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T RÓPICOS DO D ISCURSO

ENSAIOS SOBRE A CRÍTICA DA CULTURA

Hayden White
Títuio do originai em inglês:
Tropics o/Discourse: Essays in Cultural Criticism Original
English-language edition published by The Johns
Hopkins University Press
Copyright © 1978 by The Johns Hopkins University
Press

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

White, Hayden, 1928- D ^ O


H
Típicos do Discurso: Ensaios sobre a Critica da Cultura
/ Hayden White; tradução de Alípio Correia de Franca Neto.
- SIo Paulo: Editora da Univeisidade de São Paulo, 1994. -
(Ensaios de Cultura; voL 6)

ISBN: 85-314-0235-2

1. Historiografia 2. História - Filosofia 3. Litératira e


História 1. Título. II. Série.
CDD-907.2 94-1071
Para meus filhos
David, Adam, Juliana
SUMÁRIO

Agradecimentos .......................................................................................... 13
Introdução .................................................................................................... 13

/. O Fardo da História .................................................................................. 39


2. A Interpretação na História ..................................................................... 65
3. O Texto Histórico como Artefato Literário ............................................. 97
4. Historicismo, História e a Imaginação Figurativa ................................... 117
5. As Ficções da Representação Factual ..................................................... 137
6. O Irracional e o Problema do Conhecimento Histórico no
Iluminisino ............................................................................................. 153
7. As Formas do Estado Selvagem: Arqueologia de uma Ideia ...... .......... 169
8. O Tema do Nobre Selvagem como Feíiche ............................................ 203
9. Os Trópicos da História: A Estrutura Profunda de A Ciência Nova. 219
10. O
Que Está Vivo e o Que Está Morto na Critica de Croce a Vico... 241
11. ...................................................................................................... Fouca
ult Decodificado: Notas do Subterrâneo ...................................................... 253
12. ...................................................................................................... O
Momento Absurdista na Teoria Literária Contemporânea ........................... 285
índice Remissivo............................. ............................................................
........................................................ 307
AGRADECIMENTOS

Os ensaios contidos neste volume apareceram originariamente nas seguintes


publicações:
“The Burden of History”, History and Theory 5, n. 2 (1966).
“Interpretation in History”, New Literary History, 4 (1972-1973).
“The Historical Text as Literary Artifact”, Clio 3, n. 3 (1974).
“Historicism, History, and the Figurative Imagination”, History and Theory,
Beiheft 14, Essays on Historicism 14, n.4(1975).
“The Fictions of Factual Representation”, em The Literature of Fact, ed.
Angus Fletcher (New York, Columbia University Press, 1976).
“The Irrational and the Problem of Historical Knowledge in the
Enlightenment”, em Studies in Eighteenth-Century Culture, vol. 2, Irratio- nalism
in the Eighteenth Century, ed. Harold E. Pagliaro (Cleveland, Case Wester Reserve
University Press, 1972).
“The Forms of Wildness: Archaeology of an Idea”, em The Wild Man
Within: An Image in Western Thought from the Renaissance to Romanticism, ed.
Edward Dudley e Maximilian E. Novak (Pittsburgh, University of Pittsburgh Press,
1972).
“The Noble Savage Theme as Fetish”, em First Images of America: The
Impact of the New World on the Old, ed. Fredi Chiappelli (Berkeley e Los Angeles,
University of Califórnia Press, 1976).
“The Tropics of History: The Deep Structure of the New Science”, em
Giambattista Vico‘s Science of Humanity, ed. Giorgio Tagliacozzo e Donaid
Phillip Verene (Baltimore e London, The Johns Hopkins University Press, 1976).
“What Is Living and What Is Dead in Croce’s Criticism of Vico”, em
Giambattista Vico: An International Symposium, ed. Giorgio Tagliacozzo e
Hayden V. White (Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1969).
“Foucault Decoded: Notes from Underground”, History and Theory
12 TRÓPICOS DO DISCURSO

12, n. 1 (1973).
“The Absurdist Moment in Contemporary Literary Theory”, Contem- porary
Literature 7, n. 3 (1976).
Sou grato aos editores por permitirem reproduzir esses ensaios nessa forma.

Gostaria também de aproveitar a oportunidade para reconhecer nesta edição


a minha dívida de gratidão para com os amigos e colegas que foram responsáveis -
quer o admitam, quer não - pelos rumos do meu trabalho na última década: Loren
Baritz, Lewis Beck, Marvin Becker, Norman O. Brown, Harry Harootunian, Jim
Kaufmann, Sid Monas, Richard Lewontin e Perez Zagorin, antigos colegas da
University of Rochester; Stan Fish, Angus Fletcher, Lionel Gossman, Geoffrey
Hartmann, Fred Jameson e Edward Said, cujas obras foram constantes desafios para
mim e sempre instrutivas; e, por fim, Richard Vann, Louis Mink e George Nadei,
editores de History and Theory, que me estimularam, tolerante mas energicamente,
a dar continuidade ao tipo de trabalho que esses ensaios representam. Sua
engenhosidade, perspicácia, conhecimento e argúcia editorial não encontram par,
ao que me consta, na área da publicação de livros acadêmicos, exceto, talvez, Jack
Goellner e The Johns Hopkins University Press, que são únicos e originais por si
mesmos.
Finalmente, a retórica do agradecimento é insuficiente para expressar a
minha gratidão para com a minha mulher e amiga, Margaret Brose White. “Dio,
quanto aventurosa fue la mia disianza!”

INTRODUÇÃO
ATROPOLOGIA, O DISCURSO E OS MODOS DÁ CONSCIÊNCIA
HUMANA

Quando procuramos explicar tópicos problemáticos como natureza humana,


cultura, sociedade e história, nunca dizemos com precisão o que queremos dizer,
nem expressamos o sentido exato do que dizemos. Nosso discurso sempre tende a
escapar dos nossos dados e voltar-se para as estruturas de consciência com que
estamos tentando apreendê-los; ou, o que dá no mesmo, os dados sempre obstam a
coerência da imagem que estamos tentando formar deles 1. Ademais, em tópicos
como esses, sempre existem razões legítimas para diferenças de opinião quanto ao
que eles são, ao modo como se deveria falar deles e aos tipos de conhecimento que
deles podemos ter.
Todo discurso genuíno leva em conta estas diferenças de opinião na
formulação de dúvida quanto à sua própria autoridade que ele sistematicamente
exibe em sua própria superfície. Isto ocorre particularmente quando se trata de
demarcar para análise preliminar o que parece ser uma nova área da experiência
humana, de definir os seus contornos, de identificar os elementos contidos em seu
campo e discernir os tipos de relação que predomi

1 A disparidade entre discurso, lexis, ou modo de enuncinção, de um lado, e significado, de outro, é evidentemente
um dogma fundamental das modernas teorias estruturalistas e pós-estruturalistas do texto; ela procede da
noção de arbitrariedade da união do sígnificante e do significado no signo, tal como foi postulado por Saussure.
A bibliografia é imensa, mas ver 1'rederic Jameson, The Prisnn-House of Lunguaxc: A Criticai Account of
Structuratism and Ruxsiein Formalism (Princeton, 1972), Cap. 1; Jonathan Culler, Structuralist Poetics:
Structuralism, Linguistics, and the Study of Literatura (Ithaca, 1975), Parte 1; e Terence Hawkes, Structuralism
and Setnioiics (Berkdcy e Los Angeles), 1977, cap. 2.
INTRODUÇÃO 2!

nam entre eles. É aqui que o próprio discurso deve estabelecer a adequação
da linguagem utilizada na análise do campo, aos objetos que o parecem ocupar. E
o discurso efetua esta adequação por meio de um movimento pré-figurativo mais
trópico que lógico.
Os ensaios que compõem esta coletânea se ocupam de um modo ou de outro
do elemento trópico contido em todo discurso, seja do tipo realista seja do tipo mais
imaginativo. Acredito que este elemento não possa ser expungido do discurso das
ciências humanas, por mais realistas que aspirem a ser. Trópico é a sombra da qual
todo discurso realista tenta fugir. Entretanto, esta fuga é inútil, pois trópico é o
processo pelo qual todo discurso constitui os objetos que ele apenas pretende
descrever realisticamente e analisar objetivamente. Como os tropos funcionam nos
discursos das ciências humanas é o tema destes ensaios, e é por isso que lhes dei o
título que dei.
A palavra trópico, de tropo, deriva de tropikos, tropos, que no grego clássico
significa “mudança de direção”, “desvio”, e na koiné “modo” ou “maneira”.
Ingressa nas línguas indo-europeias modernas por meio de tro- pus, que em latim
clássico significava “metáfora” ou “figura de linguagem”, e no latim tardio, em
especial quando aplicada à teoria da música, “tom” ou “compasso”. Todos esses
sentidos, sedimentados na palavra trope, do inglês antigo, encerram a força do
conceito expresso no inglês moderno pelo termo style, um conceito particularmente
apropriado para o exame daquela forma de composição verbal que, a fim de
diferenciá-la, de um lado, da demonstração lógica e, de outro, da pura ficção,
chamamos pelo nome de discurso, Para retóricos, gramáticos e teóricos da
linguagem, os tropos são desvios do uso literal, convencional ou “próprio” da
linguagem, guinadas na locução que não são sancionadas pelo costume ou pela
lógica2. Os tropos geram figuras de linguagem ou de pensamento mediante a
variação do que “normalmente” se espera deles e por via das associações que
estabelecem entre conceitos que habitualmente se supõem estarem ou não
relacionados de maneiras diferentes da sugerida no tropo utilizado. Se, como
aventou Harold Bloom3, um tropo pode ser o equivalente linguístico de um
mecanismo psicológico de defesa (uma defesa contra o sentido literal do discurso,
do mesmo modo que o recalque, a regressão, a projeção etc. constituem defesas
contra a percepção da morte na psique), ele é sempre não apenas um desvio de um
sentido possível, próprio, mas também um desvio em direção a um outro sentido,

2 A bibliografia sobre os tropos é tão grande quanto a bibliografia sobre a teoria do signo - se não for maior - e
cresce diariamente num ritmo frenético, mas sem dar até agora qualquer sinal de um consenso gera! quanto à
sua classificação. Para exames gerais do estado da questão, ver “Rechcrclies rhétoriques”, Communications
(publicação da Ecole Pratique des Hautes Etudes - Centre d’Eiudes des Communicatioas de Masses) 16 (1970);
“Frontières de la rhétorique”, Linérciture, 18 (mai 1975); “Rhétorique et herméneutique”, Poétique 23 (1975).
Estudos sistemáticos dos tropos, segundo as modernas teorias linguísticas, são os de Heinrich Lausberg,
Elemente der literarischcn Rhetorik (München, 1967); J. Dubois et u!ii, Rhétorique générale (Paris, 1970); e Chaim
Perelman e L. Olbrechts-Tyteca, The New Rhetoric: A Treati.se on Argumentation, trad. John Wilkinson e Purcell
Weaver (Notre Dame e London, 1969). Deve- se igualmente mencionar as obras de Kenneth Burke, Gérard
Genette, Roland Barthes, Umberto Eco e Tzvetan Todorov.
3 Harold Bloom, A Map of Misreading (New York, 1975), p. 91.
INTRODUÇÃO 2!

a uma concepção ou ideal do que é correto e próprio e verdadeiro “em realidade”.


Assim considerado, o emprego de tropos é ao mesmo tempo um movimento que
vai de uma noção do modo como as coisas estão relacionadas para outra noção, e
uma conexão entre coisas de modo tal que possam ser expressas numa linguagem
que leve em conta a possibilidade de serem expressas de outra forma. O discurso é
o gênero em que predomina o esforço para adquirir este direito de expressão, com
crença total na probabilidade de que as coisas possam ser expressas de outro modo.
E o emprego de tropos é, pois, a alma do discurso, o mecanismo sem o qual o
discurso não pode fazer o seu trabalho ou alcançar o seu objetivo. Por isso,
podemos concordar com a asserção de Bloom segundo a qual “toda interpretação
depende mais da relação antitética entre significados que da suposta relação entre
um texto e o seu significado”4.
Certamente, Bloom está envolvido com textos poéticos, e em particular com
a moderna poesia lírica (romântica e pós-romântica), de modo que sua assertiva de
que a interpretação é a explicação da “relação antitética entre significados” num
texto único é menos chocante do que o seria qualquer afirmação similar com
relação a textos em prosa discursiva. E, não obstante, estamos diante do fato
inelutável de que, mesmo na prosa discursiva mais pura, textos que pretendem
representar “as coisas como elas são”, sem floreios retóricos nem imagens poéticas,
sempre há uma falha de intenção. É possível mostrar que todo texto mimético
deixou alguma coisa fora da descrição do seu objeto ou lhe acrescentou algo que
não é essencial àquilo que algum leitor, com maior ou menor autoridade,
considerará uma descrição adequada. Numa análise literária, é possível mostrar que
toda mimese se apresenta deformada e pode, portanto, servir de ensejo para uma
outra descrição do mesmo fenômeno, uma descrição que se pretenda mais realista,
mais “fiel aos fatos”5.
Do mesmo modo, a análise pode mostrar que qualquer descrição em prosa
de qualquer fenômeno contém pelo menos um movimento ou transição na
sequência de enunciações descritivas que viola um cânone de coerência lógica.
Como poderia ser de outra maneira, quando o próprio modelo do silogismo revela
clara evidência do emprego de tropos? O movimento que vai da premissa maior
(Todos os homens são mortais) para a escolha do dado que servirá de premissa
menor (Sócrates é um homem) é, em si, um movimento tropológico, uma “guinada”
do universal para o particular que a lógica não pode reger, porquanto é a própria
lógica que está sendo servida por este movimento 6. Todo silogismo aplicado
contém um certo elemento entimemático, um elemento que consiste apenas na
decisão de mover-se do plano das proposições universais (elas próprias sinédoques
de longo alcance) para o das afirmações existenciais singulares (que são
metonímias de longo alcance). E, se isso é verdadeiro mesmo para o silogismo

4 Harold Bloom, A Map of Misreading, p. 76.


5 Daí a possibilidade de uma obra como Mimesis: The Representation of Reuíity in Western Literature, de Erích
Auerbach, trad. Willard Trask (New York, 1957), que mapeia as mudanças na concepção do “real” e nos estilos
considerados mais apropriados para a sua representação, de Homero it Joyce.
6 Aqui, sigo G. W. F. Hegel, Logic, trud. William Waliace (Oxford, 1975), 181-190, pp. 244-254.
INTRODUÇÃO 2!

clássico, quanto mais não o será para aqueles pseudo-silogismos e cadeias de


silogismos que compõem o discurso em prosa mimético-analítico, ou o tipo
encontrado na história, na filosofia, na crítica literária e nas ciências humanas em
geral?
A técnica convencional para julgar da validade dos discursos em prosa -
como, por exemplo, os tratados políticos de Maquiavel ou de Locke, o ensaio sobre
a desigualdade de Rousseau, as histórias de Ranke ou as especulações etnológicas
de Freud - consiste em examiná-los, primeiro quanto à sua fidelidade aos fatos do
tema que está sendo analisado e, em seguida, quanto à sua observância dos critérios
de coerência lógica que o silogismo clássico representa. Esta técnica de crítica age
em visível oposição à prática do discurso, quando não a alguma teoria sobre ele,
porque o intuito do discurso é constituir o terreno onde se pode decidir o que
contará como um fato na matéria em consideração e determinar qual o modo de
compreensão mais adequado ao entendimento dos fatos assim constituídos. A
etimologia da palavra discurso, derivada do latim discurrere, sugere um
movimento “para a frente e para trás” ou um “deslocamento para cá e para lá”. Este
movimento - mostra-nos a prática discursiva - pode ser tão pré-Iógico ou antilógico
quanto é dialético. Antilógico, seu objetivo seria desconstruir uma conceituação de
uma dada área de experiência que se tenha petrificado numa hipóstase que impede
percepção nova ou nega, no interesse da formalização, o que nossa vontade ou
emoções nos dizem que não deve ser o caso num dado setor da vida. Pré-Iógico,
seu objetivo é demarcar uma área da experiência para análise subsequente por um
pensamento orientado pela lógica.
Um discurso move-se “para cã e para lá” entre as codificações recebidas da
experiência e a congérie de fenômenos que recusa incorporar-se a noções
convencionalizadas de “realidade”, “verdade”, ou “possibilidade”. Também se
move “para a frente e para trás” (como uma lançadeira?)7 entre os meios
alternativos de codificar essa realidade, dos quais alguns podem ser fornecidos
pelas tradições do discurso que prevalecem num dado âmbito de investigação e
outros podem ser idioletos do autor, cuja autoridade este está procurando
estabelecer. O discurso, numa palavra, é quintessencialmente um empreendimento
mediador. Como tal, é ao mesmo tempo interpretativo e pré-interpretativo; é
sempre sobre a natureza da própria interpretação e sobre o tema que constitui a
ocasião manifesta de sua própria elaboração.
É dito muitas vezes que esta natureza dúplice do discurso é dialética. Porém,
além de estar carregado de associações ideológicas de um tipo específico, o termo
dialético sugere muitas vezes um sujeito transcendental ou ego narrativo que se
coloca acima das interpretações conflitantes da realidade e serve de árbitro entre
elas. Seja-me permitido propor mais um termo para mostrar de que modo concebo
o movimento dinâmico de um discurso: diatático. Este conceito tem o mérito de
sugerir um tipo algo diferente de relação entre o discurso, o seu suposto tema e as

7 Ver Geoffrey Harlman, “The Voice of the Shuttle: Language from the Point of View of Literature”, em
Beyand Formcilism (New York e London, 1970), pp. 337-355.
INTRODUÇÃO 2!

interpretações divergentes deste último. Ele não afirma que os discursos sobre a
realidade podem ser classificados em hipotáticos (conceitualmente
sobredeterminados), de um lado, e paratáticos (conceitualmente subdeterminados),
de outro, e o próprio discurso ocupa o plano médio (do pensamento propriamente
sintático) que todos estão buscando. Ao contrário, o discurso, se for um discurso
genuíno
- isto é, tão crítico de si mesmo quanto é dos outros - desafiará de modo radical a
própria noção de plano médio sintático. Ele põe em dúvida todas as normas
“táticas”, inclusive as que originariamente regem a sua própria formação.
Justamente por ser aporético, ou irônico, com respeito à sua própria adequação, o
discurso não pode ser regido unicamente pela lógica 8. Por estar sempre fugindo ao
domínio da lógica, indagando constantemente se a lógica é adequada para captar a
essência do seu tema, o discurso sempre se volta para a reflexividade
metadiscursiva. É por isso que todo discurso sempre é sobre o próprio discurso e é
sobre os objetos que compõem o seu tema.
Considerado um gênero, então, deve o discurso ser analisado em três níveis:
no da descrição (mimese) dos “dados” encontrados no campo da investigação que
está sendo demarcado ou designado para a análise; no do argumento ou narrativa
(diegese), que corre paralelamente à matéria narrativa ou se entremeia com ela9; e
naquele em que se realiza a combinação desses dois níveis anteriores (diataxe). As
regras que se cristalizam neste último nível do discurso, ou nível diatático,
determinam os possíveis objetos do discurso, os modos pelos quais a descrição e o
argumento se devem combinar, as fases pelas quais o discurso tem de passar no
processo de aquisição do seu direito de conclusão, e a modalidade da metalógica
utilizada para ligar o fecho do discurso com os seus gestos de inauguração.
Encarado dessa maneira, um discurso é em si mesmo um tipo de modelo dos
processos da consciência pelos quais uma dada área da experiência, a princípio
apreendida como apenas um campo de fenômenos que exigem compreensão, é assi-
milada por analogia com aquelas áreas da experiência consideradas já com-
preendidas quanto às suas naturezas essenciais.
A compreensão é um processo de tornar familiar o não-familiar, ou
“estranho”, no sentido freudiano desse termo 10; de removê-lo do domínio das
coisas consideradas “exóticas” e não-classificadas num ou outro domínio da
experiência codificado de modo suficientemente adequado para que seja
considerado humanamente útil, não-ameaçador, ou apenas conhecido por
associação. Este processo de compreensão só pode ser tropológico na essência, pois
o que está envolvido na conversão do não-familiar em familiar é uma criação de
tropos que em geral é figurativa. Segue-se, a meu ver, que esse processo de
compreensão se desenvolve mediante a exploração das principais modalidades da
figuração, que a teoria retórica pós-renascentista diz ser os “tropos principais”

8 Umberto Eco, A Theory of Semioticx (Bloomington e London, 1976), pp. 276-286. Ver também Paul Dc M;in,
Blindness and Insight: Essays in the Rheioric of Contemporary Criticism (New York, 1971), pp. 102-141.
9 Gcrard Genette, “Boundaries of Narrative", New Literary History 8, 1:1-13 (Autumn 1976).
10 Sigmund Freud, “The Uncanny”, em On Creativity and the Uncoitsciaus (New York, ! 958), pp. 122-161.
INTRODUÇÃO 2!

(expressão de Kenneth Burke) da metáfora, da metonímia, da sinédoque e da


ironia11, Além disso, parece que nesse processo atua um padrão arquetípico para
construir tropologicamente campos da experiência que requerem a compreensão
que acompanha a sequência de modos indicados como dados pela relação de tropos
principais.
O enredo arquetípico de formações discursivas parece exigir que o “eu”
narrativo do discurso se mova de uma caracterização metafórica original de um
domínio da experiência, passando por desconstruções metonímicas de seus
elementos, até as representações sinedóquicas das relações entre seus atributos
superficiais e sua suposta essência, até, finalmente, uma representação de quaisquer
contrastes ou oposições que possam ser legitimamente discernidos nas totalidades
identificadas na terceira fase da representação discursiva. Em sua análise da “lógica
poética”, Vico sugeriu um padrão de movimentos semelhante que subtende os
esforços da consciência para “criar” um mundo adequado à satisfação das
necessidades experimentadas pelos seres humanos, em processos cognitivos pré-
racionais12. E afirmava além disso que essa diataxe do discurso não só refletia os
processos da consciência, mas também, de fato, fundamentava e permeava todos
os esforços dos seres humanos para dar sentido ao seu mundo. Segundo parece,
Hegel sustentou o mesmo ponto de vista, se o li corretamente, e Marx decerto o
fez, como o demonstra minha análise do seu discurso sobre “As Formas de Valor”
no livro de abertura de O Capital0.
Considerações como estas sugerem que o próprio discurso, sendo um
produto dos esforços da consciência para estabelecer um acordo com domínios
problemáticos da experiência, serve de modelo para as operações metalógicas pelas
quais a consciência, na práxis cultural em geral, efetua tais acordos com o seu meio,
social ou natural, conforme o caso. O movimento de uma apreensão metafórica de
uma realidade “estranha” e “ameaçadora” para uma dispersão metonímica dos seus
elementos nas contiguidades das séries não é lógico. Não existe uma regra que nos
diga quando está completa a nossa constituição original, metafórica, de um
domínio da experiência como possível objeto de investigação e quando deveríamos
proceder a uma consideração dos elementos que, construídos em sua
particularidade apenas como partes de um todo até agora não-identificado, ocupam
o domínio em questão. Esta mudança na modalidade do construtivo, ou, como a
denominei em Metahistory, na modalidade de pré-figuração, é essencialmente
metafórica13. Tampouco as outras mudanças nos modos descritivos são
logicamente determinadas (a não ser que, como sugeri acima, a lógica em si seja
apenas uma formalização de estratégias trópicas)14.
Depois que disseminei os elementos de um dado domínio através de uma
série temporal ou campo espacial, posso ficar satisfeito com o que parece ser um

11 Ver Kennelh Burke, A Grammar of Motives (Berkeley e Los Angeles, 1969), apêndice D, pp. 503-517.
12 Giambattixtn Vico, The New Science, trad. Thomax Goddard Bergin e Max Harold Fisch (Ithíicu, 1968), §§
400 e ss., pp. 127 e ss.
13 White, Metahistory, pp. 30 e ss.
14 Tzvctan Todorov, “On Linguisdc Symbolism”, New Literary History 6, 1:111-134 (Autumn 1974).
INTRODUÇÃO 2!

ato analítico final, ou posso continuar a “integrar” estes elementos, atribuindo-os a


diferentes ordens, classes, gêneros, espécies e assim por diante - vale dizer, ordená-
los hipotaticamente de tal modo que se possa estabelecer o seu status ou de
essências ou de simples atributos dessas essências. Feito isso, posso então ficar
satisfeito com o discernimento desses padrões de integração, do modo como ficarão
o idealista na filosofia e o organicista nas ciências naturais; ou posso “voltar” mais
uma vez a considerar até que ponto esta operação taxonômica deixa de considerar
certos traços dos elementos assim classificados e - movimento ainda mais
complexo
- tentar determinar até que ponto o meu próprio sistema taxonômico é um produto
tanto da minha própria necessidade de organizar a realidade desse modo e não de
algum outro modo, quanto da realidade objetiva dos elementos previamente
identificados.
Este quarto movimento - que vai de uma caracterização sinedóquica do
campo investigado até uma reflexão irônica sobre a impropriedade da ca-
racterização com respeito aos elementos que se opõem à inclusão na totalidade
hipotaticamente ordenada, ou àquela auto reflexividade acerca da natureza
construtivista do próprio princípio ordenador - tampouco é determinado pela
lógica. Tais desvios parecem corresponder àquelas “mudanças gestálticas” ou
“reestruturações” do campo perceptual que Piaget identificou no desenvolvimento
dos poderes cognitivos da criança quando passa de sua fase “sensório-motora”,
através da fase “representacional” e “operacional”, até alcançar o entendimento
“racional” da natureza da classificação em geral. Na formulação de Piaget, o que
efetua tais reestruturações (tropológi- cas) não é a lógica, porém uma combinação
entre as capacidades ontogené- ticas, de um lado, e as operações que permitem a
assimilação do mundo ex- íerior e a acomodação a esse mundo, de outro15. Pois
essas reestruturações são certamente tropológicas, tanto na espontaneidade dos seus
inícios sucessivos quanto nas modalidades de relacionamento entre a criança e a
sua “realidade”, que os modos de cognição identificados pressupõem mesmo na
sua caracterização por Piaget.
Com efeito, os estudos de Piaget sobre o desenvolvimento cognitivo da
criança nos fornecem uma visão perspicaz da relação entre, de um lado, um modo
trópico de prefigurar a experiência e, de outro, o tipo de controle cognitivo que
cada modo torna possível. A serem válidos os seus conceitos, derivados
experimentalmente das fases por que passa a criança em seu desenvolvimento
cognitivo, a base ontogenética da consciência figurativa se vê então
consideravelmente aclarada. Vico, a exemplo de Rousseau, Hegel e Nietzsche, via
na “lógica poética” modos de cognição não apenas dos poetas mas igualmente das
crianças e dos povos primitivos16. Contudo, nem Vico nem os outros pensadores

15 Jean Piaget, The Citild and Reality: Praklems ofGeneiic Psychology, trad. Arnold Rosin (New York,
1973), p. 16. Doravante citado no texto pelo número dn página.
16 Vico, The New Science, pp. 127 e ss.; J. J. Rousseau, “Essay on the Origin of Languagcx”, em On The Origin
of Lunguage: Two Essays by Jean Jacques Rousseau and Johann Gottfried Ilerder, trad. John H. Moran e
Alexander Godc (New York, 1966), pp. 11-13; e Fricdrich Nietzsche, Genealogy of Morais, trad. Francis
INTRODUÇÃO 2!

mencionados confrontaram esses modos prefigurativos de cognição por oposição


com os modos racionais; pelo contrário, todos eles consideram os tropos e figuras
como o alicerce sobre o qual se erigiu o conhecimento racional do mundo, tanto
assim que, principalmente para Vico e Hegel, o conhecimento racional ou
científico era pouco mais que a verdade proporcionada pela reflexão nos modos
prefigurativos alçados ao nível de conceitos abstratos e submetidos à crítica quanto
à consistência lógica, à coerência e assim por diante. Nem mesmo Rousseau e
Nietzsche - que opuseram por meio de antíteses os sentidos e a vontade res-
pectivamente à razão - estavam interessados em forçar uma escolha entre os modos
poéticos de cognição e os modos racionais ou científicos. Ao contrário, eles
estavam interessados na sua integração dentro de um conceito da plena capacidade
humana de dar um sentido ao mundo e, além disso, um sentido que não fracionasse
indevidamente os poderes da poiesis ou da noesis.
Conquanto não gostasse de ser incluído nessa linha de pensamento, Jean
Piaget demonstra o mesmo tipo de continuidade entre uma fase inicial,
naturalmente “metafórica”, no modo de a criança relacionar-se com o mundo, e o
tipo de manipulação “irônica” dos modos alternativos de classificar e manipular os
fenômenos próprios do adulto “racional”. Na fase mais antiga, sensório-motora,
diz ele, a criança vive numa preensão de um mundo de objetos “todos centrados no
corpo propriamente dito”, mas sem qualquer “coordenação entre eles” (p. 15).
Porém, se lhes falta esta coordenação mútua, eles são existencialmente
coordenados na consciência infantil como extensões homogêneas do próprio corpo
da criança. Não podemos, é claro, falar do pensamento da criança metaforicamente,
no modo da similitude; no entanto, estamos mais que autorizados a falar que a
criança vive a experiência da similitude, uma experiência em que está inteiramente
ausente a distinção entre o eu e o outro, entre continente e conteúdo. Assim, diz
Piaget a respeito desse estágio sensório-motor, que tem a duração de um ano e meio
na vida de uma criança normal, “há espaços egocêntricos, poderíamos dizer não-
coordenados, e que não incluem o corpo próprio como um conteúdo num
continente” (ibidem). Mas, se não quisermos invocar essa “existência no modo da
metáfora”, ou mesmo da similitude (uma vez que este último termo, para ser
significativo, teria de pressupor a apreensão da diferença), a ruptura ou transição
para o segundo estágio, por sua ocorrência e pelo modo de cognição que ela
possibilita, nos permite comparar a transição efetuada à de um “emprego de tropos”
que vai da consciência metafórica à consciência metonímica.
Piaget chama esta mudança de autêntica “revolução copernicana”, na qual se
cristaliza “a noção de um espaço geral que engloba todas essas variedades
particulares de espaços [egocêntricos], inclusive todos os objetos que se tornaram
sólidos e permanentes, sendo o próprio corpo um objeto entre os outros, [e] os
deslocamentos sendo coordenados e passíveis de serem deduzidos e previstos em
relação aos próprios deslocamentos” (pp. 15-16). Em outras palavras, a criança
sofreu um “desvio” no seu desenvolvimento, a partir de uma condição na qual ela

GolíTing (New York, 1956), pp. 177-184.


INTRODUÇÃO 2!

(de modo totalmente inconsciente, devemos supor) não faz qualquer distinção entre
ela própria e outros objetos ou entre objetos, salvo na medida em que estes se
relacionam com ela mesma. Aos dezoito meses, ou pouco mais ou menos, portanto,
vemos uma “descentralização total com respeito ao espaço egocêntrico primitivo”.
Essa descentralização (ou deslocamento) é uma condição necessária para o que
Piaget chama “a função simbólica”, cujo aspecto mais importante é a fala. Somente
graças à possibilidade de apreender relações de contiguidade é que se torna possível
esse processo de simbolização e, a fortiori, do próprio pensamento. Antes da
“revolução copernicana”, não há apreensão de relações contíguas; há apenas a
experiência intemporal, ilimitada, do Mesmo. Com o despontar de uma consciência
de contiguidade - que chamaríamos capacidade metonímica -, ocorre uma
transformação radical sem a qual seria impossível o “grupo de deslocamentos”
necessários para a simbolização, a linguagem e o pensamento (p. 16).
Então, mais uma vez, em torno dos 7 anos, afirma Piaget, outro “momento
decisivo e fundamental é percebido no desenvolvimento da criança. Ela se torna
capaz de uma certa lógica; torna-se capaz de coordenar operações no sentido da
reversibilidade, no sentido do sistema de conjunto”. E o estágio que Piaget chama
lógica pré-adolescente, a qual “não se baseia em enunciações verbais, porém apenas
nos próprios objetos” (p. 21). Será, diz ele, uma lógica das classificações,
22 TRÓPICOS DO DISCURSO

porque os objetos podem ser reunidos conjuntamente ou em classificações; ou, então, será uma
lógica das relações porque os objetos podem ser materialmente contados, mediante a sua manipulação.
Mas, se é uma lógica das classificações, relações c números, ainda não é uma lógica das proposições...
Trata-se de uma lógica no sentido em que as operações estão coordenadas, agrupadas em sistemas de
conjunto, que têm as suas leis como tolalidad.es. E cumpre- nos insistir veementemente na necessidade
dessas estruturas de conjunto para a elaboração do pensamento (pp. 20-21).

O que Piaget descobriu, se ele estiver certo, é a base genética do tropo da si-
nédoque, essa figura de retórica ou de poética que constitui os objetos como partes
de totalidades ou congrega entidades como elementos de um todo que comparte as
mesmas naturezas essenciais. Na criança com idade entre 7 e 12 anos, esta
operação ainda é pré-Iógica em sentido estrito, pois que depende da manípulabi 1
idade física dos objetos que estão sendo classificados; não se trata de uma operação
que normalmente possa ser levada a cabo somente pelo pensamento.
Todavia, com o início da adolescência esta última operação se torna
possível:

A criança não apenas se torna capaz de raciocinar e de deduzir sobre objetos manipuláveis, como
varetas para arrumar, inúmeros objetos para reunir etc., mas também se torna capaz de lógica e de
raciocínio dedutivo sobre teorias e proposições... todo um conjunto de operações específicas se sobrepõem
às operações anteriores, e que se pode chamar de lógica das proposições (p. 24).

Observemos, contudo, o que é pressuposto serem as bases para a ratificação dessas


novas operações. Primeiro que tudo, há a dissociação do pensamento dos seus
possíveis objetos, uma capacidade de refletir sobre a própria reflexão, o que
Collingwood chamou de “consciência de segunda ordem” ou “pensamento sobre
o pensamento”17*. Piaget dá ao produto dessa dissociação
0 nome de “combinatória” (“combinatoire”): “Até então, tudo era feito gra-
dualmente por uma série de encaixes sucessivos; ao passo que a combinató- ria
liga qualquer elemento a outro qualquer. Existe, pois, uma característica nova, que
repousa sobre uma espécie de classificação de todas as classificações ou de
seriação de todas as seriações" (p. 24). Ademais, ela produz um sistema mental
que se pode contrapor à ordem casual ou à desordem apreendida da experiência e
servir como um controle tanto da percepção quanto das operações mentais dos
tipos anteriores, que, por sua natureza, continuam inadequados à prãxis do mundo
social e do material: “A lógica das proposições irá supor, outrossim, a combinação
num sistema único dos diferentes agrupamentos que até agora se baseavam ou na
reciprocidade ou na inversão, nas diferentes formas de reversibilidade” (pp. 24-
25). A cristalização dessas capacidades no adulto jovem lhe confere o poder de um
pensamento que é nao apenas consciente mas também ««inconsciente, não apenas
crítico das operações dos estágios anteriores da consciência (metafórico,
metonímico e sinedóquico) mas também crítico das estruturas dessas mesmas

17 S. R. G. Collingwood, The Ide a of History (New York, 1956), pp. 1-3; ver também Louis O. Mink, Mind,
History, and Dialcct: The Philoxophy ofR. G. Collingwood (Bloomíngton e London, 1969), pp. 82-92.
INTRODUÇÃO 23

operações. Podemos então dizer que, com o despontar da consciência adulta, a


criança se torna capaz não apenas de lógica, como ressalta Piaget, mas também de
ironia - a capacidade não só de dizer coisas sobre o mundo de uma maneira
particular mas também de dizer coisas sobre ele de maneiras alternativas - e de
refletir sobre essa capacidade do pensamento (ou linguagem; não importa,
porquanto Piaget, nesse estágio, combina as duas) de dizer uma coisa e significar
uma outra, ou significar uma coisa e dizê-la num grande número de formas
alternativas ou até mutuamente exclusivas ou ilógicas.
Se para Piaget o pensamento lógico é a forma mais elevada de pensamento,
vendo nele o estágio final para o qual tende todo o desenvolvimento cognitivo do
indivíduo, seguir-se-ia que os modos de cognição anteriores, que representam os
estágios anteriores, constituiriam formas de pensamento inferiores. Mas Piaget não
propõe esta linha de argumentação. Ao contrário, ele salienta que, no processo de
desenvolvimento, um dado modo de cognição não é tão obliterado quanto é
preservado, transcendido e assimilado ao modo que lhe sucede no processo
ontogenético. Seria possível imaginar, então, que nas situações em que poderíamos
desejar romper com o controle de uma dada cadeia de raciocínio lógico, a fim de
impedir que as implicações se derivem dela por dedução, ou de reconsiderar a
adequação da premissa maior ou da menor de um dado exercício hipotético-
dedutivo, poderíamos considerar que a reversão (ou regressão?) para um modo
mais “primitivo” de conhecimento é representada pelos estágios anteriores, pré-
lógicos, no processo de evolução. Esse movimento representaria uma “virada”
metalógica em relação à própria lógica no interesse de re-situar a consciência com
relação ao seu ambiente, de redefinir a distinção entre o eu e o ambiente ou de
reconceituar a relação entre o eu e o outro segundo modos especificamente não-
lógicos, mais intimamente imaginativos.
Na verdade, um resvalamento inconsciente ou involuntário para um modo
pré-Iógico de compreender a realidade seria apenas um erro ou, melhor, uma
regressão, semelhante aos desvios que os filósofos condenam quando se deparam
com uma metáfora tomada literalmente. Porém esses desvios, quando
empreendidos com o fito de submeter à crítica o próprio pensamento lógico e de
questionar-lhe as pressuposições, estrutura ou adequação a uma relação
existencialmente satisfatória com a realidade, configurariam a poesia, que, na
definição de Hegel, seria o uso consciente da metáfora para nos libertar da tirania
das sobredeterminações conceituais e que, para Nietzsche, personificava a ruptura
dionisíaca das formas de individuação que uma consciência apolínea sem oposição
teria petrificado numa “rigidez egípcia”19. A lógica não pode presidir a essa ruptura
consigo própria, pois lhe falta uma base que lhe faculte servir de árbitro entre as
exigências dos sistemas lógicos conflitantes, muito menos entre os tipos de co-
nhecimento que derivamos, de um lado, das operações lógicas e, de outro, das
operações dislógicas ou analógicas. A consciência metafórica seria uma forma
primitiva de conhecimento na ontogênese da consciência humana em sua passagem
da infância para a maturidade, mas, na medida em que constitui o modo
fundamental da apreensão poética em geral, ela é um modo de situar a linguagem
24 TRÓPICOS DO DISCURSO

com respeito ao mundo exatamente tão autoritário quanto a própria lógica.


Antes de mais nada, o que poderíamos entender por discurso é esclarecido
pela oposição da consciência metafórica à consciência irônica sugerida pela teoria
do padrão ontogenético do desenvolvimento cognitivo na criança, teoria elaborada
por Piaget. No que diz respeito às quatro fases do desenvolvimento da criança, o
tipo de “lógica” que desponta na quarta fase é tão primitivo, quando se julga a partir
dos modelos dos lógicos formais, quanto parece ser a consciência “metafórica” da
criança quando comparada à complexa manipulação de metáforas características
do poeta maduro. Todavia, esta fase não é mais “humana” nem mais “natural” do
que a outra. E o discurso em si, a operação verbal por meio da qual a consciência
indagadora situa seus próprios esforços para submeter ao controle cognitivo um
domínio problemático da experiência, pode ser definido como um movimento
através de todas as estruturas de relacionar o eu com as outras estruturas que, na
consciência plenamente amadurecida, permanecem implícitas como diferentes
formas de conhecimento.
O que Piaget não percebe, mas que a teoria linguístico-retórica e poética dos
tropos mostra, são as relações de afinidade e oposição que existem entre os quatro
modos de cognição identificados como estágios sucessivos nesta teoria do
desenvolvimento da criança. Piaget distingue urna sequência de estágios, onde
cada estágio cristaliza o anterior, se lhe superpõe e lhe sucede. Ao mesmo tempo,
insiste na ruptura radical entre a primeira fase, ou egocêntrica, e a segunda,
descentrada. “Em outras palavras, aos 18 meses não é exagero falar de uma
revolução copernicana (no sentido kantiano do termo). Há aqui uma reviravolta
completa, uma descentralização total com relação ao espaço egocêntrico primitivo”
(p. 16). Evidentemente, durante a fase anterior a criança adquire a linguagem, a
capacidade de simbolizar; mas essa aquisição é possibilitada pelas operações da
fase sensório-motora, de modo que aquilo que a criança adquire na fase
simbolizante subsequente já está presente na práxis do estágio inicial.
Piaget fica intrigado com o fato de as operações lógicas não surgirem
simultaneamente ao aparecimento da fala e da função simbólica. Sua refle-

39. G. W. F. Hegel, The Philosophy of Fine An, trad. F. P. B. Osmaston (London, 1920), 4:243-4; Friedrich
Nietzsche, The Binh ofTragcdy, trad. Francis Golffing (New York, 1956), pp. 22, 51, 65.
xão sobre esta confusão se baseia no conceito de “interiorização”. “Por que”,
pergunta ele, “temos de esperar oito anos para adquirir a invariante da substância,
e mais tempo ainda para chegar às outras noções, em vez de elas aparecerem no
momento em que há uma função simbólica, ou seja, a possibilidade de pensar e não
apenas de agir materialmente? ” E sua resposta é: “Pela razão fundamental de que
as ações que permitiram alguns resultados no terreno da efetividade material não
podem ser interiorizadas sem mais e de maneira imediata, e de que se trata de
reaprender no plano do pensamento o que jãfoi aprendido no plano da ação”. E
conclui: “Essa in- teriorização é na realidade uma nova estruturação; não é apenas
uma tradução, mas uma reestruturação, com uma decaiagem que toma um tempo
considerável” (pp. 17-18).
INTRODUÇÃO 25

Eu diria que o que temos aqui é a redescoberta, por Piaget, de um princípio


de criatividade cognitiva análogo à tradicional teoria pós- renascentista dos tropos,
quando não uma teoria inspirada nesta. Certamente, Piaget está preocupado com as
fases de um processo evolutivo que se estende ao longo de um espectro sincrônico
(e é elaborado ao longo de uma série diacrônica) que vai de um estado que
dificilmente se poderia chamar consciência até um estado de elevada
autoconsciência. Esse processo, ele o explica em função das operações pré-
cognitivas pelas quais o organismo efetua a assimilação dos objetos exteriores ou
a acomodação a eles quando deixa de acontecer a assimilação. São essas, pelo
menos nas fases originárias, operações eminentemente práticas que, por assim
dizer, ou ativam os esquemas conceituais implicitamente presentes na consciência
da criança no nascimento, ou os criam por meio de uma adequação do organismo
às condições de existência no mundo. Em todo caso, não supomos que esses es-
quemas - modelos, por assim dizer, dos modos de construir relações - tenham sua
origem na fala, porquanto a primeira modalidade precede o despontar da linguagem
na criança; nem em alguma lógica natural própria da criança, já que o pensamento
lógico não surge juntamente com a fala. Todavia, o que as teorias de Piaget sugerem
é que os tropos de figuração, metáfora, metonímia, sinédoque e ironia, que são
utilizados nos processos conscientes da poiesis e na formação do discurso, se
baseiam de alguma forma na dotação psicogenética da criança, cujas bases
aparecem seqüencialmente no quádruplo desenvolvimento fásico que Piaget
denomina sensório-motor, representacional, operacional e lógico.
Obviamente, ocorre-nos a ideia de que Piaget não descobriu essas fases,
porém as impôs aos seus dados derivados experimentalmente (ou dispôs as
experiências de molde a permitir a sua caracterização exatamente dessa forma)
mediante algum tipo de projeção de sua própria concepção da natureza dos tropos
de figuração. Se a evolução da capacidade cognitiva do homem prefigura de fato a
forma arquetípica do próprio discurso, ou se o discurso é uma recapitulação do
processo do desenvolvimento cognitivo, semelhante ao modo como a criança chega
a uma compreensão não só da sua “realidade”, mas também da relação entre a
realidade e a sua consciência, então pouco importa se Piaget impôs ou não essas
formas aos dados. Seu gênio se teria revelado nos modos como aplicou um
arquétipo do discurso — o processo pelo qual todos conferimos sentido à realidade
e, no melhor dos casos, levamos em conta o nosso empenho em conferir tal sentido
- ao processo evolutivo do crescimento cognitivo na criança.
Em Metahistory5 e em vários ensaios contidos neste livro18, mostrei de que
modo determinados analistas dos processos da consciência parecem projetar neles
o padrão quádruplo dos tropos, a fim de representá-los e mapear o crescimento
desde o que se poderia chamar de apreensões ingênuas (ou metafóricas) da
realidade até as compreensões auto-reflexivas (e irônicas) dela. Este padrão de
representação, a meu ver, Vico e Nietzsche analisam como sendo a “lógica” da
poiesis, e Hegel e Marx como sendo a lógica da noesis. Se Piaget forneceu uma

18 Caps. 1,5, 8,9, II e 12.


26 TRÓPICOS DO DISCURSO

base ontogenética para esse padrão, ele acrescenta uma outra confirmação, mais
positivista, da sua natureza arque- típica.
A ubiquidade desse padrão de prefiguração tropológica, especialmente na
forma como é utilizada como chave para um entendimento do discurso ocidental
sobre a consciência, suscita inevitavelmente a questão do seu status de fenômeno
psicológico. Se ela apareceu universalmente como um modelo analítico ou
representacional para o discurso, poderíamos tentar dar-lhe o crédito de “lei”
genuína do discurso. Mas, evidentemente, não reivindico para ela o status de lei
do discurso, nem mesmo do discurso sobre a consciência (já que há um grande
número de discursos em que o modelo não aparece plenamente na forma sugerida),
mas apenas o status de um modelo que reaparece constantemente nos discursos
modernos sobre a consciência humana. Reivindico para ela apenas a força de uma
convenção no discurso sobre a consciência e, de modo secundário, no discurso
sobre o próprio discurso, na moderna tradição cultural do Ocidente. E, além disso,
a força de uma convenção que em sua maior parte não foi reconhecida como tal
pelos seus vários reinventores dentro da tradição do discurso sobre a consciência
desde o começo do século XIX. Piaget é apenas o último de uma longa linhagem
de pesquisadores, empíricos e idealistas, que redescobriram ou reinventaram o
esquema quádruplo dos tropos, transformando-o no modelo dos modos de
associação mental característicos da consciência humana, seja ela uma estrutura,
ou um processo. Freud também pode ser incluído na lista desses reinventores ou
redescobridores da estrutura tropológica da consciência, como demonstra
amplamente o famoso Capítulo VI, “A Atividade do Sonho”, de A Interpretação
dos Sonhos. Nessa obra, Freud fornece a base para a crença na operação dos
esquemas tropológicos de figuração no nível do inconsciente; e sua obra pode ser
considerada complementar à de
Piaget, cuja preocupação fundamental era analisar o processo pelo qual se efetiva
o emprego consciente e autoconsciente de tropos.
Na análise da atividade onírica, Freud dá pouca atenção ao desenvolvimento
diacrônico dessa forma de poiesis denominada sonho; e na verdade não se ocupa
muito das fases pelas quais passamos na composição de um sonho. Pelo menos,
não se ocupa disso como o faz Harold Bloom na sua análise do desenvolvimento
fásico de composições conscientes como os poemas líricos. Freud percebia sem
dúvida que o discurso consciente, ou “vígil”, se desenvolve por fases; pois esse
tropo irônico que ele chamou revisão secundária costuma atuar na poiesis
consciente como tropo preponderante, na medida em que todo discurso deve ser
algo que evolui sob a égide da defesa psicológica chamada racionalização 19. Há,
sem dúvida, indícios de uma certa dimensão diacrônica na atividade onírica,
porquanto a revisão secundária parece requerer alguma ação anterior de
condensação, deslocamento ou representação, os outros mecanismos identificados
por Freud, para que ela venha a ser ativada; a revisão secundária necessita de

19 Freud, T/ie Interpreiution of Dreams, trad. James Stracliey (New York, 1965), pp. 526-544.
INTRODUÇÃO 27

alguma “matéria” com que possa trabalhar, e esta é fornecida pelos outros mecanis-
mos da atividade onírica. Mas isso é relativamente pouco importante para o seu
propósito, que é fornecer um método analítico para desconstruir os sonhos
completados e revelar os “pensamentos oníricos” latentes que se emboscam no
interior deles na qualidade de seus verdadeiros “conteúdos”, em oposição aos seus
conteúdos manifestos.
O que me interessa aqui, obviamente, são os mecanismos que Freud
considera responsáveis pelas mediações entre os conteúdos manifestos do sonho e
os pensamentos latentes do sonho. Estes parecem corresponder, como sugeriu
Jakobson20, aos tropos sistematizados como as classes da figuração na moderna
teoria da retórica (teoria com a qual, incidentalmente, na medida em que classifica
as figuras nos quatro tropos da metáfora, da meto- nímia, da sinédoque e da ironia,
Freud estaria familiarizado, por ser um componente do currículo educacional dos
colégios e faculdades de sua época). Pode parecer que sua “descoberta” dos
processos de “condensação”, “deslocamento”, “representação” e “revisão
secundária” esteja sendo minada pelos indícios de que ele apenas redescobrira na
psícodinâmica do ato de sonhar, ou inconscientemente lhe impusera, modelos
transformativos que já haviam sido plenamente explicados, e ma is ou menos nos
mesmos termos utilizados por Freud, como os tropos da retórica.
Mas não queremos subestimar a originalidade da iniciativa de Freud apenas
por termos descoberto que os seus mecanismos da atividade onírica correspondem
quase ponto por ponto às estruturas dos tropos, em primeiro lugar porque o próprio
Freud compara explicitamente os mecanismos da atividade onírica com os da
poiesis e até se vale da terminologia da figuração para descrever estes processos21;
em segundo lugar, porque o propósito do empreendimento de Freud é
suficientemente amplo para lhe permitir apro- priar-se de um domínio da análise
cultural a fim de aplicar os seus princípios a um aspecto limitado desse
empreendimento, sem de modo algum subestimar a envergadura da sua realização
total; e, em terceiro lugar, porque foi uma proeza genial identificar os processos da
atividade do sonho com os processos da consciência vígil, mais imaginativos do
que racionais. Mais importante, porém, para quem quer que se interesse pela teoria
do discurso em geral e do discurso sobre a consciência em particular, a paciente
análise de Freud dos mecanismos da atividade onírica propicia um conhecimento
das operações do pensamento vígil, que se encontra entre as faculdades ima-
ginativas e as faculdades racionais e busca conscientemente servir de mediador
entre estas faculdades, vale dizer, as operações do próprio discurso. Se tiver
identificado corretamente, com os seus próprios termos, a natureza quádrupla dos
processos que atuam na atividade onírica, Freud terá dado uma importante
contribuição para a compreensão dos mesmos processos conforme operam no

20 Roman Jackobson, “Two Types of Language and Two Types of Aphasic Disturbancc”, em Roman Jakobson
e Morris Halle, Fundamentais of Language (The Hague e Paris, 1971), p. 95. Cf. Emile Benveniste, “Remarks
on the Function of Language in Freudian Theory”, em Prahlems in General Linguística, trad. Mary Elizabeth
Meek (Coral Gablex, 1971), pp. 65-75.
21 Ver Freud, Interpretatitm of Dreams, pp. 374-384.
28 TRÓPICOS DO DISCURSO

discurso, servindo de mediadores entre a percepção e a conceituação, a descrição e


o argumento, a mimese e a diegese - ou quaisquer outros termos dicotômicos que
se queiram utilizar para indicar a mistura do nível poético e do noético da
consciência, entre os quais o próprio discurso procura servir de mediador a bem do
“entendimento”.
Não vou explicar a correspondência entre os quatro mecanismos da atividade
do sonho, na forma como os descreveu Freud, e os quatro tropos principais da
figuração. Essa correspondência está longe de ser perfeita, como Todorov
demonstrou muito claramente22, mas é suficientemente justa para nos permitir ver
que a análise de Freud das mediações entre os pensamentos oníricos e os conteúdos
oníricos é uma chave para o entendimento dos mecanismos que, na consciência
vígil, nos permitem mover-nos na direção oposta, isto é, das figurações poéticas da
realidade para as suas compre- ensões noéticas. Ou, para falar em termos da teoria
do discurso, quando reconhecemos a noção freudiana de que os mecanismos da
atividade onírica são equivalentes psicológicos daquilo que os tropos são na
linguagem e os padrões transformacionais no pensamento conceituai, torna-se
possível relacionar os elementos miméticos e diegéticos em toda representação da
realidade, quer na consciência durante o sono, quer na consciência vígil.
Mostrei de que forma Marx antecipou a descoberta desses padrões
transformacionais na sua análise das Formas de Valor em O Capital e de que forma
usou essas estruturas metafóricas para assinalar os estágios de um processo
diacrônico, tais como os acontecimentos na França entre 1848 e 1851 em O Dezoito
Brumário de Luís Bonaparte23. Mas este último aspecto da teoria dos tropos - isto
é, sua função de sinais de estágios na evolução da consciência - pode ser explicado
de modo mais concreto, talvez, se for aplicado à obra de um historiador cujo
método é um pouco mais “empírico” do que se supõe tenha sido o de Marx, ou pelo
menos de um historiador que afirme estar quintessencialmente envolvido mais com
a “realidade histórica concreta” do que com a “metodologia”. Refiro-me à obra de
E. R Thompson, The Making of the English Working Class, um livro elogiado por
estudiosos de orientações ideológicas diversas graças à mestria do detalhe factual,
à abertura geral do plano e à rejeição explícita da metodologia e da teoria abstrata.
A obra de Thompson versa tanto sobre o desenvolvimento da consciência da classe
trabalhadora durante um breve lapso de tempo quanto sobre os acontecimentos,
personalidades e instituições que manifestam esse desenvolvimento em formas
concretas; e, como tal, ela fornece mais uma prova, seja da ubiqüidade do modelo
tropológico para a representação de estágios do desenvolvimento da consciência
(no caso, de um grupo), seja (admitindo-se que Thompson tenha descoberto por
assim dizer as suas categorias em vez de tentar impô-Ias) uma prova de que essas
categorias são realmente os tipos dos modos da consciência pelos quais passam os
grupos cuja evolução se dá num movimento finito que vai de uma condição ingênua
a uma condição irônica.

