que Hegel estaria assim entrando com os dois pés em
alguma forma de relativismo que submete expectativas universalizantes de verdade a
contingência de contextos marcados por interesses e desejos particulares. A não ser
que Hegel seja capaz de mostrar que os interesses práticos não são guiados pelo
particularismo de apetites e inclinações mas que, ao se engajar na dimensão prática
tendo em vista a satisfação de seus desejos, os sujeitos realizam necessariamente as
aspirações universalizantes da razão. Mas como defender tal posição partindo da
centralidade do desejo na constituição da consciência-de-si?
Claro está que precisaríamos aqui adentrar na especificação do conceito
hegeliano de desejo. Devemos mostrar como o desejo naturalmente abole sua
perspectiva particularista para se reconciliar com a universalidade de uma espécie de
interesse geral. No entanto, Hegel não faz exatamente isto nos parágrafos seguintes.
Só teremos uma descrição mais adequada do processo do desejo entre os parágrafos
174 e 177. Neste trecho, teremos mais indicações a respeito deste modo de relação
entre sujeito e seu-Outro (no caso, o objeto) que Hegel já havia tematizado no
capítulo precedente ao falar da infinitude. A sua maneira, o desejo em Hegel será a
posição desta infinitude tematizada no final do capítulo sobre o entendimento. Mas
Hegel será agora obrigado a, de uma certa forma, distinguir duas modalidades de
desejo (o desejo vinculado à consumação do Outro e o desejo que forma – ou seja, o
trabalho), da mesma forma com que ele terá de distinguir duas modalidade de
infinitude: uma verdadeira e outra ruim.

O ciclo da vida

Mas antes de entrarmos nestas considerações sobre a noção hegeliana de


desejo, devemos seguir o texto da Fenomenologia a fim de dar conta do que está
posto em seguida, nos parágrafos 168 a 172. Ao apresentar a noção de que a
consciência-de-si é desejo em geral, Hegel afirma que a consciência tem pois diante
de si um duplo objeto: um é ela mesma (já que ela é consciência-de-si), o outro é o
objeto da certeza sensível e da percepção, ou seja, este objeto tal como aparece
imediatamente à consciência. No entanto, este objeto está “marcado com o sinal do
negativo”: ele foi negado enquanto objeto autônomo.
Mas, para nós, ou seja, para aquele que avalia o trajeto fenomenológico da
consciência na posteridade, esta negação não era uma negação simples (o que nos
levaria a uma anulação simples de toda independência do objeto), ela era uma
negação dialética. Ao negar a pura particularidade da certeza sensível, ao ter a
experiência da clivagem do objeto em unidade e multiplicidade, a consciência não
estava apenas tendo a experiência da inadequação do seu saber sobre as coisas. Ela
estava tendo a experiência da manifestação da vida. Por isto, Hegel pode afirmar:

Para nós, ou em si, o objeto que para a consciência-de-si é o negativo retornou


sobre si mesmo, do seu lado; como do outro lado, a consciência também fez o
mesmo. Mediante esta reflexão sobre si (Reflexion in sich), o objeto veio-a-ser
(geworden) vida. O que a consciência-de-si diferencia de si como ente não tem
apenas, enquanto é posto como ente, o modo da certeza sensível e da

74
PIPPIN, The satisfaction of self-consciousness, p. 148
percepção, mas é também ser refletido sobre si; o objeto do desejo imediato é
um ser vivo75.

Dito pois que o desejo forneceria a nova perspectiva de estruturação das


relações entre consciência e objeto, agora sob o primado da consciência-de-si, Hegel
procura determinar qual é a primeira forma de aparição do objeto do desejo. Esta
primeira forma de aparição não é um objeto autônomo ou uma outra consciência-de-
si. Na verdade, o primeiro objeto do desejo é a vida.
Neste ponto, Hegel retorna a antigas colocações que animaram seus escritos de
juventude. Na sua juventude, Hegel já tinha para si alguns traços gerais da tarefa
filosófica que irá anima-lo a partir da Fenomenologia do Espírito. Hegel compreendia
que a tarefa filosófica fundamental do seu tempo era fornecer uma saída para as
dicotomias nas quais a razão moderna havia se enredado. Lembremos como Hegel
definia os tempos modernos, ou seja, seu próprio tempo, como este tempo no qual o
espírito perdeu sua vida essencial e está consciente desta perda e da finitude de seu
conteúdo.
Vimos até agora como a Fenomenologia do Espírito apresentava algumas
destas dicotomia. O saber pensado como representação, ou seja, enquanto disposição
posicional dos entes diante de um sujeito, não podia deixar de operar dicotomias e
divisões no interior do que se oferece como objeto da experiência entre aquilo que é
para-mim e aquilo que seria em-si, entre o que se dá através da receptividade da
intuição e aquilo que é ordenado pela espontaneidade do entendimento com suas
estruturas reflexivas de representação, entre o que é da ordem do espírito e o que é da
ordem da natureza, entre o que é acessível à linguagem e o que é pura particularidade
inefável.
Para a geração de Hegel, a filosofia moderna deve ultrapassar um sistema de
dicotomias que encontrou sua figura mais bem acabada na maneira kantiana de
definição do primado da faculdade do entendimento na orientação da capacidade
cognitiva da consciência. Hegel partilha o diagnóstico de pós-kantianos como Fichte e
Schelling de que, na filosofia kantiana, o primado da reflexão e do entendimento,
produziu cisões irreparáveis. Daí porque “o único interesse da razão é o de suspender
antíteses rígidas”76.
Em Hegel, uma das primeiras formas de definição do modo de anulação de
tais dicotomias foi a tematização de uma espécie de solo comum, de fundamento
primeiro, a partir do qual sujeito e objeto se extrairiam, isto na mais clara tradição
schellinguiana. Este fundamento primeiro era a vida. Daí porque Hegel poderá
afirmar, na juventude: “Pensar a pura vida, eis a tarefa”, já que “A consciência desta
pura vida seria a consciência do que o homem é”. Como bem viu Hyppolite: “a pura
vida supera essa separação [produzida pelo primado do entendimento] ou tal
aparência de separação; é a unidade concreta que o Hegel dos trabalhos de juventude
ainda não consegue exprimir sob forma dialética” 77 . A vida supera esta separação
porque ela forneceria o solo comum no qual sujeito e objeto se encontram: todos eles
estariam substancialmente enraizados no ciclo da vida que, por sua vez, forneceria,
uma perspectiva privilegiada de compreensão racional do que se apresenta. Ter a vida
por objeto do desejo é reconhecer, no próprio objeto, a substância que forma
consciências-de-si.

75
HEGEL, Fenomenologia, par. 168
76
HEGEL, Diferença dos sistemas filosóficos de Fichte e Schelling, p. 38
77
HYPPOLITE, Gênese e estrutura, p. 162
Neste sentido, não é por outra razão que Hegel apresenta a vida logo na
entrada da seção dedicada à consciência-de-si. Enquanto consciência que reconhece
as dicotomias nas quais uma razão compreendida a partir da confrontação entre
sujeito e objeto se enredara, a consciência-de-si procura um background normativo
intersubjetivamente partilhado a partir do qual todos os modos de interação entre
sujeito e objeto se extraem. A vida aparece inicialmente como este background. O que
Habermas vira muito bem ao afirmar: “Contra a encarnação autoritária da razão
centrada no sujeito, Hegel apresenta o poder unificador de uma intersubjetividade que
se manifesta sob o título de amor e vida”78.
No entanto, a vida é ainda uma figura incompleta porque seu movimento não
é para-si, ou seja, não é reflexivamente posto e apreendido. Mas não se trata, por
outro lado, de simplesmente negar, através de uma negação simples, o que a reflexão
sobre a vida traz. De fato, há uma certa continuidade entre a vida e a consciência-de-si
claramente posta por Hegel nos seguintes termos: “A consciência-de-si é a unidade
para a qual é a infinita unidade das diferenças, mas a vida é apenas essa unidade
mesma, de tal forma que não é ao mesmo tempo para si mesma”79.
Mas antes de avançarmos, devemos nos perguntar: como Hegel compreende a
vida e seu movimento, seu ciclo? De maneira esquemática, podemos dizer que a vida
é fundamentalmente compreendida a partir da tensão entre a universalidade da
unidade da vida e a particularidade do indivíduo ou da multiplicidade diferenciadora
das formas viventes. Por isto, ela pode aparecer como figura da infinitude, já que cada
um é encarnação da contradição entre unidade e indivíduo [lembrar dos estudos
posteriores de biologia, em especial os de Weismann, sobre soma – substância mortal-
e plasma – substância imortal]. Isto nos explica porque Hegel havia dito, ao
apresentar o conceito de infinitude no capítulo sobre o entendimento: “Essa infinitude
simples – ou o conceito absoluto – deve-se chamar a essência simples da vida, a lama
do mundo, o sangue universal”80. No nosso trecho, Hegel descreve o ciclo da vida do
parágrafo 169:

Seu ciclo se encerra nos momentos seguintes. A essência é a infinitude, como


ser-suprimido de todas as diferenças [a vida é o que retorna sempre a si na
multiplicidade de diferenças do vivente], o puro movimento de rotação, a
quietude de si mesma como infinitude absolutamente inquieta, a
independência mesma em que se dissolvem as diferenças do movimento; a
essência simples do tempo que tem, nessa igualdade-consigo-mesma, a figura
sólida do espaço. Porém, nesse meio simples e universal, as diferenças
também estão como diferenças, pois essa universal fluidez [da vida como
unidade] só possui sua natureza negativa enquanto é um suprimir das mesmas,
mas não pode suprimir as diferenças se essas não têm um subsistir81.

Todo o desenvolvimento do parágrafo 170 até o parágrafo 172 é uma longa descrição
sobre este processo de afirmação das diferenças contra o fundo de unidade da vida e
de dissolução, ou o perecimento, das mesmas diferenças através da afirmação do
fluxo contínuo da vida enquanto fluxo de multiplicidade de figuras que não subsistem.
Como bem lembra Hyppolite: “Pode-se partir da vida como todo (natura naturans) e
chegar aos indivíduos separados (natura naturata) e pode-se igualmente partir do

78
HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, p. 39
79
HEGEL, Fenomenologia, par. 168
80
HEGEL, Fenomenologia, par. 162
81
HEGEL, Fenomenologia, par. 169
indivíduo separado e reencontrar nela esta totalidade da vida”82. Daí porque Hegel
poderá afirmar, ao final, que a vida: “é o todo que se desenvolve, que dissolve seu
desenvolvimento e que se conserva simples nesse movimento”83.
Mas, como vimos, a vida só é esta infinitude para a consciência-de-si, ela não
para-si. Neste sentido, a infinitude presente na vida deve se manifestar à consciência-
de-si. Como a vida é o próprio meio do qual a consciência-de-si faz parte, ela deve
descobrir inicialmente em si mesma tal infinitude. E a primeira manifestação de tal
infinitude se dará através do desejo. Uma manifestação ainda imperfeita pois solidária
do aparecimento de um infinito ruim. Mas como pode uma infinitude ser ruim?

Hegel e o desejo

Para Hegel, o desejo (Begierde) é a maneira através da qual a consciência-de-


si aparece em seu primeiro grau de desenvolvimento. Neste sentido, ele é, ao mesmo
tempo, modo de interação social e modo de relação ao objeto. Além do desejo, Hegel
apresenta, ao menos, outros dois operadores reflexivos de determinação da
consciência-de-si: o trabalho e a linguagem.
Na aula passada, insisti que Hegel vinculava-se a uma longa tradição que
remonta a Platão e compreende o desejo como manifestação da falta. Isto fica muito
claro em um trecho da Enciclopédia. Lá, ao falar sobre o desejo, Hegel afirma:

O sujeito intui no objeto sua própria falta (Mangel), sua própria unilateralidade
– ele vê no objeto algo que pertence à sua própria essência e que, no entanto,
lhe falta. A consciência-de-si pode suprimir esta contradição por não ser um
ser, mas uma atividade absoluta84.

A colocação não poderia ser mais clara. O que move o desejo é a falta que
aparece intuída no objeto. Um objeto que, por isto, pode se pôr como aquilo que
determina a essencialidade do sujeito. Ter a sua essência em um Outro (o objeto) é
uma contradição que a consciência pode suprimir por não ser exatamente um ser, mas
uma atividade, isto no sentido de ser uma reflexão que, por ser posicional, toma a si
mesma por objeto.
Mas, dizer isto é ainda dizer muito pouco. Pois se o desejo é falta e o objeto
aparece como a determinação essencial desta falta, então deveríamos dizer que, na
consumação do objeto, a consciência encontra sua satisfação. No entanto, não é isto o
que ocorre:

O desejo e a certeza de si mesma alcançada na satisfação do desejo [notemos


esta articulação fundamental: a certeza de si mesmo é estritamente vinculada
aos modos de satisfação do desejo] são condicionados pelo objeto, pois a
satisfação ocorre através do suprimir desse Outro, para que haja suprimir, esse
Outro deve ser. A consciência-de-si não pode assim suprimir o objeto através
de sua relação negativa para com ele, pois essa relação antes reproduz o
objeto, assim como o desejo85.

82
in HEGEL, Phénoménologie de l´Esprit, p. 148, nota 9
83
HEGEL, Fenomenologia, par. 171
84
HEGEL, Enciclopédia, par. 427 - adendo
85
HEGEL, Fenomenologia, par. 175
A contradição encontra-se aqui na seguinte operação: o desejo não é apenas
uma função intencional ligada à satisfação da necessidade animal, como se a falta
fosse vinculada à positividade de um objeto natural. Ele é operação de auto-posição
da consciência: através do desejo a consciência procura se intuir no objeto, tomar a si
mesma como objeto e este é o verdadeiro motor da satisfação. Através do desejo, na
verdade, a consciência procura a si mesma. Daí porque Hegel pode afirmar que,
inicialmente, o desejo aparece em seu caráter egoísta. Já na Filosofia do espírito, de
1805, Hegel oferece a estrutura lógica deste movimento que serve de motor para a
figura do desejo: "O desejante quer, ou seja, ele quer se pôr (es will sich setzen), se
fazer objeto (Gegenstande machen)"86. Isto implica inicialmente em tentar destruir o
Outro (o objeto) enquanto essência autônoma. No entanto, satisfazer-se com um
Outro aferrado à positividade de uma condição de mero objeto (no sentido
representacional) significa não realizar a auto-posição da consciência enquanto
consciência. A consciência só poderá se pôr se ela desejar um objeto que duplica a
própria estrutura da consciência. Ela só poderá se satisfazer ao desejar uma outra
consciência, ao intuir a si mesmo em uma outra consciência. “A consciência-de-si só
alcança satisfação em uma outra consciência-de-si”. Daí porque:

A satisfação do desejo é a reflexão da consciência de si sobre si mesma, ou a


certeza que veio a ser verdade. Mas a verdade dessa certeza é antes a reflexão
redobrada (gedoppelte Reflexion), a duplicação da consciência-de-si87.

Podemos entender melhor este ponto se levarmos a sério a relação necessária


entre desejo e impulso (Trieb – termo de difícil tradução que atualmente, devido à
influência psicanalítica, é normalmente traduzido por “pulsão”). Tanto na Filosofia do
Espírito de 1805 quanto no livro da Enciclopédia dedicado à Filosofia do Espírito,
Hegel insiste na distinção entre desejo e impulso. Distinção que visa apenas mostrar
como o segundo é a verdade do primeiro. O primeiro ainda estaria aferrado a uma
dicotomia não superada entre o subjetivo e o objetivo. Daí porque a objetividade
aparece como o que deve ser destruído para que a subjetividade possa se pôr. Neste
sentido, sob o império do desejo, a subjetividade é exatamente “o que é privado de
outro, privado de conteúdo e ela sente esta falta”88. Ou seja, a falta enquanto desejo é
a primeira manifestação de uma subjetividade que já não se reconhece mais no que é
posto como determinidade, ou que já não se confunde como o fluxo simples e
contínuo da vida. A subjetividade que é desejo aparece então como abstração de toda
determinidade, mas uma abstração que, por ser desejo, procura se intuir no objeto e
esta é a contradição que anima a consciência-de-si entre ser algo que é puramente
para-si e algo que é também em-si.
Por outro lado, o impulso é, ao mesmo tempo, o fundamento e a superação do
desejo. Em 1805, Hegel afirmava que o desejo tinha ainda algo de animal por cair na
ilusão de que sua satisfação estava em um objeto externo e particular (daí a
contradição na qual ele necessariamente se enredava). Já o impulso procede da
oposição suprimida entre subjetivo e objetivo, o que significa, entre outras coisas, que
sua satisfação não é mais marcada exclusivamente pela particularidade do objeto, mas
se revela como portando “algo de universal”. Ou seja, o impulso implica em uma
tentativa de reconciliação com o objeto através da realização desta intuição da falta no
objeto. Daí porque: "Lá onde um [ser] idêntico a si mesmo comporta em si mesmo
86
HEGEL, Jenaer Realphilosophie, Hamburg: Felix Meiner, 1969, p. 194
87
HEGEL, Fenomenologia, par. 176
88
HEGEL, Filosofia do Espírito,
uma contradição e é pleno do sentimento de sua identidade sendo-em-si com si
mesmo, assim como do sentimento oposto de sua contradição interna [vinda do
vínculo ao objeto], já surge necessariamente o impulso (Trieb) em suprimir tal
contradição. O [ser] não-vivo não tem impulso algum, pois ele não pode suportar a
contradição, mas perece quando o Outro de si irrompe em si"89. [lembrar como Hegel
nunca operou com distinções estritas entre impulso e vontade livre - entre desejo
patológico por objetos e vontade ligada à pura forma de uma lei que a consciência
erige para si mesma].
Mas voltemos à noção de que a satisfação do desejo é a reflexão da
consciência de si sobre si mesma, ou ainda, reflexão redobrada. Hegel procurava com
isto fornecer uma saída para o problema da consciência-de-si, ou seja, da consciência
que toma a si mesma como objeto, que não fosse tributária da clivagem entre eu
empírico (objeto para a consciência) e eu transcendental. De fato: “quando a
consciência-de-si é o objeto, é tanto Eu como objeto”, mas como operar tal dualidade
sem cair na dicotomia entre empírico e transcendental?
Inicialmente, Hegel apresentou, através da vida, a idéia de um fundamento
comum a partir do qual sujeito e objeto se extraem. Ou seja, ao invés da
fundamentação das operações de auto-determinação através da posição de estruturas
transcendentais, Hegel apresentou um solo comum que se expressa tanto no sujeito
quanto no objeto. No entanto, a vida é um fundamento imperfeito, pois não é
reflexivo, não pode ser posto reflexivamente, já que a vida não é para si.
Hegel apresenta então a noção, mais completa, de “reflexão redobrada”, ou
seja, a noção de que a consciência só pode se pôr em um objeto que não seja
exatamente um objeto, mas que seja por sua vez uma reflexão, um movimento de
passar ao outro e de retornar a si desta alienação. Daí porque a consciência só pode
ser consciência-de-si ao se pôr em uma outra consciência-de-si. O objeto deve se
mostrar como “em si mesmo negação”, no sentido de portar esta falta que o leva a
procurar sua essência no seu ser-Outro. Sobre a noção de ‘reflexão redobrada’
podemos especificá-la mais afirmando se tratar de um movimento que é, ao mesmo
tempo, reflexão-em-si e reflexão-no-Outro. A reflexão-em-si, Hegel a define na
Enciclopédia, é a própria identidade, quer dizer, esta referência-a-si que subsiste
através do excluir de toda a diferença. Já a reflexão-no-Outro é o momento mesmo da
diferença ou do ser-fora-de-si. Logo, a reflexão duplicada nada mais é do que esta
referência-a-si que é, ao mesmo tempo, referência-a-Outro. Uma espécie de jogo de
espelhos duplicado. Toda vez que a consciência tenta fazer referência a si ela acaba
fazendo referência a um Outro e vice-versa.
Neste sentido, o problema do fundamento da consciência-de-si só pode ser
resolvido através de um recurso à dinâmica de reconhecimento entre desejos.
Dinâmica de reconhecimento que nos levará a um “Eu que é nós e um nós que é eu”.
Por trás deste eu que é nós e de um nós que é eu, há a certeza de que a consciência só
pode ser reconhecida quando seu desejo não for mais desejo por um objeto do mundo,
mas desejo de outro desejo, ou antes, desejo de reconhecimento. Assim, entramos no
dia espiritual da presença. A experiência fenomenológica do advento deste dia
espiritual da presença é o tema do que ficou conhecido como “a dialética do Senhor e
do Escravo”.

89
HEGEL, Enciclopedia, Add, par.426
Lógicas do reconhecimento
Aula 6

Na aula passada, iniciamos as considerações sobre o capítulo dedicado á


consciência-de-si. Terminamos na discussão sobre a estrutura do conceito
hegeliano de desejo, assim como na submissão das dinâmicas do desejo a
processos de reconhecimento. Comecemos hoje então pelo comentário desta
frase na abertura da seção sobre a “Dependência e Independência da
consciência-de-si: dominação e servidão”:

A consciência-de-si é em si e para si quando e porque é em si e para si


para uma Outra, quer dizer, só é como algo reconhecido90.

Esta afirmação sintetiza todo o processo que se desdobrará através da


figura da consciência-de-si. A consciência-de-si só é na medida em que se põe
para um Outro e como um Outro. Ela é, neste sentido, a realização da noção de
infinitude (enquanto o ter em si a negação de si sem, com isto, produzir um
objeto desprovido de conceito). Esta dinâmica da infinitude, ou ainda, esta
unidade na duplicação, se dará através de operações simétricas de
reconhecimento. No entanto, elas não estão disponíveis à consciência-de-si.
Neste sentido, é extremamente sintomático que Hegel não faça preceder a
dinâmica do reconhecimento de considerações sobre o amor, tal como acontece
na Filosofia do Espírito de 1805. Pois o amor seria esta posição de
reconhecimento mútuo na qual “cada um se sabe no outro e cada um renunciou a
si mesmo”91. Ele poderia fornecer uma base de socialização humana que nos
permitiria pensar processos sociais mais amplos de reconhecimento.
Ao contrário, Hegel não dará lugar algum para o amor nas suas
considerações fenomenológicas sobre a dinâmica do reconhecimento.
Atualmente, conhecemos projetos filosóficos (Habermas, Honneth) que vêem
nisto o sinal do abandono de um conceito forte de intersubjetividade primitiva
da vida humana em prol de uma perspectiva centrada nos processos de auto-
mediação da consciência individual. No entanto, podemos partir de outra
perspectiva. Podemos dizer que Hegel age como quem acredita agora que os
processos mais elementares de interação social só são legíveis no interior de
dinâmicas de conflito (o que não é estranho a um Thomas Hobbes, por exemplo).
Ou seja, o conflito é o primeiro dado na constituição dos processos de interação
social. E mesmo a “vida” enquanto fundamento de onde se extraem sujeito e
objeto foi pensada a partir do conflito entre a universalidade simples da vida e a
multiplicidade de suas figurações diferenciadoras.
Hegel pode dizer que os processos mais elementares de interação social
são necessariamente conflituais porque, para ele, tudo se passa como se toda
individuação fosse necessariamente uma alienação. Conseqüência simples do fato
de que toda exteriorização é necessariamente alienação. A consciência-de-si só
pode ser reconhecida enquanto consciência-de-si se se submeter à alienação de

90
HEGEL, Fenomenologia, par. 178
91
HEGEL, Filosofia do Espírito
si. Daí porque Hegel pode dizer, a respeito das interações elementares entre
consciências-de-si:

Para a consciência-de-si, há uma outra consciência-de-si, ou seja, ela veio


para fora de si [ela se vê como algo que vem da exterioridade, Hegel chega
a falar em ser-fora-de-si - Aussersichsein]. Isso tem dupla significação:
primeiro, ela se perdeu a si mesma, pois se acha em uma outra essência
[ou seja, ela se alienou a ver que ela é primeiramente para uma outra
consciência]. Segundo, com isso ela suprimiu o Outro, pois não vê o Outro
como essência, mas é a si mesma que vê no Outro [ela só vê, no outro, a
projeção de si]92.

Ou seja, a primeira manifestação do Outro é como aquele que me leva à


perda de mim mesmo por me fazer defrontar com algo de mim que se dá na
minha exterioridade. O Outro não é aquele que me confirma em minhas certezas.
Ele é aquele que me destitui, que me despossui de minhas ilusões de
independência. Vejo no Outro apenas a imagem de mim mesmo, ou apenas a
imagem de mim como um outro. Já vimos esta dinâmica quando falamos do
desejo. Agora, Hegel lembra que a perda de si é também perda do Outro [já que o
Outro também só é enquanto reconhecido]. “A consciência-de-si deve superar
esse seu-ser-Outro”. Esta superação ou des-alienação da consciência é
necessariamente retorno a si através da construção de um conceito renovado de
auto-identidade (não mais a auto-identidade enquanto experiência imediata de
si a si, mas a identidade enquanto o que é reconhecido pelo Outro). No mesmo
movimento, ela é reconhecimento da sua diferença para com o Outro. Diferença
que poderá ser então reconhecida porque a consciência sabe que ela traz e si
mesma a diferença em relação a si mesma, ou seja, ela verá no Outro a mesma
diferença que ela encontra nas suas relações à si. Daí porque Hegel precisa dizer:

Mas esse movimento da consciência-de-si em relação a uma outra


consciência-de-si se representa, desse modo, como o agir (Tun) de uma
delas. Porém esse agir de uma tem o duplo sentido (gedoppelte Bedeutung
– um sentido/referência redobrado) de ser tanto o seu agir como o agir da
outra; pois a outra é também independente, encerrada em si mesma, nada
há nela que não mediante ela mesma93.

O processo de reconhecimento passará então por uma certa pragmática pois é o


agir que realiza a posição da consciência. Hegel apenas lembra aqui que o
problema da reconhecimento deve ser necessariamente um problema de como
práticas sociais são constituídas. Podemos falar aqui em práticas sociais porque
Hegel nos lembra, com propriedade, que todo agir tem um sentido redobrado:
ele é, ao mesmo tempo agir do sujeito e agir do Outro. Todo agir pressupõe um
campo partilhado de significação no qual o agir se inscreve. Pois todo agir
pressupõe destinatários, é agir feito para um Outro e inscrito em um campo que
não é só meu, mas é também campo de um Outro. A significação do ato não é

92
HEGEL, Fenomenologia, par. 179
93
HEGEL, Fenomenologia, par. 182
assim resultado da intencionalidade dos agentes, mas determinação que só se
define na exterioridade da intenção.

Por conseguinte, o agir tem duplo sentido (doppelsinnig), não só enquanto


é agir quer sobre si mesmo, quer sobre o Outro, mas também enquanto
indivisamente é o agir tanto de um quanto do Outro94.

Hegel não teme pensar a anatomia do ato através da dinâmica de ação e


reação própria ao jogo de forças, na qual a posição da força solicitada
expressava-se necessariamente na posição da força solicitante e na qual um pólo
servia de determinação essencial ao outro pólo. Este movimento duplicado
demonstrava como a realização da força era necessariamente o desaparecer do
seu conceito simples inicial, ou ainda como o desaparecer da força era a
realização do seu conceito. No caso da interação entre consciências, veremos
como a alienação de cada consciência no Outro já é a realização da consciência-
de-si. Isto apenas demonstra como:

Cada extremo é para o Outro o meio termo, mediante o qual é consigo


mesmo mediatizado e concluído, cada um é para si e para o Outro,
essência imediata sendo para si, que ao mesmo tempo só é para si através
dessa mediação. Eles se reconhecem como reconhecendo-se
reciprocamente95.

Introduzindo a dialética do Senhor e do Escravo

A partir do parágrafo 185, Hegel propõe-se analisar o processo de


manifestação, para a consciência-de-si, deste puro conceito de reconhecimento,
desta duplicação da consciência-de-si em sua unidade. É a partir de agora que
teremos uma descrição fenomenológica da experiência de reconhecimento da
consciência-de-si. Tal descrição visa fornecer algo como a “forma geral dos
processos de reconhecimento e de interação social”. Não se trata exatamente de
uma antropogênese, como encontraremos na leitura de Alexandre Kojève, sem
dúvida, uma das mais célebres a respeito deste trecho da Fenomenologia do
Espírito. Não se trata de uma antropogênese, mas da exposição de uma lógica do
reconhecimento que será retomada em vários momentos da Fenomenologia do
Espírito, como nas figuras da consciência infeliz, na confrontação entre a
consciência vil e a consciência que julga, entre outros.
Por outro lado, uma leitura atenta do nosso trecho demonstra como o
verdadeiro alvo de Hegel encontra-se na crítica ao pensamento representativo e
na meditação sobre as condições lógicas de passagem do pensamento
representativo ao pensamento especulativo através de considerações sobre o
lugar lógico do reconhecimento. O que nos explica por que, na perspectiva do
para nós (für uns), a DSE nos leva em direção ao advento de uma nova figura da
consciência, uma consciência que pensa e, neste momento, Hegel faz uma
distinção importante entre objeto do pensamento (especulativo) e
representação: “Para o pensar, o objeto não se move em representações ou em

94
HEGEL, Fenomenologia, par. 183
95
HEGEL, Fenomenologia, par. 184
figuras, mas sim em conceitos, o que significa: em um ser-em-si diferente, que
imediatamente para a consciência não é nada diferente dela”96. Se não levamos
em conta este primado, a via se abre para a antropologização excessiva do
discurso hegeliano em detrimento de considerações sobre sua articulação lógica.
Vejamos, por exemplo, como Hegel inicia a descrição deste movimento
dialético:

De início, a consciência-de-si é ser-para-si simples, igual a si mesma


mediante o excluir de si de todo o outro. Para ela, sua essência e objeto
absoluto é o Eu, e nessa imediatez ou nesse ser de seu ser-para-si é um
singular. O que é Outro para ela, está como objeto inessencial, marcado
com o sinal do negativo97.

Se analisarmos a dialética do Senhor e do Escravo com cuidado, veremos


que seu problema fenomenológico consiste na possibilidade de apresentação
(Darstellung – o termo é várias vezes utilizado por Hegel no texto) da consciência
como pura abstração, como puro Eu. Hegel é muito claro no que diz respeito à
importância deste movimento de: “apresentar-se a si mesmo como pura
abstração”98 que é o motor da ação da consciência.
Notemos o ponto de partida. Hegel não diz algo como: “de início, a
consciência-de-si é animada pela realização de suas necessidades, pela afirmação
de suas propriedades”, como seria em um estado de natureza hobbesiano. Ele
diz: “de início, a consciência-de-si é puro para-si”, ou seja, ela é independência
absoluta, afirmação de sua transcendência em relação a tudo o que é para-Outro.
Tal apresentação como pura abstração é, na verdade, o fundamento da auto-
determinação da subjetividade. A subjetividade só aparece como movimento
absoluto de abstração (é por vincular o ser do sujeito ao ponto vazio de toda
aderência imediata à empiria que Hegel continua vinculado à noção moderna de
sujeito). O primeiro movimento de auto-determinação da subjetividade consiste
pois em negar toda sua aderência com a determinação empírica, consiste em
transcender o que a enraíza em contextos e situações determinadas “para ser
apenas o puro ser negativo da consciência igual-a-si-mesma”. Para Hegel, a
individualidade (Individualität) aparece sempre, em um primeiro momento,
como negação que recusa toda co-naturalidade imediata com a exterioridade
empírica. Por isto, Hegel deve afirmar:

A apresentação de si como pura abstração da consciência-de-si consiste


em mostrar-se como pura negação de sua maneira de ser objetiva, ou em
mostrar que não está vinculado a nenhum ser-aí (Dasein) determinado,
nem à singularidade universal do ser-ai em geral, nem à vida99.

96
HEGEL, Fenomenologia I, p. 134. "Dem Denken sich des Gegenstand nicht in Vorstellungen, oder
Gestalten, sondern in Begriffen, das heit in einem unterschiednen Ansichsein, welches unmittelbar für
das Be wutsein kein unterschiednes von ihm ist" (HEGEL, PhG, p. 137)
97
HEGEL, Fenomenologia, par. 186
98
HEGEL, Fenomenologia do espírito I, p. 159 - Die Darstellung seiner aber als der reinen
Abstraction ...
99
HEGEL, Fenomenologia, par. 187
Para Hegel, o sujeito moderno não era simplesmente fundamento certo do
saber, mas também entidade que marcado pela indeterminação substancial. Ele é
aquilo que nasce através da transcendência em relação a toda e qualquer
naturalidade com atributos físicos, psicológicos ou substanciais. Como dirá
várias vezes Hegel, o sujeito é aquilo que aparece como negatividade que cinde o
campo da experiência e faz com que nenhuma determinação subsista. Na
Filosofia do Espírito, de 1805, ele não deixará de encontrar metáforas para falar
deste sujeito que aparece como o que é desprovido de substancialidade e de
determinação fixa:

O homem é esta noite, este nada vazio que contém tudo na simplicidade
desta noite, uma riqueza de representações, de imagens infinitamente
múltiplas, nenhuma das quais lhe vem precisamente ao espírito, ou que
não existem como efetivamente presentes (...) É esta noite que
descobrimos quando olhamos um homem nos olhos, uma noite que se
torna terrível, é a noite do mundo que se avança diante de nós100.

Para além da ressonância poética do trecho, devemos simplesmente lembrar


como Hegel insistia que a própria constituição do sujeito enquanto pura
condição formal de um saber que seria eminentemente representativo (como o
saber na modernidade) exigia uma operação de “negatividade”. Podemos
inicialmente compreender tal “negatividade” como a posição da inadequação
entre as expectativas de reconhecimento do sujeito e o campo de determinações
fenomenais. Neste sentido, Hegel poderia simplesmente compreender esta
negatividade que “supera a imediatez abstrata, quer dizer, a imediatez que é
apenas ente em geral”101 como “transcendentalidade”, tal como fizera, antes dele,
Kant ao insistir, por exemplo, na clivagem necessária entre “eu empírico” e “eu
transcendental”. Mas a negatividade hegeliana não é a transcendentalidade
kantiana. Ela é manifestação, na empiria, daquilo que fundamenta a posição dos
sujeitos.
Por isto, a apresentação de si deve aparecer inicialmente como um ato/um
agir que tende à morte do Outro, isto no sentido de ato que tende à negação
completa da essencialidade da perspectiva do Outro. Ela inclui o arriscar a
própria vida, já que é afirmação de si através da negação de existência natural.
Na Filosofia do Espírito, Hegel chega a falar: “é um suicídio na medida em que a
consciência se expõe ao perigo”. Há uma espécie de prova aqui. A consciência
inicialmente não foge da morte a fim de defender sua integridade de indivíduo.
De certa forma, ela a procura a fim de provar para si mesmo sua liberdade e
independência.
Esta luta de vida e morte entre as consciências é assim fundamentalmente
um problema de auto-determinação de uma subjetividade cujo fundamento é
pensado enquanto negação. Hegel é bastante claro neste sentido ao afirmar:

Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade se conquista e se prova que


a essência da consciência-de-si não é o ser, nem o modo imediato como
ela surge, nem o seu submergir na expansão da vida, mas que nada há

100
HEGEL, Filosofia do espírito, p. 13
101
HEGEL, Fenomenologia I, par. 32
para a consciência que não seja para ela momento evanescente
(verschwindendes Moment); que ela é somente puro ser-para-si. O
indivíduo que não arriscou a vida pode ser bem reconhecido como pessoa
[ou seja, como membro do vínculo social], mas não alcançou a verdade
desse reconhecimento como uma consciência-de-si independente [o que
demonstra que não se trata de descrever simplesmente o advento dos
modos de sociabilidade, mas de compreender como a consciência pode
ter a experiência da sua estrutura]102.