22 Ver Tz vetan Todorov, “La Rhétorique de Freud”, cm Thêorks du xymhole (Paris, 1977), pp. 303, 315-316.
23 White, Mela history, pp. 320-327.
INTRODUÇÃO 29

No começo do seu discurso, Thompson define explicitamente o que entende


pelo termo classe\ para ele, não se trata de uma coisa ou entidade, mas antes de
uma “relação”. Ele nos diz que “a classe ocorre quando alguns homens... sentem e
dizem que seus interesses se identificam entre eles mesmos, e em contraste com
outros homens cujos interesses diferem dos deles (e não raro se lhes opõem)” 20. E
observa: “Podemos distinguir uma lógica nas reações de grupos ocupacionais
semelhantes que passam por experiências semelhantes, porém não podemos
predizer nenhuma lei”. E, ainda assim, as fases em que Thompson divide a
evolução da consciência da classe trabalhadora no seu livro são bastante
previsíveis, não no que tange às vezes em que as fases específicas tomaram forma,
mas tanto no conteúdo das diversas fases (consideradas como estruturas da
consciência) quanto na sequência específica da sua elaboração. De modo não
surpreendente, esta determinação das fases e das suas estruturas se adequa ao que
Marx explicitou tanto em seu estudo dos modos pelos quais a consciência constrói
as relações entre as comunidades, quanto na sua análise das fases por que passou
supostamente a consciência socialista, análise que figura no apêndice ao Manifesto
Comunista21. Isso não implica que Thompson deva ser considerado menos
seriamente por ter imposto um padrão à sua matéria; pois é impossível imaginar
que ele tenha feito alguma coisa mais. Aliás, tanto o livro quanto a teoria
tropológica da consciência ganham maior envergadura a partir do fato de que ele
aparentemente descobriu as fases em questão. A autoridade histórica do seu livro
é reforçada pelo cuidado e atenção dados aos detalhes com que determinou a
cronologia específica das fases na sequência .
Thompson discorda, de um lado, dos marxistas vulgares e, de outro,
igualmente dos sociólogos positivistas comuns, devido às tendências
abstracionistas destes. Ele se declara uma espécie de realista: “Estou convencido
de que não podemos compreender a classe a menos que a consideremos uma
formação social e cultural, que se origina de processos que só podem ser estudados
na medida em que atuam durante um período histórico considerável” (p. 11). Eis o
famoso aceno à concretude e aos “contextos históricos reais” que costumamos
achar em oponentes da metodologia e da teorização abstrata, principalmente do
tipo inglês, de índole prática.
Porém, no mesmo instante em que expunha Smelser e Dahrendorf ao
ridículo, Thompson escreve logo na fase seguinte: “Este livro [o dele próprio] pode
ser lido como se fosse uma biografia da classe trabalhadora inglesa, desde a sua
adolescência até o início da sua maturidade” (ibidem), como se a biografia não
fosse um gênero problemático e as categorias adolescência e início da maturidade
não constituíssem metáforas culturalmente determinadas, tratadas como realidades
“concretas”. E então, quando Thompson prossegue para oferecer uma esboço da
sua história, ele conceitua as suas fases segundo modos que, se não predizem
nenhuma lei da história, satisfazem perfeitamente os requisitos de previsibilidade
da composição de discursos como o seu. O movimento quádruplo é explicitamente
englobado, e por curioso que isso possa parecer, como um padrão muito mais
construído que simplesmente descoberto:
30 TRÓPICOS DO DISCURSO

O livro é escrito como segue. Na Parte I, oeupo-me das tradições populares vigentes 110 século
XVIII, que influenciaram a decisiva agitação jacobina de 1790. Na Parte II, passo tias influências
subjetivas às objetivas - as experiências de grupos de trabalhadores durante a Revolução Industrial que
me parecem especialmente significativas. Além disso, procuro fazer um balanço do caráter da nova
disciplina de trabalho industrial e do modo como a Igreja Metodista se apoiou nela. Na Parte 11], retomo
a história do Radicalismo plebeu e conduzo-a através do Luddismo até a idade heróica no final das
Guerras Napoleônicas. Por fim, analiso alguns aspectos da teoria política e da consciência de classe nos
anos de 1820 e 1830 (p. 12).

Por que essas divisões no discurso? Thompson insiste em dizer que não está
fornecendo uma “narrativa consecutiva”, mas tão-somente um “grupo de estudos
sobre temas correi atos” (ibid.). Mas o título, com a sua proeminente caracterização
do gerúndio “making”, sugere a natureza ativista e construtivista tanto do tema
tratado quanto do discurso sobre esse tema, ao passo que as partes do discurso
delineadas no prefácio sugerem a “lógica” da organização tropológica.
A Parte I, intitulada “A Árvore da Liberdade”, concentrando-se nas
“tradições populares”, obviamente está ligada apenas à existência de uma classe
vagamente apreendida; trata-se da consciência da classe trabalhadora que desperta
para si mesma, como diriam os hegelianos, mas que capta a sua particularidade
apenas em termos gerais, o tipo de consciência que chamaríamos metafórica, na
qual os trabalhadores apreendem as suas diferenças dos ricos e percebem a sua
semelhança mútua, mas são incapazes de organizar-se, salvo em função do desejo
geral de uma “liberdade” indefinida. AParte 11, intitulada “A Maldição de Adão”,
é um longo discurso, no qual as diferentes formas de existência da classe
trabalhadora, determinadas pela variedade de tipos de trabalho no panorama
industrial, se cristalizam em espécies distintivas, onde o conjunto nada mais tem
que os elementos de uma série. O modo da consciência de classe descrito nessa
seção é metonímico, correspondendo ao modelo da Forma Prolongada do Valor
que Marx explica no discurso sobre as Formas de Valor em O Capital2*. “Os
trabalhadores eram obrigados a um apartheid social e político durante as [Guerras
Napoleônicas]”, diz-nos Thompson; “... o povo era submetido simultaneamente a
uma intensificação de duas formas intoleráveis de relacionamento: a da exploração
econômica e a da opressão política” (pp. 198-199). Todo o período que está sendo
estudado é um período em que “sentimos a pressão geral de longas horas de
trabalho insatisfatório, sob rígida disciplina e para propósitos alheios” (pp. 445-
446). Este, diz Thompson no término da seção, “estava na origem daquela
‘fealdade’ que, como escreveu D. H. Lawrence, ‘traía o espírito do homem do
século XIX’. Dissipadas todas as outras impressões, permanece esta: juntamente
com a da perda de qualquer coesão sentida na comunidade, salvo aquela que os
trabalhadores, em oposição ao seu trabalho e aos seus patrões, construíram para si
próprios” (p. 447).
A Parte III, intitulada “A Presença da Classe Trabalhadora”, assinala um
novo estágio no crescimento da consciência de classe, a verdadeira cristalização
de um nítido espírito de “classe trabalhadora” entre os trabalhadores. Em face da
opressão e da força usadas para destruí-los, principalmente em Peterloo no ano de
INTRODUÇÃO 31

1819, os trabalhadores adquiriram um novo senso de unidade ou identidade das


partes com o todo - o que chamaríamos de consciência sinedóquica e o que Marx,
no seu estudo das Formas de Valor, classificava como “Forma Generalizada”24.
Somente neste estágio é-nos permitido - adverte-nos Thompson - falar da
“consciência dos trabalhadores em relação a seus interesses e à sua situação
enquanto classe”. Os trabalhadores aprenderam a considerar suas próprias vidas parte de uma
história geral de conflitos entre as “classes industriosas” frouxamente definidas, de um íado, e a Câmara
dos Comuns não-refor- inada, de outro. De 1830 em diante [portanto] estava em maturação uma
consciência dc classe mais claramente definida, no sentido marxista corriqueiro, na qual os trabalhadores
estavam cientes de continuar por conta própria tanto as velhas quanto as novas lutas (p. 712).

Isso conduz ao último capítuio do livro, que não é uma parte separada, mas apenas
um capítulo que trata da teoria política e dos aspectos da consciência de classe
manifestados na cultura literária e intelectual dos anos de 1820 e 1830.
O relato da quarta fase está impregnado de melancolia, produto da percepção
de uma situação irônica, visto que ele assinala não apenas a ascensão da
consciência de classe à autoconsciência, mas também e ao mesmo tempo a cisão
fatal do próprio movimento da classe trabalhadora. A esse podemos chamar o
estágio da ironia, pois o que está envolvido aqui é o surgimento e o
enfraquecimento simultâneos de dois ideais que poderiam ter dado ao movimento
da classe trabalhadora um futuro radical: o internacionalismo, de um lado, e o
sindicalismo industrial, de outro. Mas, observa Thompson, encerrando a sua obra
com uma nota de melancolia: “Esta visão se perdeu, quase tão depressa quanto fora
encontrada, nas terríveis derrotas de 1834 e 1835” (p. 830). O ganho específico foi
uma espécie de resíliência de classe e o orgulho de pertencer à classe trabalhadora,
mas estes tendiam tanto a isolar os trabalhadores dos seus patrões quanto a
contribuir para a sua organização pela conquista de modestas reformas sindicais.
Na superfície da sociedade, artesãos românticos e radicais continuaram a debater
os seus pontos de vista sobre a natureza do trabalho, o lucro e a produção; porém
ambos fracassaram e, além do mais, contribuíram para uma cisão entre os
intelectuais com relação à natureza da obra, cisão que persistiu até os dias de hoje,
criando duas culturas nas quais, segundo Blake, “mente alguma poderia sentir-se
em casa” (p. 832). Daí a ironia com que o próprio Thompson conclui o seu grande
livro: “Na impossibilidade de duas tradições chegarem a um ponto de junção, algo
se perdeu. Quanto não podemos saber ao certo, pois estamos entre os perdedores”.
Daí, também, o perdoável senti mental is- mo com que acrescenta: “Entretanto, os
trabalhadores não deveriam ser vistos apenas como as miríades perdidas da
eternidade. Eles também cultivaram durante cinqüenta anos, e com incomparável
firmeza, a Arvore da Liberdade. Talvez lhes devamos ser gratos por esses anos de
cultura heróica” (iibid.).
Demorei-me nesse desempacotamento tropológico da estrutura do discurso
de Thompson porque, diferentemente de Piaget e de Freud em suas análises da

24 Thompson, The Eiiglixh Working Class, p. 711; cf. Marx, Capital, 1:37-42.
32 TRÓPICOS DO DISCURSO

consciência, Thompson afirma estar atentando em primeiro lugar para a “realidade


histórica concreta”, e não para a aplicação de um “método”. Ademais, conquanto
estivesse preocupado com a consciência humana, preocupava-se com ela como
fenômeno de grupo social, e não como fenômeno individual. Se louvamos (como
muitos o fizeram) a sua afirmação de que derivou de uma consideração empírica
da evidência as suas categorias a fim de discernir entre fases diversas no
desenvolvimento dessa consciência de grupo, então foi alcançado algum tipo de
confirmação empírica da atuação de modos tropológicos na consciência de grupo.
Se considerarmos que ele impôs esses modos à esfera geral de fenômenos por ele
estudados, como um meio de caracterizã-la segundo um modo puramente
hipotético, com o único fito de delinear as estruturas mais amplas de sua
representação no seu discurso sobre ela, teremos então de perguntar por que um
intérprete de “dados” tão sutil encontrou esse padrão tropológico para organizar o
seu discurso, e não algum outro.
Se, entretanto, concordamos em que a estrutura de qualquer discurso
complexo, isto é, autoconsciente e autocrítico, espelha ou reproduz as fases por
que a própria consciência deve passar na sua progressão de uma compreensão
ingênua (metafórica) para uma compreensão autocrítica (irônica) de si mesma,
então deixa de existir a necessidade de uma escolha entre os juízos alternativos
acima arrolados. É uma característica do próprio grau elevado de autoconsciência
discursiva de Thompson ter ele encontrado o padrão de desenvolvimento no
“making” da consciência da classe trabalhadora inglesa, que atuava no próprio
“ma/cmg” do seu discurso. O modelo que Thompson distinguiu na história da
consciência de classe do trabalhador inglês talvez tenha sido tanto imposto aos
seus dados quanto descoberto neles, mas o problema aqui, seguramente, não é se
algum modelo foi imposto, mas o cuidado demonstrado na escolha do modelo
utilizado para ordenar o processo que está sendo representado. Este cuidado se
revela na sua escolha, planejada ou intuitiva, de um modelo que por muito tempo
esteve associado à análise dos processos de consciência na retórica e na poética,
na dialética e, como já mostramos, na psicologia experimental e também na
psicanálise. Para onde mais deveria Thompson ter-se voltado a fim de obter o
modelo de um processo de consciência, principalmente um modelo cujas fases e
modalidades de estruturação dessas fases tivessem de ser construídas como
produtos de alguma combinação de teoria e prática, de processos conscientes e
inconscientes de (auto)criação?
Se Thompson não aplicou conscientemente a teoria dos tropos à repre-
sentação que fez da história do seu tema, ele adivinhou ou reinventou esta teoria
na composição do seu próprio discurso. Não gostaríamos de dizer que as suas fases
devem ser equiparadas àquelas discernidas por Piaget no desenvolvimento das
faculdades cognitivas da criança, ou por Freud nas mediações efetuadas entre o
nível manifesto e o latente do sonho na análise que fez da atividade onírica. Esses
níveis parecem ser estruturas análogas, em vez de réplicas de um modelo teórico
comum implicitamente conservado por três analistas de três diferentes tipos de
matéria. Mas o fato de essas três estruturas análogas figurarem na obra de
INTRODUÇÃO 33

pensadores tão distintos no modo de interpretar os problemas da representação e


da análise, os objetivos que eles impõem aos seus discursos, e suas concepções
conscientemente mantidas acerca da estrutura da própria consciência - esse fato
parece constituir razão suficiente para que se trate a teoria da tropologia como um
valioso modelo de discurso, se não da consciência em geral.
Ora, a pergunta que deve vir à baila a essa altura do nosso próprio discurso é
esta: por que privilegiar a teoria linguística dos tropos como sendo o termo comum
destas várias teorias de diferentes tipos de consciência, em vez de tratar os tropos
como expressões linguísticas dos próprios modos de consciência? Por que não dizer
“condensação”, “deslocamento”, “representação” e “revisão secundária”, como o
fez Freud; “sensório-motor”, “representacional”, “operacional” e “lógico”, como o
fez Piaget; “elementar”, “prolongada”, “generalizada” e “absurda”, como o fez
Marx; ou, no caso em apreço, por que não utilizar a terminologia quádrupla que
Hegel usou na sua análise dos modos da consciência? 3” A primeira resposta a essas
perguntas deve ser que, na medida em que lidamos com o discurso, estamos lidando
com o que são, afinal, artefatos verbais; e que, portanto, uma terminologia derivada
do estudo de artefatos verbais poderia, diante das circunstâncias, reivindicar a
prioridade para nossos propósitos nessa ocasião. Mas a segunda resposta é que, na
medida em que estamos lidando com estruturas da consciência, estamos
familiarizados com essas estruturas apenas no modo como se manifestam no
discurso. A consciência, nos seus aspectos ativos e criativos, em contraste com os
seus aspectos passivos, reflexivos (tal como se manifestam nas operações da
criança de Piaget no estágio sensório-motor, por exemplo), é mais diretamente
passível de apreensão no discurso e, além disso, no discurso orientado por intenções
suscetíveis de formulação, metas ou objetivos de compreensão. Essa compreensão
não é, supomos, um estado afetivo que se cristaliza espontaneamente no limiar da
consciência sem um mínimo de esforço consciente da vontade de conhecer. Essa
vontade de conhecer, por sua vez, não toma forma a partir de uma comparação entre
uma consciência inteiramente desprovida de intenção e o ambiente que ela ocupa.
Deve tomar forma a partir de uma percepção da diferença entre as figurações
alternativas da realidade em imagens retidas na memória e formadas, talvez, a partir
de reações a desejos contraditórios ou investimentos emocionais, até chegar às
estruturas complexas, às vagas apreensões das formas que a realidade deveria
tomar mesmo quando deixa de assumi-las {principalmente se não as assumir) em
situações existencialmente vitais.
Presumo, na esteira de Hegel, Nietzsche e Freud, que a compreensão seja um
processo por meio do qual as imagens da memória são atribuídas a nomes ou
ligadas a palavras, ou ordenam sons, de modo a serem combinados com outras
imagens da memória similarmente ligadas a palavras na forma de proposições -
provavelmente do tipo “Isso é aquilo”25. Pouco importa, nesse nfvel de

25 Hegel, Philoxophy of Mind, irad. William Wallace (Oxford, 1971), 55 451-468, pp. 201-228; Freud, The Ego
and the ld, trad. Joan Riviere (New York, 1962), pp. 10-15; e Nietzsche, “On Truth and Falsity in Their
Ultramoral Sense”, em Early Greek Philosophy and Other Essays, trad. Maxímílían A. Mügge, vol. 2 de The
Complete Works of Friedrich Nietzsche, ed. Oscar Levy (New York, 1924), pp. 179 c ss.
34 TRÓPICOS DO DISCURSO

compreensão, a maneira como dois termos são colocados nos lados opostos da
cópula. O resultado talvez seja visto da perspectiva de um sistema de proposições
posterior e mais complexo, apenas um equívoco; mas, como disse Bacon, quando
se trata de buscar o conhecimento do mundo, uma hipótese errônea é melhor do
que nenhuma hipótese. Pelo menos ela fornece a base para alguma ação consciente,
uma práxis na qual pode ser testada a adequação da proposição ao mundo de que
ela fala. Mais importante, porém, é que essas proposições primitivas, errôneas ou
não, são também e basicamente metáforas, sem as quais seria impensável a nossa
transição de um estado de ignorância para um estado de compreensão prática. E
exatamente porque cada coisa do mundo e cada experiência dele pode ser
equiparada a qualquer outra coisa ou experiência por analogia ou similitude
(porque, sendo elementos da realidade única, elas partilham algum atributo, ainda
que seja apenas o de ser ela própria), então, há um sentido no qual nenhuma
metáfora é de todo errônea. A base de sua unidade, expressa na cópula da
identidade, talvez não seja conhecida e nem sequer concebível para uma dada
inteligência, mas mesmo a transferência metafórica mais drástica, a catacrese mais
paradoxal, o oxímoro mais contraditório ou o trocadilho mais banal produz o efeito
de iluminar, se não a realidade, ao menos a relação entre as palavras e as coisas, o
que é também um aspecto da realidade, pela sua produção desses “erros”. A teoria
tropológica do discurso nos permite compreender a continuidade existencial entre
erro e verdade, ignorância e entendimento, ou, para dizê-lo de outra maneira,
imaginação e pensamento. Por muito tempo a relação entre esses pares foi
concebida como uma oposição. A teoria tropológica do discurso nos ajuda a
entender de que maneira a fala serve de mediadora entre essas supostas oposições,
da mesma forma que o próprio discurso serve de mediador entre a nossa apreensão
desses aspectos da experiência que ainda nos são “estranhos” e os aspectos dela
que “compreendemos” porque encontramos uma ordem de palavras adequada à sua
familiarização.
Finalmente, a teoria tropológica do discurso poderia fornecer-nos um meio
de classificar diferentes tipos de discurso mais por referência aos modos
linguísticos que predominam neles do que por referência a supostos “conteúdos”
que sempre são identificados de modo diferente por intérpretes diferentes. Isso seria
tão verdadeiro para as nossas tentativas de classificar os vários tipos de discurso
“prático”, como os discursos acerca dos fenômenos sociais (loucura, suicídio,
sexualidade, guerra, política, economia), quanto para tentativas semelhantes de
classificar tipos de discurso “formal” (como peças de teatro, romances, poemas e
assim por diante).
Por exemplo, é possível demonstrar que a análise mereci dam ente famosa
de Durkheim dos tipos de suicídio é, entre outras coisas, uma hiposta- tização dos
modos de relacionamento pressupostos no modelo tropológico de possíveis
conceituações das relações das partes (individuais) com as tota- lidades (sociais) de
que são membros26. Do mesmo modo, a tipologia extremamente sugestiva e

26 Emile Durkheim, Suicide: A Study in Sociology, trad. John A. Spaulding e George Simpson, ed. George
INTRODUÇÃO 35

proveitosa que Lukács estabeleceu para o romance moderno, onde cada tipo é
identificado pelo modo de relacionamento que predomina entre o protagonista e o
seu meio social, teria sido aperfeiçoada e melhorada pela atenção dada ao aspecto
linguístico dos seus exemplos27. Porém Lukács, a despeito do seu hegelianismo
declarado na época da composição de seu livro e do seu marxismo igualmente
declarado na época do seu repúdio a esse livro, pensava que poderia especificar um
conteúdo para os romances sem prestar muita atenção ao continente linguístico em
que eles se incorporavam. E essa crença na transparência da linguagem, a sua
natureza mais puramente reflexiva que constitutiva, também ofuscaram Durkheim
na medida em que os seus tipos foram tanto criados pelas suas próprias descrições
dos seus dados quanto explicados a partir dos dados por correlações estatísticas e
suas análises. Quanto a isso, poderíamos acrescentar que as representações
estatísticas são pouco mais que projeções de dados interpretados no modo da
metonímia, cuja validade como contribuições à nossa compreensão da realidade
aumenta somente na medida em que os elementos das estruturas nelas
representadas estão relacionados unicamente pela contiguidade. Quando não estão
relacionados, outros protocolos de linguagem, governados por outros tropos, são
requeridos para uma explicação das suas naturezas adequadas à capacidade humana
de compreender alguma coisa. E o mesmo se pode dizer do modo sinedóquico da
representação, preconizado por Lukács na sua análise dos principais tipos do
romance moderno.
Mas por que, cumpre-nos perguntar, deveríamos desejar semelhante
tipologia dos discursos? Primeiramente, porque o princípio de toda compreensão é
a classificação, e uma classificação dos discursos baseada na tropologia, e não em
conteúdos supostos ou em lógicas manifestas (mas inevitavelmente defeituosas),
haveria de fornecer um meio de apreender a possível estrutura de relações entre
esses dois aspectos de um texto, em vez de negar a adequação de um porque o outro
foi realizado inadequadamente. Em segundo lugar, se o discurso é a nossa mais
direta manifestação da consciência que busca compreender, que ocupa aquele plano
médio entre o despertar de um interesse geral num domínio da experiência e a
aquisição de alguma compreensão dela, então uma tipologia dos modos do discurso
possibilitaria a criação de uma tipologia dos modos de compreensão. Feito o quê,
talvez fosse possível fornecer protocolos para a tradução entre modos alternativos,
que, por serem considerados ou como verdade natural ou como verdade
estabelecida, se petrificaram em ideologias. Em seguida, essa tipologia dos modos
da compreensão poderia permitir-nos servir de mediador entre ideólogos
conflitantes, cada um dos quais considera científica a sua própria posição e a do
seu opositor mera ideologia ou “falsa consciência”. Por fim, uma tipologia dos
modos da compreensão poderia permitir-nos aventar o conceito do que Lukács
definiu como a relação entre “a possível consciência de classe” e “a falsa

Simpson (New York, 1966), p. 276, n. 25, e pp. 277-294.


27 Georg Lukács, The Theory of the Novel: A Historico-Philosaphical Essay on the Forms of Great Epic Literature,
trad. Atma Bostock (Cambridge, Mass., 1971), pp. 97 e ss.
36 TRÓPICOS DO DISCURSO

consciência de classe”. Isso acarretaria necessariamente a renúncia, por parte dos


teóricos marxistas, à sua reivindicação de ver “objetivamente” a “realidade” que os
seus opositores sempre apreendem de um modo “distorcido”. Pois reconheceríamos
que não se trata de fazer uma escolha entre objetividade e distorção, mas entre
diferentes estratégias para constituir a “realidade” no pensamento, de modo a lidar
com ela de maneiras diferentes, cada uma das quais traz em si as suas próprias
implicações éticas.
Todos os ensaios deste livro, de uma forma ou de outra, examinam o
problema das relações entre a descrição, a análise e a ética nas ciências humanas.
Ver-se-ã de imediato que esta divisão das faculdades humanas é kantiana. Não vou
me penitenciar por esse elemento kantiano no meu pensamento, mas não acho que
a moderna psicologia, a antropologia ou a filosofia o tenham aperfeiçoado.
Ademais, quando se trata de falar da consciência humana, não dispomos de uma
teoria absoluta que nos oriente; tudo é controverso. Portanto, tudo é uma questão
de escolha quanto ao tipo de modelo que deveríamos utilizar para demarcar o
problema da consciência em geral e dar acesso a ela. Tais escolhas deveriam ser
mais autoconscientes que inconscientes, e deveriam ser feitas com plena
compreensão do tipo da natureza humana, para cuja constituição elas irão contribuir
se forem consideradas válidas. As distinções estabelecidas por Kant entre as
emoções, a vontade e a razão não são muito populares nos dias de hoje, uma época
que perdeu a sua crença na vontade e que reprime o seu senso das implicações
morais do modo de racionalidade que ele favorece. Mas as implicações morais das
ciências humanas jamais serão percebidas enquanto não se restabelecer na teoria a
faculdade da vontade.
No passado, acusaram-me de ceticismo radical, e até de pessimismo, quando
considerei a possibilidade da consecução do conhecimento real nas ciências
humanas. Tal foi a reação de alguns críticos ao primeiro ensaio reproduzido nesta
coletânea, “O Fardo da História”, bem como a Metahistory, que nasceu do meu
empenho de tratar das questões levantadas neste ensaio. Confio em que a maioria
destes ensaios me aliviará desses encargos, pelo menos em parte. Nunca neguei que
fosse possível o conhecimento da história, da cultura e da sociedade; neguei apenas
que fosse possível um conhecimento científico, do tipo alcançado no estudo da
natureza física. Mas tentei mostrar que, mesmo que não possamos alcançar um
conhecimento propriamente científico da natureza humana, somos capazes de
chegar a um outro tipo: de conhecimento sobre ela, o tipo de conhecimento que a
literatura e a arte em geral nos fornecem em exemplos facilmente reconhecíveis.
Somente uma inteligência voluntariosa e tirânica poderia acreditar que o único tipo
de conhecimento a que podemos aspirar é o representado pelas ciências físicas.
Meu objetivo foi mostrar que não precisamos optar entre arte e ciência, que, na
verdade, não podemos fazê-lo na prática, se esperamos continuar a falar da cultura
em contraste com a natureza - e, além disso, a falar sobre ela de maneiras
apropriadas a todas as várias dimensões do nosso ser especificamente humano.
INTRODUÇÃO 37
40 TRÓPICOS DO DISCURSO

0 FARDO DA HISTÓRIA

i.

Por mais de um século, muitos historiadores acharam útil empregar uma


tática fabiana contra críticos em campos afins do labor intelectual. A tática funciona
mais ou menos desta maneira: quando os cientistas sociais lhe criticam a amenidade
do método, a imperfeição do sistema de metáforas ou a ambiguidade das
pressuposições sociológicas e psicológicas, o historiador responde que a história
jamais reivindicou o status de ciência pura, que ela depende tanto de métodos
intuitivos quanto analíticos e que os juízos históricos não deveriam, portanto, ser
avaliados a partir de modelos críticos que só podem ser aplicados com propriedade
às disciplinas matemáticas e experimentais. Tudo isso sugere que a história é um
tipo de arte. Porém, quando os literatos lhe criticam a incapacidade de sondar as
camadas mais sombrias da consciência humana e a relutância em utilizar modos
contemporâneos de representação literária, o historiador volta à concepção de que
a história é, afinal de contas, uma semicièncm, de que os dados históricos não se
prestam à “livre” manipulação artística e de que a forma das suas narrativas não é
uma questão de escolha, mas é exigida pela natureza da própria matéria histórica.
Essa tática apresenta uma longa série de êxitos na tarefa de desarmar os
críticos da história; e permitiu aos historiadores reivindicar a posse de um plano
médio epistemologicamente neutro que se supõe existir entre a arte e a ciência.
Assim, os historiadores afirmam às vezes que somente na história é que a arte e a
ciência se mantêm numa síntese harmoniosa. Segundo essa concepção, o
historiador não é apenas o mediador entre o passado e o presente; tem igualmente
a tarefa especial de reunir dois modos de compreensão do mundo que
costumeíramente estariam invariavelmente separados.
Há, contudo, uma clara evidência de que essa tática fabiana sobreviveu à sua
utilidade e de que a posição que ela anteriormente havia assegurado ao historiador
entre as várias disciplinas intelectuais foi colocada em grave risco. Entre os
0 FARDO DA HISTÓRIA 41

historiadores contemporâneos, percebe-se uma suspeita cada vez maior de que essa
tática atua essencialmente para impedir considerações mais sérias dos avanços
mais significativos operados na literatura, na ciência social e na filosofia do século
XX. E parece estar tomando vulto entre os não-historíadores a opinião de que,
longe de ser o mediador desejável entre a arte e a ciência que ele reivindica ser, o
historiador é o inimigo irre- missível de ambas. Em resumo, avulta em toda a parte
um ressentimento motivado pelo que parece ser a má fé do historiador em
reivindicar os privilégios tanto do artista quanto do cientista, ao mesmo tempo em
que recusa submeter-se aos modelos críticos que atualmente vão sendo
estabelecidos na arte ou na ciência.
São duas as causas gerais desse ressentimento. Uma delas diz respeito à
natureza da própria profissão de historiador. A história é talvez a disciplina
conservadora por excelência. Desde meados do século XIX, a maioria dos
historiadores simulou um tipo de ingenuidade metodológica deliberada. A
princípio, essa ingenuidade servia a um bom propósito; resguardava o historiador
da tendência a adotar os sistemas explicativos monísticos de um idealismo
militante na filosofia e de um positivismo igualmente militante na ciência. Mas
esta suspeição de sistema tornou-se uma espécie de reação condicionada entre
historiadores que tem levado a uma oposição, em todos os setores dessa área
profissional, a praticamente qualquer tipo de autoanálise crítica. Além disso, como
a história vem-se tornando cada vez mais profissionalizada e especializada, o
historiador comum, empenhado na busca do documento elusivo que o firmará
como autoridade num campo estreitamente definido, tem tido pouco tempo para se
informar acerca dos mais recentes acontecimentos verificados nos campos mais
remotos da arte e da ciência. Por isso, muitos historiadores não têm consciência de
que já não se pode justificar a disjunção radical entre arte e ciência que o seu
pretenso papel de mediadores entre elas pressupõe.
Passemos agora à segunda causa geral da atual hostilidade contra a história.
Esse plano médio supostamente neutro entre arte e ciência que muitos historiadores
do século XIX ocuparam com tanta autoconfiança e orgulho de posse desapareceu
com a descoberta do caráter construtivista habitual das afirmações artísticas e
científicas. A maioria dos pensadores contemporâneos não concorda com a
hipótese do historiador convencional de que arte e ciência são meios
essencialmente distintos de compreender o mundo. Hoje em dia, parece bastante
claro que a crença do século XIX na dessemelhança radical entre arte e ciência
resultou de um mal-entendido promovido pelo medo que o artista romântico sentia
da ciência e pela ignorância que o cientista positivista tinha da arte. Sem dúvida,
tanto o medo que o artista romântico sentia da ciência positivista quanto o desdém
que o cientista positivista votava à arte romântica se justificavam na atmosfera in-
telectual em que nasceram. Porém a crítica moderna - sobretudo em decorrência
dos avanços feitos pelos psicólogos na investigação da capacidade de síntese do
homem - chegou a uma compreensão mais ciara das operações pelas quais o artista
expressa a sua visão de mundo e o cientista exprime as suas hipóteses sobre ele. A
medida que se tornam mais plenamente reconhecidas as implicações dessa
42 TRÓPICOS DO DISCURSO

realização, desaparece a necessidade de um agente mediador entre arte e ciência;


pelo menos, já não é evidente que o historiador estã especialmente qualificado para
desempenhar a função de mediador.
Assim, os historiadores desta geração devem preparar-se para enfrentar a
possibilidade de que o prestígio desfrutado por sua profissão entre os intelectuais
do século XIX foi uma consequência de forças culturais deter- mináveis. Precisam
preparar-se para alimentar a ideia de que a história, tal como se costuma concebê-
la, é um tipo de acidente histórico, um produto de uma situação histórica específica,
e de que, desfeitos os mal-entendidos que deram origem a essa situação, a história
talvez perca a sua condição de modo de pensamento autônomo e autolegitimador.
E bem possível que a tarefa mais difícil que a atual geração de historiadores é
chamada a realizar seja expor o caráter historicamente condicionado da disciplina
histórica, presidir à dissolução da reivindicação de autonomia que a história
mantém com respeito às demais disciplinas e promover a assimilação da história a
um tipo superior de investigação intelectual que, por estar fundada numa percepção
mais das semelhanças entre a arte e a ciência que das suas diferenças, não pode ser
adequadamente assinada nem por uma nem por outra.

2.

Não deveria ser preciso seguir de novo as linhas gerais da querela entre a
ciência social e a história que envolveu os profissionais que as exerceram de
maneira filosófica e autoconsciente durante este século. Trata-se de uma velha
controvérsia que remonta ao começo do século XIX. Mas talvez seja útil lembrar
que a disputa chegou a um tipo de solução que não foi possível no século XIX, e
que, do modo como prossegue atualmente, a querela transcende os limites de uma
simples discussão metodológica.
Em primeiro lugar, durante o século XIX a ciência não havia alcançado a
posição hegemônica entre as disciplinas eruditas de que hoje desfruta. Os filósofos
da ciência contemporâneos são mais claros no tocante à natureza d as-explicações
científicas, e os próprios cientistas lograram obter aquele domínio sobre o mundo
físico com que somente podiam sonhar durante a maior parte do século passado.
Assim, em nossa época, uma afirmação, como a do falecido Ernst Cassirer, de que
“não há um segundo poder no nosso mundo moderno que se possa comparar ao
pensamento científico”, deve ser aceita como simples fato; não se pode descartá-la
por mera retórica na disputa pela primazia entre as disciplinas eruditas, como talvez
fosse o caso no século XIX. Atualmente, a ciência é reconhecida, ainda nas palavras
de Cassirer, como “o ponto culminante e a consumação de todas as nossas
atividades humanas, o último capítulo da história da humanidade e o tópico mais
importante de uma filosofia do homem... Talvez, discordemos no que tange aos
resultados da ciência ou aos seus princípios primeiros, mas sua função geral parece
inquestionável. E a ciência que nos dá a garantia de um mundo comum”.
Os fascinantes triunfos da ciência em nosso tempo não apenas incentivaram
0 FARDO DA HISTÓRIA 43

os investigadores dos processos sociais em seu empenho de elaborar uma ciência


da sociedade semelhante à ciência da natureza; também acirraram a sua hostilidade
para com a história. O traço mais surpreendente do pensamento atual acerca da
história, da parte de muitos profissionais das ciências sociais, é a implicação
subjacente de que as concepções de história do historiador convencional são a um
só tempo o sintoma e a causa de uma moléstia cultural potencialmente fatal. Daí
que a crítica da história feita por cientistas sociais responsáveis se revista de uma
dimensão moral. Para muitos deles, a destruição da concepção convencional de
história é um estágio necessário na elaboração de uma verdadeira ciência da
sociedade e um componente essencial da terapia que eles proporão, em última
análise, como meio de reconduzir uma sociedade enferma à senda da iluminação e
do progresso.
Na sua depreciação da abordagem que o historiador convencional faz dos
problemas históricos, os cientistas sociais contemporâneos são amparados pelo
curso que tomou o debate atual que os filósofos promovem sobre a natureza da
investigação histórica e o status epistemológico das explicações históricas.
Contribuições significativas para esse debate foram dadas por pensadores da
Europa Continental, mas ele foi desenvolvido com extraordinária intensidade no
mundo de língua inglesa a partir de 1942, quando Carl Hempel publicou seu ensaio
“A Função das Leis Gerais na História”.
Seria incorreto supor que os participantes desse debate chegaram a algum
tipo de consenso acerca da natureza da explicação histórica. Todavia, é preciso
admitir que o curso do debate até aqui só pode parecer desconcertante para quem
compartilha a avaliação de Cassirer acerca do papel hegemônico das ciências
físicas entre as disciplinas eruditas e, ao mesmo tempo, quem valoriza o estudo da
história. Pois um número significativo de filósofos parece ter chegado à conclusão
de que a história ou é uma forma de ciência de terceira categoria, ligada às ciências
sociais do mesmo modo que a história natural era outrora ligada às ciências físicas,
ou é uma forma de arte de segunda categoria, de valor epistemológico questionável
e valor estético incerto. Esses filósofos parecem ter concluído que, se existe essa
coisa de hierarquia das ciências, a história se situa em algum lugar entre a física
aristotélica e a biologia lineana - vale dizer, tem talvez um certo interesse para
colecionadores de visões exóticas do mundo e de mitologias degradadas, mas não
muito para a criação daquele “mundo comum” que, segundo Cassirer, encontra a
sua confirmação diária na ciência.

3.

Ora, excluir a história da primeira categoria das ciências não seria decerto
tão desalentador se boa parte da literatura do século XX não manifestasse uma
hostilidade para com a consciência histórica ainda mais exacerbada do que qualquer
coisa encontrada no pensamento científico da nossa época. Poder-se-ia até afirmar
que um dos traços distintivos da literatura contemporânea é a sua convicção
44 TRÓPICOS DO DISCURSO

subjacente de que a consciência histórica será obliterada se o escritor tiver de


examinar com a devida seriedade aquelas camadas da experiência humana cuja
descoberta é o propósito peculiar da arte moderna. Esta convicção se acha tão
difundida que a reivindicação do historiador de ser um artista parece patética,
quando não meramente ridícula.
A hostilidade do escritor moderno à história se evidencia de modo mais claro
na prática de usar o historiador para representar no romance e no teatro o exemplo
extremo da sensibilidade reprimida. Os escritores que se utilizaram dos
historiadores dessa maneira são, entre outros, Gide, Ibsen, Malraux, Aldous
Huxley, Hermann Broch, Wyndham Lewis, Thomas Mann, Jean-Paul Sartre,
Camus, Pirandello, Kingsley Amis, Angus Wilson, Elias Canetti e Edward Albee -
para mencionar apenas os principais ou os que estão em moda. A lista poderia ser
consideravelmente ampliada se se incluíssem os nomes de autores que condenaram
implicitamente a consciência histórica ao afirmar a contemporaneidade essencial
de toda experiência humana significativa. Virginia Woolf, Proust, Robert Musil,
ítalo Svevo, Gottfried Benn, Ernst Jünger, Valéry, Yeats, Kafka e D. H. Lawrence
- todos refletem a voga da convicção expressa pelo Stephen Dedalus de Joyce,
segundo a qual a história é o “pesadelo” do quai o homem ocidental precisa
despertar se quiser servir e salvar a humanidade.
Na verdade, em muitos romances e peças modernos o cientista figura como
o antítipo do artista com uma frequência ainda maior do que o historiador. Mas o
escritor não raro demonstra alguma afeição e até uma certa boa vontade para
perdoar que não se estende às personagens de historiador. Enquanto o cientista é
apresentado, na maioria das vezes, como alguém que trai o espírito devido a um
comprometimento positivo com outra coisa qualquer, tal como o desejo faustiano
de controlar o mundo, ou uma necessidade de sondar os segredos do mero processo
material, o historiador, em contrapartida, é comumente retratado como o inimigo
dentro das muralhas, como alguém que simula atitudes pias de respeito pelo espírito
apenas para minar com mais eficácia as reivindicações do espírito sobre o indivíduo
criativo. Em resumo, o golpe desferido contra o historiador por parte dos escritores
modernos é também um golpe moral; mas, enquanto o cientista o acusa apenas de
uma falha metodológica ou intelectual, o artista o indicia por uma falta de
sensibilidade ou de vontade.
As especificações do indiciamento e as táticas pelas quais é instaurado não
mudaram muito desde que Nietzsche estabeleceu o seu padrão, quase um século
atrás. Em O Nascimento da Tragédia (1872), Nietzsche opôs a arte a todas as
formas de inteligência abstrativa assim como opôs a vida à morte pela humanidade.
Ele incluía a história entre as muitas perversões possíveis das faculdades apolíneas
do homem e em particular a acusava de ter contribuído para a destruição dos
fundamentos míticos tanto da personalidade individual quanto da personalidade
comunal. Dois anos depois, em O Uso e o Abuso da História (1874), Nietzsche
aprimorou sua concepção da oposição entre a imaginação artística e a imaginação
histórica e afirmou que, sempre que floresciam os “eunucos” no “harém da
história”, a arte devia necessariamente perecer. “O senso histórico exagerado”,
0 FARDO DA HISTÓRIA 45

escreveu ele, “levado ao seu extremo lógico, erradica o futuro porque destrói as
ilusões e priva as coisas existentes da única atmosfera em que podem viver”.
Nietzsche odiava a história ainda mais do que à religião. A história promoveu
nos homens um voyeurismo debilitante, fê-los sentir que eram forasteiros num
mundo onde todas as coisas dignas de fazer já haviam sido feitas e desse modo
solapou aos poucos aquele impulso ao esforço heróico que poderia conferir um
sentido peculiarmente humano, ainda que transitório, a um mundo absurdo. O
senso da história era o produto de uma faculdade que distinguia o homem do
animal, ou seja, a memória, também fonte da consciência. A história devia ser
“seriamente ‘odiada”’, concluía Nietzsche, “como um luxo caro e supérfluo do
entendimento”, para que a própria vida humana não perecesse no culto insensato
daqueles vícios que uma falsa moralidade, baseada na memória, induz nos homens.

Não importa o que, por bem ou por mal, a geração seguinte aprendeu de
Nietzsche, ela absorveu a sua hostilidade à história na maneira como foi
violentamente posta em prática pelos historiadores acadêmicos no final do século
XIX. Mas Nietzsche não foi o único responsável pelo declínio da autoridade da
história entre os artistas fin de siècle. Acusações semelhantes, mais ou menos
explícitas, podem ser encontradas em escritores tão diferentes em temperamento e
propósito quanto George Eliot, Ibsen e Gide.
Em Middlemarch, publicado no mesmo ano que O Nascimento da Tragédia,
Eliot utilizou o encontro entre Dorthea Brooke e o sr. Casaubon para formular uma
acusação convenientemente inglesa contra os perigos do gosto pelas antigualhas.
A srta. Brooke, donzela vitoriana de rendimentos garantidos, que só deseja fazer
uma coisa transcendente em sua vida, vê no sr. Casaubon, vinte e cinco anos mais
velho que ela, “um Bossuet vivo, cuja obra reconciliaria o conhecimento total com
a devoção extremosa”. E, malgrado a diferença de idade, resolve casar-se com ele
e dedicar sua vida a serviço do estudo histórico dos sistemas religiosos do mundo
que ele propunha. Mas, durante sua lua-de-mel em Roma, dissipam-se~lhes as
ilusões. Lá, Casaubon revela sua incapacidade de reagir ao passado que vive à sua
volta nos monumentos da cidade, e também sua incapacidade de levar a termo os
seus próprios esforços intelectuais. “Com o círio à sua frente”, diz a autora a
respeito de Casaubon, “ele se esqueceu de que não havia janelas e, em amargas
observações manuscritas sobre as ideias de outros homens acerca das divindades
solares, tornou-se indiferente ao brilho do sol”. No final, Dorthea renega as suas
obrigações para com Casaubon, o erudito, e se casa com o jovem Ladislaw, o
artista, consumando assim sua fuga do incubo da história. George Eliot não se
preocupa com a questão, mas a essência do seu pensamento é clara; a visão artística
e o estudo histórico são opostos, e as qualidades das respostas à vida que eles
respectivamente evocam são mutuamente exclusivas.
Ibsen, escrevendo na década seguinte, está caracteristicamente mais
preocupado com as limitações de uma cultura que valoriza mais o passado que o
presente e é mais explícito quanto às limitações dessa cultura. Hedda Gabler
carrega o mesmo fardo de Dorthea Brooke: o incubo do passado, um excesso de
46 TRÓPICOS DO DISCURSO

história - formado por um medo difuso do futuro, ou refletido nesse medo. Na volta
de sua lua-de-mel, Hedda e o marido, George Tesman, recebem as boas-vindas da
tia de Tesman, que faz uma insinuação quanto aos prazeres que a sua viagem de
núpcias lhes deve ter proporcionado. Ao que George responde: “Bem, para mim foi
também um tipo de viagem de pesquisa. Tive de pesquisar muito entre velhas
inscrições - e também precisei ler inúmeros livros, tia”.
Tesman, é claro, é um historiador, um sr. Casaubon mais jovem, empenhado
em escrever a história definitiva das indústrias domésticas no Brabante durante a
Idade Média. Seus árduos esforços consomem o seu estreito suprimento de afeição
humana; tanto que se pode dizer que grande parte da inquietação de Hedda tem
origem na devoção de George às indústrias domésticas do passado, quando ele
poderia demonstrar mais indústria doméstica no presente. “Você tinha que tentar,
só isso”, grita Hedda a certa altura: “Não ouvir falar de outra coisa senão da história
da civilização, de manhã, à tarde e à noite!”
Não que a causa das complexas insatisfações de Hedda possa ser localizada
nessa esfera tão limitada quanto a meramente sexual. Ela é a vítima de toda uma
rede de repressões que são endêmicas na sociedade burguesa, uma das quais é
representada pelo uso que Tesman faz do passado para evitar os problemas do
presente. Não obstante, o crescente desprezo de Hedda pelo marido se concentra na
sua devoção ascética à história, o domínio dos mortos e moribundos, que reflete e
aumenta o medo de Hedda ante um futuro desconhecido, simbolizado pelo filho
que se desenvolve no interior de seu corpo.
O rival de Tesman é Eilert Lõvberg, também historiador, porém no estilo
hegeliano, mais grandioso. E um filósofo da história, cujo livro - que se “ocupa da
marcha da civilização, em linhas gerais bem definidas, por assim dizer” - desperta
em Hedda a esperança de que a visão dele possa proporcionar uma possível
liberação do estreito mundo circunscrito pela imaginação fraturada de Tesman.
Ibsen tenciona mostrar-nos Lõvberg como um homem de talento e de empenho
criativo potencial. Ele está elaborando um livro sobre a civilização que solapará,
em vez de sustentar, a moralidade convencional, um livro que contará uma verdade
mais nobre do que a conveniente meia-verdade em que se baseavam o seu primeiro
livro e a sua reputação juvenil. Mas, à proporção que se desenrola a peça, Hedda
passa a odiá-lo; apo- dera-se do seu manuscrito e o destrói, provocando o suicídio
de Lõvberg. A destruição do manuscrito é, de um lado, um ato de vingança pessoal
contra Lõvberg pelo seu romance com a rival de Hedda, a sra. Elvsted. Mas, de
outro, é um repúdio simbólico a essa “civilização” da qual tanto Tesman quanto
Lõvberg, cada qual a seu modo, são devotos desavisados. No final, Hedda é
ameaçada com a sujeição ao juiz Brack, outro depositário da tradição, o que a leva
finalmente ao suicídio. E, na última cena, Tesman e a sra. Elvsted, que
sobreviveram à tragédia, dedicam-se à tarefa vitalícia de editar o Nachlass de
Lõvberg, revelando assim que nenhum dos dois aprendeu coisa alguma com os
trágicos acontecimentos de que poderiam ter prestado testemunho córico. Tesman
escreve o próprio epitáfio ao dizer: “Arrumar os documentos de outras pessoas é o
trabalho certo para mim”. O propósito de Ibsen é fazer-nos ver que isso
0 FARDO DA HISTÓRIA 47

representava o equivalente erudito do comentário filisteu do juiz Brack sobre o


suicídio de Hedda: “Isso não se faz”.
Em O Imoralistci de Gide (1902), a revolta contra a consciência histórica é
ainda mais explícita, e a oposição entre a resposta da arte ao presente vivo e o culto
da história do passado morto é delineada mais brutalmente. O protagonista da obra,
Michel, sofre de uma doença que combina todos os sintomas atribuídos por Ibsen
aos vários personagens de Hedda Gabler. Michel é ao mesmo tempo um filisteu,
um historiador e, à medida que o romance se desenvolve, um filósofo da história.
Porém o seu papel de filósofo só se configura depois de ter ele passado por seus
papéis de filisteu e de historiador. E trata-se de um papel puramente temporário,
porque traz consigo a compreensão de que a história, assim como a própria
civilização, deve ser transcendida, caso se pretenda atender às necessidades da
vida.
A tuberculose de Michel é apenas uma manifestação de um medo difuso de
viver que se manifesta psicologicamente à maneira de uma preocupação obsessiva
com as culturas mortas e com as formas mortas de vida.
Assim, uma vez iniciada a cura da sua doença física, Michel descobre que perdeu
todo o interesse pelo passado. Diz ele:

Quando... eu quis reiniciar o meu trabalho e absorver-me uma vez mais num estudo rigoroso do
passado, descobri que aíguma coisa havia, se não destruído, pelo menos modificado o que ele me
proporcionava... e essa coisa era o sentimento do presente. A história do passado assumira para mim a
imobilidade, a fíxidez terrifícante das sombras noturnas do pequeno átrio de Biskra - a imobilidade da
morte. Em dias passados, agradara-me essa fíxidez, que permitia à minha mente trabalhar com precisão;
todos os fatos da história apareciam-me como espécimes num museu, ou, melhor, como plantas num
herbário, permanentemente secas, de modo que era fácil esquecer que um dia elas haviam estado cheias
de seiva e de sol. ... Acabei evitando as ruínas... Acabei desprezando a erudição que a princípio fora o meu
orgulho... Na medida em que era um especialista, eu me via como um tolo; na medida em que era um
homem, porventura me conhecia?

E assim, quando volta a Paris para pronunciar conferências sobre cultura latina
tardia, Michel opõe a sua percepção do presente a essa consciência de- bilitante do
passado:

Descrevi a cultura artística como algo que se derrama sobre todo um povo, como uma secreção,
que a princípio é um sinal de pletora, de uma superabundância de sadde, mas que depois se endurece, se
enrijece, impede o pleno contato da mente com a natureza, esconde sob a constante aparência de vida uma
diminuição da vida, transforma-se num invólucro exterior no qual a mente confinada enlanguesce e
definha, na qual ela finalmente morre. Enfim, levando o meu pensamento às suas conclusões lógicas,
mostrei que a cultura, nascida da vida, é a destruidora da vida.

Logo, porém, mesmo esse uso lõvbergiano do passado para destruir o passado perde
a sua atração para Michel, e ele renuncia à carreira acadêmica para buscar a
comunhão com aquelas forças sombrias que a história obscureceu e a cultura
debilitou em sua pessoa. A conclusão problemática do livro sugere que Gide nos
quer mostrar Michel como alguém permanentemente mutilado por sua precoce
48 TRÓPICOS DO DISCURSO

devoção a uma cultura historicizada, uma conformação viva da máxima


nietzschiana segundo a qual a história bane o instinto e transforma os homens em
“sombras e abstrações”.

4.

Na década anterior à Primeira Guerra Mundial, esta hostilidade à consciência


histórica e ao historiador teve amplo curso entre os intelectuais de cada país da
Europa Ocidental. Por toda parte havia uma desconfiança crescente de que a busca
febril da Europa entre as ruínas do seu passado expressava menos uma consciência
do firme controle exercido sobre o presente do que um medo inconsciente de um
futuro por demais horrível para contemplar. Antes mesmo que o século XIX
terminasse, um grande historiador,
Jacob Burckhardt, previra a morte da cultura europeia e sua reação foi abandonar
a história como era praticada nas academias, proclamando abertamente a
necessidade de transformá-la em arte, porém recusando-se a entrar nas listas
públicas em defesa de sua heresia. Schopenhauer lhe ensinara não apenas a
inutilidade da investigação histórica do tipo convencional mas igualmente a
insensatez do exercício público. Outro grande schopenhaueria- no, Thomas Mann,
em seu romance Os Buddenbrooks (1901), havia localizado a causa dessa
consciência da degeneração iminente na hiperconsciência de uma cultura avançada
de classe média. A sensibilidade estética de Hanno Buddenbrook é ao mesmo
tempo o produto mais refinado da história da sua família burguesa e o sinal da sua
desintegração. Entrementes, filósofos como Bergson e Klages asseveravam que a
concepção do próprio tempo histórico, que limitava os homens a instituições, ideias
e valores obsoletos, era a causa da doença.
Entre os cientistas sociais, a hostilidade à história foi menos acentuada. Os
sociólogos, por exemplo, continuavam a buscar um meio de unir a história e a
ciência em novas disciplinas, as chamadas “ciências do espírito”, de conformidade
com o programa minuciosamente planejado por Wilhelm Dilthey e executado por
Max Weber na Alemanha e por Emile Durkheim na França. Neokantianos como
Wilhelm Windelband, de um lado, procuravam distinguir entre história e ciência,
designando a história como um tipo de arte que, embora não pudesse fornecer as
leis da mudança social, ainda oferecia valiosas visões da totalidade das
experiências humanas possíveis. Croce foi mais longe, afirmando que a história era
uma forma de arte mas, ao mesmo tempo, uma disciplina superior, a única base
possível para um saber social adequado às necessidades do homem ocidental
contemporâneo.
A Primeira Guerra Mundial muito fez para destruir o que restava do prestígio
da história entre os artistas e os cientistas sociais, pois a guerra parecia confirmar
o que Nietzsche sustentara duas gerações antes. A história, que se supunha fornecer
algum tipo de preparação para a vida, que se julgava ser “o ensino da filosofia por
meio de exemplos”, pouco fizera no sentido de preparar os homens para o advento
0 FARDO DA HISTÓRIA 49

da guerra; não lhes ensinara o que deles se esperava durante a guerra; e, quando
esta acabou, os historiadores pareciam incapazes de elevar-se acima das estreitas
alianças partidárias e de compreender a guerra de algum modo significativo.
Quando não se limitavam a papaguear os slogans em voga dos governos com
respeito ao propósito criminoso do inimigo, os historiadores tendiam a recorrer à
concepção de que ninguém quisera absolutamente a guerra; de que ela “apenas
acontecera”.
Obviamente, é bem possível que tenha sido esse o caso; porém parecia
menos uma explicação do que uma confissão de que nenhuma explicação era
possível, pelo menos em bases históricas. Se se poderia dizer o mesmo de outras
disciplinas não importava. Os estudos históricos - se incluirmos os clássicos sob
essa denominação - haviam constituído o centro dos estudos humanistas e
científicos antes da guerra; portanto, era natural que se tornassem o alvo principal
de quantos haviam perdido a fé na capacidade do homem para compreender a sua
situação depois que terminara a guerra. Paul Valéry expressou com mais
propriedade a nova atitude anti-historicista quando escreveu:

A história é o mais perigoso produto que surgiu da química do intelecto... A história justificará
qualquer coisa. Ela ensina precisamente coisa alguma, pois traz em si todas as coisas e fornece exemplos
de todas as coisas... Nada foi mais completamente arruinado pela última guerra do que ã pretensão à
antevisão. Mas isso não se deveu a qualquer falta de conhecimento da história, certo?

Para as baixas espirituais mais desesperadas da guerra, nem o passado nem


o futuro poderiam fornecer orientação para ações especificamente humanas no
presente. Como disse o poeta alemão Gottfried Benn: “Um sábio ignora a mudança
e o desenvolvimento / Os seus filhos e os filhos dos seus filhos / Não fazem parte
do seu mundo”. E dessa concepção radicalmente a- histórica do mundo ele extraiu
as suas consequências éticas inevitáveis:

Ocorre-me o pensamento de que poderia ser mais revolucionário e mais digno de um homem
vigoroso e ativo ensinar ao seu companheiro esta verdade simples: Es o que és, e nunca serás diferente;
esta é, foi e sempre será a tua vida. Quem tem dinheiro vive muito; quem tem autoridade não pode cometer
nenhuma injustiça; quem tem poder firma o direito. Assim é a história! Ecce historiai Eis o presente; toma
da sua carne, come e morre.

Na Rússia, onde a Revolução de 1917 despertara com especial premência o


problema do relacionamento do novo com o velho, M. O. Gershenson escreveu ao
historiador V. I. Ivanov a propósito de sua esperança de que a violência da época
introduzisse uma ação recíproca nova e mais criativa entre “o homem nu e a terra
nua”. “Para mim”, escreveu ele, “há certa perspectiva de felicidade numa imersão
no Letes que apagaria a lembrança de todas as religiões e sistemas filosóficos” -
em resumo, que o aliviaria do fardo da história.
Essa atitude anti-histórica subjazia tanto ao nazismo quanto ao
existencialismo, que constituiriam o legado dos anos 30 à nossa época. Tanto
Spengler, em muitos aspectos o progenitor do nazismo, quanto Malraux, como o
50 TRÓPICOS DO DISCURSO

pai reconhecido do existencialismo francês, ensinavam que a história só tinha valor


na medida em que destruía mais do que estabelecia a responsabilidade para com o
passado. Mesmo esse humanista transparente que é Ortega y Gasset, escrevendo
em 1923, partilha a crença de que o passado era apenas um fardo. “As nossas
instituições, assim como os nossos teatros”, escreveu ele em O Tema Moderno
(1923), “são anacronismos. Não temos a coragem de romper resolutamente com
tais acréscimos desvitalizados do passado, nem podemos nos ajustar de algum
modo a eles”. E em meados dos anos 30, numa obra dedicada a uma vítima da
opressão nazista, confessava que a única lição que a história lhe havia ensinado era
que “o homem é uma entidade infinitamente plástica da qual se pode fazer o que se
quiser, exatamente por não ser ela própria outra coisa senão a mera possibilidade
de ser ‘como você prefere’”. A “revolução do niilismo” de Hitler estava baseada
precisamente nesse senso da irrelevância do passado conhecido para o presente
vivido. “O que era verdadeiro no século XIX”, disse Hitler a Rauschning certa
ocasião, “já não é verdadeiro no século XX”. E tanto os intelectuais nazistas (como
Heidegger e Jünger) quanto os inimigos existencialistas do nazismo na França
(como Camus e Sartre) concordavam com ele nessa questão. Para ambos, o
problema não era como o passado devia ser estudado, porém se devia de fato ser
estudado.
Meursault, o herói do primeiro romance de Camus, O Estrangeiro (1942), é
um assassino “inocente”. O assassinato de um homem que ele não conhece é um
gesto totalmente sem sentido, não diferente, em essência, dos milhares de outros
atos irrefletidos que constituem a sua vida cotidiana. E o promotor público detentor
da “sabedoria histórica” que mostra ao júri como os acontecimentos mesquinhos
que constituem a existência de Meursault podem ser entrelaçados de modo a torná-
lo “responsável” por um “crime” e justificar a sua condenação como assassino. A
vida de Meursault, apresentada pelo autor como um conjunto perfeitamente casual
de acontecimentos, é tecida segundo um padrão de intenção consciente por quantos
“sabem” o que devem “significar” a sensibilidade particular e o gesto público. É
esta habilidade de lançar uma rede especiosa de “sentido” sobre o passado que por
si só, segundo Camus, permite à sociedade distinguir entre o “crime” de Meursault
e a sua “execução” pela sociedade como assassino. Camus negava haver qualquer
distinção real entre diferentes tipos de crimes. Só a hipocrisia, amparada pela
consciência histórica, é que permite à sociedade chamar o ato praticado por
Meursault de “crime”, e a execução que ela própria faz de Meursault de “justiça”.
Em O Homem Revoltado (1951), Camus voltou a esse tema, afirmando que
tanto o totalitarismo quanto o anarquismo da época atual tiveram suas origens
numa atitude niilista que derivava do desejo obsessivo do homem ocidental de dar
sentido à história. “O pensamento puramente histórico é niilista”, escreveu Camus.
“Ele aceita entusiasticamente o mal da história”, e confia a terra à força bruta. E
então, repetindo o Nietzsche que havia pouco censurara, ele opõe a arte à história,
como algo que por si só é capaz de reunir o homem com a natureza da qual ele se
apartou quase por completo. O poeta René Char fornece a Camus um epitáfio por
sua posição fundamental sobre o assunto: “A obsessão da colheita e a indiferença
0 FARDO DA HISTÓRIA 51

pela história são as duas extremidades do meu arco”.


Quaisquer que tenham sido as suas diferenças em outros assuntos, os dois
líderes do existencialismo francês, Camus e Sartre, estavam de acordo em seu
desprezo pela consciência histórica. O protagonista do primeiro romance de Sartre,
Roquentin, em A Náusea (1938), é um historiador profissional que, como ele
próprio diz, “escreveu uma porção de artigos”, mas nada que tenha requerido
qualquer ‘‘talento”. Roquentin está tentando escrever ura livro sobre um diplomata
do século XVIII, um certo marquês de Rollebon. Mas é assoberbado pelos
documentos; há “documentos demais”. Além disso, falta-lhes toda “firmeza e
consistência”. Não que se contradigam uns aos outros, diz Roquentin, mas “eles
não parecem tratar das mesmas pessoas”. No entanto, Roquentin anota em seu
diário: “Outros historiadores trabalham com base nas mesmas fontes de
informação. Como fazem isso?”
Obviamente, a resposta está na própria consciência de Roquentin a respeito
da ausência de “firmeza e consistência” em si mesmo. Roquentin vivência o seu
próprio corpo como uma “natureza sem humanidade” e a sua vida mental como
uma ilusão: “Nada acontece enquanto você vive. O cenário muda, as pessoas vêm
e vão, eis tudo. Não há começos. Os dias se acrescentam a outros dias
desarrazoadamente, numa edição interminável e monótona”. Falta a Roquentin uma
consciência central com base na qual possa ser ordenado o mundo, do passado ou
do presente. “Eu não tinha o direito de existir”, escreve Roquentin. “Apareci por
acaso, existi como uma pedra, uma planta, um micróbio. A minha vida lançou
tentáculos em todas as direções na busca de pequenos prazeres. Algumas vezes
emitiu vagos sinais; outras vezes, senti apenas um zumbido inofensivo.” Seu
amigo, o Autodidata, que deposita fé singela no poder do aprendizado para levar à
salvação, expõe a Roquentin o modelo do Otimista americano. O Otimista acredita,
tal como o antiquado humanista, que “a vida tem um sentido se decidirmos dar- lhe
um”. Mas a doença de Roquentin decorre precisamente da sua incapacidade de
acreditar nesses slogans tolos. Para ele, “tudo nasce sem razão, continua graças à
fraqueza e morre por acaso”. Sartre tinha apenas que acrescentar o ‘LEcce historiar
de Gottfried Benn para sinalizar de modo mais explícito o anti-historicista convicto
da sua primeira obra filosófica, O Ser e o Nada (1943), na qual trabalhava enquanto
escrevia A Náusea. Os críticos de As Palavras de Sartre (1964) teriam feito boa
coisa se tivessem tido em mente A Náusea e O Ser e o Nada. Se o tivessem feito,
ter-se-iam melindra- do menos com a opacidade das “confissões” de Sartre. Teriam
sabido que ele acredita que a única história importante é aquilo de que o indivíduo
se lembra, e este só se lembra do que deseja lembrar. Sartre rejeita a doutrina
psicanalítica do inconsciente e afirma que o passado é o que decidimos lembrar
dele; o passado não tem existência fora da consciência que temos dele. Escolhemos
o nosso passado da mesma forma que escolhemos o nosso futuro. Portanto, o
passado histórico, como os nossos diversos passados pessoais, é no melhor dos
casos um mito que justifica o nosso jogo num futuro específico, e, no pior, uma
mentira, uma racionalização retrospectiva daquilo que de fato nos tornamos
mediante as nossas escolhas.
52 TRÓPICOS DO DISCURSO

Poderia continuar citando exemplos da revolta contra a história nos textos


modernos. Mas, se por ora não alcancei o meu propósito, provavelmente não o
conseguirei em absoluto: o artista moderno não pensa muito sobre o que se
costumava chamar a imaginação histórica. Com efeito, para muitos deles a
expressão “imaginação histórica” não só contém uma contradição em termos, como
constitui a barreira fundamental para qualquer tentativa dos homens, nos dias
atuais, de solucionar realisticamente seus problemas espirituais mais prementes. A
atitude de muitos artistas modernos para com a história é muito parecida com a de
N. O. Brown, que considera a história um tipo de “fixação” que “aliena o neurótico
do presente e o impele à busca inconsciente do passado no futuro”. Para eles, assim
como para Brown, a história é não só um fardo real imposto ao presente pelo
passado na forma de instituições, ideias e valores obsoletos, mas também o modo
de ver o mundo que confere a essas formas antiquadas sua autoridade especiosa.
Em suma, para um segmento significativo da comunidade artística, o historiador
parece ser o portador de uma doença que foi ao mesmo tempo a força motriz e a
nêmese da civilização do século XIX. E por isso que grande parte da ficção
moderna gira em torno da tentativa de libertar o homem ocidental da tirania da
consciência histórica. Ela nos diz que somente libertando a inteligência humana do
senso histórico é que os homens estarão aptos a enfrentar os problemas do presente.
As implicações de tudo isso para qualquer historiador que valoriza a visão artística
como algo mais que mero divertimento são óbvias: ele tem de perguntar a si próprio
de que modo pode participar dessa atividade libertadora, e se a sua participação
acarreta forçosamente a destruição da própria história.
Os historiadores não podem ignorar as críticas da comunidade intelectual em
geral, nem buscar refúgio no favor de que gozam junto à laicidade letrada. Pois um
apelo à estima de que uma disciplina erudita desfruta junto ao homem mediano
poderia ser utilizado para justificar todo tipo de atividade, seja nociva ou benéfica
à civilização. Tal apelo pode ser usado para justificar o jornalismo mais banal. De
fato, avançando um pouco mais no caso do jornalismo, quanto mais banal for o
jornalismo, maiores serão as possibilidades de ser apreciado pelo homem comum.
E, longe de constituir uma fonte de consolo, seria motivo de genuína preocupação
o fato de alguma disciplina erudita perder o seu caráter oculto e começar a incluir
verdades que apenas o público em geral considera estimulantes. Na medida em que
fingiram pertencer a uma comunidade de intelectuais distintos do público letrado
em geral, os historiadores têm para com a primeira obrigações que transcendem as
suas obrigações para com o último. Se, portanto, os artistas e os cientistas - em sua
capacidade como artistas e cientistas e não em sua faculdade de membros do Clube
do Livro da Guerra Civil - consideram triviais e possivelmente nocivas as verdades
de que se ocupam os historiadores, então está na hora de os historiadores se
perguntarem com seriedade se essas acusações não têm algum fundamento na
realidade.
Os historiadores tampouco podem tachar de irrelevantes os juízos dos
artistas e cientistas sobre a maneira como o passado deve ser estudado. Apesar de
tudo, os historiadores sustentaram convencionalmente que nem uma metodologia
0 FARDO DA HISTÓRIA 53

específica nem uma bagagem intelectual específica são requeridas para o estudo da
história. O que se costuma denominar a “preparação” do historiador consiste, na
maioria dos casos, no estudo de algumas línguas, em estágio nos arquivos e no
cumprimento de alguns exercícios destinados a familiarizá-lo com trabalhos de
referência comuns e periódicos ligados ao seu campo. Quanto ao mais, uma
experiência geral dos negócios humanos, a leitura de áreas periféricas, a
autodisciplina e o Sitzfleisch são tudo quanto se requer. Qualquer um é capaz de
dominar os requisitos com toda a facilidade. Como se pode dizer, então, que o
historiador profissional está especificamente qualificado para definir as perguntas
acerca do registro histórico e por si só é capaz de determinar quando foram dadas
as respostas adequadas às questões assim colocadas? Já não é uma verdade óbvia
para a comunidade intelectual como um todo que o estudo desinteressado do
passado - “a bem do próprio passado”, como diz o clichê - dignifica ou até ilumina
a nossa humanidade. Com efeito, o consenso tanto nas artes quanto nas ciências
parece ser exatamente o oposto. E segue-se que o fardo do historiador em nossa
época é restabelecer a dignidade dos estudos históricos numa base que os coloque
em harmonia com os objetivos e propósitos da comunidade intelectual como um
todo, ou seja, transforme os estudos históricos de modo a permitir que o historiador
participe positivamente da tarefa de libertar o presente do fardo da história.

5.

Como fazê-lo? Antes de mais nada, os historiadores precisam admitir a


justificativa da revolta atual contra o passado. O homem ocidental contemporâneo
tem bons motivos para estar obcecado pela consciência da singularidade dos seus
problemas e está justificadamente convencido de que o registro histórico, tal como
é feito atualmente, pouca ajuda oferece na busca de soluções adequadas para
aqueles problemas. Para quem quer que seja sensível à diferença radical do nosso
presente relativamente a todas as situações passadas, o estudo do passado “como
um fim em si” só pode afigurar- se uma forma de obstrucionismo insensato, uma
oposição intencional à tentativa de entrar em contato com o mundo atual em toda a
sua estranheza e mistério. No mundo em que vivemos diariamente, quem quer que
estude o passado como um fim em si deve parecer ou um antiquário, que foge dos
problemas do presente para consagrar-se a um passado puramente pessoal, ou uma
espécie de necrófilo cultura], isto é, alguém que encontra nos mortos e moribundos
um valor que jamais pode encontrar nos vivos. O historiador contemporâneo
precisa estabelecer o valor do estudo do passado, não como um fim em si, mas
como um meio de fornecer perspectivas sobre o presente que contribuam para a
solução dos problemas peculiares ao nosso tempo.
Como o historiador não reivindica um meio de conhecer unicamente a sua
própria época, isto implica uma disposição, da parte do historiador contemporâneo,
de chegar a um acordo com as técnicas de análise e representação que a ciência
54 TRÓPICOS DO DISCURSO

moderna e a arte moderna têm oferecido para a compreensão das operações da


consciência e do processo social. Em resumo, o que o historiador pode reivindicar
é ser uma voz no diálogo cultural contemporâneo na medida em que considera
seriamente o tipo de pergunta que a arte e a ciência da sua própria época o obrigam
a fazer quanto à matéria que ele decidiu estudar.
Os historiadores consideram amiúde o começo do século XIX como o
período clássico da sua disciplina, não porque então a história surgiu como um
modo distinto de ver o mundo, mas também porque houve uma estreita relação de
trabalho e intercâmbio entre a história, a arte, a ciência e a filosofia. Os artistas
românticos se voltaram para a história em busca de seus temas e apelaram para a
“consciência histórica” como uma justificativa de suas tentativas de palingenesia
cultural, suas tentativas no sentido de tornar o passado uma presença viva para os
seus contemporâneos. E certas ciências ~ particularmente a geologia e a biologia -
se valeram de ideias e conceitos que comumente haviam sido usados apenas na
história até aquela época. A categoria do histórico dominou a filosofia entre os
idealistas pós- kantianos e posteriormente serviu de categoria organizadora entre
os hegelianos, tanto de esquerda como de direita. Para o historiador moderno que
reflete sobre os progressos daquela época em todos os campos do pensamento e da
expressão, parece óbvia a importância fundamental do senso da história e afigura-
se manifesta a função do historiador de mediador entre as artes e as ciências da
época.
Entretanto, seria mais correto reconhecer que o início do século XIX foi uma
época em que a arte, a ciência, a filosofia e a história se encontravam unidas num
esforço comum para compreender as experiências da Revolução Francesa. O que
mais impressiona nas realizações dessa época não é “o senso da história” como tal,
mas a boa vontade dos intelectuais de todos os campos para ultrapassar os limites
que separavam uma disciplina da outra e decidir-se ao uso de metáforas
iluminadoras para a organização da realidade, quaisquer que fossem as suas origens
em disciplinas ou visões de mundo específicas. Homens como Michelet e
Tocqueville só são apropriadamente designados como historiadores pelo assunto
de que tratam, e não pelos seus métodos. Na medida em que nos referimos apenas
ao seu método, podemos igualmente designá-los cientistas, artistas ou filósofos. O
mesmo se pode dizer de “historiadores” como Ranke e Niebuhr, de “romancistas”
como Stendhal e Balzac, de “filósofos” como Hegel e Marx e de “poetas” como
Heine e Lamartine.
Mas num dado momento do século XIX tudo isso mudou - não porque os
artistas, os cientistas e os filósofos deixaram de se interessar pelas questões
históricas, mas porque muitos historiadores se vincularam a certas concepções do
começo do século XIX a respeito do que devem ser a arte, a ciência e a filosofia. E,
enquanto os historiadores da segunda metade do século XIX continuaram
considerando o seu trabalho uma combinação de arte e ciência, viam nele uma
combinação da arte romântica, de um lado, e da ciência positivista, de outro. Em
suma, em meados do século XÍX os historiadores, por uma razão qualquer, se
tornaram prisioneiros de concepções da arte e da ciência que artistas e cientistas
0 FARDO DA HISTÓRIA 55

teriam de abandonar progressivamente se quisessem compreender o mundo de


mudanças de percepções interiores e exteriores que lhe era oferecido pelo próprio
processo histórico. Uma das razões, então, por que o artista moderno,
diferentemente do seu congênere do início do século XIX, se recusa a admitir uma
causa comum com o historiador moderno é que ele vê corretamente no historiador
um depositário de uma concepção antiquada do que é a arte.
De fato, quando muitos historiadores contemporâneos falam da “arte” da
história, parecem ter em mente uma concepção da arte que admitiria como
paradigma um pouco mais do que o romance do século XIX. E, quando se dizem
artistas, parecem querer dizer que são artistas à maneira de Scott ou de Thackeray.
Decerto, não querem dizer que se identificam com pintores gestuais, escultores
cinéticos, romancistas existencialistas, poetas imaginistas ou cineastas de nouvelle
vague. Embora exibam por vezes em suas paredes e em suas estantes as obras dos
modernos artistas abstracionistas, os historiadores continuam a agir como se
acreditassem que o propósito principal, para não dizer o único, da arte é contar uma
história. Assim, por exemplo, H. Stuart Hughes afirma em recente trabalho sobre a
relação da história com a ciência e a arte que “o supremo virtuosismo técnico do
historiador repousa na fusão do novo método de análise social e psicológica com a
sua tradicional função de contar uma história”. E evidentemente verdade que o
propósito do artista pode ser favorecido pelo recurso de contar uma história, mas
esse é apenas um dos modos possíveis de representação que se lhe oferecem nos
dias de hoje, e mesmo assim trata-se de um modo cada vez menos importante, como
o demonstrou de modo incontestável o nouveau roman francês.
Crítica semelhante pode ser dirigida à reivindicação, por parte do historiador,
de um lugar entre os cientistas. Quando os historiadores falam de si próprios como
cientistas, parecem estar invocando uma concepção de ciência que era
perfeitamente apropriada para o mundo em que viveu e trabalhou Herbert Spencer,
mas que tem muito pouco a ver com as ciências físicas na forma como se
desenvolveram a partir de Einstein e com as ciências sociais tal como se
desenvolveram a partir de Weber. Uma vez mais, quando Hughes fala do “novo
método de análise social e psicológica”, parece ter em mente os métodos oferecidos
por Weber e Freud - métodos que alguns cientistas sociais contemporâneos
consideram, na melhor das hipóteses, as raízes primitivas, e não o fruto maduro,
das suas disciplinas.
Em suma, quando os historiadores asseveram que a história é uma
combinação de ciência e arte, em geral estão querendo dizer que ela é uma
combinação da ciência social do fim do século XIX e da arte de meados do século
XI X. Ou seja, parecem aspirar a pouco mais que uma síntese dos modos de análise
e expressão, que só têm a antiguidade para recomendá-los. Se tal é o caso, então
os artistas e também os cientistas encontram uma justificativa para criticar os
historiadores, não por terem eles estudado o passado, mas por o estarem estudando
como uma ciência e uma arte de má qualidade.
A “má qualidade” dessas antigas concepções da ciência e da arte está contida
56 TRÓPICOS DO DISCURSO

sobretudo nas ultrapassadas concepções de objetividade que as caracterizam.


Muitos historiadores continuam a tratar os seus “fatos” como se fossem “dados” e
se recusam a reconhecer, diferentemente da maioria dos cientistas, que os fatos,
mais do que descobertos, são elaborados pelos tipos de pergunta que o pesquisador
faz acerca dos fenômenos que tem diante de si. E a mesma noção de objetividade
que vincula os historiadores a um uso não-crítico da estrutura cronológica para as
suas narrativas. Os historiadores, quando tentam relatar as suas “descobertas”
sobre os “fatos” de uma maneira que chamam “artística”, evitam uniformemente
as técnicas de representação literária com que Joyce, Yeats e Ibsen enriqueceram
a cultura moderna. Não houve nenhum esforço significativo na historiografia
surrealista, expressionista ou existencialista deste século (a não ser da parte dos
próprios romancistas e poetas), em que pêse ao tão alardeado “talento artístico”
dos historiadores dos tempos modernos. E quase como se os historiadores
acreditassem que a única forma possível de narração histórica era a utilizada no
romance inglês tal como se desenvolveu no final do século XIX. E a consequência
disso foi o progressivo envelhecimento da “arte” da própria historiografia.
Burckhardt, a despeito de todo o seu pessimismo schopenhaueriano (ou
talvez por causa dele), estava inclinado a fazer experiências com as mais avançadas
técnicas artísticas do seu tempo. Sua obra, A Civilização da Renascença, pode ser
considerada um exercício da historiografia impressionista, constituindo, à sua
própria maneira, um afastamento tão radical da historiografia convencional do
século XIX quanto o dos pintores impressionistas, ou o de Baudelaire na poesia.
Os estudantes que se iniciam na história - e não poucos profissionais - enfrentam
problemas com Burckhardt por ele ter rompido com o dogma segundo o qual um
relato histórico precisa “contar uma história” pelo menos da maneira usual,
cronologicamente ordenada. Para explicar a singularidade da obra de Burckhardt,
os historiadores modernos da escrita histórica o têm considerado um tipo de
cientista social embrionário que tratou de tipos ideais e, portanto, antecipou Weber.
A generalização seria verdadeira se fosse inserida apenas no contexto de uma
percepção da medida com que Burckhardt e Weber partilharam de uma concepção
peculiarmente estética da ciência. Tanto quanto os seus contemporâneos na arte,
Burckhardt interfere no registro histórico em pontos diferentes e estabelece a
respeito dele perspectivas diferentes, omitindo-o, ignorando-o ou distorcendo-o
conforme as exigências dos seus propósitos artísticos. Não era sua intenção contar
toda a verdade sobre o Renascimento italiano, mas uma verdade sobre ele,
exatamente da mesma maneira que Cézanne renunciou a qualquer tentativa de
expressar toda a verdade sobre uma paisagem. Ele abandonara o sonho de contar a
verdade sobre o passado pelo ato de contar uma história, porque havia muito
renunciara à crença de que a história apresentava algum sentido ou significação
inerente. A única “verdade” que Burckhardt reconheceu foi a que aprendera de
Schopenhauer - a saber, que toda tentativa de dar forma ao mundo, toda afirmação
humana, estava tragicamente fadada ao fracasso, mas que a afirmação individual
alcançava o seu valor quando conseguia impor ao caos do mundo uma forma
transitória.
0 FARDO DA HISTÓRIA 57

Desse modo, na obra de Burckhardt o conceito de “individualismo” serve


primeiramente de metáfora focalizadora que, precisamente por divulgar certos tipos
de informação e intensificar a percepção de outros tipos, lhe permite ver o que ele
quer ver com especial clareza. A estrutura cronológica usual teria impedido essa
tentativa de estabelecer uma perpectiva especifica acerca de seu problema, e assim
Burckhardt a abandonou. E, uma vez liberto das limitações da técnica de “contar
uma história”, ele se livrou da necessidade de construir um “enredo” com heróis,
vilões e coro, como o historiador convencional é sempre impelido a fazer. Por ter a
coragem de utilizar uma metáfora elaborada a partir da sua própria experiência
imediata, Burckhardt foi capaz de ver coisas, na vida do século XV, que ninguém
vira com tanta clareza antes dele. Mesmo os historiadores convencionais que o
julgam equivocado quanto aos fatos conferem à sua obra o estatuto de um clássico.
O que a maioria deles não percebe, contudo, é que, ao elogiar Burckhardt, muitas
vezes estão condenando o seu próprio comprometimento rígido com concepções da
ciência e da arte que o próprio Burckhardt havia transcendido.

Muitos historiadores atualmente demonstram interesse pelos mais recentes


avanços técnicos e metodológicos verificados nas ciências sociais. Alguns deles
tentam utilizar a econometria, a teoria dos jogos, a teoria da solução de conflitos, a
análise funcional e tudo o mais, sempre que percebem que podem servir aos seus
objetivos historiográficos convencionais. Mas pouquíssimos historiadores tentaram
lançar mão das modernas técnicas artísticas de um modo significativo. Um dos
poucos a arriscar-se nessa empresa foi Norman O. Brown.
Em Life Against Death, Brown oferece o equivalente historiográfico do anti-
romance; pois o que ele escreve é anti-história. Os historiadores que se deram ao
trabalho de compulsar o livro de Brown o classificaram de freudiano e o puseram
de parte. Mas o verdadeiro significado de Brown repousa na boa vontade em
praticar uma linha de pesquisas sugerida por Nietzsche e desenvolvida por Klages,
Heidegger e fenomenologistas contemporâneos de orientação existencialista. Ele
começa por nada admitir acerca da validade da história, quer como modo de
existência, quer como forma de conhecimento. Embora utilize matéria histórica, ele
o faz exatamente da mesma forma que se poderia usar a experiência
contemporânea. Brown reduz todos os dados da consciência, tanto os do passado
quanto os do presente, ao mesmo nível ontológico, e então, por uma série de
justaposições, involuções, reduções e distorções brilhantes e surpreendentes, obriga
o leitor a ver sob nova luz elementos que ele esqueceu mediante uma associação
constante, ou que ele reprimiu em virtude de imperativos sociais. Em resumo, na
sua história, Brown obtém os mesmos efeitos visados por um artista pop ou por
John Cage em um dos seus happenings.
Haverá algo intrínseco à nossa abordagem do passado que nos permita julgar
Brown tão indigno de consideração quanto um historiador sério? Certamente, não
poderemos fazer isso se mantivermos o mito de que os historiadores são tão artistas
quanto cientistas. Pois no livro de Brown vemo- nos obrigados a nos confrontar
com o problema do estilo que ele escolheu para a sua obra enquanto historiador,
58 TRÓPICOS DO DISCURSO

antes de podermos passar à questão ulterior de saber se a sua história constitui ou


não um retrato “adequado” do passado.
Mas onde encontrar o critério para determinar quando, de um lado, o “relato”
é adequado aos “fatos” e se, de outro, o “estilo” escolhido pelo historiador é ou
não apropriado ao “relato”? Os historiadores que dão crédito à suposição de que a
história é uma combinação de arte e ciência devem re- portar-se ao outro problema
“interno” da equação, ou seja, o problema da escolha de um estilo artístico entre os
muitos oferecidos pelo legado literário com que o historiador trabalha. Pois já não
é evidente que podemos usar os termos artista e contador de histórias como
sinônimos. Se queremos questionar o direito que um historiador tem de usar uma
concepção da ciência social vigente no século XIX, devemos também estar
preparados para questionar o uso que ele faz de uma concepção da arte vigente no
século XIX.

6.

Existe uma concepção segundo a qual a ideia de que a história é uma


combinação de ciência e arte é apenas mais uma indicação das visões antiquadas
de ambas que predominam entre os historiadores. Há quase três décadas, os
filósofos da ciência e estética vêm trabalhando no sentido de uma compreensão
maior das semelhanças entre as afirmações científicas, de um lado, e as afirmações
artísticas, de outro. Pesquisas como as de Karl Popper na lógica da explicação
científica e o impacto da teoria das probabilidades sobre as considerações da
natureza das leis científicas minaram a ingênua concepção positivista acerca do
caráter absoluto das proposições científicas. Filósofos ingleses e americanos
contemporâneos abrandaram as rígidas distinções, elaboradas originariamente
pelos positivistas, entre afirmações científicas e declarações metafísicas,
removendo destas o estigma de “falta de sentido”. Na atmosfera de troca entre as
“duas culturas” assim criadas, chegou-se a uma maior compreensão da natureza
das afirmações artísticas - e com ela adveio uma possibilidade maior de resolver o
velho problema da relação dos componentes científicos com os componentes
artísticos das explicações históricas.
Já se afigura possível admitir que uma explicação não precisa ser atribuída
uniíateralmente à categoria do literariamente verídico, de um lado, ou do puramente
imaginário, de outro, mas pode ser julgada exclusivamente em função da riqueza
das metáforas que regem a sua sequência de articulação. Assim encarada, a
metáfora que rege um relato histórico poderia ser tratada como uma norma
heurística que elimina autoconscientemente certos tipos de dados tidos como
evidência. Assim, o historiador que opera segundo essa concepção poderia ser visto
como alguém que, a exemplo do artista e do cientista moderno, busca explorar certa
perspectiva sobre o mundo que não pretende exaurir a descrição ou a análise de
todos os dados contidos na totalidade do campo dos fenômenos, mas se oferece
como um meio entre muitos de revelar certos aspectos desse campo. Como salienta
0 FARDO DA HISTÓRIA 59

Gombrich em Art and Illusion, não se espera que Constable e Cézanne tenham
procurado a mesma coisa numa dada paisagem, e, quando se comparam suas
respectivas representações de uma paisagem, não se espera ser necessário fazer uma
escolha entre elas e determinar qual é a “mais correta”. O resultado dessa atitude
não é o relativismo, mas o reconhecimento de que o estilo escolhido pelo artista
para representar uma experiência interior ou uma exterior traz consigo, de um lado,
critérios específicos para determinar quando uma dada representação é
internamente consistente e, de outro, fornece um sistema de tradução que permite
ao observador ligar a imagem à coisa representada em níveis específicos de
objetivação. Dessa maneira, o estilo funciona como aquilo que Gombrich chama
“sistema de notação”, como um protocolo provisório ou uma etiqueta. Quando
observamos a obra de um artista - ou, no caso, de um cientista - não indagamos se
ele vê o que veríamos no mesmo campo de fenômenos gerais, mas se introduziu ou
não em sua representação alguma coisa que poderia ser considerada como
informação falsa por alguém que é capaz de entender o sistema de notação
utilizado.
Aplicado à escrita histórica, o cosmopolitismo metodológico e estilístico
promovido por este conceito de representação obrigaria os historiadores a
abandonar a tentativa de retratar “uma parcela particular da vida, do ângulo correto
e na perspectiva verdadeira”, como expressou um famoso historiador anos atrás, e
a reconhecer que não há essa coisa de visão única correta de algum objeto em
exame, mas sim muitas visões corretas, cada uma requerendo o seu próprio estilo
de representação. Isto nos permitiria considerar seriamente as distorções criativas
oferecidas pelas mentes capazes de olhar para o passado com a mesma seriedade
com que o fazemos, mas com diferentes orientações de ordem afetiva e intelectual.
Então, já não deveríamos esperar ingenuamente que as afirmações sobre uma dada
época ou sobre um conjunto de acontecimentos do passado “correspondam” a al-
gum corpo preexistente de “fatos em estado natural”. Pois deveríamos reconhecer
que o que constitui os próprios fatos é o problema que o historiador, como o artista,
tem tentado solucionar na escolha da metáfora com que possa ordenar o seu mundo
passado, presente e futuro. Deveríamos exigir apenas que o historiador
demonstrasse algum tato no uso das suas metáforas regentes: que não as
sobrecarregasse com dados nem deixasse de utilizá-las ao máximo; que respeitasse
a lógica implícita no modó do discurso pelo qual optou; e que, quando a sua
metáfora começasse a se mostrar incapaz de conciliar certos tipos de dados, ele
abandonasse essa metáfora e procurasse outra, mais rica e mais abrangente do que
aquela com que começou - da mesma forma que um cientista descarta uma hipótese
tão logo se esgota a sua utilização.

Essa concepção da pesquisa e da representação históricas abriria a


possibilidade de usar na história as luzes científicas e artísticas da nossa época sem
desembocar num relativismo radical e na assimilação da história à propaganda, ou
naquele monismo fatal que até agora sempre resultou das tentativas de ligar história
e ciência. Ela permitiria pilhar a psicanálise, a cibernética, a teoria dos jogos e tudo
60 TRÓPICOS DO DISCURSO

o mais, sem obrigar o historiador a tratar as metáforas assim confiscadas como


inerentes aos dados em consideração, tal como é obrigado a fazer quando trabalha
sob a necessidade de buscar uma objetividade impossivelmente abrangente. E
permitiria aos historiadores conceber a possibilidade de utilizar modos de
representação impressionistas, expressionistas, surrealistas e (talvez) até acionistas
a fim de dramatizar a significação dos dados que eles descobriram mas que, com
muita frequência, não lhes é permitido considerar seriamente como provas. Se os
historiadores da nossa geração estivessem inclinados a participar ativamente da
vida intelectual e artística, em geral, da nossa época, o valor da história não
precisaria ser defendido da maneira tímida e ambivalente como o é hoje. A
ambiguidade metodológica da história fornece oportunidades para a observação
criativa do passado e do presente dos quais nenhuma outra disciplina desfruta. Se
quisessem aproveitar as oportunidades assim oferecidas, os historiadores poderiam
em tempo persuadir os seus colegas de outros campos do labor intelectual e
expressivo de que é falsa a asseveração de Nietzsche segundo a qual a história é
“um luxo caro e supérfluo do entendimento”.
Mas com que finalidade básica? Para simplesmente explorar a capacidade
humana para o jogo ou a habilidade da mente para a brincadeira com imagens?
Existem atividades piores para um homem moralmente responsável, é claro, mas
exigir o mero exercício da nossa capacidade de criar imagens não leva
necessariamente à conclusão de que deveríamos exercitá-la no passado histórico.
Aqui, seria bom ter em mente a linha de argumentação que vai de Schopenhauer
até Sartre, segundo a qual o registro histórico é incapaz de constituir-se em ocasião
de experiência estética ou experiência científica significativas. O registro
documentário, sustenta esta tradição, primeiro solicita o exercício da imaginação
especulativa pela sua incompletude e depois a desestimula ao exigir que o
historiador permaneça limitado à consideração daqueles poucos fatos que ela
fornece. Portanto, tanto na opinião de Schopenhauer quanto na de Sartre, é de bom
alvitre para o artista ignorar o registro histórico e limitar-se à consideração do
mundo dos fenômenos tal como este lhe é apresentado na sua experiência cotidiana.
Cabe perguntar, então, por que o passado deve ser estudado e qual função pode ser
favorecida por uma contemplação das coisas à luz da história. Em outras palavras:
há alguma razão pela qual devamos estudar as coisas à luz da sua condição passada,
e não à luz da sua condição presente, que é a luz sob o qual todas as coisas se
oferecem imediatamente à contemplação?
No meu entender, a resposta mais sugestiva a essa pergunta foi fornecida
pelos pensadores que floresceram durante a época áurea da história - o período entre
1800 e 1850. Os pensadores dessa época reconheciam que a função da história, tal
como ela se distinguiu da arte e também da ciência daquele tempo, era fornecer
uma dimensão temporal inerente à consciência que o homem tem de si mesmo. Ao
passo que tanto antes como depois dessa época os estudiosos das coisas humanas
tendiam a reduzir os fenômenos humanos a manifestações de processos naturais ou
mentais hipostatizados (como no idealismo, no naturalismo, no vitalismo e
quejandos), os expoentes do pensamento histórico entre 1800 e 1850 consideravam
0 FARDO DA HISTÓRIA 61

a imaginação histórica uma faculdade que, tendo-se originado do impulso do ho-


mem para impor imagens estáveis ao caos do mundo dos fenômenos - isto é, um
impulso estético desembocava numa trágica reafirmação do fato fundamental da
mudança e do processo, fornecendo assim uma base para a celebração da
responsabilidade do homem por seu próprio destino.
Os expoentes do historicismo realista - Hegel, Balzac e Tocqueville, para
citar os representantes da filosofia, do romance e da historiografia, respectivamente
- concordavam em que a tarefa do historiador era menos lembrar aos homens suas
obrigações para com o passado que impor-lhes uma consciência da maneira como
o passado poderia ser utilizado para efetuar uma transição eticamente responsável
do presente para o futuro. Todos os três viam na história algo que educa os homens
para o fato de que o seu próprio mundo presente existira outrora na mente dos
homens sob a forma de um futuro desconhecido e ameaçador, mas como, em
consequência de decisões humanas específicas, esse futuro se transformara num
presente, naquele mundo familiar em que o próprio historiador viveu e trabalhou.
Todos os três consideravam a história inspirada por uma trágica consciência do
absurdo da aspiração humana individual e, ao mesmo tempo, por uma consciência
da necessidade dessa aspiração se se quisesse salvar o resíduo humano da
consciência potencialmente destrutiva do movimento do tempo. Assim,
62 TRÓPICOS DO DISCURSO

para todos os três, a história era menos um fim em si que uma preparação
para um entendimento e aceitação mais completos da responsabilidade individual
na criação da humanidade comum do futuro. Hegel, por exemplo, escreve que na
reflexão histórica o Espírito é “tragado na noite da sua própria autoconsciência; sua
existência desvanecida, contudo, é conservada ali; e essa existência descartada - o
estado anterior, porém renascido do ventre do conhecimento - é o novo estágio da
existência, um novo mundo, uma reencarnação ou um novo modo do Espírito”.
Balzac apresenta a sua Comédia Humana como uma “história do coração humano”
que faz o romance avançar além do ponto em que Scott o deixara, graças ao
“sistema” que entrelaça as várias partes do todo numa “história completa da qual
cada capítulo é um romance e cada romance o retrato de um período”, e o conjunto
promove uma percepção mais realista da singularidade da época atual. E, por fim,
Tocqueville oferece o seu Ancien Régime como uma tentativa de “deixar claro em
que aspectos [o sistema social presente] se assemelha ao sistema social que o
antecedeu e em que aspectos se distingue dele; e determinar o que se ganhou com
essa revolução”. Em seguida ele ressalta: “Quando encontrei em nossos
antepassados alguma dessas virtudes tão vitais a uma nação, mas hoje quase
extintas - um espírito de independência salutar, ambições elevadas, fé em si mesmo
e numa causa -, transformei-a em consolo. De modo semelhante, sempre que
encontrei traços de algum daqueles vícios que depois de destruir a antiga ordem
ainda afetam o corpo político, enfatizei-o; pois é à luz dos males que eles
anteriormente provocaram que podemos avaliar os danos que ainda podem fazer”.
Em síntese, todos os três interpretavam o fardo do historiador como a
responsabilidade moral de libertar o homem do fardo da história. Não viam no
historiador alguém que prescreve um sistema ético específico, válido para todos os
tempos e lugares, mas viam nele alguém incumbido da tarefa especial de induzir
nos homens a consciência de que a sua condição presente sempre foi em parte um
produto de opções especificamente humanas, que poderiam, pois, ser mudadas ou
alteradas pela ação humana exatamente nesse grau. A história, assim, sensibilizava
os homens para os elementos dinâmicos contidos no presente, ensinava a
inevitabilidade da mudança e desse modo ajudava a libertar esse presente do
passado sem revolta nem ressentimento. Só depois que os historiadores perderam
de vista esses elementos dinâmicos contidos no seu próprio presente vivido e
começaram a relegar toda mudança significativa a um passado mítico -
contribuindo assim, de maneira implícita, unicamente para a justificativa do status
quo - é que críticos como Nietzsche puderam acusá-los com razão de serem servos
da trivialidade presente, o que quer que ela pudesse ser.
Atualmente, a história tem uma oportunidade de se valer das novas
perspectivas sobre o mundo oferecidas por uma ciência dinâmica e por uma arte
igualmente dinâmica. Tanto a ciência como a arte transcenderam as concepções
mais antigas e estáveis do mundo que exigiam que elas expressassem uma cópia
literal de uma realidade presumivelmente estática. E ambas descobriram o caráter
essencialmente provisório das construções metafóricas de que se valem para
compreender um universo dinâmico. Por isso, afirmam implicitamente a verdade
0 FARDO DA HISTÓRIA 63

proclamada por Camus quando escreveu: “Antes, tratava-se de descobrir se a vida


devia ou não ter um sentido para ser vivida. Agora se torna claro, pelo contrário,
que ela será mais bem vivida se não tiver nenhum sentido”. Poderíamos retificar a
afirmação para ler: ela será mais bem vivida se não tiver um sentido único, mas
muitos sentidos diferentes.
A partir da segunda metade do século XIX, a história tem-se convertido cada
vez mais no refúgio de todos os homens “sensatos” que primam por encontrar o
simples no complexo e o familiar no estranho. Tudo isso estava muito bem naquela
época, mas, se a geração atual necessita de alguma coisa, é de certa boa vontade
em enfrentar heroicamente as forças dinâmicas e destrutivas da vida
contemporânea. O historiador não presta nenhum bom serviço quando elabora uma
continuidade especiosa entre o mundo atual e o mundo que o antecedeu. Ao
contrário, precisamos de uma história que nos eduque para a descontinuidade de
um modo como nunca se fez antes; pois a descontinuidade, a ruptura e o caos são
o nosso destino. Se, como disse Nietzsche, “temos a arte para não precisar morrer
pela verdade”, temos também a verdade para escapar à sedução de um mundo que
não passa de uma criação dos nossos anseios. A história é capaz de prover uma base
em que possamos buscar aquela “transparência impossível” que Camus exige para
a humanidade ensandecida da nossa época. Só uma consciência histórica pura pode
de fato desafiar o mundo a cada segundo, pois somente a história serve de
mediadora entre o que é e o que os homens acham que deveria ser, exercendo um
efeito verdadeiramente humanizador. Mas a história só pode servir para humanizar
a experiência se permanecer sensível ao mundo mais geral do pensamento e da ação
do qual procede e ao qual retorna. E, enquanto se recusar a usar os olhos que tanto
a arte moderna quanto a ciência moderna lhe podem dar, ela haverá de permanecer
cega - cidadã de um mundo em que “as pálidas sombras da memória em vão se
debatem com a vida e com a liberdade do tempo presente”.
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 89

A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA

Os teóricos da historiografia geralmente concordam em que todas as


narrativas históricas contêm um elemento de interpretação irredutível e
inexpungível. O historiador deve interpretar a sua matéria a fim de construir o
padrão que irá produzir as imagens em que deve refletir-se a forma do processo
histórico. E isto porque o registro histórico é ao mesmo tempo compacto demais e
difuso demais. De um lado, sempre existem mais fatos registrados do que o
historiador pode talvez incluir na sua representação narrativa de um dado segmento
do processo histórico. E, assim, o historiador deve “interpretar” os seus dados,
excluindo de seu relato certos fatos que sejam irrelevantes ao seu propósito
narrativo. De outro lado, no empenho de reconstruir “o que aconteceu” num dado
período da história, o historiador deve inevitavelmente incluir em sua narrativa um
relato de algum acontecimento ou conjunto de acontecimentos que carecem dos
fatos que poderiam permitir uma explicação plausível de sua ocorrência. E isto
significa que o historiador precisa “interpretar” o seu material, preenchendo as
lacunas das informações a partir de inferências ou de especulações. Uma narrativa
histórica é, assim, forçosamente uma mistura de eventos explicados adequada e
inadequadamente, uma congérie de fatos estabelecidos e inferidos, e ao mesmo
tempo uma representação que é uma interpretação e uma interpretação que é
tomada por uma explicação de todo o processo refletido na narrativa.
Exatamente pelo fato de admitirem geralmente o aspecto inelutavelmente
interpretativo da história é que os teóricos apresentaram a tendência a subordinar o
estudo do problema da interpretação ao da explicação. Admitindo-se que todas as
histórias são em certo sentido interpretações, faz-se necessário determinar até que
ponto as explicações que os historiadores fazem dos acontecimentos passados
podem ser qualificadas de relatos objetivos, se não rigorosamente científicos, da
realidade. E os teóricos da história, nos últimos vinte e cinco anos, em vez de
estudar os vários tipos de interpretações que se encontram na historiografia, têm
tentado esclarecer o status epistemológico das representações históricas e
90 TRÓPICOS DO DISCURSO

estabelecer a sua autoridade de explicações28.


Certamente, o problema da interpretação na história tem sido tratado
juntamente com as tentativas de analisar a obra dos grandes “meta-historia- dores”.
Supõe-se geralmente que “os filósofos especulativos da história”, como Hegel,
Marx, Spengler e Toynbee, trabalham mais com “interpretações” mais ou menos
interessantes da história do que com as supostas “explicações” que afirmam ter
fornecido. Mas é costume admitir que a obra desses meta-historiadores difere
radicalmente da obra do historiador propriamente dito, o qual persegue objetivos
mais modestos, renunciando ao impulso para decifrar o “enigma da história” e
identificar o plano ou meta do processo histórico como um todo. O “historiador
propriamente dito”, costuma-se afirmar, procura explicar o que aconteceu no
passado mediante uma reconstrução precisa e minuciosa dos acontecimentos
registrados nos documentos. Ele o faz presumivelmente reprimindo até onde for
possível seu impulso para interpretar os dados, ou pelo menos indicando, em sua
narrativa, onde está apenas representando os fatos e onde os está interpretando.
Desse modo, na teoria da história, concebe-se que a explicação é posposta em rela-
ção à interpretação, como elementos claramente discerníveis de toda representação
histórica “propriamente dita”. Na meta-história, em contrapartida, os aspectos
explicativos e interpretativos da narrativa tendem a andar juntos e a se confundir
de modo a dissolver a sua autoridade de representação do “que aconteceu” no
passado ou de explicação válida da razão por que aconteceu como aconteceu29.
Ora, neste ensaio argumentarei que a distinção entre história propriamente
dita e meta-história mais obscurece que esclarece a natureza da interpretação na
historiografia em geral. Além disso, sustentarei que não pode haver história
propriamente dita sem o pressuposto de uma meta-história plenamente
desenvolvida, pela qual se possa justificar aquelas estratégias interpretativas
necessárias para a representação de um dado segmento do processo histórico. Ao
adotar esta linha, dou continuidade a uma tradição da teoria histórica estabelecida
durante o século XIX, na época em que a história se constitui em disciplina
acadêmica. Esta tradição surgiu em oposição à reivindicação especiosa, feita por
Ranke e seus epígonos, do rigor científico da historiografia.
Durante o século XIX, quatro teóricos importantes da historiografia

28 Essa generalização é mais verdadeira no tocante aos teóricos americanos e ingleses do que aos da Europa
Continental. Para uma seleção representativa das abordagens do problema da explicação histórica desen-
volvidas nos últimos vinte e cinco anos nos Estados Unidos, no Canadá e na Grã-Bretanha, ver W. H. Dray
(ed.), Philosophical Anulysis and History (New York, 1966). Dray resume as principais questões na sua própria
obra, Philoxophy of History (Englewood Cliffs, N. J., 1964); mas ver também Louis O. Mink, “Philosophical
Analysis and Historical Understanding”, Review of Metaphysics 21, n. 4 (june 1968): 667- 698. O interesse da
Europa Continental pelo problema da interpretação histórica se desenvolveu no contexto do interesse geral
pela hermenêutica. Ver Aríhur Child, Interpretalion: A General Theory (Berketey e Los Angeles, 1965); e idem,
“Five Conceptions of History”, Ethics 68, n. 1 (Octobcr 1957); 28-38.
29 O termo meta-histôria é usado como sinônimo de “filosofia especulativa da história” por Northrop Frye em
“New Directions from Old”, em Fables of Ídentity (New York, 1963), pp. 52-66. Sobre a filosofia especulativa
da história, ver Dray, Philoxophy of History, pp. 59 e ss., e W. H. Walsh, Introáuction to the Phitosophy of History
(London, 1961), cap. 3. Sobre a concepção da “filosofia especulativa da história” como mythopoesis implícita,
ver Karl Lõwith, Mcaning in History: The Theological Implica!ions of the Philoxophy of History (Chicago, 1949).
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 91

rejeitaram o mito da objetividade que predominava entre os adeptos de Ranke.


Hegel, Droysen, Nietzsche e Croce viam na interpretação a própria alma da
historiografia, e cada um tentou formular uma classificação dos seus tipos. Hegel,
por exemplo, distinguia quatro tipos de interpretação dentro da classe do que ele
chamou historiografia reflexiva: universal, pragmática, crítica e conceituai30.
Droysen, escrevendo na década de 1860, também discernia quatro possíveis
estratégias interpretativas na escrita histórica: causai, condicional, psicológica e
ética31. Em O Uso e o Abuso da História, Nietzsche concebia quatro abordagens
da representação histórica: monumental, antiquária, crítica e “super-histórica”, que
constituía a sua própria abordagem32. E, finalmente, Croce sustentou ter encontrado
quatro posições filosóficas diferentes a partir das quais os historiadores do século
XIX afirmaram, com graus diferentes de legitimidade, compreender o registro
histórico: romântica, idealista, positivista e crítica33.
A natureza quádrupla destas classificações dos modos de interpretação
historiográfica é em si mesma significativa; mais adiante comentarei a sua
significação para um entendimento da interpretação em geral. Por enquanto, quero
deter-me nas diferentes razões que cada um desses teóricos apresentou para insistir
no elemento inelutavelmente interpretativo em toda narrativa histórica digna desse
nome. Em primeiro lugar, todos esses teóricos repudiaram a concepção rankiana
do “olho inocente” do historiador e a noção de que os elementos da narrativa
histórica, os “fatos”, eram fornecidos apoditicamente, e não constituídos pela
própria ação do historiador. Todos eles ressaltaram o aspecto ativo, inventivo, da
suposta “investigação” do historiador daquilo “que realmente aconteceu” no
passado. Para Droysen, impunha-se a interpretação apenas porque o registro
histórico era incompleto. Embora possamos dizer com alguma segurança “o que
aconteceu”, nem sempre podemos dizer, com base no simples registro, “por que”
aconteceu como aconteceu. O registro tinha de ser interpretado, e isto significava
“ver realidades nos eventos passados, realidades com aquela plenitude de condi-
ções que devem ter tido para poderem tomar-se realidades”. Esse “ver” era um ato
de cognição e, na opinião de Droysen, devia ser distinguido da atividade mais
obviamente “artística” em que o historiador, num discurso em prosa, elaborava

30 G. W. F. Hegel, Vorlesungen überdie Philosaphíe der Geschichte (Frankfurt am Main, 1970), pp. 14 e ss. Por
historiografia “reflexiva”, Hegel entende a história escrita de um ponto de vista conscientemente crítico e com
plena percepção da distância temporal entre o historiador e os acontecimentos sobre os quais ele escreve. Isto
em comparação com a historiografia “original” ([ursprüngliche), na qual o historiador escreve, por assim dizer,
“ingenuamente” sobre acontecimentos no seu próprio presente, à maneira de Tucídides, e com a historiografia
“filosófica” (philosophischc), na qual um filósofo, refletindo sobre as obras dos historiadores, procura extrair
as leis gerais ou princípios que caracterizam o processo histórico como um todo. Na categoria de historiografia
reflexiva, Hegel estabelece novas distinções com base na autoconsciência crítica do historiador, que vão do
historiador universal “ingenuamente” reflexivo (como Ti to Lívio) aos historiadores conceituais “sentimentais”
de sua própria época (como Niebuhr),
31 J. G. Droysen, “Grundriss der Historik’', em Historik: Vorlesungen der Enzyklopãdie und Methodologie der
Geschichte, ed. Rudolf Hubner, 3. ed. (München, 1958), pp. 340-343.
32 Fricdrich Nietzsche, Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben (Basel, VerJag Birkhauser, s. d,), pp.
17-27.
33 Benedetto Croce, History: hs Theory andPractice, trad. Douglas Ainslee (New York, 1960), pp. 236 e ss.
92 TRÓPICOS DO DISCURSO

uma representação literária adequada das “realidades”. Entretanto, mesmo na


representação a interpretação era necessária, já que os historiadores poderiam
escolher com base em dados estéticos estruturas de enredo diferentes através das
quais pudessem dar às sequência s de eventos sentidos diferentes enquanto tipos de
estória34.
Nietzsche, em contrapartida, insistia em que a interpretação era necessária na
historiografia por causa da natureza dessa “objetividade” que o historiador se
empenhava em alcançar. Esta objetividade não era a do cientista nem a do juiz no
tribunal, mas a do artista, mais especificamente a do dramaturgo. A tarefa do
historiador era pensar dramaturgicamente, vale dizer, “pensar uma coisa junto com
outra e tecer os elementos num todo singular, na presunção de que a unidade do
plano deve ser posta nos objetos se ainda não estiver afNietzsche se confessava
capaz de imaginar “um tipo de escrita histórica que não tinha nada do fato comum
e que, não obstante, poderia exigir ser chamada de objetiva no mais alto grau” 35.
Além disso, negava que o valor da história estivesse na revelação de fatos
conhecidos anteriormente ou na generalização que se poderia operar por reflexão
sobre os fatos. “Em outras disciplinas”, ele observava, “as generalizações são as
coisas mais importantes, na medida em que contêm as leis”. Mas, se as generaliza-
ções do historiador devem vigir como leis, salientava ele, então “o trabalho do
historiador é inútil; pois o resíduo de verdade contido nelas, uma vez removida a
parte obscura e insolúvel, nada mais é que o conhecimento mais corriqueiro. A
menor esfera da experiência ensinará isso”. Pelo contrário, ele concluía, o
verdadeiro valor da história está “em inventar variações ingênuas sobre um tema
provavelmente corriqueiro, em elevar a melodia popular a símbolo universal e em
mostrar o mundo de profundidade, poder e beleza que existe nela” 36.
Hegel e Croce, evidentemente, relutaram em ir tão longe nas suas
conceituações das atividades interpretativas do historiador. Ambos estavam
preocupados em estabelecer a autoridade cognitiva das representações do passado
por parte do historiador, e ambos insistiam em que os esforços deste para
compreender os fatos tinham de ser guiados por um tipo de auto- consciência critica
de natureza especificamente filosófica. Mas, como Droysen e Nietzsche, Hegel e
Croce colocavam a historiografia entre as artes literárias e buscavam basear numa
intuição poética do particular os discernimentos do historiador acerca da realidade.
Onde diferiam da maioria dos seus sucessores filosóficos era na sua crença de que
a poesia constituía uma forma de conhecimento, na verdade a base de todo
conhecimento (científico, religioso e filosófico), e na sua convicção de que a
história, tal como outras formalizações da intuição poética, era tanto uma “criação”
(uma inventió) quanto uma “descoberta” dos fatos abrangidos pela estrutura de suas
percepções1'1.