Esta distinção é fundamental. Hegel afirma que ser reconhecido como pessoa não
é o mesmo que ser reconhecido como uma consciência-de-si independente. Ou
seja, o horizonte normativo dos processos de reconhecimento em Hegel não se
reduzem ao reconhecimento da minha individualidade como própria de uma
“pessoa em geral” que tem certos direitos positivos e obrigações sociais
intersubjetivamente asseguradas. O que não poderia ser diferente se
lembrarmos que, ao menos no interior da tradição dialética, “pessoa” é uma
categoria derivada historicamente do direito romano de propriedade (dominus),
uma categoria que, por ainda guardar os traços de sua origem, era vista por
Hegel como “expressão de desprezo”103 devido à sua natureza meramente
abstrata e formal advinda da absolutização das relações de propriedade. Tal
articulação entre “pessoa” e “propriedade” servirá de fundamento para uma
larga tradição de reflexão que chegará até as discussões recentes sobre a “self-
ownership” como atributo fundamental da pessoa 104.
Na verdade, Hegel procura mostrar como a verdadeira autonomia da
consciência-de-si só pode ser posta em um terreno para além (ou mesmo para
aquém) da forma da pessoa jurídica portadora de diretos positivos e
determinações individualizadoras. Por isto, tudo nos leva a crer que Hegel insiste
que se trata de mostrar como a constituição dos sujeitos é solidária da
confrontação com algo que só se põe em experiências de negatividade e des-
enraizamento que se assemelham à confrontação com o que fragiliza nossos
contextos particulares e nossas visões determinadas de mundo, ou seja, que se
assemelha à morte. A astúcia de Hegel consistirá em mostrar como o demorar-se
diante desta negatividade é condição para a constituição de um pensamento do
que pode ter validade universal para os sujeitos.
Sendo assim, as tensões internas à teoria hegeliana do reconhecimento
também não podem ser pensadas a partir de dualidades como esta proposta por
Habermas ao afirmar:

Eu me compreendo como ‘pessoa em geral’ e como ‘indivíduo


inconfundível’ que não se deixa substituir por ninguém em sua biografia.
Sou pessoa em geral na medida em que tenho em comum com todas as
outras pessoas as propriedades pessoais essenciais de um sujeito que
conhece, fala e age. Sou ao mesmo tempo um indivíduo inconfundível, que

102
HEGEL, Fenomenologia, par. 187
103
HEGEL, GWF; Fenomenologia do Espírito – vol. II, Rio de Janeiro: Petrópolis, 1992, p. 33
104
Ver, entre outros COHEN, G.A.; Self-ownership, freedom and equality, Cambridge University
Press, 1995.
responde, de maneira insubstituível, por uma biografia tão formadora
quanto singular105.

Interpretações desta natureza entificam uma noção personalista de


individualidade, noção ligada ao Eu como figura de uma determinação completa.
Isto nos impede de pensar a fluidez de um conceito de individualidade onde toda
determinação seria corroída por um fundo de indeterminação que fragiliza sua
identidade e sua fixidez. Por outro lado, tais interpretações tendem a constituir a
universalidade como conceito normativo e essencialista ao demarcá-la a partir
de um conjunto determinado de “propriedades pessoais essenciais” que não são
objetos de questionamento ou conflito, mas motor de toda demanda presente em
conflitos sociais. Esta é uma via que nos leva, necessariamente, à
substancialização de um conceito antropológico de sujeito. É exatamente para
impedir derivas desta natureza que Hegel insiste tanto na necessidade do trajeto
em direção à universalidade passar pelo “trabalho do negativo” e pelo “caminho
do desespero”. Mas para tanto faz-se necessário entender melhor a função
fenomenológica da confrontação com a morte em Hegel.

O senhor absoluto

Em termos lógicos e estritamente hegelianos, o que aconteceu aqui foi que, ao


deter-se diante da Morte, a consciência chegou ao fundamento da existência
mesma. Não é a toa que Hegel joga, deliberadamente, com os termos
zugrundgeher (aniquilar-se) e zu Grund geher (chegar ao fundamento). O
fundamento é, na filosofia hegeliana, esta determinação da reflexão que: “(...) não
tem nenhum conteúdo determinado em si e para si; também não é fim, por
conseguinte não é ativo nem produtivo”106. Ou seja, trata-se da pura forma,
preexistente a qualquer conteúdo que venha preenchê-la. O que a consciência
experimentou ao chegar ao fundamento é que apreender esta pura forma é,
invariavelmente, aniquilar-se enquanto aderência ao ser-aí natural e se
descobrir como negação de si em si mesmo. O problema, aqui, é como elevar o
fundamento à existência.
Lembremos como Hegel usa de maneira bastante precisa esta experiência
da negação absoluta que é a morte. Quando, neste contexto, Hegel fala em
“morte”, ele pensa na manifestação fenomenológica própria à indeterminação
fenomenal do que nunca é apenas um simples ente. Ou seja, a morte indica
uma experiência do que não se submete aos contornos auto-idênticos da
representação, a morte como aquilo que não se submete à determinação do
Eu. Este fundamento que não tem nenhum conteúdo determinado em si e para
si, ao se manifestar, toca o próprio modo de enraizamento do sujeito naquilo
que aparece a ele como mundo. A morte é a experiência da fragilidade das
imagens do mundo e dos sistemas substancialmente enraizados de práticas
sociais de ação e justificação. Ela é assim um movimento fundamental para a
constituição da estrutura moderna da subejtividade.
No entanto, “essa comprovação por meio da morte suprime [erheben –
termo não totalmente convergente com aufheben. Hegel usa o termo para indicar
105
HABERMAS, Jürgen; Verdade e Justificação, Belo Horizonte: Loyola, 2004, p. 195
106
HEGEL, G.W.F., Enciclopédia, pag. 161
uma negação imediata que não implica em conservação] justamente a verdade
que dela deveria resultar”. O puro aniquilamento de si através da morte bloqueia
a auto-posição de si como fundamento. A pura morte do outro anula a
possibilidade do reconhecimento de tal processo de auto-posição e, por
conseqüência, do reconhecimento da liberdade implicada neste processo de
auto-posição. Daí porque Hegel afirma que a consciência faz a experiência de que
“a vida é a posição natural da consciência, a independência sem a negatividade
absoluta” e que a morte é apenas uma “negação natural”.
Através da luta de vida e morte, a consciência procura suprimir o que lhe
aparece como essencialidade alheia. Hegel joga com um duplo movimento de
supressão que é necessariamente convergente. Por um lado, a consciência
procura suprimir seu vínculo essencial à vida como Dasein natural, ela procura
afirmar-se através da distância em relação a tudo o que está preso ao ciclo
irreflexivo da vida. Por outro lado, a consciência-de-si procura suprimir seu
vínculo essencial à outra consciência-de-si a fim de afirmar-se em sua pura
imediatez idêntica a si mesma. A convergência destes dois movimentos fica
explícita se lembrarmos que a vida fornece a determinação empírica da
consciência-de-si, ela fornece o em-si cuja objetividade implica necessariamente
na presença do Outro. Assim, negar a vida para se pôr como pura abstração é,
necessariamente, um movimento que envolve o negar da essencialidade do
Outro.
No entanto, o contrário também é verdadeiro. Como vimos no parágrafo
186, a imersão integral da consciência no elemento da vida implicava na
impossibilidade do reconhecimento do Outro como consciência-de-si
independente. “Surgindo assim imediatamente, os indivíduos são um para outro
à maneira de objetos comuns, figuras independentes, consciências imersas no
ser da vida”107. Isto apenas nos lembra como a confrontação com a negatividade
da morte tem um caráter formador para a consciência-de-si; fato que ficará ainda
mais evidente no desdobrar da dialética do Senhor e do Escravo.
Podemos mesmo dizer que o reconhecimento não implica exatamente no
afastar-se da morte, até porque a vida do espírito é: “a vida que suporta a morte
e nela se conserva”108. O que ele implica é, na verdade, a compreensão de que o
que está em jogo na experiência fenomenológica da confrontação com a morte
não é uma “negação abstrata”: termo central que indica uma compreensão não-
especulativa de relações de oposição. A negação abstrata da vida produz uma
situação na qual os opostos (vida e morte): “não se dão nem se recebem de volta,
um ao outro reciprocamente, através da consciência, mas deixam um ao outro
indiferentemente livres, como coisas (Dinge)”109. Ou seja, a significação dos
termos opostos não passa uma na outra. Esta operação não é aquilo que Hegel
chama aqui de “negação da consciência (Negation des Bewustssein)”, ou seja, esta
negação determinada que “supera de tal modo que guarda e mantém o superado
e, com isto, sobrevive a seu vir-a-ser superado”110. A consciência deve pois negar
a vida de maneira determinada, o que implica em compreender a vida como
espaço no qual o negativo pode ser convertido em ser. A vida deve ser
inicialmente negada para ser recuperada não mais como pólo positividade de

107
HEGEL, Fenomenologia, par. 186
108
HEGEL, Fenomenologia, par. 32
109
HEGEL, Fenomenologia, par. 188
110
HEGEL, Fenomenologia, par. 188
doação imanente de sentido, como fundamento originário, mas como locus de
manifestação da negatividade do sujeito, como “vida do espírito”.

Dominação e servidão

Mas esta realização ainda está longe. De fato: “nessa experiência, vem a ser para
a consciência que a vida lhe é tão essencial quanto a pura consciência-de-si”111.
Isto implica em uma clivagem: a conscîência reconhece a essencialidade tanto da
vida quanto da pura abstração em relação ao Dasein natural. Por isto, Hegel fala
da dissolução da unidade do Eu como Eu simples que aparecia enquanto objeto
absoluto da consciência. Eu simples representado pela tautologia do “Eu=Eu”
[lembra da estrutura proposicional da igualdade/ a determinação particular é
idêntica à representação universal]. Esse Eu simples se dissolve em dois
momentos: uma pura consciência-de-si, independente e para quem o ser para-si
é a essência e uma consciência para-um-outro, consciência aferrada à coisidade
(Dingheit) e para quem o essencial é a vida ou o ser-para-um-outro. Esses dois
momentos “são como duas figuras opostas da consicência (...) Uma é o Senhor,
outra é o Escravo”112.
Mas, antes de continuarmos, notemos a ambigüidade deste “como se”.
Hegel joga, em vários momentos do texto, com uma dupla acepção do
antagonismo figurado na dialética do Senhor e do Escravo. Por um lado, ele
parece ser a exteriorização de uma clivagem interna à consciência na sua divisão
entre o reconhecimento da essencialidade tanto da vida quanto da posição de
pura abstração. Por outro lado, ele aparece como o resultado de uma
confrontação entre duas consciências-de-si independentes em um movimento
fundador dos processos de interação social. Esta duplicidade indica, na verdade,
que estamos diante de um modo de interação social que é, ao mesmo tempo,
processo de formação da consciência-de-si. Como dissera anteriormente,
estruturação de modos de socialização e processos de constituição do Eu
convergem necessariamente em Hegel, já que este não reconhece nenhuma
unidade originária da consciência-de-si.
Por outro lado, vale a pena contextualizar leituras que procuram encontrar,
neste momento da Fenomenologia do Espírito, as bases normativas de uma teoria da
gênese do social. Não como deixar de notar diferenças profundas de inflexão entre
esta versão do problema do reconhecimento apresentada na Fenomenologia e aquela
apresentada tanto na Filosofia do Espírito, de 1805, e na Enciclopédia em sua versão
de 1830. Por exemplo, na Filosofia do Espírito, de 1805, o problema do
reconhecimento é apresentado de maneira explícita em termos legais e políticos, já
que a luta por reconhecimento se organiza a partir de conceitos como: crime, lei, bens
e constituição. Nada disto desempenha papel central na apresentação própria à
Fenomenologia do Espírito. Podemos mesmo falar que: “Nesta versão do problema
do reconhecimento, Hegel está primariamente interessado no problema da
universalidade, a maneira através da qual a atividade determinada introduzida na
seção precedente, ainda que mediada através formas de interação social, pode ser bem
sucedida em sua determinação apenas se o que Hegel chama de “vontade particular”
se transforme em “vontade universal e essencial” 113 . É claro que isto não exclui
111
HEGEL, Fenomenologia,par. 189
112
HEGEL, Fenomenologia, par. 189
113
PIPPIN, He satisfaction of self-consciousness, p. 155
problemas políticos e legais, mas eles só podem ser compreendidos de maneira
correta (e reconfigurados em sua extensão) se apresentarmos primeiro os problemas
centrais que determinarão as bases mais amplas dos processos de reconhecimento:
eles tocam a questão do desejo, da relação à vida e à morte e do trabalho.
Os próximos seis parágrafos são extremamente condensados e tentam
dar conta dos desdobramentos da dissolução da unidade inicial do Eu simples.
Eles são organizados em duas perspectivas distintas. Entre os parágrafos 190 e
193, Hegel expõe os impasses do reconhecimento do ponto de vista do Senhor.
Dos parágrafos 194 a 196, Hegel expõe como o conceito de reconhecimento
poderá ser realizado através do Escravo.
O Senhor é logo apresentado como uma consciência que vive algo como
um impasse existencial ligado ao caráter parcial do seu reconhecimento.
Enquanto consciência que ainda procura realizar a noção de auto-identidade
como pura abstração de si, consciência que procura sustentar uma relação
imediata de si a si, o Senhor é certo de si através da afirmação da
inessencialidade de toda alteridade. No entanto, esta certeza é dependente da
negação reiterada da inessencialidade do Outro. Uma negação que não é a
destruição pura e simples do Outro, mas a sua dominação enquanto desprezo
pela sua essencialidade independente. Como sabemos, a necessidade desta
dominação contradiz a aspiração do Senhor em ser reconhecido como pura
identidade de si a si, já que ele é reconhecido como Senhor apenas por uma
consciência inessencial. Este conceito de reconhecimento não pode aspirar
validade universal. Vejamos como Hegel nos apresenta tal impasse.
Hegel primeiro lembra que o Senhor precisa afirmar sua independência
e sua dominação no interior de dois processos: na confrontação com outra
consciência-de-si e na confrontação com o objeto (que, no interior da seção
“consciência-de-si” aparece necessariamente como tendo sua verdade enquanto
objeto do desejo). Tais processos de dominação são organizados como
silogismos. O primeiro é enunciado da seguinte forma:

O senhor se relaciona mediatamente com o escravo por meio do ser


independente, pois justamente ali o escravo está retido; essa é sua cadeia,
da qual não podia abstrair-se na luta, e por isto se mostrou dependente,
por ter sua independência na coisidade114.

Ou seja, o Senhor domina o Escravo através da negação daquilo que lhe é


essencial (ao escravo): a coisa enquanto Dasein natural. A dominação é, na
verdade, negação daquilo que, para o Outro, tem valor essencial, é se mostrar
como “potência que está por cima desse ser”. Este “silogismo da dominação” tem
a estrutura que pode ser descrita da seguinte forma: a) O senhor nega/domina a
coisa ao negar sua essencialidade independente (a coisa é apenas objeto da
particularidade do meu desejo), b) O escravo vê sua essência na coisa, c) O
senhor nega/domina o escravo ao negar/dominar aquilo que, para o escravo,
tem valor essencial.
Mas a primeira proposição deste silogismo pede um desdobramento
importante. Como sabemos, a coisa aparece aqui como objeto do desejo do
Senhor. Negá-la e domina-la significa, na verdade, consumi-la, tal como vimos

114
HEGEL, Fenomenologia,par. 190
anteriormente no momento de apresentação da satisfação do desejo como
consumação. Hegel demonstra continuar neste registro ao lembrar que a relação
imediata de si a si do senhor deve ser posta como: “pura negação da coisa, ou
como gozo (Genuss)”. O gozo aparece como satisfação posta na identidade
imediata de si a si, retorno à indiferenciação generalizada entre sujeito e objeto
através da destruição do objeto.
No entanto, o Senhor pode gozar da coisa e realizar a certeza de si mesmo
ligada à satisfação do desejo somente se esta coisa duplicar a estrutura da
consciência-de-si (já que o desejo é, na verdade, um modo de auto-posição do
sujeito). A astúcia do Senhor consiste pois em interpor o escravo entre ele e a
coisa. Desta forma, o Escravo trabalha a coisa e oferece, ao gozo do Senhor, uma
coisa trabalhada: “o senhor introduziu o escravo entre ele e a coisa, e assim se
conclui somente com a dependência da coisa, e puramente a goza: enquanto o
lado da independência deixa-o ao escravo, que a trabalha”115. Só uma coisa
trabalhada pode satisfazer um desejo compreendido fundamentalmente como
modo de auto-posição (até porque: “o trabalho é o ato de se fazer coisa”116). Isto
demonstra como o Senhor só pode negar/dominar a coisa, isto no sentido de
intuir no objeto sua própria falta, através do trabalho do Escravo. O gozo do
Senhor, enquanto posição imediata de si na coisa, é pois, em última instância,
impossível. Gozo impossível porque ele só pode ser alcançado através da
mediação resultante do trabalho do Escravo que, como veremos, se põe na coisa
[é esta consciência posta que o senhor deseja].
O impasse existencial do Senhor demonstra-se então nesta posição que
consiste em depender da mediação do Outro para realizar uma satisfação que se
quer imediata. A consciência inessencial fornece a verdade da certeza de si
mesmo do Senhor. A verdade da sua independência é pois dependência, a
verdade de sua imediatez é pois mediação. Daí porque Hegel pode falar: “é claro
que ali onde o senhor se realizou plenamente ele encontra algo totalmente
diverso de uma consciência independente, o que é para ele não é uma
consciência independente, mas uma consciência dependente”117.
Hegel então lembra que estamos aí diante de um processo parcial de
reconhecimento. O reconhecimento é uma reflexão duplicada que comporta
quatro momentos: a reflexão do ser para-si no ser em-si da primeira consciência,
a reflexão do ser para-si no ser em-si da segunda consciência, a reflexão do ser
em-si da primeira consciência no ser para-si da segunda consciência e a reflexão
do ser em-si da segunda consciência no ser para-si da primeira consciência. Estes
dois últimos movimentos são resultantes da compreensão de que a dimensão do
em-si, enquanto espaço do que se põe como objetividade, é um espaço de
interação social suportado pela presença reguladora da alteridade. Neste
sentido, temos aqui apenas a realização de dois processos: a reflexão do ser para-
si no ser em-si da segunda consciência (o Escravo através do trabalho) e a
reflexão do ser em-si da segunda consciência no ser para-si da primeira
consciência (o Senhor através da consumação e do gozo da coisa trabalhada pelo
Escravo). Daí porque Hegel afirma:

115
HEGEL, Fenomenologia, par. 190
116
HEGEL, Filosofia do Espírito, de 1805
117
HEGEL, Fenomenologia, par. 192
Para o reconhecimento propriamente dito, falta o momento em que o
senhor opera sobre o outro o que o outro opera sobre si mesmo; e o
escravo faz sobre si o que também faz o sobre outro. Portanto, o que se
efetuou foi um reconhecimento unilateral e desigual118.

A dominação mostra-se assim ser o inverso do que parecia ser, já que a


completa autonomia se confunde com a completa dependência. Podemos
sintetizar este ponto afirmando que, através da figura do Senhor, Hegel está a
criticar uma noção de liberdade vinculada à ideia de propriedade de si. O senhor
é aquele cuja independência e liberdade está baseado na ilusão do
pertencimento de si mesmo. Mas este pertencimento de si só pode se realizar em
uma situação na qual eu não me vejo como consciência que trabalha, como
consciência imersa nas sendas do trabalho social. Eu devo ser uma consciência
que goza um gozo que é a afirmação de meu poder sobre mim mesmo e sobre os
objetos de meu desejo. No entanto, esse poder sobre os objetos do meu desejo
equivale a compreender tais objetos como minha propriedade, um pouco como o
escravo não é nada mais do que minha propriedade.
Mas ninguém melhor que Hegel em sua dialética do senhor e do escravo
demonstrou como havia uma reversibilidade contínua na relação aparentemente
dissimétrica entre propriedade e proprietário. Pois Hegel lembrará que o uso da
propriedade implica, necessariamente, transformação do próprio proprietário,
dependência do próprio proprietário (senhor) em relação à propriedade
(escravo), em relação ao modo de existência da propriedade. Como o gozo do
sujeito proprietário depende da propriedade e de seu modo de existência, é
impossível que esse modo de existência não passe necessariamente no sujeito.
Hegel pode lembrar desta reversibilidade porque, ao menos em sua
Fenomenologia do Espírito, as relações de propriedade não aparecem apenas
como relações de uso, mas como relações de desejo. Eu não apenas uso
propriedades, eu desejo o que se reduz à condição de propriedade e esta é a base
do processo de alienação inerente a toda noção de propriedade de si. Meu desejo
se submete à forma da propriedade, meu ser se determina no interior de um
campo de propriedades. Eu me determino a partir daquilo que se conforma à
condição de propriedade. Desta forma, desejar como um senhor de escravo é
definir o escravo como o modo de existência do meu desejo, é vincular minha
expressão ao que se dispõe integralmente, ao que se define de forma
unidimensional, ao que não pode escapar de minha possessão, mas que apenas
confirma meu domínio, minha narrativa sobre mim mesmo. Por isto, tal posição
só pode ser um impasse existencial.

118
HEGEL, Fenomenologia, par. 191
Lógicas do reconhecimento
Aula 7

Nesta aula, iremos terminar o comentário sobre a Dialética do Senhor e do


Escravo, tal como ela aparece na Fenomenologia do Espírito. Na aula passada,
terminamos na descrição dos impasses existenciais próprios à posição do
Senhor. Eu havia insistido com vocês que uma forma privilegiada de
compreender a luta por reconhecimento apresentada por Hegel passa pela
compreensão de como estamos aqui diante de um problema referente à
estrutura da liberdade. O processo fundamental que anima a Dialética do Senhor
e do Escravo é a afirmação da liberdade. Ou seja, Hegel age como quem lembra:
seres humanos não entram em conflito apenas para garantir a realização de suas
necessidades, a defesa de seus bens, a afirmação de seus interesses. Eles entram
em conflito para realizarem o conceito de liberdade que se coloca de maneira
normativa no horizonte de suas ações. Seres humanos não lutam por sua
sobrevivência, eles lutam inicialmente para serem vistos como seres livres,
mesmo que no interior destas lutas eles verão o conceito inicial de liberdade
entre em movimento e transformação.
Nese sentido, todo o movimento começa com a consciência procurando
afirmar sua completa independência em relação a toda determinidade exterior,
como se a liberdade fosse vinculada à capacidade de se por como ser para-si, o
que é uma versão singular da ideia de liberdade negativa. Mas esta liberdade
como puro ser para-si é, na verdade, dirá Hegel, uma forma de alienação. Pois ser
puro ser para-si só é possível à condição de não trabalhar, de não ter que me
confrontar com a exteriorização de si que o trabalho implica no seu contato com
o objeto. Daí a transformação da consciência-de-si na figura de uma consciência
que não trabalha, a saber, o Senhor. Na verdade, se quisermos ser mais precisos,
diremos que o Senhor é uma consciência que ignora como a estrutura do
trabalho social a determina.
Mas poderíamos mesmo dizer que, em seu sentido mais profundo, só
posso ser puro ser para-si à condição não apenas de não trabalhar, mas
principalmente de não desejar, pois a dinâmica do desejo que me leva
necessariamente a descobrir que o objeto que desejo não é apenas algo que se
submete a mim como minha posse, como mera propriedade. O objeto que desejo
é outro desejo. Preciso que o outro que desejo não seja algo que desprezo e
desejar o que se submete à condição de mera propriedade é desejar o que não
pode me reconhecer como sujeito. Mesmo quando eu submeto o outro à
condição de propriedade, eu o faço tendo em vista um terceiro outro que poderia
efetivamente me reconhecer, e que se colocaria sob a posição do verdadeiro
Senhor. Por isto, o desejo necessariamente leva o Senhor a se despossuir de sua
ilusão de independência, a sua liberdade como puro para-si.
Mas sendo a afirmação do puro ser para-si um impasse que só se
realizaria à condição de não trabalhar e não desejar (ou seja, que só se realizaria
na morte), é a definição da liberdade como independência, como puro pertencer
a si mesmo que está em questão. Por isto que terminei a última aula afirmando
que, através da figura do Senhor, Hegel está a criticar uma noção de liberdade
vinculada à ideia de propriedade de si. O senhor é aquele cuja independência e
liberdade está baseado na ilusão do pertencimento de si mesmo, esta é a ilusão
fundamental da crença de ser puramente para-si. Mas este pertencimento de si
só pode se realizar em uma situação na qual eu me vejo como consciência que
goza um gozo que é a afirmação de meu poder sobre mim mesmo e sobre os
objetos de meu desejo. Esse poder sobre os objetos do meu desejo equivale a
compreender tais objetos como minha propriedade, um pouco como o escravo
não é nada mais do que minha propriedade.
Mas ninguém melhor que Hegel em sua dialética do senhor e do escravo
demonstrou como havia uma reversibilidade contínua na relação aparentemente
dissimétrica entre propriedade e proprietário. Pois Hegel lembrará que o uso da
propriedade implica, necessariamente, transformação do próprio proprietário,
dependência do próprio proprietário (senhor) em relação à propriedade
(escravo), em relação ao modo de existência da propriedade. Como o gozo do
sujeito proprietário depende da propriedade e de seu modo de existência, é
impossível que esse modo de existência não passe necessariamente no sujeito.
Hegel pode lembrar desta reversibilidade porque, ao menos em sua
Fenomenologia do Espírito, as relações de propriedade não aparecem apenas
como relações de uso, mas como relações de desejo. Eu não apenas uso
propriedades, eu desejo o que se reduz à condição de propriedade e esta é a base
do processo de alienação inerente a toda noção de propriedade de si. Meu desejo
se submete à forma da propriedade, meu ser se determina no interior de um
campo de propriedades. Eu me determino a partir daquilo que se conforma à
condição de propriedade. Desta forma, desejar como um senhor de escravo é
definir o escravo como o modo de existência do meu desejo, é vincular minha
expressão ao que se dispõe integralmente, ao que se define de forma
unidimensional, ao que não pode escapar de minha possessão, mas que apenas
confirma meu domínio, minha narrativa sobre mim mesmo. Por isto, tal posição
só pode ser um impasse existencial.

Trabalho, essência e angústia

É neste ponto que Hegel deixa o Senhor em seu impasse e passa à análise do
movimento dialético a partir da perspectiva do Escravo. “Sem dúvida, este aparece de
início fora de si, e não como a verdade da consciência-de-si”. Mas ele “entrará em si
como consciência retornando sobre si mesma e se converterá em verdadeira
independência” 119 . Ou seja, pelas vias da servidão, a consciência irá realizar a
reconciliação com a objetividade necessária para a realização do conceito de
consciência-de-si em sua estrutura de reconhecimento.
Hegel começa lembrando que a essencialidade do escravo parece estar
depositada no Senhor. É ele quem domina o seu fazer e consome o objeto de seu
fazer. Quer dizer, seu fazer lhe é estranho, assim como o objeto com o qual ela
confronta lhe é estranho. Há no entanto um conteúdo positivo neste estranhamento.
Pois isto implica que o escravo se elevou para além de sua singularidade, já que:
“Enquanto o escravo trabalha para o senhor, ou seja, não no interesse exclusivo da sua
própria singularidade, seu desejo recebe esta amplitude consistindo em não ser apenas
o desejo de um este, mas de conter em si o desejo de um outro”120. No entanto, ter seu
desejo vinculado ao desejo de um outro ainda não nos fornece a universalidade do
reconhecimento almejado pela consciência. o conflito produzido pelo desejo, conflito

119
HEGEL, Fenomenologia, par. 193
120
HEGEL, Enciclopédia, par. 433 - adendo
que aparece enquanto motor da DSE, não pode ser a mera colisão entre sistemas
particulares de interesses de duas consciências distintas, como quer comentadores
como Terry Pinkard e Jurgen Habermas 121 . Conflito através do qual Eu procuro
dominar o outro através da submissão do seu sistema de valoração e interesse à
perspectiva própria ao meu sistema, onde Eu procuro submeter o desejo do outro ao
meu desejo. Faz-se necessário que este outro não seja apenas um outro desejo
particular, mas que ele tenha algo da universalidade incondicional do que é essencial.
Hegel então se serve de um certo deslizamento que consiste em dizer que, no
interior desta experiência particular, já há algo da ordem de uma necessidade
universal que toca o modo de manifestação do que é essencial. Isto lhe permite operar
um certo giro de perspectiva que consiste em dizer: lá onde a consciência encontra-se
totalmente alienada, é lá que ela pode encontrar-se a si mesma, já que: “o espírito só
alcança sua verdade à medida que se encontra a si mesmo no dilaceramento
absoluto”122. Esta idéia de que a consciência deve se perder para poder se encontrar
está intimamente vinculada à maneira com que Hegel compreende a noção central de
“essência”. O parágrafo 194 é muito ilustrativo neste sentido. Hegel começa
lembrando que, para a consciência escrava, a essência está fora dela mesma, está
neste Senhor que encarna o puro para-si e que despreza o agir da consciência escrava
que aparece, para ela mesma, como algo de puramente estranho e oposto. Ela traz
assim a oposição dentro de si e não se reconhece mais em seu agir, que lhe aparece
como agir-para-um-Outro. Contudo, Hegel afirma que esta é condição necessária para
que ela experimente a essência e tenha nela mesma “essa verdade da pura
negatividade e do ser-para-si”. Logo em seguida, complementa:

Essa consciência sentiu a angústia, não por isto ou aquilo, não por este ou
aquele instante, mas sim através de sua essência toda, pois sentiu o medo da
morte, do senhor absoluto. Aí se dissolveu interiormente, em si mesma tremeu
em sua totalidade e tudo o que havia de fixo, nela vacilou. Entretanto, esse
movimento universal puro, o fluidificar-se absoluto de todo subsistir é a
essência simples da consciência-de-si, a negatividade absoluta, o puro ser-
para-si que assim é nessa consciência123.

Notemos inicialmente esta posição peculiar da morte como “senhor


absoluto” capaz de fazer com que tudo o que fixo, vacile, tudo o que é sólido,
desmanche-se no ar. Há um certo paradoxo na dialética hegeliana. O Senhor, por
não temer a morte, não a conhece, ele não a experimenta. Já o escravo, ao temer a
morte, permite que ela lhe faça tremer em toda sua totalidade. Pois, se a
confrontação com a morte é condição para a conquista da liberdade, é porque a
morte é figura privilegiada desta universalidade incondicional e absoluta que,
por ser incondicional e absoluta, manifesta-se como negação de tudo o que é
condicionado e finito. Devemos levar isto em conta quando encontramos Hegel
dizendo:

A submissão (Unterwerfung) do egoísmo do escravo forma o início da


verdadeira liberdade dos homens. A dissolução da singularidade da vontade, o

121
Ver PINKARD, Hegel´s phenomenology: The sociality of reason, op. cit. e HABERMAS,
Caminhos da destranscendentalização In: Verdade e Justificação, op. cit.
122
HEGEL, Fenomenologia, par. 32
123
HEGEL, Fenomenologia, par. 194
sentimento do nulidade do egoísmo, o hábito da obediência (Gehorsams) é um
momento necessário da formação de todo homem. Sem ter a experiência deste
cultivo (Zucht) que quebra a vontade própria (Eigenwillen), ninguém advém
livre, racional e apto a comandar. E para advir livre, para adquirir a aptidão de
se auto-governar, todos os povos tiveram que passar pelo cultivo severo da
submissão a um senhor124.

Afirmações desta natureza servem a vários mal entendidos. Hegel não está
dizendo que a liberdade é apenas o nome que damos para um vontade
construída a partir da internalização de “dispositivos disciplinares” travestidos
de práticas de auto-controle. Não é qualquer submissão a um senhor que produz
a liberdade, mas apenas a um senhor que seja capaz de realizar exigências
incondicionais de universalidade, que tenha algo deste “senhor absoluto” que é a
morte. Isto nos explica porque, para Hegel, as grandes individualidades capazes
de submeter um povo produzem, necessariamente, o sentimento de que o
trabalho do Espírito é sem medida comum com toda e qualquer política finita,
com todo cálculo utilitarista baseado em “meu” sistema de interesses egoístas.
Por sinal, a maior de todas as ilusões consiste exatamente em ver na crítica
hegeliana do egoísmo uma estratégia astuta de esvaziamento do particular.
Hegel pode criticar o egoísmo porque não há nenhuma individualidade neste
“ego”, já que não há nada de individual no interior de um sistema de interesses
construído, na verdade, a partir de identificações e internalização de princípios
de conduta vindos de uma outra consciência determinada 125. Por isto, a
“dissolução da singularidade da vontade” pode aparecer como “liberação”.
Lebrun serve-se destas características da filosofia hegeliana para afirmar
que a formação da consciência-de-si é apenas a dissolução de um indivíduo
definido como o que se anula, renúncia incessante de si, ascese permanente.
Pois: “ganhar uma determinação acaba sempre por ser renúncia a uma diferença
que me individualizava, advir um pouco mais meu ser verdade na medida em
que sou um pouco menos meu ego”126. Neste sentido, tremer diante do mestre
absoluto seria tomar consciência da impotência de princípio que representa a
singularidade natural. Como se a liberação hegeliana fosse um passe de mágica
no qual o sentimento de fraqueza se transforma em legitimação da incapacidade
de resistir. Assim: “em troca de seus sofrimentos, é o gozo do universal que se
oferece à consciência – belo presente ...”127. Não estamos muito longe de Deleuze
vendo a dialética hegeliana como “idéia do valor do sofrimento e da tristeza,
valorização das ‘paixões tristes’ como princípio prático que se manifesta na
cisão, no dilasceramento”128.
Mas este trecho talvez desvele seu real foco se lembrarmos que, para Hegel, a
essência não é uma substância auto-idêntica que determina as possibilidades dos
modos de ser. A essência é a realização de um movimento de reflexão. Neste sentido,

124
HEGEL, Enciclopédia das ciências filosóficas, op. cit., § 435
125
Esta intuição hegeliana recebeu uma confirmação material através da psicanálise lacaniana e sua
descrição da gênese do Eu através a internalização da imagem de um outro que tem a função de tipo
ideal de conduta e de orientação do desejo. A este respeito, remeto ao capítulo “Desejo sem imagens”
In: SAFATLE, Lacan, São Paulo, Publifolha, 2007.
126
LEBRUN, L’envers de la dialectique, op. cit., p. 100
127
idem, p. 211
128
DELEUZE, Nietzsche et la philosophie, op. cit., p. 224
contrariamente ao ser que procurava sua fundamentação em determinações fixas, a
essência se põe como determinação reflexiva e relacional. Em outras palavras, a
essência é a unificação deste movimento reflexivo de pôr seu ser em um outro, cindir-
se e retornar a si desta posição. Daí porque Hegel pode afirmar que, quando o ser
encontra-se determinado como essência, ele aparece como: “um ser que em si está
negado todo determinado e todo finito”129, ou ainda, como “ser que pela negatividade
de si mesmo se mediatiza consigo” 130 . Neste sentido, Hegel insiste que a
internalização da negação de si própria à configuração da essência deve se manifestar
inicialmente como negatividade absoluta diante da permanência de toda
determinidade.
É neste sentido que a angústia deve ser compreendida como a
manifestação fenomenológica inicial desta essência que só pode se pôr através
do “fluidificar absoluto de todo subsistir”, ou seja, do negar a essencialidade de
toda determinidade aferrada em identidades opositivas. Manifestação inicial, daí
porque Hegel fala de “essência simples”, mas manifestação absolutamente
necessária. A angústia pode aqui ter esta função porque não se trata de um
tremor por isto ou aquilo, por este ou aquele instante, mas se trata aqui de uma
fragilização completa de seus vínculos ao mundo e à imagem de si mesmo. É esta
fragilização que traduz de maneira mais perfeita o que está em jogo neste “medo
diante da morte, do senhor absoluto”. O termo “angústia” tem aqui um uso feliz
porque ele indica exatamente esta posição existencial na qual o sujeito parece
perder todo vínculo do desejo em relação a um objeto, como se estivéssemos
diante de um desejo não mais desprovido de forma. No entanto, se a consciência
for capaz de compreender a angústia que ela sentiu ao ver a fragilização de seu
mundo e de sua linguagem como primeira manifestação do Espírito, deste
espírito que só se manifesta destruindo toda determinidade fixa, então a
consciência poderá compreender que este “caminho do desespero” é, no fundo,
internalização do negativo como determinação essencial do ser. Daí porque: “o
temor do senhor é o início [mas apenas o início] da sabedoria” 131. Neste sentido,
podemos mesmo dizer que, para Hegel, só é possível se desesperar na
modernidade, já que ele é a experiência fenomenológica central de uma
modernidade disposta a problematizar tudo o que se põe na posição de
fundamento para os critérios de orientação do julgar e do agir.