34 Droysen, “Grundriss der Historik,” pp. 339, 344, 361-362. A citação é da versão inglesa da obra de Droysen,
feita por E. B. Andrew, Outline of the Principies of History (Boston, 1893), p. 26.
S. Nietzsche, Vom Nutzen und Nachteil der Historie, p. 57. As citações dessa obra no texto são feitas a partir da
tradução de Adrian Collins, em The Use and Abuse of History (Indianapolis e New York, 1957), pp. 37-38.
36 Nietzsche, Vom Nutzen und Nachteil der Historie, p. 59 (na trad. de Collins, p. 39).
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 93

Filósofos contemporâneos, trabalhando com a convicção de que as in-


tuições poéticas e científicas são mais diferentes do que semelhantes, têm-se
preocupado em recuperar a reivindicação de um status científico por parte da
história - e, portanto, tenderam a diminuir a importância do elemento interpretativo
nas narrativas históricas. Inclinaram-se a inquirir até que ponto uma narrativa
histórica pode ser considerada algo de diferente de uma simples interpretação, na
suposição de que o que é interpretação não é conhecimento mas apenas opinião, e
na crença de que o que não é objetivo num sentido científico não é digno de ser
conhecido.
De modo geral, os teóricos contemporâneos solucionaram de duas maneiras
o problema do status epistemológico da história. Um grupo, adotando uma visão
positivista da explicação, afirmou que os historiadores explicam os acontecimentos
passados somente na medida em que conseguem identificar as leis de causalidade
que regem os processos nos quais ocorrem os eventos. Além do mais, sustentam
que a história só pode reivindicar o status de ciência na medida em que os
historiadores conseguem realmente identificar as leis que em última análise
determinam os processos históricos37. Outro grupo, adotando uma postura um
pouco mais literária, sustentou que os historiadores explicam os eventos que
compõem as suas narrativas por meios especificamente narrativos de codificação,
isto é, descobrindo a estória que está encerrada nos eventos ou por trás deles e
contando-a de uma maneira que um homem medianamente culto possa entender.
Mas tal explicação, insiste esse grupo, embora “literária” na forma, não deve ser
considerada não-científica ou anticientífica. Uma explicação “narrativista” na
história qualifica-se de contribuição ao nosso conhecimento objetivo do mundo por
ser empírica e estar sujeita a técnicas de verificação e invalidação da mesma forma
que estão as teorias da ciência38. Ambos os grupos de teóricos admitem que a

37 A clássica defesa da concepção nomológico-dedutiva da explicação histórica é de Carl G. Hempel,


“Explanation in Science and in History,” reproduzido em Dray, Philosophical Analysis and History, pp. 95-
126. A tese de Hempel ê que “a explicação... c basicamente a mesma em todas as áreas de investigação
científica” e que, na medídii em que os historiadores “explicam” e desse modo fornecem o “entendimento”
dos acontecimentos passados, devem fazê-lo empregando as mesmas táticas “dedutivas e nomológicíLs” das
ciências físicas; mas que, sendo impedidos pela natureza dos acontecimentos de que se ocupam, o melhor a
que podem aspirar legitimamente, no tocante a uma explicação desses acontecimentos, são p seu do-expl a
nações perosas, parciais ou vagas. Ver a exposição e a crítica desse ponto de vista por Alan Donagan, “The
Popper-Hempel Theory Reconsidered”, em Dray, Philosophical Analysis and History, pp. 127-159.
38 A concepção narrativista da explicação histórica sustenta que os historiadores proporcionam o entendimento
dos eventos e processos passados esclarecendo a linha “estórica” dos segmentos finitos do registro histórico.
Nesta concepção, um processo histórico se assemelharia mais ao desenrolar de um jogo esportivo, cujo
resultado não é previsível antes da sua conclusão, mas que é compreensível retrospectivamente. O historiador
torna compreensível dado processo histórico mediante o tipo de retrospecto desenvolvido pelos comentaristas
esportivos após o término de determinado jogo. Desembrulhando os elementos do jogo terminado, dispondo-
os numa ordem intemporal e fazendo-os desenvolver-se pouco a pouco ante o olhar fixo do leitor, o
historiador faz com que a articuíação desses elementos* “possa ser seguida apesar de tudo" de uma forma
que não fora possível durante o seu desenrolar original. Para uma defesa desse ponto de vista, ver W. B.
Gallie, Pkilosopky and lhe Historical Understanding (New York, 1968), cap. 2, e Louis O. Mink, ‘The Autonomy
of Historical Understanding”, em Dray, Philosophical Analysis and History, pp. 160-192. A estrutura lógica
das narrativas históricas, baseadas no modo do que se chamou “sentenças narrativas”, é analisada de
maneira convincente em Arthur C. Danto, Analiti- cal Philosophy of History (Cambridge, 1965).
94 TRÓPICOS DO DISCURSO

interpretação pode entrar no relato do passado pelo historiador em algum ponto da


construção de sua narrativa e aconselham que os historiadores tentem distinguir
aqueles aspectos dos seus relatos que têm fundamentos empíricos daqueles que se
baseiam em estratégias interpretativas. Eles diferem, basicamente, em torno da
questão da natureza formal exata do elemento explicativo presente em qualquer
narrativa histórica responsável. Quanto ao elemento interpretativo que poderia
figurar num relato histórico do passado, eles estão inclinados a ver nele o empenho
do historiador em preencher por especulação as lacunas do registro, em inferir
motivos de agentes históricos e em avaliar o impacto, a influência ou a significação
de fatos estabelecidos empiricamente com relação a outros segmentos do registro
histórico39.
Os críticos da historiografia como disciplina, contudo, adotaram opiniões
mais radicais sobre a questão da interpretação na história, chegando a afirmar que
os registros históricos nada mais são que interpretações, tanto no estabelecimento
dos eventos que constituem a crônica da narrativa quanto nas avaliações do sentido
ou significações desses eventos para o entendimento do processo histórico em
geral. Assim, por exemplo, em O Pensamento Selvagem, Claude Lévi-Strauss
asseverou que a coerência formal de qualquer narrativa histórica consiste
exclusivamente num “esquema fraudulento” imposto pelo historiador a um corpo
de material que só poderia ser chamado de “dados” no sentido mais amplo do
termo. Os relatos históricos são inevitavelmente interpretativos, afirma Lévi-
Strauss, por causa de “uma dupla antinomia [subjacente] à própria noção de fato
histórico”. Um fato histórico é “o que aconteceu realmente”, observa ele; mas onde,
ele pergunta, aconteceu alguma coisa? Qualquer episódio histórico - de uma
revolução ou de uma guerra, por exemplo - pode ser decomposto numa “multidão
de momentos psíquicos e individuais”. Cada um desses momentos, por sua vez,
pode ser traduzido numa manifestação de algum processo mais fundamental de
“evoluções inconscientes, e estas se resolvem em fenômenos cerebrais, hormonais
ou nervosos, cujas referências são também de ordem física e química”. Assim,
conclui Lévi-Strauss, os fatos históricos não são de forma alguma “dados” ao
historiador, mas, antes, são “constituídos” pelo próprio historiador “por abstração
e como que sob a ameaça de uma regressão ao infinito”.
Além disso, afirma Lévi-Strauss, se os fatos históricos são constituídos, e
não dados, da mesma forma são “escolhidos” e não fornecidos apoditicamente
como elementos de uma narrativa. Defrontado com um caos de “fatos”, o
historiador deve “escolhê-los, destacá-los e recortá-los” para fins narrativos. Em
suma, os fatos históricos, originariamente constituídos pelo historiador como
dados, devem ser constituídos uma segunda vez como elementos de uma estrutura
verbal que sempre é escrita com um propósito específico (manifesto ou latente).
Isto quer dizer que, segundo ele, a “história” nunca é apenas a história, mas sempre
a “história-para”, a história escrita no interesse de algum objetivo ou visão

39 Ver Isaiah Berlin, “The Conccpt of Scientific History”, em Dray, Philosophical Analysis oncl History, pp. 40-
51.
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 95

infracientíficos40.
Em sua “Introdução a Le Cm et le Cuit”, Lévi-Strauss afirma que o aspecto
interpretativo da historiografia é especificamente mítico. Comentando a pletora de
obras que se ocupam da Revolução Francesa, ele observa que

nelas os autores nem sempre fazem uso dos mesmos incidentes; quando o fazem, os incidentes são
revelados sob luzes diferentes. E, no entanto, estas são variações relacionadas com o mesmo naís, o mesmo
período e os mesmos acontecimentos - acontecimentos cuja realidade se dispersa por cada nível de uma
estrutura multiestratificada.

Isto sugere que o critério de validade pelo qual se poderia avaliar os relatos
históricos não pode depender de seus “elementos”, isto é, de seu suposto conteúdo
“factual”. Ao contrário, observa ele, “procurado isoladamente, cada elemento
mostra que está fora de alcance. Mas alguns deles derivam sua coerência do fato
de poderem ser integrados a um sistema cujos termos são mais ou menos críveis
quando comparados à coerência global da série”. A coerência da série, todavia, é a
coerência do mito.. Como diz Lévi-Strauss: “A despeito dos esforços meritórios e
indispensáveis para dar vida a um outro momento da história e para apropriar-se
dele, uma história clarividente deveria admitir que ele jamais escapa
completamente à natureza do mito”41.
Decerto, em La Pensée Sauvage, Lévi-Strauss admite que a história pode
distinguir-se do mito em virtude da sua dependência dos “dados” que constituem a
sua especiosa estrutura objetiva, e em virtude da sua responsabilidade para com
eles. As datas, diz ele, justificam a busca de “relações temporais” por parte do
historiador e sancionam a conceituação dos acontecimentos em função “da relação
do antes e do depois”. Mas, continua ele, mesmo essa confiança no registro
cronológico não isenta o historiador de interpretações míticas do seu material. Pois,
com efeito, não se encontram aí apenas cronologias “quentes” e “frias”
(cronologias em que aparece um número maior ou menor de dados a exigir inclusão
em algum relato cabal daquilo “que estava acontecendo”), porém, mais importante
ainda, os próprios dados já nos chegam agrupados em “classes de datas” que
constituem os supostos “domínios da história” que os historiadores de uma dada
época têm de enfrentar na forma de problemas a solucionar. Em suma, o recurso à
sequência cronológica não oferece nenhum indulto da acusação de que a coerência
do relato histórico é mitológico em sua essência. Pois a crônica não é menos
constituída em registro do passado pela própria ação do historiador do que o é a
narrativa que ele elabora com base nela. E quando se trata de elaborar um relato
abrangente dos vários domínios do registro histórico, qualquer “pretensa
continuidade histórica” que se pudesse estabelecer em tal relato “só pode ser
assegurada por meio de esquemas fraudulentos” impostos pelo próprio historiador
ao registro.

40 Claude Lévi-Strauss, The Suvage Mind (London, 1966), p. 257.


41 Ciaude Lévi-Strauss, “Overture to Le Cru et le cuit", em Structuralism, ed. Jaeques Ehrmann (New York,
1966), pp. 47-48.
96 TRÓPICOS DO DISCURSO

Estes “esquemas fraudulentos”, assevera Lévi-Strauss, constituem a soma


total dessas supostas “explicações” que os historiadores oferecem de estruturas e
processos do passado. Estas explicações, por sua vez, representam produtos de
decisões de ignorar domínios específicos no intuito de obter uma coerência
puramente formal na representação. E isto significa que a interpretação histórica
figura naquele espaço criado pela tensão entre o impulso para, de um lado, explicar
e, de outro, transmitir informação. Ou, em suas próprias palavras, “em relação a
cada domínio da história ao qual ele renuncia, a escolha relativa do historiador é
sempre entre uma história que ensine mais e explique menos e uma história que
explique mais e ensine menos”42.
Então, segundo a análise de Lévi-Strauss, os historiadores devem decidir se
querem explicar o passado (caso em que são obrigados a modos míticos de
representação) ou apenas acrescentar ao corpo de “fatos” que requerem tal
representação. E este dilema só pode ser evitado, afirma ele, se reconhecermos que
“a história é um método ao qual não corresponde um objeto específico”; é uma
disciplina sem um objeto particular que lhe seja atribuído com exclusividade.
Opondo-se à crença humanista de que o homem ou o ser humano em geral é o
objeto peculiar da reflexão histórica, Lévi-Strauss sustenta que a história “não está
ligada ao homem nem a nenhum objeto particular”. A história, diz ele, “consiste
inteiramente em seu método, que a experiência prova ser indispensável para
inventariar a integralidade dos elementos de uma estrutura qualquer, humana ou
não-hu- mana”. Assim sendo, a história não é de modo algum uma ciência, ainda
que como “método” ela contribua para as ciências graças às suas operações de
inventariação. O que o historiador oferece como explicações das estruturas e
processos do passado, na forma de narrativas, são simples formalizações desses
“esquemas fraudulentos” que, em última análise, são místicos em sua essência43.
Esta concepção da historiografia apresenta notáveis semelhanças com as de
Northrop Frye e do falecido R. G. Collingwood. Estes dois pensadores analisam o
elemento do “constructo” na representação histórica, na medida em que o
historiador deve necessariamente “interpretar” os “dados” que lhe são oferecidos
pelo registro histórico a fim de fornecer algo como uma “explicação” deles. Num
breve ensaio sobre os tipos de especulação “meta-his- tórica” criados por Hegel,
Marx e Spengler, observa Frye: “Notamos que, quando o projeto de um historiador
atinge certo nível de abrangência, ele se toma mítico na forma e, assim, se aproxima
do poético em sua estrutura”. E continua a falar de “mitos históricos românticos
baseados numa busca (ou peregrinação) de uma Cidade de Deus ou de uma
sociedade sem classes; ... [de] mitos históricos cômicos do progresso mediante
evolução ou revolução; [e de ... mitos trágicos de declínio e queda, de recorrência
ou de catástrofe casual”44.
Todavia, insiste Frye, o historiador não impõe (ou pelo menos não deveria

42 Lévi-Strauss, Scivage Mind, pp. 258-262.


43 Idem, p. 262.
44 Frye, “New Directions from Old”, pp. 53-54.
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 97

impor) um padrão aos seus dados; deve proceder “indutivamente, coletando os seus
fatos e tentando evitar quaisquer padrões de formação, exceto aqueles que ele vê,
ou tem a honesta convicção de ver, nos próprios fatos”. Diferentemente do poeta,
que, no entender de Frye, trabalha “dedutivamente”, a partir de uma apreensão do
padrão que tenciona impor ao seu assunto, o historiador trabalha com vistas a
unificar a forma da sua narrativa, depois de ter terminado a sua “pesquisa”. Mas a
diferença entre um relato histórico e um relato ficcional do mundo é formal, não é
substantiva; reside nos pesos relativos atribuídos aos elementos construtivos
presentes neles: “O padrão de composição do livro do historiador, que é o seu
mythos ou entrecho, é secundário, da mesma forma que o detalhe é secundário para
o poeta”45.
Desse modo, embora pretenda insistir nas importantes diferenças entre
poesia e história, Frye é sensível ao grau em que elas se parecem uma com a outra.
E, embora queira acreditar que a história tradicional pode ser distinguida da meta-
história, na sua própria análise das estruturas da ficção em prosa, Frye deve estar
pronto a admitir que existe um elemento mítico na história tradicional pelo qual as
estruturas e processos descritos em suas narrativas são dotados de sentidos de um
tipo especificamente fictício. Pode-se dizer que uma interpretação histórica, tal
como uma ficção poética, apela para seus leitores como representação plausível do
mundo, em virtude do seu recurso implícito àquelas “estruturas de enredo
genéricas” ou formas arquetípicas de estória que definem as modalidades de uma
dada dotação literária da cultura30. Pode-se dizer que, não menos que os poetas, os
historiadores, quando constroem em suas narrativas padrões de sentido
semelhantes aos fornecidos de maneira mais explícita pela arte literária das culturas
a que pertencem, adquirem uma “disposição explicativa” - além e acima de quais-
quer explicações formais que possam oferecer de eventos históricos específicos.
Este elemento mítico na sua obra é reconhecível naqueles relatos históricos que,
como O Declínio e Queda do Império Romano de Gibbon, continuam a ser
reverenciados como clássicos muito tempo depois que os “fatos” neles contidos
foram reconhecidamente apurados por pesquisas subsequentes e que seus
argumentos explicativos formais foram transcendidos pelo advento de novas
teorias sociológicas e psicológicas.
Estendendo as ideias de Frye, pode-se afirmar que a interpretação na história
consiste em fornecer a uma sequência de acontecimentos uma estrutura de enredo,
de tal modo que a sua natureza de processo abrangente seja revelada por figurar
como uma estória de um tipo particular. O que um historiador pode urdir na forma
de uma tragédia, outro pode fazê-lo na forma de comédia ou de romance. Vista
desse modo, a “estória” que o historiador intenta “encontrar” no registro histórico
é proléptica ao “enredo” pelo qual os acontecimentos são por fim revelados para
representar uma estrutura reconhecível de relações de um tipo especificamente
mítico. Na narrativa histórica, a estória está para o enredo assim como a exposição
do “que aconteceu” no passado está para a caracterização sinóptica daquilo que

45 Frye, “New Directions from 0!d”, pp. 54-55.


98 TRÓPICOS DO DISCURSO

toda a sequência de eventos contidos na narrativa poderia “querer dizer” ou


“significar”46. Ou, usando os termos de Frye, na história como na ficção, “enquanto
lemos, estamos cônscios de uma sequência de identificações metafóricas; quando
terminamos de ler, estamos cientes de um padrão estrutural organizador ou de um
mito conceptualizado”47. E, se isto for verdade, segue-se que existem pelo menos
dois níveis de interpretação em toda obra histórica: um no qual o historiador
constitui uma estória a partir da crônica dos acontecimentos e outro em que,
mediante uma técnica narrativa mais fundamental, ele identifica progressivamente
o tipo de estória que está contando - comédia, tragédia, romance, epopeia ou sátira,
conforme o caso. No segundo nível de interpretação é que a consciência mítica
atuaria de forma mais clara.
Mas, segundo Frye, ela não atuaria caprichosamente, como Lévi-Strauss
parece sugerir. Atua, antes, segundo convenções literárias bem conhecidas, embora
amiúde violadas, convenções que o historiador, como o poeta, começa a assimilar
desde o primeiro momento em que lhe contam uma estória quando criança. Há,
portanto, “normas”, senão “leis”, da narração histórica. Michelet, por exemplo, não
é apenas um historiador “romancista”; ele trama de modo consistente a sua história
da França até a Revolução de 1789 na forma de um “romance”. E o suposto
realismo de Tocqueville, tão amiúde comparado ao presumido romantismo de
Michelet, consiste em grande parte na sua decisão de urdir essa mesma história no
modo da tragédia. O conflito entre essas duas interpretações da história da França
não ocorre no nível dos “fatos” que compõem a crônica do processo em análise,
mas antes no nível em que a estória a ser narrada sobre os fatos se constitui na
forma de uma estória de um tipo particular.
Aqui, os mitos atuam da maneira sugerida por Warner Berthoff: não para
explicar o que se pode pensar acerca dos acontecimentos e objetos no campo da
percepção,

mas com que grau de força pensar - e como situar com precisão os constituintes do pensável... para atribuir
aos tipos do fato em questão o elemento ou a qualidade do causativo, ou da causalidade, isto é, a origem
genérica, ... e definir, por seieção-e-arranjo de termos apropriados que constituem a sua forma, essa
espécie ou classe de importância peculiar à ocasião que abrangem.
O elemento mítico na narração histórica, em suma, indica, “formalmente, a
gravidade e o respeito apropriados” que o leitor deve conceder às espécies de fatos
descritos na narrativa48.

46 Ver Mink, “The Autonomy of Historical Understanding”, pp. 179-186, e Walsh, Philosophy af History, p. 33.
Utilizo o termo enredo quase que tio mesmo sentido com que Mink usa a noção de “sintaxe” dos eventos, que
o historiador busca dentro ou por trás da confusão de fatos com que se depara na narrativa. Walsh distingue
entre uma “mera” crônica e a “narrativa plana” construída pelo historiador a partir dos eventos contidos na
crônica. Na “narrativa piana”, diz ele, “todo evento ocupa, por assim dizer, o seu lugar natural, e faz parte
de um todo inteligível. Neste aspecto, o ideal do historiador é em princípio idêntico ao do romancista ou do
dramaturgo”. Sobre a distinção entre estória e enredo, ver Boris Tomashevsky, “Thematics”, pp. 66-75, e
Boris Eichenbaum, “The Theory of the ‘Formal Mcthod’”, pp. 115-121, ambos em Russian Formalist
Criticism: Four Essuys, trad. Lee T. Lemon e Marion J. Reis (Lincoln, 1965).
47 Frye, Anutomy, pp. 352-353.
48 Warner Berthoff, “Fiction, Hisiory, Myth: Notes towards the Discrimination of Narrative Forms”, em The
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 99

A distinção invocada até aqui - entre estória e enredo na narração histórica -


é semelhante à promovida por Collingwood em sua análise da interpretação
histórica em Idea of History. Na análise que faz da extensão com que os
historiadores ultrapassam legitimamente o que as suas “autoridades” lhes dizem ter
acontecido no passado, Collingwood postulava uma estratégia duplamente
interpretada: crítica e construtiva. Na fase crítica de sua obra, sustentava
Collingwood, era permitido aos historiadores abeberar-se no conhecimento
científico da sua época para justificar a rejeição de certos tipos de fatos, por mais
bem atestados que fossem pelo registro documentário - como, por exemplo, quando
rejeitam os relatos amplamente atestados de milagres. Mediante a crítica dos
documentos, o historiador estabelece a “moldura” de sua narrativa, o conjunto de
fatos a partir do qual uma “estória” deve ser moldada no relato narrativo que faz
deles. O problema do historiador, uma vez estabelecida esta moldura, é preencher
as lacunas do registro por meio de uma dedução dos fatos que “devem ter
ocorrido”, a partir do conhecimento dos fatos que se sabe terem efetivamente
ocorrido. Desse modo, por exemplo, se sabemos que César esteve na Gália numa
determinada época e em Roma noutra época, podemos inferir legitimamente que
ele deve ter ficado entre esses dois locais no intervalo entre essas duas épocas. E a
formulação de tais inferências era um exemplo, afirmava ele, da ação daquela
“imaginação construtiva” sem a qual nenhuma narrativa histórica poderia ser
produzida49.
Entretanto, a imaginação construtiva não se limita, segundo Collingwood, à
inferência de relações e processos puramente físicos. A imaginação construtiva
dirige a atenção do historiador para a forma que um dado conjunto de
acontecimentos deve ter a fim de servir de possível “objeto de pensamento”.
Certamente, na sua exposição do assunto, Collingwood tendia a concluir que o
possível objeto de pensamento em questão era a estória do que de fato aconteceu
numa dada época e lugar no passado. Ao mesmo tempo, porém, ele insistia em que
a imaginação construtiva era simultaneamente apriorística (o que significava que
não agia caprichosamente) e estrutural (o que significava que era regida por noções
de coerência formal em sua constituição de possíveis objetos de pensamento). O
que era “descoberto” no registro histórico pelo historiador tinha de ser ampliado
por projeção sobre o registro histórico daquelas noções de possíveis estruturas de
ser e comportamento humanos existentes na consciência do historiador antes
mesmo que ele começasse a investigação do registro50.
Mas certamente o historiador não leva consigo uma noção da “estória” que
está incrustada nos “fatos” dados pelo registro. Pois, de fato, estão contidas ali um
número infinito dessas estórias, todas distintas em seus detalhes, cada uma
diferente das outras. O que o historiador deve ter no momento de examinar o
registro são noções gerais dos tipos de estórias que lá se poderiam encontrar,

Interpretation of Narrative: Theory and Practice, ed. Morton W. Bloomfield (Cambridge, 1970), pp. 277-278.
49 R. G. Collingwood, The Idea of History (Oxford, 1946), pp. 239-241.
50 Collingwood, The Idea of History, pp. 241-245.
100 TRÓPICOS DO DISCURSO

exatamente da mesma forma que deve ter, no momento de examinar o problema da


representação narrativa, alguma noção da “estrutura de enredo pré-genérica” que
possa dar coerência formal à estória que ele narra. Em outras palavras, o historiador
deve abeberar-se no lastro de mythoi fornecidos pela cultura a fim de construir os
fatos de modo a configurar uma estória de tipo particular, da mesma maneira que
deve recorrer ao mesmo lastro de mythoi existente na mente de seus leitores para
conferir ao seu relato do passado o odor de sentido ou significado. Se, como Lévi-
Strauss observa corretamente, é possível contar um grande número de estórias
diferentes sobre o único conjunto de acontecimentos que se convencionou designar
pelo nome de “Revolução Francesa”, isto não quer dizer que os tipos de estórias
que podem ser contadas sobre a Revolução Francesa são infinitos em número. Os
tipos de estórias que se pode contar sobre a Revolução Francesa se limitam ao
número de modos de enredo que os mitos da tradição literária do Ocidente
sancionam como modos adequados de dar sentido aos processos humanos.
A distinção entre “estória” e “enredo” na narrativa histórica nos permite,
além disso, especificar o que está envolvido numa “explicação narrativa”. De fato,
por um arranjo específico dos acontecimentos relatados nos documentos, e sem
prejuízo do valor de verdade dos fatos selecionados, uma dada sequência de
eventos pode ser urdida de inúmeras formas diferentes. Por exemplo, os
acontecimentos que ocorreram na França em 1789-1790, em que Burke viu uma
verdadeira calamidade nacional, Michelet os considera uma epifania daquela união
do homem com Deus que inspira o sonho do romance de ser uma forma genérica
de estória. De modo semelhante, o que Michelet toma como um legado
inconfundível desses eventos para a sua própria época, Tocqueville interpreta a um
só tempo como um fardo e uma oportunidade. Tocqueville descreve a queda do
Antigo Regime como um declínio trágico, do qual, porém, se podem beneficiar os
sobreviventes do ágon, ao passo que para Burke essa mesma queda foi um processo
de degradação do qual pode derivar pouco ou nenhum benefício. Marx, por outro
lado, caracteriza explicitamente a queda do Antigo Regime como uma “tragédia”,
com- parando-a com as “cômicas” tentativas, na Alemanha de sua época, de manter
o feudalismo por meios artificiais. Em suma, cada um dos historiadores
mencionados conta uma estória diferente sobre a Revolução Francesa e a “explica”
à sua maneira. É como se Homero, Sófocles, Aristófanes e Menandro tivessem,
todos, tomado o mesmo conjunto de acontecimentos e criado a partir deles o tipo
de estória que cada um preferia para representar a imagem daquilo que “realmente
foi” a vida humana, na sua historiei d ade26.
Ora, levantar o problema da distinção entre estórias e estruturas de enredo é
curvar-se sobre uma questão que os críticos literários hostis à teoria das ficções de
Northrop provavelmente consideram intragável. Apresso-me, pois, a afirmar que
não estou invocando a distinção entre estória e estrutura de enredo para defender a
teoria das ficções específica de Frye, que interpreta as estruturas de enredo pré-
genéricas como sendo as formas “deslocadas” dos mythoi que presumidamente dão
a diferentes ficções poéticas um entre os seus vários efeitos emotivos específicos.
Invoco a distinção para sugerir a sua utilidade como um meio de identificar o
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 101

elemento especificamente “fictício” nos relatos históricos do mundo 27. Isto me


obriga a rejeitar

26. Em suas Reflections on the Revolution in France (New York, 1961), Burke caracteriza a Revolução Francesa
como um “estranho caos de frivolidade e ferocidade” em que “todos os tipos de crime” se “misturam a toda
sorte de loucura”. Ele a chama de “monstruosa cena tragicômica” e compara-a à Revolução Inglesa de 1688,
na qual se tornaram finalmente manifestos os verdadeiros princípios da vida nacional. Ver Rejlecíions, pp.
21-22, 29-37. Já Michelet fala dos acontecimentos de 1789-1790 como uma época de unidade perfeita do povo,
do país, da natureza e de Deus: “A fraternidade removeu todo obstáculo, todas as federações estão prestes a
se confederar e a união tende à unidade. - Chega de federações! Elas são inúteis, apenas uma é necessária
agora - a França; e ela parece transfigurada na glória de julho... Tudo respira o puro amor à unidade”. Jules
Michelet, History ofthe French Revolution, trad. Charles Cocks (Chicago, 1967), pp. 442-444. Para a concepção
tocquevilliana da Revolução, ver o famoso capítulo 3 da Parte I de The Old Regime and the French Revolution,
trad. Stuart Gilbert (New York, 1955), pp. 10-13, e cap. 5 da mesma Parte I, “O que realizou a Revolução
Francesa?”, pp. 19-21. Ranke, com uma confiança tipicamente “cômica” no poder da história para efetuar
por meios malévolos uma ordem política geralmente saudável, considera a sua própria época da Restauração
como uma condição perfeitamente “reconciliada”. Em seu Politische Gesprüche, ele caracteriza nos seguintes
termos o sistema dos Estados-nação que tomou forma no despertar da época revolucionária; “listas diversas
comunidades separadas, materiais e espirituais, suscitadas pela energia moral, crescendo irresistivelmente,
progredindo em meio a todo o tumulto do mundo rumo ao ideal, cada uma ao seu próprio modo! Observai-
as, estes corpos celestiais, nos seus ciclos, na sua gravkação mútua, nos seus sistemas!” Theodore von Laue,
Leopold von Runke: The Farmative Years (Princeton, 1950), p. 180. Para a comparação de Marx entre a história
da França e a da Alemanha em função da natureza “trágica” da primeira e da natureza “cômica” da segunda,
ver sua Critique ofHegeVs Phtlosophy ofRight.
27. Frye aborda este ponto no seu ensaio “New Directions from Old”, quando sugere que “há algo do mesmo tipo
de afinidade entre poesia e metafísica que há entre poesia e meta-história” (p. 56). Mas a pressuposição
subjacente à teoria das ficções exposta em Anatomy of Critictim é que as visões míticas do mundo que não
foram deslocadas se opõem à visão de mundo que fundamenta estruturas “realistas” de prosa discursiva,
descritiva e assertiva, com as “ficções” ocupando um plano médio entre elas. Esta dicotomização seria
bastante legítima se os pólos do espectro fossem representados por visões míticas, de um lado, e por
conceituações científicas da realidade, de outro. Mas essas representações do mundo em prosa assertiva na
forma de história não podem ser assimiladas à categoria do científico de um modo inambíguo. Constitui uma
verdade apenas superficial que a história dirige a sua atenção mais para o conteúdo da narrativa (para os
“fatos”) cue para a forma da narrativa em que estão incrustados. Tal como o romance realista, uma história
é em certo nível uma alegoria. O grau de deslocamento da estrutura de enredo informativa (mítica) pode ser
maior na história do que na poesia, mas as diferenças entre uma história e um relato ficcional da realidade é
uma questão de grau, e não de tipo. Dos elementos formais das narrativas históricas podemos dizer o que
Frye diz das ficções em geral. Ou seja, a “forma” pode ser concebida como um princípio “formador” ou como
um princípio “includeme”. Como “formador”, é possível pensá-lo como uma narrativa; como “includente”,
pode-sc pensá-lo como fornecendo “sentido”

a distinção de Frye entre mitos (não-deslocados), ficção e formas de discurso em


prosa direta como a historiografia, e a afirmar que as semelhanças entre estas três
formas são tão importantes para o entendimento da interpretação histórica quanto
quaisquer diferenças entre elas que possamos aceitar como especificadas
validamente. Pois, se Collingwood está correto em sua análise das atividades da
“imaginação construtiva” na composição das narrativas históricas, então é possível
concluir que o elemento construtivo que ele discerniu em toda narrativa desse tipo
está contido exatamente na escolha, por parte do historiador, de uma “estrutura de
enredo pré-genérica” ou “mito” por meio da qual se possa identificar a estória que
ele contou como uma “estória de um tipo particular” - epopeia , romance, comédia,
tragédia ou sátira, conforme o caso. E sugerirei que um certo elemento na
interpretação pelo historiador dos eventos descritos na história que ele conta, como
102 TRÓPICOS DO DISCURSO

um modo de explicar o que aconteceu no passado, reside na escolha da “estrutura


de enredo pré-genérica” através da qual uma crônica de eventos se transforma
numa “história” que os seus leitores compreendem como sendo uma “estória” de
tipo particular.
Certamente, mediante essa ampliação dos argumentos de Frye no tocante à
estrutura das ficções poéticas, a distinção entre a história convencional e a meta-
história tende a se dissolver numa questão de ênfase. É concebível que as narrativas
históricas do tipo produzido por Michelet, Ranke, Tocqueville e Burckhardt têm os
mesmos atributos formais que as “filosofias da história” elaboradas por Hegel,
Marx, Spengler e Toynbee. Isto não quer dizer que não possamos encontrar
diferenças óbvias entre um relato histórico que visa apenas contar uma estória e os
que vêm acompanhados de complexas teorias da causalidade histórica e de
sistemas de implicação ideológica formalmente articulados. Mas quer dizer que a
diferença convencionalmente invocada - entre, de um lado, um relato histórico que
“explica” contando uma estória e, de outro, aquele que conceitualmente
sobredetermina os seus dados no interesse de impor uma forma específica ao
processo histórico - tanto obscurece quanto esclarece no que tange à natureza da
interpretação na escrita histórica.
Com efeito, pode-se afirmar que, assim como não pode haver explicação na
história sem uma estória, também não pode haver estória sem um enredo por meio
do qual ela seja convertida num tipo particular de estória. Isto vale mesmo para o
relato histórico mais conscientemente impressionista, como seria o quadro
frouxamente organizado que Burckhardt traçou da cultura

(p. 83). E assim também podemos distinguir entre dois tipos de sentido proporcionados pela narrativa
histórica; uma história contém ao mesmo tempo elementos “hipotéticos” e “assertivos”, da mesma forma que
os romances “realistas” contêm (p. 80). Uma história pode apresentar-se como uma “práxis de mimese”,
enquanto os mitos podem ser “imitações secundárias’* de ações - isto é, de ações típicas - que na verdade
podem torná-las mais filosóficas que a história (p. 83). Mas os historiadores não poderh.m compor as suas
narrativas sem invocar, pelo menos implicitamente, as estruturas formais do mito para os efeitos
“formadores” e “includentes” das suas representações da realidade.
renascentista italiana. Um dos propósitos explicitamente declarados de Burckhardt
era escrever história de uma maneira que frustrasse as expectativas convencionais
no tocante à coerência formal do campo histórico. Estava buscando, em suma, o
mesmo tipo de efeito que visa o autor de uma sátira. E, na verdade, Burckhardt
urde a sua estória da Renascença no modo da satura, ou miscelânea, que confere
ao retrato que traçou desse período da história o seu caráter notoriamente elusivo
como “interpretação”. Admiradores mais recentes de Burckhardt elogiaram a sua
oposição resoluta a qualquer impulso no sentido de “superconceituar” as suas
descrições do passado ou de super-urdir as estórias que conta sobre esse passado.
Não reconheceram que essa recusa inflexível a impor uma forma de registro
histórico é em si mesma uma decisão poética, o tipo de decisão que alicerça a ficção
satírica, uma decisão que Burckhardt justificou em seu foro íntimo quando recorreu
ao solipsismo histórico de seu mestre filosófico Schopenhauer. Burckhardt não é
menos meta-histórico do que Hegel; apenas sua marca de meta-história não foi
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 103

reconhecida pela ficção poética que ele representa como foi a de Hegel 51.
O provimento de uma estrutura de enredo, a fim de dar ao relato narrativo
do “que aconteceu no passado” os atributos de um processo de desenvolvimento
abrangente que se assemelhe à articulação de um drama ou de um romance,
constitui um elemento na interpretação do passado pelo historiador. Podemos agora
considerar um outro aspecto das ações interpretativas do historiador, o contido no
argumento formal que ele poderia oferecer (ou que pode ser extrapolado a partir
das suas parábases sobre a sequência dos eventos representados na narrativa) para
“explicar” em termos nomológico- dedutivos por que os eventos se desenvolveram
do modo como parecem tê- lo feito, como dados no relato narrativo. É costume
afirmar que todos esses argumentos nomológico-dedutivos oferecidos pelo
historiador ou são incompletos, defeituosos ou meramente corriqueiros, quando
comparados aos paradigmas daquelas explicações fornecidas por ciências
verdadeiras como a física e a química. E, para o nosso propósito, é conveniente a
concordância geral entre idealistas e positivistas com relação à natureza
comumente insatisfatória de todas as supostas explicações causais oferecidas pelos
historiadores de eventos humanos e sociais, a aceitação comum por eles do seu
caráter semicientífico ou pseudocientífico. Pois isto nos permite proceder de
imediato ao exame do elemento interpretativo em todas essas supostas explicações.
Como os profissionais de todos os campos que ainda não se tornaram
ciências completas, os historiadores, em seus esforços de explicar o passado,
empregam paradigmas diferentes da forma que uma explicação válida pode
assumir. Por paradigma entendo o modelo do que parecerá um conjunto de
acontecimentos históricos depois que foram explicados. Um dos propósitos de uma
explicação é substituir uma percepção vaga ou imprecisa das relações
predominantes entre os fenômenos verificados num dado campo por uma
percepção clara ou precisa. Mas a noção do que possa parecer uma percepção clara
e precisa de um dado domínio do acontecimento histórico difere de historiador para
historiador. Para alguns, um domínio histórico explicado apresenta o aspecto de
um grupo de entidades dispersas, cada uma das quais é claramente discernível
como particularidade única, enquanto o atributo partilhado por todas nada mais é
que a circunstância de habitarem uma comunidade singular de ocorrências. Em

51 Lõwith (Meaning in History, p. 26) considera Burckhardt o primeiro historiador moderno de estatura
inegavelmente clássica a escrever a história sem concessões aos mitos que fascinaram todos os grandes meta-
histori adores antes dei e. Mas teria sido mais exato considerá-lo um cético histórico clássico. O ponto de vista
de Burckhardt é consistentemente irônico, e suas teorias narrativas são as da sátira. Ele denomina a sua
Civilização do Renascimento na Itália de “ensaio” e renuncia explicitamente a qualquer tentativa de
reivindicar para ela o status de relato objetivo ou científico do período tratado. Assim também, Burckhardt
descarta qualquer tentativa de construir uma narrativa diacrônica dos eventos, estruturas e processos que
formam o seu relato da Renascença. Os materiais são agrupados com base em categorias bem gerais ou em
função dos temas, mas não há qualquer empenho em desenvolver um argumento ou uma “história” nos
capítulos individuais do livro; e cada capítulo termina com uma passagem que parece indicar a intenção do
autor de frustrar as tentativas do leitor de constituí-la retrospectivamente em quaisquer termos cogni ti
vãmente significativos. Trata-se literalmente de uma satura, uma miscelânea ou “saíada”, cujo objetivo pode
ser interpretado como semelhante ao do moderno anti-romance - vale dizer, desafiar as expectativas da
“estória” convencional que normalmente trazemos à consideração de uma história.
104 TRÓPICOS DO DISCURSO

outras palavras, uma explicação neste sentido representa o resultado de uma


operação analítica que deixa as várias entidades do campo irreduzidas ao status de
leis causais ou ao de exemplos de categorias classificatórias gerais. Para os
historiadores inspirados por essa concepção do que deveria ser uma explicação, um
campo que à primeira vista parece uma vaga congérie de eventos se revela, no final
da análise, um conjunto de itens essencialmente autônomos, não-passíveis de
subordinação a qualquer regra geral, seja ela de causalidade ou de vínculo
classificatório.
Para outros historiadores, contudo, um domínio histórico totalmente
explicado aparecerá como um campo de entidades integradas, regidas por uma
estrutura de relações, ou sintaxe, claramente especificável. Embora pareçam à
primeira vista não estar relacionadas entre si, as entidades individuais do campo se
revelam, no final da análise, mutuamente relacionadas na modalidade das relações
de causa e efeito (isto é, mecanicistamente) ou na das relações da parte com o todo
(isto é, organicistamente). Para esse gênero de historiadores, a explicação não
busca dispersão, mas integração, não busca análise, mas síntese52.
Em outras palavras, podemos distinguir entre as várias formas de explicação
na historiografia de duas maneiras: com base na direção que a operação analítica
presumidamente toma (com vistas à disposição ou à integração) e com base no
paradigma do aspecto geral que o conjunto de fenômenos explicados assumirá ao
termo desta operação. A diferença é mais ou menos a mesma observada entre os
estudantes de uma língua interessados basicamente em formar um léxico e os que
se empenham em determinar a gramática e a sintaxe de um sistema de uso
específico.
Alguns historiadores se deleitam em tomar um campo do acontecimento
histórico que pareça vago ou obscuro e simplesmente escolher as várias entidades
presentes nele de modo que os seus esquemas pareçam mais exatos. Cumprem a
função de lentes de aumento para os seus leitores; quando terminam o seu trabalho,
os itens no campo parecem mais claros aos olhos (da mente). E esta é a sua
explicação do que estava acontecendo no campo. Este desejo de tornar os objetos
da percepção mais claros aos olhos (da mente) é o que parece fundamentar a
tentativa de palingenesia que inspirou grande parte da historiografia romântica, e
é defendido explicitamente como método “científico” por Niebuhr, Michelet e
Carlyle30. A defesa filosófica desse método foi feita por Wilhelm Windelband, que
a denominou “idiografia”31. Sendo um método científico, a idiografia
evidentemente fornece os tipos de explicações encontradas na biologia antes de
Lineu ou na química antes de Lavoisier. Os produtos deste tipo de historiografia

52 A distinção aqui estabelecida, entre estratégias de explicação dispersivas e integrativas, é extraída de Stephen
C. Pepper, World Hypotheses (Berkeley e Los Angeles, 1966), pp. 142 e ss., uma análise lamentavelmente
negligenciada das modalidades do discurso filosófico. Pepper afirma que, basicamente, há apenas quatro
hipóteses de mundo “cogni ti vãmente responsáveis”, cada uma das quais introduz no debate filosófico a sua
própria teoria de verdade e concepção das táticas pelas quais as afirmações de verdade podem ser verificadas
com propriedade. Essas quatro hipóteses de mundo, ele as denomina formis- mo, organicismo, mecanicismo
e con textual is mo. Substituí o termo idio grafia pelo seu “formismo”, de
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 105

têm mais ou menos o mesmo aspecto das notas reunidas por um naturalista ou por
um antropólogo no trabalho de campo, mas com esta diferença: enquanto o
naturalista e o antropólogo vêem nas suas observações dados a serem convertidos
subsequentemente em generalizações sobre a estrutura do campo como um todo,
o historiador idiográfico considera acabada a sua obra tão logo os fenômenos que
observou foram adequadamente representados em prosa descritiva exata.
Sem dúvida, alguns historiadores idiográficos insistem em dizer que a
observação dos dados deve acompanhar-se da tentativa de generalizar sobre eles,
de maneira a oferecer ao leitor alguma percepção do “sentido” ou “significado”
possível dos dados observados. Todavia, não se imagina que essas

vez que ele parecia mais auto-explicativo do seu conteúdo para uma discussão dos equivalentes
historiográfícos das hipóteses de mundo de Pepper.
30. B. G. Niebuhr, o grande historiador romântico de Roma, foi um dos primeiros a conceber a história como
palingenesia, especialmente do espírito popular que supostamente estava por trás do relato documentário.
Michelet, numa famosa observação sobre as diferenças entre a sua obra e a de Thierry e Guizot, diz
explicitamente ser a sua tarefa de historiador a “ressurreição” das vozes mortas das gerações perdidas - e
principalmente daquelas que se perderam para a “história” concebida como a estória dos grandes homens e
das aristocracias do passado. A defesa mais eloqüente desse conceito de historiografia, concebida como uma
combinação de poesia c ciência, c o ensaio de Thomas Carlyle, “On History”. Ver A Carlyle Reader, ed. G. B.
Tennyson (New York, 1969), pp. 57-60.
31. Wilhelm Windelband, “Geschichte und Naturwissenschaft”, em Prüludien (Freiburg im Breisgau e
Tübingen, 1884), 2:142-45.
generalizações funcionem como hipóteses basicamente capazes de se transformar
em teorias gerais da causalidade histórica, ou mesmo numa base para um esquema
geral de classificação que se pudesse aplicar aos fenômenos em outros setores do
campo histórico. As generalizações funcionam antes como caracterizações
idiográficas de “contextos” distintos para os acontecimentos individuais
discernidos no campo específico em exame. Este procedimento dá origem àquelas
caracterizações de “períodos”, “tendências”, “eras”, “movimentos” etc. que nos
permitem conceber todo o processo histórico uma sucessão de estruturas e
processos separados, cada um com seus próprios atributos únicos; e o significado
de cada um residiria na “qualidade” ou “atmosfera” de sua textura ricamente
variada53. Quando um acontecimento é posto dentro de seu “contexto” pelo método
que Walsh chamou “coligação”, considera-se completada a tarefa explicatória do
historiador, nessa análise54. O movimento para a integração dos fenômenos cessa
presumivelmente no ponto em que um dado contexto pode ser caracterizado em
termos modestamente gerais. As entidades que habitam o campo em análise ainda
continuam dispersas, porém agora estão provisoriamente integradas umas às
outras na forma de ocupantes de um “contexto” compartilhado ou, como se

53 Pepper, World Hypotheses, cap. 10.


54 Por “coligação” Walsh entende a operação de “ligar junto”, pela qual os historiadores correlacionam os
eventos a fim de propiciar a compreensão da sua ocorrência. Essa operação inclui a determinação dos fins e
propósitos dos agentes históricos, a identificação das “concepções apropriadas” ou “idéias" que os eventos
incorporam e a utilização de generalizações “quase científicas” derivadas da experiência e do senso comum.
Ver Introduction to the Philosophy of History, pp. 60-65. Cf. Mink, “Autonomy of Histórica! Understanding”,
pp. 171-172, para uma crítica desta idéia.
106 TRÓPICOS DO DISCURSO

costuma dizer, são identificadas como objetos imersos numa “atmosfera” comum.
Essa noção de explicação fundamenta as reivindicações feitas à história como tipo
de ciência pelos que propõem o que Auerbach chama de “historicismo
atmosférico”55. A explicação está completa quando a “atmosfera” foi evocada
numa representação em prosa bem-sucedida. Podemos - seguindo Pepper - chamar
essa estratégia explicatória de contextualismo.
Pode-se observar que esses dois tipos de explicação histórica, a idiografia e
o contextualismo, tenderão a conceber que a explicação dada pelo historiador é
virtualmente indistinguível da “estória” contada no decorrer da narração. Posto que
modestamente integrativo em seu objetivo geral, o contextualismo não estimula
uma síntese organicista de todo o campo, ao modo de Hegel, nem uma redução
mecanicista do campo em termos de leis causais universais que poderiam
“explicar” por que o campo tem as características peculiares que o tornam
identificável como “contexto” de um tipo particular, à maneira de Marx. Assim,
por exemplo, Burckhardt irá declarar continuamente, em todo o seu livro sobre a
cultura da Renascença, que as entidades que ele observou são banhadas por uma
luz comum e partilham o mesmo contexto, o que as torna identificáveis como
fenômenos especificamente pós-medievais e pré-modernos. Mas recusa-se a
especular sobre as “causas” de serem elas o que são e condena as tentativas dos
historiadores positivistas e idealistas de continuar a especificar as razões para
serem o que são, para estarem onde estão e quando estão56.
E desnecessário dizer que, para os historiadores de concepção mecanicista
ou organicista da forma que o campo histórico explicado deve assumir, os produtos
das tentativas idiográficas e contextualistas de “explicar” o que aconteceu no
passado são inteiramente insatisfatórios. O organicista insiste na necessidade de
relacionar os vários “contextos” que perceptivel- mente existem como partes no
registro histórico ao todo que é a história em geral. Ele luta por identificar os
“princípios” pelos quais os diferentes períodos da história podem integrar-se num
processo macrocósmico singular de desenvolvimento. E isso significa que para ele
a explicação deve assumir a forma de uma síntese na qual deve ser mostrada cada
uma das partes do todo a fim de refletir a estrutura da totalidade ou prefigurar a
forma do fim do processo inteiro ou pelo menos a última fase do processo. Hegel,
por exemplo, proíbe expressamente o historiador de fazer especulações sobre o
futuro. A sabedoria histórica, diz ele, só pode estender-se à compreensão do próprio
presente do historiador. Mas para ele esse presente especioso constitui o ponto
culminante de uma sequência milenar de fases num processo que deve ser
considerado universalmente humano57.