Ir ao fundamento

A este respeito, tentemos entender o que acontece, em termos lógicos,


com este movimento fenomenológico de se descobrir diante de um agir que me
despossui completamente. Estejamos atentos ao sentido que Hegel dá a esta
despossessão de si produzida pela internalização da morte como senhor
absoluto. Neste contexto, a morte não é destruição simples da consciência, não é
um simples despedaçar-se (zugrunde gehen), mas é modo de ir ao fundamento
(zu Grund gehen). Pois a confrontação com a morte é experiência fenomenológica
que visa exprimir o acesso ao caráter inicialmente indeterminado do
fundamento, que visa exprimir como: “A essência, enquanto se determina como
fundamento, determina-se como o não-determinado (Nichtbestimmte) e é apenas

129
HEGEL, Ciência da lógica – doutrina da essência
130
HEGEL, Enciclopédia, par. 112
131
HEGEL, Fenomenologia, par. 195
a superação (Aufheben) de seu ser determinado (Bestimmtseins) que é seu
determinar”132. O que pode ser entendido da seguinte maneira: a indeterminação
do fundamento vem do fato dele servir de substrato comum entre determinações
opostas, daí porque Hegel poderá afirmar que o fundamento implica a identidade
entre a identidade e a diferença (die Einheit der Identität und des Unterschiedes).
Mas sendo o Eu o princípio sintético que fornece o fundamento da experiência,
assim como o princípio de ligação e unidade que determina o modo de
articulação entre o fundamento e aquilo que ele funda, então pensar a verdadeira
essência do fundamento como o que tem seu ser em um outro (sein Sein in einen
Anderen hat) exige a confrontação com um estado de diferenças não submetidas
à forma do Eu133.
Demoremos um pouco mais neste ponto. Sabemos que fundar é
determinar o existente através da sua relação a um padrão que me permite
orientar no pensamento. Por exemplo, ao mobilizar estruturas categoriais como
a causalidade, a modalidade para assegurar a inteligibilidade dos fenômenos,
determino a forma do existente. A partir deste recurso à forma como
fundamento posso garantir o critério do verdadeiro e do falso, do correto e do
incorreto, do adequado e do inadequado. Mas a aplicação de todas estas
estruturas aos fenômenos depende de uma decisão prévia e tácita sobre
princípios lógicos gerais de ligação e unidade capazes de constituir objetos da
experiência e fundar proposições de identidade e diferença. Estes princípios de
ligação (Verbindung) e unidade são derivados do Eu como unidade sintética de
apercepções, que aparece assim como o verdadeiro fundamento das
determinações. No entanto, a problematização de tais princípios é o verdadeiro
objeto da dialética. Por exemplo, quando Hegel constrói um witz ao dizer que,
para a consciência, “o ser tem a significação do seu” (das Sein die Bedeutung das
Seinen hat)134, ele tem em vista o fato de que ser objeto para a consciência
significa estruturar-se a partir de um princípio interno de ligação e unidade que
é modo da consciência apropriar-se do mundo, constituir o mundo a partir de
sua imagem, o que permite a Hegel ignorar a relevância das distinções kantianas
entre receptividade e espontaneidade.
A dialética precisa pois aceder a um fundamento não mais dependente da
forma auto-idêntica do Eu, o que é possível através da superação dos modos
naturalizados de determinação, através a fragilização das imagens de mundo que
orientam e constituem nosso campo estruturado de experiências. Tal fragilização
é descrita fenomenologicamente por Hegel através da angústia e da confrontação
com a morte.
Vemos assim como a confrontação com a morte permite à consciência-de-
si compreender o Espírito como aquilo que se expressa na multiplicidade de suas
determinações fragilizando-as todas, levando-as a confrontar-se com uma
potencia do pré-pessoal e do indeterminado que nos permite, inclusive,
recompreender o que vem a ser a diferença. A diferença em Hegel é esta potência
interna da in-diferença que corrói toda determinação. Ela será esta expressão do

132
HEGEL, Wissenschaft der Logik II, Frankfurt: Suhrkamp, 1986, p. 81
133
Longuenesse compreendeu isto bem ao afirmar que, para Hegel : “O fundamento é o herdeiro da
unidade de apercepção da Crítica da razáo pura” (LONGUENESSE, Hege let la critique de la
métaphysique, Paris: Vrin, 1981, p. 111).
134
HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 159
ser que nos leva a afirmar, com Scott Fitzgerald, que: “toda vida é um processo de
demolição”. Demolição que ocorre quando desvelamos esta “franja de
indeterminação da qual goza todo indivíduo”135. Não se trata exatamente de um
ganho de determinação e positividade, mas da assunção de um risco vinculado à
confrontação com aquilo que se coloca enquanto puramente indeterminado.
Nestas condições, submeter-se a um Senhor absoluto que dissolve tudo aquilo
que parecia fixo e determinado nada tem a ver com uma a dinâmica psicológica
da resignação, do ressentimento ou da necessidade da repressão.

O trabalho

No entanto, ainda não tocamos em um ponto essencial que irá estabilizar esta
dialética. Pois a angústia sentida pela consciência escrava não fica apenas em uma:

universal dissolução em geral, mas ela se implementa efetivamente no servir


(Dienen). Servindo, suprime (aufhebt) em todos os momentos tal aderência ao
Dasein natural e trabalhando-o, o elimina. Mas o sentimento da potência
absoluta em geral, e em particular o do serviço, é apenas a dissolução em si e
embora o temor do senhor seja , sem dúvida, o início da sabedoria, a
consciência aí é para ela mesma, mas não é ainda o ser para-si; ela porém
encontra-se a si mesma por meio do trabalho136.

Hegel fará então uma gradação extremamente significativa que diz respeito ao
agir da consciência nas suas potencialidades expressivas. Hegel fala do serviço
(Dienen), do trabalho (Arbeiten) e do formar (Formieren). Esta tríade marca uma
realização progressiva das possibilidades de auto-posição da consciência no objeto do
seu agir. O serviço é apenas a dissolução em si (Auflösung an sich) no sentido da
completa alienação de si no interior do agir, que aparece como puro agir-para-um-
outro e como-um-outro. O trabalho implica em uma auto-posição reflexiva de si. No
entanto, Hegel não opera com uma noção expressivista de trabalho que veria sua
realização mais perfeita em uma certa compreensão do fazer estético como
manifestação das capacidades expressivas dos sujeitos. A consciência que trabalha
não expressa a positividade de seus afetos em um objeto que circulará no tecido
social. O trabalho não é a simples tradução da interioridade na exterioridade. De uma
certa forma, a categoria hegeliana de trabalho é inicialmente uma defesa contra a
angústia diante da negatividade da morte ou, ainda, uma superação dialética da
angústia, já que ele é auto-posição de uma subjetividade que sentiu o desaparecer de
todo vínculo imediato ao Dasein natural, que sentiu o tremor da dissolução de si.
Lembremos desta afirmação central de Hegel:

O trabalho é desejo refreado (gehemmte Begierde), um desvanecer contido, ou


seja, o trabalho forma. A relação negativa para com o objeto toma a forma do
objeto e permanence, porque justamente o objeto tem independência para o
trabalhador. Esse meio-termo negativo ou agir formativo é, ao mesmo tempo,
a singularidade, ou o puro-ser-para-si da consciência que agora no trabalho se
transfere para fora de si no elemento do permanecer; a consciência
trabalhadora chega assim à intuição do ser independente como intuição de si

135
DELEUZE, Différence et répétition, 5 ed., Paris: PUF, 2000, p. 331
136
HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 132
mesma (...) no formar da coisa, torna-se objeto para o escravo sua própria
negatividade137.

Nota-se claramente aqui o papel de síntese que o trabalho desempenha, já que


ele permite a intuição de si através da intuição do objeto, ou ainda, “a intuição do ser
independente como intuição de si mesmo”. Por refrear o impulso destrutivo do desejo
em seu consumo do objeto, o trabalho forma, isto no sentido de permitir a auto-
objetivação da estrutura da consciência-de-si em um objeto que é sua duplicação. Sua
função será pois realizar, ainda que de maneira imperfeita, o que o desejo não era
capaz de fazer, ou seja, permitir a auto-posição da consciência-de-si em suas
exigências de universalidade, já que o trabalho está organicamente vinculado a modos
de interação social e de reconhecimento. Esta saída das dicotomias da consciência-de-
si através da configuração de uma síntese materialista devido à recuperação da
centralidade da categoria do trabalho será de suma importância para os passos
posteriores da filosofia alemã, em especial aqueles que nos conduzem a Marx.
O giro dialético consiste em que dizer que a alienação no trabalho, a
confrontação tanto com o agir enquanto uma essência estranha, enquanto agir para-
um-Outro absoluto, quanto com o objeto enquanto aquilo que resiste ao meu projeto
tem caráter formador por abrir a consciência à experiência de uma alteridade interna
como momento fundamental para a posição da identidade. Daí porque Hegel afirma
que tanto o medo quanto o formar são dois momentos necessários para este modo de
reflexão que é o trabalho. Hegel não teme em afirmar que o formar sem o medo
absoluto fornece apenas um sentido vazio, pois sua forma ou negatividade não é “a
negatividade em si” (Negativität an sich). Daí porque Hegel pode dizer:

Se não suportou o medo absoluto, mas somente alguma angústia, a essência


negativa ficou sendo para ela algo exterior, sua subsistência não foi
integralmente contaminada por ela. Enquanto todos os conteúdos de sua
consciência natural não forem abalados, essa consciência pertence ainda, em
si, ao ser determinado138.

Assim, através do trabalho, o lugar do sujeito como fundamento pode ser


compreendido como negação em si: conseqüência necessária de uma filosofia do
sujeito onde “sujeito” não é mais do que o nome do caráter negativo do
fundamento. Afirmar que há um caráter negativo do fundamento significa, entre
outras coisas, que a relação ao existente não é a repetição do que está
potencialmente posto no fundamento, mas que a própria determinação do
existente não pode mais ser pensada a partir do paradigma da subsunção
simples do caso à norma. Ela exige compreender que não há determinação
completa no sentido de identidade completa entre a determinação e o fundamento.
É isto que a consciência-de-si descobrirá pelas vias do trabalho.
Notemos, por fim, que temos uma explicação para o fato de, na
Fenomenologia do Espírito, o trabalho não nos colocar no caminho da
“institucionalização da identidade do Eu”139. Ou seja, contrariando o que poderíamos
esperar, o trabalho não abre uma dinâmica de reconhecimento que se realizará na
regulação jurídica das minhas relações com o outro através da assunção de meus
137
idem, p. 132
138
HEGEL, Fenomenologia, par. 196
139
HABERMAS, Trabalho e interação In: Técnica e ciência como ideologia, Lisboa: Edições 70,
2007, p. 196
direitos como sujeito que colabora com a riqueza (Vermögen) social. Ou ainda, ele faz
isto, mas à condição de recomprendermos completamente o que entendíamos por
“identidade”, “direitos”, “sujeito”. Isto porque Hegel está mais interessado no fato do
trabalho aparecer como modo de posição de uma negatividade com a qual o sujeito se
confrontou ao ir em direção à uma potência de indeterminação cuja assunção é
condição para a consciência-de-si “viver no universal”. Daí podemos derivar o
problema maior da modernidade, ao menos segundo Hegel; problema este que está na
base da sua filosofia do direito, a saber, como viabilizar o reconhecimento
institucional de sujeitos pensados enquanto modos singulares de confrontação com o
que se oferece como indeterminado? Pois não é a indeterminação que produz
sofrimento social, mas a incapacidade das estruturas institucionais e dos processos de
interação social reconhecerem sua realidade fundadora da condição existencial de
todo e qualquer sujeito.

Estoicismo e a inessencialidade da efetividade

Ao finalizar a dialética do Senhor e do Escravo, Hegel introduz novamente


a perspectiva do para nós a fim de fornecer uma avaliação do que estava
realmente em jogo no interior do processo dialético que analisamos:

Surgiu, assim, para nós, uma nova figura da consciência-de-si: uma


consciência que é para si mesma a essência como infinitude ou puro
movimento da consciência, uma consciência que pensa, ou uma
consciência-de-si livre. Pois é isto o que pensar significa: não ser objeto
para si como Eu abstrato, mas como Eu que tem ao mesmo tempo o
significado de ser em-si ou que se relaciona com a essência objetiva de
modo que ela tenha o significado do ser para-si da consciência. Para o
pensar, o objeto não se move em representações ou figuras, mas sim em
conceitos, o que significa: num ser em-si diferente que imediatamente
para a consciência não é nada diferente dela140.

Aparece aqui uma figura da liberdade ligada à auto-determinação do


pensamento. Haverá um ganho em relação à figura anterior, mas haverá
também uma nova forma de alienação. Pois através do pensar, a consciência põe
uma relação ao ser em-si, ao objeto, o que não ocorria no momento em que ela
procurava afirmar sua liberdade como puro para-si. Este pensar a respeito do
qual fala Hegel não é o pensar representativo com sua perspectiva de adequação
entre representações mentais de um “Eu abstrato” e estados fenomênicos de
coisas, mas pensar especulativo que realiza uma unidade que permite a Hegel
dizer: “no pensamento, sou livre porque não estou em um outro”. É o trabalho
compreendido como auto-posição na qual a relação negativa para com o objeto
torna-se a forma do objeto que fornece as bases da tal experiência do conceito.
Para compreendermos este ponto, lembremos desta noção hegeliana do
conceito como uma estrutura de relações entre objetos articuladas a partir de
negações determinadas que se dão no desdobramento de processos da
experiência. Lembremos também da proposição sobre o holismo semântico de
Hegel, proposição segundo a qual a compreensão das relações já é condição
suficiente para a compreensão do conteúdo da experiência. Agora Hegel afirma
140
HEGEL, Fenomenologia, par. 197
que, através de uma compreensão especulativa do trabalho, temos a
apresentação deste movimento do conceito. Isto a ponto de podermos seguir
Hyppolite e dizer que: “O conceito é o trabalho do pensamento”. Como podemos
compreender estes pontos?
Já sabemos que, através do trabalho, a consciência não agiu de acordo
com aquilo que os pragmáticos chamam de “princípio de expressibilidade”. Ela
não realizou de maneira performativa o que estava em sua intenção (a auto-
posição de si). Do objeto trabalhado, veio uma experiência de independência, de
resistência ao conceito simples do Eu: o objeto era como um Outro. No entanto,
este Outro é a negação determinada do Eu, através do formar, percebo este Outro
diante do meu agir, ele me nega (é Outro) e me conserva (é interno a mim, está
no meu agir, por isto, é eu mesmo). Através do trabalho, posso refletir-me em
meu ser-Outro [que é tanto a resistência do sensível quanto a presença de uma
outras consciências que descentram o significado da minha ação pois a coloca no
interior de relações sociais – os dois níveis devem se articular]. Desta forma, o
trabalho nos mostra como o conceito pode estabelecer relações de negação
determinada com os objetos aos quais ele se refere.
No entanto, a consciência pode operar algo como uma reconciliação
formal e abstrata, tal como dirá mais tarde Marx. Esta é a dimensão da alienação
que permanece em tal figura da consciência. Os processos de reconhecimento
não podem se aquietar no reconhecimento da autonomia do pensamento. Ao
pensar nisto, Hegel fala em uma consciência pensante em geral (abstrata) cujo
objeto é apenas a unidade imediata entre ser em-si e ser para-si. Esta consciência
é, para Hegel, o estoicismo. Mais do que uma escola de pensamento, Hegel vê, no
estoicismo, uma posição geral do pensamento em relação ao problema da
efetivação da liberdade.
Hegel compreende o estoicismo de Zenão de Cício, Crísipo, Epíteto e de
Marco Aurélio como, no fundo, uma filosofia da resignação. Grosso modo, o
estoicismo compreende a razão (logos) como princípio que rege uma Natureza
identificada com a divindade. O curso do mundo obedece assim um
determinismo racional. A virtude consiste em viver de acordo com a natureza
racional aceitando o curso do mundo, ou seja, aceitando o destino despojando-se
de suas paixões a fim de alcançar a apatia e a ataraxia. A autarkeia estóica
(influenciada pelos cínicos e pela sua concepção de auto-determinação como
afastamento do nomos e dos prazeres) aparece assim como: “liberdade, este
momento negativo de abstração da existência”141. Mesmo que a liberdade
apareça definida como “a possibilidade de agir a partir de sua vontade”142, a
vontade virtuosa é aquela que se reconcilia com o determinismo racional do
curso do mundo. O que explica como é indiferente para o estóico ser Escravo
(Epíteto) ou Senhor (Marco Aurélio). Seu agir é livre “no trono como nas cadeias
e em toda forma de dependência do Dasein singular”. Uma indiferença não pode
levar a outra coisa que uma “independência e liberdade interiores”143 que, para
Hegel, é sinal do aparecimento do princípio de subjetividade.
Hegel compreende o estoicismo a partir de duas determinações
complementares. Primeiro:

141
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
142
Diógenes LAÉRCIO, Vida e lenda de filósofos ilustres- Zenão
143
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
Seu princípio é que a consciência é essência pensante e que uma coisa só
tem essencialidade, ou só é verdadeira e boa para ela à medida que a
consciência ai se comporta como essência pensante144.

Nota-se como esta afirmação parece corroborar a exigência hegeliana de que a


consciência-de-si seja posta como essência da verdade. Ainda mais se
lembrarmos da afirmação hegeliana segundo a qual a elevação estóica ao plano
do pensamento: “consiste em que não seja a natureza imediata o conteúdo nem a
forma do verdadeiro ser da consciência, mas que a racionalidade da natureza
seja aceita pelo pensamento de tal modo que tudo seja verdadeiro e bom na
simplicidade do pensamento”145. Com isto, o estoicismo apreende a diferença
constante entre o pensar e o que se dá na efetivação fenomenal. Nisto, ele é a
primeira posição afirmativa da abstração.
No entanto, Hegel está mais interessado, ao menos nesta parte da
Fenomenologia, nos impasses estóicos a respeito da determinação da
racionalidade em sua dimensão prática. Sobre a autarkeia estóica de uma
consciência que se compreende como essencialidade, Hegel dirá: “Seu agir é
conservar-se na impassibilidade que continuamente se retira do movimento do
Dasein, do atuar como do padecer, para a essencialidade simples do
pensamento”146. A este respeito, Hegel chegar a afirmar que: “ a grandeza da
filosofia estóica consiste que nada pode quebrar a vontade se esta se mantém
firme (...) e que sequer o afastamento da dor pode ser considerado um fim”147.
Mas Hegel não deixa de lembrar que uma des-alienação que se realiza
apenas através do formalismo de um pensar que se retira do movimento do
Dasein só pode aparecer como conformação àquilo que não pode, por mim, ser
modificado. Hegel apresenta assim uma crítica que será, em várias situações,
dirigida contra ele próprio: “A liberdade da consciência é indiferente quanto ao
Dasein natural; por isto igualmente o deixou livre e a reflexão é a reflexão
duplicada. A liberdade do pensamento tem somente o puro pensamento por sua
verdade, e verdade sem a implementação da vida”148. Apenas como exemplo
desta mesma crítica contra Hegel, lembremos do final de La patience du concept,
de Gerard Lebrun: “Enquanto a lógica designava até agora a instância que havia
transformado o desdobramento do logos em um discurso predicativo sobre o
entes, a Lógica nova não julga mais os entes nos quais se investirão as categorias.
Ela cessa de relacionar estas a objetos e de formar a trama de uma consciência-
de-coisas”. Ou ainda. Sobre a Fenomenologia: “ o que tomávamos por uma
narrativa de viagem não nos leva a nada, como se, ao final da Odisséia, Ítaca fosse
fosse um nome, ao invés de uma ilha. As coisas mesmas a respeito das quais
esperávamos uma revelação, ei-las transmutadas em linguagem”149.

144
HEGEL, Fenomenologia, par. 198
145
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
146
HEGEL, Fenomenologia, par. 199
147
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
148
HEGEL, Fenomenologia, par. 200
149
LEBRUN, La patience du concept, p. 408
Lógicas do reconhecimento
Aula 8

Na aula de hoje, gostaria de seguir nossa discussão sobre as dinâmicas de


reconhecimento em Hegel a partir de um comentário da Filosofia do Direito. A
passagem da Fenomenologia do Espírito à Filosofia do direito implica um
desenvolvimento do pensamento hegeliano em direção àquilo que poderíamos
chamar de “condições para a institucionalização da liberdade”. Vimos na
Fenomenologia como o problema do reconhecimento estava vinculado às
dinâmicas sociais de afirmação da liberdade. No entanto, nada foi dito a respeito
da gênese das estruturas institucionais responsáveis por tais demandas
aparecerem como fundamento dos processos de racionalização social. De fato,
este trabalho será feito pela filosofia do direito. Isto nos explica uma definição
importante como:

O terreno do direito é de maneira geral o espiritual e sua situação e ponto


de partida preciso é a vontade que é livre; na medida em que a liberdade
constitui sua substância e determinação, o sistema do direito é a liberdade
efetivada que o mundo do espírito produz a partir de si próprio, como
segunda natureza150.

Tal definição nos permite dizer que os conceitos decisivos na filosofia hegeliana
do direito são “liberdade” e “vontade livre”, já que definem o campo da
racionalidade do direito. Trata-se, então, de demonstrar que a perspectiva
hegeliana nos traz elaborações importantes a respeito da relação necessária
entre reconhecimento da vontade livre e constituição moderna das instituições.
Como devem ser pensadas as instituições para que elas sejam capazes de dar
conta de demandas de reconhecimento depositadas no conceito de “liberdade”?
É possível pensar a liberdade fora de alguma garantia de reconhecimento
institucional?
Antes de entrarmos diretamente nestas discussões, notemos a
peculiaridade da compreensão do sentido da noção de “direito” para Hegel. Por
“direito”, Hegel entende algo a mais do que o ordenamento estatal de regulação
da vida social. “Direito” são: “Todos aqueles pressupostos sociais que se
mostraram necessários para a realização da ‘vontade livre’ de cada sujeito
individual”151. Tais pressupostos sociais englobam o ordenamento jurídico
atualmente existente com sua dinâmica conflitual interna, as instituições
políticas que compõe o Estado moderno, as relações intersubjetivas de amor que
se dão no interior da família, a disposição subjetiva formada a partir da
internalização de preceitos morais, a dinâmica do livre-mercado, entre outros.
Eles ainda devem estar, de uma certa forma, assegurados (ou em processo de
garantia) no interior dos quadros atuais do Estado moderno.

150
HEGEL, G.W.F. ; Grundlinien der Philosophie des Rechts, Frankfurt : Suhrkamp, 1986, par. 4. As
traduções aqui apresentadas vem, em grande parte, do trabalho de tradução de Marcos Müller.
151
HONNETH, Axel; Sofrimento de indeterminacao, São Paulo : Esfera Pública, 2006, p. 64
De fato, aí está boa parte da complexidade da aposta hegeliana: este
Estado não pode ser apenas um ideal, um dever ser. Se a função da filosofia do
direito é: “apresentar e conceitualizar o Estado como em si racional”152 é porque
ela deve ser capaz de apresentar, a partir de sua necessidade racional, o Estado
que está em vias de se realizar como resultado do projeto moderno. Ou seja, não
se trata nem do Estado atualmente realizado, nem de um Estado ideal, simples
ideia sem relação alguma com a efetividade atual. Trata-se de um Estado que
pode potencialmente se realizar, isto no sentido de algo que explora os conflitos
sociais atuais para se realizar.
Esta é uma maneira de lembrar que, afinal, um ordenamento jurídico
estatal está longe de ser algo monolítico e organicamente coeso. Antes, ele é o
resultado heteróclito da sedimentação de lutas sociais entre várias disposições
contrárias e mesmo contraditórias no interior da sociedade. O ordenamento
jurídico traz as marcas destas lutas e conflitos. Neste sentido, cabe à filosofia do
direito apresentar quais lutas e conflitos definiram a tendência de racionalidade
do ordenamento jurídico. Talvez seja por isto que Hegel precise terminar seu
prefácio à Filosofia do direito com a bela metáfora da filosofia como a coruja de
Minerva que levanta vôo apenas com a irrupção do crepúsculo. Pois a filosofia
procura mostrar como os conflitos sociais que dão forma ao direito, que
imprimem tendências no interior do direito, são mobilizações do Espírito na sua
procura em realizar o conceito de liberdade no interior da vida social. Uma
realização que nunca é linear, que nunca deixa de levar em conta dimensões
táticas e estratégicas do pensamento, assim como a configuração de situações
locais. Mas uma realização que, ao menos segundo Hegel, já teria sido capaz de
deixar marcas irreversíveis em nosso ordenamento jurídico, principalmente
depois do Código napoleônico e do impacto da Revolução Francesa.
Desta forma, por insistir que a vontade livre só pode ser pensada como
efetivação de pressupostos que devem estar em processo de institucionalização
na vida social, Hegel precisa fazer a crítica de dois modelos hegemônicos de
liberdade: um baseado na hipóstase das exigências de autenticidade e outro
baseado na hipóstase das exigências de autonomia. A hipóstase destes dois
modelos nos leva à perpetuação da contradição entre liberdade e instituição,
contradição inaceitável para Hegel. Pois a autenticidade, quando hipostasiada, só
poderia produzir uma noção de liberdade negativa que, quando utilizada como
guia para a ação política, nos leva diretamente ao terror. Já a autonomia, quando
hipostasiada, produz uma noção de livre-arbítrio que, ao servir de guia para a
ação política, acaba por levar a uma profunda atomização social produzida pela
elevação da categoria de “indivíduo” a elemento central da vida social. Vejamos
cada uma destas distorções do conceito de liberdade, que não deixam de tecer
relações entre si. Ao fim, poderemos compreender melhor qual é a especificidade
do conceito hegeliano.

Da liberdade negativa ao terror

Se se contrapõe ao direito positivo e às leis o sentimento do coração, a


inclinação e o arbítrio (Willkür), não pode ser a Filosofia, pelo menos, que
reconhece tais autoridades. – O fato de que a violência e a tirania possam

152
HEGEL, ibidem, p. 26
ser um elemento do direito positivo lhe é contingente e não concerne à
sua natureza153.

Tal frase é decisiva. Hegel está a lembrar, entre outras coisas, que a liberdade
não pode ser confundida com a presumida autenticidade da espontaneidade
imediata dos sentimentos. Uma autenticidade que veria, nas leis, apenas a
coerção e a violência institucionalizada sob a forma do direito positivo, já que as
leis nunca seriam condizentes com aquilo que Hegel chamou, na Fenomenologia
do Espírito, de “as leis do coração”. Leis estas para as quais o curso do mundo é
necessariamente pervertido. Contra tal hipóstase da autenticidade, para a qual
todo direito é apenas uma forma velada de violência, Hegel quer defender
afirmações como: “A liberdade é apenas isto, conhecer e querer tais objetos
substanciais universais como o direito e a Lei e produzir uma realidade
(Wirklichkeit) que lhes é conforme : o Estado”154.
Uma afirmação desta natureza é facilmente objeto das piores confusões.
“Livre é a vontade que deseja a Lei”: não é difícil ouvir, nesta frase orwelliana, a
confissão de uma filosofia que parece não compreender o sentido de
experiências, tão comuns em nossas sociedades, de dissociação entre direito e
justiça. Pois o que dizer quando estamos diante de leis injustas? E,
principalmente, por que falar isto em um momento no qual o estado prussiano
estava animado pelo ímpeto do Congresso de Viena (1814-1815) e pela
Restauração anti-liberal que visava aplacar de vez a influência dos ideais da
Revolução Francesa? No entanto, devemos salientar um ponto fundamental:
“Não existe revolução na história da humanidade que não tenha sido apoiada e
celebrada por esse filósofo que também tem fama de ser um incurável homem da
ordem”155, seja a revolução americana, seja a revolução haitiana de Toussaint
L’ouverture, as revoltas da plebe contra os patrícios, a rebelião dos escravos sob
o comando de Spartacus, a revolta camponesa na época da reforma ou ainda a
revolução francesa.
Mas Hegel saberá ter palavras duras contra o jacobinismo e o terror
revolucionário. Hegel sabe que o terror é o resultado desastroso da primeira
manifestação de um conceito de liberdade que tem no seu bojo o momento da
liberdade negativa enunciada em nome da autenticidade entusiasmada do
sentimento. Ele é a “liberdade absoluta” transformada em fúria da destruição,
pois liberdade que não reconhece nenhuma possibilidade de sua
institucionalização, que vê todo direito como perda da espontaneidade livre do
entusiasmo revolucionário e que, por isto, se volta contra tudo que procura
determiná-la, contra todo governo. Como Hegel dirá na Fenomenologia do
Espírito, para esta liberdade absoluta: “O que se chama governo é apenas a facção
vitoriosa, e no fato mesmo de ser facção, reside a necessidade de sua queda, ou
inversamente, o fato de ser governo o torna facção e culpado”156. Afinal, o terror
jacobino nada tem a ver com a simples violência totalitária do Estado contra
setores descontentes da sociedade civil. Na verdade, ele foi o movimento
autofágico de destruição da sociedade e de auto-destruição do Estado, isto até o

153
Idem, par. 3
154
HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, Frankfurt : Suhrkamp, 1986, p. 82
155
LOSURDO, Domenico, Hegel, Marx e a tradição liberal, São Paulo : Unesp, 1997, p. 155
156
HEGEL, Fenomenologia do Espírito, vol II, Petrópolis: Vozes, 1991, p. 97.
momento em que os próprios líderes jacobinos terminaram na guilhotina. O
jacobinismo é a figura reflexiva do terror que se volta contra si mesmo.
No entanto, e isto se esquece muitas vezes, Hegel não deixa de salientar
que tal momento negativo da liberdade é um momento necessário da história do
Espírito. Para compreender isto, devemos definir melhor o que Hegel entende
por “liberdade negativa”. No parágrafo 5 da sua Filosofia do direito, Hegel faz a
seguinte afirmação:

A vontade contém ) o elemento da pura indeterminidade ou da pura


reflexão do eu dentro de si, na qual estão dissolvidas toda restrição, todo
conteúdo imediatamente aí-presente pela natureza, pelas carências, pelos
desejos e impulsos, ou dados e determinados pelo que quer que seja; a
infinitude irrestrita da abstração absoluta ou universalidade, o puro
pensamento de si mesmo157.

A noção de “liberdade negativa”, enquanto primeiro momento da vontade,


aparece pois como possibilidade de me liberar de toda determinidade, ser
absolutamente para si, como vemos no famoso início da dialética do Senhor e do
Escravo. Daí a noção de “abstração absoluta”, noção que indica a posição de uma
incondicionalidade que aparece como a primeira manifestação da
universalidade. Incondicionalidade que, por sua vez, procura a todo momento
reafirmar sua inadequação às determinações postas. Um pouco como se o
jacobinismo fosse a realização política de um desejo pensado como pura
negatividade. Por isto, a hipóstase desse momento negativo da liberdade é
descrito por Hegel em termos bastantes duros:

É a liberdade do vazio, que, erigida em figura efetiva ou em paixão, e


permanecendo meramente teórica, torna-se, no domínio religioso, o
fanatismo da contemplação pura dos hindus, mas, volvendo-se para a
efetividade, torna-se, no domínio político, assim como no religioso, o
fanatismo do destroçamento de toda ordem social subsistente, e a
eliminação dos indivíduos suspeitos a uma determinada ordem, assim
como, o aniquilamento de toda organização que queira novamente vir à
tona. Somente quando ela destrói algo é que esta vontade negativa tem o
sentimento de sua existência.

No entanto, e este ponto deve ser salientado, Hegel lembra que é exclusivo do
querer humano esta capacidade de abstrair-se de tudo, de transcender toda
determinação posta. Por isto, ele deve insistir que :

Esta liberdade negativa ou esta liberdade do entendimento é unilateral,


mas esta unilateralidade sempre contém em si uma determinação
essencial: portanto, não é de se rejeitá-la, mas a deficiência do
entendimento está em que ele ergue uma determinação unilateral à
condição de única e suprema.

157
HEGEL, Grundlilien ..., par. 5
De fato, Hegel reconhece que a pura indeterminação da vontade só pode
nos levar a um impasse tanto existencial quanto político. Podemos dizer que nos
dois casos, não se vai além de uma “estetização da violência”, seja da violência
contra si que se realiza na insatisfação absoluta, na inadequação recorrente de
todo agir e julgar, seja da violência política contra toda e qualquer instituição. No
entanto, um dos problemas maiores da modernidade, ao menos segundo Hegel,
problema este que está na base da sua filosofia do direito, pode ser
compreendido da seguinte forma: como viabilizar o reconhecimento
institucional de sujeitos pensados enquanto modos singulares de confrontação
com o que se oferece como indeterminado e negativo? Sendo assim, tudo se
passa como se fosse questão de pensar a política e a continuidade dos ideais da
Revolução Francesa após o impasse jacobino.
Como veremos, esta é questão de difícil equação. Toda a complexidade
vem do fato da liberdade dever ser capaz de determinar seus objetos no interior
da vida social, de fazê-los reconhecer, mas sem simplesmente anular o momento
negativo que é imanente ao conceito moderno de liberdade e que encontrou sua
expressão inicial deformada no terror jacobino. Assim, de uma maneira bastante
peculiar, o Estado que Hegel procura pensar é o Estado pós-revolucionário
constitucional, Estado capaz de levar em conta as exigências de reconhecimento e
de universalidade postas em circulação pela Revolução Francesa.

O formalismo do livre-arbítrio

Mas, por enquanto, voltemos às críticas feitas por Hegel a modelos


hegemônicos de liberdade. Como foi dito anteriormente, Hegel também critica
um modelo de liberdade que hipostasia a noção de autonomia. Quando
hipostasiada, tal noção produz uma idéia de livre-arbítrio que, ao servir de guia
para a ação política, acaba por levar a uma profunda atomização social resultante
da elevação da categoria de “indivíduo” a elemento central da vida social.
Tentemos entender melhor este ponto.
Sabemos como a noção moderna de autonomia nos aparece,
normalmente, como a capacidade dos sujeitos porem para si mesmos a sua
própria Lei moral, transformando-se assim em agentes morais capazes de se
auto-governar. Esta lei que os sujeitos prescrevem para si mesmos a fim de se
afirmarem como autônomos não é, como sabemos, uma lei particular, ligada aos
interesses egoístas da pessoa privada. Antes, ela é incondicional, categórica e
universal. Lei capaz de abrir as portas para o reconhecimento de um campo
intersubjetivo de validação da conduta racional e que levaria o sujeito a guiar
suas ações em direção à realização de uma ligação sistemática dos diversos seres
racionais por leis comuns. Para que ela tenha realidade, faz-se necessário então
que os sujeitos tenham algo mais do que desejos particulares e “patológicos”.
Eles precisam ter uma vontade pura que age por amor à universalidade da Lei.
Vontade que se coloca como dever. Pois, através do dever, a consciência pode dar
para si mesma sua própria lei, julgar sua própria ação como quem se cinde entre
uma consciência que age e uma consciência que julga. No entanto, lembrará
Hegel, a perpetuação da moralidade sob a forma do dever só pode produzir um
impasse. Pois: “A ‘moral’ não é uma confrontação perpétua entre o homem tal
como ele ‘é’ e este mesmo homem tal qual ele ‘deve ser’”158. Tal confrontação, se
perpetuada, só poderá nos levar à completa desarticulação da capacidade de
agir.
Hegel insiste, em vários momentos, que a desarticulação da capacidade de
agir presente em tal concepção de autonomia tem um nome: “formalismo”. Neste
contexto, formalismo significa que a fundamentação da ação moral através da
pura forma do dever não é capaz de fornecer um procedimento seguro de
decisão a respeito do conteúdo moral de minhas ações. “Fundamentação através
da pura forma do dever” significa definir a natureza moral de minha ação
basicamente através de sua conformidade a certos procedimentos formais
enunciados em um imperativo categórico (procedimentos de universalização
sem contradição, de incondicionalidade e de categoricidade). Hegel não acredita
que a fundamentação transcendental de um princípio moral possa garantir a
clarificação de seus modos de aplicação. Ao contrário, ele insiste a todo momento
que uma definição meramente formal do dever cai, necessariamente, em uma
tautologia, em uma “identidade sem conteúdo”.
Podemos compreender este ponto da seguinte maneira: na verdade, o
dever, embora sendo aparentemente formal, tem um “conteúdo”, que é, no fundo,
o nome hegeliano para “particularização de contextos de ação”. Maneira de
lembrar que a determinação do sentido da ação moral não é fruto exclusivo de
considerações procedurais. Ela exige uma articulação complexa referente à
atualização de contextos particulares de ação. Pois o dever aparece no interior de
situações particulares de ação, situações nas quais tenho um conteúdo definido
(“devo ou não roubar esta mercadoria se tenho fome e não tenho dinheiro”,
“devo ou não largar minha mulher por um outro amor”). Isto demonstra como o
dever é atividade tendo em vista sua realização na exterioridade. Ele se curva ao
cálculo de uma pragmática contextualizada e intersubjetivamente estruturada. Só
a partir daí a atividade pode ser capaz de por para si mesma um fim. Isto explica
a definição dada por Hegel de moralidade:

O conceito de moralidade é o relacionar-se interior da vontade a si


mesma. Mas, aqui, não há somente uma vontade, senão que a objetivação
tem simultaneamente dentro de si a determinação de que a vontade
singular se supera na objetivação, e, portanto, precisamente com isso, ao
eliminar-se a determinação da unilateralidade, são postas duas vontades
e uma relação positiva das mesmas uma à outra159.

Ou seja, a moralidade só encontra seu fundamento quando é capaz de se


colocar não como vontade individual, mas como vontade que traz em si mesmo a
referencia à “vontade dos outros” (termo muito menos claro do que possa
inicialmente parecer). Por isto, Hegel deve dizer que: “A ação contém as
determinações indicadas: a) de ser sabida por mim na sua exterioridade como
minha, b) de ser a relação essencial ao conceito como a um dever-ser e c) de ser a
relação essencial à vontade dos outros”.
Por exemplo, Hegel lembra da máxima com aspirações universais : “Ama
ao próximo como a ti mesmo”. No fundo, ela só pode significar, dirá: “Devo amar

158
FLEISCHMANN, Eugène; La philosophie politique de Hegel, Paris : Gallimard, 1992, p. 118
159
Idem, par. 112
o próximo com inteligência; um amor não inteligente talvez lhe faria mais danos
que o ódio”. Esta cláusula de relativização pode parecer anódina, mas ela acaba
por introduzir um princípio de fragmentação ligado à individualidade e aos
motivos psicológicos que interferem na aplicação da máxima. Pois o que pode ser
um “amor inteligente” a não ser aquele que me parece como tal a partir das
experiências afetivas que tive e do modelo de amor que recebi? Se esse for o
caso, posso ter convicção de agir de forma correta, mas tal convicção não é
expressão de segurança ontológica alguma. Mesmo que a máxima em questão
seja universal, seu modo de aplicação passará sempre por inflexões individuais, o
que nos explica, neste caso, porque experiências afetivas na qual amo o outro
como a mim mesmo são tão prenhes de mal-entendidos. Nada impede o que
aparece a mim como “amor inteligente” ser sentido pelo outro como algo
profundamente danoso, isto devido à natureza diversa de suas experiências
afetivas.
A única maneira de não cair em alguma forma de relativismo profundo
aqui seria apelar a uma dimensão institucional que, por ser intersubjetivamente
partilhada e por estar na base da formação de todas as individualidades,
forneceria a coesão social necessária para práticas serem avaliadas de maneira
relativamente segura. O que explica porque Hegel faz um comentário
aparentemente temerário como: “Mas o bem fazer essencial e inteligente é, em
sua figura mais rica e mais importante, o agir inteligente universal do Estado.
Comparado com esse agir, o agir do indivíduo como indivíduo é, em geral, algo
tão insignificante que quase não vale a pena falar dele”160.
Essa é a maneira hegeliana de dizer que não há ação moral sem a
referência a normas institucionais que reconheço como justas e legítimas por já
se demonstrarem capazes de garantir as condições sociais para a realização da
liberdade. Podemos criticar a crença hegeliana de que tais normas encontrariam
sua figura exemplar no Estado moderno, podemos também relativizar o
“princípio de jurisprudência” que me leva a projetar ações futuras a partir das
consequências realizadas por ações semelhantes no passado, mas isto não
invalida a compreensão hegeliana de que, ao invés de nos referirmos a
normatividades transcendentais, devemos procurar a fundamentação de
julgamentos morais a partir da racionalidade de instituições sociais.
Este é o pano de fundo para compreender porque Hegel insiste várias
vezes que a vontade livre que delibera, não delibera sob a forma do arbítrio. Pois
quem diz arbítrio, diz escolha como se não houvesse nenhuma determinação
causal exterior à própria espontaneidade da decisão individual. Mas Hegel insiste
que uma escolha feita nestas circunstâncias é uma abstração em relação aos
processos efetivos de determinação do sentido da ação. Ela não perceberá quão
pouco há a escolher quando a situação na qual a ação se insere não é
reflexivamente apreendida. Por isto, ele deve dizer : “visto que somente o
elemento formal da autodeterminação livre é imanente ao arbítrio, e o outro
elemento, em contrapartida, lhe é algo dado, o arbítrio, se é que ele deve ser a
liberdade, pode com certeza ser chamado uma ilusão”. Em certo sentido, a ação
moral é aquela que permite a realização do Estado justo.

160
HEGEL, Georg F. W. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 1991,
parágrafo 425
O risco da atomização social

Caso não ocorra a revelação de uma verdadeira intencionalidade coletiva,


a constituição da autonomia levará à generalização de uma forma de ação
incapaz de compreender sistemas de motivações para além do quadro das
vontades individuais. Por ter uma compreensão da significação da ação ligada à
dinâmica de auto-certificação de uma consciência solipsista, tal autonomia, para
Hegel, é uma autonomia de indivíduos isolados. Desta forma, as exigências de
autonomia se realizam politicamente como valor mobilizado para a justificativa
da constituição de uma sociedade de indivíduos onde todas as relações sociais
são pensadas sob a forma do contrato: figura maior do acordo negativo (e único
acordo possível) entre vontades individuais. Para Hegel, isto significa uma
sociedade assombrada por um irreversível processo de atomização social e de
desagregação.
Hegel vê como sintomático que autores para os quais a autonomia
individual é a pedra de toque da razão prática só sejam capazes de pensar a
natureza das relações sócio-políticas a partir da forma do contrato. Ele
compreende que a tendência contratualista parte da situação social atomizada de
indivíduos portadores de interesses que devem ser restringidos pelos interesses
de outros indivíduos. Restrição que, normalmente, legitima-se através da ficção
jurídica de um contrato social através do qual conservo interesses possíveis de
serem socialmente realizados e abro mão daqueles que não se submetem a esta
condição.
Por outro lado, se o contrato é um momento importante da efetivação da
liberdade, já que a propriedade privada é, por sua vez, um momento necessário
da vontade que se exterioriza e quer se fazer reconhecer em sua particularidade,
a generalização da figura do contrato para a totalidade da vida social é uma
distorção e uma patologia. Longe de ser um modelo de coesão social, a metáfora
do contrato é a evidência de que estamos diante de uma sociedade em processo
de desagregação. O casamento, a relação ao Estado, a relação do pai aos filhos
não são contratos. Elas são relações de outra natureza, algo muito diferente do
tipo de relação que posso estabelecer com coisas a respeito das quais sou
proprietário (como é o caso das relações contratuais). Quando elas são pensadas
sob a forma do contrato, é porque perderam completamente sua
substancialidade. Por não saberem se portar no interior da ação social, por terem
perdido a coesão social que permite relações concretas de reconhecimento, os
sujeitos se apegam à compreensão reificada do comportamento de outros
sujeitos como se tratassem de coisas que podem ser postas em cláusulas de um
contrato.
Hegel deve fazer esta leitura porque compreende o advento das
sociedades modernas de livre-mercado como movimento preso a tal modo de
definir as relações sociais. Por isto, tratam-se de sociedades assombradas pelo
risco de atomização social. Por “atomização social” devemos entender um
processo interno às sociedades civis capitalistas de enfraquecimento da força
normativa do vínculo social e de fortalecimento das demandas de decisão em
direção aos indivíduos. Hegel descreve uma das facetas deste processo da
seguinte forma:
A tendência a buscar dentro de si, voltando-se para o interior, o que é justo
e bom, e a sabê-lo e determiná-lo a partir de si, aparece, enquanto
configuração mais geral na História (em Sócrates, nos Estóicos, etc.), em
épocas em que aquilo que vige na efetividade e nos costumes como justo e
como bom não pode satisfazer a uma vontade melhor; quando o mundo
existente da liberdade tornou-se infiel a essa vontade, ela não se encontra
mais a si mesma nos deveres vigentes e deve procurar obter a harmonia,
perdida na efetividade, somente na interioridade ideal161.

Hegel sabe que sua época também conhece tal “crise de legitimidade”. Sua
descrença em relação ao fortalecimento do indivíduo como elemento de
contraposição a tal tendência vem, entre outras coisas, da consciência das suas
conseqüências catastróficas no plano sócio-econômico. Pois a atomização social
não implica apenas transferência do pólo de decisão sobre a orientação da
conduta para os ombros dos indivíduos. Ela implica também um modo atomizado
de compreensão da dinâmica da vida social, compreensão da vida social como
justaposição de vontades individuais. Fato que não deve nos surpreender já que
modelos de reflexão sobre a estrutura do sujeito moral servem, normalmente,
como modelos gerais para a compreensão dos modos de ação social a partir de
valores e normas. Agimos moralmente da mesma forma que agimos socialmente,
ou seja, utilizando a mesma estrutura de julgamento e orientação.
Sendo assim, podemos dizer que os modelos da autonomia individual e do
livre-arbítrio acabam por produzir uma imagem da sociedade como conjunto de
normas, instituições e regras capazes de garantir a plena realização dos sistemas
particulares de interesses que se orientam a partir de sua própria visão sobre a
realização do bem e das riquezas. Hegel é um dos primeiros a compreender que,
quando transplantado para a esfera das relações econômicas tal processo
produz, necessariamente, pauperização e alienação social. Neste ponto,
podemos sentir a importância da leitura hegeliana dos economistas britânicos.
Tal leitura fora fundamental para a compreensão hegeliana da complexidade
funcional das sociedades modernas.
Esta passagem em direção à economia política é justificada. Como Hegel
opera com um conceito de liberdade para o qual a definição das condições
sociais de sua efetivação é um problema interno à própria definição do conceito,
ele deve poder descrever as situações nas quais o funcionamento da vida social
não fornece mais os pressupostos para a realização as aspirações, entre outras,
da autonomia individual. Um pressuposto fundamental está relacionado ao
funcionamento da esfera econômica, base da constituição daquilo que Hegel
entende por sociedade civil. Podemos dizer isto porque, para Hegel, problemas
de redistribuição e de alienação na esfera econômica do trabalho são um setor
decisivo de problemas mais gerais de reconhecimento social.
Neste sentido, por exemplo, processos de pauperização não serão vistos
por Hegel apenas como problemas de “justiça social”, mas sim como problemas
de condições de efetivação da liberdade. Pois não é possível ser livre sendo
miserável. Livres escolhas são radicalmente limitadas na pobreza e, por
conseqüência, na subserviência social. Posso ter a ilusão de que, mesmo com
restrições, continuo a pensar livremente, a deliberar a partir de meu livre-

161
HEGEL, ibidem, par. 138
arbítrio individual. Um pouco como o estóico Epiteto, que dizia ser livre mesmo
sendo escravo. No entanto, uma liberdade que se reduziu à condição de puro
pensamento é simplesmente inefetiva, isto no sentido dela determinar em muito
pouco as motivações para o nosso agir.
Já o jovem Hegel afirmava que, ao procurar a realização do bem e das
riquezas através da referência a seu próprio sistema particular de interesses, a
sociedade conhece um processo de multiplicação de necessidades e afirmação
dos interesses. Da mesma forma que as necessidades se desdobram, os meios
para satisfazê-las se multiplicam e se complexificam, criando assim tanto a
riqueza, o refinamento, quanto o desenvolvimento e, principalmente, o
aprofundando a dependência entre os homens. O que leva Hegel a afirmar:
“Enquanto existência real, as necessidades e os meios advém ser para outro
através dos quais as necessidades e o trabalho de cada um é reciprocamente
condicionado”162. Pois meu trabalho advém um meio para a satisfação dos
outros, assim como minha satisfação depende do trabalho dos outros. É a isto
que Hegel chama de “sistema de necessidades”.
No entanto, Hegel insiste que este sistema de necessidades construído
através da múltipla dependência dos trabalhos tem como conseqüência
inelutável a divisão do trabalho. Desde sua juventude, Hegel percebe que o
desenvolvimento das sociedades modernas de livre mercado exige uma
especialização cada vez maior dos trabalhos, fruto da complexificação dos
objetos produzidos e da ampliação da produção em larga escala. Hegel sabe que
tal processo leva necessariamente à simplificação e à abstração mecânica na
esfera do trabalho que, por fim, produz a substituição do homem pela máquina,
como vemos no parágrafo 198 dos Princípios da filosofia do direito. Neste sentido,
ele é talvez o primeiro a compreender que a mecanização e a automatização são
conseqüências inelutáveis das sociedades modernas. Conseqüências que
produzem um sofrimento social de alienação devido à dependência dos sujeitos a
um modo de exteriorização que os mortificam. Ou seja, ao procurar a realização
do bem e das riquezas através da referência a seu próprio sistema particular de
interesses, ocorre uma modificação fundamental na estrutura do trabalho como
espaço de reconhecimento.
No entanto, Hegel reconhece outro problema social grave devido ao modo
de organização do trabalho nas sociedades liberais. Ele está indicado no seguinte
trecho dos Princípios da filosofia do direito:

Quando a sociedade civil não se encontra impedida em sua eficácia, então


em si mesma ela realiza uma progressão de sua população e indústria.
Através da universalização das conexões entre os homens devido a suas
necessidades e ao crescimento dos meios de elaboração e transporte
destinados a satisfazê-las, cresce, de um lado, a acumulação de fortunas –
porque se tira o maior proveito desta dupla universalidade. Da mesma
forma, do outro lado, cresce o isolamento e a limitação do trabalho
particular e, com isto, a dependência e a extrema necessidade (Not) da
classe (Klasse) ligada a este trabalho, a qual se vincula a incapacidade ao

162
Idem, Grundlinien ..., op. cit., par. 192
sentimento e ao gozo de outras faculdades da sociedade civil, em especial
dos proveitos espirituais163.

O modo de inserção no universo do trabalho depende, segundo Hegel, de


uma relação entre capital e talentos que tenho e que sou capaz de desenvolver.
Isto implica não apenas entrada desigual no universo do trabalho, mas também
tendência à concentração da circulação de riquezas nas mãos dos que já dispõem
de riquezas, assim como o consequente aumento da fratura social e da
desvalorização cada vez maior do trabalho submetido à divisão do trabalho. É
neste contexto que aparece a ralé (Pöbel):

A queda de uma grande massa de indivíduos abaixo do nível de um certo


modo de subsistência necessário a um membro da sociedade, queda que
conduz à perda do sentimento do direito, de retidão e honra que se tem
quando se vive através de sua própria atividade e trabalho, produz a ralé
e, ao mesmo tempo, a facilidade de concentrar fortunas desproporcionais
em poucas mãos164.

O advento da ralé é um problema central por mostrar os limites das


possibilidades de reconhecimento no interior da sociedade civil. Hegel chega a
afirmar que por mais que a sociedade civil seja rica, ela nunca é suficientemente
rica para eliminar a pobreza, já que a integração desta massa via assistência
filantrópica implica quebrar a autonomia de quem garante sua subsistência
através do próprio trabalho, mas o trabalho de todos produzirá necessariamente
crises de sobreprodução e desvalorização do trabalho. Este problema, cuja única
saída será o imperialismo e o colonialismo e a consequente perpetuação de
relações de dominação e servidão, tem a força de bloquear a possibilidade da
efetivação de uma forma de vida regulada pelo conceito de liberdade, o que
mostra como problemas de reconhecimento e de redistribuição estão vinculados
e, para Hegel, não podem ser solucionados no interior da estrutura de
reprodução social das sociedades liberais. É por isto que Hegel apela ao Estado.

A eticidade e a dupla função do Estado

A resposta que Hegel dará contra estes dois riscos de desagregação da vida social
impulsionados pela hipóstase de modelos de liberdade baseados na autonomia e
a autenticidade passará pelo fortalecimento do Estado. Para que este
fortalecimento seja possível sem que ele implique mera violência, algo destes
dois modelos deve ser conservado.
Por um lado, o Estado deverá dar um objeto à liberdade negativa, dar uma
forma institucional à negação impedindo que os indivíduos se petrifiquem em
determinações sociais estanques (como “membro de um estamento”,
“representante de um interesse de classe”). Isto será apresentado através das
considerações hegelianas sobre a guerra. Através da guerra, o Estado completará
um intrincado processo de formação das individualidades através da
internalização do caráter formador da experiência da negatividade da morte.
Este é um tema recorrente em Hegel e podemos encontrá-lo, por exemplo, na
163
HEGEL, ibidem, par. 243
164
Idem, par. 244
Fenomenologia do Espírito, à ocasião da compreensão do confrontar-se com a
morte como ir em direção ao fundamento da existência165. Se voltarmos à outro
momento da Fenomenologia, este dedicado à seção “Espírito”, encontraremos
colocações como:

Para não deixar que os indivíduos se enraízem e endureçam nesse isolar-


se e que, desta forma, o todo se desagregue e o espírito se evapore, o
governo deve, de tempos em tempos, sacudi-los em seu íntimo pelas
guerras e com isso lhes ferir e perturbar a ordem rotineira e o direito à
independência. Quanto aos indivíduos, que afundados nessa rotina e
direito se desprendem do todo aspiram ao ser para-si inviolável e à
segurança da pessoa, o governo, no trabalho que lhes impõe, deve dar-
lhes a sentir seu senhor: a morte. Por essa dissolução da forma da
subsistência, o espírito impede o soçobrar do Dasein ético no natural,
preserva o Si de sua consciência e o eleva à liberdade e à força. A essência
negativa se mostra como a potência peculiar da comunidade e como a
força de sua autoconservação166.

Podemos afirmar que, se o governo não repousa sobre uma promessa de


paz, é porque o processo de formação, que se iniciou na família, deve animar os
processos de interação social enquanto meios para a realização da subjetividade
como universalidade desprovida de toda aderência ao Dasein natural, enquanto o
que se realiza através de um trabalho que é confrontação com a fragilização das
imagens estáticas do mundo.
Notemos que esta guerra da qual fala Hegel não é a explosão de ódio
resultante da lesão da propriedade particular ou do dano a mim enquanto
indivíduo particular. A guerra é campo de “sacrifício do singular ao universal
enquanto risco aceito”167. Se na Grécia, tal guerra era, de fato, movimento
presente na vida ética do povo, já que o fazer a guerra era condição exigida de
todo cidadão, não deixa de ser verdade que Hegel concebe aqui o estado como o
que dissolve a segurança e a fixidez das determinações finitas. A guerra é o nome
do processo que demonstra como a aniquilação do finito é modo de manifestação
de sua essência.
Não se trata aqui de fazer a apologia do estado belicista, mas de procurar,
para além de sua enunciação literal, a função efetiva de tais colocações. De fato, a
hipótese que gostaria de defender consiste em afirmar que tais colocações sobre
a guerra dizem muito a respeito da configuração necessária de instituições e
práticas sociais que queiram estar à altura das exigências da modernidade. O que
é importante nesta reflexão sobre a guerra é a compreensão de que instituições
que queiram ser capazes de reconhecer sujeitos não substanciais devem fundar-
se em práticas sociais pensadas a partir de um trabalho que é reconhecimento da
soberania de uma figura da negação cuja manifestação fenomenológica pode ser
uma certa morte simbólica. Trata-se da figura de instituições sociais que não
tenham mais por função identificar sujeitos em identidades e determinações fixas.

165
Discuti este ponto em SAFATLE, Vladimir; O amor é mais frio que a morte : negatividade,
infinitude e indeterminação na teoria hegeliana do desejo, op. cit.
166
HEGEL, ibidem, p. 455
167
SOUCHE-DAGUES, Liberté et négativité dans la pensée politique de Hegel, Paris : Vrin, 1997, p.
26.
Há várias formas de se pensar tal processo sem precisar passar por esta apologia
hegeliana da guerra, certamente questionável e dificilmente defensável, não
apenas nas condições atuais, mas já em sua época. Por isto, para além da
enunciação literal, devemos saber como recuperar tal motivo que, no fundo,
expõe a relação necessária entre negatividade e Estado.
Se o problema das exigências de autenticidade pode ser regulado desta
forma, o problema da autonomia exigirá, por sua vez, um Estado que forneça as
condições sociais para a autonomia reencontrar-se nos sistemas sociais de
julgamento. Isto nós vemos no interior das considerações hegelianas sobre a
eticidade. Ela deve fornecer a estrutura institucional para que as aspirações
individuais de autonomia sejam efetivadas. Tal estrutura engloba, inclusive, a
obrigação estatal de lutar contra a fratura social inerente ao funcionamento da
sociedade civil no interior da dinâmica capitalista de desenvolvimento. A vida
ética não é indiferente à questão social, à obrigação de institucionalização de
políticas de combate à pauperização (consequência que podemos derivar da
Filosofia do direito, mesmo que ela não esteja descrita na obra). No entanto,
devemos analisar melhor o tipo de consolidação de costumes e modos de
julgamento que a noção de “eticidade” aplicada à vida moderna pode ser capaz
de garantir.
Notemos apenas que o Estado moderno tem uma dupla função
aparentemente contraditória. Ele deve acolher a experiência de indeterminação
que habita as individualidades e ele deve fornecer as determinações necessárias
para a efetivação da autonomia através da constituição de um conjunto de leis
positivas universalizáveis. Ele fornece um conjunto de regras sociais, assim como
fornece o modo de expressão daquilo que, nos sujeitos, é refratário à
determinação no interior de regras sociais. Ele, ao mesmo tempo, cria instituições
e gere a indeterminação. Para ser mais claro, para Hegel, o Estado é uma
instituição capaz de gerir a indeterminação, de superá-la sem simplesmente
negá-la. O Estado deve realizar o que a sociedade civil não é capaz de realizar
(como políticas de redistribuição que permitam dar realidade às demandas
sócias de reconhecimento) e, principalmente, deve retirar os sujeitos de sua
completa imersão na mera condição de indivíduos providos de sistemas
particulares de interesses. De uma certa forma, o Estado des-individualiza os
sujeitos. No entanto, esta des-individualizacao é condição para a liberdade, pois é
possibilidade de abertura do sujeito para algo mais do que a forma isolada e
atomizada do indivíduo. Pois Hegel sabe que podemos sofrer por não sermos um
indivíduo, ou seja, por não termos conseguido nos realizado como
individualidade capaz de se fazer reconhecer no interior da vida social. No
entanto, podemos sofrer também por ser apenas um indivíduo, um sofrimento
que ganha a forma do isolamento, do esvaziamento e incapacidade de se orientar
no interior da ação social.
Lógicas do reconhecimento
Aula 9

A aula de hoje será dedicada ao conceito de reconhecimento a partir da filosofia


de Marx. A princípio, esta colocação parece inadequada, pois não há, de forma
explícita, uma teoria do reconhecimento em Marx. Ou seja, Marx não fala
claramente sobre o problema, como vemos em Hegel. No entanto, como gostaria
de defender, o problema do reconhecimento é o horizonte normativo
fundamental da crítica marxista. Podemos fazer uma afirmação desta natureza
porque a reflexão crítica de Marx tem por horizonte a realização concreta de
exigências de emancipação social. Neste sentido, a filosofia social de Marx exige
um esclarecimento a respeito do potencial normativo do conceito de liberdade,
assim como a respeito de suas formas de atualização.
No entanto, sabemos que Marx, ao invés de começar a pensar o problema
a partir de uma reflexão moral a respeito da liberdade, como faz por exemplo
Kant em sua Crítica da razão prática, parte de um diagnóstico de sofrimento
social. Esta noção de diagnóstico de sofrimento social é importante aqui, pois a
filosofia enquanto discurso deverá se transmutar em Marx a fim de receber a
forma de uma mobilização discursiva tendo em vista garantir as condições para
uma prática de luta efetiva contra o sofrimento social. Podemos falar em
“sofrimento social” porque o fenômeno descrito por Marx bloqueia as condições
de realização dos sujeitos enquanto sujeitos livres, produzindo não apenas
situações de injustiça social, mas situações de limitações para aspirações de
auto-realização. Tais limitações se expressam em formas variadas de patologias,
como a funcionalização da personalidade, o esvaziamento, o estranhamento em
relação à própria atividade, entre tantos outros.
Sabemos como Marx dá um nome a tal fenômeno de sofrimento social, a
saber, alienação. Há autores que gostariam de restringir as discussões de Marx
sobre alienação a primeira fase de seu pensamento, esta que vai até A ideologia
alemã. Tal leitura, no entanto, é equivocada por não levar em conta os sistemas
motivacionais que levam à ação política, mesmo no Marx de maturidade.
A respeito do conceito de alienação, lembremos inicialmente como ele
está presente em Rousseau, isto a partir de um apelo a um fundamento
antropológico esquecido na origem. A temática do estado de natureza serve para
fornecer uma “etiologia” do sofrimento social e do sentimento de perda de si que
a vida em sociedade implica. Quando a temática da alienação aparecer em Hegel,
ela não precisará mais fazer apelo a um fundamento antropológico bloqueado
pelos processos de desenvolvimento social, como seria o caso em Rousseau. O
fundamento da crítica não seria mais dado por um antropologia filosófica, mas
por uma filosofia da história. Trata-se, na verdade, de denunciar esta perda da
força reguladora do vínculo social em direção à progressão histórica capaz de
assegurar a institucionalização de vínculos sociais racionais com força para
instaurar processos de institucionalização da liberdade.
Este vínculo entre teoria da alienação e filosofia da história estará
presente em Marx. Haverá um processo de desenvolvimento social que será
responsável pelo bloqueio nas possibilidade de auto-realização dos sujeitos.
Haverá um sofrimento produzido por impossibilidades de reconhecimento
social. Este processo, no entanto, não será resultante de alguma forma de
desregulação das normas sociais, como se em algum momento a normas sociais
não conseguiriam realizar mais a reprodução material da vida social em suas
condições normais. Na verdade, Marx vincula o sofrimento social ao caráter
paradoxal do próprio funcionamento normal da normatividade imanente às
sociedades capitalistas. Lembremos como, em Marx, a alienação não está ligada
apenas à espoliação econômica na esfera do trabalho devido a alguma forma de
troca injusta na qual não receberia o valor justo pelo meu trabalho. Primeiro,
Marx lembra, a partir de sua teoria da mais valia, que a espoliação é condição do
funcionamento “justo” ligado ao valor da força de trabalho. Até porque, a mais
valia é fruto da defasagem entre o valor da força de trabalho e do valor
produzido pelo consumo da força de trabalho no interior do processo de
produção de mercadorias.
Segundo, Marx lembrará que, devido à divisão do trabalho e à
predominância de uma apropriação de si reduzida à condição da possessão, o
sofrimento de alienação estará ligado ao caráter restritivo das identidades
sociais, com a assunção de si enquanto pessoa funcionalizada e submetida à
lógica da determinação por propriedades. Ou seja, não se trata apenas de um
problema de espoliação, mas de reconhecimento. Neste sentido, é claro que a
normalidade em Marx não está presente em uma média aritmética que expressa
a funcionalidade do sistema. Mas há de se insistir também que ela só pode
aparecer através de uma reconciliação que não é apenas aperfeiçoamento de um
progresso histórico, mas que está posta radicalmente fora do ordenamento
social atual. Ou seja, ela está em uma situação fora do tempo presente com suas
figuras de subjetividade, o que explica porque a temática da revolução é tão
central no pensamento de Marx.

Uma teoria da alienação

Proponho então analisar a emergência da teoria da alienação no jovem Marx. Isto


implica inicialmente lembrar como o problema da alienação em Marx está
vinculado de forma privilegiada à categoria do trabalho. Tal vínculo se justifica
porque Marx acredita não apenas que o trabalho social é forma de criação de
vínculos de mutualismo e solidariedade. Na verdade, o trabalho é forma de uma
certa indução material da sensibilidade. Através dos regimes e modos de
trabalho, as formas da sensibilidade são constituídas, assim como a forma do
espaço, do tempo, das intensidades e dos ritmos da percepção. A repetição
material destas formas, produzida por injunções de sobrevivência social, tem a
força de bloquear os efeitos de qualquer reconfiguração conceitual do campo de
experiências. Por isto, para Marx, toda transformação que não passar pela
transformação das condições de trabalho será meramente abstrata, inefetiva. No
entanto, tal transformação, como gostaria de mostrar não está vinculada
exclusivamente a um problema de redistribuição de bens e riquezas.
Comecemos então pelo jovem Marx e suas elaborações presentes nos
Manuscritos econômico-filosóficos. Marx parte da centralidade do paradigma do
trabalho para perguntar se suas condições sociais atuais concretas podem
permitir que ele realize seu próprio conceito, a saber, ser a exteriorização
(Entäusserung) do sujeito sob a forma de um objeto capaz de circular
socialmente. Isto lhe levará a uma crítica não apenas do trabalho alienado, mas
do que entendemos até agora por trabalho em seu sentido geral. Pois temos três
níveis da crítica em Marx que não devemos confundir: a) a espoliação do objeto
trabalhado, b) a espoliação do valor do trabalho e c) a alienação da atividade
humana sob a forma do trabalho que visa a produção do valor168. Os dois
primeiros níveis nos levam a uma defesa da redistribuição igualitária de bens e
rendimentos e a um enquadre do problema da alienação no interior de uma
teoria da miséria operária. No entanto, o terceiro nível nos coloca em outro eixo
de discussões. Marx não se contenta em dizer que o objeto trabalhado, o
resultado do trabalho está espoliado do sujeito. Ele lembra que o próprio ato da
produção, a estrutura teleológica do trabalho é um forma de alienação por exigir
uma compreensão do que podemos chamar de matriz disciplinar do trabalho
com sua relação à propriedade privada e à elevação das “relações por possessão”
à condição de modelo fundamental de determinação social. Os dois primeiros
níveis são mais classicamente absorvidos pela crítica social que vê em Marx,
sobretudo, uma teoria da justiça social. No entanto, o terceiro nível é
seguramente o mais polêmico e original.
Ao começar pela crítica do trabalho assalariado, Marx procura mostrar
como a dissociação desta unidade ainda fundamental na realidade medieval
entre capital, propriedade da terra e trabalho, com a consequente transformação
dos trabalhadores em assalariados, representava um modelo novo de
subserviência, e não uma liberação em relação ao sistema de dependências entre
o servo e o senhor da terra. A constituição do trabalhador como sujeito de direito
que pode vender sua força de trabalho no mercado pelo melhor salário é, para
Marx, o fundamento de uma espoliação naturalizada pela racionalidade da
economia política. Ele pressupõe o processo histórico de dissociar o trabalhador
do capital e da renda da terra, levando-o à obrigação de viver puramente do
trabalho.
No Primeiro Caderno dos Manuscritos, Marx descreve este processo
através do qual o capital, cujo processo de valorização é a produção efetiva da
riqueza nas sociedades capitalistas, sobrepõe-se à propriedade fundiária,
transformando-a em uma mercadoria como as outras Assim: “a terra como terra,
a renda da terra como renda da terra perderam sua qualidade social, distintiva, e
converteram-se em capital e juro que nada dizem, ou antes, que apenas sugam
dinheiro” 169 . Ao submeter a propriedade fundiária à mera condição de
mercadoria inserida em um processo de valorização, o capital pode se colocar
como poder de governo sobre o trabalho e seus produtos. Daí esta definição do
capital como trabalho armazenado.
O capital governa através da redução de toda qualidade social da terra e
do trabalho à condição de uma abstração geral representada pela forma-
mercadoria. Este mesmo processo de abstração será imposto a um trabalho cada
vez mais maquínico, dissociado e submetido à divisão do trabalho. Por isto,
trabalho produtor de sofrimento social e de bloqueios de reconhecimento.
Trabalho submetido à condição de ser mero processo de produção do valor. Daí
uma afirmação maior como:

168
Tópico muito bem desenvolvido por Moishe Postone ao afirmar: “O trabalho social não é somente o
objeto da exploração e dominação, mas é, ele próprio, o terreno da dominação. A forma não pessoal,
abstrata, ‘objetiva’ de dominação carcterística do capitalismo está aparentemente relacionada à
dominação dos indivíduos por seu trabalho social” (POSTONE, Moishe; Tempo, trabalho e dominação
social, São Paulo: Boitempo, 2014, p. 150)
169
MARX, Karl; Manuscritos. …, p. 94
com a valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção a
desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente
mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma
mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em
geral170.

A crítica ao trabalho assalariado terá pois dois momentos distintos,


porém complementares. Primeiro, ela é crítica da espoliação econômica através
do salário. Tal crítica está presente principalmente no primeiro capítulo do
Primeiro Caderno. Segundo, ela é crítica da alienação através da submissão do
trabalho à condição de processo de produção do valor. Por sua vez, esta crítica
está presente principalmente no quarto capítulo do Primeiro Caderno.

Espoliação e monopólio

De fato, que o salário seja expressão da espoliação econômica, eis algo que
Marx defende ao lembrar como o processo de valorização do Capital pressupõe
salários habituais compatíveis com uma mera existência animal, como cavalos
que recebem apenas o suficiente para poder trabalhar. A produção da riqueza
econômica não se traduz em aumento paulatino e constante dos salários. Marx
compreende este aparente paradoxo a partir da dinâmica monopolista inerente
ao desenvolvimento do capitalismo:

Numa sociedade que se encontra em crescente prosperidade, apenas os


mais ricos entre todos podem viver do juro sobre o dinheiro. Todos os
outros obrigam-se, com seu capital, a montar um negócio ou lançá-lo no
comércio. Desta maneira, a concorrência entre os capitais torna-se,
portanto, maior, a concentração dos capitais torna-se maior, os grandes
capitalistas levam à ruína os pequenos, e uma parte dos capitalistas de
outrora baixa à classe dos trabalhadores, a qual, com esta entrada, sofre,
em parte, novamente uma redução do salário e cai numa dependência
ainda maior dos poucos grandes capitalistas171.