55 Cf. Erich Auerbach, Mimesis: The Rcpresentaíion of Reaiity in Western Literature, trad. Willard Trask
(Princeton, 1968), pp. 473-477.
56 Ver, por exemplo, o parágrafo “Societies and Festivais” em Civilization ofthe Renaissance in Italy, trad.
S. G. C. Middlemore (London, 1960), e as observações de Burckhardt sobre as causas da “grande inova-
ção” ocorrida durante a Renascença em Judgments on History and Historians, trad. Harry Zohn (Boston, 1958),
pp. 65-66. Aqui, é exposta explicitamente a concepção de Burckhardt de mudança histórica como
“metástase”.
57 Ver a discussão do “organicismo” de Hegel por Pepper em World Hypatkeses, pp. 293 e ss.
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 107

Marx, em contrapartida, afirma ser capaz de predizer a forma específica da


fase seguinte de todo o processo graças a uma integração semelhantemente
organicista de todos os dados significativos da história social. Mas pretende
justificar essa operação profética graças à redução mecanicista desses dados ao
status de funções de leis gerais de causa e efeito, que são universalmente operantes
do começo ao fim da história. E é a busca dessas leis, pelas quais os eventos no
campo histórico podem ser reduzidos ao estado de manifestações de ações causais
impessoais, que caracteriza a estratégia analítica da teoria mecanicista da
explicação histórica em geral58. Em resumo, o mecanicista não vê os elementos do
campo histórico como se fossem relacionados em termos das relações entre a parte
e o todo, mas antes em função das relações entre parte e parte e na modalidade da
causalidade. Isso significa, no entanto, que o mecanicista deve distinguir entre as
partes de modo a identificar as que são “causas” e as que são “efeitos”. Para o
mecanicista, portanto, o campo histórico é considerado “explicado” no momento
em que distinguiu de maneira satisfatória entre as ações causais e os efeitos dessas
ações e, depois, forneceu as condições necessárias e suficientes para as suas
configurações específicas em momentos e lugares específicos dentro do processo
todo.
Assim, podemos dizer que, na historiografia, pode-se encontrar quatro
diferentes concepções da explicação - a idiográfica, a contextualista, a organicista
e a mecanicista - e que, numa dada obra de história, o modo de explicação
verdadeiramente preferido por um historiador específico deve ser identificável e
distinguível do modo narrativo (ou estrutura de enredo) com que justificou o seu
contar de uma estória de um tipo particular. Mas é possível observar uma certa
afinidade eletiva entre o modo de explicação e o modo de urdir o enredo nos
historiadores de estatura clássica inconteste. Por exemplo, em Michelet a forma
idiográfica de explicação anda junto com a estrutura de enredo do romance; em
Ranke, a explicação organicista caminha junto com a estrutura cômica de enredo;
em Tocqueville, o modo mecanicista de explicação é utilizado para complementar
e iluminar uma concepção essencialmente trágica do processo histórico; e, em
Burckhardt, um modo explicatório contextualista figura em conjunção com uma
forma narrativa essencialmente satírica.
Sem dúvida, essas designações dos modos de explicação e dos modos de
urdidura do enredo não esgotam as táticas específicas utilizadas por esses
historiadores para obterem certos tipos de efeitos explicatórios restritos, no curso
de suas explicações. Ademais, não precisamos supor que o modo de urdir o enredo
preferido por todo historiador dita o modo de explicação que ele tenderá a preferir.
Mas, como ficou dito, parece haver de fato uma afinidade eletiva entre os modos
de explicação e os modos de urdir o enredo utilizados por cada um deles a fim de
obterem um tipo particular de disposição explicatória ou interpretativa do campo
histórico em estudo. Se, por exemplo, como diz Frye, podemos tomar como um
atributo da tragédia a “epifania da lei” que supostamente deriva dos tipos de

58 Ibid., cap. 9.
108 TRÓPICOS DO DISCURSO

resoluções que ela encerra, então é óbvio que historiadores, como Tocqueville, que
prefiguram o processo histórico em termos trágicos, se inclinarão a conceber em
termos nomológicos (e não raro mecanicistas) as explicações que devem oferecer.
Se a comédia é quintessencialmente o “drama da reconciliação”, então his-
toriadores, como Ranke, que fazem uma abordagem da história nesses termos,
tenderão a empregar uma concepção organicista da verdade nos argumentos
formais com que explicam por que as coisas aconteceram no passado como
aconteceram. Assim também Michelet, escrevendo no modo do romance, prefere
estratégias explicatórias idiográficas, enquanto Burckhardt, que escreve no modo
da sátira, utiliza uma estratégia explicatória contextualista para dar ao campo
histórico a sua forma explicada59.
Ressalte-se mais uma vez que estamos falando aqui do nível em que o
historiador procura apreender a natureza de todo o campo dos fenômenos que é
apresentado na sua narrativa, e não do nível em que ele investiga as condições
necessárias da ocorrência de um dado acontecimento dentro do campo. Um
historiador pode decidir que uma resolução de ir à guerra foi consequência das
opções políticas de um dado indivíduo ou grupo; e pode- se dizer que dessa maneira
ele explicou por que a guerra irrompeu em determinada época e não em outra. Mas
“explicações” como essas estão ligadas à constituição da crônica dos eventos que
ainda demandam “interpretação” a fim de que, urdindo o seu enredo numa forma
particular de estória, possam se transformar num drama abrangente do
desenvolvimento. E tais explicações devem ser diferençadas da teoria geral das
relações significativas por meio das quais um campo, cujo enredo foi assim
tramado, é provido de uma “explicação” do motivo por que tem a forma que tem
na narrativa.
Afirmei até agora que os historiadores interpretam seu material de duas
maneiras: ou escolhendo uma estrutura de enredo que confira às suas narrativas
uma forma reconhecível, ou escolhendo um paradigma de explicação que dê aos
seus argumentos uma forma, um impulso e um modo de articulação específicos. É
costume dizer que essas duas escolhas são consequência s de uma terceira opção
interpretativa, mais fundamental: uma opção moral ou ideológica. Com efeito, é
convencional usar designações ideológicas de diferentes “escolas” de interpretação
histórica ("liberal” e “conservadora” ou “Whig” e “Tory”) e falar, por exemplo, de
uma “abordagem” marxista da história quando se pretende pôr em dúvida as
“explicações” de um historiador radical, relegando-as à condição de meras
“interpretações”. Assim, os críticos hostis a uma obra como O Dezoito Brumário
de Luís Bonaparte de Marx podem referir-se ao seu tom visivelmente polêmico
como prova de um propósito ideológico, e a ideologia radical que a inspira como a
razão da forma satírica assumida pela narrativa e da natureza mecanicistamente
redutiva das suas explicações dos eventos nela analisados. No entanto, é óbvio que,

59 As caracterizações das estruturas de enredo dadas aqui foram extraídas de Frye, Anatomy, pp. 158-238,
embora devessem ser consideradas como algo mais do que rótulos das complexas caracterizações que ele
oferece.
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 109

quando consideramos o grande ensaio de Marx como ele é, a saber, uma


interpretação magistral de uma situação histórica complexa, é difícil atribuir
prioridade a um ou a outro dos três elementos nele contidos: a estrutura de farsa do
enredo, a estratégia mecanicista da explicação ou a ideologia radical graças à qual
são passadas aos seus leitores as implicações morais e políticas da análise60.
Sem dúvida, sabemos que, na época em que escreveu esse ensaio, Marx já
havia criado a sua marca particular de radicalismo e havia articulado plenamente a
teoria do materialismo histórico pela qual planejava justificar, em bases científicas,
os princípios específicos da sua ideologia. Mas não temos necessidade de supor
que a sua urdidura dos acontecimentos verificados na França em 1848-51 no modo
da sátira foi predeterminada pela ideologia radical que ele abraçara, assim como
não se deve presumir o contrário, ou seja, que seu radicalismo decorreu da sua
percepção da natureza essencialmente “absurda” da sociedade burguesa e suas
atividades políticas características. Notemos apenas que os relatos históricos
podem ou não vir seguidos de interpretações ideológicas dos seus “sentidos” para
o esclarecimento das situações históricas em que são compostos. E, seguindo a
sugestão do próprio Marx, podemos ainda observar que todo relato histórico,
qualquer que seja o seu escopo ou profundidade, pressupõe um conjunto específico
de compromissos ideológicos nas próprias noções de “ciência”, “objetividade” e
“explicação” que o inspiram.
O sociólogo do conhecimento Karl Mannheim asseverava que as diferentes
posições no espectro ideológico das sociedades modernas, com suas divisões de
classe - liberal, conservadora, radical e anarquista (ou niilista) - traziam consigo
sua própria forma de consciência temporal e social e uma noção particular da
extensão com que os processos históricos eram suscetíveis de análise racional ou
se opunham a esta. E num ensaio magistral, “O Pensamento Conservador”, bem
como no seu importante Ideologia e Utopia, Mannheim demonstrava as bases e
implicações ideológicas do ideal rankiano de uma historiografia objetiva que se
erigiu em ortodoxia acadêmica durante a segunda metade do século XIX61.
Segundo Mannheim, as ideologias poderiam ser classificadas de acordo com
o fato de serem ou não “situacionalmente congruentes” (isto é, aceitando
geralmente o status quo social) ou “situacionalmente transcendentes” (isto é,
críticas do status quo e orientadas para a sua transformação ou dissolução). Assim,
o ideal da ciência social reverenciado por devotos das várias ideologias tenderia a
ser contemplativo ou manipulativo em relação ao seu objeto comum de estudo, que
não era a “história” per se ou “o passado” em geral, mas antes a matriz social vivida

60 Obviamente, o próprio M;irx se refere aos eventos que conduzem ao coup de Luís Napoleão como uma
“farsa” e compara-o à “tragédia” da Revolução de 1789. O tom é eminentemente irônico, mas o ponto de
vista é tudo menos isso. Ao contrário, Marx, àquela altura de sua carreira, elaborou de maneira cabal as
teorias explicativas pelas quais pudesse revelar a verdadeira estrutura dos eventos sob consideração. Eles se
carregam de sentido quando inseridos numa estrutura mais ampla de toda a história da burguesia, que, no
Manifesto Comunista, ele caracteriza com um herói trágico “prometéico” do drama da história.
61 Karl Mannheim, “Conservative Thought”, em Essays in Sociology and Social Psychology, ed. Paul Kecskemeti
(New York, 1953), pp. 74-164. Ver também Ideology and Utopia: An Introduclion to the Sociology of Knowledge,
trad. Louis Wirth e Edward Shils (New York, 1946), pp. 180-182, 206-215.
110 TRÓPICOS DO DISCURSO

como uma extensão do passado ao próprio presente do escritor. E o que valia para
as ideologias em geral valia também para a historiografia específica, dado o fato
de que a história não era em nenhum sentido uma ciência, mas antes um elemento
decisivo de toda ideologia que aspira ao título de ciência ou que propõe uma
perspectiva “realista” tanto sobre o passado quanto sobre o presente. Desse modo,
pode- se dizer que mesmo os historiadores que não professavam nenhum compro-
metimento ideológico particular e que reprimiam o impulso para extrair im-
plicações ideológicas explícitas de sua análise das sociedades do passado
escreviam dentro de uma moldura ideológica especificável, graças à adoção de uma
postura em face da forma que a representação histórica devia assumir.
Diferentemente das ciências naturais, as ciências humanas são - como o falecido
Lucien Goldmann gostava de salientar - impelidas inevitavelmente à adoção de
posturas ideológicas devido às apostas epistemológicas que os seus profissionais
eram forçados a fazer entre teorias conflitantes do que poderia parecer uma ciência
humana “objetiva”. E, como afirmava Mannheim, uma historiografia
“contemplativa” é pelo menos consoante com as posições ideológicas do liberal e
do conservador, quando não é uma projeção dessas posições, quer os seus
profissionaisestejam conscientes disso, quer não.
Podemos dizer, então, que na história - como nas ciências humanas em geral
- toda representação do passado tem implicações ideológicas especificáveis e que,
portanto, é possível discernir pelo menos quatro tipos de interpretação histórica que
têm suas origens em tipos diferentes de comprometimento ideológico. A maioria
dos historiógrafos clássicos do século XIX formularam essas implicações
explicitamente, mas o fizeram segundo caminhos nem sempre compatíveis com os
modos de urdidura do enredo que usaram para dar forma às suas narrativas, ou com
as estratégias explicativas que escolheram para, em formas particulares, responder
por suas representações dos processos. Por exemplo, embora seja um liberal
declarado em suas concepções políticas, Michelet urde o enredo da sua história da
França até a Revolução no modo do romance, que é na verdade mais condizente
com a posição ideológica do anarquista. Além do mais, a estratégia explicativa de
Michelet, que era a da idiografia, não era compatível com a convicção liberal da
compreensibilidade racional do processo histórico. E o mesmo se diga de
Tocqueville: ele urde o enredo da história no modo da tragédia e explica-a por meio
de supostas leis do desenvolvimento histórico de um tipo especificamente
mecanicista; mas nega-se a deduzir as implicações radicais dessas estratégias
interpretativas para a compreensão da sociedade da sua própria época. Em vez
disso, tenta resistir à mistura peculiar de ideais liberais e conservadores que o
recomendou aos historiadores posteriores dos dois tipos como o detentor de uma
“sabedoria” infinita em sua análise política.
Historiadores do pensamento histórico costumam lamentar a intrusão de tais
elementos visivelmente ideológicos nas tentativas dos primeiros historiadores de
retratar o passado “objetivamente”. Com mais frequência, porém, reservam tal
queixa para a avaliação da obra dos historiadores que representam posições
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 111

ideológicas diferentes das suas próprias. Como observou Mannheim, nas ciências
sociais a “ciência” de um homem é a “ideologia” de outro. Isso ocorre
particularmente na historiografia, onde o rótulo de “meta-historiador” não raro é
afixado na obra de quem quer que concebe as tarefas de escrever a história
diferentemente de si próprio.
Assim, a interpretação entra na historiografia pelo menos de três maneiras:
esteticamente (na escolha de uma estratégia narrativa), epistemologi- camente (na
escolha de um paradigma explicativo) e eticamente (na escolha de uma estratégia
pela qual as implicações ideológicas de uma dada representação possam ser
deduzidas para a compreensão de problemas sociais do presente). E afirmei que é
quase impossível, salvo para as formas mais doutrinárias da escrita histórica,
atribuir prioridade a um ou a outro dos três momentos assim distinguidos. Isso
levanta uma outra questão: haveria um outro nível de interpretação mais
fundamental do que esse?
Neste ponto, é tentador buscar refúgio no relativismo e asseverar que uma
dada interpretação histórica tem suas origens em fatores puramente pessoais,
peculiares a cada historiador. E isso sugeriria, por sua vez, que há tantos tipos de
interpretação da história quantos são os historiadores de gênio inconteste que
exercem a profissão. Na verdade, porém, um interessante padrão quaternário
reapareceu em nossas análises dos níveis diferentes em que a interpretação entra
na elaboração de uma dada narrativa histórica. A análise das estruturas de enredo
admite quatro tipos: romance, comédia, tragédia e sátira. A das estratégias
explicativas deu origem a quatro paradigmas: idiográfico, organicista, mecanicista
e contextualista. E a teoria da ideologia gerou quatro possibilidades: anarquismo,
conservadorismo, radicalismo e liberalismo. E, embora eu tenha negado a
possibilidade de atribuir prioridade a um ou a outro dos níveis de interpretação que
discriminei, acredito que os tipos de estratégias interpretativas identificados são
estruturalmente homólogos entre si. Sua homologia pode ser graficamente
representada no seguinte quadro de correlações.

Modo de urdir o enredo Modo de explicação Modo de implicação ideológica

Romance Idiográfico Anarquista


Comédia Organicista Conservador
Tragédia Mecanicista Radical
Sátira Contextualista Liberal

Não afirmo que essas correlações figuram necessariamente na obra de um


historiador; na verdade, a tensão implícita em toda obra-prima da história é criada
em parte por um conflito entre uma dada modalidade de enredo ou de explicação e
o comprometimento ideológico específico do seu autor. E muitas vezes mudanças
de tom ou de ponto de vista que ocorrem entre uma obra anterior e uma posterior
de determinado historiador podem ser explicadas pela tentativa de alinhar as suas
representações históricas com a sua ideologia, ou vice-versa. Por exemplo, na obra
de Tocqueville, o liberalismo confesso de sua Democracia na América conflitava
112 TRÓPICOS DO DISCURSO

com o modo mecanicista de explicação e com a estrutura trágica do enredo de que


se valeu para comunicar a estrutura específica do tema que o ocupava. Contudo, na
época em que terminara o primeiro volume de O Antigo Regime, seu conservado-
rismo latente havia aflorado, o modo trágico de enredo que preferira anteriormente
dera lugar a uma noção especificamente satírica do processo histórico em geral e
sua estratégia explicativa mecanicista cedera a uma mais especificamente
contextualista. Transformações análogas podem ser discernidas na obra de
historiadores como Michelet, Marx e Croce. E isso sugere que a riqueza das suas
diversas obras-primas históricas decorre da sensibilidade com que acolhem as
possibilidades de estratégias alternativas de interpretações ao longo de suas
reflexões sobre a história. Historiadores mais dogmáticos - como Ranke, Engels,
Buckle, Taine e, até certo ponto, Burckhardt não ostentam tal sensibilidade a
possibilidades alternativas. Seu “desenvolvimento” como historiadores consiste
quase sempre num refinamento de uma complexa rede de compromissos
interpretativos feitos no início de suas carreiras.
O que vale para os historiadores individualmente vale também para a
historiografia em geral. As “escolas” de historiografia conflitantes podem ser
caracterizadas pelas preferências que dão a uma ou a outra combinação de
estratégias interpretativas, da mesma forma que as diferentes gerações dentro de
uma dada escola podem ser atribuídas a variações nas combinações que são
possíveis nos conjuntos descritos acima. A própria possibilidade dessas
combinações engendra aquela “anarquia conceituai” característica dos “campos de
estudo” ainda não reduzidos ao status de disciplinas genuinamente científicas.
Diferentemente da física depois de Newton ou da química depois de Lavoisier, a
história continua sendo um campo de estudo sem imagens geralmente
reconhecidas da forma que a análise deve assumir, da linguagem em que as
descobertas devem ser comunicadas e das técnicas de generalização e verificação
a serem utilizadas para o estabelecimento da verdade das suas descobertas62.
Cabe notar que a marca de uma verdadeira “cientização” de um dado campo
de estudo é o estabelecimento nele de uma terminologia técnica, sua libertação das
excentricidades da linguagem culta comum. Conquanto o estabelecimento de uma
terminologia técnica não seja a causa da “cientização” de uma disciplina, ele
denota o acordo entre os investigadores acerca do que deve ser considerado um
problema metafísico e do que deve ser visto como um problema científico. Um
problema metafísico é aquele que não pode ser formulado na linguagem técnica
empregada pelos profissionais da disciplina para formular questões ou fornecer
respostas a elas. Num campo como a história, então, a confusão de uma questão
metafísica com uma questão científica não só é possível como inevitável em algum
estágio de uma dada investigação. E, embora historiadores profissionais se digam
aptos a distinguir entre história, de um lado, e meta-história, de outro, a distinção
não tem, de fato, qualquer justificativa teórica adequada. Toda história pressupõe
uma meta-história, que outra coisa não é senão a rede de compromissos que o

62 Ver Thomas S. Kuhn, The Structure ofScietuific Revolutions (Chicago, 1962), pp. 18-20 e cap. 13.
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 113

historiador estabelece no curso de sua interpretação nos níveis estético, cognitivo


e ético distinguidos acima.
Seriam esses compromissos totalmente arbitrários? A recorrência do padrão
quaternário nos vários níveis em que é possível a interpretação indica que não.
Demais, se forem válidas as correlações que fiz entre os modos de urdir o enredo,
de explicação e de implicação ideológica, devemos aceitar a possibilidade de que
esses modos se baseiam em algum nível de consciência mais fundamental.
Contudo, a dificuldade de identificar este nível de consciência é manifesta. Ela
advém do fato de que na psicologia, como na história, existe um grande número de
escolas de interpretação divergentes, e nenhuma delas é capaz de reivindicar em
definitivo o título de uma genuína ciência da mente. Acredito, porém, que essa
dificuldade pode ser evitada se se concentrar na base linguística de todos os campos
de estudo até agora não-reduzidos ao status de ciência. Podemos seguir o problema
num terreno anterior àquele em que presumivelmente funcionem as faculdades
emotivas, cognitivas e morais. Esse terreno é o da própria linguagem, que, em áreas
de estudo como a história, pode-se dizer que operam tropolo- gicamente a fim de
prefigurar um campo de percepção numa modalidade particular de relações. Se
fizermos uma distinção entre aquelas áreas de estudo em que os sistemas
terminológicos específicos, com sentidos estipulados para elementos léxicos e
regras de gramática e sintaxe explícitas, se constituíram em ortodoxia - como na
física, com sua dependência da linguagem matemática e de uma lógica de
identidade - e aquelas áreas de estudo em que o problema ainda é produzir
semelhante sistema de sentidos estipulados e regras sintáticas, podemos observar
que a história recai por certo no segundo campo. Isso significa que as contendas
historiográficas tenderão a girar, não apenas em torno da questão do que são os
fatos, mas também em torno da questão do seu significado. Mas o significado, por
sua vez, será elaborado em função das possíveis modalidades da própria linguagem
natural, e especificamente em função das estratégias tropológicas dominantes pelas
quais fenômenos desconhecidos ou estranhos são providos de significados por
diferentes tipos de apropriações metafóricas. Se aceitarmos como quatro o número
de tropos predominantes - metáfora, metoní- mia, sinédoque e ironia - ficará
evidente que na própria linguagem, em seu aspecto degenerativo ou pré-poético,
poderíamos possivelmente ter a base para a geração daqueles tipos de explicação
que surgem inevitavelmente em qualquer campo de estudo ainda não
“disciplinizado” no sentido de ser liberado da anarquia conceituai que parece
assinalar suas fases distintamente pré-científicas.
Seguindo uma sugestão de Kenneth Burke, podemos dizer que os quatro
“tropos principais” trabalham com relações que são experimentadas como inatas
dentro dos fenômenos ou entre eles, mas que, na realidade, constituem relações
existentes entre consciência e um mundo de experiência que requer uma
estipulação do seu sentido63. A metáfora, não importa o que ela faça, afirma

63 Ver Kennetb Burke, A Gmmrnar of Motives (Berkeley e Los Angeles, 1969), ap. D, “Four Míister Tropes”,
pp. 503-517. A questão da natureza dos tropos é difícil de abordar, e devo confessar a minha hesilação cm
114 TRÓPICOS DO DISCURSO

explicitamente uma similaridade numa diferença e, pelo menos implicitamente,


uma diferença numa similaridade. A isso podemos chamar provimento de sentido
em termos de equivalência ou identidade. Podemos, pois, distinguir a metonímia e
a sinédoque como formas secundárias da metáfora, em função de sua especificação
adicional de diferença ou de similaridade nos fenômenos origin ar iam ente
identificados em termos metafóricos. Na metonímia, por exemplo, a redução do
todo à parte pressupõe a possibilidade de distinguir entre o todo e as partes que o
compõem, mas de modo a atribuir prioridade a partes para a imputação de sentidos
a qualquer totalidade putativa que se apresente à consciência. Na sinédoque, em
contrapartida, a distinção similar entre as partes e o todo é feita apenas com o
objetivo de identificar o todo como uma totalidade que é qualitativamente idêntica
às partes que parecem constituí-lo.
Burke afirma que o uso metonímico é redutivo, enquanto o sinedóquico é
representativo64. O ponto importante é que, na metáfora, na metonímia e
igualmente na sinédoque, a linguagem nos fornece modelos da direção que o
pensamento poderia tomar em sua tentativa de dar sentido a áreas da experiência
ainda não consideradas como cognitivamente garantidas pelo senso comum, pela
tradição ou pela ciência. E podemos ver que, num campo de estudo como a história,
poder-se-ia dizer que a “interpretação” é aquilo que Foucault chamou de
“formalização” do modo linguístico, na qual o campo fenomênico era originariam
ente preparado para a identificação das entidades que o habitam e para a
determinação de suas inter-relações65. Uma suposta ciência construída no modo da
metáfora, por exemplo, seria regida pela busca de similitudes entre dois fenômenos
quaisquer no campo, e seu objetivo, evidentemente, seria catalogar os atributos
específicos de qualquer fenômeno dado mediante a observação de toda e qualquer
similaridade que ele apresentava com uma miríade de outros fenômenos
manifestamente diferentes dele à primeira vista. Eu diria que essa é a base
linguística do modo de explicação historiográfica que denominei idiografia.

sugerir que eles são a chave para a compreensão do problema da interpretação em campos protocicntíficos
como a história. Contudo, sinto-me impelido a perseverar nessa crença, não apenas pela obra de Burke mas
também pelo exemplo de Vico. Em A Ciência Nova, Vico sugere (conquanto não toque nesse ponto
explicitamente) que as formas de consciência de uma dada época na história de uma cultura correspondem
às formas de consciência dadas pela própria linguagem ao empenho humano de compreender o mundo.
Desse modo, as formas da ciência, da arte, da religião e da política etc., das quatro idades da evolução de
uma cultura (as épocas dos deuses, dos heróis, dos homens e d;t decadência ou ricorso) correspondem
exatamente aos quatro estágios da consciência refletidos na preponderância de um dado tropo: metáfora,
metonímia, sinédoque e ironia, nessa ordem. Ver The New Science, trad. Thomas Goddard Bergin e Max
Harold Fisch (Ithaca, 1968), §§ 400-410, pp. 127-132 e §§ 443-446, pp. 147-150. Ver também as interessantes
correlações entre os distúrbios mentais e os hábitos linguísticos feitas por Roman Jakobson, com base na
comparação entre linguagem “metafórica” e “metonímica”, em seus Essais de iinguistique générale, trad.
Nicolas Ruwer (Paris, 1963), principalmente o ensaio “Le Langage commun des linguistes et des
anthropologues”, pp. 25-67. Jakobson se estende sobre estas correlações, paçafins de crítica literária, em
“Linguistics and Poeücs”, em Style in Language, ed. Thomas A. Sebeok (New York e London, 1960), pp. 350-
377.
64 Burke, Grammur of Motives, pp. 505-510.
65 Ver Michel Foucault, The Order ofThings: An Archaeology of the Human Sciences (New York, 1970), pp. 298-
300.
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 115

A metonímia, sendo redutiva nas suas operações, forneceria um modelo da


forma de explicação que chamei mecanicista, pois esta se caracteriza por apreender
o campo histórico como um complexo de relações entre parte e parte e por tentar
compreender esse campo em função das leis que ligam um fenômeno a outro como
uma causa associada a um efeito. Já a sinédoque sancionaria um movimento na
direção oposta, no sentido de integrar todos os fenômenos aparentemente
específicos num todo, cuja qualidade era de molde a justificar a crença na
possibilidade de compreender o particular como um microcosmo de uma totalidade
macrocósmica, que é exatamente o objetivo de todos os sistemas organicistas de
explicação.
Isso nos conduz ao quarto tropo, a ironia, sob muitos aspectos o mais
problemático. Burke sugeriu que a ironia é inerentemente dialética, e que
poderíamos considerá-la a base tropológica de um modo de pensamento es-
pecificamente dialético66. Não estou certo de que seja esse o caso. Sem dúvida, a
ironia sanciona a afirmação ambígua e possivelmente até mesmo a ambivalente. E
um tipo de metáfora, mas um tipo que sinaliza sub-repticia- mente uma negação da
asserção de similitude ou diferença contida no sentido literal da proposição, ou pelo
menos lhe dá uma qualificação decisiva. “Ele é todo bondade” contém uma
metonímia dentro de uma sinédoque; “ele é todo bondade”, se pronunciado no tom
de voz correto, contém uma ironia à frente de uma sinédoque. O que está implícito
aqui é um tipo de atitude para com o próprio conhecimento que é implicitamente
crítico de todas as formas de identificação, redução ou integração metafóricas dos
fenômenos. Em resumo, a ironia é a estratégia linguística que fundamenta e sancio-
na o ceticismo como tática explicatória, a sátira como modo de urdidura do enredo,
e o agnosticismo ou o cinismo como postura moral 67.
Se essas correlações forem absolutamente plausíveis, segue-se que a
“interpretação” no pensamento histórico pode muito bem consistir na projeção, nos
níveis de conceituação cognitivo, estético e moral (ou ideológico), dos vários
tropos que autorizam prefigurações do campo fenomênico das línguas naturais em
geral. Em suma, “a interpretação” no pensamento histórico consistiria na
formalização do campo fenomênico originariamente constituído pela própria
língua com base num desafio tropológico predominante. A ser esse o caso,
poderíamos explicar a qualidade “clássica” dos quatro “mestres” reconhecidos do
pensamento histórico do século XIX - Michelet, Tocqueville, Ranke e Burckhardt
- em termos da coerência com que cada um leva a cabo a explicação, a urdidura do
enredo e a redução ideológica do campo histórico em função da estratégia
linguística de prefiguração representada pelos vários tropos. E, nesse sentido, a
nossa interpretação da sua obra consistiria na explicação do desafio tropológico
enterrado no coração das suas estratégias de explicação, de elaboração do enredo e
de implicação ideológica, respectivamente. Se essa estratégia interpretativa
estivesse correta, poderíamos dizer então que o pensamento deles representa a
realização das possibilidades de explicação, urdidura do enredo e implicação

66 Burke, Grammar of Motives, pp. 511-516.


67 Sobre a ironia, cf. Vico, em The New Science, § 408, p. 131.
116 TRÓPICOS DO DISCURSO

ideológica contidas na dotação linguística de sua época: metafórica (Michelet),


metonímica (Tocqueville), sinedóquica (Ranke) e irônica (Burckhardt).
Mas sugerir esse método de análise para a compreensão das diferentes
estratégias interpretativas encontradas na historiografia é levantar uma outra
questão, da qual não nos podemos ocupar neste ensaio. Esta questão diz respeito à
validade da teoria tropológica da própria linguagem poética. Serão os tropos
intrínsecos à linguagem natural? E se o são, funcionarão no sentido de fornecer
modelos de representação e explicação em alguma área de estudo ainda não elevada
ao status de verdadeira ciência? E mais: o que entendemos por “ciência” seria
simplesmente uma área de estudo em que um ou outro dos tropos alcançou o status
de paradigma para o protocolo linguístico em que o cientista é obrigado a formular
as suas perguntas e codificar as suas respostas a elas? Questões desse tipo precisam
aguardar pesquisas posteriores de psicólogos e linguistas sobre o aspecto gerativo
da linguagem e da fala. Mas parece-me possível que o que entendemos por
“interpretação” pode ser esclarecido de modo significativo pela análise adicional
das modalidades da fala em que um dado campo de percepção se torna proviso-
riamente compreensível pelo fato de ser “apreendido” na linguagem.
Para concluir este ensaio, gostaria de retornar a uma breve consideração das
teorias da interpretação histórica promovidas pelos quatro filósofos da história do
século XIX, mencionados no começo do ensaio. Observei que Hegel, Droysen,
Nietzsche e Croce identificavam quatro estratégias possíveis por meio das quais os
historiadores poderiam interpretar a sua matéria. E, embora as denominem segundo
seus próprios sistemas particulares de terminologia, é óbvio que para cada um a
interpretação histórica abarca um espectro de possibilidades cujos pólos são
constituídos por um modo de consciência essencialmente metafórico, de um lado,
e por um modo predominantemente irônico, de outro. As distinções de Hegel entre
historiografia universal, pragmática, crítica e conceituai são estabelecidas com base
nas diferenças entre uma consciência histórica que é “ingênua” num extremo e
“sentimental” no outro. Os estágios intermediários podem ser classificados como
metonímicos e sinedóquicos, respectivamente - ou seja, redutivos e representativos
(na terminologia de Burke) em sua orientação geral como estratégias
interpretativas. As categorias de Droysen (psicológica, causai, condicional e ética)
são, nas descrições que faz delas, similarmente tropoló- gicas na base. E o mesmo
se pode dizer do sistema quádruplo de classificação de Nietzsche (antiquário,
monumental, crítico e super-histórico). Entretanto, dos quatro filósofos
mencionados, Croce representa o caso mais evidente de uma análise tropológica da
interpretação histórica que se mascara de análise filosófica. Suas quatro “escolas”
do pensamento histórico (romântica, positivista, idealista e crítica) se decompõem
em formas de consciência que são manifestamente metafórica, metonímica,
sinedóquica e irônica, respectivamente, tal como ele as caracteriza.
Provavelmente, não foi por acaso que cada um desses teóricos se mostrou
particularmente sensível à necessidade de identificar os elementos poéticos e
retóricos na historiografia. Com efeito, Hegel, Nietzsche e Croce podem ser
caracterizados como filósofos da linguagem num sentido específico. De um modo
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 117

especial, Croce passou progressivamente do estudo das bases epistemológicas do


conhecimento histórico para uma posição em que buscou subordinar a história a
um conceito geral da arte. Sua teoria da arte, por sua vez, foi elaborada como uma
“ciência da expressão e da linguística geral” (o subtítulo da sua Estética). Em sua
análise das bases na fala de todos os modos possíveis de compreender a realidade,
ele esteve na iminência de captar a natureza essencialmente tropológica da
interpretação em geral. Foi impedido de formular esta percepção direta, mais
provavelmente por causa de sua própria suspeição “irônica” de sistema em
qualquer ciência humana.
Não obstante, tanto a forma quaternária dessas análises das modalidades da
interpretação histórica quanto suas caracterizações específicas por parte dos
teóricos mencionados fornecem a base para a investigação posterior das origens
tropológicas dos tipos de interpretação encontrados em áreas de estudo como a
história. Se semelhante investigação estaria apta a promover um entendimento
adequado das operações desses campos de estudo, não posso dizer. Mas ela pelo
menos eliminaria a controvérsia do terreno em que os compromissos ideológicos
conflitantes aparecem com roupagens de metodologias, e paradigmas alternativos
de explicação são apresentados como as únicas formas possíveis que uma “ciência
da história” pode assumir.
112 TRÓPICOS DO DISCURSO

0 TEXTO HISTÓRICO COMO ARTEFATO LITERÁRIO68

Uma das maneiras pelas quais uma área de pesquisa erudita faz uma avaliação de si
mesma é examinando a sua história. Entretanto, é difícil obter uma história objetiva de uma
disciplina erudita porque, se o historiador a pratica ele mesmo, provavelmente será adepto
de uma ou outra de suas seitas e, por conseguinte, tendencioso; e, se não a pratica, é
improvável que tenha a perícia necessária para distinguir entre os acontecimentos
significativos e os não-significativos de sua área. Poder-se-ia pensar que estas dificuldades
não surgem no campo da própria história, mas surgem, e não apenas pelas razões acima
mencionadas. Para escrever a história de uma dada disciplina erudita, ou mesmo de uma
ciência, deve-se estar preparado para formular sobre ela um tipo de pergunta que não deve
ser formulado no exercício dela. Deve-se tentar manter-se atrás dos pressupostos que
conferem sustentação a um dado tipo de investigação (ou pelo menos manter-se sob a sua
influência) e formular as perguntas que sua prática pode requerer, no interesse de determinar
por que este tipo de investigação foi projetado para dar solução aos problemas que ele
caracteristicamente procura resolver. É isto o que a meta-história tenta fazer. Ela se volta
para questões como: Qual é a estrutura de uma consciência peculiarmente historical Qual é
o status epistemológico das explicações históricas, quando comparadas a outros tipos de
explicações que poderiam ser oferecidos para esclarecer a matéria de que se ocupam

68 Este ensaio é uma versão revisada de uma conferência dada no Colóquio de Literatura Comparada da Yale University em
24 de janeiro de 1974. Ne!e, tentei desenvolver alguns dos temas que originariamente analisei num artigo, “A Estrutura da
Narrativa Histórica”, Clio I (1972):5-20. Também recorri ao material de meu livro Metahistory: The Historical Imagination
in Nineteenth-Century Europe (Baltimore, 1973), principalmente à introdução, intitulada “A Poética da História”. O ensaio
aproveitou-se de conversas com Michael Holquist e Geoffrey Hartman, ambos da Yale University e especialistas na teoria
da narrativa. As citações de Claude Lévi-Strauss foram extraídas da sua obra, The Savage Mind (London, 1966) e de
“Overture to Le Cru et le Cuit", emStructuralism, ed, Jacques Ehrmann (New York, 1966). Para as observações sobre a
natureza icônica da metáfora, recorri a Paul Henle, Language, Thought, and Culture (Ann Arbor, 1966). As noções de
natureza tropológica do estilo desenvolvidas por Jakobson aparecem em “Linguistics and Poetics”, em Style and Language,
ed. Thomas A. Sebeok (New York e London, 1960). Além de Anatomy ofCriticism de Northrop Frye (Princeton, 1957), ver
também o seu ensaio sobre a filosofia da história, “New Directions from Old”, em Fables ofldentity (New York, 1963). Sobre
estória e enredo na narrativa histórica segundo o pensamento de R. G. Collingwood, ver, obviamente, The Idea of History
(Oxford, 1956).
0 TEXTO HISTÓRICO COMO ARTEFATO LITERÁRIO 113

comumente os historiadores? Quais são as formas possíveis de representação histórica e


quais as suas bases? Que autoridade podem os relatos históricos reivindicar como
contribuições a um conhecimento seguro da realidade em geral e às ciências humanas em
particular?
Ora, muitas dessas questões foram tratadas com bastante competência durante o
último quarto de século por filósofos empenhados em definir as relações da história com
outras disciplinas, principalmente as ciências físicas e sociais, e por historiadores
interessados em avaliar o êxito de sua disciplina no levantamento do passado e na
determinação da relação desse passado com o presente. Há, porém, um problema que nem
os filósofos nem os historiadores encararam com muita seriedade e ao qual os teóricos da
literatura só têm concedido uma atenção momentânea. Essa questão diz respeito ao status
da narrativa histórica, considerada exclusivamente como um artefato verbal que pretende
ser um modelo de estruturas e processos há muito decorridos e, portanto, não-sujeitos a
controles experimentais ou observacionais. Isso não quer dizer que historiadores e filósofos
da história não observaram a natureza essencialmente provisória e contingente das
representações históricas e sua suscetibilidade a uma revisão infinita dos problemas à luz de
novos testemunhos ou de uma conceituação mais elaborada. Uma das marcas do bom
historiador profissional é a firmeza com que ele lembra a seus leitores a natureza puramente
provisória das suas caracterizações dos acontecimentos, dos agentes e das atividades
encontrados no registro histórico sempre incompleto. E tampouco quer dizer que os teóricos
da literatura nunca estudaram a estrutura das narrativas históricas. Mas de um modo geral
houve uma relutância em considerar as narrativas históricas como aquilo que elas mani-
festamente são: ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos e
cujas formas têm mais em comum com os seus equivalentes na literatura do que com os seus
correspondentes nas ciências.
Ora, é óbvio que esta fusão da consciência mítica e da histórica ofenderá alguns
historiadores e perturbará aqueles teóricos literários cuja concepção de literatura pressupõe
uma oposição radical da história à ficção ou do fato à fantasia. Como observou Northrop
Frye, “em certo sentido, o histórico é o oposto do mítico, e dizer ao historiador que aquilo
que dá forma ao seu livro é um mito lhe pareceria vagamente acintoso”. No entanto, o
próprio Frye admite que, “quando o projeto de um. historiador alcança certo nível de
abrangência, ele se torna mítico na forma e, assim, se aproxima do poético na estrutura”.
Frye se refere inclusive a diferentes tipos de mitos históricos: mitos românticos, “baseados
numa busca (ou peregrinação) de uma Cidade de Deus ou de uma sociedade sem classes”;
mitos cômicos, “mitos do progresso mediante evolução ou revolução”; mitos trágicos, de
“declínio e queda, como as obras de Gibbon e Spengler”; e mitos irônicos, “de recorrência
ou de catástrofe casual”. Mas Frye parece acreditar que estes mitos só são operativos nas
vítimas do que se poderia chamar “falácia poética”, como Hegel, Marx, Nietzsche, Spengler,
Toynbee e Sartre - historiadores cujo fascínio pela capacidade “construtiva” do pensamento
humano lhes atenuou a responsabilidade pelos dados “descobertos”. “O historiador trabalha
indutivamente”, diz ele, “coletando seus fatos e tentando evitar quaisquer padrões de
formação, exceto aqueles que ele vê, ou tem a honesta convicção de ver, nos próprios fatos”.
Ele não trabalha “a partir” de uma “forma unificadora”, como faz o poeta, mas “com vistas”
a ela; segue-se, portanto, que o historiador, como qualquer um que escreva prosa discursiva,
deve ser julgado “pela verdade do que diz, ou pela adequação da sua reprodução verbal de
seu modelo exterior”, quer esse modelo se componha das ações dos homens no passado,
quer do próprio pensamento do historiador acerca de tais ações.
O que Frye diz é bastante verdadeiro enquanto afirmação do ideal que inspirou a
escrita histórica desde a época dos gregos, mas esse ideal pressupõe uma oposição entre
114 TRÓPICOS DO DISCURSO

mito e história que é tão problemática quanto venerável. Ela serve muito bem aos propósitos
de Frye, visto que lhe permite localizar o especificamente “fictício” no espaço entre os dois
conceitos de “mítico” e “histórico”. Como hão de lembrar-se os leitores da Anatomy of
Criücism, Frye concebe que as ficções consistem parcialmente em sublimados de estruturas
míticas arquetípicas. Estas estruturas foram deslocadas para o interior de artefatos verbais
de modo a servir de sentidos latentes deles. Os sentidos fundamentais de todas as ficções, o
seu conteúdo temático, consistem, segundo Frye, nas “estruturas de enredo pré-genéricas”,
ou mythoi, derivadas dos corpora da literatura religiosa clássica e judaico-cristã. De acordo
com essa teoria, compreendemos por que uma estória particular “se revelou” como fez
quando identificamos o mito arquetípico, ou estrutura de enredo pré-genérica, do qual a
estória é uma exemplificação. E vemos o “ponto” de uma estória quando lhe identificamos
o tema (a tradução de Frye para dianoia), que a transforma numa “parábola ou fábula
ilustrativa”. “Toda obra de literatura”, insiste Frye, “tem ao mesmo tempo um aspecto
ficcional e um aspecto temático”, mas quando nos movemos da “projeção ficcional” para a
articulação aberta do tema, a escrita tende a assumir o aspecto de “comunicação direta, ou
escrita discursiva imediata, e deixa de ser literatura”. E para Frye, como vimos, a história
(ou pelo menos a “história convencional”) pertence à categoria da “escrita discursiva”, de
modo que, quando o elemento ficcional - ou a estrutura mítica do enredo - está presente nela
de maneira óbvia, deixa de ser inteiramente história para tornar-se um gênero bastardo,
produto de uma união profana, embora inatural, entre a história e a poesia.
Entretanto, eu diria que as histórias conseguem parte do seu efeito explicativo graças
ao êxito em criar estórias de simples crônicas; e as estórias, por sua vez, são criadas das
crônicas graças a uma operação que chamei, em outro lugar, de “urdidura de enredo”. E por
urdidura de enredo entendo simplesmente a codificação dos fatos contidos na crônica em
forma de componentes de tipos específicos de estruturas de enredo, precisamente da maneira
como Frye sugeriu ser o caso das “ficções” em geral.
O falecido R. G. Collingwood insistia em dizer que o historiador era sobretudo um
contador de estórias e afirmava que a sensibilidade histórica se manifestava na capacidade
de criar uma estória plausível a partir de uma congérie de “fatos” que, na sua forma não-
processada, carecia absolutamente de sentido. No seu empenho em compreender o registro
histórico, que é fragmentário e sempre incompleto, os historiadores precisam fazer uso do
que Collingwood chamava “imaginação construtiva”, que dizia ao historiador - como o faz
ao detetive competente - qual “deve ter sido o caso”, dados o testemunho disponível e as
propriedades formais que ela revelou à consciência capaz de formular a questão certa com
relação a ela. Esta imaginação construtiva funciona mais ou menos como funcionaria,
segundo Kant, a imaginação apriorística quando ela nos diz que, embora não possamos
perceber simultaneamente ambos os lados do tampo de uma mesa, podemos estar certos de
que ela tem dois lados, já que tem um lado, porque o próprio conceito de um lado implica
pelo menos um outro. Collingwood postulava que os historiadores abordavam o seu
testemunho dotados de um senso das formas possíveis que os diferentes tipos de situação
reconhecidamente humana podem assumir. A esse sentido ele denominava faro para a
“estória” contida no testemunho ou para a “verdadeira” estória que jazia sob a estória
“aparente” ou oculta por trás dela. E concluía que os historiadores fornecem explicações
plausíveis para corpos de testemunhos históricos quando conseguem descobrir a estória ou
o conjunto de estórias contidas implicitamente dentro delas.
O que Collingwood não logrou perceber é que nenhum conjunto dado de
acontecimentos históricos casualmente registrados pode por si só constituir uma estória; o
máximo que pode oferecer ao historiador são os elementos de estória. Os acontecimentos
são convertidos em estória pela supressão ou subordinação de alguns deles e pelo realce de
0 TEXTO HISTÓRICO COMO ARTEFATO LITERÁRIO 115

outros, por caracterização, repetição do motivo, variação do tom e do ponto de vista,


estratégias descritivas alternativas e assim por diante - em suma, por todas as técnicas que
normalmente se espera encontrar na urdidura do enredo de um romance ou de uma peça.
Por exemplo, nenhum acontecimento histórico é intrinseca- mente trágico-, só pode ser
concebido como tal de um ponto de vista particular ou de dentro do contexto de um conjunto
estruturado de eventos do qual ele é um elemento que goza de um lugar privilegiado. Pois
na história o que é trágico de uma perspectiva é cômico de outra, exatamente da mesma
forma que na sociedade o que parece ser trágico do ponto de vista de uma classe pode ser,
como Marx pretendeu demonstrar com O 18 Bmmário de Luís Bonaparte, apenas uma farsa
do ponto de vista de outra classe. Considerados como elementos potenciais de uma estória,
os acontecimentos históricos são de valor neutro. Se acabam encontrando o seu lugar numa
estória que é trágica, cômica, romântica ou irônica - para fazer uso das categorias de Frye
isso vai depender da decisão do historiador em configurá-los de acordo com os imperativos
de uma estrutura de enredo ou mythos, em vez de outra. O mesmo conjunto de eventos pode
servir como componentes de uma estória que é trágica ou cômica, conforme o caso,
dependendo da escolha, por parte do historiador, da estrutura de enredo que lhe parece mais
apropriada para ordenar os eventos desse tipo de modo a transformá-los numa estória
inteligível.
Isto sugere que aquilo que o historiador traz à sua consideração do registro histórico
é uma noção dos tipos de configuração dos eventos que podem ser reconhecidos como
estórias pelo público para o qual ele está escrevendo. Na verdade, ele pode falhar. Não creio
que alguém aceitasse a urdidura de enredo da vida do presidente Kennedy como comédia,
porém se deve ser contada à maneira romântica, trágica ou satírica é uma questão em aberto.
O importante é que a maioria das sequências históricas pode ser contada de inúmeras
maneiras diferentes, de modo a fornecer interpretações diferentes daqueles eventos e a dotá-
los de sentidos diferentes. Assim, por exemplo, o que Michelet, na sua grande história da
Revolução Francesa, construiu no modo de um drama de transcendência romântica, seu
contemporâneo Tocqueville contou na forma de uma tragédia irônica. Não se pode dizer
que um tenha tido mais conhecimento que o outro dos “fatos” contidos no registro; apenas
tinham concepções diferentes do tipo de estória que quadrava melhor aos fatos que
conheciam. Tampouco se deve imaginar que contaram estórias diferentes da Revolução
porque haviam descoberto tipos diferentes de fatos, políticos, de um lado, sociais, de outro.
Eles perseguiram tipos diferentes de fatos porque tinham tipos diferentes de estórias para
contar. Mas por que estas representações alternativas, para não dizer mutuamente
exclusivas, do que era substancialmente o mesmo conjunto de eventos parecem igualmente
plausíveis aos seus respectivos públicos? Apenas porque os historiadores partilhavam com
os seus públicos certas preconcepções sobre o modo como a Revolução poderia ser contada,
em resposta aos imperativos que eram de um modo geral extra-históricos, ideológicos, esté-
ticos ou míticos.
Collingwood observou certa vez que jamais poderíamos explicar uma tragédia a quem
quer que já não estivesse familiarizado com os tipos de situação que são considerados
“trágicos” em nossa cultura. Quem quer que tenha ministrado ou frequentado um desses
cursos de múltiplo teor, intitulados comumente Civilização Ocidental ou Introdução aos
Clássicos da Literatura Ocidental, saberá o que Collingwood tinha em mente. A menos que
tenhamos alguma ideia dos atributos genéricos da situação trágica, cômica, romântica ou
irônica, não seremos capazes de reconhecê-las como tais quando deparamos com elas num
texto literário. Mas as situações históricas não configuraram nelas sentidos intrínsecos,
como ocorre com os textos literários. As situações históricas não são inerentemente trágicas,
cômicas ou românticas. Podem ser todas inerentemente irônicas, porém não precisam ser
116 TRÓPICOS DO DISCURSO

urdidas dessa forma. Tudo o que o historiador necessita fazer para transformar uma situação
trágica numa cômica é alterar o seu ponto de vista ou mudar o escopo das suas percepções.
Em todo caso, só pensamos nas situações como trágicas ou cômicas porque tais conceitos
fazem parte de nossa herança cultural em geral e literária em particular. O modo como uma
determinada situação histórica deve ser configurada depende da sutileza com que o
historiador harmoniza a estrutura específica de enredo com o conjunto de acontecimentos
históricos aos quais deseja conferir um sentido particular. Trata-se essencialmente de uma
operação literária, vale dizer, criadora de ficção. E chamá-la assim não deprecia de forma
alguma o status das narrativas históricas como fornecedoras de um tipo de conhecimento.
Pois não só as estruturas de enredo pré-genéricas, mediante as quais os conjuntos de eventos
se podem constituírem estórias de um tipo particular, são limitadas em número, como Frye
e outros críticos arquetípicos sugerem; como também a codificação dos eventos em função
de tais estruturas de enredo é uma das maneiras de que a cultura dispõe para tornar
inteligíveis tanto o passado pessoal quanto o passado público.
Podemos conferir sentido a um conjunto de acontecimentos de muitas formas
diferentes. Uma delas é subordinar os eventos às leis causais que podem ter regido a sua
concatenação a fim de produzir a configuração particular que os eventos parecem assumir
quando considerados como “efeitos” de forças mecânicas. E o modo da explicação
científica. Outra maneira de conferir sentido a um conjunto de acontecimentos que parece
estranho, enigmático ou misterioso em suas manifestações imediatas é codificar o conjunto
em função de categorias culturalmente fornecidas, tais como conceitos metafísicos, crenças
religiosas ou formas de estória. O efeito dessas codificações é tornar familiar o não-familiar;
e em geral esse é o modo da historiografia, cujos “dados” sempre são imediatamente
estranhos, para não dizer exóticos, simplesmente em virtude de estarem distantes de nós no
tempo e de se originarem num modo de vida diferente do nosso.
O historiador partilha com seu público noções gerais das formas que as situações
humanas significativas devem assumir em virtude de sua participação nos processos
específicos da criação de sentido que o identificam como membro de uma dotação cultural
e não de outra. No processo de estudar um dado complexo de eventos, ele começa por
perceber a possível forma de estória que tais eventos podem configurar. Em seu relato
narrativo do modo como este conjunto de eventos assumiu a forma que percebe ser inerente
a esse relato, ele urde o seu relato na forma de uma estória de um tipo particular. O leitor,
no processo de acompanhar o relato desses eventos pelo historiador, chega pouco a pouco a
compreender que a estória que está lendo é de um tipo, e não de outro: romance, tragédia,
comédia, sátira, epopeia ou o que quer que seja. E, depois de perceber a classe ou tipo a que
pertence a estória que está lendo, ele experimenta o efeito de ter os eventos da estória
explicados para ele. A essa altura, ele não apenas acompanhou com êxito a estória; ele
captou o seu ponto principal, entendeu-a. A estranheza, mistério ou exotismo original dos
eventos se dispersa e eles assumem um aspecto familiar, não em seus detalhes, mas em suas
funções de elementos de um tipo familiar de configuração. Tornaram-se abrangentes ao
serem submetidos às categorias da estrutura de enredo em que são codificados como uma
estória de um tipo particular. Tornam-se familiares, não só porque o leitor tem agora mais
informações sobre os eventos, mas também porque lhe foi mostrado como os dados se
harmonizam com um ícone de um processo finito abrangente, uma estrutura de enredo com
a qual ele está familiarizado como parte da sua dotação cultural.
Isso não difere do que acontece, ou se supõe acontecer, na psicoterapia. Os conjuntos
de acontecimentos do passado do paciente que são a causa presumida do seu sofrimento,
manifestados na síndrome neurótica, deixaram de ser familiares, tornaram-se estranhos,
misteriosos e ameaçadores e assumiram um sentido que ele não pode aceitar nem rejeitar
0 TEXTO HISTÓRICO COMO ARTEFATO LITERÁRIO 117

efetivamente. Não é que o paciente não sabe quais eram aqueles acontecimentos, não é que
não conhece os fatos; pois, se não conhecesse de algum modo os fatos, seria incapaz de
reconhecê-los e recalcá-los sempre que aflorassem à sua consciência. Ao contrário, ele os
conhece muito bem. Conhece-os tão bem, com efeito, que convive com eles constantemente
e de tal modo que se lhe torna impossível ver quaisquer outros fatos exceto através da
coloração que o conjunto de acontecimentos em questão confere à sua percepção do mundo.
Poderíamos dizer que, de acordo com a teoria da psicanálise, o paciente supertramou esses
acontecimentos, carregou-os de um sentido tão intenso que, sejam reais ou apenas
imaginários, eles continuam a moldar tanto as suas percepções como as suas respostas ao
mundo muito tempo depois que deveriam ter-se tornado “história passada”. O problema do
terapeuta, então, não é exibir diante do paciente os “fatos reais” da questão, a “verdade” em
oposição à “fantasia” que o obceca. Tampouco é ministrar-lhe um curso rápido sobre a teoria
psicanalítica para esclarecê-lo quanto à verdadeira natureza do seu sofrimento, catalogando-
o como manifestação de algum “complexo”. Isto é o que o analista poderia fazer ao relatar
o caso do paciente a uma terceira pessoa, principalmente a outro analista. Mas a teoria
psicanalítica reconhece que o paciente resistirá a estas duas táticas da mesma forma que
resistirá à intrusão, na consciência, dos vestígios de memória traumatizada na forma como
os evoca obsessivamente. O problema é levar o paciente a “retramar” toda a história da sua
vida, de maneira a mudar o sentido para ele daqueles acontecimentos e a sua significação
para a economia de todo o conjunto de acontecimentos que compõem a sua vida. Encarado
dessa forma, o processo terapêutico é um exercício no processo de refamiliarizar os
acontecimentos que deixaram de ser familiares, que se alienaram da história de vida do
paciente em virtude de sua sobredeterminação como forças causais. E poderíamos dizer que
os acontecimentos perdem seu caráter traumático ao serem removidos da estrutura de enredo
em que ocupam um lugar predominante e inseridos em outra na qual tenham uma função
subordinada ou simplesmente banal como elementos de uma vida partilhada com os demais
seres humanos.
Ora, não me interessa forçar a analogia entre psicoterapia e historiografia; utilizo o
exemplo apenas para ilustrar um aspecto importante do componente fictício das narrativas
históricas. Os historiadores procuram nos refamiliarizar com os acontecimentos que foram
esquecidos por acidente, desatenção ou recalque. Ademais, os maiores historiadores sempre
se ocuparam daqueles acontecimentos nas histórias de suas culturas que são “traumáticos”
por natureza e cujo sentido é problemático ou sobredetermi- nado na significação que ainda
encerram para a vida atual, acontecimentos como revoluções, guerras civis, processos em
grande escala como a industrialização e a urbanização, ou instituições que perderam sua
função original numa sociedade mas continuam a desempenhar um papel importante no
cenário social contemporâneo. Ao examinar os modos como essas estruturas tomaram
forma ou evoluíram, os historiadores as refamiliarizam, não só fornecendo mais
informações sobre elas, mas também mostrando como o seu desenvolvimento se conformou
a um ou outro dos tipos de estória a que convencionalmente recorremos para dar um sentido
às nossas próprias histórias de vida.
Ora, se isso é plausível como caracterização do efeito explicativo da narrativa
histórica, também nos diz algo importante sobre o aspecto mimêti- co das narrativas
históricas. Admite-se em geral - como disse Frye - que a história é um modelo verbal de um
conjunto de acontecimentos exteriores à mente do historiador. Mas é errôneo considerar que
uma história é um modelo semelhante a uma maqueta em escala de um avião ou navio, a
um mapa ou a uma fotografia. Pois podemos verificar a adequação deste último tipo de
modelo olhando para o original e aplicando as regras necessárias de tradução, vendo sob
que aspecto o modelo logrou reproduzir efetivamente as características do original. Mas os
118 TRÓPICOS DO DISCURSO

processos e estruturas históricos não são como esses originais; não podemos olhar para eles
a fim de verificar se o historiador os reproduziu com propriedade na sua narrativa. Nem
deveríamos querer tal coisa, mesmo que pudéssemos fazê-lo; pois, apesar de tudo, foi a
própria singularidade do original, tal como apareceu nos documentos, que inspirou o
empenho do historiador em criar um modelo dele no primeiro lugar. Se o historiador o
fizesse apenas para nós, ficaríamos na mesma situação do paciente cujo analista apenas lhe
disse, com base em entrevistas com os seus pais, parentes e amigos de infância, quais foram
os “verdadeiros fatos” do começo da vida do paciente. Não teríamos qualquer razão para
pensar que alguma coisa nos fora de modo algum explicada.
É isso que me leva a pensar que as narrativas históricas são não apenas modelos de
acontecimentos e processos passados, mas também afirmações metafóricas que sugerem
uma relação de similitude entre esses acontecimentos e processos e os tipos de estória que
convencionalmente utilizamos para conferir aos acontecimentos de nossas vidas
significados culturalmente sancionados. Vista de um modo puramente formal, uma narrativa
histórica é não só uma reprodução dos acontecimentos nela relatados, mas também um
complexo de símbolos que nos fornece direções para encontrar um ícone da estrutura desses
acontecimentos em nossa tradição literária.
Aqui, obviamente, estou recorrendo às distinções entre signo, símbolo e ícone que C.
S. Pierce desenvolveu na sua filosofia da linguagem. Acho que estas distinções nos ajudarão
a compreender o que é fictício em todas as representações supostamente realistas do mundo
e o que é realista em todas as representações manifestamente fictícias. Elas nos ajudam, em
resumo, a responder à pergunta: As representações históricas são representações de quê?
Quero crer que devemos dizer das histórias o que Frye parece pensar que vale apenas para
a poesia ou para as filosofias da história, a saber, que, considerada como um sistema de
signos, a narrativa histórica aponta simultaneamente para duas direções: para os
acontecimentos descritos na narrativa e para o tipo de estória ou mythos que o historiador
escolheu para servir como ícone da estrutura dos acontecimentos. A narrativa em si não é o
ícone; o que ela faz é descrever os acontecimentos contidos no registro histórico de modo a
informar ao leitor o que deve ser tomado como ícone dos acontecimentos a fim de torná-los
“familiares” a ele. Assim, a narrativa histórica serve de mediadora entre, de um lado, os
acontecimentos nela relatados e, de outro, a estrutura de enredo pré-genérica,
convencionalmente usada em nossa cultura para dotar de sentido os acontecimentos e
situações não-familiares.
A evasão das implicações da natureza fictícia da narrativa histórica decorre em parte
da utilidade do conceito de “história” para a definição de outros tipos de discurso. Pode-se
comparar a “história” à “ciência” pela sua falta de rigor conceituai e por seu malogro em
criar os tipos de leis universais que as ciências caracteristicamente procuram criar. De modo
semelhante, pode-se comparar a “história” à “literatura” em razão do seu interesse mais no
“real” que no “possível”, o que é supostamente o objeto de representação das obras
“literárias”. Desta forma, numa longa e ilustre tradição crítica que tentou determinar o que
é “real” e o que é “imaginado” no romance, a história serviu como um tipo de arquétipo do
polo “realista” de representação. Tenho em mente Frye, Auerbach, Booth, Scholes, Kellogg
e outros. Tampouco é incomum para os teóricos da literatura, quando se referem ao
“contexto” de uma obra literária, supor que este contexto - o “meio histórico” - tem uma
concretude e uma acessibilidade que a obra em si nunca pode ter, como se fosse mais fácil
perceber a realidade de um mundo passado constituído com base em milhares de
documentos históricos do que sondar as profundezas de uma única obra literária que se
apresenta aos olhos do crítico que a estuda. Mas a suposta concretude e acessibilidade dos
meios históricos, estes contextos dos textos examinados por estudiosos da literatura, são elas
0 TEXTO HISTÓRICO COMO ARTEFATO LITERÁRIO 119

próprias produtos da capacidade fictícia dos historiadores que estudaram estes contextos.
Os documentos históricos não são menos opacos do que os textos estudados pelo crítico
literário. Tampouco é mais acessível o mundo figurado por esses documentos. Um não é
mais “dado” do que o outro. De fato, a opacidade do mundo figurada nos documentos
históricos é, se é lícito falar de opacidade, aumentada pela produção das narrativas
históricas. Cada nova obra histórica apenas se soma ao número de textos possíveis que têm
de ser interpretados se se quiser traçar fielmente um retrato completo e exato de um
determinado meio histórico. A relação entre o passado a analisar e as obras históricas
produzidas pela análise dos documentos é paradoxal; quanto mais conhecemos sobre o
passado, tanto mais difícil se torna fazer generalizações sobre ele.
Mas, se a ampliação do conhecimento que temos do passado torna mais difícil fazer
generalizações sobre ele, deveria ser mais fácil generalizar em torno das formas em que esse
conhecimento nos é transmitido. Nosso conhecimento do passado pode aumentar de maneira
crescente, mas não a compreensão que temos dele. Tampouco a compreensão que temos do
passado se desenvolve mediante o tipo de brechas revolucionárias que associamos ao
desenvolvimento das ciências físicas. Tal como a literatura, a história se desenvolve por
meio da produção de clássicos, cuja natureza é tal que não podemos invalidá-los nem negá-
los, a exemplo dos principais esquemas conceituais das ciências. E é o seu caráter de não-
invalidação que atesta a natureza essencialmente literária dos clássicos históricos. Há algo
numa obra-prima da história que não se pode negar, e esse elemento nao-negável é a sua
forma, a forma que é a sua ficção.
E esquecido muitas vezes ou, quando é lembrado, é negado que nenhum conjunto de
eventos atestados pelo registro histórico compreende uma estória manifestamente acabada
e completa. Isso é tão verdadeiro no caso de acontecimentos que abrangem a vida de um
indivíduo quanto no caso de uma instituição, uma nação ou todo um povo. Não vivemos
estórias, mesmo que confiramos sentido à nossa vida moldando-a retrospectivamente na
forma de estórias. E o mesmo ocorre com nações ou com culturas inteiras. Num ensaio sobre
a natureza “mítica” da historiografia, Lévi-Strauss faz observações sobre o espanto que
sentiria um visitante de outro planeta se se defrontasse com os milhares de histórias escritas
sobre a Revolução Francesa. Pois nessas obras os “autores nem sempre fazem uso dos
mesmos incidentes;
quando o fazem, os incidentes são revelados sob luzes diferentes. E, no entanto, estas são
variações relacionadas com o mesmo país, o mesmo período e os mesmos acontecimentos -
acontecimentos cuja realidade se dispersa por cada nível de uma estrutura
multiestratificada”. E Lévi-Strauss prossegue para sugerir que o critério de validade pelo
qual se poderia avaliar os relatos históricos não pode depender de seus “elementos” -
eqüivale a dizer - de seu suposto conteúdo factual. Pelo contrário, observa ele, “procurado
isoladamente, cada elemento mostra estar fora de alcance. Mas alguns deles derivam a sua
consistência do fato de poderem ser integrados num sistema cujos termos são mais ou menos
críveis quando opostos à coerência global da série”. Mas a sua “coerência da série” não pode
ser a coerência da série cronológica, essa sequência de “fatos” organizados na ordem
temporal da sua ocorrência original. Pois a “crônica” dos eventos com que o historiador
forma a sua estória do “que realmente aconteceu” já nos chega pré-codifica- da. Há
cronologias “quentes” e “frias”, cronologias em que mais datas ou menos datas parecem
demandar inclusão numa crônica total do que aconteceu. Além disso, as próprias datas
chegam até nós já agrupadas em classes de datas, classes que constituem os supostos
domínios do campo histórico, os quais aparecem como problemas para o historiador resolver
se pretender fornecer um relato completo e culturalmente responsável do passado.
Tudo isto sugere a Lévi-Strauss que, quando se trata de elaborar um relato abrangente
120 TRÓPICOS DO DISCURSO

dos vários domínios do registro histórico na forma de uma estória, as “pretensas


continuidades históricas” que o historiador parece achar no registro só são “asseguradas por
meio de esquemas fraudulentos” impostos ao registro pelo historiador. Estes “esquemas
fraudulentos” são, segundo ele, um produto de “abstração” e um meio de escapar à “ameaça
de uma regressão ao infinito” que sempre se oculta no interior de cada conjunto complexo
de “fatos” históricos. Só podemos construir uma estória compreensível do passado, insiste
Lévi-Strauss, mediante uma decisão de “abandonar” um ou mais dos domínios de fatos que
se oferecem para inclusão em nossos relatos. Assim, nossas explicações das estruturas e dos
processos históricos são determinadas mais pelo que deixamos de fora das nossas
representações do que pelo que nela incluímos. Pois é nessa brutal capacidade de excluir
certos fatos no interesse de constituir outros em componentes de estórias compreensíveis
que o historiador exibe seu tato e sua compreensão. A “coerência total” de qualquer “série”
determinada de fatos históricos é a coerência da história, mas essa coerência só é alcançada
mediante uma adaptação dos “fatos” às exigências da forma da estória. E assim Lévi-Strauss
conclui: “A despeito dos esforços meritórios e indispensáveis para dar vida a um momento
da história e para apropriar-se dele, uma história clarividente deveria admitir que ele jamais
escapa completamente à natureza do mito”.
É esta função mediadora que nos permite falar de uma narrativa histórica como de
uma metáfora de longo alcance. Como estrutura simbólica, a narrativa histórica não
reproduz os eventos que descreve; ela nos diz a direção em que devemos pensar acerca dos
acontecimentos e carrega o nosso pensamento sobre os eventos de valências emocionais
diferentes. A narrativa histórica não imagina as coisas que indica: ela traz à mente imagens
das coisas que indica, tal como o faz a metáfora. Quando um dado concurso de eventos é
narrado no modo da “tragédia”, isto significa apenas que o historiador descreveu dessa
forma os eventos para nos lembrar aquela forma de ficção que associamos ao conceito de
“trágico”. Corretamente entendidas, as histórias nunca devem ser lidas como signos
inequívocos dos acontecimentos que relatam, mas antes como estruturas simbólicas,
metáforas de longo alcance, que “comparam” os acontecimentos nelas expostos a alguma
forma com que já estamos familiarizados em nossa cultura literária.
Talvez eu devesse indicar rapidamente o que se entende por aspecto simbólico e
aspecto icônico de uma metáfora. A frase banal: “Meu amor, uma rosa” não pretende,
obviamente, dar a entender que a pessoa amada é realmente uma rosa. Tampouco tenciona
sugerir que a pessoa amada tem os atributos específicos de uma rosa - ou seja, que a pessoa
amada é vermelha, amarela, laranja ou escura, que é uma planta, tem espinhos, necessita da
luz do sol, deveria ser borrifada regularmente com inseticidas e assim por diante. Ela
pretende indicar que a pessoa querida partilha as qualidades que a rosa veio a simbolizar
nos usos linguísticos corriqueiros da cultura ocidental. Ou seja, considerada como uma
mensagem, a metáfora fornece diretrizes que permitem encontrar uma entidade que evocará
as imagens associados aos entes queridos e às rosas em nossa cultura. A metáfora não
imagina a coisa que ela procura caracterizar; ela fornece diretrizes que facultam encontrar
o conjunto de imagens que se pretende associar àquela coisa. Funciona como um símbolo,
e não como um signo: vale dizer, ela não nos fornece uma descrição ou um ícone da coisa
que representa, porém nos diz que imagens procurar em nossa experiência culturalmente
codificada a fim de determinar de que modo nos devemos sentir em relação à coisa
representada.
O mesmo se dá com as narrativas históricas. Elas conseguem dar sentido a conjuntos
de acontecimentos passados, além e acima de qualquer compreensão que forneçam,
recorrendo a supostas leis causais, mediante a exploração das similaridades metafóricas
entre os conjuntos de acontecimentos reais e as estruturas convencionais das nossas ficções.
0 TEXTO HISTÓRICO COMO ARTEFATO LITERÁRIO 121