Ou seja, o enriquecimento implica concentração de capitais, com o


fortalecimento dos monopólios e a consequente ruínas dos pequenos
capitalistas, que caem à condição de assalariados. Marx não se ilude a respeito da
solidariedade profunda entre concorrência e monopólio. Por isto, mesmo em
situação de enriquecimento social, devido à pressão social produzida pelos
processos monopolistas, os salários não acompanham o crescimento. Na melhor
das hipóteses, diz Marx, eles estacionam. Daí porque ele poderá afirmar que: “a
infelicidade da sociedade é a finalidade da economia nacional”172 e que a situação
mais rica da sociedade é miséria estacionária para os trabalhadores.
Para entender o raciocínio marxista do enriquecimento da sociedade
como miséria estacionária para os trabalhadores, devemos lembrar da diferença
entre pobreza absoluta e pobreza relativa. Quando a produção total se eleva,

170
Idem, p. 80
171
MARX, Karl; Manuscritos…, pp. 26-27
172
Idem, p. 28
aumentam também as necessidades, demandas e exigências, o que significa que a
pobreza absoluta pode diminuir enquanto a relativa aumentar:

O samoiedo, com seu óleo de fígado de bacalhau e peixes rançosos, não é


pobre porque na sua sociedade fechada todos tem as mesmas
necessidades. Mas num Estado que avança, que no decorrer de mais ou
menos uma década aumenta a sua produção total relativamente à
sociedade em um terço, o trabalhador que antes ou depois destes dez
anos ganha a mesma quantia, não ficou tão abastado quanto antes, mas
tornou-se um terço mais carente173.

Isto explica porque, quanto mais o trabalhador produz, menos tem para
consumir. A pobreza relativa implica diminuição gradativa do que consigo
consumir em relação às exigências renovadas do meu sistema de interesse. Desta
forma, fica claro como Marx compreende a figura do trabalho assalariado como a
perpetuação de uma forma de espoliação e sofrimento. Neste sentido, poderia
parecer que uma saída consistiria na adoção de políticas de aumento substancial
dos salários, como queria Proudhom com sua tentativa de organizar as lutas
sociais a partir da pauta do aumento ou mesmo da igualdade dos salários. Para
Marx, o problema central não é apenas os baixos salários, mas a redução do
trabalho à forma da mercadoria que se vende, de qualidade que se abstrai. Ou
seja, sua crítica não é apenas à espoliação econômica, mas é uma crítica do
trabalho assalariado enquanto tal, ou seja, uma crítica à ideia de trabalho em
vigor nas sociedades modernas. Isto fica claro quando Marx disser, em uma
afirmação de grande importância: “o trabalho – não apenas nas condições atuais,
mas também na medida em que, em geral, sua finalidade é a mera ampliação da
riqueza – é pernicioso, funesto”174.
Esta colocação é importante por nos lembrar que a dominação no
trabalho não está ligada apenas à impossibilidade dos produtores imediatos
disporem de sua própria produção e dos produtos por eles gerados. Não se trata
apenas de uma questão de apropriação e dominação consciente, através da
“cooperação histórico-universal dos indivíduos”; apropriação destes “poderes
que, nascidos da ação de alguns homens sobre os outros, até agora se impunham
sobre eles, e os dominavam na condição de potências absolutamente
estranhas”175. Pois, se não nos perguntarmos sobre a extensão real de tal
domínio, correremos o risco de deixar dois problemas intocados, a saber, o fato
da produção do valor (a “mera ampliação da riqueza”), como forma de riqueza e
de determinação de objetos, permanecer no centro das estruturas de dominação
abstrata176 e, principalmente, o fato da relação sujeito/objeto continuar a ser
pensada sob a forma do próprio (como expressão da consciência, seja ela falsa ou
histórico-universal) e da propriedade (seja ela individual ou comunal, injusta ou
justamente distribuída).
O problema relativo à reflexão do trabalho acaba por definir-se como um
problema de “redistribuição de propriedade”, redistribuição do que se dispõe
diante de mim como aquilo que tem, na sua identidade para comigo, sua

173
MARX, Karl; Manuscritos …, p. 31
174
MARX, Karl; Manuscritos …, p. 30
175
MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 61
176
Cf. POSTONE, idem, p. 151
verdadeira essência. Neste sentido, é difícil não aceitar que “o sujeito histórico
seria nesse caso uma versão coletiva do sujeito burguês, constituindo-se e
constituindo o mundo por meio do ‘trabalho’”177. Por isto, ao menos dentro de tal
perspectiva, não faria sentido falar do trabalho como categoria de contraposição
ao capitalismo, já que ele estaria organicamente vinculado às estruturas
disciplinares de formação da natureza utilitária das relações próprias à
individualidade liberal e seus direitos de propriedade, expressando apenas
amplos processos de reificação.

Gattungsleben

É neste contexto que devemos tentar compreender melhor o sentido de


um conceito central para o jovem Marx, a saber, a noção de “vida do gênero”
(Gattungsleben). Este é um conceito maior para compreendermos o sentido do
que Marx entende por emancipação e alienação. A própria estrutura do trabalho
como processo de produção do valor implica impossibilidade da atividade
humana se colocar como exteriorização de sua Gattungswesen, de sua essência
enquanto gênero ou de seu ser do gênero. Neste contexto, a reflexividade da
consciência-de-si dá lugar ao tema da objetivação da vida do gênero. O eixo da
definição do conceito de alienação no jovem Marx encontra-se no bloqueio das
possibilidades de exteriorização e objetivação da essência do gênero ou, ainda,
da vida do gênero. Vamos ver este ponto como mais calma. Lembremos do
seguinte trecho dos Manuscritos econômico-filosóficos:

O animal forma (formiert) apenas segundo a medida e necessidade da


espécie a qual ele pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a
medida de qualquer espécie, e sabe considerar, por toda a parte, a medida
inerente ao objeto; o homem também forma, por isso, segundo as leis da
beleza178.

Esta caracterização do homem como “ser sem espécie definida”, “ser sem medida
adequada”, de onde se segue sua possibilidade de produzir segundo a medida de
qualquer espécie, abre a possibilidade para uma indiferença genérica em relação
à determinação própria a toda espécie nas suas relações de transformação do
meio-ambiente, o que lhe leva a encontrar a medida inerente ao próprio
objeto179. Liberado da condição de ser apenas objeto para-um-outro, o objeto
pode ser expressão daquilo que, no sujeito, não se reduz à condição de ser para-
um-outro. Daí porque encontrar a medida inerente ao objeto é, ao mesmo tempo,
superar a alienação do sujeito. E o que, no sujeito, não se reduz a tal condição de
ser para-um-outro, é o que nele não se configura sob a forma de espécie alguma,
não tem imagem de espécie alguma pois é sua “vida do gênero” (Gattungsleben)
que se objetifica no objeto trabalhado. O termo vem de Feuerbach que, ao
procurar estabelecer distinções entre humanidade e animalidade, dirá que:

177
Idem, p. 99
178
MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad. modificada]
179
Não será a última vez que Marx usará a potência de indeterminação do sujeito para construir um
espaço de reconhecimento não-alienado. De certa forma, tal “ser sem espécie definida” adianta, do
ponto de vista ontológico, a “classe dos desprovidos de classe” na qual Marx encontrará o proletariado,
como veremos de maneira mais articulada na terceira parte deste livro.
De fato é o animal objeto para si mesmo como indivíduo – por isto ele tem
sentimento de si – mas não como gênero – por isto, falta-lhe a consciência,
cujo nome deriva de saber. Onde existe consciência existe também a
faculdade para a ciência. A ciência é a consciência dos gêneros. Na vida,
lidamos com indivíduos, na ciência com gêneros. Mas somente um ser
para o qual seu próprio gênero, sua quididade, torna-se objeto , pode ter
por objeto outras coisas ou seres de acordo com a natureza essencial
deles 180

No entanto, diferente do que encontramos em Aristóteles, o gênero do


qual o homem faz parte é desprovido de toda e qualquer archai. Por isto, ele não
pode constituir uma “natureza humana” como sistema de normas a definir a
orientação da praxis. Um gênero desprovido de archai, sem origem nem destino.
Mas, e há de se salientar isto com toda força, esta monstruosidade de um gênero
que se objetifica sem ser espécie alguma definida, gênero que imediatamente se
determina e que prenuncia a produção própria aos “indivíduos histórico-
universais” de A ideologia alemã, não é simplesmente a afirmação de que o
homem só age de maneira não alienada apenas quando age conscientemente
como “ser social”, ou seja, reconhecendo que sua essência, por não ser essência
natural alguma, só poderia ser sua própria auto-produção, ou seja, seu “ser
social” genérico e historicamente determinado. Se assim fosse, a afirmação da
vida do gênero não seria nada mais que uma apropriação reflexiva da
universalidade situada de minhas condições históricas, assim como da
substância comum às relações intersubjetivas que me constituíram e que se
expressa silenciosamente nos objetos que trabalho. O que nos levaria a uma
especularidade muito bem descrita involuntariamente por Feuerbach ao falar,
não por acaso, da especificidade da Gattungsleben humana:

“A bela imagem é contente de si mesma, tem necessariamente alegria de


si mesma, reflete-se necessariamente em si mesma. Vaidade é apenas
quando o homem namora sua própria forma individual, mas não quando
ele admira a forma humana. Ele deve admirá-la; não pode conceber
nenhuma forma mais bela, mais sublime que a humana. Certamente, todo
ser ama a si mesmo, a sua essência, e deve amá-la”181.

A vida do gênero é, nesta leitura, o que permitiria ao homem olhar-se no espelho


e não ver sua forma individual, mas descobrir a beleza universal da forma
humana, a substancialidade da forma. A analogia é sugestiva e dificilmente não
seria atualmente completada com a pergunta: mas o que dizer se insistíssemos
que, ao contrário, o homem é exatamente este ser que se perde ao olhar-se no
espelho, que estranha sua imagem como quem vê algo prestes a se deformar, que

180
FEUERBACH, Ludwig; A essência do cristianismo, Petrópolis: Vozes, 2007, p. 35
181
FEUERBACH, Ludwig; A essência do cristianismo, op. cit., p. 39. Neste sentido, devemos assumir
a crítica de Zizek, para quem “o sujeito tem de reconhecer em sua alienação da substância a separação
da substância de si mesmo. Essa sobreposição é o que se perdeu na lógica feuerbachiano-marxiana da
desalienação na qual o sujeito supera sua alienação reconhecendo-se como o agente ativo que pôs o que
aparece para ele como seu pressuposto substancial” (ZIZEK, Slavoj; Menos de que nada, op. cit., p.
101).
não reconhece sua própria imagem por não ter uma forma essencial que lhe seja
própria? O que dizer se aceitarmos que a experiência do espelho é confrontação
com algo do qual não nos apropriamos por completo, mas que nos atravessa
produzindo o sentimento de uma profunda impropriedade?
Esta é apenas uma maneira figurada de afirmar que a universalidade que
passa à existência não pode existir como mais uma espécie, não pode se
determinar tal como se determinam espécies particulares, como se disséssemos
algo como: “existem cavalos, bois, abelhas e ... animais”. Pois não estamos diante
de uma universalidade por partilha de atribuição. De certa forma, “animais” só
podem vir à existência através da desarticulação do campo de determinações
que permite a organização das diferenças predicáveis responsáveis pela
particularização dos existentes. Neste sentido, estamos diante de uma
universalidade por excesso em relação ao espaço de manifestação de
particularidades. Esta é outra maneira de dizer que a universalidade a ser
reconhecida não deve ser compreendida como determinação normativa capaz de
definir, por si só, o sentido daquilo que ela subsume, mas como a força de
descentramento da identidade autárquica dos particulares182. A universalidade é,
neste contexto, apenas a generalização da impossibilidade do particular ser
idêntico a si mesmo e a transformação desta impossibilidade em processo de
constituição de relações. Aceitando tal conceito de universalidade, deveremos
dizer que o trabalho que expressa a “vida do gênero” deve ser compreendido
como a fonte inesgotável dos possíveis que passa à existência, mas sem nunca
determinar-se por completo em um valor particular de uso totalmente
funcionalizado. Por isto, ela pode impulsionar os objetos trabalhados a uma
processualidade sempre aberta sob a forma de devir contínuo.
Neste sentido, a expressão laboral de uma vida que é vida do gênero,
Gattungsleben, só poderia se dar como problematização do objeto trabalhado
enquanto propriedade especular das determinações formais da consciência,
enquanto aquilo do qual a consciência se apropria por completo no interior de
um plano construtivo. A vida que se expressa como vida do gênero é o que nos
libera das amarras das formas de determinação atual da consciência, de seus
modos de apropriação, sem nos levar a uma universalidade que é apenas a figura
da individualidade universalizada. Pois há de se aceitar a noção de que “o comum
não é característica do próprio, mas do impróprio ou, mais drasticamente, do
outro; de um esvaziamento – parcial ou integral – da propriedade em seu
negativo; de uma desapropriação que investe e descentra o sujeito proprietário,
forçando-o a sair de si mesmo”183. Por isto, a vida que se expressa como vida do
gênero é o que há de impróprio em nós e o que permite ao trabalho aparecer
como expressão do estranhamento enquanto afeto de relação do sujeito a si.

Propriedade privada e comunismo

A este respeito lembremos de uma distinção importante do jovem Marx sobre


duas formas de comunismo. O primeiro é o comunismo primitivo, que Marx
chama de “comunismo rude” e se aproxima das estruturas arcaicas de

182
Desenvolvi melhor esta ideia, a propósito da leitura adorniana de Hegel, em SAFATLE, Vladimir:
“Os deslocamentos da dialética” In: ADORNO, Theodor; Três estudos sobre Hegel, São Paulo: Unesp,
2013
183
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op. cit., p. XIV
propriedade comunal. O segundo é: “a figuração necessária e o princípio
enérgico do futuro próximo”184 capaz de fornecer aquilo que Marx chama de uma
superação positiva da propriedade privada.
Sobre o primeiro, Marx o descreve como uma generalização de todas as
relações sociais sob a forma das relações de propriedade: “o domínio da
propriedade material é tão grande frente a ele que ele quer aniquilar tudo que
não é capaz de ser possuído por todos como propriedade privada”185. Na
verdade, a relação por propriedade permanece sendo a relação da comunidade
com o mundo das coisas, mesmo que no lugar da propriedade privada tenhamos
agora a propriedade comunal. Uma propriedade comunal que pressupõe um
certo retorno à simplicidade que é, para Marx, apenas expressão da negação
abstrata do mundo inteiro da cultura.
Marx chega a afirmar que a comunidade das mulheres, no qual a mulher
advém uma propriedade comunitária e comum, seria o segredo deste
comunismo rude:

Da mesma forma que a mulher sai do casamento [uma forma de


propriedade privada exclusiva] e entra na prostituição universal, também
o mundo inteiro da riqueza, isto é, da essência objetiva do homem,
caminha da relação de casamento exclusivo com o proprietário privado
em direção à relação de prostituição universal com a comunidade. Este
comunismo – que por toda a parte nega a personalidade do homem – é
precisamente apenas a expressão consequente da propriedade privada,
que por sua vez é esta negação186.

Desta forma, fica claro como, para Marx, não se trata de passar da
propriedade privada à propriedade comunal, mas de abandonar os modelos de
relação (intersubjetiva, entre sujeito e objeto) sob a forma da possessão. Assim,
aparece uma distinção importante entre apropriação (Aneigung) e possessão
(besitzen) que abre à compreensão para a verdadeira superação da propriedade
produzida pelo comunismo. No comunismo, as apropriações não são possessões
e creio que este é um ponto fundamental, a saber, compreender o que são
apropriações que não se deixam pensar como possessões, ou seja,
estabelecimento de afinidades miméticas com o que não se determina como
minha possessão.
Assim, se no comunismo é possível falar de uma “verdadeira ressurreição
da natureza, do naturalismo realizado do homem e do humanismo da natureza
levado a efeito”187 é porque, no comunismo de Marx, a natureza não é mais
compreendida como o que se submete à relações de posse, nem mesmo de posse
coletiva. No comunismo, circulam objetos que não são a confirmação do
individualismo possessivo, objetos são produzidos que não são resultantes do
interesse individual, que não são marcados pelo sentido do ter e pela submissão
do objeto à funcionalidade da utilidade. Lembremos a este respeito como
“interesse” é a realização de uma síntese entre as paixões e o cálculo, é a

184
MARX, Karl; Manuscritos…, p. 114
185
Idem, p. 103
186
MARX, Karl; Manuscrito …, p. 104
187
Idem, p, 107
submissão da esfera das paixões à forma do que pode ser calculado, do que pode
ser pensado sob o prisma utilitário.
Ao falar desta apropriação que não é possessão, que não é submissão aos
princípios utilitários, Marx afirma:

A apropriação sensível da essência e da vida humanas, do ser humano


objetivo, da obra humana para e pelo homem, não pode se apreendida
apenas no sentido da fruição imediata, unilateral, não somente no sentido
da posse, no sentido do ter. O homem se apropria da sua essência
multilateral de uma maneira multilateral, portanto como um homem
total. Cada uma de suas relações humanas com o mundo, ver, ouvir,
cheirar, degustar, sentir, pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar,
enfim todos os órgãos da sua individualidade, assim como os órgãos que
são imediatamente em sua forma como órgãos comunitários, são no seu
comportamento objetivo ou no seu comportamento para com o objeto a
apropriação do mesmo, a apropriação da realidade humana; seu
comportamento para com o objeto é o acionamento da realidade humana
(por isso ela é precisamente tão múltipla quanto múltiplos são as
determinações essenciais e atividades humanas), eficiência humana e
sofrimento humano, pois o sofrimento, humanamente, apreendido, é uma
auto-fruição do ser humano188.

Ou seja, esta apropriação não é submissão do objeto à unilateralidade da


função, da utilidade e da posse. Ele é a compreensão do objeto como parte da
realidade humana. Ele não é desvelamento de que o objeto nada mais é do que
produção humana. Ele é, na verdade, alargamento, do horizonte humano em
direção ao que antes era compreendido como não humano, como mera
determinação objetiva funcional. Vigora aqui este processo, tão claramente
presente na dialética do Senhor e do Escravo, de Hegel, de transformação da
relação entre sujeito/objeto em uma relação entre duas consciências. No
entanto, este processo só é possível se o objeto não for reduzido à condição de
sujeito, mas se o sujeito se permitir compreender-se internamente mediado pelo
objeto. Neste sentido, quando Marx afirma que o objeto deve se revelar como
“objeto social”, isto implica não apenas que o objeto demonstre as relações
sociais e históricas que o constituíram, mas que as relações sociais e históricas se
ampliem para abarcar aquilo que, até então, parecia exterior à reflexividade
própria à sociedade. Há uma dupla direção no processo que quebra a
possibilidade da apropriação da natureza histórico-social do objeto ser uma
figura materialista da subsunção idealista do objeto pelo sujeito.

188
MARX, Karl; idem, p. 108
Lógicas do reconhecimento
Aula 10

Na aula passada, introduzi a discussão a respeito da existência de uma teoria do


reconhecimento em Marx. Vimos como a problemática do reconhecimento é
fundamental para Marx na medida em que sua filosofia é uma filosofia da
emancipação e de uma análise do sofrimento social produzido pelos bloqueios na
realização das demandas de emancipação. A aula passada foi dedicada à compreensão
da relação entre trabalho e reconhecimento. Defendi com vocês a ideia de que Marx
aponta para uma superação da sociedade do trabalho como condição para a realização
de expectativas de reconhecimento e liberdade social. Isto nos levava necessariamente
a uma teoria da superação das relações de trabalho através de uma filosofia da história
vinculada à centralidade do conceito de revolução. Ou seja, a teoria do
reconhecimento que podemos derivar de Marx é uma reflexão sobre a revolução dos
processos de produção na sociedade do trabalho como condição para a realização de
expectativas de reconhecimento. Revolução que, por sua vez, só pode ser realizada
por sujeitos emergentes que Marx chamará de “proletariado”. Pois é o
reconhecimento de nossa condição de proletariado que poderá realizar a emancipação
social almejada para a institucionalização de nossas demandas de liberdade. Neste
sentido, a teoria do reconhecimento em Marx é, imediatamente, uma teoria da
revolução. Na aula de hoje, eu gostaria de discutir melhor este aspecto pouco
explorado do pensamento de Marx.

Crise e revolução

A moderna sociedade burguesa, com suas relações de produção, troca e


propriedade, sociedade que deu surgimento a gigantescos meios de produção e
troca, assemelha-se ao feiticeiro que perdeu o controle dos poderes infernais
que pôs em movimento com suas palavras mágicas. Há mais de uma década a
história da indústria e do comércio é simplesmente a história da revolta das
forças produtivas modernas contra as condições modernas de produção, contra
as relações de propriedade que condicionam a existência da burguesia e seu
domínio. Basta lembrar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente,
ameaçam cada vez mais a sociedade burguesa. Nestas crises, destrói-se grande
parte dos produtos existentes e das forças produtivas desenvolvidas. Irrompe
uma epidemia que, em épocas precedentes, pareceria um absurdo – a epidemia
da superprodução. Repentinamente, a sociedade vê-se momentaneamente de
volta a um estado de barbarismo; é como se a fome ou uma guerra universal
de devastação houvesse suprimido todos os meios de subsistência; o comércio
e a indústria parecem aniquilados. E por que? Porque há demasiada
civilização, demasiados meios de subsistência, demasiada indústria,
demasiado comércio. As forças produtivas disponíveis já não mais favorecem
as condições da propriedade burguesa; ao contrário, tornaram-se poderosas
demais para essas condições que as entravam; e quando suprimem esses
entraves, desorganizam toda a sociedade, ameaçando a existência da
propriedade burguesa. A sociedade burguesa é muito estreita para conter suas
próprias riquezas. E como a burguesia vence essas crises? De um lado, pela
destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas, do outro, pela
conquista de novos mercados e pela intensa exploração dos antigos. Portanto,
prepara crises mais extensas e mais destrutivas, diminuindo os meios de evita-
las189.

Neste extenso trecho, encontramos sintetizado vários tópicos maiores da teoria


da relação entre crise e revolução em Marx. Primeiro, a ideia de que o
desenvolvimento da burguesia é impulsionado por um ritmo constante de crises cada
vez mais extensas. Como um feiticeiro que não controla os poderes infernais que
invocou, a burguesia amplia sua capacidade produtiva de forma tal a colocar em
contradição contínua as forças produtivas e as relações sociais de produção, ou seja,
as relações de propriedade dominadas pela burguesia. Essa é outra forma de dizer que
o processo de valorização do Capital é marcado por um excesso, o fundamento do
sistema de produção de valor é expressão de uma dissolução contínua de si. Há uma
certa auto-dissolução do fundamento no próprio movimento de valorização do
Capital, ou seja, há uma auto-dissolução do fundamento no próprio movimento de sua
atualização. A atualização do fundamento de produção próprio ao capitalismo produz
demasiada civilização, demasiados meios de subsistência, demasiada indústria. Mas
quanto mais produtividade, menos vale o trabalho, mais necessário é aumentar o
tempo de trabalho, maior a intensificação dos regimes de trabalho e a pobreza
relativa. Daí porque a sociedade burguesa é muito estreita para conter suas próprias
riquezas. Só lhe resta então dois caminhos ou a produção contínua das catástrofes,
com a consequente destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas
através das guerras, das crises ou o imperialismo com seu avanço da lógica
monopolista. O capitalismo aparece assim, para Marx e Engels, como um sistema
cujas crises lhe são inerentes, levando-lhe a ser um gestor contínuo de catástrofes e
dominações imperiais. Isto até o momento em que o processo de espoliação chegar a
um nível tal que, mundialmente, aparecer a classe do proletariado em um processo de
interação contínua e de consolidação de prática revolucionária. O advento da figura
“vazia” do proletariado será o correlato da “dissolução” de um mundo190. Ou seja, o
proletariado é o termo médio que permite a unificação entre crise e revolução. Ele é o
nome da transformação subjetiva necessária para que, de uma crise, saia uma
revolução.
A teoria da revolução assim é um setor de uma teoria mais ampla das crises
imanentes ao capitalismo. Por outro lado, ela é a expressão de uma concepção de
filosofia da história para a qual a história é expressão de uma sequencia de momentos
típicos nos quais ela se universaliza, transformando-se em história mundial. De fato,
Marx e Engels partilham esta característica da filosofia hegeliana da história, para
quem a história de universalização que caminha através da realização do conceito de
liberdade. É este caminho da liberdade que estabelece a diferença entre a história
positiva e a história tal como é objeto da filosofia da história. No entanto, há uma
diferença maior entre Marx e Hegel neste ponto, Para Marx, o caminho da liberdade
não segue em direção à realização do Estado moderno como forma institucional da
vida racional mas, ao contrário, caminha em direção à desconstituição do Estado
moderno em prol de uma associação entre indivíduos histórico-universais livres que
apareceram inicialmente sob a forma de proletários.

189
MARX e ENGELS, Manifesto Comunista, p. 39
190
Ver BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, p. 364
Para tanto, faz-se necessário que o advento do proletariado impulsione um
processo de luta de classe que exigirá a organização da massa de despossuídos em
classe e sua união em partido comunista. Este processo chegaria a uma “hora
decisiva” na qual mesmo o setor dos ideólogos burgueses compreenderiam
teoricamente o momento histórico em geral. Uma hora decisiva na qual a guerra civil
implícita na sociedade se transformaria em guerra aberta e declarada com a derrubada
violenta da burguesia. Assim: “a passagem ao comunismo seria pois iminente desde
que as formas e contradições da sociedade civil burguesa fossem completamente
desenvolvidas”191.
Por outro lado, Marx e Engels rejeitam a tese, muito difundida no movimento
operário da época, de uma transformação pela educação. Neste sentido, as Teses sobre
Feuerbach são exemplares na sua pergunta: “quem afinal irá educar os educadores?”
e na sua confrontação entre a mudança pela educação e a prática revolucionária. Por
isto, esta fração comunista não “educa” a massa proletária. A princípio, ela expressa
“o movimento histórico que se desenvolve diante dos nossos olhos”, ela nomeia o que
ocorre através de um nome próprio. Tal colocação é, mais uma vez, fruto da crença de
Marx e Engels em uma expressão imanente do real que não pode se reduzir a um
discurso ideológico. Expressão imanente baseada nas noções de contradição, de
antagonismo, assim como de um diagnóstico que eleva a alienação a condição de
sofrimento social fundamental nas sociedades modernas ocidentais e a exteriorização
do ser do gênero a condição de seu horizonte de superação.

O fracasso da revolução

No entanto, com a Revolução de 1848, Marx se depara com algo que ele não
esperava no Manifesto Comunista, a saber, o fracasso da revolução que parecia tão
iminente, com a consequente adesão de uma parte do socialismo francês ao
bonapartismo, com a passividade operária diante do golpe de Estado de Luís
Bonaparte. Esta experiência histórica é tão importante que, a partir de 1852, Marx só
voltará a publicar um livro em 1859, a saber, Para a crítica da economia política. É a
partir do fracasso da revolução que Marx se volta de maneira mais sistemática à
crítica da economia política. Como se fosse questão de procurar, na estrutura da
racionalidade da vida social moderna e de seus modos de reprodução material da vida,
as causas fundamentais para o bloqueio da assunção do proletariado a condição de
sujeito revolucionário.
Marx irá então se colocar a questão: como se perde uma revolução? Qual a
operação que não leva a uma revolução, mas a uma “parodia” de transformação, a
uma “mascarada”, a um falso movimento. Esta discussão é fundamental por nos
mostrar como, no interior da teoria política de Marx, haverá a distinção entre uma
verdadeira revolução e uma transformação meramente aparente. Isto a ponto de
podermos dizer que o capitalismo será então um espaço de produção contínua de
transformações aparentes que visam evitar uma transformação real.
Inicialmente, Marx fala em diversas ocasiões que a revolução de fevereiro de
1848, que derrubou a monarquia de Luís Filipe, ocorreu “cedo demais”. Ou seja, não
havia um processo proletário amadurecido. A revolução foi impulsionada pela crise
econômica com sua “devastação do comércio e da indústria”192 que tornou a tirania da
aristocracia financeira ainda mais insuportável. Ela ainda se serviu da divisão da

191
BALIBAR, Etienne; La philosophie de Marx, p. 79
192
MARX, Karl; As lutas de classe na França, p. 42
burguesia entre a aristocracia financeira, ligada à monarquia que vigora na França
entre 1830 e 1848, e a burguesia industrial, que sofrerá diretamente com a crise e
encontra-se distante do centro de decisões do poder. Por isto, entre fevereiro e junho
de 1848, mês das revoltas populares e das barricadas em Paris, o movimento ocorreu
de forma retroativa. Tudo se passa como se as condições necessárias para a revolução
proletária fossem se desenvolver depois da queda da monarquia. Este processo
retroativo não é, no entanto, a fonte do fracasso da revolução. A respeito das causas
do fracasso, lembremos das palavras de Marx:

O proletariado se lançou em parte, a experimentos doutrinários, bancos de


câmbio e associações de trabalhadores, ou seja, a um movimento em que abriu
mão de revolucionar o velho mundo com o seu grande cabedal de recursos
próprios; ele tentou, antes, consumar a sua redenção pelas costas da sociedade,
de modo privado, no âmbito de suas condições restritas de existência, e por
isso, necessariamente fracassou193.

Ou seja, o fracasso vem do fato do proletariado não assumir sua situação de


sujeito revolucionário, não estar em condições de consumar sua tarefa histórica,
preferindo acreditar em promessas de recondução de um lugar social no interior da
ordem existente. Neste ponto, devemos compreender melhor o que Marx entende por
“proletário”, quais suas características e porque, para Marx, demandas de
emancipação só podem se realizar sob a forma do reconhecimento de si enquanto
proletariado.

Genealogia do proletariado

Façamos inicialmente um recuo no tempo. Conforme definido da Constituição


Romana, proletário é a última das seis classes censitárias, classe composta por aqueles
caracterizados por, embora sendo livres, não terem propriedade alguma ou por não
terem propriedades suficientes para serem contado como cidadão com direito a voto e
obrigações militares. Sua única possessão é a capacidade de procriar e ter filhos.
Reduzidos assim à condição biopolítica a mais elementar, à condição de reprodutor da
população, os proletários representam o que não se conta. Daí uma colocação
importante de Jacques Rancière: “Em latim, proletarii significa “pessoa prolífica” –
pessoa que faz crianças, que meramente vive e reproduz sem nome, sem ser contada
como fazendo parte da ordem simbólica da cidade” 194. Até o final do século XVIII,
proletário designa o que é “mal, vil” ou, em francês, como sinônimo de “nômade”, de
sem lugar.
É no bojo da Revolução Francesa, e principalmente depois da Revolução de
1830, que o termo será paulatinamente acrescido de conotação política, agora para
descrever os que só possuem seu salário diário pago de acordo com a necessidade
básica de auto-conservação, sejam camponeses ou operários, e que devem ser objetos
de ações políticas feitas em nome da justiça social. Neste sentido, os proletários não
são ainda o nome de um sujeito político emergente, mas o nome de um ponto de
sofrimento social intolerável, um “significante central do espetáculo passivo da

193
MARX, Karl; O 18 do brumário, p. 35
194
RANCIÈRE, Jacques; “Politics, identification and subjectivation” in: RAJCHMAN, John; The
identity in question, Nova York: Routledge, 1995, p. 67
pobreza”195. Exemplo claro neste sentido é o uso do termo feito por Saint-Simon. É
entre os saint-simonistas que a dicotomia entre proletários e burgueses será descrita
pela primeira vez, ainda que em um horizonte de reconciliação possível de interesses.
Neste sentido, mais do que cunhar o uso social do termo, o feito de Marx
encontra-se em vincular o conceito de proletariado a uma teoria da revolução ou,
antes, a uma teoria das lutas de classe que é a expressão da “história da guerra civil
mais ou menos oculta na sociedade existente”196. Daí porque Marx falará, a respeito
dos saint-simonistas e de outros socialistas “crítico-utópicos”: “Os fundadores desses
sistemas compreendem bem o antagonismo de classes, assim como a ação dos
elementos dissolventes na própria sociedade dominante. Mas não percebem no
proletariado nenhuma iniciativa histórica, nenhum movimento político que lhes seja
peculiar”197.
A sua maneira, Marx partilha com Hobbes a compreensão da vida social como
uma guerra civil imanente. No entanto, como não se trata de pensar as condições para
a formação da sociedade como associação de indivíduos, mas parar de pensar a vida
social a partir da elevação do indivíduo como célula elementar, esta guerra não será a
expressão da dinâmica concorrencial entre indivíduos desprovidos de relações
naturais entre si. Ela será uma guerra de classes no interior da qual uma das classes
aparece como o conjunto daqueles que nada mais dispõem. Por isto, uma guerra que
só pode levar não a vitória de uma classe sobre outra, mas à destruição do princípio
que constitui as classes, a saber, o trabalho e a propriedade como atributo fundamental
dos indivíduos. O que explica porque Marx deverá ser claro:

A revolução comunista se dirige contra o tipo anterior de atividade, elimina o


trabalho e suspende a dominação de todas as classes, ao acabar com as
próprias classes já que essa revolução é levada a cabo pela classe a qual a
sociedade não considera como tal, não reconhece como classe e que expressa,
de per se, a dissolução de todas as classes, nacionalidades etc. dentro da
sociedade atual198.

Teremos de entender melhor o que significa dizer que o proletariado expressa


a dissolução de todas as classes, a dissolução do que constitui classes. Inicialmente,
lembremos como tal guerra civil entre proletários e burguesia que leva à revolução é
fruto de uma contradição cujo motor é a própria burguesia. Marx não cansará de
afirmar que a burguesia é uma classe revolucionária: “A burguesia não pode existir
sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as
relações de produção e, com isso, todas as relações sociais”199. É ela que mostrará
como tudo o que é solido se desmancha no ar. No entanto, a burguesia é uma espécie
de agente involuntário da história. Ela: “assemelha-se ao feiticeiro que já não pode
controlar os poderes infernais que invocou”200, ela “produz seus próprios coveiros”201.
Ou seja, sua ação é contraditória porque, no processo de auto-realização de si, a
burguesia produz uma figura que lhe será oposta e que lhe destruirá. Assim, a

195
STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the lumpemproletariat” In:
Representations, vol 0, n. 31, p. 84
196
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; Manifesto Comunista, São Paulo: Boitempo, p. 50
197
Idem, p. 66
198
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 98
199
Idem, Manifesto Comunista, p. 43
200
Idem, p. 45
201
Idem, p. 51
burguesia é o local no qual se realiza uma impressionante operação de auto-negação
que não é apenas a auto-negação dos interesses de uma classe, mas a auto-negação da
própria “produção da vida” vigente até agora com suas relações entre sujeitos, entre
sociedade e natureza, entre o sujeito e si mesmo.
Como vimos, tal auto-negação é impulsionada pela produção do excesso. A
burguesia produz crises descritas como “epidemias de superprodução” que destroem
grande parte das forças produtivas já criadas. No entanto, tal desordem produzida pela
burguesia e sua escalada global não é apenas o anúncio da destruição. Ela é a
produção involuntária de novas relações que tem em seu germe a forma de outro
mundo:

Apenas esse desenvolvimento universal das forças de produção traz consigo


um intercâmbio universal dos homens em virtude do qual, por um lado, o
fenômeno da massa “despossuída” se produz simultaneamente em todos os
povos (concorrência universal), fazendo com que cada um deles dependa das
transformações revolucionárias dos outros e, por último, institui indivíduos
histórico-universais, empiricamente universais, em vez de indivíduos locais202.

A desordem produz um fenômeno universal de despossessão e de intercâmbio. Mas


tal despossessão universal não é apenas um fenômeno negativo, pois ele produz novas
formas de interdependência e de simultaneidade. A burguesia abre o espaço para o
advento de indivíduos histórico-universais caracterizados pela despossessão comum e
pela simultaneidade de tempos até então completamente dispersos. Ela produz as
condições para o advento de uma universalidade concreta que suspenderá e superará o
estado de coisas atual. É assim que ela produz seus próprios coveiros.

A indeterminação social do proletariado

Isto demonstra como, segundo Marx, a revolução só pode ser feita pela classe dos
despossuídos de predicado e profundamente despossuídos de identidade. Classe
formada por “indivíduos histórico-universais, empiricamente universais, em vez de
indivíduos locais” 203 . Para que apareçam indivíduos histórico-universais, faz-se
necessário uma certa experiência de negatividade que, desde Hegel, é condição para a
fundamentação da verdadeira universalidade. Tal experiência, o proletariado a sofre
através da despossessão completa de si descrita por Marx em termos como:

O proletário é desprovido de propriedade (eigentumslos); sua relação com


mulher e crianças não tem mais nada a ver com as relações da família
burguesa; o trabalho industrial moderno, a moderna subsunção ao capital,
tanto na Inglaterra quanto na França, na América quanto na Alemanha,
retiraram dele todo caráter nacional. A lei, a moral, a religião são para ele
preconceitos burgueses que encobrem vários interesses burgueses204.

Como vemos, o proletariado não é definido apenas a partir da pauperização extrema,


mas da anulação completa de vínculos a formas tradicionais de vida. Tais vínculos
não são recuperados em um processo político de reafirmação de si, não se trata de

202
Idem, A ideologia alemã, p. 58
203
MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 58
204
MARK, Karl; Manifest der Kommunistischen Partei in
http://www.marxists.org/deutsch/archiv/marx-engels/1848/manifest/1-bourprol.htm
permitir que os proletários tenham uma nação, uma família burguesa, uma moral e
uma religião. Tais normatividades são negadas em uma negação sem retorno. No
entanto, tal negação não leva o proletariado a aparecer como “essa massa indefinida,
desestruturada e jogada de um lado para outro, que os franceses denominam la
bohème”205 e que Marx define como “lumpemproletariado”206. Vale a pena discutir
melhor este ponto porque não foram poucos aqueles que tentaram, desde Bakunin,
transformar o conceito de lumpemproletariado no verdadeiro conceito com força
revolucionária207.
Tal como acontece com o conceito de proletariado, o conceito de
lumpemproletariado não descreve imediatamente um agente econômico, mas um tipo
de sujeito político, ou antes, uma espécie de anti-sujeito político. Lembremos da
estranha extensão que o termo toma no 18 do brumário:

Roués decadentes com meios de subsistência duvidosos e de origem duvidosa,


rebentos arruinados e aventurescos da burguesia eram ladeados por
vagabundos, soldados exonerados, ex-presidiários, escravos fugidos das
galeras, gatunos, trapaceiros, lazzaroni, batedores de carteira,
prestidigitadores, jogadores, maquereux, donos de bordel, carregadores,
literatos, tocadores de realejo, trapaceiros, amoladores de tesouras, funileiros,
mendigos, em suma, toda essa massa indefinida, desestruturada e jogada de
um lado para outro, que os franceses denominam la bohème208.

Difícil não ler esta série descrita por Marx com seus literatos e amoladores de tesoura
sem se lembrar da Enciclopédia fantástica de Borges. Pois o que totaliza esta série não
é a suposta analogia entre seus elementos a partir do desenraizamento social. A este
respeito, lembremos como em Luta de classe na França, Marx chega a descrever a
própria aristocracia financeira como “o renascimento do lumpemproletariado nos
cumes da sociedade burguesa”. Há um lumpemproletariado no baixo nível do estrato
social e no alto nível, sendo os do alto nível perfeitamente enraizados à escroqueria
funcional do capitalismo financeiro.
O que os une é, na verdade, uma certa concepção de improdutividade, uma
diferenciação entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, mas diferenciação
concebida do ponto de vista da produtividade dialética da história. Pois o
lumpemproletariado é uma massa desestruturada cuja negatividade não se coloca
como contradição em relação às condições do estado atual da vida. Neste sentido, ele
é a representação social da categoria de negatividade improdutiva. Por isto, trata-se de
uma massa heterogênea que pode ganhar homogeneidade desde que encontre um
termo unificador que lhe dará estabilidade no interior da situação política existente.
Tal termo, no 18 do brumário, não é outro que Napoleão III, “o chefe do
lumpemproletariado”. Aquele que dá homogeneidade a tal heterogeneidade social, a
história mesma repetida como farsa e que deve se confessar enquanto farsa para poder
se manter.

205
MARX, Karl; O 18 brumário de Luis Bonaparte, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 91
206
Ver, por exemplo, THOBURN, Nicholas; “Difference in Marx: the lumpenproletariat and the
proletarian unamable”; Economy and Society Volume 31 Number 3 August 2002: 434–460
207
Como vemos, por exemplo, em STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the
lumpemproletariat” In: Representations, vol 0, n. 31, p. 84 e LACLAU, Ernesto; La razón populista,
op. cit.
208
MARX, Karl; O 18 do brumário, op. cit., p. 91
No entanto, há de se insistir como o modelo de estabilização produzido por
Napoleão III é uma espécie de estabilização na anomia. Através de Napoleão III, a
heterogeneidade do lumpemproletariado permanece radicalmente passiva, permanece
como ação anti-política, pois acomoda-se à gestão do desenraizamento social, seus
crimes romantizados não se transformam em ação de transformação alguma. Na
verdade, essa desestruturação e indefinição anômica do lumpemproletariado é própria
de quem ainda conserva a esperança de retorno da ordem, ou que não é capaz de
conceber nada fora de uma ordem que ele mesmo sabe estar completamente
comprometida. O que faz suas ações políticas serem apenas “paródias” de
transformações, “comédias”, ou ainda, “mascaradas”: todos termos usados por Marx
no 18 de brumário para falar de revoluções que são, na verdade, tentativas de
estabilização no caos. O lumpemproletariado representa uma negatividade que não
pode ser integrada no processo dialético porque ele representa o congelamento da
negatividade em uma espécie de cinismo social.
Já o caso do proletariado é marcado pela ausência de qualquer expectativa de
retorno. O proletariado é uma heterogeneidade social que simplesmente não pode ser
integrada sem que sua condição passiva se transforme em atividade revolucionária.
Por isto, ao ser desprovido de propriedade, de nacionalidade, de laços com modos de
vida tradicionais e de confiança em normatividades sociais estabelecidas, ele pode
transformar seu desamparo em força política de transformação radical das formas de
vida. Para tanto devemos compreender que a afirmação da condição proletária não se
confunde com alguma forma de demanda de reconhecimento de formas de vida
desrespeitadas, claramente organizadas em suas particularidades. Ao contrário, a
afirmação de tal condição proletária gera a classe destes sujeitos sem predicados
descritos da seguinte forma em A ideologia alemã:

Na sociedade comunista, onde cada indivíduo não tem para si um círculo


exclusivo de atividades, mas pode desenvolver suas aptidões no ramo que
melhor lhe aprouver, a sociedade encarrega de regular a produção universal,
com o que ela torna possível, justamente através disso, que eu possa me
dedicar hoje a isto e amanhã àquilo, que possa caçar pela parte da manhã,
pescar pela parte da tarde e a noite apascentar o gado, e depois de comer,
criticar, se for o caso conforme meu desejo, sem a necessidade de por isto me
tornar caçador, pescador, pastor ou crítico algum dia209.

Notemos aqui a natureza anti-predicativa do reconhecimento proposto por


Marx. Não me defino como caçador, pescador, pastor ou crítico, embora possa caçar,
pescar ou criticar. Não estou completamente vinculado nem ao tempo originário da
caça, pesca e pastoreio, nem ao tempo de apreensão reflexiva da crítica, embora possa
habitar as temporalidades distintas em uma simultaneidade temporal de várias
camadas. Não limito minha ação nem ao trabalho manual, nem ao trabalho intelectual.
Todas essas negações demonstram como, por não passar completamente nos
predicados historicamente disponíveis, o sujeito preserva algo da dimensão negativa
da essência, quebrando assim a natureza funcionalizada do corpo social.
No entanto, poderíamos complexificar o diagnóstico de época e nos perguntar
sobre a diferença estrutural entre tal descrição da sociedade comunista e aquele
diagnóstico a respeito, por exemplo, do desenvolvimento do capitalismo nos EUA
presente nos Grundrisse:

209
MARX, Karl; A ideologia alemã, op. cit., p. 56
A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma
de sociedade em que os indivíduos passam (übergehen) com facilidade de um
trabalho a outro, e em que o tipo determinado do trabalho é para eles
contingente e por conseguinte, indiferente. Nesse caso, o trabalho deveio, não
somente enquanto categoria, mas na efetividade, meio para a criação de
riqueza em geral e, como determinação, deixou de estar ligado aos indivíduos
em sua particularidade. Um tal estado de coisas encontra-se no mais alto grau
de desenvolvimento na mais moderna forma de existência da sociedade
burguesa – os Estados Unidos210.

Em que pese a mais moderna forma de existência da sociedade burguesa não


ser exatamente uma “sociedade encarregada de regular a produção universal”, assim
como em que pese o primeiro trecho dizer respeito à crítica da divisão do trabalho
enquanto o segundo versa sobre o conceito de trabalho abstrato, a indiferença em
relação ao trabalho determinado parece a mesma tal como descrita na futura
sociedade comunista. A contingência em relação ao tipo determinado de trabalho, a
flexibilidade das atividades concebidas na indiferença da abstração parece, à primeira
vista, algo próximo dos comunistas que caçam, pescam, pastoreiam e fazem crítica
literária, mesmo que ela seja muito mais uma construção ideológica do que uma
realidade efetiva em solo norte-americano. Mas, se for o caso, então será difícil não
dizer que a sociedade comunista apenas realizaria o que as sociedades burguesas mais
avançadas prometem sem, no entanto, serem capazes de cumprir. Como se as
promessas da sociedade burguesa fossem o fundamento normativo da crítica;
fundamento que enfím poderia ser realizado no momento em que a falsa totalidade do
“corpo social de trabalho” fosse abandonada em direção à verdadeira totalidade
produzida pela regulação racional da produção universal.
Mas insistamos em um ponto: o que está em questão no processo histórico
pensado por Marx não é apenas a superação da divisão social do trabalho, nem a
defesa de uma “regulação social da produção”. Mesmo tal divisão pode mostrar-se
obsoleta para o capitalismo, ao menos em suas sociedades mais avançadas; mesmo tal
regulação pode ser feita através de fortes intervenções estatais, como no modelo da
social-democracia escandinava em seu auge. O que está em questão é, como vimos na
aula passada, a liberação do trabalho em relação à produção do valor, em relação à
produção de objetos que sejam apenas o suporte próprio de determinações do valor e
em relação à submisão do tempo ao tempo de produção do valor. Não somente o
vínculo à identidade social produzida pelo trabalho deve absorver uma certa potência
da indeterminação, mas também o objeto produzido, a ação realizada.

Apropriar-se

Insistamos na relação entre novas formas de apropriação e a configuração do


proletariado como essa classe “que expressa, de per si, a dissolução de todas as
classes dentro da sociedade atual”211. A classe do que dissolve todas as classes por
representar “a perda total da humanidade” 212 , o que não encontra mais figura na
imagem atual do homem. Neste sentido, podemos dizer que, tal como na teoria

210
MARX, Karl; Grundrisse, op. cit., p. 58
211
MARX, Karl; A ideologia alemã, op.cit., p. 98
212
MARX, Karl; Crítica da filosofia do direito de Hegel – introdução, São Paulo: Boitempo, 2005, p.
156
hegeliana do sujeito (embora Marx desqualificasse tal assimilação por ver, em Hegel,
uma elaboração meramente abstrata do problema), o proletariado só supera sua
alienação ao se confrontar com o caráter profundamente indeterminado do
fundamento e conservar algo desta indeterminação 213 . Seu papel de redenção
(Erlösung) só pode ser desempenhado à condição de assumir sua natureza de
dissolução (Auflösung). Como dirá Balibar, o advento do proletário como sujeito
político é o aparecimento de um “sujeito como vazio” 214 que não é, em absoluto,
privado de determinações práticas. Essa manifestação de um vazio em relação às
determinações identitárias atuais leva-nos a compreender que o reconhecimento de si
só é possível à condição de uma crítica profunda de toda tentativa de reinstaurar
identidades imediatas entre sujeito e seus predicados.
Se este for o caso, então poderemos dizer que a luta de classes em Marx não é
simplesmente um conflito moral motivado pela defesa das condições materiais para a
estima simétrica entre sujeitos dispostos a se fazerem reconhecer a partir da
perspectiva da integralidade de suas personalidades, como quer alguns como Axel
Honneth. A abolição da propriedade privada deve acompanhar necessariamente a
abolição de uma economia psíquica baseada na afirmação da personalidade como
categoria identitária. Insistamos neste ponto lembrando de um importante trecho do
Manifesto Comunista:

Os proletários não podem apoderar-se das forças produtivas sociais senão


abolindo o modo de apropriação a elas correspondente e, por conseguinte, o
modo de apropriação existente até hoje. Os proletários nada tem de seu a
salvaguardar; sua missão é destruir todas as garantias e seguranças da
propriedade privada até aqui existentes215.

Percebamos o caráter paradoxal deste trecho. Os proletários só podem


apoderar-se das forças produtivas abolindo todo modo de apropriação até hoje
existente (lembremos, neste ponto, da discussão sobre a ideia de uma “apropriação
sem possessão” que vimos na aula passada). O modo de apropriação dos proletários é
um modo que não existe até o momento, impensável até agora pois não é simples
passagem da propriedade privada à propriedade coletiva. Ele é apropriação de quem
não tem nada de seu a salvaguardar, de quem não tem nem terá nada que lhe seja
próprio. Tal apropriação não é apenas a destruição da propriedade, mas também a
destruição do próprio. Por esta razão, a luta de classes em Marx não pode ser
compreendida como mera expressão de formas de luta contra a injustiça econômica,
já que ela é também modelo de crítica à tentativa de transformar a individualidade em
horizonte final para todo e qualquer processo de reconhecimento social. O que não
poderia ser diferente se lembrarmos que, ao menos no interior da tradição dialética,
“pessoa” é uma categoria derivada historicamente do direito romano de propriedade
(dominus), uma categoria que, por ainda guardar os traços de sua origem, era vista já
por filósofos como Hegel como “expressão de desprezo” 216 devido à sua natureza
meramente abstrata e formal advinda da absolutização das relações de propriedade.

213
Sobre este ponto da filosofia hegeliana, tomo a liberdade de remeter ao meu SAFATLE, Vladimir;
Grande hotel abismo: para uma reconstrução da teoria do reconhecimento, São Paulo: Martins
Fontes, 2012.
214
BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, Paris: PUF,
2011, p. 260.
215
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich: Manifesto Comunista, op. cit., p. 50
216
HEGEL, GWF; Fenomenologia do Espírito – vol. II, Rio de Janeiro: Petrópolis, 1992, p. 33
Encontramos claramente em Marx esta crítica já presente em Hegel. Lembremos mais
uma vez como Marx insistirá, por exemplo, que a noção de liberdade pressuposta pela
Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1793, era calcada em larga
medida na absolutização do indivíduo proprietário. Daí uma colocação como:

“o limite dentro do qual um [cidadão] pode mover-se de modo a não


prejudicar o outro é determinado pela lei do mesmo modo que o limite entre
dois terrenos é determinado pelo poste da cerca. Trata-se da liberdade do
homem como mônada isolada recolhida dentro de si mesma (…) A aplicação
prática do direito humano à liberdade equivale ao direito humano à
propriedade privada”217.

A liberdade, para Marx, passa pela liberação do sujeito de sua condição de


indivíduo que se relaciona a outro indivíduo tal como dois terrenos separados pelo
poste da cerca. Estaremos sendo fiéis ao espírito do texto de Marx se afirmarmos que,
através da luta de classes, uma experiência social pós-identitária pode encontrar lugar.
Podemos mesmo dizer que “proletariado” é a nomeação política da força social de
desdiferenciação identitária cujo reconhecimento pode desarticular por completo
sociedades organizadas a partir da hipóstase das relações gerais de propriedade. Por
esta razão, o proletariado não pode ser imediatamente confundido com a categoria de
povo. Falta-lhe a tendência imanente à configuração identitária e limitadora que
define um povo. O proletariado funciona muito mais como uma espécie de anti-povo,
isto no sentido da potência sempre vigilante do que permanece a lembrar a
provisoriedade das identidades, estados e nações, assim como da pulsação constante
de integração do que se afirma inicialmente como exceção não-contada. Esta é uma
maneira de aceitar proposições como:

A coisa toda seria muito simples se houvesse apenas a infelicidade da luta que
opõe ricos e pobres. A solução do problema foi encontrada muito cedo. Basta
suprimir a causa da dissensão, ou seja, a desigualdade de riquezas, dando a
cada um uma parte igual de terra. O mal é mais profundo. Da mesma forma
que o povo não é realmente o povo, mas os pobres, os pobres por sua vez não
são realmente os pobres. Eles são apenas o reino da ausência de qualidade, a
efetividade da disjunção primeira que porta o nome vazio de ‘liberdade’, a
propriedade imprópria, o título do litígio. Ele são eles mesmos a união
distorcida do próprio que não é realmente próprio e do comum que não é
realmente comum218.

Neste sentido, a felicidade do conceito forjado por Marx residia em sua


capacidade de sobrepor lógica política e descrição sociológica, permitindo a criação
de uma relação profunda entre trabalhadores realmente existentes (que constituíam
uma importante maioria social) e proletários. No entanto, sustentar tal relação não é
condição necessária para que o conceito marxista de “proletariado” continue a mostrar
sua operatividade. Na situação histórica atual de reconfiguração da sociedade do
trabalho, podemos repensar tal relação a fim de encontrar espaços outros para a
manifestação de exigências próprias a uma certa ontologia do sujeito pressuposta pela
construção marxista.

217
MARX, Karl; Sobre a questão judaica, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 49.
218
RANCIÈRE, Jacques; Le mésentente: politque et philosophie, Paris: Galiée, 1995, p. 34
Lógicas do reconhecimento
Aula 11

Na aula de hoje, gostaria de apresentar o que poderíamos chamar de “a matriz


francesa” dos debates sobre reconhecimento. Isto implica começar por recuperar
aquele que será o responsável pela introdução do tema do reconhecimento no
interior do pensamento francês, a saber, Alexandre Kojève. Esta introdução será
marcada pela centralidade do desejo enquanto categoria fundamental de
reconhecimento. Kojève foi, junto com Jean Wahl e Alexandre Koyrè, um dos
responsáveis - no caso, o principal - pela segunda introdução do hegelianismo na
França, desenrolada na década de trinta. A primeira introdução se deu ainda no
século passado graças ao esforço de Victor Cousin e Augusto Vera. De qualquer
forma, o hegelianismo não se impôs no círculo universitário francês, que preferia
as vias de um neo-kantismo defensor do primado da filosofia da representação
ou, ainda, o bergsonismo. Como dizia Sartre, em Questão de método, a respeito da
situação da filosofia universitária francesa em 1925: “O horror à dialética era tal
que mesmo Hegel nos era desconhecido”219.
Foi necessário que o problema da alteridade e a crítica da noção de vida
interior tomassem corpo no campo literário-filosófico, principalmente após a
Primeira Grande Guerra e a Revolução soviética, para que Hegel viesse
novamente a tona, agora com a Fenomenologia do Espírito na proa. Alexandre
Koyré 220 e Jean Wahl foram os dois pioneiros, o segundo colocando em
circulação uma versão trágico-existencialista de Hegel, através de uma análise da
figura da consciência infeliz, em 1929221. Mas o verdadeiro catalisador da
explosão hegeliana à francesa foi Kojève.
Durante os anos 1933-1939 Kojève foi responsável por um seminário na
École Pratique des Hautes Etudes que marcou intelectualmente toda uma nova
geração de pensadores franceses. Bataille, Merleau-Ponty, Raymond Queneau,
Lacan, Raymond Aron. Maurice Blanchot e Pierre Klossowsky foram alguns dos
seus atentos alunos. André Breton também seguia, esporadicamente os
seminários e, assim como Sartre, foi por eles influenciado. Creio podemos mesmo
afirmar que: “a época de Lacan (a época de muitos outros: Bataille, Blanchot,
Sartre) foi um tempo kojéveano, quer dizer, uma época hegeliana-
heideggeriana”222. A compreensão dialética da relação tensional entre ‘eu’ e
‘outro’ que vinha na contramão da certeza solipsista do cogito, a palavra como
assassinato da coisa, o desejo enquanto pura negatividade ... todos estes foram
temas colocados em circulação por Kojève, através das suas leituras de Hegel.
A leitura kojèveana de Hegel pode ser dividida em dois grandes motivos.
Primeiro, a descrição antropológica das figuras da Fenomenologia do Espírito, em
especial das figuras do Senhor e do Escravo - cuja dialética será elevada à

219
SARTRE, Question de méthode, pag. 22.
220
Ver textos sobre Hegel em KOYRÈ, Alexandre; Estudos sobre a história do pensamento filosófico
Forense Universitária: Rio de Janeiro.
221
WAHL, Jean; Le malheur de la conscience dans la philosophie de Hegel
222
BORCH-JACOBSEN; Mikkel, Lacan: the absolute master, pag. 4.
condição de chave para a compreensão do livro. Segundo, a construção de uma
espécie de teoria hegeliana da linguagem inspirada na dialética do Conceito.
Kojève transformou a Fenomenologia do Espírito em uma antropologia
filosófica, vendo na Dialética do Senhor e do Escravo seu momento fundamental.
Segundo Kojève, encontramos, primeiro, a quietude passiva da consciência
solitária absorvida pela contemplação do objeto. Neste momento, a consciência
não se diferencia do puro Sentimento de si do animal. Absorvida nesta
contemplação de um ser exterior e objetivo chamada de connaissance223, a
consciência se esquece. Quanto mais ela é consciência da coisa menos ela é
consciência de si. É, pois, necessário que este mundo sem fissuras seja quebrado
e a consciência, chamada a si, seja impelida a deixar de falar da coisa e falar dela
mesma. Quer dizer, seja impelida a dizer: ‘Eu’, acedendo à condição de
consciência-de-si. “Compreender o homem pela compreensão de sua origem,
dirá Kojève, é compreender a origem do Eu revelado pela palavra”224.
Em Kojève, o que impele a consciência a dizer ‘Eu’ é a temporalidade
originária: vir-a-ser que engendra a negatividade do Desejo. Quando o homem
prova um desejo ele toma, necessariamente, consciência de si. “O desejo revela-
se sempre como meu desejo, e por revelar o desejo, é necessário se servir da
palavra ‘Eu’”225. Aqui, Desejo: “com efeito é apenas uma nada revelado, um vazio
irreal”226 e, como tal, é o ser do sujeito. Não se trata do Desejo de um objeto
específico mas, antes, pura Ação transformadora que nega o dado criando um ser
novo. A este respeito, Kojève gostava de dar o exemplo da fome. A fome é o
desejo de transformar, através de uma ação (o ato de comer), a coisa
contemplada, negando-a em sua realidade independente e assimilando seu ser à
mim.
A compreensão do Desejo como ser do sujeito impede que o homem seja
pensado enquanto Ser que é eternamente idêntico a si mesmo. O homem deve
ser pensado como um nada, um vazio, ação negadora que nadifica o Ser para
transformá-lo e, neste mesmo movimento, se transformar. Seu verdadeiro Ser
(Sein) é vir-a-ser (Werden) chamado Tempo e História.
O Desejo, definido como pura negatividade, como desejo de nada que
possa ser nomeado, ou, ainda, como falta-a-ser, só pode encontrar satisfação em
outro Desejo. É só em outro Desejo, em um não-ser, que a pura negatividade
pode satisfazer-se. Isto marca a diferença irredutível entre o Desejo humano e
seu congênere animal. O animal deseja o ser e se satisfaz com esta coisa
naturalmente dada. Ele não transcende a Natureza abstratamente negada. Já o
homem não deseja uma coisa mas, sim, outro Desejo. O homem é aquele que se
alimenta de Desejos. Daí advém o adágio: “O desejo do homem é o desejo do
outro (ainda com a minúscula)” e, consequentemente, a necessidade do
reconhecimento do Desejo de um pelo outro.
A versão antropológica da lógica hegeliana do reconhecimento foi levada a
cabo por Kojève nos termos que se seguem. Desejar um desejo é: “querer
substituir a si mesmo pelo valor desejado por este Desejo”227. Eu quero que o
valor desejado pelo outro seja o valor que represento. Eu quero que o outro

223
Em contraposição ao savoir que é o saber de si que, ao mesmo tempo, é saber do objeto.
224
KOJÈVE, Alexandre; Introduction à la lecture de Hegel, pag. 11
225
KOJÈVE, Alexandre; op. cit. pag.166.
226
idém, pag. 12
227
KOJÈVE, Alexandre; pag. 14
reconheça meu valor, aquilo que sou, como o que ele deseja. De onde percebemos
que este desejo de reconhecimento só pode engendrar uma luta, chamada por
Kojève, de puro prestígio. Luta através da qual a consciência arrisca sua vida
para ser reconhecida enquanto pura negatividade livre de qualquer aderência à
determinidade. Em outras palavras, o sujeito arriscará sua vida biológica a fim
de satisfazer seu desejo não-biológico.
Sabemos que esta luta deve acabar na servidão de uma das consciências e
não na sua morte. Afinal, com a morte de uma das consciências não há
reconhecimento. É preciso, então, que uma ceda, ou seja, que reconheça sem ser
reconhecida. De fato, uma cederá por temer a morte e se aferrar à vida. Assim,
efetiva-se uma dissimetria na relação entre as duas consciências. Uma reconhece,
outra é reconhecida228.
Aquela que é reconhecida sem reconhecer será chamada de Senhor: o ser
que é somente para-si. Sua relação com o outro é de pura negatividade. Para ele,
o outro não tem essência alguma. O Senhor representa o momento da reflexão-
em-si, o momento do Gozo da identidade imediata consigo mesmo. Aquela
consciência que reconhece sem ser reconhecida é o Escravo: o ser em-si, ou seja,
o lado da objetividade que encontra sua determinidade no outro. O Escravo está
retido na coisidade, na vida, no ser-para-um-outro. Logo, sua essência lhe
aparece como estando em um mais-além de si mesmo. Ele não tem
essencialidade nenhuma e, por isto, representa o momento da reflexão-no-Outro.
O fim desta dialética nós conhecemos. Por um lado, o Senhor vive em um
impasse existencial pois só é reconhecido por uma consciência desprovida de
essencialidade. Seu reconhecimento é uma ilusão e sua liberdade é fundada em
um impasse229. Mas por outro lado, ao temer a morte submetendo-se ao Senhor,
o Escravo provou a angústia do Nada. “Ele se viu como nada, ele compreendeu
que toda a sua existência era apenas uma morte ‘superada’, ‘suprimida’
(aufgehoben)”230. Só ele chegou à verdade do Ser ao compreender que o desejo
de ser pura negatividade, pura abstração de si, só se realiza na morte. Ele
desvelou a essência do ser como ser-para-a-morte. Pois: “‘o ser verdadeiro do
Homem é, em última análise, sua morte enquanto fenômeno consciente”231.
No caso de Kojève o problema é como satisfazer este Desejo que só se
realiza na morte sem apelar para o suicídio (que não seria uma forma de
satisfação). Como o infinito da absoluta liberdade que nega toda determinidade
pode reconciliar-se com o finito e, enfim, aparecer? Em termos kojèveanos: como
o homem pode tornar-se Deus e, assim, ser Sábio alcançando o Saber Absoluto? A
resposta deve ser procurada do lado do Escravo. Através das vias do Trabalho, o
Escravo alcança a verdadeira liberdade. É verdade que só o Trabalho não liberta
mas, transformando o Mundo, negando a coisa dada: “o Escravo se transforma e
cria assim as condições objetivas novas que lhe permitirão retomar a Luta

228
Descombes têm uma boa ilustração do impasse lógico originado pela introdução do problema da
alteridade na filosofia francesa contemporânea: “Nova versão da narrativa do encontro de Sexta-Feira
por Robinson Crusoé, a fenomenologia do outro não cessa de apresentar as múltiplas faces da
contradição: o outro é para mim um fenômeno, mas eu sou também um fenômeno para ele.
Manifestamente, um de nós está sobrando no papel de sujeito e deverá se contentar em ser, para si-
mesmo, o que ele é para o outro” DESCOMBES, Vincent; Le même et l’autre, pag. 33.
229
Não é por outra razão que a dialética do reconhecimento deve terminar em uma sociedade sem
Senhores e Escravos. O que significa dizer: em uma sociedade situada no fim da História.
230
KOJÈVE,Alexandre; Introduction à la lecture de Hegel, pag. 175
231
idém, pag. 566.
libertadora pelo reconhecimento que ele, em um primeiro momento, recusou por
medo da morte” 232 . Trabalhando, o Escravo dá forma objetiva à pura
negatividade que se manifestou nele através do medo da morte. Por isto, em
Hegel o trabalho é desejo refreado, desejo que forma.
Se concordarmos com Kojève a respeito da similitude estrutural entre
Trabalho e Discurso podemos chegar à conclusão final. A astúcia da Razão abre
as portas para que a consciência seja consciência-de-si capaz de unificar saber de
si e saber do mundo através de um Discurso que é a própria revelação-do-ser-
pela-palavra de forma completa e adequada. Uma revelação que é a apresentação
do homem como ser-para-a-morte233. Em Kojève a idéia de ser-para-a-morte está
profundamente ligada à noção do homem enquanto vir-a-ser. Para o ser-
natural, idêntico a si mesmo e estático, toda mudança radical é sempre imposta
de fora e significa sua aniquilação. O ser humano, ao contrário, pode transcender
a si mesmo e vir a ser um ser-Outro sem, com isto, deixar de ser o que é, ou seja,
ser humano. Por isto, Kojève pode afirmar que, enquanto para o animal, a causa
de sua morte é externa, para o homem ela lhe é interna. Ele mesmo é a causa de
sua morte por ser vir-a-ser e aniquilação de sua natureza dada. Conclusão: o
homem é a doença mortal do animal.
No momento em que o homem se conscientiza de sua finitude absoluta,
abandonando a ideia de um mais-além e tomando a palavra de um Discurso que
é morte encarnada, que é “vida que suporta a morte e nela se conserva”, ele pode
satisfazer-se. Ele pode enfim alcançar a condição de Sábio portador do Saber
Absoluto, Sábio consciente de si por ser capaz de “encarar o negativo e demorar-
se junto dele”234. A luta entre Senhor e Escravo cessa e a História, então,
encontra seu fim: “Assim, Saber Absoluto ou Sabedoria e aceitação consciente da
morte, compreendida como nadificação completa e definitiva, são a mesma
coisa”235.
O fim da História e das lutas de dominação e servidão marcaria o advento
do Estado Universal homogêneo do qual o Sábio seria cidadão. Como o Discurso
pode enunciar a última palavra e revelar o Ser não há mais necessidade da ação
negadora do homem. O Sábio pode, então, dedicar-se ao cultivo do snobismo
através da arte, do jogo, do amor etc. Aqui, para além dos enganos da satisfação
animal do desejo ilustrada na destruição infinita ruim do consumo, a verdadeira
negatividade encontra satisfação nas representações formalizadas e
teatralizadas do sujeito. Ela deleita-se na artificialidade leve das ações gratuitas e
sem finalidade. Se a História não fala mais, então o Sábio fabrica, ele mesmo, a
negatividade gratuita.
Anos depois de ministrar seus seminários, já como membro do alto
escalão do corpo diplomático francês, Kojève encontrará a melhor configuração
desta subjetividade pós-histórica no modo de vida japonês. A estilização
presente na vida cotidiana japonesa através das figuras da cerimônia do chá, do
ikebana, dos bonsaïs, das gueixas era, aos olhos de Kojève, a própria
democratização do snobismo. “O Japão é um país com oitenta milhões de snobs”.
Daí, a conclusão inevitável: “se o humano se funda sobre a negatividade, o fim do

232
idém; pag. 32
233
Cf. KOJÈVE, Alexandre. Idém, pag. 553.
234
HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito, pag. 38.
235
idém, pg. 540.
discurso da história oferece duas vias, japonisar o Ocidente ou americanisar o
Japão, quer dizer, fazer amor de uma forma natural ou à maneira de macacos”236.

Como assassinar coisas com palavras

A leitura kojèveana da lógica do conceito é uma das partes mais


engenhosas da sua interpretação de Hegel. Kojève, ao se perguntar sobre em que
consistiria o Saber Absoluto, havia concluído: o Saber Absoluto coincide com a
revelação positiva e completa do Ser e do Real pelo Discurso. Uma revelação que
é a apresentação do homem como ser-para-a-morte. Dirá Kojève: “É em se
resignando à morte, em revelando-a por seu discurso, que o Homem advém,
finalmente, ao Saber Absoluto, ou à Sabedoria, fechando, assim, a História”237.
Mas tal Discurso capaz de revelar o Ser é engendrado através da negação do
mundo naturalmente dado; pois: “quando se cria o conceito de uma entidade
real, nós a arrancamos de seu hic e nunc [aqui e agora]. O conceito de uma coisa
é essa coisa mesma arrancada de seu aqui e agora dados” 238. É ao negar este
dado particular que se acede à universalidade do conceito, única dimensão
portadora de sentido. Pois o universal é a negação do particular enquanto
particular. Como nos lembra Kojève: “Se quisermos transformar uma entidade
concreta ( = particular) em conceito ( = universal) , em ‘noção geral’, é necessário
arrancá-la do hic e nunc de sua existência empírica (este cão está aqui e agora,
mas o conceito ‘este cão’ está ‘em todo o lugar’ e ‘sempre’) 239. Por isto: “a
compreensão conceitual da realidade empírica equivale a um assassinato”240.
O conceito constrói uma identidade na diferença na medida em que nega
a imediaticidade da coisa mostrando como ela é, desde sempre, pura mediação.
Daí a conclusão: “o conceito é em si mesmo esta morte que é vida, já que ele é
essencialmente vir-a-ser-outro, quer dizer, assassinar-se a si-mesmo em sua
imediaticidade, de forma que ele acede por aí à sua expressão verdadeira, à sua
universalidade” 241.
Mas o conceito só é morte que é vida porque o homem nada mais é do que
negatividade destruidora encarnada. É ele que arranca a coisa de seu aqui e
agora, negando sua faticidade, e criando o conceito. Desta forma, a palavra
lembra ao homem que ele é pura negatividade. A palavra plena, reveladora do
Ser, é aquela que confessa, ao mesmo tempo, ser a assassina da coisa e o álibi da
nadificação do homem. A conclusão de Kojève não podia ser diferente: “O
homem de Hegel é o Nada (Nicht) que nadifica o Ser-dado existente como
Mundo, e que nadifica a si mesmo (enquanto tempo histórico ou História)
através da nadificação do dado”242.