Pela própria constituição de um conjunto de eventos com vistas a criar com eles uma estória
compreensível, o historiador impõe a esses eventos o significado simbólico de uma estrutura
de enredo compreensível. Os historiadores talvez não gostem de pensar que suas obras são
traduções do fato em ficções; mas este é um dos efeitos das suas obras. Ao sugerir enredos
alternativos de uma dada sequência de eventos históricos, os historiadores fornecem aos
eventos históricos todos os possíveis significados de que a arte da literatura da sua cultura é
capaz de dotá-los. A verdadeira controvérsia entre o historiador tradicional e o filósofo da
história diz respeito à insistência do último em dizer que os eventos podem ser urdidos numa
e apenas numa forma de estória. A escrita da história prospera com a descoberta de todas as
possíveis estruturas de enredo que poderiam ser invocadas para conferir sentidos diferentes
aos conjuntos de eventos. E a nossa compreensão do passado aumenta precisamente no grau
com que logramos determinar até que ponto esse passado se adapta às estratégias de dotação
de sentido que estão contidas, em suas formas mais puras, na arte literária.
Conceber as narrativas históricas dessa maneira pode lançar alguma luz na crise do
pensamento histórico que se vem agravando desde o começo do nosso século. Imaginemos
que o problema do historiador seja dar sentido a um hipotético conjunto de eventos e os
arranje numa série a um só tempo cronológica e sintaticamente estruturada, de modo que
seja estruturado todo discurso, desde uma frase até um romance completo. Podemos ver
imediatamente que os imperativos do arranjo cronológico dos eventos que constituem o
conjunto devem estar em tensão com os imperativos das estratégias sintáticas já aludidas,
quer as últimas sejam concebidas como as da lógica (o silogismo) quer como as da narrativa
(a estrutura de enredo).
Temos, assim, um conjunto de eventos
(1) a, b, c, d, e, ,n
ordenados cronologicamente, mas que requerem descrição e caracterização como elementos
do enredo ou argumento pelos quais se pode dar-lhes sentido. Ora, a série pode ser
estruturada de inúmeros modos diferentes e, portanto, dotada de sentidos diferentes sem
violar de modo algum os imperativos do arranjo cronológico. Podemos caracterizar
rapidamente algumas dessas elaborações de enredo nos seguintes modos:
(2) A, b, c, d, e, n
(3) a, 5, c, d, e, n
(4) a, b, C, d, e, ,n
(5) a, b, c, D, e, n
e assim por diante.
As letras maiúsculas indicam o status privilegiado dado a certos eventos ou conjuntos
de eventos na série pelo qual são dotados de força explicativa, como causas que explicam a
estrutura da série toda ou como símbolos da estrutura de enredo da série considerada como
uma estória de um tipo específico. Poderíamos dizer que qualquer história que dote qualquer
evento supostamente original (a) do status de um fator decisivo (A) na estruturação da série
toda de eventos que os sucedem é “determinista”. As urdiduras de enredo da história da
“sociedade” por Rousseau no seu Segundo Discurso, por Marx no seu Manifesto e por Freud
em Totem e Tabu se incluiriam nessa categoria. Do mesmo modo, uma história que confere
ao último evento da série (e), seja real, seja apenas projetado especulativamente, a força do
poder explicativo total (E) é do tipo de todas as histórias escatológicas ou apocalípticas. A
Cidade de Deus de Santo Agostinho e as várias versões da noção Joaquina do advento do
milênio, a Filosofia da História de Hegel e, em geral, todas as histórias idealistas são desse
tipo. No intervalo entre elas teríamos as várias formas de historiografia que recorrem às
122 TRÓPICOS DO DISCURSO

estruturas de enredo de um tipo distintamente “ficcional” (romance, comédia, tragédia e


sátira) por meio das quais se dota a série de uma forma perceptível e de um “sentido”
concebível.
Se a série fosse simplesmente registrada na ordem em que os eventos ocorreram
originariamente, supondo-se que a ordenação dos eventos na sua própria sequência temporal
tivesse fornecido um tipo de explicação do motivo pelo qual eles ocorreram e de onde
ocorreram, teríamos a forma pura da crônica. Entretanto, esta seria uma forma “ingênua”
de crônica, porquanto as categorias de tempo e espaço serviram apenas de princípios
interpretativos inspiradores. Em contraste com a forma ingênua da crônica, poderíamos
postular corno uma possibilidade lógica o seu equivalente “sentimental”, a negação irônica
de que as séries históricas apresentam algum tipo de significação mais ampla ou descrevem
alguma estrutura de enredo imaginável ou mesmo de que são construídas como uma estória
com começo, meio e fim discerníveis. Poderíamos imaginar que esses relatos da história
pretendem servir de antídotos para os seus equivalentes falsos ou excessivamente ela-
borados (n- 2, 3, 4 e 5 acima) e poderíamos representá-los como um irônico retorno a mera
crônica que constituiria o único sentido que qualquer história cognitivamente responsável
poderia assumir. Poderíamos caracterizar essas histórias como segue:
(6) “a, b, c, d, e, .........ri’
onde as aspas indicam que a interpretação consciente dos eventos não têm outro sentido
senão o da seriaçao.
Este esquema, é claro, é altamente abstrato e não faz justiça às possíveis misturas dos
tipos que se pretende distinguir nem às variações que ocorrem dentro deles. Mas, a meu ver,
nos ajuda a conceber o modo como os eventos poderiam ser urdidos de maneira difeVente
sem violar os imperativos da ordem cronológica dos acontecimentos (por mais construídos
que sejam), de modo a permitir interpretações alternativas, mutuamente exclusivas e, no
entanto, igualmente plausíveis do conjunto. Tentei mostrar em Metahistory o modo como
essas misturas e variações ocorrem na escrita dos principais historiadores do século XIX; e
sugeri que os relatos históricos clássicos sempre representam tentativas de urdir o enredo
das séries históricas adequada e implicitamente para se chegar a um acordo com outras urdi-
duras plausíveis. E essa tensão dialética entre duas ou mais urdiduras de enredo possíveis
que assinala o elemento da autoconsciência crítica presente em qualquer historiador de
estatura reconhecidamente clássica.
As histórias, portanto, não são apenas sobre os eventos, mas também sobre os
conjuntos de relações possíveis que esses eventos figuram de maneira passível de
demonstração. Esses conjuntos de relações, contudo, não são imanentes aos próprios
eventos; existem apenas na mente do historiador que reflete sobre eles. Aqui, eles estão
presentes como modos de relações conceitualizados no mito, na fábula e no folclore, no
conhecimento científico, na religião e na arte literária, da própria cultura do historiador.
Mais importante, porém: parece-me que eles são imanentes à própria linguagem que o
historiador deve usar para descrever os eventos anteriores a uma análise científica ou a uma
urdidura fictícia desses mesmos eventos. Pois, se o objetivo do historiador é familiarizar-
nos com o não-familiar, ele deve lançar mão da linguagem figurativa, em vez da linguagem
técnica. As linguagens técnicas são familiarizadoras apenas para aqueles que foram
instruídos em seu uso e apenas quanto àqueles conjuntos de eventos que os profissionais de
uma disciplina concordaram em descrever numa terminologia uniforme. A história não
possui tal terminologia técnica comumente aceita e, na verdade, nenhum acordo sobre o tipo
de eventos que constituem seu tema específico. O instrumento característico de codificação,
comunicação e intercâmbio de que o historiador dispõe é a linguagem culta habitual. Isso
0 TEXTO HISTÓRICO COMO ARTEFATO LITERÁRIO 123

quer dizer que os únicos instrumentos que ele tem para dar sentido aos seus dados, tornar
familiar o estranho e tornar compreensível o passado misterioso são as técnicas de
linguagem figurativa. Todas as narrativas históricas pressupõem caracterizações figurativas
dos eventos que pretendem representar e explicar. E isso significa que as narrativas
históricas, consideradas meros artefatos verbais, podem ser caracterizadas pelo modo do
discurso figurativo em que são moldadas.
Se for este o caso, então é bem possível que o tipo de urdidura de enredo que o
historiador decide usar para dar sentido a um conjunto de eventos históricos é ditado pelo
modo figurativo predominante da linguagem que ele usou para descrever os elementos do
seu relato antes de compor a sua narrativa. Geoffrey Hartman observou-me certa vez,
durante uma conferência que proferi sobre história literária, que não estava certo de saber o
que os historiadores da literatura poderiam querer fazer, mas sabia que escrever uma história
significava colocar um evento dentro de um contexto, relacionando-o como uma parte a
algum todo concebível. E sugeriu que, até onde sabia, havia apenas duas maneiras de
relacionar as partes ao todo, a saber, mediante a metonímia e mediante a sinédoque. Tendo
estado ocupado por algum tempo com o estudo do pensamento de Giambattista Vico, senti-
me muito atraído por essa ideia, porque ela quadrava à noção, defendida por Vico, de que a
“lógica” de toda “sabedoria poética” estava contida nas relações que a própria linguagem
fornecia nos quatro modos principais de representação figurativa: metáfora, metonímia,
sinédoque e ironia. Meu palpite pessoal - e trata-se de um palpite que vejo confirmado nas
reflexões de Hegel sobre a natureza do discurso não-científico — é que, em qualquer arca
de estudo que, como a história, ainda não se “disciplinizou” a ponto de construir um sistema
terminológico-formal para descrever os seus objetos, ao contrário do que sucedeu com a
física e a química, são os tipos de discurso figurativo que ditam as formas fundamentais dos
dados a serem estudados. Isso significa que a forma das relações que parecerão ser inerentes
aos objetos que habitam o campo na realidade foi imposta ao campo pelo investigador no
próprio ato de identificar e descrever os objetos que aí descobre. Daí que os historiadores
constituam os seus temas como possíveis objetos de representação narrativa por meio da
própria linguagem que utilizam para descrevê-los. E, a ser esse o caso, isso significa que os
diferentes tipos de interpretação histórica que temos do mesmo conjunto de eventos, como
a Revolução Francesa que foi interpretada por Michelet, Tocqueville, Taine e outros, são
pouco mais que projeções dos protocolos linguísticos utilizados por esses historiadores para
prefigurar esse conjunto de eventos antes de escrever as suas narrativas. Trata-se apenas de
uma hipótese, mas parece possível que a convicção do historiador de ter “encontrado” a
forma da sua narrativa nos próprios eventos, em vez de tê-la imposto a eles, tal como faz o
poeta, seja uma consequência de certa falta de autoconsciência linguística que obscurece a
extensão em que as descrições dos eventos já constituem interpretações de sua natureza.
Encarada desse modo, a diferença entre os relatos que Michelet e Tocqueville fazem da
Revolução não reside apenas no fato de o primeiro ter narrado a sua história na modalidade
do romance e o segundo na modalidade da tragédia; ela reside igualmente no modo tropo-
lógico - metafórico e metonímico, respectivamente - de que cada um se serviu na sua
apreensão dos fatos à proporção que apareciam nos documentos.
Falta-me espaço para tentar demonstrar a plausibilidade dessa hipótese, que é o
princípio inspirador do meu livro Metahistory. Mas espero que este ensaio possa servir como
sugestão para uma abordagem do estudo das formas de prosa discursiva como a
historiografia, abordagem que é tão velha quanto o estudo da retórica e tão nova quanto a
linguística moderna. Semelhante estudo se faria ao longo das linhas expostas por Roman
Jakobson num ensaio intitulado “Linguística e Poética”, em que ele afirmava que a diferença
entre a poesia romântica e as várias formas de prosa realista do século XIX residia na
124 TRÓPICOS DO DISCURSO

natureza essencialmente metafórica da primeira e na natureza essencialmente metonímica


da segunda. Considero por demais limitada esta caracterização da diferença entre a poesia e
a prosa, porque ela pressupõe que narrativas macroestruturais complexas, como o romance,
são pouco mais que projeções do eixo “seletivo” (isto é, fonêmico) de todos os atos da fala.
A poesia, e especialmente a poesia romântica, é então caracterizada por Jakobson como uma
projeção do eixo “combinatório” (isto é, morfêmico) da linguagem. Esta teoria binária leva
o analista a estabelecer uma oposição dualista entre a poesia e a prosa que parece excluir a
possibilidade de uma poesia metonímica e de uma prosa metafórica. Porém a fecundidade
da teoria de Jakobson repousa na sua sugestão de que as várias formas de poesia e prosa,
das quais todas encontram os seus equivalentes na narrativa em geral e, portanto, também
na historiografia, podem ser caracterizadas em função do tropo predominante que lhe serve
de paradigma, fornecido pela própria linguagem, de todas as relações significativas que
quem quer que deseje representar estas relações na linguagem imagina existirem no mundo.
A narrativa, ou a dispersão sintagmática dos acontecimentos através de uma série
temporal apresentada como urti discurso em prosa, de modo a mostrar sua progressiva
elaboração como uma forma compreensível, representaria a “reviravolta interior” que o
discurso realiza quando tenta mostrar ao leitor a verdadeira forma das coisas que subjazem
a uma informidade meramente aparente. O estilo narrativo, na história como no romance,
seria, pois, construído como a modalidade do movimento que parte da representação de
algum estado de coisas original para chegar a algum estado subsequente. O sentido básico
de uma narrativa consistiria, então, na desestruturação de um conjunto de eventos (reais ou
imaginários) originariamente codificados num modo tropológico, e na reestruturação
progressiva do conjunto num outro modo tropológico. Vista dessa maneira, a narrativa seria
um processo de decodificação e recodificação em que uma percepção original é esclarecida
por achar-se vazada num modo figurativo diverso daquele em que veio a ser codificada por
convenção, autoridade ou costume. E a força explicativa da narração dependeria, então, do
contraste entre a codificação original e a posterior.
Por exemplo, suponhamos que um conjunto de experiências chegue até nós na forma
de um conjunto grotesco, isto é, não-classificado e inclassificável, Nosso problema é
identificar a modalidade das relações que ligam os elementos discerníveis da totalidade
informe de maneira a torná-la um todo de algum tipo. Quando ressaltamos as semelhanças
entre os elementos, estamos operando no modo da metáfora; quando ressaltamos as
diferenças entre eles, estamos operando no modo da metonímia. Obviamente, para dar
sentido a qualquer conjunto de experiências, cumpre-nos identificar tanto as partes de uma
coisa que parecem constituí-la quanto a natureza dos aspectos comuns a essas partes e que
as tornam identificáveis como uma totalidade. Isso quer dizer que todas as caracterizações
originais de alguma coisa devem utilizar tanto a metáfora quanto a metonímia a fim de
“fixá-la” como uma coisa acerca da qual podemos discorrer significativamente.
No caso da historiografia, o empenho dos comentadores em dar um sentido à
Revolução Francesa é instrutivo. Burke decodifica os eventos da Revolução que os seus
contemporâneos vivenciam como grotescos e recodifica-os no modo da ironia; Michelet
recodifica esses eventos no modo da sinédoque; Tocqueville os recodifica no modo da
metonímia. Entretanto, em cada caso a passagem de código para recódigo é descrita
narrativamente, isto é, planejada numa linha temporal de maneira a fazer da interpretação
dos eventos que constituem a “Revolução” um tipo de drama que podemos reconhecer como
satírico, romântico e trágico, respectivamente. Esse drama pode ser acompanhado pelo leitor
da narrativa de modo a ser vivenciado como uma revelação progressiva daquilo que
constitui a verdadeira natureza dos eventos. Todavia, a revelação é vi venci ada não tanto
como uma reestruturação da percepção quanto como uma iluminação de um campo de
0 TEXTO HISTÓRICO COMO ARTEFATO LITERÁRIO 125

ocorrência. Mas o que de fato aconteceu é que um conjunto de eventos originariamente


codificado está sendo simplesmente decodificado de certo modo para ser recodifícado de
outro. Os próprios eventos não se alteram substancialmente de um relato para outro. Ou seja,
os dados a analisar não apresentam diferença significativa nos diferentes relatos. O que
difere são as modalidades das suas relações. Essas modalidades, por seu turno, conquanto
possam parecer ao leitor baseadas em diferentes teorias da natureza da sociedade, da política
e da história, em última análise têm a sua origem nas caracterizações figurativas do conjunto
todo de eventos que representariam totalidades de tipos essencialmente diferentes. E por
essa razão que, quando se trata de comparar interpretações distintas de um mesmo conjunto
de fenômenos históricos numa tentativa de estabelecer qual é o melhor ou mais convincente,
muitas vezes somos levados a confusão ou a ambiguidade. Isso não significa que não
podemos distinguir entre a boa e a má historiografia, de vez que, para definir essa questão,
sempre podemos recorrer a critérios como a responsabilidade perante as regras da evidência,
a relativa inteireza do pormenor narrativo, a consistência lógica e assim por diante. Mas
significa que o empenho em distinguir entre as boas e as más interpretações de um evento
histórico como a Revolução não é tão fácil quanto poderia parecer à primeira vista, quando
se trata de lidar com as interpretações alternativas dadas por historiadores de erudição e
complexidade conceituai relativamente análogas. Apesar de tudo, um grande clássico da
história não pode ser invalidado ou anulado pela descoberta de algum novo dado que
pudesse pôr em dúvida uma explicação específica de algum elemento do conjunto do relato,
ou pela criação de novos métodos de análise que nos facultassem lidar com questões que os
historiadores mais antigos poderiam não ter levado em consideração. E é precisamente pelo
fato de os grandes clássicos da história, como as obras de Gibbon, Michelet, Tucídides,
Mommsen, Ranke, Burckhardt, Bancroft e outros, não poderem ser definitivamente
invalidados que devemos atentar para os aspectos especificamente literários da sua obra
como sendo elementos decisivos, e não apenas subsidiários, da sua técnica historiográfica.
O que tudo isso indica é a necessidade de revisar, na discussão de formas narrativas
como a historiografia, a distinção convencionalmente estabelecida entre o discurso poético
e o discurso em prosa, e de reconhecer que a distinção, tão antiga quanto Aristóteles, entre
história e poesia tanto obscu- rece quanto ilumina as duas áreas. Se há um elemento do
histórico em toda poesia, há um elemento da poesia em cada relato histórico do mundo. E
isso porque, no relato que fazemos do mundo histórico, somos dependentes, num grau em
que talvez não o desejemos nas ciências naturais, de técnicas de linguagem figurativa, tanto
para a nossa caracterização dos objetos de nossas representações narrativas quanto para as
estratégias por meio das quais compomos os relatos narrativos das transformações desses
objetos no tempo. E isto porque a história não apresenta objeto que se possa estipular como
sendo unicamente seu; ela sempre é escrita como parte de uma disputa entre figurações
poéticas conflitantes a respeito daquilo em que o passado poderia consistir.
A distinção mais antiga entre ficção e história, na qual a ficção é concebida como a
representação do imaginável e a história como a representação do verdadeiro, deve dar lugar
ao reconhecimento de que só podemos conhecer o real comparando-o ou equiparando-o ao
imaginável. Assim concebidas, as narrativas históricas são estruturas complexas em que se
imagina que um mundo da experiência existe pelo menos de dois modos, um dos quais é
codificado como “real” e o outro se “revela” como ilusório no decorrer da narrativa. Trata-
se, obviamente, de uma ficção do historiador a suposição de que os vários estados de coisas
que ele constitui na forma de começo, meio e fim de um curso do desenvolvimento sejam
todos “verdadeiros” ou “reais” e que ele simplesmente registrou “o que aconteceu” na tran-
sição da fase inaugural para a fase final. Porém tanto o estado inicial de coisas quanto o final
são inevitavelmente construções poéticas e, como tais, dependentes da modalidade da
126 TRÓPICOS DO DISCURSO

linguagem figurativa utilizada para lhes dar o aspecto de coerência. Isto implica que toda
narrativa não é simplesmente um registro “do que aconteceu” na transição de um estado de
coisas para outro, mas uma redescrição progressiva de conjuntos de eventos de maneira a
desmantelar uma estrutura codificada num modo verbal no começo, a fim de justificar uma
recodificação dele num outro modo no final. Nisto consiste o “ponto médio” de todas as
narrativas.
Tudo isso é altamente esquemático, e sei que essa insistência sobre o elemento
ficcional de todas as narrativas históricas desperta com certeza a ira dos historiadores que
acreditam estar fazendo algo fundamentalmente diferente do romancista, visto se ocuparem
dos acontecimentos “reais”, enquanto o romancista se ocupa dos eventos “imaginados”.
Contudo, nem a forma nem o poder de explicação da narrativa derivam dos diferentes con-
teúdos que ela presumivelmente é capaz de conciliar. Na realidade, a história - o mundo real
ao longo de sua evolução no tempo - adquire sentido da mesma forma que o poeta ou o
romancista tentam provê-lo de sentido, isto é, conferindo ao que originariamente se afigura
problemático e obscuro o aspecto de uma forma reconhecível, porque familiar. Não importa
se o mundo é concebido como real ou apenas imaginado; a maneira de dar-lhe um sentido é
a mesma.
Do mesmo modo, dizer que conferimos sentido ao mundo impondo-lhe a coerência
formal que costumamos associar aos produtos dos escritores de ficção não diminui de
maneira nenhuma o status de conhecimento que atribuímos à historiografia. Só o diminuiria
se acreditássemos que a literatura não nos ensinou algo acerca da realidade, por ter sido o
produto de uma imaginação que não era deste mundo, mas de outro, de um mundo inumano.
A meu ver, vivenciamos a “ficcionalização” da história como uma “explicação” pelo mesmo
motivo que vivenciamos a grande ficção como iluminação de um mundo que habitamos
juntamente com o autor. Em ambas reconhecemos as formas pelas quais a consciência
constitui e povoa o mundo que ela procura habitar confortavelmente.
Por fim, é possível observar que, se os historiadores quisessem reconhecer o elemento
ficcional de suas narrativas, isso não significaria a degradação da historiografia ao status de
ideologia ou propaganda. Com efeito, tal reconhecimento serviria de antídoto eficaz para a
tendência dos historiadores a apegar-se a preconceitos ideológicos que eles não reconhecem
como tais mas reverenciam como a forma de percepção “correta” do “modo como as coisas
realmente são”. Trazendo a historiografia para mais perto das suas origens na sensibilidade
literária, deveríamos ser capazes de identificar o elemento ideológico, porque fictício,
contido em nosso próprio discurso. Sempre podemos ver o elemento fictício nos
historiadores de cujas interpretações de um dado conjunto de eventos discordamos;
raramente percebemos esse elemento em nossa própria prosa. Do mesmo modo, se
reconhecêssemos o elemento literário ou fictício de todo relato histórico, seriamos capazes
de conduzir o ensino da historiografia a um nível de autoconsciência mais elevado do que o
que ela ocupa nos dias de hoje.
Que professor não lamentou a sua incapacidade de instruir os principiantes sobre a
escrita da história? Que bacharelando em história já não desesperou de tentar compreender
e imitar o modelo que os seus instrutores parecem louvar, mas cujos princípios continuam
inexplorados? Se reconhecêssemos a existência de um elemento fictício em toda narrativa
histórica, haveríamos de encontrar na própria teoria da linguagem e da narrativa a base para
a representação daquilo em que consiste a historiografia, representação mais sutil do que
aquela que simplesmente exorta o estudante a ir adiante e a “descobrir os fatos”, lançando-
os por escrito de modo a relatar “o que realmente aconteceu”.
A meu ver, a história enquanto disciplina vai mal atualmente porque perdeu de vista
as suas origens na imaginação literária. No empenho de parecer científica e objetiva, ela
0 TEXTO HISTÓRICO COMO ARTEFATO LITERÁRIO 127

reprimiu e negou a si própria sua maior fonte de vigor e renovação. Ao fazer a historiografia
recuar uma vez mais até à sua íntima conexão com a sua base literária, não devemos estar
apenas nos resguardando contra distorções simplesmente ideológicas; devemos fazê-lo no
intuito de chegar àquela “teoria” da história sem a qual não se pode de maneira alguma
considerá-la “disciplina”.
128 TRÓPICOS DO DISCURSO

HISTORICISMO, HISTÓRIA E A
IMAGINAÇÃO FIGURATIVA

Os debates sobre o “historicismo” vez por outra se originam da suposição de que ele
representa uma distorção discernível e injustificável de um modo propriamente “histórico”
de figurar a realidade. Assim, por exemplo, há os que falam do interesse particularizador do
historiador em comparação aos interesses generalizadores do historicista. De novo supõe-se
que o historiador, ao contrário do historicista, está interessado mais em elaborar pontos de
vista que em construir teorias. Em seguida, supõe-se que o historiador prefere um modo de
representação narrativista, e o historicista um modo de representação analítico. E,
finalmente, enquanto o historiador estuda o passado a bem dele próprio, ou, como se diz,
“por ele mesmo”, o historicista quer usar o seu conhecimento do passado para lançar luzes
sobre os problemas do seu presente, ou, o que é pior, predizer o caminho do futuro desen-
volvimento da história69.
Como se pode ver desde logo, essas caracterizações das diferenças entre uma
abordagem da história propriamente histórica e uma historicista correspondem àquelas que
são convencionalmente utilizadas para diferençar a “historiografia” da “filosofia da
história”. Já afirmei em outro local que as distinções convencionais entre historiografia e
filosofia da história mais obscurecem do que esclarecem a verdadeira natureza da
representação histórica2. Neste ensaio, tentarei demonstrar que as distinções convencionais
entre “história” e “historicismo” virtualmente não têm valor. Sustentarei, ao contrário, que
toda representação “histórica” - por.mais particularizadora, narrativista, autoconscien tem
ente perpectivista e fixada no seu tema “a bem dele próprio” que seja - traz em si mesma a
maioria dos elementos do que a teoria convencional chama “historicismo”. O historiador
molda a sua matéria, senão em conformidade com o que Popper chama de (e critica como)
“estrutura de ideias preconcebidas”3, portanto em resposta aos imperativos do discurso
narrativo em geral. Estes imperativos são retóricos por natureza. No que segue, procurarei

69 Obviamente, este é o ponto de vista de Popper. Ver Karl R. Popper, The Poverty of Historicism (London, 1961), pp. 143-152.
Da mesma, forma, George Iggers faz uma distinção entre o que ele chama de “sentido da história” e “historicismo”; o
primeiro está ligado a “uma percepção de que o passado é fundamentalmente diferente do presente”, e o segundo à tentativa
de compreender “o passado em sua singularidade” e à rejeição do impulso para “avaliar o passado pelas normas do
Iluminismo”. Ver o seu artigo “Historicism” em Dictionary of the History ofldeas, ed. Philip W. Wiener (New York, 1973),
2:457, Aqui, é claro, Iggers está interessado no tipo de historicismo que Meinecke analisou na sua famosa obra Die
Enistehung des Historismus (München, 1936), isto 6, na variedade “individualizadora” em comparação com a
“generalizadora”. Para Meinecke, Historismus não era uma distorção do “sentido histórico”, mas o seu ponto culminante.
Entretanto, na medida em que Meinecke elevou um “sentido histórico” geral a uma visão de mundo que incluía o
“intuicionismo”, o “holismo”, o “organi cismo” etc., isto teria constituído
HISTORICISMO, HISTÓRIA E A IMAGINAÇÃO FIGURATIVA 129

mostrar que, na própria linguagem de que o historiador se serve para descrever o seu objeto
de estudo, anteriormente a qualquer esforço formal que possa fazer para explicá-lo ou
interpretá-lo, ele submete esse objeto de estudo ao tipo de distorção que os historicistas im-
põem à sua matéria de um modo mais explícito e formal.
Trazer à baila a questão da retórica do discurso histórico é levantar o problema da
natureza da descrição e análise em áreas de estudo que, como a historiografia, ainda não
alcançaram o status de ciência, tal como o alcançaram a física, a química e a biologia.

um resvalar para aquele “historicismo”, no sentido pejorativo do termo utilizado por Popper, embora Popper o chame de
variedade “antinaturaüsta”.
Maurice Mandelbaum, no que se deve considerar hoje a análise /í/aHÍ/íra mais abrangente do termo, define o historicismo
como uma exigência de que “rejeitemos a opinião de que os eventos históricos apresentam um caráter individual passível
de ser apreendido independentemente de os vermos incrustados num modelo de desenvolvimento”. History, Man, and
Reason: Study in Nineteenth-Century Thought (Baltimore, 1971), pp. 42-43. Mandelbaum nega, contudo, que o historicismo
seja um Weltcinschüuung, ou uma ideologia, e muito menos uma posição filosófica. O historicismo, afirma ele, é antes uma
“crença metodológica que diz respeito ã explicação e à avaliação” segundo a qual “uma compreensão adequada da natureza
de qualquer fenômeno e uma avaliação adequada do seu valor devem ser obtidas pela sua consideração em função do lugar
que ele ocupou e do papel que desempenhou num processo de desenvolvimento” (ibid.). Desta forma, o historicismo é,
segundo Mandelbaum, uma teoria de valor ligada a alguma versão do geneticismo. Não obstante, suas objeções a ele são
substancialmente idênticas às de Popper. Os historicistas erram em conceituar a história mais como um “fluxo” de
desenvolvimento que como “uma trama extremamente complexa cujos fios individuais apresentam histórias ^separadas,
conquanto entrelaçadas” (ibid.).
2, Hayden Whiten, Metahistory: The Historical Imagination in Nineteenth-Cenlury Europe (Baltimore, 1973), Introdução.
3. Embora faça objeções a uma “estrutura de ideias preconcebidas”, Popper não se opõe à adoção, por parte do historiador,
de um “ponto de vista seletivo preconcebido” como base para a sua narrativa. Ver Popper, The Paverty of Historicism, p.
150. A diferença parece residir no fato de que o primeiro leva a uma distorção dos fatos com o fito de adaptar uma teoria,
enquanto o segundo fornece uma perspectiva sobre os fatos. O primeiro resulta em “teorias” sobre a história, o segundo
em “interpretações”. O critério para avaliar interpretações conflitantes implica considerar as afirmações feitas a respeito
delas (se devem ser consideradas como teorias confirmadas) e verificar se são “interessantes” e “férteis” na sua “sugestivida-
de” (ibid., pp. 143-145).
Por ora, deixo de lado a afirmação de Claude Lévi-Strauss de que a história não dispõe de
um método que seja exclusivamente seu, nem, em última análise, de um assunto único; e de
que a sua técnica fundamental, que consiste no arranjo dos eventos que ela deve analisar na
ordem serial de sua ocorrência original, é simplesmente uma fase preliminar de qualquer
análise digna da designação “científica”70. Quero, porém, deter-me momentaneamente na
alegação de Lévi-Strauss segundo a qual na história, como em qualquer campo de ocorrência
submetido a análise, existe uma relação paradoxal entre a quantidade de informação que
pode ser transmitida em algum relato desse campo e o tipo de compreensão que dele
podemos ter.
Lévi-Strauss afirma que “o campo histórico”, o objeto geral do interesse do
historiador, consiste num campo de eventos que se dissolve, no micronível, num amálgama
de impulsos físico-químicos e, no macronível, nos ritmos periódicos de ascensão e queda
de todas as civilizações. No seu esquema, o micronível e o macronível correspondem aos
limites de um conjunto de estratégias explicativas que vão da simples criação da crônica de
eventos particulares, de um lado, ao recurso a cosmologias abrangentes, de outro. A relação
entre o micronível e o macronível Lévi-Strauss caracteriza em termos de uma díade:
informação-compreensão. E formula a relação entre eles na forma de um paradoxo: quanto
mais informação procuramos registrar sobre um dado campo de ocorrência, menos
compreensão desse campo podemos propiciar; e quanto mais compreensão pretendemos
oferecer dele, menos a informação é abarcada pelas generalizações que se destinam a
explicá-lo71.

70 Claude Lévi-Strauss, The Savage Mind (London, 1966), pp. 257-262.


71 Idem, p. 261.
130 TRÓPICOS DO DISCURSO

E óbvio que aqui Lévi-Strauss estendeu à teoria do conhecimento a sua própria versão
do conceito estruturalista de bipolaridade da linguagem: sua díade informação-explicação
corresponde aos termos utilizados por Roman Jakobson e outros para caracterizar os dois
eixos da linguagem, os pólos metonímico e metafórico, respectivamente 72. Estes dois pólos
do uso da linguagem são identificados aos eixos da combinação e da seleção de qualquer
ato de fala significativo. Isto fornece a base para a caracterização, por parte de Lévi-Strauss,
da relação entre o eixo sintagmático e o paradigmático de todo discurso que pretensamente
represente um campo de acontecimentos que tenha simultaneamente os aspectos de processo
e estrutura, de diacronicidade e sincronicidade. Desse modo, no limite inferior (ou micro)
do campo histórico, não há similaridade, apenas contiguidade; no limite superior (ou macro)
não há diferença, apenas similaridade. E o mesmo ocorre no discurso que construíssemos
para representar o que percebemos ter acontecido no “campo histórico”: o discurso histórico
procura representar o desdobramento, ao longo de uma linha temporal, de uma estrutura
cujas partes são sempre um pouco menos que a totalidade que elas constituem e cuja
totalidade é sempre um pouco mais que a soma das partes ou fases que a compõem.
Não pretendo de ter-me nessa extensão da teoria da linguagem à teoria do
conhecimento. Por ora, quero simplesmente observar que, para Lévi-Strauss, todas as
ciências (inclusive as ciências físicas) são constituídas por delineamentos arbitrários dos
domínios que ocuparão entre, de um lado, os pólos de compreensões míticas da totalidade
da experiência e, de outro, a “ruidosa e florescente confusão” de percepções individuais. E,
a seu ver, isto é particularmente verdadeiro para um campo como a historiografia, que
procura ocupar um domínio especificamente humano que constitui o pretenso “plano
médio” entre os extremos. Mas este suposto plano médio não emerge apoditicamente da
confusão de eventos e informações que temos do passado e do presente humanos; deve ser
constituído. E é constituído, como supõe Lévi-Strauss, graças a uma estratégia conceituai
que é mítica e que identifica o “histórico” com as experiências, os modos do pensamento e
a práxis peculiares à civilização ocidental moderna. Lévi-Strauss afirma que a suposta
“coerência” da história, que o pensamento histórico ocidental toma como objeto de estudo,
é a coerência do mito. E isto vale tanto para a historiografia narrativa “propriamente dita”,
ou convencional, quanto para seus equivalentes mais altamente esquematizados da filosofia
da história73.
Ora, por coerência do mito Lévi-Strauss parece entender o resultado da aplicação de
estratégias narrativas mediante as quais unidades básicas de estória (ou aglomerados de
eventos) são arranjados de molde a conferir a alguma estrutura ou processo puramente
humano o aspecto de necessidade, adequação ou inevitabilidade cósmica (ou natural). As
histórias da fundação de cidades ou Estados, da origem das diferenças e privilégios de
classe, das transformações sociais básicas causadas por revolução e reforma, das reações
sociais específicas a catástrofes naturais, e assim por diante - todas estas histórias, segundo
ele, apresentadas quer sob o aspecto de ciência social, quer de história, participam do mítico
na medida em que “cosmologizam” ou “naturalizam” o que, na realidade, nada mais é que
construções humanas que poderiam muito bem ser diferentes do que por acaso são.
Encarado desta forma, historicizar qualquer estrutura, escrever a sua história, é mitologi-
zá-la: seja com o fito de efetuar a sua transformação mostrando quão “inatu- ral” ela é (como
no caso de Marx e do capitalismo tardio), seja com o fito de consolidar a sua autoridade
mostrando quão consoante ela é com o seu contexto, quão adequadamente ela se adapta à
“origem das coisas” (como no caso de Ranke e da sociedade da Restauração). A história,

72 Roman Jakobson e Morris Halle, Fundamentais of Language (The Hague, 1956), cap. 6.
73 Claude Lévi-Strauss, “Overture to Le Cru et le cuit'\ em Structuralism, ed. Jacques Ehrmann (New York, 1966), pp. 47-48.
HISTORICISMO, HISTÓRIA E A IMAGINAÇÃO FIGURATIVA 131

insiste Lévi-Strauss, nunca é apenas a história-de sempre é também a história. E não é


história-para apenas no sentido de ser escrita com algum objetivo ideológico em vista, mas
também história-/?ara no sentido de ser escrita para um grupo social ou público específico.
Mais: este propósito e sentido da representação histórica são indicados na própria linguagem
utilizada pelo historiador para caracterizar os seus dados antes de qualquer técnica formal
de análise ou de explicação que ele lhes possa aplicar a fim de descobrir o que eles
“realmente são” ou o que “verdadeiramente significam” 74.
Poder-se-ia afirmar que tudo isso é muito familiar. Já deparamos com versões desse
princípio na análise que, em Ideologia e Utopia, e especialmente na sua análise das
implicações conservadoras do historicismo rankia- no em seu ensaio “O Pensamento
Conservador”, Mannheim fez das bases ideológicas das formas da consciência histórica 75.
Mas a abordagem de Lévi-Strauss da relação entre o pensamento histórico e a imaginação
mítica é muito mais radical do que qualquer coisa concebida por Mannheim. Pois Lévi-
Strauss localiza o impulso para mitologizar, não nos interesses reais ou imaginários dos
grupos sociais para os quais poderiam ser escritos os diferentes tipos de historiografia, como
faz Mannheim, mas antes na própria natureza da linguagem. De maneira mais específica,
ele localiza o impulso para mitologizar numa faculdade poética que se revela tão
prontamente em formas supostamente realistas de discurso em prosa como a historiografia
quanto na natureza manifestamente figurativa daquela forma de discurso que o homem
“civilizado” denomina “poesia”.
A fusão dos conceitos de poesia e prosa numa teoria geral da linguagem como
discurso é uma das principais realizações da teoria linguística moderna. As implicações
dessa fusão foram particularmente fecundas no campo da estilística. Tal como foi elaborado
por Jakobson, o problema do estilo nos faz recuar ao reconhecimento de que todo discurso
é uma mediação entre o polo metafórico e o metonímico do procedimento da linguagem
através daquelas “figuras de linguagem” estudadas originariamente pelos retóricos
clássicos. Segundo Jakobson, a estilística deve procurar analisar a dimensão poética de todo
discurso supostamente em pura prosa, da mesma forma que deve procurar desvelar o núcleo
prosaico de “mensagem” contido em todo enunciado nitidamente poético[{í. Essa fusão do
prosaico e do poético dentro de uma teoria geral do discurso tem consequência s importantes
para a nossa compreensão do que está implícito naquelas áreas de estudo que, como a
historiografia, procuram ser objetivas e realistas nas suas representações do mundo mas que,
em virtude do elemento poético não-reconhe- cido no seu discurso, ocultam de si mesmas
sua própria subjetividade e seu caráter de serem limitadas pela cultura.
Se Jakobson estiver certo, então a escrita histórica deve ser analisada principalmente
como um tipo de discurso em prosa antes que possam ser testadas as suas pretensões à
objetividade e à veracidade. Isto significa submeter qualquer discurso histórico a uma
análise retórica, de molde a revelar a subestrutura poética do que pretende passar por uma
modesta representação em prosa da realidade. Sustento que tal análise nos forneceria os
meios de classificar os diferentes tipos de discurso histórico em termos das modalidades de
uso figurativo da linguagem que são privilegiadas neles. Permitir-nos-ia transcender a
classificação desprovida de valor analítico de tratos históricos em duas classes mutuamente
exclusivas, definidas pelo seu interesse no particular versus geral, no passado versus presente
e futuro, no ponto de vista versus teoria, e assim por diante; derruir a falsa distinção entre

74 Lévi-Strauss, The Savage Mind, pp. 257-258.


75 Ver Karl Mannheim, ídeology and Utopia, trad. Louis Wirth e Edward Shils (New York, 1946), pp. 104 e ss., e idem,
“Conservative Thought”, em Essays in Sociology and Social Psychology, ed. Paul Kecskemeti (New York, 1953), pp. 74-
164.
132 TRÓPICOS DO DISCURSO

um relato da história propriamente “histórico” e um relato simplesmente “historicista”; e


mostrar até que ponto um dado discurso histórico é classificado de maneira mais exata pela
linguagem utilizada para descrever o seu objeto de estudo do que o fariam quaisquer técnicas
formais analíticas que ela aplicasse àquele objeto a fim de o “explicar”.
Uma análise retórica do discurso histórico reconheceria que toda história digna do
nome contém em si não só certa quantidade de informação e uma explicação (ou
interpretação) do que “significam” essas informações, mas também uma mensagem mais ou
menos patente sobre a atitude que o leitor deveria assumir tanto diante dos dados relatados
quanto da sua interpretação formal11. Essa mensagem está contida nos elementos figurativos
que aparecem no discurso e que servem como pistas subliminarmente projetadas para o
leitor acerca da qualidade do assunto estudado. E esses elementos figurativos desempenham
um papel correspondentemente mais importante como componentes da mensagem do
discurso histórico exatamente no grau em que o próprio discurso se acha vazado na
linguagem comum, e não na linguagem técnica. Assim considerados, os historiadores que
se orgulham de evitar o uso de todo jargão e terminologia técnica nas suas descrições e
análises dos seus temas não deveriam ser vistos como historiadores que evitaram cair no
historicismo em decorrência desse procedimento, mas antes como historicistas de um tipo
particular. Eu os chamaria de historicistas figurativos, na medida em que continuam a
ignorar até que ponto aquilo que dizem sobre os seus temas se encontra inextricavelmente
ligado, quando não é idêntico, ao modo como o dizem.
Não há, evidentemente, como escapar ao poder determinante do uso da linguagem
figurativa. As figuras de linguagem são a própria medula do estilo individual do historiador.
Removam-nas do discurso e destruirão grande parte do seu impacto como “explicação” na
forma de uma descrição “idiográfica”. Mas o estudo do elemento figurativo num dado
discurso histórico nos permite caracterizar as suas dimensões instrumentais, pragmáticas ou
conativas. A teoria das figuras de linguagem nos permite seguir o historiador na sua
codificação de um campo de ocorrência naquilo que pode parecer apenas uma descrição
original e isenta de valor, mas que, na realidade, é uma prefiguração do campo que nos
prepara para a explicação ou interpretação formal que ele oferecerá subsequentemente l2.
Concebida dessa forma, a chave para o “sentido” de um dado discurso histórico está contida
tanto na retórica da descrição do campo quanto na lógica de todo e qualquer argumento que
se possa oferecer como sua explicação. Se existe alguma diferença, esse elemento retórico
é ainda mais importante do que o elemento lógico para se compreender o que acontece na
composição de um discurso histórico. Pois é mediante a figuração que o historiador
virtualmente constitui o tema do discurso; sua explicação é pouco mais do que uma projeção
formalizada das qualidades atribuídas ao tema na figuração original que ele elabora a
respeito deste.

Tudo isto é altamente abstrato, sem dúvida, e para se tornar convincente requer a
ampliação teórica e a exemplificação. No que segue, portanto, tentarei caracterizar o
discurso histórico em termos um pouco mais formais e, depois, analisar uma passagem de
prosa “propriamente” histórica a fim de explicar a relação predominante entre os seus
sentidos manifestos e latentes (figurativos). Em seguida, voltarei, de um lado, ao problema
da relação entre a historiografia “propriamente dita” e a sua contraparte historicista e, de
outro, a algumas observações gerais sobre os possíveis tipos ou modos da representação
histórica sugeridos pela análise figurativa.

Afirmei em outro local que um discurso histórico não deve ser considerado uma
HISTORICISMO, HISTÓRIA E A IMAGINAÇÃO FIGURATIVA 133

imagem especular do conjunto de eventos que ele afirma simplesmente descrever13. Ao


contrário, deve-se ver no discurso histórico um sistema de signos que aponta em duas
direções ao mesmo tempo: primeiro, para o conjunto de eventos que tenciona descrever e,
segundo, para a forma genérica de estória à qual ele tacitamente equipara o conjunto a fim
de expor a sua coerência formal, considerada ou como estrutura ou como processo. Assim,
por exemplo, um dado conjunto de eventos, dispostos mais ou menos cronologicamente,
mas codificados de molde a figurar como fases de um processo com começo, meio e fim
discerníveis, pode ser narrado no modo do romance, comédia, tragédia, epopeia ou o que
quer que seja, dependendo das valências atribuídas a eventos diferentes da série como ele-
mentos de formas de estória arquetípicas reconhecíveis.

] 2. Ver White, Metahistory, pp. 31-38.


13. Ver meu artigo “Metahistory: The Historical Tcxt as Literary Artifact”, Clio 3, n. 3 (June 1974). [Reproduzido nesta
obra em seu Capítulo 3.]
Neste trabalho de urdidura do enredo é possível perceber a ação daqueles processos
que Freud, na sua Interpretação dos Sonhos, identifica convincentemente como
componentes de qualquer atividade poética, quer da consciência vígil, quer da consciência
adormecida76. O historiador - como qualquer autor de prosa discursiva - molda os seus
materiais. Pode moldá-los de maneira a adaptá-los a uma “estrutura de ideias preconcebi-
das” do tipo que Popper atribui a Hegel e a Marx, ou de molde a conformá-los a um “ponto
de vista seletivo preconcebido” igual ao do romancista na função de narrador de uma
estória77. Mas, em ambos os casos, seu relato dos fenômenos sob exame se desenvolverá em
pelo menos dois níveis de sentido, que podemos comparar aos níveis manifestos e latentes
de um sonho ou aos níveis literais e figurativos da literatura imaginativa em geral.
Na maioria dos debates sobre o discurso histórico, os dois níveis convencionalmente
distinguidos são o dos fatos (dados ou informação),'de um lado, e o da interpretação
(explicação ou a história contada acerca dos fatos), de outro. O que essa distinção
convencional obscurece é a dificuldade de discriminar entre esses dois níveis no discurso.
Não que um fato seja uma coisa e a sua interpretação, outra. O fato é apresentado no lugar
e no modo como se apresenta no discurso a fim de sancionar a interpretação para a qual ele
supostamente contribui. E a interpretação deriva sua força de plausibilidade da ordem e
maneira como os fatos são apresentados no discurso. O próprio discurso é a verdadeira
combinação dos fatos e do sentido que lhes confere o aspecto de uma estrutura específica
de sentido que nos permite identificá-lo como produto de um tipo de consciência histórica
e não de outro.
Não deveria haver nada de muito surpreendente nesta última asserção, já que é um
lugar-comum na teoria da história dizer que todos os relatos históricos são de algum modo
“artísticos”. Parece-me, contudo, que o componente artístico no discurso histórico pode ser
revelado por uma análise de natureza especificamente retórica. Ademais, eu diria que os
tipos principais de discurso histórico podem ser identificados com os tipos do discurso em
prosa analisados na teoria retórica, em função dos modos de uso da linguagem figurativa
que eles privilegiam de maneiras diferentes.
Para mostrar o que tenho em mente, analisarei um trecho escrito por um historiador
moderno que, a meu ver, pessoa alguma poderia considerar seriamente um historicista. O
que proponho mostrar é que o efeito explicativo dessa representação de um conjunto de
eventos deriva basicamente do emprego de certas convenções de caracterização literária que

76 Ver a Inteqirctação dos Sonhos de Freud, cap. 6, “A Atividade do Sonho”.


77 Popper, The Poverty of Historicism, pp. 150-151.
134 TRÓPICOS DO DISCURSO

constituem o nível figurativo do discurso. Mostrarei também que esse sentido latente do
discurso pode ser identificado com a própria linguagem usada para descrever os eventos
analisados. Esse uso da linguagem serve como um “código” pelo qual o leitor é convidado
a assumir uma determinada atitude para com os fatos e a interpretação que deles se oferece
no nível manifesto do discurso. Eis o trecho:

A República criada pela Assembléia Constituinte em Weimar durou teoricamente catorze anos, de 1919 a
1933. Sua vida real foi mais curta. Seus quatro primeiros anos foram gastos na confusão política e econômica que se
seguiu à Guerra dos Quatro Anos; nos seus últimos três anos houve uma ditadura provisória, parcialmente disfarçada
de legalidade, que reduziu a República a um simulacro muito antes que fosse abertamente derrubada. Apenas por
seis anos a Alemanha levou uma vida ostensivamente democrática, ostensivamente pacífica; porém, aos olhos de
muitos observadores estrangeiros, estes seis anos pareceram normais, a “verdadeira” Alemanha, em relação aos quais
os séculos anteriores e a década subsequente da história da Alemanha foram uma aberração. Uma investigação mais
aprofundada poderia ter encontrado para estes seis anos outras causas que não a beleza do caráter alemão 78.