236
KOJÈVE, Alexandre; Entrevista para Quinzaine littéraire 01/07/68 in LABARRIÈRE, Pierre-Jean
et JARCZYK,Gwendoline; De Kojève à Hegel, pag. 100.
237
KOJÈVE, Alexandre; Introduction à la lecture de Hegel, pag. 540)
238
KOJÈVE, Alexandre; ILH, pag. 452
239
idém, pag. 564
240
idém, pag. 373.
241
LABARRIÈRE, Pierre-Jean et JARCZYK, Gwedoline: Hegeliana, pag. 55. Esta citação é
interessante por vir de autores de uma tradição totalmente anti-kojèveana e, mesmo assim, convergir
com as proposições deste.
242
KOJÈVE, Alexandre; ILH, pag. 574.
Neste ponto, faz-se necessário levantar uma distinção importante. Não se
trata de afirmar que a nomeação anula uma pretensa riqueza concreta do
particular em prol da sua transformação em um universal abstrato. Se assim
fosse, tudo se passaria como se existisse uma espécie de domínio do inefável
depositado em um para-além da nossa linguagem cotidiana. Nesta perspectiva de
interpretação, a universalidade abstrata da palavra seria sempre ultrapassada
pela riqueza das determinações particulares da Coisa mesma. O advento da
linguagem inauguraria a perda intransponível da imanência. Daí a conclusão: no
domínio da linguagem cotidiana, é o ser que se esvairia, recusando qualquer
tentativa de nomeação. É o ser que pediria silêncio. É a Verdade que recusar-se-
ia a subjugar-se à palavra; da mesma forma como o desejo é aquilo que se recusa
a ser nomeado. Estaríamos condenados a viver em um mundo sustentado por
palavras vazias. Palavras que não revelam a luminosidade do ser. Estaríamos
condenados ao silêncio.
Como vimos, esta não é exatamente a conclusão de Kojève. A palavra que
revela o Ser chega no momento em que o homem se conscientiza de sua finitude
absoluta, abandonando a ideia de um mais-além, de um inefável, e toma a letra de
um Discurso que é morte encarnada, que é “vida que suporta a morte e nela se
conserva”. É neste momento que a infinitude pode ser revelada. Em Hegel, a
infinitude verdadeira é caracterizada por ser a negação absoluta de toda
determinidade finita. Kojève deu, à esta infinitude, a figura de um Desejo que é
pura negatividade capaz de negar toda determinidade.
Todo o problema consiste em como Gozar a satisfação de um Desejo que
só se realiza na morte. Como perpetuar a pura abstração de si sem aniquilar-se
definitivamente? No fundo, trata-se de uma espécie de versão antropogênica para
o clássico problema do modo de aparecimento da infinitude, sendo que aparecer
só pode significar ‘ser representada em uma determinação finita’243. A solução
kojèveana para o problema da apresentação do infinito será encontrada no
momento em que o sujeito abrir mão desse Gozo, que é em si impossível já que
só se realiza na aniquilação absoluta da morte, para alcançá-lo na forma
invertida de uma espécie de morte simbolizada e sempre presentificada.
Lembremo-nos da afirmação de Alexandre, o ser verdadeiro do homem só pode
ser sua morte enquanto fenômeno consciente.

243
Vale a pena notar que se trata de um problema estruturalmente muito semelhante àquele que anima
a luta de vida ou morte na Dialética do Senhor e do Escravo tal como Hegel a descreve. Tanto é assim
que o encontramos a afirmar que: “Porém a apresentação de si como pura abstração da consciência-de-
si consiste em mostrar-se como pura negação de sua maneira de ser objetiva, ou em mostrar que não
está vinculado a nenhum ser-aí determinado, nem à singularidade universal do ser-aí em geral, nem à
vida”(Cf. HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do espírito, pag. 128). O problema aqui consiste em saber
como a pura negatividade pode encarnar-se na determinidade, ou seja, como a consciência pode ter a
experiência do estar-aí do puro Eu. Problema similar àquele apresentado por Lacan através da noção de
palavra plena..
Lógicas do reconhecimento
Aula 12

Na aula de hoje, gostaria de introduzir a teoria do reconhecimento de Jacques


Lacan. Esta teoria, desenvolvida no interior de uma reflexão clínica a respeito
das modalidades de tratamento do sofrimento psíquico, baseia-se na
compreensão das formas clínicas da neurose, da psicose e da perversão como
deficits de reconhecimento do desejo. Por isto, a racionalidade da praxis clínica
será reconstruída a partir de uma dialética do reconhecimento. Tentemos,
inicialmente, compreender como se configura tal dialética.

Psicanálise como dialética

“A psicanálise é uma experiência dialética” 244 . Enunciada em 1953, esta


proposição resumia o programa de racionalidade analítica que sustentava a
experiência lacaniana. Sabemos que, nesta mesma época, Lacan procurava
fundar a racionalidade da praxis analítica através do paradigma da
intersubjetividade. Tal decisão era o motor do projeto lacaniano de retorno a
Freud. Assim, em 1953, a ocasião do início de tal retorno, Lacan enuncia as
condições necessárias para a fundamentação da objetividade analítica. Ele dirá:

A psicanálise só fornecerá os fundamentos científicos à sua teoria e à sua


técnica ao formalizar de maneira adequada essas dimensões essenciais de
sua experiência que são, com a teoria histórica do símbolo, a lógica
intersubjetiva e a temporalidade do sujeito.245

Estamos diante do resultado de uma longa trajetória de refundação da


metapsicologia e da praxis analítica. Resultado que indicava um duplo programa
latente: o desenvolvimento das conseqüências da articulação estrutural do
universo simbólico e a formalização da reflexividade intersubjetiva. Eis o ponto
de chegada de um amplo projeto de determinação dos pressupostos gerais da
objetividade própria aos fenômenos subjetivos no qual Lacan se engajara durante
vinte anos. Projeto já presenta na sua tese de doutorado, de 1932, sob a forma da
enunciação de uma ciência da personalidade de matriz inicialmente politzeriana
cujas aspirações serão transferidas para a reformulação lacaniana da psicanálise.
A utilização clínica do campo intersubjetivo podia aparecer como espaço
privilegiado de determinação do regime de objetividade próprio à subjetividade
porque ela impediria a psicanálise de adotar uma perspectiva materialista
reducionista e de coisificar os fenômenos subjetivos. Como Lacan dirá várias
vezes, a psicanálise marca o retorno do sujeito no interior do discurso da ciência.
Mas: “Só há sujeito para um outro sujeito” 246 e tratava-se de pensar a
racionalidade analítica a partir de tal reflexividade. Assim, ao mesmo tempo em
que via na psicanálise uma experiência dialética, Lacan podia afirmar que ele era
também : “a experiência intersubjetiva onde o desejo se faz reconhecer”247.

244
LACAN, E., p. 216
245
LACAN, E, p. 289
246
LACAN, S VI, sessão do 13/05/59
247
LACAN, E. p. 279
A realização intersubjetiva do desejo, ou seja, a reflexividade própria ao
reconhecimento do desejo do sujeito pelo Outro apresentava-se como a essência
da cura analítica. Tratava-se da possibilidade de assunção do desejo do sujeito na
primeira pessoa do singular no interior de um campo lingüístico
intersubjetivamente partilhado. De onde se seguia a afirmação: “O sujeito
começa a análise falando de si sem falar a você, ou falando a você sem falar de si.
Quando ele for capaz de falar de si a você, a análise estará terminada”248.
Percebemos aqui que, para Lacan nos anos cinquenta, dialética, diálogo,
intersubjetividade e reconhecimento eram termos convergentes. Na verdade, a
dialética nomearia a estrutura lógica do diálogo intersubjetivo que opera na
análise. Um diálogo particular já que seria capaz de produzir o reconhecimento
do desejo. A lógica dialética ficava assim reduzida a formalização de relações
intersubjetivas próprias a uma modalidade muito específica de diálogo chamada
às vezes por Lacan de : “maiêutica analítica”249.
Esta maneira de articular dialética e intersubjetividade levou Lacan a
aproximar dialética hegeliana e dialética platônica a fim de falar da “dialética da
consciência de si, tal como ela se realiza de Sócrates até Hegel”, isto contra a
opinião do próprio Hegel250. É claro que tal operação levanta várias questões,
sendo que a maior delas é: estaríamos diante de um retorno da dialética a sua
matriz dialógica ? De fato, Lacan não parece temer tal retorno já que afirma :

A psicanálise é uma dialética, aquilo que Montaigne, em seu livro III,


capítulo VIII, chama de ‘arte de conferir’. A arte de conferir de Sócrates no
Menão consiste em ensinar o escravo a dar o verdadeiro sentido à sua
própria palavra. Esta arte é a mesma em Hegel251.

Neste sentido, Lacan não fazia outra coisa que seguir a perspectiva de
leitura do hegelianismo francês de sua época. Pois era Hyppolite que perguntava
: “O que significa, originariamente, o termo ‘dialética’ a não ser a arte da
discussão e do diálogo?”252.
Lembremos que o hegelianismo francês da primeira metade do século XX
– meio do qual Lacan saiu – procurou colocar em evidência a estrutura
linguística intersubjetiva que estaria na base da formação do caráter relacional
da consciência-de-si. Até um certo ponto para Kojève, mas principalmente para
Hyppolite, a dialética da identidade e da diferença se desenvolverá no campo
lingüístico do reconhecimento intersubjetivo : “A única possibilidade de resolver
a determinação opaca na transparência do universal, de desatar o nó”, dirá
Hyppolite, “é de comunicar através da linguagem, de aceitar o diálogo” 253; até
porque : “A linguagem diz as coisas, mas ela diz também o eu que fala e

248
LACAN; E, p. 373
249 LACAN, E, p. 109.
250
LACAN, E., p. 292. Lacan faz tal aproximação sem levar em conta a afirmação de Hegel sobre a
maiêutica socrática: "A dialética que visa dissolver (aufzulösen) o particular para produzir o universal
não é ainda a verdadeira dialética" (HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, 19/64).
251
LACAN, S I, p. 317.
252
HYPPOLITE, Logique et existence, Paris: PUF, p. 12
253
HYPPOLITE, idem, p. 23
estabelece a comunicação entre os diversos eu, ela é o instrumento universal de
reconhecimento mútuo”254.
Esta compreensão da dialética como diálogo capaz de dissolver a
opacidade do particular através do reconhecimento intersubjetivo era a chave
que Hyppolite usava para aproximar psicanálise e fenomenologia hegeliana.
Assim, ele falará de uma função de inconsciência da consciência que aproximaria
o inconsciente freudiano e a estrutura de desconhecimentos, fundamento do
movimento próprio a Verneinung. Com tal estratégia, ele podia afirmar que :
“desconhecer não é não conhecer. Desconhecer é conhecer para poder
reconhecer e para poder dizer um dia : eu sempre soube”255. A opacidade do
inconsciente seria anulada através de uma palavra que reconhece um saber
recalcado e esquecido. A dialética aqui é convergente por não reconhecer
nenhum limite a operações de conceitualização e de simbolização próprias ao
saber da consciência. Aqui, como será posteriormente o caso em Habermas e em
Ricoeur, a interpretação analítica aparece como uma auto-reflexão que opera
através de processos de rememoração256.

Dora e suas inversões

Um exemplo privilegiado da maneira com que Lacan pensa os usos clínicos da dialética do reconhecimento é dado neste
momento pela sua leitura do caso Dora, de Freud.
O motor da interpretação é dado por inversões da palavra do paciente. O analista procura mostrar o que o
paciente desconhece, ou seja, o que ele pressupõe sem poder pôr. Neste sentido, a interlocução analítica pode permitir ao
sujeito receber sua própria mensagem de uma maneira invertida. O que não é outra coisa que a utilização clínica da
fórmula : "na linguagem, nossa mensagem nos vem do Outro sob uma forma invertida"257.
Esse processo aparece no caso Dora sob a forma de uma sucessão de três inversões dialéticas mas cuja última
não teria sido elaborada por Freud devido à ausência de uma interpretação capaz de levar Dora a reconhecer o valor do
que lhe aparecia como objeto de seu desejo. Vejamos de perto em que consistiam tais inversões e até onde elas podem
nos levar.
Dora era uma histérica levada a Freud devido a uma intenção de suicídio seguida de um desmaio. Ela
apresentava também sintomas de depressão e alguns sintomas de "conversão" motivados pelo desgosto do gozo sexual.
Um desgosto resultante do que Freud chamava de inversão do afeto (Affektverkehrung).
Sua análise se coloca inicialmente sob o signo da reivindicação dirigida ao pai. Ela reclama que o amor de seu
pai lhe fora roubado pela ligação deste com uma amante, a Sra. K. Como em uma espécie de troca, ele a ofereceu às
assiduidades do marido da amante, o Sr. K. A primeira inversão consistirá em mostrar como o sujeito desconhece (no
sentido de denegar) que esta configuração do estado do mundo dos objetos de seu desejo é suportada e pressuposta por
seu próprio desejo. O sujeito coloca como limite uma diferença exterior que, na verdade, é : "a manifestação mesma de
seu ser atual"258. Dora deve pois se reconhecer naquilo que ela nega como absolutamente estrangeiro e fora de seu desejo.
Neste sentido, o primeiro papel da interpretação analítica consistiria em permitir ao sujeito internalizar de maneira
reflexiva uma diferença interna que lhe apareceu inicialmente como um limite externo. E aqui Lacan pensa sobretudo em
afirmações freudianas como : "Ela tinha razão : seu pai não queria levar em conta o comportamento do Sr. K em relação à
sua filha, isto a fim de não ser incomodado na sua relação com a Sra. K. Mas ela havia feito exatamente a mesma coisa. Ela
havia sido cúmplice desta relação e tinha descartado todos os índices que testemunhavam sua verdadeira natureza" 259.
Tal relação de cumplicidade a respeito de um estado de coisas cujo motor primeiro é o desejo do pai revela
como o desejo de Dora estaria vinculado, de maneira constitutiva, ao desejo do Outro paterno. É em torno deste desejo
que gira todo o drama. A primeira inversão leva pois ao desvelamento de uma relação edípica constituída pela
identificação paterna.

254 ibidem, p.11.


255
HYPPOLITE, Figures de la pensée philosophique, Paris: PUF, 1971, p.215
256
Ver a este respeito o clássico artigo Auto-reflexão ou interpretação sem sujeito: Habermas
intérprete de Freud in PRADO JR., Alguns ensaios, São Paulo: Paz e Terra, 2000, assim como meu
comentário em SAFATLE, Auto-reflexão e repetição : Bento Prado Jr. e a crítica ao recurso
frankfurtiano à psicanálise in Agora: Estudos em teoria psicanalítica, 2004
257
LACAN, E., p. 7
258
LACAN, E, p. 172
259
FREUD, GW vol. V, p. 210
Tal desvelamento permitirá a dissolução de uma parte significativa dos sintomas ditos de conversão. Sintomas
ligados à oralidade (acesso de tosse, dipnéia, asma nervosa, afonia) que revelam a inscrição, no corpo sexuado, de um
modo de identificação e de demanda em relação ao pai. Lacan lembrará da importância do papel do pai na história da
formação do corpo erógeno de sua filha. Importância legível na maneira com que a erogenidade do corpo de Dora é
deslocada em direção à oralidade - o que não deixa de indicar a representação oral da relação sexual (felação) prevalente
devido à impotência do pai, assim como os prazeres de chupeteadora na sua primeira infância que estabelecem o gozo em
uma área de cumplicidade com o pai.
A segunda inversão é uma espécie de desdobramento deste reconhecimento da identificação ao pai em direção
à identificação às escolhas de objeto do pai. Freud se pergunta de onde vem o caráter prevalente (überwertiger) da
repetição dos pensamentos de Dora a respeito da relação entre seu pai e a Sra. K. Sua análise demonstra que o ciúme em
relação à Sra. K é um pensamento reativo (Reaktionsgedanke) que esconde um pensamento inconsciente oposto
(Gegensatz). A análise deve pois permitir novamente uma inversão no oposto: “Tornar consciente o recalcado oposto é o
caminho para retirar, de um pensamento prevalente, sua amplificação” 260. Trata-se de um trabalho que permite à análise
mostrar como o ciúme era apenas um modo de manifestação da identificação ao lugar do sujeito-rival. Lugar ocupado por
estas duas mulheres amadas pelo seu pai, uma antes e outra agora; ou seja, a mãe e, principalmente, Sra. K. O ódio pode
pois se inverter no seu oposto: o amor. Um movimento pulsional que Freud chamará mais tarde de inversão no oposto
(Verkehrung ins Gegenteil). Inversão que Lacan sublinha ao falar desta inclinação homossexual fundada sobre a: "ligação
fascinada de Dora pela Sra. K"261. Pois: "toda a situação se instaura como se Dora tivesse posto para si a questão - O que
meu pai ama na Sra. K?"262.
Mas, antes de continuar a análise lacaniana, coloquemos uma questão de método. Até aqui, nada nos impede de
pensar a interpretação analítica como auto-reflexão da consciência que permite ao sujeito inverter seus
desconhecimentos em rememoração capaz de historicizar os nós traumáticos. Até aqui, as intervenções do analista
procuraram abrir ao sujeito as vias para que ele possa pôr aquilo que desconhece. Não estamos muito distantes de uma
teoria do fim de análise como historicização dos conteúdos recalcados e dos núcleos traumáticos que se desdobra a partir do
horizonte convergente dos processos de simbolização. O que nos explicaria afirmações como: "A reconstituição completa
da história do sujeito é o elemento essencial, constitutivo, estrutural, do progresso analítico"263.

O que vimos até agora com Dora foi a assunção pelo sujeito de sua história
através de procedimentos de construção e de interpretação analítica de forte
tendência hermenêutica. O inconsciente aparece como algo que, graças ao
progresso da simbolização na análise, teria sido: enfim, algo que será realizado
no simbólico. O que permitirá a integração exaustiva das determinações
opacas que davam corpo aos conteúdos recalcados.
No entanto, notemos como a interpretação de Lacan terminará. Tomemos, por
exemplo, o segundo sonho trazido por Dora e no qual o dado principal é a
morte do pai. Uma morte anunciada através de uma carta da mãe na qual se
lê: "Agora ele está morto e, se você quiser (?), pode vir". Freud associa tal carta
à carta deixada por Dora na qual ela ameaçava suicidar-se a fim de
amedrontar o pai levando-o a deixar a Sra. K. Isto permite a Freud
compreender a morte do pai como manifestação de um desejo de vingança de
Dora devido a um amor edípico traído. Por outro lado, com a morte do pai, as
interdições sobre o saber da sexualidade seriam levantadas, o que o sonho
figura através da leitura que Dora faz de um dicionário. Para Freud, isto
significa reconhecer o desejo inconsciente de substituir o amor ao pai pelo
investimento libidinal no Sr. K. Mas Freud não desenvolve o fato de que Dora
associa o "se você quiser" aos termos de uma carta da Sra. K que a convidava à
casa do lago. Tal associação poderia revelar o valor da identificação
homossexual de Dora à Sra. K permitindo, com isto, a consolidação de uma
outra via de interpretação.
É neste sentido que Lacan criticará o final de análise proposto por Freud. Nós
vimos como Freud e Lacan reconheciam a importância da identificação de
Dora à Sra. K. Freud chega a falar de um "amor inconsciente no sentido mais
260
FREUD, GW vol. V, p. 214 « Das Bewutmachen des vardrängten Gegensatzes ist dann der Weg,
um dem überstarken Gedanken seine Verstärkung ze entziehen »
261
LACAN, E., p. 220
262
LACAN, S IV, p. 141
263
LACAN, S I, p. 18 (citação modificada)
profundo" e a reconhecer o amor de Dora à Sra. K como elemento central da
história do desejo da paciente. Mas este dado continuará marginal no conjunto
da economia da interpretação freudiana. Ao contrário, Freud prefere ver aí
uma identificação ao lugar do sujeito-rival enquanto lugar da escolha paterna
de objeto. O que lhe permite compreender o comportamento de Dora como o
comportamento de uma mulher ciumenta em relação ao amor do pai. A
questão central para Freud será pois: "por que o amor edípico foi reavivado
neste momento da história do desejo do sujeito?". Sua resposta é
programática: trata-se de um sintoma que visa exprimir aquilo que está
presente no inconsciente: o amor pelo Sr. K. Resultado incontornável se
seguirmos os postulados de uma hermenêutica edípica.
Lacan, por sua vez, prefere levar o final de análise em direção ao
desvelamento daquilo que ele chama de "valor real" do objeto que a Sra. K
representa para Dora: "ou seja, não um indivíduo, mas um mistério, o mistério
de sua própria feminilidade; nós queremos dizer, de sua feminilidade
corporal"264.A fascinação de Dora pela Sra. K encontraria sua raiz na questão
maior para uma histérica: "O que é uma mulher?". Questão que toca a
estrutura de sua posição subjetiva através da sexuação de seu corpo. Mas não
se trata aqui de ver na imagem da Sra. K uma resposta capaz de saturar a
questão sobre o mistério do feminino. Se este fosse o caso, a análise
terminaria na assunção da identificação narcísica com uma imagem na
posição de eu ideal.
Na verdade, a terceira inversão traz uma inversão interna no valor da
imagem do feminino representada pela Sra. K. Ao invés da simples imagem da
fascinação narcísica, ela deve ser desvelada como imagem de um mistério, no
sentido de algo fundamentalmente desprovido de determinação objetiva e de
representação consciente adequada.
Neste sentido, Lacan tenta desdobrar as conseqüências clínicas do fato de
que: "não há simbolização do sexo da mulher enquanto tal"265. Tal ausência de
determinação significante do sexo feminino permite a Lacan afirmar que: "o sexo
feminino tem um caráter de ausência, de vazio, de buraco que faz com que ele
seja menos desejável que o sexo masculino no que ele tem de provocante"266.
Afirmação aparentemente "falocêntrica", mas apenas aparente.
De qualquer forma, para Dora, da imagem da Sra. K poderia advir
exatamente esta imagem "de ausência, de vazio, de buraco" que aparece como
abertura em direção ao reconhecimento da inadequação fundamental do sujeito
às representações imaginárias do sexual. Neste sentido, podemos dizer que a
identificação de Dora à Sra. K poderia ser equivalente a uma dissolução do eu
enquanto totalidade de um corpo sem falhas, já que seria reconhecimento de si
naquilo que é desprovido de determinação objetiva.
Notemos que a terceira inversão é estruturalmente distinta das outras
duas. Enquanto que as duas primeiras eram passagens no oposto, este é o
desvelamento de uma contradição interna à própria determinação da imagem da
Sra. K. Uma contradição entre sua posição de imagem fantasmática que sustenta
o pensamento identificador do eu de Dora e seu valor de negação de toda

264
LACAN, E., p. 220
265
LACAN, S III, p. 198.
266
LACAN, S III, p. 199.
determinidade. Ela indica a tentativa de inscrição do valor do sexual como
negação irredutível.
Tal maneira de compreender o valor da imagem da Sra. K inscreve-se em
um movimento geral que concerne a reformulação lacaniana do pensamento do
sexual. Se a psicanálise vê a realidade sexual como lugar de verdade, como locus
originário do sentido da linguagem dos sintomas, então a melhor estratégia para
impedir que dela advenha uma hermenêutica sexual é transformar o sentido do
sexual em pura opacidade. O sexual será assim presença do negativo e do não-
idêntico no sujeito. O advento do sexual será sempre ligado ao trauma vindo da:
"inadequação radical do pensamento à realidade do sexo"267. Inadequação que
indica como: "o sexual se mostra por negatividades de estrutura" 268. Tal sexual
traumático está vinculado ao real da pulsão que foi forcluído, de onde vem sua
resistência aos procedimentos simbólicos de nomeação.
Vemos assim se desenhar um polo de tensão que deixa a metapsicologia
lacaniana necessariamente instável e móvel. Trata-se de uma tensão entre
imperativos de reconhecimento mútuo e a irreflexividade de um conceito de
sujeito pensado a partir da negatividade do desejo em seu vínculo ao sexual.
Como reconhecer um desejo que é presença do sexual como pura opacidade
vinda de uma negatividade sem inversões? Como produzir o reconhecimento do
real do sexo, que é definido exatamente como aquilo que permanece fora dos
processos de simbolização? Em suma, nesta tensão entre o sexual e os
imperativos de reconhecimento aloja-se uma tensão entre subjetividade e
intersubjetividade que será marca constitutiva do pensamento lacaniano. O motor
do progresso da praxis lacaniana estará pois na tentativa de encontrar o ponto
que impede tal tensão de anular um dos polos, o que, em um caso, poderia
produzir a redução do sujeito à dimensão de um gozo mudo próximo da psicose
(irreflexividade do sujeito sem imperativos de reconhecimento) e, no outro, a
alienação absoluta do particular no genérico da estrutura (imperativos de
passagem ao Simbólico sem irreflexividade do sujeito). Um motor como o
verdadeiro solo dialético da psicanálise lacaniana só pode ser encontrado em
suas considerações sobre a pulsão e o gozo. Assim, o conceito lacaniano de
intersubjetividade era desde sempre marcado por esta tensão entre a negatividade
do que se aloja na subjetividade e a dialética do reconhecimento.

Reconhecer um desejo puro

Falamos até aqui da noção de cura analítica como reconhecimento do desejo


por si mesmo e pelo Outro. Cura como índice da nomeação de um desejo que,
até então, só podia aparecer sob a forma de sintomas. Mas, no interior desta
coreografia, esquecemos constantemente do teor da reposta lacaniana a
questões como: 'qual desejo espera insistentemente por reconhecimento?', 'O
que significa exatamente dar nome ao desejo?'. Tais questões podem começar
a ser respondidas se levarmos em conta afirmações como:

267
LACAN, S XIV, sessão do 18/01/67
268
LACAN, AE, p. 380
“Os antigos colocavam o acento sobre a tendência, enquanto que nós, nós o
colocamos sobre o objeto (...) nós reduzimos o valor da manifestação da
tendência, e nós exigimos o suporte do objeto pelos traços prevalentes do
objeto”269.

Tal proposição lacaniana, feita com uma ponta de nostalgia a respeito da vida
amorosa dos antigos, é, na verdade, a exposição de todo um programa analítico de
cura. Enunciada em 1960, ela trazia atrás de si uma longa reflexão a respeito do
destino do desejo no final de análise. Colocar o acento sobre a tendência desprovida
de objeto aparece aqui como uma solução possível para romper um certo ciclo
alienante do desejo preso às amarras do Imaginário; ruptura fundamental como
indicação da proximidade do final de análise.
A este respeito, vale a pena relembrar alguns princípios básicos que serviram
de guia para as primeiras reflexões lacanianas. Até o final dos anos cinqüenta, há um
conceito central na metapsicologia lacaniana: o desejo puro.
A respeito do desejo puro, notemos que, na teoria lacaniana, a característica
principal do desejo é ser desprovido de todo procedimento natural de objetificação.
Ele é fundamentalmente sem objeto, desejo de "nada de nomeável" 270 . Aqui,
escutamos o leitor atento de Kojève. O mesmo Kojève que tentava costurar o ser-
para-a-morte heideggeriano à Begierde hegeliana a fim de afirmar que a verdade do
desejo era ser “revelação de um vazio”271, ou seja, pura negatividade que transcendia
toda aderência natural e imaginária. Um estranho desejo incapaz de se satisfazer com
objetos empíricos e arrancado de toda possibilidade imediata de realização fenomenal.
Mas por que esta pura tendência que insiste para além de toda relação de objeto
transformou-se em algo absolutamente incontornável para Lacan? Nós podemos
fornecer aqui uma explicação geral.
Lacan desenvolveu uma teoria da constituição dos objetos a partir sobretudo
de considerações sobre o narcisismo. Neste momento do pensamento lacaniano, tanto
os objetos quanto os outros indivíduos empíricos são sempre projeções narcísicas do
eu. Lacan chega a falar do caráter egomórfico dos objetos do mundo empírico. De
onde se segue um narcisismo fundamental guiando todas as relações de objeto, assim
como a necessidade de atravessar este regime narcísico de relação através de uma
crítica ao primado do objeto na determinação do desejo. Lacan é claro a respeito deste
narcisismo fundamental. Ele dirá, por exemplo, que: “A relação objetal deve sempre
submeter-se à estrutura narcísica e aí se inscrever” 272 . E ele dará um caráter
epistemológico a sua crítica do primado do objeto ao afirmar que : “todo progresso
científico [e todo progresso analítico] consiste em dissolver o objeto enquanto tal"273.
Este motivo da crítica ao primado do objeto aparecerá em Lacan
principalmente através da crítica às relações reduzidas a dimensão do Imaginário, já
que o Imaginário lacaniano designa, na sua maior parte, a esfera das relações que
compõem a lógica do narcisismo com suas projeções e introjeções 274. Aqui, faz-se
necessário salientar um ponto importante: o objeto empírico aparece necessariamente
como objeto submetido à engenharia do Imaginário e à lógica do fantasma. A

269
LACAN, S VII, p. 117
270
LACAN, S II, p. 261
271
KOJÈVE, Introduction à la lecture de Hegel, p. 12
272
LACAN, S I, p. 197
273
LACAN, S II, p. 130
274
"Nós consideramos o narcisismo como a relação imaginária central para a relação interhumana "
(LACAN, S III, p. 107)
possibilidade de fixação libidinal a um objeto empírico não-narcísico ainda não é
posta. Assim, a fim de livrar o sujeito da fascinação por objetos que são, no fundo,
produções narcísicas, restava à psicanálise “purificar o desejo” de todo e qualquer
conteúdo empírico. Subjetivar o desejo no seu ponto brutal de esvaziamento. Haveria
uma outra possibilidade através da tentativa de determinar as modalidades possíveis
de uma experiência de objeto que não estivesse inscrita a priori em uma lógica
narcísica. De fato, tal hipótese ganhará relevância na segunda metade da trajetória
intelectual lacaniana, o que pode nos explicar as estratégias posteriores de pensar o
final de análise através da identificação do sujeito com o objeto desprovido de
estrutura de apreensão, ou seja, com o objeto como resto opaco, como dejeto. O que
nos permitirá repensar a questão do destino da categoria de objeto na clínica analítica.
Mas, por enquanto, insistamos na via da purificação do desejo. Lacan
percebeu claramente que a psicanálise nascera em uma situação histórica na qual o
sujeito era compreendido como entidade não-substancial, desnaturada e marcada pelo
selo de uma "liberdade negativa" que lhe permitia nunca ser totalmente idêntica a suas
representações e identificações. A operação de 'purificação do desejo' escondia assim
uma estratégia maior. No fundo, tudo se passava como se Lacan projetasse a função
transcendental própria ao conceito moderno de sujeito em uma teoria do desejo (o que
nos explica como foi possível à psicanálise desenvolver uma teoria não-psicológica
do desejo). A aproximação lacaniana entre, por exemplo, o sujeito do inconsciente e a
estruitura do cogito cartesiano era uma das conseqüências de tal estratégia. O que
Badiou sublinhou bem ao lembrar que: "o que ainda vincula Lacan (mas este ainda é
a perpetuação moderna do sentido) à época cartesiana da ciência é pensar que seja
necessário sustentar o sujeito no puro vazio da substração se quiseremos salvar a
verdade [do regime fantasmático de apresentação de objetos]"275.
Isto permitiu a Lacan concluir que, para além das realizações fenomenais,
haveria uma "permanência transcendental do desejo"276. O que nos envia à
definição canônica do sujeito como falta-a-ser, já que:

O desejo é uma relação do ser à falta. Esta falta é falta de ser propriamente
dita. Não se trata de falta disto ou daquilo, mas falta de ser através da qual o
ser existe277.

Neste caso, esta estranha falta que não é disto ou daquilo é o próprio regime de
experiência subjetiva da estrutura transcendental do desejo. Transcendental
porque a falta-a-ser é uma condição a priori de constituição do mundo dos
objetos do desejo humano. Podemos falar aqui de a priori porque a falta não
seria derivada de nenhuma perda empírica. Para Lacan, não há nada parecido a
uma origem empírica do desejo. O que explica por que Lacan parece tentar fazer
uma verdadeira ' dedução transcendental' do desejo puro. Contrariamente a
Freud, ele não identifica a causa da falta à perda do objeto materno produzida

275
BADIOU, L'être et l'événement, Paris: Seuil, 1988, p. 472. É tal articulação entre
transcendentalidade e negatividade na função do sujeito que permitirá a comentadores como Slavoj
Zizek ler Kant de maneira 'lacaniana', como vemos em afirmações coimo: "o ensinamento maior da
consciência de si transcendental é totalmente oposto à transparência de si absoluta e à presença a si.
Sou consciente de mim mesmo, eu me volto de maneira reflexiva em direção a mim mesmo porque
nunca posso 'encontra mim mesmo' na dimensão numenal, como a Coisa que sou atualmente" (ZIZEK,
Slavoj, The ticklish subject, London: Verso, 2000, p. 304)
276
LACAN, S VIII, p..
277
LACAN, SII, p. 261.
pela interdição vinda da Lei do incesto. É verdade que Lacan afirmará: "o objeto
da psicanálise não é o homem, mas o que lhe falta - não uma falta absoluta, mas
falta de um objeto "278. No entanto, devemos sublinhar que tal objeto que lhe
falta não é exatamente um objeto empírico.

Um sujeito transcendental para a psicanálise?