Escolhi este trecho “ao acaso”, já que simplesmente abri uma antologia de escritos
históricos sobre o Terceiro Reich e examinei algumas caracterizações sinópticas da “era”
escritas por historiadores de tendência metodológica e convicções ideológicas diferentes.
Para os meus propósitos, apresenta a vantagem de ser escrito num inglês comum, e não num
jargão técnico, além de ter um estilo visivelmente “literário”.
O historiador que escreveu essa passagem é bastante elogiado como escritor; é
também amplamente reconhecido como um escritor que fornece fatos não-absurdos e como
um polemista de talentos excepcionais, embora de modo algum obstinado. Além disso, se
lhe fosse insinuado que o que ele tem a dizer - ou seja, a sua apresentação dos fatos e os
argumentos que oferece para apoiar sua explicação desses fatos - é indistinguível do modo
como ele diz, com toda certeza veria nisso um insulto à sua competência profissional. Mas
o seu relato desse período da história da Alemanha é pouco mais que um discurso no qual
ele adquire progressivamente o direito à caracterização retórica dos eventos que pretende
apenas descrever e analisar objetivamente. Como todas as representações históricas, essa é
também uma codificação progressiva, num nível profundo ou figurativo, de eventos que
existem no plano da superfície como simples descrição e análise.
Ora, grande parte disso se evidencia a partir da enunciação da passagem. Isso, por si
só, revela a postura irônica do escritor, não só no que tange aos “observadores estrangeiros”
anônimos dos seis anos que a eles pareciam “normais”, mas igualmente com respeito à
“Alemanha” desse período. Aqui, contudo, há mais do que meramente um tom irônico. O
fato e a caracterização figurativa se combinaram para criar uma imagem de um objeto - o
referente real do discurso - que é inteiramente distinto do referente manifesto, a saber, a
própria Alemanha. Esse referente latente é constituído pelas técnicas retóricas de iguração
que são identificáveis na superfície do discurso.
Consideremos, antes de tudo, a informação factual contida no trecho citado. É-nos
dito que
1. A República foi criada pela Assembléia Constituinte em Weimar.
2. Ela durou catorze anos, de 1919 a 1933.
3. Seus primeiros quatro anos foram marcados pela confusão política e econômica; e,
finalmente,
4. Nos seus últimos três anos, foi governada por uma ditadura.
O que poderia parecer ser outras afirmações do fato são, na realidade, juízos ou

78 A. J. P. Taylor, The Course of German History: A Survey of the Development of Germany since 1815 (New York, 1946), pp.
189-190.
HISTORICISMO, HISTÓRIA E A IMAGINAÇÃO FIGURATIVA 135

interpretações:
5. A República durou “teoricamente” catorze anos, mas “na realidade” muito menos.
6. A ditadura foi “parcialmente disfarçada de legalidade”.
7. Essa ditadura “reduziu” a República a um “simulacro” antes de ser “abertamente”
derrubada; e, assim,
8. Apenas por seis anos a Alemanha “levou uma vida ostensivamente democrática,
ostensivamente pacífica”.
O restante do trecho consta de insinuações e censuras vagamente dissimuladas sobre
a ingenuidade de certos “observadores estrangeiros”, bem como de uma alusão a uma
“investigação mais aprofundada” que “poderia ter encontrado” para os seis anos em questão
“outras causas” que não a “beleza do caráter alemão” e, supostamente, um meio de penetrar
através da forma “ostensiva” da história alemã desse período até a sua substância obvi-
amente corrupta.
Ora, esse trecho é um bom exemplo, por assim dizer em microcosmo, dos elementos
essenciais de qualquer discurso histórico. No nível manifesto, temos a crônica dos eventos
que fornecem aos elementos de uma estória um começo (1919-1923), um meio (1923-1929)
e um fim (1929-1932) discerníveis. Essa história, por sua vez, apresenta uma estrutura de
enredo identificável que une essas fases num processo que descreve o desenrolar de uma
pseudotragédia. A estrutura de enredo serve como um tipo de elaboração secundária dos
eventos que compõem a crônica e o seu arranjo numa estória, desvelando o sentido latente
da representação manifesta dos fatos. Ela atua sobre a nossa capacidade presumida, porém
não invocada formalmente, de “seguir” os eventos relatados na história e de “decodificar”
subconscientemente a sua estrutura subliminarmente codificada como um tipo de estória
particular (uma pseudotragédia ou uma tragédia satírica). Em outras palavras, os eventos da
estória são codificados pelo uso da linguagem figurativa em que são caracterizados, a fim
de permitir a sua identificação como elementos do tipo específico de estória a que pertence
essa estória.
A estipulação desse sentido secundário é assinalada nas duas fases iniciais do trecho,
em que a duração da República de “teoricamente” quatorze anos é comparada com a sua
“vida real” de apenas seis anos. Esse contraste entre a “vida” teórica e a real da República
logo move o tema do discurso para aquela categoria de grotescos que comumente
encontramos na sátira. Os principais verbos ativos utilizados na exposição, “criada”,
“gastos”, “reduziu” e “derrubada” - eles próprios servem para caracterizar as fases da ficção
literária arquetípica a que a vida da República está sendo implicitamente comparada, a
saber, a pseudotragédia.
Que a curta vida da República foi apenas uma pseudotragédia, indica-o o fato de que
o relato da destruição progressiva da República não é atenuado por qualquer indício de
tendências opostas nela. Quando estas tendências são indicadas, são rotuladas de apenas
“ostensivas”. E os “observadores estrangeiros” para quem os “seis anos” intermediários
representavam a Alemanha “normal” e “verdadeira” são, por sua vez, caracterizados,
mediante uma metonímia convencional de “olhos” por “mente”, como sendo tão superficiais
em sua percepção quanto o seria qualquer olho comum não-orientado pela inteligência. A
“investigação mais aprofundada” que esses “observadores estrangeiros” não conseguiram
levar a cabo (e que o autor provavelmente conseguiu) alude por dissimulação irônica
(“poderia ter descoberto”) à “fealdade” do caráter alemão assinalada figurativamente (isto
é, ironicamente) na referência à sua “beleza” apenas aparente.
Ora, invectivei esse trecho um tanto inócuo de prosa histórica, que A. J. R Taylor
deve ter escrito de maneira inteiramente espontânea e natural, para destacar um ponto muito
136 TRÓPICOS DO DISCURSO

simples. O ponto é este: mesmo no mais simples discurso em prosa, e mesmo num discurso
em que o objeto da representação não pretende ser mais que um fato, o uso da própria
linguagem projeta um nível de sentido secundário que fundamenta os fenômenos que estão
sendo “descritos”, ou está por trás deles. Esse sentido secundário existe inteiramente à parte
dos próprios “fatos” e de qualquer argumento explícito que poderia ser oferecido no nível
extradescritivo, mais puramente analítico ou interpretativo do texto. Esse nível figurativo é
produzido por um processo construtivo, de natureza poética, que prepara o leitor do texto
de maneira mais ou menos subconsciente para receber tanto a descrição dos fatos quanto a
sua explicação como sendo plausíveis, de um lado, e mutuamente adequadas, de outro.
Assim encarado, o discurso histórico pode ser decomposto em dois níveis de sentido.
Os fatos e a sua explicação ou interpretação formal aparecem como a “superfície” manifesta
ou literal do discurso, ao passo que a linguagem figurativa, utilizada para caracterizar os
fatos, indica um sentido estrutural profundo. Esse sentido latente de um discurso histórico
consiste no tipo genérico de estória do qual os próprios fatos, arranjados numa ordem
específica e dotados de diferentes graus de importância, são a forma manifesta. Entendemos
a estória específica que está sendo contada sobre os fatos quando identificamos o tipo
genérico de estória do qual a estória particular é uma ilustração.
Essa concepção do discurso histórico nos permite considerar a estória específica
como uma imagem dos eventos sobre os quais a estória é contada, enquanto o tipo genérico
de estória serve como um modelo conceituai com que devem ser comparados os eventos a
fim de permitir sua codificação como elementos de uma estrutura reconhecível.
Um modelo conceituai pode ser empregado mais ou menos explicitamente e
apresentado mais ou menos formalmente no empenho de explicar ou interpretar os eventos
representados na narrativa. Mas tais empregos formais e explícitos de um modelo
conceituai, como, por exemplo, num argumento nomológico-dedutivo, devem ser
diferenciados do sentido figurativo do discurso histórico. O sentido figurativo está implícito
mesmo na simples descrição dos eventos antes da sua análise, bem como na estória contada
sobre eles. A estória transforma os eventos, fazendo-os passar da falta de sentido do seu
arranjo serial numa crônica para uma estrutura hipotaticamente arranjada de ocorrências
sobre as quais podem ser feitas perguntas significativas (o que, onde, quando, como e por
quê). Esse elemento de estória no discurso histórico existe mesmo nos exemplos mais
intransigentes de escrita histórica estruturalista, sincrônica, estatística ou representativa.
Esse discurso histórico não apresentaria nenhuma problemática se não distinguisse ta-
citamente entre a ordem serial dos eventos e algum tipo de transformação dessa ordem numa
estrutura acerca da qual se possa formular perguntas significativas.
Evidentemente, é um lugar-comum dizer que um discurso histórico não representa
um equivalente perfeito do campo fenomênico que ele se propõe descrever, em dimensão,
em escopo ou na ordem serial em que ocorreram os eventos. Mas esse fato não raro é
interpretado mais como uma simples redução por seleção que como a distorção que ele de
fato é. A maneira mais óbvia de distorção é o afastamento da ordem cronológica da ocorrên-
cia original dos eventos, de molde a expor os seus sentidos “verdadeiros” ou “latentes”.
Aqui, naturalmente, devemos enfrentar a distinção convencional, mas nunca totalmente
analisada, entre a “mera” crônica e a história propriamente dita. Todo mundo admite que o
historiador deve ir além da organização serial dos eventos até a determinação da sua
coerência como uma estrutura, e deve atribuir valores funcionais diferentes aos eventos
individuais e às classes de eventos a que parecem pertencer. Contudo, geralmente se con-
cebe essa tarefa como sendo o empenho de “descobrir” a estória ou estórias que
supostamente se acham incrustadas dentro da confusão dos fatos relatados no registro ou da
série diacrônica dos eventos tal como são arranjados na crônica. Na realidade, porém, nada
HISTORICISMO, HISTÓRIA E A IMAGINAÇÃO FIGURATIVA 137

poderia estar mais longe da verdade.


Nenhum conjunto dado de eventos delineia de maneira apodítica o tipo de sentidos
que as estórias lhes fornecem. Isto é tão verdadeiro para os conjuntos de eventos na escala
de uma vida individual quanto para aqueles que duram um século na evolução de uma nação.
Nenhuma pessoa ou coisa vive uma estória. E as sequências de eventos podem assumir os
aspectos de um romance, uma tragédia ou uma comédia indistintamente, dependendo do
ponto de vista a partir do qual são apreendidas e da forma genérica da estória escolhida pelo
historiador para presidir à articulação da estória.
O que está implícito aqui é a formação de uma estrutura dentro da qual se possa
colocar os eventos, de magnitude e complexidade diferentes, a fim de permitir a sua
codificação como elementos de tipos diferentes de estória. Esse processo de formação -
cumpre ressaltar - acarreta necessariamente transgressões às chamadas normas de evidência
ou aos critérios de “exatidão factual” resultantes de simples ignorância do registro ou da
desinformação que ele poderia conter. Mas essa formação é uma distorção de todo o campo
factual de que o discurso pretende ser uma representação - como no caso de toda construção
de modelo.
Essa distorção, por sua vez, pode ser de dois tipos; distorção negativa, que consiste
na exclusão de fatos que poderiam ter sido incluídos na representação do campo; e distorção
positiva, que consiste no arranjo dos eventos numa ordem diferente da ordem cronológica
de sua ocorrência original, de modo a dotá-los de diferentes funções num padrão integrado
de sentido. E aqui o historiador, na sua qualidade de artista literário, utiliza as mesmas
técnicas de condensação, deslocamento, considerações de representabilidade e elaboração
secundária que Freud identifica como sendo as estratégias psicológicas utilizadas na
“atividade onírica” para disfarçar o sentido latente (e real) de um sonho por trás do nível
manifesto ou literal do relato do sonho17.
Certamente, na “obra de erudição” do historiador, estas técnicas são utilizadas para
efetuar um movimento oposto, ou seja, a partir da confusão dos fatos que têm a estrutura
sem sentido da mera serial idade até ao desvelamento do seu significado supostamente
verdadeiro ou real enquanto elementos de um processo compreensível. Não importa se as
técnicas desse processo de formação consistem na aplicação de funções de qui-quadrado ao
que parece ser uma miscelânea de eventos aleatórios, ou na aplicação de técnicas de urdidura
de enredo para revelar o “drama” no que parece ser um caos de acontecimentos. A
consequência é uma distorção de todo o campo factual considerado como uma totalidade de
todos os eventos que, segundo a nossa percepção, ocorreram dentro dos seus limites. Essa
distorção pode parecer mais compreensível do que o campo de eventos no seu estado não-
processado ou processado apenas em forma de crônica. Mas ela é mais compreensível
apenas com relação ao modelo conceituai que sancionou a sua distorção desta maneira e
não de outra. E em resposta a esse modelo conceituai pressuposto que o historiador
“condensa” os seus materiais (isto é, inclui alguns eventos e exclui outros); “desloca” alguns
fatos para a periferia ou para o plano de fundo e leva outros para mais perto do centro;
codifica alguns como causas e outros como efeitos; une alguns e separa outros - a fim de
“representar” a sua distorção como uma distorção plausível; e cria

! 7. Freud, The Inteqiretation ofDreams, em Basic Writings, trad. e ed. A. Brill (New York, 1938) pp. 456-463.
um outro discurso, uma “elaboração secundária” que caminha ao longo do nível mais
obviamente representacional do discurso, que em geral se afigura como uma fala direta ao
leitor e fornece as bases cognitivas explícitas (a “racionalização”) para a forma manifesta
do discurso em geral.
Para esclarecer o que está implícito aqui, voltemos ao trecho extraído do livro de
138 TRÓPICOS DO DISCURSO

Taylor sobre a Alemanha. Nessa breve caracterização sinóptica do período entre 1919 e
1933, são óbvias as provas de condensação. Não importa que tenhamos tomado para análise
apenas um parágrafo, e não um capítulo ou uma parte maior do texto. O livro inteiro
condensa necessariamente o seu material, não apenas no sentido de reduzir a esfera da
possível representação, isto é, as dimensões do objeto abordado, mas também no sentido de
sobredeterminar certos elementos do objeto, de molde a revelar a natureza pseudotrágica
da totalidade dos eventos retratados, considerada como um processo completo. Quanto à
prova de deslocamento, esta é igualmente óbvia na justaposição da “vida real” da República
à sua vida aparente (“teórica”). Essa “vida real” é o centro do discurso, enquanto a “vida
teórica” é progressivamente remetida à periferia por meio da sua revelação como ilusão. O
mesmo se aplica às considerações de representabilidade. Aprova destas aparece na
superfície do texto como uma citação das causas da queda da República: a “confusão” do
período do pós-guerra, a criação de uma “ditadura provisória” que continuou a minar o
espírito (embora não a carta) da Constituição, e a natureza geral de “simulacro” da estrutura
política da República. Mas as causas reais do fracasso da República são indicadas apenas
figurativamente, como se residissem naquela “fealdade” do caráter alemão que a noção de
sua “beleza” apenas aparente invoca ironicamente.
As duas afirmações causais feitas no trecho requerem uma análise mais extensa. A
primeira declara que os “primeiros quatro anos [da República] foram gastos na confusão
política e econômica que se seguiu à Guerra dos Quatro Anos”. Literalmente, a afirmação
sugere que a confusão causa fraqueza política; mas na verdade ela diz que “anos” podem
ser “gastos” em “confusão”. Aqui, a palavra “anos” é uma metonímia para “vida”, que, por
sua vez, é uma metáfora para “energias”. Porém o uso de um verbo na passiva (“foram
gastos”), mais adiante, sugere que essas “energias” eram débeis desde o começo. Um
contraste semelhante entre o que é dito literalmente e o que é sugerido pelas inversões
figurativas pode ser visto na segunda afirmação causai do trecho: a “ditadura provisória,
parcialmente disfarçada de legalidade, ... reduziu a República a um simulacro muito antes
que ela fosse derrubada abertamente”. Literalmente, a afirmação assevera que a “ditadura
provisória, parcialmente disfarçada de legalidade” (ela própria uma caracterização
metafórica que sugere a ação de forças sinistras na cena) “reduziu” a República a um
“simulacro”. Mas aqui o verbo utilizado (“reduziu”) é mais ativo que passivo e, portanto,
sugere o poder e força dos inimigos da República em contraste com a fraqueza dos seus
defensores. Este contraste implícito permite aos leitores aceitar a explicação da queda da
República que em última análise será fornecida como plausível. Afinal de contas, não
surpreende que os poderes fortes e ativos deveriam conseguir destruir os poderes débeis e
confusos. É na natureza das coisas que as entidades “reais” sobrepujam as “falsas”.
Estamos agora em condição de identificar a metáfora dominante de todo o trecho,
aquela que serve de mediadora entre a dimensão literal e a figurativa do discurso, tal como
se revelam na palavra simulacro [sham]. Esta palavra se liga etimologicamente à palavra
inglesa shame [vergonha], e no registro dos seus usos mais antigos conota “truque”,
“fraude” e “contrafação”79. É esta metáfora, com a sua insinuação de má fé, vacuidade e
meras aparências, que sanciona o uso dos verbos que demarcam os estágios sucessivos do
processo de desintegração da “vida” da República: “criada”, “gastos”, “reduziu” e
finalmente “derrubada”. E também esta metáfora que sanciona a atitude irônica de Taylor
para com o tema do seu discurso, a República de Weimar, e aqueles “observadores
estrangeiros” cujos olhos eram tão cegos quanto suas mentes eram desatentas.
O aspecto a ser destacado aqui é que o objeto da representação de Taylor, o referente

79 Ver The Oxford Dictinnary ofEnglixh Eiymology, ed. C. T. Onions (Oxford, 1967), p. 816.
HISTORICISMO, HISTÓRIA E A IMAGINAÇÃO FIGURATIVA 139

do discurso, não é a República de Weimar como tal, mas antes o “simulacro” em que a
República se constituiu. A metáfora do “simulacro” é predominante no sentido de fornecer
o eixo paradigmático do trecho que sanciona a passagem da percepção da aparência exterior
para a decomposição interna no eixo sintagmático. A estrutura implícita da relação entre
exterior e interior, aparência e realidade, da República é a mesma da relação entre os olhos
e as mentes vazias dos seus observadores estrangeiros favoráveis. Trata-se de uma forma
sem substância. E caracterizar esta forina sem substância é o objetivo último do restante do
relato que Taylor faz da história da Alemanha desde 1815 até Hitler.
Ora, quero sugerir que um tipo semelhante de análise poderia ser feito de todo o livro
de Taylor ou, na verdade, de qualquer obra histórica, inclusive especialmente aquelas que
normalmente consideramos “clássicas”, tais como as obras de Michelet, Ranke,
Tocqueville, Marx, Burckhardt, bem como as de autores modernos como Huizinga,
Braudel, Marc Bloch e Croce. Tais obras se prestam ao tipo de análise retórica que tentei
fazer neste trecho de Taylor muito mais facilmente do que a dele, tão manifestadamente
“literárias” elas são. O trecho de Taylor foi escolhido pelo que se poderia considerar um
tipo de supereapacidade analítica, porque é tão inconscientemente retórico, porque pretende
de modo tão patente descrever os fatos sem ornamentação e apresentar o argumento
vivamente e de maneira direta. Meu objetivo não foi lançar dúvidas sobre a interpretação
específica que Taylor oferece da sua matéria, mas explicar o que se poderia entender pelo
“ponto de vista” a partir do qual ele escreveu e mostrar que o que ele diz acerca do seu
tópico aparente e o modo como o diz eram realmente indistintos.
Dificilmente se poderia elogiar o trecho pela vividez da linguagem. Na verdade, a
maioria das metáforas nele contidas são metáforas mortas, mas não devemos subestimar a
atração que as metáforas mortas exercem sobre uma classe particular de leitores. Elas
podem, com efeito, ser encoraja- doras, podem consolidar visões já aceitas e servir para
familiarizar fenômenos que de outra forma continuariam exóticos ou estranhos. Raramente
se observa como o efeito da “objetividade” pode ser alcançado pelo uso da linguagem não-
poética, vale dizer, pela linguagem em que as metáforas mortas, e não as vivas, fornecem a
substância do discurso. Mas, morta ou vivida, a linguagem desse trecho funciona
exatamente* da mesma forma que a poesia o faz para desviar a atenção do nível manifesto
do discurso para um nível latente ou figurativo e vice-versa. Isso concede ao autor o direito
à explicação formal do motivo pelo qual as coisas são diferentes do que parecem ser, e da
razão pela qual o seu direito revela o modo como as coisas realmente eram.

Ora, se por essa análise estabeleci a plausibilidade da ideia de que todo discurso
histórico tem um nível figurativo de sentido, é possível, suponho, resolver alguns problemas
convencionais da teoria histórica. Primeiro, podemos ver agora tanto as similaridades como
as diferenças entre a “filosofia da história” e a “historiografia”. Como qualquer filosofia da
história, uma narrativa histórica logra os seus efeitos como explicação quando revela o
sentido mais profundo dos eventos que ela descreve através da sua caracterização na
linguagem figurativa. Sua diferença principal consiste no fato de que, enquanto na filosofia
da história o elemento figurativo do discurso é trazido à superfície do texto, formalizado
pela abstração e tratado como a “teoria” que orienta tanto a investigação dos eventos quanto
a sua representação, na narrativa histórica o elemento figurativo é deslocado para o interior
do discurso onde ele vagamente toma forma na consciência do leitor e serve como a base
sobre a qual o “fato” e a “explicação” se podem combinar numa relação de adequação
mútua. Na medida, então, em que o historiador tradicional continua a não ter consciência do
grau em que a sua própria linguagem determina não apenas a maneira, mas também o tema
e o sentido do seu discurso, ele deve ser julgado menos autoconsciente criticamente e até
140 TRÓPICOS DO DISCURSO

menos “objetivo” do que o filósofo da história. Este, pelo menos, tenta controlar o seu
discurso mediante a utilização de uma terminologia técnica que torna o sentido pretendido
claro e aberto à crítica.

Em segundo lugar, a revelação da presença do elemento figurativo em todo discurso


histórico nos permite compreender melhor a relação entre um modo de representação
supostamente histórico e o modo historicista que se presume ser o seu antítipo. Aqui,
podemos observar que a distinção básica não se dá entre o interesse nos aspectos
particulares, comparados aos gerais, do processo histórico. Ela ocorre, antes, entre os
escritores da história que reconhecem não haver escolha entre esses dois aspectos do campo
histórico e os que consideram possível tal escolha. O discurso histórico busca explicar a
relação entre as partes e o todo, ou entre as fases e a estrutura completa de um processo. Na
falta de uma teoria específica dessa relação, somos levados a utilizar os tropos de linguagem
- metáfora, metonímia e sinédoque
- a fim de figurá-la. Estes tropos podem aparecer numa forma altamente estilizada e
abstrata nas representações historicistas da realidade, mas não estão menos presentes nas
representações históricas como sendo a “teoria” que orienta a articulação do discurso. Não
importa se a forma do discurso é a da história bem narrada ou a do tratado lógico. Na
ausência de uma análise genuinamente científica dos modos de relação predominantes entre
os elementos do campo histórico, a tropologia é o único protocolo conceituai que temos.
Neste aspecto, as supostas diferenças entre um relato narrativo e um relato sincrônico são
mais uma questão de ênfase do que de conteúdo. É bem provável que o historicista utilize
caracteristicamente os particulares para exemplificar ou ilustrar os princípios gerais que ele
afirmou ter descoberto em seu estudo da história. Mas isso não significa que o empenho do
historiador em se concentrar nos particulares “por eles mesmos” o isenta de um recurso
àquelas generalizações pelas quais se deve consolidar a sua descrição dos particulares numa
narrativa abrangente. Esse recurso está contido na linguagem figurativa utilizada pelo
historiador para descrever os elementos desse campo e para caracterizar-lhe as mudanças
durante o seu processo de desenvolvimento. As generalizações podem ser deslocadas para
o interior do discurso, e os particulares colocados no primeiro plano, mas esse nível
secundário de sentido desempenha no discurso do historiador a mesma função que as teorias
desempenham no discurso do historicista.
Em terceiro lugar, a análise desse nível figurativo do discurso histórico nos permite
conceituar os possíveis tipos de representação histórica, identificando o modo tropológico
que rege a caracterização figurativa tanto da estrutura de um dado domínio histórico quanto
das fases da sua articulação como processo. Há muito se vem reconhecendo que os tropos
da metáfora, metonímia, sinédoque e ironia constituem os principais tipos genéricos do uso
figurativo da linguagem. Tentei mostrar em outro local íy que o estilo de representação de
um dado historiador pode ser caracterizado segundo ele privilegie um ou outro desses tropos
ou em função do seu empenho em mediar entre eles; meu argumento é que & forma da
narrativa histórica supostamente direta depende tanto do modo de figuração tropológico
dominante quanto a. forma de qualquer relato historicista depende da teoria que ela procura
justificar. As várias formas de narrativa histórica são produto do empenho em apreender o
mundo figurativamente na mesma medida em que as várias formas de representação
historicista são determinadas pelo aparato teórico dos seus diferentes autores. Minha própria
intuição é que os vários modos pelos quais a teoria se articula nas diferentes ciências
representam as formalizações teóricas dos tropos da linguagem natural. Certamente isso é
verdadeiro para aqueles campos, como a história, que ainda não se decidiram por um modo
particular de utilização da linguagem como o protocolo padrão para a descrição dos dados,
HISTORICISMO, HISTÓRIA E A IMAGINAÇÃO FIGURATIVA 141

a formulação dos problemas e o registro das suas resoluções. Por isso eu afirmaria,
conquanto não possa defender aqui o argumento, que podemos falar dos modos metafórico,
metonímico, sinedóquico e irônico do discurso histórico. E, como esses modos corres-
pondem às modalidades de uso da linguagem do leitor (e, portanto, à sua maneira de
conceituar o mundo), eles fornecem a base para a comunicação da compreensão e dos
sentidos entre, de um lado, -as “escolas” específicas de historiadores e, de outro, os públicos
específicos. Em virtude de haver um elemento geralmente poético em toda escrita histórica,
elemento que aparece no discurso em prosa na forma de retórica, as grandes obras históricas,
quer de historiadores, quer de historicistas, conservam a sua vividez e autoridade muito
tempo depois de terem deixado de contar como contribuições para a “ciência”.Em quarto
lugar, o reconhecimento da dimensão figurativa no discurso histórico nos abre uma nova
perspectiva sobre o problema do relativismo histórico. O historicismo rankiano, mais antigo,
era relativista na medida em que acreditava que a compreensão de um fenômeno histórico
requeria que o historiador o visse “segundo os seus próprios termos” ou “por ele mesmo”.
Aqui, a “objetividade” consistia em pôr-se de fora da própria época e cultura do historiador,
em pensar a sua trajetória na consciência da época em exame, em ver o mundo a partir da
sua perspectiva e em reproduzir o modo como o mundo aparecia aos atores no drama que
ele estava narrando. O ramo absolutista mais recente do historicismo - o de Hegel, Marx,
Spengler et alia, aqueles historicistas “científicos” tão severamente criticados por Popper -
afirmava transcender o relativismo mediante a importação de teorias científicas para a
análise histórica, pelo uso de uma terminologia técnica e pela descoberta das leis que regiam
o processo histórico em todas as épocas e lugares. Da mesma forma, também os
historiadores mais modernos, de orientação cientificamente social, afirmaram transcender o
relativismo pelo uso que fizeram do método rigoroso e da sua abstenção das técnicas
“impressionistas” usadas por seus congêneres narrativistas mais convencionais. No entanto,
se a minha hipótese estiver correta, não pode haver essa coisa de representação não-
relativista da realidade histórica, pois que todo relato do passado sofre a mediação por parte
do modo de linguagem em que o historiador molda a sua descrição original do campo
histórico antes de qualquer análise, explicação ou interpretação que possa oferecer dele.

O uso de uma linguagem técnica ou de um método de análise específico, tal como,


digamos, a econometria ou a psicanálise, não liberta o historiador do determinismo
linguístico a que continua escravizado o historiador narrativo convencional. Ao contrário, o
compromisso com uma metodologia específica e com o sistema terminológico técnico que
ele requer fechará tantas perspectivas sobre qualquer campo histórico dado quantas abrirá.
Não se trata, pois, de escolher entre o historicismo relativista de um Ranke e os historicismos
mais objetivos de Marx, Spengler, Weber ou Toynbee. Não se trata tampouco de escolher
entre as novas técnicas “sociais e científicas” da econometria, da psicanálise ou da
demografia e as técnicas narrativas mais antigas, dilatadas, dos grandes narradores da
história. Todos eles são igualmente relativistas, igualmente limitados pela linguagem
escolhida na qual possam delimitar o que é possível dizer acerca do assunto estudado.
Ao mesmo tempo, porém, a ser correta a teoria do determinismo linguístico, ela
oferece um caminho fora do relativismo absoluto e uma maneira de conceituar a noção de
progresso na compreensão histórica. Por ser essa uma teoria do determinismo linguístico,
podemos imaginar um meio de traduzir de um modo de discurso para outro, da mesma forma
que traduzimos de uma língua para outra. Essa maneira de conceituar o problema do
relativismo é superior àquela que fundamenta o ponto de vista na época, no lugar ou no
compromisso ideológico, porque não podemos imaginar qualquer meio de traduzir entre
142 TRÓPICOS DO DISCURSO

estes, ao passo que podemos imaginar meios de traduzir entre diferentes códigos de
linguagem. Não tem sentido dizer que podemos traduzir as percepções de um francês nas de
um alemão, as de um homem da Renascença nas de um homem da Idade Média ou as de um
radical nas de um liberal. Mas não tem sentido dizer que podemos traduzir as percepções de
um historiador, que moldou o seu discurso no modo da metáfora, nas percepções de alguém
que moldou o seu no modo da sinédoque, ou as percepções de alguém que vê o mundo
ironicamente nas de alguém que o vê no modo da metonímia. E se os tropos da linguagem
são limitados, se os tipos de figuração são finitos, então é possível imaginar o modo como
as nossas representações do mundo histórico se agregam numa visão total e abrangente
desse mundo, e como se torna possível progredir na compreensão que temos dele. Cada
nova representação do passado significa um teste e um refinamento das nossas capacidades
de figurar o mundo na linguagem, de modo que cada nova geração é herdeira não apenas de
mais informações sobre o passado, mas também de mais conhecimentos adequados da nossa
capacidade de compreendê-lo.
Isto me leva ao último aspecto que quero destacar, o qual diz respeito à revelação
entre a história considerada como arte e a história considerada como ciência. O tipo de
análise que empreendi do trecho do livro de Taylor poderia ter sido feito com qualquer texto
histórico. Como eu disse, teria sido mais fácil fazê-lo com escritores clássicos como
Michelet, Ranke, Tocqueville, Burckhardt, Huizinga, Marx, Hegel ou Spengler, pela
simples razão de que são “artísticos” ou “literários” de maneira mais óbvia do que os seus
congêneres menos autoconscientes artisticamente. Longe de fixar limites para o seu status
de historiadores, contudo, é precisamente esse componente literário ou artístico do seu
discurso que os resguarda de um desmentido definitivo e lhes garante um lugar entre os
“clássicos” da historiografia. É à força da imaginação criadora desses escritores clássicos
que pagamos tributo quando lhes louvamos as obras como modelos do ofício do historiador
muito tempo depois de termos deixado de dar crédito à sua erudição ou às explicações
específicas que eles ofereceram para os “fatos” que buscaram elucidar. Quando retiramos
uma grande obra histórica - como fazemos com Gibbon - da esfera da ciência para venerá-
la na esfera da literatura como um clássico, estamos rendendo tributo, em última análise, ao
gênio do historiador plástico, figurativo e, finalmente, linguístico. Robert Frost disse certa
vez que, quando um poeta envelhece, ele morre para a filosofia. Quando uma grande obra
da historiografia ou da filosofia da história se torna antiquada, la enasce para a arte.
AS FICÇÕES DA REPRESENTAÇÃO FACTUAL

No intuito de antecipar algumas das objeções que os historiadores opõem


muitas vezes ao argumento que segue, quero admitir desde já que os eventos
AS FICÇÕES DA REPRESENTAÇÃO FACTUAL 143

históricos diferem dos eventos ficcionais nos modos pelos quais se convencionou
caracterizar as suas diferenças desde Aristóteles. Os historiadores ocupam-se de
eventos que podem ser atribuídos a situações específicas de tempo e espaço,
eventos que são (ou foram) em princípio observáveis ou perceptíveis, ao passo que
os escritores imaginativos - poetas, romancistas, dramaturgos - se ocupam tanto
desses tipos de eventos quanto dos imaginados, hipotéticos ou inventados. O
problema não é a natureza dos tipos de eventos com que se ocupam historiadores e
escritores imaginativos. O que nos deveria interessar na discussão da “literatura do
fato” ou, como preferi chamar, das “ficções da representação factual”, é o grau em
que o discurso do historiador e o do escritor imaginativo se sobrepõem, se asseme-
lham ou se correspondem mutuamente. Embora os historiadores e os escritores de
ficção possam interessar-se por tipos diferentes de eventos, tanto as formas dos seus
respectivos discursos como os seus objetivos na escrita são amiúde os mesmos.
Além disso, a meu ver, pode-se mostrar que as técnicas ou estratégias de que se
valem na composição dos seus discursos são substancialmente as mesmas, por
diferentes que possam parecer num nível puramente superficial, ou diccional, dos
seus textos.
Os leitores de histórias e de romances dificilmente deixam de se surpreender
com as semelhanças entre eles. Há muitas histórias que poderiam passar por
romance, e muitos romances que poderiam passar por histórias, considerados em
termos puramente formais (ou, diríamos, formalistas). Vistos apenas como artefatos
verbais, as histórias e os romances são indistinguíveis uns dos outros. Não podemos
distinguir com facilidade entre eles, em bases formais, a menos que os abordemos
com pré-concepçoes específicas sobre os tipos de verdade de que cada um
supostamente se ocupa. Mas o escopo do escritor de um romance deve ser o mesmo
que o do escritor de uma história. Ambos desejam oferecer uma imagem verbal da
“realidade”. O romancista pode apresentar a sua noção desta realidade de maneira
indireta, isto é, mediante técnicas figurativas, em vez de fazê-lo diretamente, ou
seja, registrando uma série de proposições que supostamente devem corresponder
detalhe por detalhe a algum domínio extratextual de ocorrências ou acontecimentos,
como o historiador afirma fazer. Mas a imagem da realidade assim construída pelo
romancista pretende corresponder, em seu esquema geral, a algum domínio da
experiência humana que não é menos “real” do que o referido pelo historiador. Não
se trata, pois, de um conflito entre dois tipos de verdade (que o preconceito
ocidental com relação ao empiris- mo como única via de acesso à realidade nos
impingiu), de um conflito entre a verdade de correspondência, de um lado, e a
verdade de coerência, de outro. Toda história precisa submeter-se tanto a padrões
de coerência quanto a padrões de correspondência se quiser ser um relato plausível
do “modo como as coisas realmente aconteceram”. Pois o preconceito empirista é
reforçado pela convicção de que a “realidade” é não só perceptível como coerente
na sua estrutura. Uma simples lista de afirmações existenciais singulares, passíveis
de confirmação, não indica um relato da realidade se não houver alguma coerência,
lógica ou estética, que as ligue entre si. Da mesma forma, toda ficção deve passar
por um teste de correspondência (deve ser “adequada” como imagem de alguma
144 TRÓPICOS DO DISCURSO

coisa que está além de si mesma), se pretender apresentar uma visão ou iluminação
da experiência humana do mundo. Quer os eventos representados num discurso
sejam interpretados como partes diminutas de um todo molar, quer como possíveis
ocorrências dentro de uma totalidade perceptível, o discurso tomado na sua
totalidade como imagem de alguma realidade comporta uma relação de
correspondência com aquilo de que ele constitui uma imagem. É nesse duplo
sentido que todo discurso escrito se mostra cognitivo em seus fins e mimético em
seus meios. E isto vale também para o discurso mais lúdico e aparentemente mais
expressivo, para a poesia tanto quanto para a prosa e até para aquelas formas de
poesia que parecem querer iluminar apenas a própria “escrita”. Neste aspecto, a
história não é menos uma forma de ficção do que o romance é uma forma de
representação histórica.

Essa caracterização da historiografia como forma de criar ficção não será


provavelmente recebida com simpatia pelos historiadores ou críticos literários, os
quais, se concordam em alguma coisa, concordam convencionalmente em que
história e ficção se ocupam de ordens distintas de experiência e, portanto,
representam formas distintas de discurso, quando não opostas. Por esse motivo,
convém dizer algumas palavras sobre o modo como surgiu a noção de oposição
entre história e ficção e por que ela permaneceu incontestada por tanto tempo no
pensamento ocidental.
Antes da Revolução Francesa, a historiografia era considerada conven-
cionalmente uma arte literária. Mais especificamente, era tida como um ramo da
retórica, com sua natureza “fictícia” geralmente reconhecida. Conquanto os
teóricos do século XVIII distinguissem um tanto rigidamente (e nem sempre com
uma adequada justificativa filosófica) entre “fato” e “fantasia”, em geral não viam
na historiografia uma representação dos fatos não-desvirtua- da por elementos de
fantasia. Embora admitissem a necessidade geral de relatos históricos que tratassem
de eventos reais, e não imaginários, os teóricos desde Bayle até Voltaire e de Mably
reconheciam a inevitabilidade de um recurso a técnicas ficcionais na representação
de eventos reais no discurso histórico. O século XVIII foi fértil em obras que
distinguem entre, de um lado, o estudo da história e, de outro, a escrita da história.
A escrita era um exercício literário, especificamente retórico, e o produto desse
exercício devia ser avaliado tanto segundo princípios literários quanto científicos.
Aqui, a oposição básica se dava muito mais entre “verdade” e “erro” que
entre fato e fantasia, depreendendo-se daí que muitos tipos de verdade, mesmo na
história, só poderiam ser apresentados ao leitor por meio de técnicas ficcionais de
representação. Essas técnicas consistiam em artifícios retóricos, tropos, figuras e
esquemas de palavras e pensamentos, os quais, na forma como eram descritos pelos
retóricos clássicos e renascentistas, eram idênticos às técnicas da poesia em geral.
A verdade não era equiparada ao fato, mas a uma combinação do fato e da matriz
conceituai dentro da qual ela era posta adequadamente no discurso. Tanto quanto a
razão, a imaginação devia estar implícita em qualquer representação adequada da
AS FICÇÕES DA REPRESENTAÇÃO FACTUAL 145

verdade; e isto significava que as técnicas de criar ficção eram tão necessárias à
composição de um discurso histórico quanto o seria a erudição.
Entretanto, no começo do século XIX tornou-se convencional, pelo menos
entre os historiadores, identificar a verdade com o fato e considerar a ficção o
oposto da verdade, portanto um obstáculo ao entendimento da realidade e não um
meio de apreendê-la. A história passou a ser contraposta à ficção, e sobretudo ao
romance, como a representação do “real” em contraste com a representação do
“possível” ou apenas do “imaginável”. E assim nasceu o sonho de um discurso
histórico que consistisse tão-somente nas afirmações factualmente exatas sobre um
domínio de eventos que eram (ou foram) observáveis em princípio, cujo arranjo na
ordem de sua ocorrência original lhes permitisse determinar com clareza o seu
verdadeiro sentido ou significação. Caracteristicamente, o objetivo do historiador
do século XIX era expungir do seu discurso todo traço do fictício, ou simplesmente
do imaginável, abster-se das técnicas do poeta e do orador e privar-se do que se
consideravam os procedimentos intuitivos do criador de ficções na sua apreensão
da realidade.
Para entender esta evolução do pensamento histórico, cumpre reconhecer que
a historiografia tomou forma como disciplina erudita distinta no Ocidente durante
o século XIX, contra o pano de fundo de uma imensa hostilidade a todas as formas
de mito. Tanto a direita quanto a esquerda políticas responsabilizaram o
pensamento mítico pelos excessos e fracassos da Revolução. Interpretações erradas
da história, concepções equivocadas da natureza do processo histórico, expectativas
irrealistas sobre as maneiras pelas quais as sociedades históricas poderiam ser
transformadas - tudo isso levara primeiramente à eclosão da Revolução, ao estranho
curso que os acontecimentos revolucionários tomaram e às consequência s das
atividades revolucionárias no decurso do tempo. Era imperativo colocar-se acima
de todo e qualquer impulso para interpretar o registro histórico à luz de preconceitos
partidários, expectativas utópicas ou vinculações sentimentais a instituições
tradicionais. Para encontrar o próprio caminho por entre as exigências conflitantes
dos partidos que se constituíram durante e após a Revolução, era necessário detectar
algum ponto de vista da percepção social que fosse verdadeiramente “objetivo”,
verdadeiramente “realista”. Se os processos sociais e as estruturas pareciam
“demoníacos” em sua capacidade de opor-se à direção, de tomar rumos inesperados
e de solapar os projetos mais grandiosos, frustrando os desejos mais sinceros, o
estudo da história tinha, pois, de ser desmistificado. Mas, no pensamento da época,
a desmistificação de qualquer campo de pesquisa tendia a ser igualmente
equiparada à desfic- cionalizaçao desse campo.
A distinção entre mito e ficção, que constitui um lugar-comum no
pensamento do nosso século, dificilmente era apreendida por muitos dos ideólogos
de destaque do começo do século XIX. Sucedeu então que a história, a ciência
realista por excelência, se viu contraposta à ficção como o estudo do real versus o
estudo do meramente imaginável. Embora Ranke, quando criticou severamente o
romance como mera fantasia, tivesse em mente aquela forma de romance que desde
146 TRÓPICOS DO DISCURSO

então passamos a chamar romântico, ele revelou um preconceito partilhado por


muitos dos seus contemporâneos quando definiu a história como o estudo do real e
o romance como a representação do imaginário. Apenas alguns teóricos, dos quais
J. G. Droysen foi o mais proeminente, perceberam ser impossível escrever história
sem recorrer às técnicas do orador e do poeta. A maioria dos historiadores
“científicos” da época não se deram conta de que, para cada tipo identificável de
romance, os historiadores produziam um tipo equivalente de discurso histórico. A
historiografia romântica teve seu gênio em Michelet, a historiografia realista
encontrou seu paradigma no próprio Ranke, a historiografia simbolista produziu
Burckhardt (que tinha mais coisas em comum com Flaubert e Baudelaire do que
com Ranke) e a historiografia modernista teve seu protótipo em Spengler. Não foi
por acaso que o romance realista e o historicismo rankíano entraram em crise mais
ou menos na mesma época.
Em suma, houve tantos “estilos” de representação histórica quantos estilos
literários identificáveis no século XIX. Os historiadores do século XIX não o
notaram por se acharem presos à ilusão de que seria possível escrever história sem
recorrer absolutamente a qualquer técnica ficcional. Continuaram a acatar a
concepção de oposição entre história e ficção durante todo o período, até mesmo
enquanto criavam formas de discurso histórico tão diferentes entre si que somente
o seu embasamento em preconceitos estéticos da natureza do processo histórico
poderia explicar essas diferenças. Os historiadores continuavam a acreditar que
interpretações diferentes do mesmo conjunto de eventos eram função de distorções
ideológicas ou de dados factuais inadequados. Continuavam a acreditar que, se se
abstraísse da ideologia e se permanecesse fiel aos fatos, a história produziria um
conhecimento tão certo quanto qualquer coisa oferecida pelas ciências físicas e tão
objetivo quanto um problema matemático.
A maioria dos historiadores do século XIX não compreendiam que, quando
se trata de lidar com fatos passados, a consideração básica para aquele que tenta
representá-los fielmente são as noções que ele leva às suas representações das
maneiras pelas quais as partes se relacionam com o todo que elas abrangem. Não
compreendiam que os fatos não falam por si mesmos, mas que o historiador fala
por eles, fala em nome deles, e molda os fragmentos do passado num todo cuja
integridade é - na sua representação - puramente discursiva. Os romancistas podiam
lidar apenas com eventos imaginários enquanto os historiadores se ocupavam dos
reais, mas o processo de fundir os eventos, fossem imaginários ou reais, numa
totalidade compreensível capaz de servir de objeto de uma representação é um
processo poético. Aqui, os historiadores devem utilizar exatamente as mesmas
estratégias tropológicas, as mesmas modalidades de representação das relações em
palavras, que o poeta ou o romancista utiliza. No registro histórico não- processado
e na crônica dos eventos que o historiador extrai do registro, os fatos existem apenas
como um amálgama de fragmentos contiguamente relacionados. Estes fragmentos
têm de ser agrupados para formar uma totalidade de um tipo particular, e não de um
tipo geral. E são agrupados da mesma forma que os romancistas costumam agrupar
as fantasias produzidas pela sua imaginação para revelar um mundo ordenado, um
AS FICÇÕES DA REPRESENTAÇÃO FACTUAL 147

cosmo, onde só poderia existir a desordem ou o caos.


O mesmo se dá com os manifestos. Em que bases se pode justificar essa
posição reacionária? Em que bases se pode sustentar a afirmativa de que o discurso
histórico partilha mais coisas do que divide com o discurso romanesco? A primeira
base deve ser encontrada nos desenvolvimentos recentes da teoria literária -
principalmente na insistência, por parte dos modernos críticos estruturalistas e do
texto, em que é preciso suprimir a distinção entre prosa e poesia a fim de identificar-
lhes os atributos partilhados como formas de comportamento linguístico que tanto
constituem os seus objetos de representação como refletem a realidade exterior, de
um lado, e projetam os estados emocionais interiores, de outro. Parece que Stalin
estava certo quando afirmou que a linguagem não pertencia à superestrutura nem à
base da práxis cultural, mas era, de algum modo não-especificado, anterior a
ambas. Não conhecemos e jamais conheceremos a origem da linguagem, mas nos
dias de hoje é certo que a linguagem se caracteriza de modo mais adequado, por
não ser nem uma livre criação da consciência humana nem um mero produto das
forças do meio ambiente que atuam sobre a psique, mas antes por ser o instrumento
de mediação entre a consciência e o mundo habitado pela consciência.
Isto não será novidade para os teóricos literários, porém ainda não chegou
aos historiadores mergulhados nos arquivos, na expectativa, graças ao que chamam
de “um exame minucioso dos fatos” ou “a manipulação dos dados”, de encontrar a
forma da realidade que servirá como objeto da representação no relato que
escreverão quando “todos os fatos forem conhecidos” e eles tiverem finalmente
“conseguido a sua estória diretamente”.
Da mesma forma, a teoria critica contemporânea nos permite acreditar, de
um modo mais confiante do que nunca, que “poetizar” não é uma atividade que
paira sobre a vida ou a realidade, que as transcende ou permanece alienada delas,
mas representa um modo de práxis que serve de base imediata para toda atividade
cultural (sendo esta tanto uma ideia de Vico, Hegel e Nietzsche, quanto de Freud e
Lévi-Strauss), e até mesmo para a ciência. Já não somos obrigados, pois, a acreditar
- como os historiadores do período pós-romântico - que a ficção é a antítese do fato
(como a superstição ou a magia é a antítese da ciência) ou que podemos relacionar
os fatos entre si sem o auxílio de qualquer matriz capacitadora e genericamente
ficcional. Isto também seria uma novidade para muitos historiadores, não
estivessem eles tão fetichisticamente enamorados da noção de “fatos”, e não fossem
tão congenitamente hostis à “teoria”, de forma tal que a presença numa obra his-
tórica de uma teoria formal utilizada para explicar a relação entre os fatos e os
conceitos é suficiente para atribuir-lhes a responsabilidade de terem traído a
sociologia desprezada ou de terem caído na iníqua filosofia da história.
Suponho que toda disciplina, como Nietzsche claramente observou, é
constituída por aquilo que ela proíbe os seus praticantes de fazer. Toda disciplina é
constituída por um conjunto de restrições ao pensamento e à imaginação, e
nenhuma é mais cercada de tabus do que a historiografia profissional - tanto que o
chamado “método histórico” consiste em pouco mais que na obrigação de “obter a
estória diretamente” (sem qualquer noção do que poderia ser a relação da “estória”
148 TRÓPICOS DO DISCURSO

com o “fato”) e de evitar a qualquer preço tanto a sobredeterminação conceituai


quanto o arroubo imaginativo (isto é, o “entusiasmo”).
No entanto, o preço pago é considerável. Ele resultou na repressão do
aparato conceituai (sem o qual os fatos diminutos não podem ser agregados em
macroestruturas complexas nem constituídos como objetos de representação
discursiva numa narrativa histórica) e na remissão do momento poético da escrita
histórica ao interior do discurso (onde ele funciona como um conteúdo não-
reconhecido - e, portanto, nao-criticável - da narrativa histórica).
Os historiadores que fazem uma demarcação nítida entre a história e a
filosofia da história deixam de admitir que todo discurso histórico traz consigo uma
filosofia da história desenvolvida, se não implícita. E isto é tão verdadeiro para o
que se convencionou chamar historiografia narrativa (ou diacrônica) quanto para a
representação histórica conceituai (ou sincrônica). A principal diferença entre a
história e a filosofia da história é que a última leva para a superfície do texto o
aparato conceituai por meio do qual os fatos são ordenados no discurso, enquanto
a história propriamente dita (como ela é chamada) encerra-o no interior da
narrativa, onde serve como um artifício oculto ou implícito formador, exatamente
do mesmo modo como o prof. Frye acha que seus arquétipos se comportam na
narrativa de ficção. A história, pois, não se opõe ao mito como saa antítese
cognitiva, mas representa apenas outra forma mais extrema daquele
“deslocamento” que o prof. Frye analisou na sua Anatomy. Toda história tem o seu
mito; e, se existem modos ficcionais diferentes baseados em arquétipos míticos
identificáveis diferentes, há também modos historiográficos diferentes - formas
diferentes de ordenar hipotaticamente os “fatos” contidos na crônica dos eventos
que ocorrem numa situação específica de tempo e espaço, de tal modo que os
eventos, no mesmo conjunto, são capazes de funcionar diferentemente a fim de
delinear com clareza sentidos diferentes - morais, cognitivos ou estéticos
- em matrizes ficcionais diferentes.
Com efeito, eu diria que estes modos míticos são mais facilmente
identificáveis no texto historiográfico do que no texto literário. Pois os historiadores
costumam trabalhar com uma autoconsciência muito menos linguística (e, portanto,
menos poética) do que os autores de ficção. Tendem a tratar a linguagem como se
fosse um veículo transparente da representação que não traz para o discurso
nenhuma bagagem cognitiva exclusivamente sua. As grandes obras de ficção - se
Roman Jakobson estiver certo - em geral não versarão apenas sobre o seu assunto
presuntivo, mas também sobre a própria linguagem e a relação problemática entre
linguagem, consciência e realidade - inclusive a própria linguagem do escritor.
Grande parte da preocupação dos historiadores com a linguagem se limita ao
esforço de falar com simplicidade, de evitar figuras de linguagem rebuscadas, de
verificar se a persona do autor não pode ser identificada em alguma parte do texto,
e de deixar claro o que significam os termos técnicos, quando ousam utilizar algum.
Evidentemente, não é o caso dos grandes filósofos da história - desde Santo
Agostinho, Maquiavel e Vico até Hegel, Marx, Nietzsche, Croce e Spengler. O
status problemático da linguagem (inclusive os seus próprios protocolos
AS FICÇÕES DA REPRESENTAÇÃO FACTUAL 149

linguísticos) constitui um elemento decisivo no seu próprio apparatus criticus.