Devemos então nos perguntar se o sujeito lacaniano do desejo não seria


uma versão psicanalítica do sujeito transcendental. É neste ponto que podemos
medir a particularidade da filiação lacaniana ao discurso filosófico da
modernidade. Se o desejo é condição a priori para a constituição dos objetos do
mundo, não se trata de um desejo cujo sentido se desvelaria através da auto-
intuição imediata de um eu. Ou seja, o desejo não exige um conceito de ego
transcendental capaz de aparecer como destino privilegiado dos processos de
reflexão. Ao contrário, como o desejo é determinado de maneira inconsciente
pela estrutura sócio-lingüística externa que constitui a priori as coordenadas de
toda experiência possível (isto segundo sentido da fórmula estruturalista: o
desejo do homem e o desejo do Outro - onde o Outro aparece como estrutura
sócio-lingüística transcendental na qual o sujeito deve surgir), então o sujeito
será necessariamente determinado empiricamente pela estrutura.
Sublinhemos aqui a importância deste motivo estruturalista maior: as
condições a priori da experiência já estão dadas antes da constituição do sujeito e
graças à anterioridade do significante. No caso lacaniano, isto significa dizer que
o desejo do Outro já está constituído antes da subjetivação do desejo pelo sujeito.
Lembremos, por exemplo, que o lugar da criança já está constituído no interior
da constelação familiar através das convenções de estruturas de parentesco, do
nome que às vezes o identifica a um ancestral e à linhagem do desejo presente no
Ideal do eu dos pais. Mas tal anterioridade temporal é sobretudo anterioridade
lógica, já que não é possível ao sujeito desenvolver procedimentos de auto-
referência e de auto-reflexão antes da estruturação prévia do campo de
experiências e de socialização por um sistema sócio-lingüístico de regras, de
normas e posições. Daí afirmações como: "o sujeito só é sujeito ao assujeitar-se
ao campo do Outro, o sujeito provém de seu assujeitamento sincrônico a este
campo do Outro" 279.
Isto significaria que o sujeito lacaniano é apenas o suporte inconsciente
de processos estruturais de determinação de sentido - tal como encontraríamos
em uma perspectiva estruturalista clássica? É a temática da intersubjetividade,
com seu motivo de reconhecimento do sujeito pelo Outro enquanto estrutura
transcendental, que nos demonstra o contrário. Se há reconhecimento
intersubjetivo do desejo (mesmo entre dois polos situados em posições não-
recíprocas, já que o Outro determina de maneira não-recíproca o sujeito), então
devemos pensar em um sujeito que não é simplesmente suporte mas que, em
certas condições, pode se transformar em agente. É claro, muito haverá a se dizer
a respeito da especificidade desta agência do sujeito lacaniano; uma agência que
não se submete a nenhum princípio de expressividade dependente de um

278
LACAN, AE, p. 211
279
LACAN, S XI, p. 172
conceito positivo de intencionalidade. Mas, de qualquer forma, ela disponibiliza
um contrapeso ao problema da heteronomia completa do sujeito.
Por enquanto, podemos fornecer aqui uma hipótese capaz de nos guiar na
compreensão desta posição paradoxal do sujeito lacaniano. Lacan guarda um
elemento próprio à função transcendental presente no conceito moderno de
sujeito, mas não se trata do poder transcendental de constituição das
coordenadas da 'realidade objetiva'. Neste sentido, o sujeito lacaniano não pode
ser um puro sujeito transcendental, já que tal poder não lhe pertence nem de fato
(ele não é um ego transcendental), nem de direito (sua função lógica não consiste
na faculdade de síntese própria a uma unidade sintética de percepções).
Parece-me que, ao articular seu conceito de sujeito através de figuras da
subjetividade moderna tão distantes umas das outras quanto podem ser o cogito
cartesiano, o sujeito da vontade livre kantiana e a consciência desejante de Hegel,
Lacan procura um certo caráter de transcendência ligado, na modernidade, à
articulação do conceito de função transcendental do sujeito.
Não se trata aqui de compreender a transcendência simplesmente como
esta ilusão própria ao uso da razão e sempre presente quando ela procura
aplicar um princípio efetivo para-além dos limites da experiência possível -
noção de transcendência que só pode ser antinômica ao questionamento
transcendental, como bem demonstrou Kant. Lacan é marcado por um
pensamento da transcendência no qual se cruzam as reflexões vindas da
fenomenologia alemã (a transcendência do Dasein) e do hegelianismo (a
negatividade da Begierde). Neste sentido, basta lembrarmos de Kojève falando da
negatividade do desejo como: "o ato de transcender o dado que lhe é dado e que
é em si mesmo"280. "O ato de transcender" deve ser compreendido aqui como
negação que põe a não-adequação entre o ser do sujeito e os objetos da
dimensão do empírico, como apresentação de uma não-saturação do ser do
sujeito no interior do campo fenomenal. Tal transcendência não põe princípio
efetivo algum para além da experiência possível. O que nos explica porque
devemos compreendê-la como transcendência negativa. Podemos assim dizer
que o sujeito para Lacan é uma transcendência sem transcendentalidade, ao
menos sem o caráter constitutivo da objetividade próprio ao sujeito
transcendental. A hipótese aqui consiste em dizer que, com Lacan, a
subjetividade está inicialmente ligada aos modos de manifestação desta
transcendência negativa e a intersubjetividade é o espaço possível de auto-
apresentação da subjetividade.

280
KOJÈVE, Introduction à la lecture de Hegel, op.cit, p. 13
Lógicas do reconhecimento
Aula 14

Na aula de hoje, gostaria de apresentar a recuperação do problema do


reconhecimento feita por Axel Honneth. Tal recuperação aparece atualmente
como um dos eixos centrais de articulação dos debates no interior da filosofia
política. De fato, o conceito de reconhecimento ganhará, graças principalmente a
Honneth, uma importância que até então nunca teve no interior da filosofia
política. Como vimos nas últimas aulas, a recuperação francesa do problema do
reconhecimento permitiu desdobramentos substanciais no interior dos campos
da clínica e da ética, mas não diretamente no campo político. Cabe
principalmente a Honneth e Charles Taylor esta tarefa. No entanto, trata-se aqui
de lembrar que não devemos refletir sobre os usos políticos contemporâneos do
conceito de reconhecimento sem levar em conta a avaliação de seu contexto
sócio-histórico de recuperação, no início dos anos noventa. Contexto
extremamente sugestivo pois indissociável da perda, nas últimas décadas, da
centralidade do discurso das lutas de classe enquanto chave de leitura para os
conflitos sociais. Haverá de fato um novo enquadre nos modos de reflexão sobre
os conflitos sociais a partir do momento em que a temática do reconhecimento
ganhar centralidade.
A luta de classes foi acusada de limitar os conflitos sociais a problemas
gerais de redistribuição igualitária de riquezas (que não são meramente
expressões de uma teoria da justiça redistributiva), ignorando com isto
dimensões morais e culturais que não poderiam ser compreendidas como meros
reflexos de estruturas de classe. Sendo assim, uma leitura possível consistiria em
dizer que certo acúmulo de modificações teria fornecido as condições para a
elevação do reconhecimento a problema político central. Dentre tais
modificações três seriam fundamentais.
Primeiramente, teríamos o esvaziamento do proletariado enquanto ator
histórico de transformação social revolucionária: tema presente na Escola de
Frankfurt ao menos desde os anos 30 através de suas pesquisas sobre as
regressões políticas da classe operária em direção à sustentação do nazismo281.
Certamente, muito contribuiu para a consolidação de tal diagnóstico a forte
integração do operariado aos sistemas de seguridade e às políticas corretivas dos
ditos Estados do bem estar social a partir dos anos 50. Note-se como Habermas,
olhando para a ausência de candidatos a ocuparem a vaga de atores globais de
transformação revolucionária depois dessa integração da classe operária e do
posterior enfraquecimento do próprio Estado do bem estar social, insistirá em
ler tal situação como expressão de esgotamento de “uma determinada utopia
que, no passado, cristalizou-se em torno do potencial de uma sociedade do
trabalho”282. Esgotamento que levará alguém como Axel Honneth a afirmar,
recentemente, que a própria crença no papel privilegiado do proletariado no
interior de uma política revolucionária não passava de um “dogma histórico-

281
Ver, por exemplo, FROMM, Erich; Arbeiter und Angestellte am Vorabend des Dritten Reiches: eine
sozialpsychologische Untersuchung, Stuttgart: Deutsche Verlags- Anstalt, 1980
282
HABERMAS, Jurgen: A nova intransparência: a crise do Estado de bem estar social e o
esgotamento das energias utópicas, Novos estudos Cebrap, n. 18, setembro de 1987, p. 105
filosófico”283. Aceito que o pretenso papel privilegiado do proletariado não
passava de um “dogma”, o investimento no discurso da luta de classes como eixo
central de organização e constituição das identidades no interior dos embates
políticos perde necessariamente sua força para abrir espaço a outros candidatos.
Mas para a consolidação da centralidade atual do conceito de
reconhecimento, foi necessário que tal perda na crença revolucionária do
proletariado fosse acompanhada de um fenômeno suplementar vinculado à
mutação do sistema de expectativas ligado a um dos eixos centrais do
desenvolvimento das lutas políticas, a saber, o universo do trabalho. Tal mutação
pode ser compreendida se seguirmos Luc Boltanski e Eve Chiapello a fim de
afirmar que, desde as revoltas de maio de 68, um novo “ethos” do capitalismo
começou a ser formado.
A crítica social que se desenvolve a partir de maio de 1968 visava,
principalmente, o trabalho e sua incapacidade em dar conta de exigências de
autenticidade. Visto como o espaço da rigidez do tempo controlado, dos horários
impostos, da alienação taylorista e da estereotipia de empresas fortemente
hierarquizadas, o trabalho fora fortemente desvalorizado pelos jovens de 68.
Vários estudos do início dos anos setenta demonstram consciência dos riscos de
uma profunda desmotivação dos jovens em relação aos valores presentes no
mundo do trabalho, preferindo atividades flexíveis, mesmo que menos
renumeradas.
O resultado de tal crítica teria sido a reconfiguração do núcleo ideológico
da sociedade capitalista e a consequente modificação do ethos do trabalho.
Valores como: segurança, estabilidade, respeito à hierarquia funcional e à
especialização, valores estes que faziam do mundo do trabalho um setor
fundamental de imposição de identidades fixas e rígidas, deram lugar a outro
conjunto de valores vindos diretamente do universo de crítica do trabalho.
Capacidade de enfrentar riscos, flexibilização, maleabilidade, desterritorialização
resultante de processos infinitos de re-engenharia compõem atualmente um
novo núcleo ideológico. Com esta modificação, o universo do trabalho nas
sociedades capitalistas estaria mais apto a aceitar demandas de reconhecimento
da individualidade e a modificar a matriz da experiência de alienação, retirando
tal matriz da temática da espoliação econômica a fim de deslocá-la em direção à
temática da imposição de uma vida inautêntica, ou seja, vida desprovida do
espaço de desenvolvimento de exigências individuais de auto-realização. Com
este deslocamento da espoliação à inautenticidade no interior da crítica do
trabalho, abria-se mais uma porta para secundarizar o conceito de luta de classes
e elevar o problema do reconhecimento a dispositivo político central.
Por fim, devemos lembrar como esta mutação acaba por se encontrar com
outra série de modificações ligadas, por sua vez, à compreensão, ocorrida a
partir dos anos setenta, das lutas de grupos historicamente vulneráveis e
espoliados de direitos (como negros, gays, mulheres) enquanto lutas de
afirmação cultural das diferenças. Isto significa afirmar que elas não foram
apenas compreendidas como setores de uma luta mais ampla de ampliação de
direitos universais a grupos até então excluídos, mas como processos de
afirmação das diferenças diante de um quadro universalista pretensamente

283
HONNETH, Axel; “Redistribution as recognition”, In: FRASER e HONNETH; Redistribution or
recognition, Verso: New York, 2003, p. 116
comprometido com a perpetuação de normas e formas de vida próprias a grupos
culturalmente hegemônicos. Muito colaborou para isto o desenvolvimento das
temáticas ligadas ao multiculturalismo.
Desde 1957, o termo aparecera a fim de descrever a realidade multi-
linguística da Federação Suíça. No entanto, foi no Canadá que o
multiculturalismo chegou a ser implementado, pela primeira vez, como política
de Estado. Marcado tanto pelo conflito entre as comunidades anglófonas e
francófonas quanto por uma elevada taxa de imigração, o Canadá adotou, em
1971, sob o governo social-democrata de Pierre Elliot Trudeau, o Announcement
of Implementation of Policy of Multiculturalism within Bilingual Framework.
Através dele, o país se auto-definia como uma sociedade multicultural que
reconhecia, inclusive, a necessidade de políticas específicas financiadas pelo
Estado visando a preservação de tal multiplicidade. Em 1988, estas políticas
foram reforçadas através da implementação do Canadian Multiculturalism Act.
Vários outros países, majoritariamente anglo-saxões (além dos Países Baixos),
seguiram o quadro canadense de constituição de políticas multiculturais de
Estado. Não é de se estranhar ter sido um filósofo canadense, Charles Taylor, um
dos primeiros a recuperar o conceito de reconhecimento exatamente no interior
de um debate sobre o multiculturalismo.
Esta tendência multicultural foi uma peça hegemônica na orientação
política de esquerda a partir dos anos oitenta devido, principalmente, ao seu
potencial de defesa de minorias étnico-culturais e à possibilidade de ser
acoplada a práticas de institucionalização da diversidade de orientações sexuais.
Ao mesmo tempo, o desenvolvimento de uma reflexão filosófica sensível à
natureza disciplinar de estruturas de poder que visavam impor normatividades
no campo da sexualidade, do desejo, da normalidade psíquica, da estrutura da
família, da constituição dos papeis sociais, forneceu o quadro conceitual para
desdobrar o impacto de tais lutas. Mesmo que autores como Michel Foucault,
Gilles Deleuze e Jacques Derrida não tenham sido responsáveis pela recuperação
da teoria do reconhecimento - o que não poderia ser diferente devido ao anti-
hegelianismo explícito dos dois primeiros e mitigado no caso do terceiro - é
inegável que sua forma de crítica à compreensão marxista tradicional dos
embates políticos, assim como sua defesa ética do primado da diferença em
muito colaboraram para a consolidação de um quadro filosófico mais propício à
recuperação da centralidade do problema do reconhecimento da alteridade
como problema político central. Desta forma, estavam dadas as condições gerais
para que a compreensão filosófica das lutas políticas passasse necessariamente
de uma abordagem centrada no conflito de classe a uma abordagem centrada em
múltiplas formas de reconhecimento no campo da cultura, da vida sexual, das
etnias e no desenvolvimento das potencialidades individuais da pessoa. Uma
multiplicidade de campos que teriam sido levados ao centro da cena política
depois da aceitação tácita da impossibilidade de uma política revolucionária
baseada na instrumentalização da luta de classes.
Sendo assim, ao menos no interior desta leitura, teríamos de admitir que
o conceito de reconhecimento estaria limitado geograficamente à descrição de
lutas sociais em países do chamado primeiro mundo, que já teriam realizado a
integração do proletariado à classe média, assim como já teriam aceito a
necessidade do descentramento de suas matrizes culturais através da abertura à
afirmação tolerante de formas de vida em contínua variação. Não por outra
razão, volto a insistir, um dos primeiros usos da segunda recuperação do
conceito de reconhecimento esteve exatamente vinculado à reflexão sobre a
dinâmica social das sociedades multiculturais, como podemos ver no texto
supracitado de Charles Taylor.
Mas esta leitura não condiz com a realidade histórica do re-aparecimento
do conceito no interior da filosofia social. Como sabemos, em 1992 ele foi
retomado. Ou seja, exatamente no momento em que se inicia a lenta
desintegração das conquistas econômicas dos ditos Estados do Bem estar social,
com o desmantelamento dos direitos trabalhistas, a privatização (gradual ou
total) da previdência e o sucateamento da educação, da saúde e de outros
serviços públicos. Uma desintegração que ocorreu no momento em que vários
teóricos afirmavam entrarmos em uma era “pós-ideológica”, ou seja, marcada
pelo fim da crença em transformações sociais revolucionárias com a
consequente aceitação do horizonte normativo das democracias liberais como
estágio final das lutas sociais.
Isto talvez explique porque críticos - principalmente de matriz marxista,
mas não apenas eles - desta importância dada ao conceito de reconhecimento
insistiram estarmos aqui diante de uma espécie de conceito meramente
compensatório. Pois tudo se passaria como se, dada a impossibilidade de
implementar políticas efetivas de transformação dos modos de produção e luta
radical contra a desigualdade, nos restasse apenas discutir políticas
compensatórias de reconhecimento. Da mesma forma, dado o fato do Capital
aparecer, de maneira agora inquestionável, como única instância capaz de
ocupar o espaço da universalidade no interior do liberalismo das sociedades
multiculturais, nos restaria simplesmente reinventar demandas de
reconhecimento de identidades comunitárias, em suas múltiplas formas,
tentando dar à comunidade um sentido que não se reduzisse a um mero espaço
de restrição. Por fim, dada a impossibilidade de transformações sociais de larga
escala, nos restaria discutir a natureza moral de nossas demandas sociais.

A economia da identidade individual

Mostrar que não estávamos diante de um mero dispositivo


compensatório, mas provido de importante força de transformação das
estruturas sociais, foi uma tarefa que engajou vários defensores do uso político
do conceito de reconhecimento nos últimos vinte anos. Ela consistiu em
evidenciar como a força emancipatória do reconhecimento no interior de
processos políticos concretos não se dava à margem da discussão sobre
problemas de redistribuição igualitária das riquezas. Isto significou, neste
contexto, lembrar como as discussões sobre diferenças culturais e identidades
sociais não mascaram necessariamente problemas estruturais ligados a lutas de
redistribuição de riquezas entre classes. Tendo tal projeto em mente, autores
como Axel Honneth foram levados a sustentar que “mesmo injustiças ligadas à
distribuição devem ser entendidas como a expressão institucional de desrespeito
social ou, melhor dizendo, de relações não justificadas de reconhecimento”284. O
que o leva a defender, entre outras coisas, proposições como a de que mesmo o
movimento operário “procurava em uma dimensão essencial encontrar

284
HONNETH, Axel; “Redistribution as recognition”, op. cit., p. 114
reconhecimento para suas tradições e formas de vida no interior de um
horizonte capitalista de valor”285.
A estratégia de Honneth baseava-se em uma assimilação do problema da
redistribuição de riquezas a um quadro mais amplo de discussões referentes ao
reconhecimento. Para tanto, foi necessário compreender o sentimento social de
injustiça econômica como expressão possível das “fontes motivacionais do
descontentamento social e da resistência”286. Abria-se assim a possibilidade, ao
menos para Honneth, de criar um quadro motivacional unitário centrado na
ideia de que “sujeitos esperam da sociedade, acima de tudo, reconhecimento de
suas demandas de identidade”287. O que não poderia ser diferente para alguém
que afirma que “sujeitos percebem procedimentos institucionais como injustiça
social quando veem aspectos de sua personalidade, que acreditam ter direito ao
reconhecimento, serem desrespeitados”288. Isto já estava presente em seu
primeiro livro sobre o assunto, Luta por reconhecimento:

É a reivindicação de reconhecimento intersubjetivo da identidade


individual que introduz uma tensão moral na vida social, é ela que leva
sem cessar o progresso social para além do último grau institucionalizado
e pela via negativa de um conflito reconduzido passo a passo, leva
progressivamente a um estado de liberdade vivido no elemento da
comunicação.

A afirmação é clara: os processos de reconhecimento seriam regulados


pelas exigências da identidade individual. Exigências estas que introduziriam
conflitos sociais visando ampliar os processos de institucionalização da
liberdade. O que coloca no horizonte regulador dos processos de
reconhecimento um conceito de “integridade pessoal” cujo pressuposto
fundamental é a naturalização de facto das estruturas dos conceitos psicológicos
de “indivíduo” e “personalidade”. Segundo Honneth, as lutas políticas, mesmo
aquelas organizadas a partir de demandas de redistribuição econômica visam, no
limite, garantir as condições concretas para a “formação da identidade
pessoal”289. Ou seja, a própria gênese da individualidade moderna aparece como
um fundamento pré-político para o campo político. Algo que deve ser
politicamente confirmado, e não politicamente desconstruído. Daí uma
afirmação decisiva, segundo a qual “admito a premissa de que o propósito da
igualdade social é permitir o desenvolvimento da formação da identidade
pessoal de todos os membros da sociedade”290.
Feita tal naturalização, Honneth pode servir-se, entre outros, dos estudos
de historiadores como E.P. Thompson e Barrington Moore a fim de afirmar que a
estrutura motivacional das lutas da classe operária baseou-se, principalmente,
“na experiência da violação de exigências localmente transmitidas de honra”291,

285
HONNETH; idem, p. 123
286
Idem, p. 125
287
Idem, p. 131
288
Idem, p. 132
289
Idem, p. 176
290
Idem, p. 177
291
Idem, p. 131. Por procurar desde há muito defender tal perspectiva, Honneth pode afirmar que, em
Marx “a luta de classes não significa, primeiramente, um afrontamento estratégico visando a aquisição
de bens ou de instrumentos de poder. Ela constitui um conflito moral cuja questão é a ‘emancipação’
já que, mais importante do que demandas materiais teria sido o sentimento de
desrespeito em relação a formas de vida que clamam por reconhecimento. Ao
insistir na centralidade da experiência moral do sentimento de “desrespeito”
como motor das lutas políticas, elevando-o a condição de base motivacional para
todo e qualquer conflito, Honneth pode inscrever problemas de redistribuição no
interior do quadro geral de demandas morais. Assim, sendo a vulnerabilidade
social ligada à pauperização compreendida, principalmente, como expressão
material da impossibilidade da realização de exigências morais de respeito, abre-
se as portas para afirmar que “a distinção entre empobrecimento econômico e
degradação cultural é fenomenologicamente secundária”292, já que conflitos por
redistribuição não poderiam ser compreendidos como independentes de toda e
qualquer experiência de desrespeito social.
Notem como Honneth aceita a premissa hegeliana de que a existência de
“obrigações intersubjetivas” seria uma “condição quase natural de todo processo
de socialização humana”. Mas tais obrigações intersubjetivas teriam uma
dinâmica de desenvolvimento caracterizada pela progressão em direção a
formas cada vez mais exigentes de individualidade. Progressão que faz das lutas
e conflitos sociais conflitos éticos marcados pela expectativa de reciprocidade e
estima. No entanto, ele acredita que o Hegel da Fenomenologia do Espírito
reenquadra o problema do reconhecimento em uma teoria da consciência em
seus processos progressivos de automediação. Esta é uma interpretação de
Habermas que consiste a afirmar que o Hegel de maturidade teria perdido o
potencial de uma intersubjetividade primeira, isto em prol do recentramento da
filosofia a partir do sujeito. Isto traria consequências para a filosofia política,
como a tendência a pensar as relações sociais a partir do modelo da relação entre
a consciência e as instâncias de poder. Assim, ao invés da análise dos processos
de mutualidade e dependência intersubjetiva, teríamos um “desenvolvimento
monológico” que explicaria a importância dada às relações individualizadas com
o Estado.

Relações materiais

A fim de retomar o projeto do jovem Hegel em outras bases, Honneth


propõe reatualizar a ideia de obrigações intersubjetivas como condição quase
natural de todo processo de socialização humana. Para tanto, trata-se de
constituir uma teoria baseada em diferentes níveis de reconhecimento recíproco.
Níveis que se organizam através de uma dinâmica de progressão. Eles começam
pelo amor e sua possibilidade de consolidação de graus de segurança emocional,
passando depois pelas relações jurídicas de direitos e, por fim, às relações
comunitárias de solidariedade. Amor, direito e solidariedade garantirão três
níveis de relação prática a si, a saber, a autoconfiança, o autorespeito e a
autoestima.
O amor será pensado principalmente a partir das relações de
intersubjetividade primária no interior da família, em especial, entre o bebê e a
mãe. A tese da intersubjetividade primária serve para Honneth defender a

do trabalho, condição essencial de que depende, ao mesmo tempo, a estima simétrica entre sujeitos e a
consciência individual de si” (HONNETH, Axel; Kampf um Anerkennung: Zu moralischen Grammatik
sozialer Konflikte, Frankfurt: Suhrkamp, 1992, p. 233)
292
Idem, p. 171
existência de uma tendência fortemente cooperativa e comunicacional no
interior das primeiras experiências de interação social. Por esta razão, ela é
fundamental para o projeto de Honneth, assim como para sua critica de modelos,
a seu ver, insuficientes. O filósofo alemão deriva a tese da intersubjetividade
primária da teoria das relações de objeto de Donald Winnicott e sua forma de
compreender as relações de amor e de dependência mútua entre mãe e bebê.
Tais relações de amor constituiriam uma base sólida para o desenvolvimento da
capacidade de ser si mesmo em um outro. Desta forma:

a experiência intersubjetiva do amor abre o indivíduo a este estrato


fundamental de segurança emocional (emotionalen Sichereit) que lhe
permite não apenas experimentar, mas também exteriorizar (Äusserung)
suas próprias necessidades e sentimentos, assegurando assim a condição
psíquica do desenvolvimento de todas as outras atitudes de respeito de
si293.

Ou seja, segundo tal perspectiva, levamos para esferas mais amplas da vida social
e para relações afetivas em idade madura a crença na exteriorização tranquila de
necessidades e sentimentos, uma crença que seria resultado da experiência
intersubjetiva de amor e de afirmação de si presente inicialmente na relação
entre mãe e bebê. Tal relação poderia ser chamada de “intersubjetiva” por ela
ser, ao menos segundo Honneth, simétrica. Como se o bebê dependesse da mãe
da mesma forma que a mãe dependeria do bebê, isto no interior de uma relação
de “identificação emocional” onde a criança aprende a adotar a perspectiva de
uma segunda pessoa. Tal mútua dependência poderia resolver-se através da
consolidação de uma posição de cooperação e de segurança emocional que
permitiria, à criança, desenvolver sua “consciência individual de si”. Posição na
qual o amor aparecia como uma “simbiose refratada pelo reconhecimento” e pelo
respeito à autonomia.
Neste sentido, o reconhecimento jurídico como sujeito do direito
forneceria a universalidade de relações que o amor desconhece. Tal
reconhecimento se constitui através de um alargamento histórico progressivo no
qual o sistema jurídico deve ser a expressão de interesses universalizáveis de
todos os membros da sociedade. O que exige a compreensão recíprocas dos
membros da sociedade como livres e iguais. No entanto, o reconhecimento
jurídico diz respeito a qualidades universais que me fazem como pessoa em
geral. Faz-se ainda necessário um nível de reconhecimento que assegure a
posição social de qualidades características que me diferenciam dos demais, sem
que isto implique necessariamente em quebra do princípio formal de igualdade.
Este terceiro nível nos abre ao problema da estima social e se funda na existência
de uma comunidade de valores culturalmente definidos pela coletividade.

Lutas sem risco

Mesmo assim, para fundamentar sua filosofia política, Honneth precisa


criar a imagem de um processo de reconhecimento que se realiza na confirmação

293
HONNETH, Axel; Kampf um Anerkennung: zu moralischen Grammatik sozialer Konflikte.
Frankfurt: Suhrkamp, 1992, p. 171
de si pelo outro. Pois a segurança emocional gerada pelo caráter bem sucedido
das demandas de amor no interior do núcleo familiar estaria na base das
demandas sociais de reconhecimento da autonomia individual e da afirmação de
seus sistemas particulares de interesse. Elas estariam também na base da
profunda sensibilidade dos sujeitos para experiências de desprezo e de injustiça.
Desta forma, Honneth constrói uma antropologia psicanalítica para orientar
processos de interação social onde não há lugar para antagonismos insuperáveis.
Antropologia profundamente familiarista capaz de fornecer os fundamentos
morais dos conflitos sociais.
Honneth espera que tal antropologia psicanalítica seja compatível com
aspectos da reflexão sobre conflitos sociais no interior da tradição dialética de
Hegel e Marx. Para ele, a ideia fundamental de Hegel seria que “a luta pelo
reconhecimento constitui a força moral que impulsiona a realidade vital social
humana em direção ao desenvolvimento e o progresso” (HONNETH, 1992, p.
227). Pois a experiência moral de desprezo de minha dignidade de sujeito agente
e desejante estaria na origem dos movimentos de resistência social e de
sublevação coletiva. Sendo assim, o progresso histórico em direção à liberdade
seria a história da realização, cada vez mais universal, de uma antropologia
psicanaliticamente orientada. Mas para Hegel entrar neste horizonte serão
necessários alguns ajustes.
O principal deles está na maneira com a qual Honneth lê a dialética
hegeliana do senhor e do escravo. Honneth reconhece na referida dialética um
“fato transcendental” que aparece como prerrequisito para toda a sociabilidade
humana. Mas, em suas mãos, tal dialética será o movimento de conquista
paulatina de uma capacidade de “auto-restrição” através da qual aprendo a
limitar as ilusões de onipotência de meu desejo ao entrar em contato com a
irredutibilidade do desejo do outro. Desta forma “ego e alter ego reagem um ao
outro restringindo ou negando seus respectivos desejos egoístas” (HONNETH,
2010, p. 30).
Por projetar o conflito de interesses individuais como base da luta
hegeliana de reconhecimento,294 Honneth poderá compreender até mesmo a luta
de classes marxista dentro de um quadro de exigências morais de
autorrealização individual e de estima simétrica entre sujeito. Ele se apoia em
certas tendência detectadas nos escritos político-históricos e nos escritos de
juventude de Marx para afirmar que

[...] a luta de classes não significa para ele, primeiramente, um


afrontamento estratégico visando a aquisição de bens ou de instrumentos
de poder. Ela constitui um conflito moral cuja questão é a “emancipação”
do trabalho, condição essencial de que depende, ao mesmo tempo, a
estima simétrica entre sujeitos e a consciência individual de si
(HONNETH, 1992, p. 233).

A realização pelo trabalho não pode ser compreendida apenas a partir da


dimensão da satisfação das necessidades materiais, nem as lutas sociais a partir
da dimensão única do antagonismo econômico. Honneth acredita que os escritos

294
Como fizeram também Pinkard, 1994 e Habermas, 2004
políticos de Marx, contrariamente a suas análises do capitalismo, interpretam as
lutas de classe a partir da noção de uma ruptura ética.
No entanto, há uma dificuldade importante a ser salientada nesta
estratégia. Vimos até agora como Honneth funda o sofrimento de injustiça e
desprezo, que nos levam à ação política, em um terreno pré-político, marcado
por questões constitucionais normalmente ligadas à discussão sobre a gênese da
individualidade moderna, da “consciência individual de si”. Ou seja, a própria
gênese da individualidade moderna aparece como um fenômeno pré-político.
Algo que deve ser politicamente confirmado, e não politicamente desconstruído.
Desta forma, os sentimentos de injustiça e desprezo são normalmente
compreendidos como resultantes do bloqueio da possibilidade de afirmação
social e de reconhecimento jurídico de traços da identidade individual. Ou seja,
ao menos neste caso, reconhecimento e identidade caminham necessariamente
juntos.
Isto talvez explique porque os exemplos privilegiados de lutas de
reconhecimento para Honneth sejam as lutas pela afirmação das “diferenças
antropológicas” 295 próprias às lutas feministas, assim como aquelas pelos
direitos dos negros e homossexuais. Elas seriam exemplos deste “processo
prático no interior do qual experiências individuais de desprezo são
interpretadas como vivências típicas de todo um grupo, de forma a motivar a
reivindicação coletiva de ampliação de relações de reconhecimento” (HONNETH,
1992, p. 260). Ou seja, experiências de desprezo ligadas a atributos de indivíduos
em afirmação de suas diferenças culturais são interpretadas como violência que
não afetam apenas o Eu individual. No entanto, ainda não saímos da esfera da
afirmação de atributos individuais da pessoa e da construção social de
identidades.
Isto explica, por exemplo, porque sua recuperação do conceito de
“patologias sociais” será, em larga medida, ligada às discussões sobre o bloqueio
nas “condições sociais de auto-realização individual” (HONNETH, 2006, p. 35).
Como se a realização de si devesse, naturalmente, ser pensada respeitando as
estruturas do indivíduo ou, segundo Honneth leitor de Freud, as estruturas do
“ego racional”. Por outro lado, isto nos explica porque os modelos de sofrimento
privilegiados por Honneth sejam a anomia social e o sofrimento de
indeterminação identitária.296

Modelos de patologias sociais

Aqui, devemos tornar mais preciso um ponto. Normalmente, as discussões


sobre anomia insistem no enfraquecimento da normatividade social devido ao
desenvolvimento exponencial das demandas individuais. Como se as demandas
de liberdade individual explodissem o quadro de regulação das normatividades
sociais. Daí porque Durkheim (2005, p. 224) teria de constantemente insistir que
“o indivíduo, por si mesmo, não é um fim suficiente à sua atividade. Ele é muito
pouco. Não apenas limitado no espaço, ele é estreitamente limitado no tempo”.
Mas, na verdade, temos anomia não porque a individualidade levanta
demandas particulares e identitárias específicas que não poderiam ser realizadas

295
Sobre o conceito de “diferença antropológica” ver, sobretudo, Balibar, 2011.
296
Como podemos ver em Honneth, 2005a
pela ordem social. Uma situação como esta não gera anomia, mas, se quisermos
utilizar um termo proposto por Durkheim, “egoísmo” ou, ainda, revoltas políticas
direcionadas ao reconhecimento de particularidades ou à ampliação do direito
de escolha e decisão. Temos anomia, ao contrário, quando as demandas deixam
de ser determináveis, deixam de ter forma específica devido a um
enfraquecimento das normas com sua capacidade de individualização e de
limitação das paixões. Por isto, ao falar das causas sociais do suicídio, Durkheim
deve lembrar que os suicídios motivados pela anomia se distinguem tanto
daqueles motivados por uma individualização excessiva (os suicídios egoístas)
quanto dos motivados por uma individualização insuficiente (suicídios
altruístas). Neste contexto de anomia entra-se em um “estado de
indeterminação” (DURKHEIM, 2005, p. 275) (ou, se quisermos utilizar um
vocabulário de Honneth, em um “sofrimento de indeterminação”) no qual
nenhuma individualização é possível devido ao fato da sociedade estar, entre
outras coisas, submetida à “inorganização característica de nosso estado
econômico” (p. 286) com sua “sede de coisas novas, de gozos ignorados, de
sensações inominadas, mas que perdem todo seu sabor desde que são
conhecidas” (p. 285). Diante de promessas constantes de gozo, produzidas pela
sociedade capitalista em ascensão, toda satisfação limitada é insuportável
exatamente por ser uma limitação, toda escolha identitária é sem sentido
exatamente por ser uma multidão de recusas. Daí as reprimendas de Durkheim
contra “este mal do infinito, que a anomia aporta sempre consigo” (p. 304) e que
só pode produzir cólera, decepção e lassidão exasperada por uma sensibilidade
superexcitada.
Como Durkheim opera com um conceito quantitativo de diferença entre
normal e patológico,297 reconhecerá que um certo grau de anomia é necessário.
Assim, para ele, “toda moral do progresso e do aperfeiçoamento é inseparável de
um certo grau de anomia” (p. 417). No entanto, algo nas condições particulares
do progresso em nossa sociedade produz uma situação anormal e patológica de
anomia. Contra isto, Durkheim sugere um reforço das estruturas institucionais
que passe, sobretudo, pela consolidação de vínculos comunitários ligados aos
agrupamentos profissionais.
Quando recuperar o conceito de patologia social, Honneth irá à sua
maneira partir deste diagnóstico de Durkheim, mas acrescentando um elemento.
Trata-se da compreensão de como, nos últimos trinta ou quarenta anos, esta
situação de anomia social foi institucionalizada, transformando-se em um modo
de gestão do sofrimento social e uma mola propulsora da ideologia neoliberal do
estágio atual do capitalismo. Lembremos aqui de afirmações como:

expectativas de auto-realização individual, que cresceram rapidamente


devido a uma combinação historicamente única de vários processos
distintos de individualização nas sociedades ocidentais dos últimos trinta,
quarenta anos e que, neste tempo, tornaram-se tão claramente um padrão
institucionalizado de expectativas da reprodução social, perderam seu
propósito (Zweckbestimmung) interno e, mesmo assim, tornaram-se a
base de fundamentação do sistema. O resultado desta inversão paradoxal,
na qual processos que outrora prometeram um crescimento qualitativo

297
Como fica claro em: DURKHEIM, 2004.
da liberdade tornam-se agora ideologias da desinstitucionalização, é a
emergência de vários sintomas individuais de vazio interior, de
sentimento de ser supérfluo e desprovido de determinação (HONNETH,
2010, p. 207-208).

Como podemos perceber, o diagnóstico não poderia ser mais próximo do quadro
fornecido por Durkheim. Exigências de autorrealização individual se
transformaram em “ideologias da desinstitucionalização”, ou seja, em processo
de enfraquecimento da capacidade de coesão e organização das normas sociais.
Com isto, produz-se uma desregulação das normas sociais paga com patologias
ligadas ao sentimento depressivo de esvaziamento e à incapacidade de ação.
Assim como teóricos sociais como Luc Boltanski e Eve Chiapello (1999),
Honneth compreende claramente como tal anomia virou uma “força produtiva”
da economia capitalista em era de flexibilização e desregulação contínuas. Ele
compreende também, tal como vimos no capítulo anterior, como essa gestão
social da anomia é paga com o desenvolvimento exponencial de patologias
ligadas à desregulação da capacidade de constituir identidades, como a
depressão e seu “cansaço de ser si mesmo”,298 a insegurança narcísica e os
transtornos de personalidade borderline. Mas, como gostaria de insistir, sua
resposta não parece escapar da procura em reconstruir as bases normativas para
institucionalidades capazes de garantir o desenvolvimento bem sucedido de
indivíduos. Ela ignora que o problema não se encontra nos processos de
desinstitucionalização, mas no impacto de outra forma de regulação social ligada
à expropriação psíquica do estranhamento.

298
Ver, a este respeito, o influente livro de Ehrenberg, 2000.

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