Também não é o caso dos grandes escritores clássicos da historiografia - desde
Tucídides e Tácito até Michelet, Carlyle, Ranke, Droysen, Tocqueville e
Burckhardt. Estes historiadores pelo menos tinham uma autoconsciência retórica
que lhes permitia reconhecer que qualquer conjunto de fatos era descritível
variadamente, e também legitimamente, que não existe esta coisa de uma única
descrição original correta de alguma coisa, com base na qual se possa
subsequentemente fazer uma interpretação dessa coisa. Em resumo, reconheciam
que todas as descrições originais de qualquer campo de fenômenos já são
interpretações da sua estrutura, e que o modo linguístico em que é vazada a
descrição original (ou taxonomia) do campo excluirá implicitamente certos modos
de representação e modos de explicação com respeito à estrutura do campo, e
implicitamente sancionará outros. Em outras palavras, o modo privilegiado da
descrição original de um campo de fenômenos históricos (e isto inclui o campo dos
textos literários) já traz em si, implicitamente, uma esfera limitada de modos de
urdidura de enredo e de modos de argumento pela qual se possa revelar o sentido
do campo numa representação em prosa discursiva. Isto é, se a descrição for algo
mais que um registro aleatório de impressões. A estrutura de enredo de uma
narrativa histórica (como as coisas se revelaram o que são) e o argumento formal
ou a explicação do motivo por que as coisas aconteceram ou se revelaram o que
são, são refigurados pela descrição original (dos “fatos” a serem explicados) numa
determinada modalidade predominante do uso da linguagem: metáfora, metonímia,
sinédoque ou ironia.
Quero deixar claro que eu próprio estou utilizando estes termos como
metáforas para as diferentes formas com que construímos campos ou conjuntos de
fenômenos a fim de “desenvolvê-los” em possíveis objetos de representação
narrativa e análise discursiva. Quem quer que originariamente codifique o mundo
no modo da metáfora estará inclinado a decodificá-lo - ou seja, “explicá-lo”
narrativamente e analisá-lo discursivamente - como um amálgama de
individualidades. Para aqueles que não vêem semelhança real no mundo, a
decodificação deve assumir a forma de um desvelamento ou de uma simples
contiguidade das coisas (o modo da metonímia) ou do contraste que jaz oculto em
toda semelhança ou unidade aparente (o modo da ironia). No primeiro caso, a
representação narrativa do campo, construída na forma de um processo diacrônico,
favorecerá, como um modo privilegiado de urdidura de enredo, o arquétipo do
Romance e um modo de explicação que identifica o conhecimento com a
apreciação e o delineamento da particularidade e individualidade das coisas. No
segundo caso, uma descrição original do campo no modo da metonímia favorecerá
uma estrutura de enredo trágica como um modo privilegiado de urdidura de enredo
e uma conexão causai mecanicista como o modo privilegiado de explicação, para
explicar as mudanças esboçadas topograficamente na urdidura do enredo. Da
mesma forma, uma descrição original irônica do campo criará a tendência a
favorecer a urdidura do enredo no modo da sátira e a explicação pragmática ou
contextual das estruturas assim esclarecidas. Por último, para completar a lista, os
150 TRÓPICOS DO DISCURSO

campos originariamente descritos no modo sinedóquico tenderão a produzir


urdiduras cômicas de enredo e explicações organicistas do motivo por que esses
campos se alteram do modo como o fazem80.
Observe-se, por exemplo, que tanto estes grandes conjuntos narrativos
produzidos por historiadores clássicos como Michelet, Tocqueville, Burckhardt e
Ranke, de um lado, quanto as elegantes sinopses produzidas por filósofos da
história como Herder, Marx, Nietzsche e Hegel, de outro, se tornam mais
facilmente relacionáveis entre si se os virmos como vítimas e exploradores do modo
linguístico em que originariamente descrevem um campo de eventos históricos
antes de aplicar suas modalidades características de representação e explicação
narrativa, ou seja, as suas “interpretações” do “sentido” do campo. Além disso, cada
um dos modos linguísticos, modos de urdidura de enredo e modos de explicação
apresenta afinidades com uma posição ideológica específica: anarquista, radical,
liberal e conservadora, respectivamente. O problema da ideologia ressalta o fato de
que não há qualquer modo de valor neutro de urdidura de enredo, explicação ou até
mesmo descrição de qualquer campo de eventos, quer imaginários quer reais, e
sugere que o próprio uso da linguagem implica ou acarreta uma postura específica
perante o mundo que é ética, ideológica, ou política de um modo mais geral: não
apenas toda interpretação, mas também toda linguagem, é contaminada
politicamente.
Ora, em minha concepção, qualquer historiador que simplesmente descreveu
um conjunto de fatos, digamos, em termos metonímicos e em seguida urdiu seus
processos no modo da tragédia e continuou explicando esses processos
mecanicisticamente, para, ao fim, extrair dele implicações ideológicas explícitas -
como o fazem os marxistas mais vulgares e os deterministas materialistas deveria
ser não apenas pouco interessante como também legitimamente rotulado de
pensador doutrinário, que “torceu os fatos” para adaptá-los a uma teoria
preconcebida. A dialética peculiar do discurso histórico - e também de outras
formas de prosa discursiva, talvez até mesmo do romance - provém do empenho do
autor em servir de mediador entre os modos alternativos de urdidura de enredo e
explicação, o que significa, afinal, servir de mediador entre os modos alternativos
do uso da linguagem ou estratégias tropológicas para descrever originariamente um
dado campo de fenômenos e constituí-lo como um possível objeto de representação.
E esta sensibilidade a protocolos linguísticos alternativos, vazados nos
modos da metáfora, metonímia, sinédoque e ironia, que distingue os grandes
historiadores e filósofos da história de seus congêneres menos interessantes. É isso
que torna Tocqueville tão mais interessante (e uma inspiração para muitos e
diferentes pensadores posteriores) que o seu contemporâneo, o doutrinário Guizot,
ou a maioria dos seus seguidores modernos liberais ou conservadores, cujo
conhecimento é maior que o dele e cuja visão retrospectiva é mais extensa, mas
cuja capacidade dialética é muito pouco desenvolvida. Tocqueville escreve sobre a

80 Tentei exemplificar minuciosamente cada uma dessas redes de relação em alguns historiadores no meu livro
Metahistory; The Historical Imaginai ion in Nineteenth-Century Europe (Baltimore e London, 1973).
AS FICÇÕES DA REPRESENTAÇÃO FACTUAL 151

Revolução Francesa, mas escreve de maneira ainda mais significativa sobre a


dificuldade de alcançar uma caracterização objetiva definitiva da complexa.rede
de fatos que abrange a Revolução como uma totalidade apreensível ou como um
todo estruturado. A contradição, a aporia, no coração do discurso de Tocqueville
originou-se de sua percepção de que são possíveis descrições originais, alternativas
e mutuamente exclusivas do que é a Revolução. Ele reconhece que tanto o proto-
colo linguístico metonímico quanto o sinedóquico pode ser utilizado, de modo
igualmente legítimo, para descrever o campo dos fatos que compreendem a
“Revolução” e constituí-lo como um possível objeto do discurso histórico. Ele se
desloca febrilmente entre os dois modos de descrição original, pondo ambos à
prova, tentando atribuí-los a formações intelectuais ou tipos culturais diferentes (o
que ele entende por uma consciência “democrática” é uma transcrição metonímica
dos fenômenos; por consciência “aristocrática” é uma transcrição sinedóquica). Ele
próprio não está satisfeito com nenhum dos modos, embora reconheça que cada um
possibilita o acesso a um aspecto específico da realidade e representa um meio
possível de apreendê-la. Seu objetivo, em última análise, é inventar uma linguagem
capaz de mediar entre os dois modos de consciência que esses modos linguísticos
representam. Esse objetivo de mediação, por seu turno, o impele a pouco e pouco
para o reconhecimento irônico de que qualquer protocolo linguístico dado deverá
obscurecer, tanto quanto revelar, a realidade que ele procura capturar numa ordem
de palavras. Esta aporia ou senso de contradição que reside no próprio coração da
linguagem se acha presente em todos os historiadores clássicos. E esta
autoconsciência linguística que os distingue de seus congêneres e seguidores
mundanos, que pensam que a linguagem pode servir de meio perfeitamente
transparente de representação e que imaginam que, se for encontrada a linguagem
correta para descrever os eventos, o sentido destes se revelará à consciência.
Esta oscilação entre os modos linguísticos alternativos concebidos como
protocolos alternativos descritivos é, diria eu, um traço diferencial de todos os
grandes clássicos da “literatura do fato”. Examinemos, por exemplo, The Origin of
Species81 de Darwin, obra que deve ocupar a posição de um clássico em qualquer
lista dos grandes monumentos desse tipo de literatura. Esta obra que, mais do que
qualquer outra, pretende permanecer no âmbito do fato comum, versa tanto sobre
o problema da classificação quanto sobre o seu assunto aparente, os dados da
história natural. Quer dizer, ela se ocupa de dois problemas: como os eventos
devem ser descritos na qualidade de possíveis elementos de um argumento; e que
tipo de argumento constituem, uma vez descritos dessa forma?
Darwin afirma estar preocupado com uma única questão fundamental: “Por
que todas as coisas orgânicas não estão ligadas num caos inextricá- vel?” (p. 453).
Mas ele pretende responder a esta pergunta em termos particulares. Não quer
sugerir, como sustentaram muitos dos seus contemporâneos, que todos os sistemas
de classificação são arbitrários, isto é, simples produtos da mente dos
classificadores; insiste em dizer que há uma ordem real na natureza. Por outro lado,

81 As citações, no texto, da Origin of Species de Darwin se referem à Dolphin Edition (New York, n. d.).
152 TRÓPICOS DO DISCURSO

não deseja ver nesta ordem um produto de algum poder espiritual ou teleológico. A
ordem que ele procura nos dados deve achar-se, pois, manifesta nos próprios fatos,
mas não de modo a revelar as ações de um poder transcendental. Para estabelecer
esta noção de plano da natureza, ele pretende primeiramente tratar “objetivamente”
todos os “fatos” da história natural fornecidos pelos naturalistas de campo,
criadores domésticos e estudantes do registro geológico - quase da mesma forma
com que o historiador trata os dados fornecidos pelos arquivos. Mas este tratamento
do registro não é mera recepção de fatos; trata-se de uma maneira de lidar com os
fatos com vistas a desacreditar todos os sistemas taxonômicos precedentes em que
foram codificados.
Como Kant antes dele, Darwin insiste em que a fonte de todo erro é a
aparência. A analogia, diz ele repetidas vezes, é sempre um “guia enganoso” (ver
pp. 61, 66, 473). Em comparação com a analogia ou, como eu diria, com as
caracterizações meramente metafóricas dos fatos, Darwin deseja provar as suas
alegações pela existência de “afinidades” reais genealogica- mente construídas. O
estabelecimento destas afinidades lhe permitirá postular a união de todas as coisas
vivas com todas as outras mediante as “leis” ou “princípios” da descendência
genealógica, da variação e da seleção natural. Estas leis e princípios são os
elementos formais de sua explicação mecanicista do motivo por que as criaturas
são arranjadas em famílias numa série temporal. Mas esta explicação não poderia
ser fornecida enquanto os dados permanecessem codificados nos modos
linguísticos da metáfora ou da sinédoque, os modos da conexão qualitativa.
Enquanto as criaturas forem classificadas em função da aparência ou da unidade
essencial, o domínio das coisas orgânicas deve permanecer um caos de ligação
arbitrariamente afirmada ou uma hierarquia de formas superiores e inferiores.
Entretanto, a ciência, como Darwin a entendia, não pode trabalhar com as
categorias “superior” e “inferior”, como não o pode com as categorias “normal” e
“monstruoso”. Tudo deve ser tratado como o que manifestamente parece ser. Coisa
alguma pode ser considerada “surpreendente” e muito menos “miraculosa”.
Há muitos tipos de fatos invocados em The Origin ofSpecies: Darwin fala de
fatos “extraordinários” (p. 301), fatos “notáveis” (p. 384), fatos “capitais” (pp. 444,
447), fatos “desimportantes” (p. 58), fatos “bem estabelecidos” e até fatos
“estranhos” (p. 105); porém não há fatos “surpreendentes”. Todas as coisas, tanto
para Darwin como para Nietzsche, são exatamente o que parecem ser - mas o que
as coisas parecem ser são dados registrados sob a perspectiva de mera contiguidade
no espaço (todos os fatos reunidos pelos naturalistas no mundo todo) e no tempo
(os registros dos criadores domésticos e o registro geológico). Como os elementos
de um problema (ou, antes, de um quebra-cabeça, pois Darwin acha que existe uma
solução para o seu problema), os fatos da história natural existem naquele modo de
relação pressuposto na ação do tropo linguístico da metonímia, tropo favorito de
todo discurso científico moderno (esta é uma dàs distinções fundamentais entre as
ciências modernas e as pré-modernas). A substituição do nome da parte de uma
coisa pelo nome do todo é pré-linguisticamente sancionada pela importância que a
consciência científica concede à mera contiguidade. Considerações sobre a
AS FICÇÕES DA REPRESENTAÇÃO FACTUAL 153

aparência são tacitamente removidas no emprego deste tropo, da mesma forma que
considerações de diferença e contraste. E isso que confere à consciência
metonímica o que Kenneth Burke chama seu aspecto “redutivo”. Existem coisas
em relações contíguas que só são definíveis espacial e temporal mente. Esta
metonimização do mundo, esta codificação preliminar dos fatos em função de
relações meramente contíguas, é necessária para remover dos fenômenos a
metáfora e a teleologia, o que toda ciência moderna busca realizar. E Darwin passa
a maior parte do seu livro a justificar essa codificação, ou descrição original da
realidade, a fim de eximir-se dos erros e da confusão que seu perfil meramente
metafórico produziu.
Mas esta não passa de uma operação preliminar. Darwin então reestru- tura
os fatos - mas apenas ao longo de um eixo da grade de tempo e espaço em que ele
originariamente os dispôs. Em vez de ressaltar a simples contiguidade dos
fenômenos, ele muda as engrenagens, ou antes os modos tropo- lógicos, e começa
por se concentrar nas diferenças - mas em dois tipos de diferenças: as variações
dentro das espécies, de um lado, e os contrastes entre as espécies, de outro. “Os
sistematas”, escreve ele, “[...] só precisam decidir [...] se alguma forma é
suficientemente constante e distinta de outras formas para ser passível de definição;
e, quando é passível de definição, se as diferenças são bastante importantes para
merecer um nome científico”. Mas a distinção entre uma espécie e uma variedade
é apenas uma questão de grau.

Doravante seremos compelidos a reconhecer que a única distinção entre as espécies e as variedades
bem caracterizadas é saber ou acreditar que estas últimas se acham atualmente associadas por gradação
intermediária, ao passo que as espécies estavam anteriormente associadas dessa maneira. Por conseguinte,
sem rejeitar a consideração da existência presente de gradações intermediárias entre duas formas quaisquer,
seremos induzidos a ponderar com mais cuidado e a valorizar mais a extensão real das diferenças entre elas. É
bem possível que formas hoje reconhecidas como simples variedades sejam doravante julgadas dignas de
nomes específicos; e, neste caso, a linguagem científica e a linguagem comum entrarão em acordo. Em suma, teremos
de tratar a espécie da mesma forma que os naturalistas tratam os gêneros, os quais admitem que os gêneros
são apenas combinações artificiais criadas por conveniência. Esta pode não ser uma perspectiva
animadora; mas pelo menos estaremos livres da busca infrutífera da essência não-encontrada e não-
encontrável do termo “espécie” (pp. 474- 475; grifos nossos).

E, no entanto, Darwin introduziu clandestinamente o seu próprio conceito de


“essência” do termo espécie. E fê-lo recorrendo ao registro geológico que, na
esteira de Lyell, ele denomina “uma história do mundo conservada de maneira
imperfeita... escrita num dialeto mutável” e da qual “possuímos apenas o último
volume” (p. 331). Utilizando este registro, ele postula que todas as espécies e
variedades descendem de uns quatro ou cinco protótipos governados pelo que ele
chama “norma” da “transição gradual” (pp. 180 e ss.) ou “o grande princípio da
gradação” (p. 251). A diferença se dissolveu no mistério da transição, de tal modo
que a continuidade na variação é encarada como a “norma” e a descontinuidade
radical ou variação como uma “anomalia” (p. 33). Mas este “mistério” da transição
(ver a sua análise altamente experimental, confusa e truncada dos possíveis “modos
154 TRÓPICOS DO DISCURSO

de transição”, pp. 179-182, 310) não é senão os fatos expostos numa linha temporal,
em vez da espacial, e tratados como uma “série” que permite “imprimir... na mente
a ideia de uma passagem real” (p. 66). Todos os seres orgânicos são então
(gratuitamente, com base tanto nos fatos quanto nas teorias de que Darwin podia
dispor) tratados (metaforicamente no nível literal do texto, mas sinedoquicamente
no nível alegórico) como se pertencessem a famílias ligadas pela descendência
genealógica (através da ação da variação e seleção natural) a partir dos quatro ou
cinco protótipos postulados. Só a sua aversão à “analogia”, diz-nos ele, é que o
impede de dar “um passo adiante, a saber, rumo à crença de que todas as plantas e
animais descendem de algum protótipo único” (p. 473). Mas Darwin chegou tão
perto de uma doutrina da unidade orgânica quanto lho permitiu o respeito aos
“fatos”, na sua codificação original no modo da contiguidade. Ele transformou os
“fatos” de uma estrutura de particulares relacionados de maneira meramente contí-
gua numa sinédoque sublimada. E isto a fim de colocar uma visão nova e mais
confortadora (bem como, segundo ele, mais interessante e abrangente) da natureza
no lugar da visão dos seus oponentes vitalistas.
A imagem que ele por fim oferece - de uma sucessão ininterrupta de gerações
- talvez tenha exercido um efeito perturbador sobre os seus leitores, de vez que
eliminou a distinção entre o “superior” e o “inferior” na natureza (e, em
consequência, na sociedade) e o “normal” e o “monstruoso” na vida (e, portanto,
na cultura). Mas, segundo Darwin, a nova imagem da natureza orgânica na forma
de uma continuidade essencial dos seres gerou a certeza de que nenhum
“cataclisma” jamais “devastou o mundo” e permitiu-lhe antecipar um “futuro
seguro e o progresso rumo à perfeição” (p. 477). Em vez de “cataclisma” podemos
ler evidentemente “revolução”, e em vez de “futuro seguro”, “status quo social”.
Mas tudo isto é apresentado,'não como imagem, mas como fato evidente. Darwin
só é irônico com respeito aos sistemas de classificação que desejavam fundamentar
a “realidade” em ficções que ele não aprovava. Darwin distingue entre os códigos
tropológi- cos “responsáveis” pelos dados e aqueles que não o são. Mas o critério
de responsabilidade pelos dados não é extrínseco à operação pela qual os “fatos”
são ordenados na descrição inicial que faz deles; tal critério é intrínseco a essa
operação.
Vista desse ângulo, mesmo The Origin of Spe.cies, essa summa da “literatura
do fato” do século XIX, deve ser lida como um tipo de alegoria - uma história da
natureza que pretende ser entendida literalmente, mas que apela, em última análise,
para uma imagem da coerência e ordenação que ela constrói apenas por meio de
“desvios” linguísticos. E se isso é verdadeiro para a Origin, quanto mais não será
para qualquer história das sociedades humanas? Na realidade, os historiadores não
estão de acordo quanto a um sistema terminológico para a descrição dos eventos
que eles querem tratar como fatos e engastar nos seus discursos como dados auto-
revela- dores. A maioria das disputas historio gráficas - entre os estudiosos de eru-
dição e inteligência mais ou menos iguais - versa precisamente sobre a questão de
saber qual dentre os muitos protocolos linguísticos deve ser utilizado para descrever
os eventos em controvérsia, e não sobre que sistema explicativo deve ser aplicado
AS FICÇÕES DA REPRESENTAÇÃO FACTUAL 155

aos eventos a fim de lhes revelar o sentido. Os historiadores continuam vítimas da


mesma ilusão que acometeu Darwin, a ilusão de que é possível uma descrição de
valor neutro dos fatos, antes da sua interpretação ou análise. Não foi a doutrina da
seleção natural desenvolvida por Darwin que o recomendou a outros estudiosos de
história natural como o Copérnico da história natural. Essa doutrina foi conhecida
e elaborada muito antes de Darwin desenvolvê-la na Origin. O que se exigiu foi
uma nova descrição dos fatos a serem explicados numa linguagem que sancionasse
a aplicação a eles da doutrina como a forma mais adequada de explicá-los.
O mesmo vale para os historiadores que procuram “explicar” os “fatos” da
Revolução Francesa, o declínio e queda do Império Romano, os efeitos da
escravidão sobre a sociedade americana, ou o sentido da Revolução Russa. O que
está em debate aqui não é a pergunta “O que são os fatos?”, mas, antes, “Como os
fatos devem ser descritos a fim de sancionarem um modo de explicá-los em vez de
outro?” Alguns historiadores insistirão em que a história não será uma ciência
enquanto não encontrar a terminologia técnica adequada à correta caracterização
dos seus objetos de estudo, do modo como a física fez no cálculo e a química nas
tabelas periódicas. Tal é a recomendação dos marxistas, positivistas, cliometricistas
e assim por diante. Outros continuarão a insistir em que a integridade da
historiografia depende do seu uso da linguagem comum, da renúncia ao jargão.
Estes últimos supõem que a linguagem comum é uma salvaguarda contra as
deformações ideológicas dos “fatos”. O que não deixam de reconhecer é que a
linguagem comum tem as suas próprias formas de determinismo terminológico,
representadas pelas figuras de linguagem sem as quais o discurso em si é impos-
sível.
154 TRÓPICOS DO DISCURSO

0 IRRACIONAL E O PROBLEMA DO CONHECIMENTO


HISTÓRICO NO ILUMINISMO

Nos dias de hoje, em toda discussão sobre o pensamento histórico do século


XVIII, é convencional fazer pelo menos um pequeno gesto no sentido de
empreender um novo balanço da acusação, formulada no século XIX, de que o
Iluminismo carecia de sensibilidade histórica. E parecia obrigatório fazer
semelhante gesto num debate acerca do conceito de irracional no pensamento
histórico do século XVIII, pois a acusação do século XIX quanto à sensibilidade
histórica da época decorre, em grande parte, das alegações concernentes à
incapacidade do iluminista de encarar com simpatia qualquer manifestação do
irracional em épocas ou culturas passadas cuja devoção à razão não tenha sido igual
à sua própria. Quero crer, porém, que qualquer análise do pensamento histórico do
século XVIII que parta da suposição de que o século XIX tinhas boas razões para
fazer o tipo de crítica que fez ao século XVIII confia demasiadamente na concepção
dos historiadores do século XIX do que deve ser uma sensibilidade histórica
adequada. Foi Nietzsche quem lembrou à sua época que há diversos tipos de
sensibilidade histórica e que simpatia e tolerância não são necessariamente os
atributos mais desejáveis para todos os historiadores em todas as situações.
Momentos há, disse ele, na vida das culturas tanto quanto na vida dos indivíduos,
em que a sensibilidade histórica “adequada” é marcada mais por um esquecimento
seletivo que por uma recordação indiscriminada. E parte do seu respeito pelo
Iluminismo derivava da sua apreciação da boa vontade deste em praticar a história
“crítica”, em vez da variedade “monumental” e da “anti- quária” que constituíam a
ortodoxia historiográfica de sua própria época.
Para usar a terminologia de Nietzsche, seja-nos permitido dizer que a atitude
do Iluminismo para com o passado era menos a-histórica ou não-his- tórica que
“super-histórica”, inclinada que estava a submeter o passado ao crivo do
julgamento, a dissolvê-lo e, quando necessário, condená-lo no interesse das
necessidades presentes e da esperança de uma vida melhor. Certamente, como até
Nietzsche admitiu, esta propensão a “aniquilar” o passado é tão perigosa em sua
forma quanto a simpatia indiscriminada por coisas velhas pelo simples fato de
0 IRRACIONAL E 0 PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO NO ILUMINISMO 155

serem velhas, que constitui o indício da obsolescência de uma cultura. Pois, uma
vez encetado o trabalho de aniquilação, é difícil impor-lhe um limite e recobrar a
reverência pelas raízes e o respeito pelas virtudes conservadoras sem os quais o
organismo humano não pode sobreviver. Entretanto, em sua época, a atitude super-
histórica do Iluminis- mo foi tão necessária quanto desejável, e sua forte hostilidade
à irracionalidade não deixou de produzir discernimentos históricos significativos.
Sem a sua abordagem exclusivamente “crítica” da história, os iluministas não te-
riam sido capazes de praticar a sua obra de desmantelamento das instituições
decadentes e de descrédito da autoridade de uma tradição que havia muito
degenerara em rotina mecânica. Uma abordagem crítica do registro histórico, tal
como a fornecida pela tradição, era condição prévia do programa dos iluministas
para cultivar uma segunda natureza em lugar da primeira, que, legada pelos seus
predecessores, era a única forma possível que qualquer vida especificamente
humana poderia assumir.
A principal acusação contra os iluministas é que seu racionalismo militante
quebrou qualquer impulso para encarar com simpatia e tolerância as muitas
manifestações do irracional com que depararam nos registros históricos, e
especialmente nos registros da Idade Média e da Antigüidade remota. A acusação
é bastante exata e descreve a abordagem dos melhores pensadores históricos da
época na corrente principal do racionalismo - Bayle, Mon- tesquieu, Voltaire,
Robertson, Hume e Gibbon embora não faça justiça aos representantes da
convenção variante - Leibniz, Vico, Mõser e Herder. Mas, sendo um juízo que
atribui uma limitação fundamental à consciência histórica dos racionalistas, ela
suscita implicitamente a questão dos usos a cujo serviço devem ser postos o
conhecimento em geral e o conhecimento histórico em particular. Esta questão é
meía-historiográfica - ligada que está ao valor que se atribui ao estudo
desinteressado do passado - e não pode, pois, ser adjudicada a partir do próprio
pensamento histórico. O modo de abordar o passado, a postura assumida diante
dos dados da história, a voz com que se relatam as descobertas feitas sobre o
passado, a relação entre as capacidades de tolerância de uma pessoa e o interesse
de alguém em interpretar e criticar - tudo isso é função de uma decisão metó-
historiográfica, e especificamente ética, no concernente aos usos a serviço dos
quais deve ser posto o conhecimento de alguém. É verdade que os pensadores
históricos do século XVIII tendiam a superestimar o irracional como fator causai
no processo histórico e a subestimá-lo como possível fonte de força social criativa.
Mas, se não eram tolerantes para com o que nós já não consideramos irraci-
onalidade, mas antes fé, eles foram culpados apenas de um juízo equivocado; seu
instinto era por demais sadio. O importante não é saber se deixaram de distinguir
entre não-razão e fé, mas que percepções criticas da natureza da existência histórica
lhes proporcionou o seu fracasso em fazer adequadamente essa distinção.
Não que o século XVIII não estivesse familiarizado com a forma men- tis
que, no século XIX, iria triunfar na forma de historicismo e que, no caso,
estabeleceria que tolerância e simpatia para com todas as coisas do passado,
racionais e irracionais, era um cânone inconteste de ortodoxia no pensamento
156 TRÓPICOS DO DISCURSO

histórico. Na filosofia de Leibniz, por exemplo, deparamos com atitudes que não
só dotam o irracional de um valor específico, mas também suprimem simplesmente
a distinção entre razão e irracionalidade como critério de avaliação. Na
Monadologia (1714), o próprio conceito de irracional é descartado como categoria
do ser histórico significativo, porquanto a noção de irracionalidade intrínseca teria
indicado alguma inadequação na Criação e portanto, por implicação, no Criador. A
doutrina da continuidade de Leibniz, com suas ideias cognatas de raciocínio
analógico na epistemo- logia e de evolução na ontologia, cria a concepção de
transição gradual de uma localização espacial a outra e de um instante temporal a
outro, que, efetivamente, nega a adequação de qualquer caracterização do mundo
em termos de oposições. Do mesmo modo, em seu conceito de natureza humana,
Leibniz não vê qualquer descontinuidade entre os atributos físicos e espirituais dos
homens, entre diferentes tipos de homem ou entre diferentes estados espirituais dos
homens. Assim como a própria noção de homem “monstruoso” era uma anomalia,
refletindo mais uma falha de conhecimento ou de imaginação no conhecedor do
que uma inadequação na coisa conhecida, assim também a noção de homem
inerentemente “irracional” refletia uma falha de conhecimento ou uma concepção
inadequada da natureza humana. Contíguo no espaço, contínuo no tempo: tais eram
os pressupostos da noção de processo histórico que Leibniz introduziu nas suas
tentativas de escrita histórica. Assim, a forma “analítica” de representação histórica
que ele promoveu era mais que um artifício para organizar mecanicamente o campo
histórico: refletia a ordem do ser no tempo, a evolução gradual, essa continuidade
do processo histórico da qual o próprio cosmo era um equivalente espacial.
As implicações desse conceito de história só foram plenamente formuladas
durante as duas últimas décadas do século XVIII, particularmente por Herder, cujo
Ideen zur Philosophie der Geschichte des Menschheits veio a lume entre 1784 e
1791. Entre 1714, o ano da Monadologia de Leibniz, e a década de 1780, a doutrina
da continuidade, o conceito de evolução e o princípio do raciocínio analógico
haviam passado por dias ruins, não apenas na filosofia natural, da qual haviam sido
banidos por Newton e Locke, mas igualmente na historiografia. Seu retorno à
historiografia com Herder, porém, não só assinala o renascimento de uma
sensibilidade histórica genuína, mas também marca uma importante transição de
uma forma de pensamento histórico para outra, uma transição da historiografia
“crítica” do Iluminismo para o “pietismo” histórico do século XIX. Semelhante
transição só pode ser considerada como um progressus absoluto para aqueles que
não acreditaram na distinção nietzschiana entre as diversas maneiras de abordar o
campo histórico.
Mesmo Cassirer, que esteve entre os primeiros a se opor à ideia de que o
Iluminismo carecia de sensibilidade histórica, ressaltou a natureza revolucionária
do ataque de Herder ao “pensamento analítico e ao princípio de identidade” que -
na opinião de Cassirer - impedira o desenvolvimento de uma historiografia
completamente tolerante ao longo da maior parte do século anterior. Herder, diz
Cassirer, “desfaz a ilusão de identidade”; para ele, nenhuma coisa é realmente
idêntica a qualquer outra, nada retorna da mesma forma. Para Herder,
0 IRRACIONAL E 0 PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO NO ILUMINISMO 157

a história produz novas criaturas em sucessão ininterrupta, c a cada uma ela confere como direito inato
uma forma única e um modo independente de existência. Toda generalização abstrata é, pois, impotente
com respeito à história, e nem uma norma genérica nem qualquer norma universal podem abranger a
sua riqueza.

Mas, por revolucionária que possa ter sido esta aplicação da doutrina da
continuidade, ela não autoriza a concluir que, como acreditava Cassirer, a
sensibilidade histórica da época seguinte foi absolutamente superior à dos
racionalistas do século XVIII. Pois o tipo de pensamento de Herder não só
dissolveu a distinção entre o “exótico” e o “familiar”, mas também suprimiu a
distinção entre o racional e o irracional, sem a qual a historiografia “crítica” não
pode ser prática de maneira nenhuma.
Para Herder, tudo na história é igualmente exótico ou igualmente familiar,
vale dizer, igualmente digno de ser encarado como apenas mais uma manifestação
da maravilhosa capacidade humana de sobrevivência, ajustamento, acomodação,
desenvolvimento ou adaptação. Para Herder, a própria existência é um valor. Ele
se encanta com o fato de que “o que pode ocorrer em alguma parte, ocorre; o que
pode atuar, atua”. E, com base neste fato, é- Ihe permitido advertir os seus leitores
contra qualquer “consideração” sobre a história de um tipo “previdente ou
retrospectivo”. “Tudo o que pode ser, é”, diz ele reiteradas vezes; “tudo o que pode
vir a ser, será, se não hoje, amanhã. [...] Todas as coisas que poderiam florescer
sobre a terra o fizeram, cada uma no seu próprio tempo e ambiente; elas feneceram,
e tornarão a florescer quando o seu tempo chegar”.
Herder não se coloca acima do registro histórico, nem se arvora o direito de
julgar o que for neste registro. Não tem nem mais nem menos respeito pelos
romanos do que pelos nativos desmazelados do Sul da Califórnia, dos quais teve
informação pelos missionários enviados àquelas praias exóticas. Estes
californianos, que mudam de moradia “umas cem vezes por ano”, que dormem a
qualquer hora e em qualquer lugar “sem prestar a menor atenção à imundície do
solo e sem tentar se proteger dos vermes nocivos”, e que se alimentam de sementes
que, “quando oprimidos pela miséria, colhem com os dedos do próprio
excremento” - estes humildes californianos não são nem melhores nem piores que
os mais nobres dos romanos. Ambos foram, como ele diz especificamente dos
romanos, “exatamente aquilo que eram capazes de se tornar: todas as coisas
perecíveis que lhes pertenciam pereceram, e o que era suscetível de permanência
permaneceu”. Assim, na história como na natureza, Herder conclui, “tudo, ou
nada, é fortuito; tudo, ou nada, é arbitrário. ... Este é o único método filosófico de
contemplar a história e foi praticado, mesmo inconscientemente, por todas as
mentes pensantes”.
E desnecessário dizer que, para Herder, nada é fortuito, nada é arbitrário; e
nada - nem mesmo o ato mais irracional - deixa de ter suas razões para ser
exatamente o que foi na época e no lugar em que ocorreu.
Esta postura pietista diante do evento histórico particular - diante do
irracional como diante do racional na natureza humana - difere radicalmente da
atitude irônica vigente na principal linha do pensamento histórico do século XVIII
158 TRÓPICOS DO DISCURSO

de Bayle a Gibbon. Isto não significa que aos racionalistas faltava totalmente a
simpatia pela humanidade irracional, ou que eram totalmente incapazes de
tolerância para com a irracionalidade do homem, tão amplamente exibida no
registro histórico. Em geral, o ceticismo dos iluministas os resguardou muito bem
da tendência de contrapor a loucura dos homens do passado à pretensa sabedoria
dos seus contemporâneos. Esse tipo de maniqueísmo simplório, para o qual a razão
e a loucura eram estados mentais opostos e mutuamente exclusivos, é encontrado
entre racionalistas doutrinários como Turgot e Condorcet; mas, entre os melhores
historiadores na tradição racíonalísta - Voítaire, Hume, Gibbon tal maniqueísmo
tem a função mais de um artifício retórico do que de uma concepção da relação
entre razão e irracionalidade na humanidade de todos os tempos e de todos os
lugares.
Como historiadores, os iluministas tendem em geral a fundamentar a sua
apreensão da loucura - e, por conseguinte, os seus juízos sobre ela - na situação em
que ela se manifesta. Na sua História de Carlos XII, por exemplo, Voltaire
distingue de maneira muito rigorosa e consistente entre o tipo de cálculo
equivocado que levou Carlos a empreender a conquista da Rússia e a loucura mais
profunda que se refletia nas suas tentativas de alcançar glória através de conquista.
Diferentemente da Filosofia da História, que é marcada pela tendência a conceber
o conflito entre razão e irracionalidade (ou entre charlatanismo e estupidez) em
termos maniqueístas, a História de Carlos XIí faz uma sutil distinção entre certo
número de diferentes tipos de irracionalidade na carreira de Carlos. E possível que
Voltaire se compraza em expor a estupidez assim do passado como do presente,
porém essa epopeia do escárnio (como a chamou Lionel Gossman em sua brilhante
análise desse trabalho como obra de arte) é entremeada de simpatia por um
soberano cuja razão era insuficiente para orientá-lo no sentido de utilizar os seus
talentos mais para fins pacíficos que militares. Os trechos em que Voltaire descreve
a morte de Carlos nas trincheiras de Frederikshall e extrai a moralidade de uma
vida dissipada na busca da glória militar são dignos de comparação com qualquer
coisa produzida pelos historiadores do século seguinte. O objetivo didático é
patente, mas os juízos, sendo juízos especificamente históricos, são irrepreensíveis.
E se tornam mais convincentes graças ao melancólico reconhecimento de que nem
o talento por si só nem a razão de um certo tipo constitui suficiente garantia contra
o poder da loucurá. Voltaire, assim como Bayle, sentia um prazer perverso em
catalogar a extensa gama de formas que a loucura poderia assumir; mas esta própria
apreensão das formas que a irracionalidade poderia tomar o leva no final ao
reconhecimento de que a loucura poderia predominar na natureza humana com o
passar do tempo. E o seu conhecimento do poder da loucura até mesmo sobre os
homens dotados dos mais extraordinários talentos resguardou Voltaire do otimismo
ingênuo que uma fé racionalista doutrinária no poder da razão fomentou em
pensadores como Turgot. E o mesmo se pode dizer de Hume e Gibbon.
A meu ver, as causas dos fracassos dos iluministas, bem como dos seus
êxitos como historiadores, não devem ser buscadas numa incapacidade qualquer
de compreender o irracional na história, ou mesmo de simpatizar com ele e de
0 IRRACIONAL E 0 PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO NO ILUMINISMO 159

tolerá-lo. Encontram-se, antes, na sua incapacidade de conceber o conhecimento


histórico em geral como um problema. Quando escrevem sobre a questão do
conhecimento histórico ou da escrita da história, tanto Bayle quanto Voltaire
tendem a traçar linhas divisórias com demasiada rigidez entre história, de um lado,
& fábula, de outro. Reconhecendo embora que a “história, de um modo geral, é a
composição mais difícil que um autor pode empreender”, Bayle parece pensar que
a principal exigência para escrever uma boa história é o desejo de dizer a verdade.
Dessa forma, no artigo “Talento Histórico” de seu Dictionnaire historique, Bayle
afirma: “Observo que, sendo a verdade a alma da história, é essencial para uma
composição histórica livrar-se das mentiras; de sorte que, embora apresente todas
as outras perfeições, ela não será uma história, porém mera fábula ou conto, se lhe
faltar a verdade”. Mas a vontade de estabelecer a verdade é um princípio
metodológico insuficiente para a criação de uma história adequada. Os grandes
“antiquários” da época, homens como Muratori e Curne de la Sainte- Palaye,
parecem ter reconhecido esta verdade quando ressaltaram a necessidade de
testemunhos filológicos, epigráficos e numismáticos para a avaliação adequada dos
registros documentários. Mas, nem mesmo eles avaliaram a dificuldade de escolher
entre vários e diferentes relatos possíveis do passado, e aparentemente não tinham
de modo algum uma ideia do problema de, num relato narrativo, traduzir uma
apreensão do passado numa descrição plausível.
O pirronismo histórico que floresceu no início do século XVIII, e que
poderia ser utilizado parã justificar a escrita da histoire galante ou romanes- que,
de um lado, e o que Bayle e Voltaire chamavam história satírica, de outro, foi
efetivamente demolido pelas realizações dos antiquários ao reconstruírem uma
verdadeira.crômca das épocas passadas. Mas a tradução de uma crônica numa
história requeria mais que erudição, e requeria mais que conhecimento ampliado
pelo senso comum. O conhecimento por si só poderia produzir o que Nietzsche
chamou de historiografia “antiquaria”, necessária para promover as capacidades
humanas de reverência e respeito às raízes da cultura e da sociedade humana; e o
senso comum poderia promover aquela historiografia “monumental” que inspirou
ações heróicas no interesse de um futuro melhor. Porém alguma coisa mais era
requerida se o conhecimento histórico devesse contribuir para o esforço de
“distanciar” o passado, um ato necessário para a avaliação adequada das
possibilidades presentes. Voltaire estava na pista certa quando, na Filosofia da
História, insistia no direito da razão em submeter o registro histórico à crítica, à
luz da ciência corrente, no direito da inteligência crítica de tratar as crenças
passadas com o desprezo requerido pelas exigências do presente. No entanto, nem
mesmo ele foi capaz de avaliar a ambiguidade das mensagens que o passado
transmitiu ao presente na forma de documentos e registros históricos.
O insucesso desta época na avaliação da problemática do conhecimento
histórico é mostrado claramente na obra do Abbé de Mably. No seu De la manière
de 1’écrire Vhistoire (1782), uma obra que critica extremamente o elemento
irônico nas histórias de Voltaire, Hume e Robertson, Mably afirma que o “caráter”
é a base definitiva da boa historiografia. Os historiadores não se fazem, já nascem
160 TRÓPICOS DO DISCURSO

feitos, diz ele. Segundo Mably, o principal problema do historiador, uma vez
consumada sua investigação do relato histórico, era escolher entre as estruturas de
enredo da comédia e da tragédia para descrever os eventos do passado dignos de
figurar numa história escrita. E, na sua análise desse problema, Mably admite,
como a maioria dos seus contemporâneos parecem ter feito, que as normas da
retórica e da poética clássicas são suficientes para a sua resolução. Todas as
manifestações históricas de heroísmo e vilania, do bem e do mal, ou da razão e da
loucura poderiam ser aproximadas e tecidas numa história edificante e de interesse
humano geral pela aplicação dos princípios narrativos contidos nos modelos clássi-
cos comprovados. A sabedoria era necessária para a escolha do modelo a ser usado
num exemplo específico, mas, na visão de Mably, já se nascia sábio ou não. A
habilidade era o requisito básico para saber como “narrar” os eventos de maneira
apropriada.
Os conselhos de Mably sobre o modo de escrever história revelam uma
importante pressuposição latente na historiografia do Iluminismo, uma contradição
que obstruiu o empenho dos seus melhores historiadores em lidar com os principais
problemas da representação histórica, quer do irracional, quer de qualquer outra
coisa. Esta contradição decorre da sujeição dos historiadores do Iluminismo às
regras da retórica e poética clássicas como metodologia da representação histórica,
e de uma suspeição simultânea da linguagem figurativa e do raciocínio analógico
requeridos para a sua aplicação adequada. Voltaire ainda vê a historiografia em
termos clássicos; ela é a filosofia que ensina pelo exemplo, mais imageticamente,
por assim dizer, que pela lógica discursiva. Ao mesmo tempo, porém, ele exclui
explicitamente a linguagem figurativa dos instrumentos apropriados para transmitir
o sentido de um relato histórico. Assim, escreve no seu Dicionário Filosófico:
“Imaginação ardente, paixão, desejo - por vezes frustrados - criam o estilo
figurativo. Não o admitimos na história, pois metáforas em demasia são danosas,
não só à clareza mas também à verdade, por dizerem mais ou menos do que a
própria coisa”. E na sua análise dos tropos poéticos ele critica os Padres da Igreja
pelo uso excessivo que delas fazem, o que, no seu entender, leva mais à fabulação
que a uma representação da verdade. A linguagem figurativa só pode ser utilizada
com propriedade na poesia, diz ele; e cita Ovídio como um poeta que se vale das
figuras e dos tropos de maneira a não “frustrar” ninguém.
O que Voltaire e a maioria dos iluministas não viram foi que a linguagem
figurativa é justamente um meio que tanto pode exprimir uma verdade apreendida
de maneira incompleta quanto dissimular um erro ou uma falsidade reconhecidos
de modo incompleto. A distinção rígida entre a linguagem figurativa para efeitos
poéticos e a representação em prosa discursiva para relatar a verdade das coisas
impediu os iluministas de considerar seriamente as fábulas, lendas e mitos que
chegaram até eles como sendo as verdades pelas quais os homens das épocas
passadas tinham vivido. Os iluministas não consideraram as paixões ou a
imaginação como elementos expun- gíveis da natureza humana, a serem
contrapostos à razão como seus inimigos; ao contrário, o que buscavam era um
equilíbrio judicioso da razão e das emoções na criação de uma humanidade justa.
0 IRRACIONAL E 0 PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO NO ILUMINISMO 161

Mas tendiam a compartimen- talizar a psique de um modo que os levava a fazer


severas distinções entre a área de expressão legítima da imaginação, de um lado, e
o domínio adequado da razão, de outro. E esta compartimentalização da psique
obstou-lhes a compreensão dos modos pelos quais a razão e a imaginação poderiam
funcionar parelhas como guias da atividade prática e instrumentos da compreen-
são. Por isso, em sua contemplação dos testemunhos do passado remoto, não viram
que a verdade poderia estar contida na fábula, e a fábula na verdade, em
civilizações cujos compromissos com a razão não eram tão plenamente
desenvolvidos quanto o deles próprios.
Peter Gay afirmou recentemente que, quaisquer que tenham sido as li-
mitações da sensibilidade histórica dos iluministas, na distinção que fizeram entre
pensamento mítico e pensamento científico eles anteciparam as modernas histórias
científicas da cultura produzidas por nossa época. Mas essa distinção não era
exclusiva do pensamento iluminista; era tão antiga quanto a filosofia grega e serviu
de esteio até para a teologia cristã durante o período patrístico. Seja como for, as
modernas teorias científicas da cultura dependem tanto do conceito das
semelhanças funcionais entre pensamento mítico e pensamento científico quanto
das diferenças formais reconhecíveis entre eles. Uma vez estabelecida a distinção
entre pensamento mítico e pensamento científico, o fracasso dos iluministas residiu
na sua incapacidade de ver que estes poderiam entrelaçar-se como fases da história
de uma cultura, sociedade ou consciência individual únicas. Enquanto
identificassem o “fabuloso” com o “irreal” e não vissem que a própria fabulação
poderia servir de meio para a apreensão da verdade acerca da realidade e que não
era apenas uma alternativa para semelhante apreensão, ou um adorno dela, jamais
obteriam acesso àquelas culturas e estados mentais em que a distinção entre o
verdadeiro e o falso não haviam sido feita da maneira tão clara como esperavam
fazer.
Em outras palavras, imaginar que o fabuloso era o oposto do verdadeiro era
bastante legítimo enquanto princípio para caracterizar as diferenças entre uma
apreensão estética da realidade e uma compreensão científica ou filosófica desta
mesma realidade. Mas, quando tratada como um princípio da psicologia, ou da
epistemologia, tal oposição anulava qualquer esforço no sentido de buscar a base
em que as mediações entre elas poderiam ser realizadas. A verdade e a fábula não
são mais opostas do que a ciência e a poesia, e transformar o verdadeiro e o
fabuloso nas categorias de um método histórico é tão perigoso quanto a oposição
da razão à imaginação numa teoria psicológica ou numa teoria do conhecimento. E
a marca de gênio de Vico foi perceber as falácias contidas nessas oposições e tentar,
na Ciência Nova (primeira edição, 1725; edição definitiva, 1744), oferecer um
método histórico em que o princípio da distinção suplantasse as tendências
reducionistas nas abordagens leibnizianas e lockianas do estudo da consciência
humana.
Na Ciência Nova, Vico critica Bayle por promover a crença de que as nações
poderiam desenvolver-se e prosperar sem nenhuma crença em Deus; mas é o tipo
de ceticismo sobre as crenças dos povos primitivos em geral, fomentado pelo
162 TRÓPICOS DO DISCURSO

racionalismo de Bayle, que constitui o alvo principal do livro de Vico. A


consciência histórica da sua própria época, acreditava Vico, fora formada por
concepções equívocas acerca dos primitivos que produziram duas presünções: a
dos “eruditos”, que tendiam a admitir que os primeiros povos devem ter possuído
o mesmo conhecimento que possuíam os eruditos, e a das “nações”, que admitia
que os povos primitivos devem ter conduzido os seus negócios da forma como o
fazem os povos plenamente civilizados. Estas duas presünções permitiram aos
filósofos solucionar o problema histórico, que é explicar de que forma a
humanidade poderia ter vivido com base em princípios diferentes dos
reverenciados no presente, pela simples negação de que o problema existisse: pela
simples afirmação de que o homem primitivo devia ter solucionado os seus
problemas da mesma forma, e pelos mesmos meios, que os homens modernos. Isso,
por sua vez, gerou a convicção de que todos os testemunhos originais - orais,
escritos ou monumentais - acerca do estilo de vida dos povos antigos, testemunhos
que eram uniformemente “fabulosos”, eram produtos de erro ou de duplicidade.
Entretanto, afirmava Vico, tal suposição ofendia a própria razão, que
ensinava não poderem a humanidade em geral e a sociedade em particular ter
sobrevivido se tivessem os seus fundamentos apenas no erro e no engano. Deve ter
havido alguma adequação da crença mítica à realidade, do contrário a humanidade
pagã não poderia ter-se elevado da condição de selva- geria para a de civilização.
E isto sugeria a possibilidade de um terceiro tipo de conhecimento entre o
literalmente verdadeiro e o fabuloso, com base no qual a relação entre a consciência
primitiva e o mundo poderia ser mediada e a adequação de uma ao outro
progressivamente compreendida.
Esta terceira ordem de conhecimento, que é uma combinação da verdade e
do erro ou, preferentemente, uma meia-verdade tratada como verdade certa para
propósitos práticos, constitui uma espécie do que chamaríamos de fictício num
sentido preciso. O que Vico faz é transformar a noção do fabuloso num conceito
genérico, geralmente descritivo da consciência, do qual o literalmente verdadeiro
e o poético são espécies. Se admitirmos o uso da noção do fictício como um meio
de designar a natureza geral da consciência humana, poderemos então considerar
o verdadeiro e o fabuloso como maneiras apenas diferentes de significar a relação
da consciência humana com o mundo com que ela depara em diferentes graus de
certeza e compreensão. Para Vico, o fictício é a criação inconsciente de hipóteses
do tipo atribuído por Aristóteles aos poetas; a “poesia” figura a realidade. E sua
conceituação da noção de “sabedoria poética” do homem primitivo como forma de
protociência lhe permite suprimir a distinção entre o verdadeiro e o fabuloso que
obstou aos racionalistas a compreensão das épocas não-dotadas de um
compromisso com a racionalidade compatível com o deles próprios.
Em vez de contrapor a imaginação à razão como um modo oposto de
apreender a realidade, e a poesia à prosa como um modo oposto de repre- sentá-Ia,
Vico argumenta era favor de uma continuidade entre elas. Esta conceituação da
consciência lhe proporciona um meio de reconceber a relação entre o irracional e
o racional na vida da cultura. Permite-lhe também ver na filosofia não uma
0 IRRACIONAL E 0 PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO NO ILUMINISMO 163

alternativa às verdades originariamente apreendidas em formas poéticas, mas


apenas um modo diferente de falar dessas verdades. Invertendo a relação entre a
imaginação e a razão, e vendo na primeira a base necessária da segunda, Vico
consegue abrir caminho para um entendimento dos mitos e fábulas em que as
culturas mais antigas exprimiram as suas experiências vividas dos mundos que
habitaram.
Diferentemente, pois, de Leibniz, que tendia a situar todas as coisas no
mesmo plano ontológico e, com isso, eliminar a distinção entre o racional e o
irracional na vida, Vico fornece um meio de ao mesmo tempo distinguir entre as
manifestações irracionais e as racionais da consciência e, depois, uni-las no tempo
como se fossem estágios de um único processo evolutivo. O mecanismo que dirigia
este processo evolutivo não era, segundo ele, racional nem irracional de per si, mas
um fator pré-racional, exclusivo do homem, que servia de agente mediador entre a
mente e o corpo, de um lado, e entre a consciência humana e o seu ambiente, de
outro. Este agente mediador era a fala, que, na relação dialética entre as suas
capacidades de articulação poética e de representação prosaica, fornece o modelo
para a compreensão da evolução humana em geral.
A diferença mais significativa entre a primeira edição da Ciência Nova
(1725) e a última (1744) foi a ampliação do debate dos aspectos criativos da
linguagem. Na primeira edição, Vico faz pouco mais que asseverar que a lin-
guagem é a chave para o entendimento da construção, feita pelo homem primitivo,
de um mundo em que ele possa se sentir em casa. Nas edições posteriores, porém,
explica de que modo a linguagem poética poderia ter servido de base para o
confinamento do homem primitivo a um mundo natural que lhe deve ter parecido
estranho e ameaçador em todos os seus aspectos. Foi pela projeção metafórica da
sua própria natureza nesse mundo, teoriza Vico, que o homem primitivo conseguiu
humanizá-lo progressivamente. Identificando as forças da natureza como espíritos
semelhantes ao homem, o homem primitivo inventou a religião. Por meio das
progressivas reduções tro- pológicas dessas forças - mediante a metonímia e a
sinédoque, principalmente - os homens primitivos chegaram pouco a pouco à
compreensão da sua natureza divina. Então, pelo tropo da ironia, chegaram a uma
percepção da possibilidade de distinguir entre verdade e erro na conceituação do
mundo natural e da sociedade. Dessa forma, a ciência e a filosofia se tornaram
possíveis mediante uma percepção da natureza da relação entre a consciência e a
realidade ditada pela poesia; elas não deviam ser consideradas como criações da
razão, mas antes como produtos da consciência poética e especificamente
tropológica. Dessa forma, na relação entre a imaginação e a razão pode-se conceber
tanto uma relação temporal quanto uma relação ontológi- ca, estando uma contida
na outra em vez de se lhe opor.
Essas intuições da linguagem e da consciência não só permitiram a Vico
eliminar a oposição entre verdade e fábula e julgar o fictício um terceiro plano entre
elas, mas também lhe permitiu conceber a teoria da linguagem como a metodologia
para compreender a função do mito e da fábula nas culturas primitivas e arcaicas.
Foi esta a base do seu ataque ao método filológico da historiografia antiquária dessa
164 TRÓPICOS DO DISCURSO

época, segundo a qual era suficiente conhecer a história das palavras e as suas
etimologias, sem investigar o problema mais fundamental da função da linguagem
no processo da civilização.
A indiferença dos iluministas para com os tipos de questão que Vico trouxe
à baila ajuda a iluminar alguns pressupostos significativos do pensamento deles.
Um modo de caracterizar o pensamento de uma época é identificar as questões que
os seus pensadores representativos levantam consis- tentemente. Uma questão
levantada pelo Iluminismo foi a da natureza do conhecimento histórico - não a
questão do que aconteceu nem o sentido do processo histórico, mas a questão de
saber de que forma é possível o conhecimento histórico. Foi isto o que eu quis dizer
quando afirmei que a história como tal não era um problema para os iluministas.
Prova disso é que a linguagem não era um problema para eles. Não quer dizer que
não estudassem as línguas nem reconhecessem a importância da linguagem na
evolução da cultura, mas antes que não consideravam a linguagem em si, com o
seu poder de iluminar ou de obscurecer, como um problema. E isto limitou de modo
fundamental sua capacidade de compreender os modos de expressão de culturas
radicalmente distintas da deles.
Na medida em que se considerava suficiente para o historiador apenas
aprender a língua em que os documentos do passado haviam sido escritos, em vez
de penetrar os modos de pensamento refletidos em convenções linguísticas
distintas, a mente das épocas passadas tinha de continuar inacessível a qualquer
coisa que se aproximasse da plena compreensão das suas operações. A preferência
dos iluministas pela história recente, em oposição à remota, refletia, pois, uma
habilidade louvável. Enquanto se ocupavam de culturas não muito dessemelhantes
da sua própria, produziam uma historiografia como a História de Carlos XII, O
Século de Luís XIV ou Declínio e Queda do Império Romano, que era tão boa
quanto qualquer coisa criada pelos historiadores que viveram depois. Quando
tentavam ocupar-se de épocas e culturas radicalmente diferentes, tendiam a
superestimar ou a subestimar a sua originalidade e singularidade, como fez Gibbon
com Bizâncio, Winckelmann com a Grécia, Robertson com a América e Hume com
a Idade Média. Quando descobriram coisas admiráveis nessas épocas e culturas
remotas, inclinavam-se a moderar sua admiração com benigna ironia. Quando
deparavam com coisas que desprezavam, inclinavam-se simplesmente a censurá-
las, em vez de tentar compreender-lhes as funções em mundos diferentes do deles
próprios. Seu fracasso residia na relutância em acreditar plenamente na sua
capacidade prodigiosa de identificação poética com o diferente e o estranho. Não
confiavam em seus próprios poderes oníricos. Porém, dada a tarefa que se haviam
imposto, qual seja, a de desacreditar qualquer instituição ou ideia que dificultasse
a construção de uma sociedade justa na sua própria época, esta era uma decisão
legítima. Pois, como disse Nietzsche, nem sempre é uma decisão criativa procurar
compreender quando a situação exige a critica, ou demonstrar tolerância quando o
que se requer é uma afirmação dos direitos do presente sobre as reivindicações do
passado.
Vico permaneceu ignorado durante todo o século XVIII, não apenas porque
0 IRRACIONAL E 0 PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO NO ILUMINISMO 165

o seu pensamento era particularmente complexo, mas porque os pensadores mais


progressistas da época não poderiam, em vista de seu objetivo, dar-se ao luxo de
conceber o conhecimento histórico em geral um problema. Os pensadores
históricos da linha de frente do racionalismo — Bayle, Montesquieu, Voltaire,
Hume e Gibbon - estavam empenhados numa operação de limpeza do terreno em
nome de um ideal que requeria~forçosamente que as relações culturais
fundamentais fossem concebidas mais em função de oposições que de
continuidades ou de sutis gradações. Sua obra mais criativa era mais crítica que
construtiva, dirigida contra o irracionalismo fosse qual fosse a forma que ele
assumisse, quer como superstição ou ignorância, quer como tirania, emoção, mito
ou paixão. Estavam interessados em ver no passado (e principalmente o passado
remoto) o oposto daquilo que valorizavam no seu próprio presente, e não a base
dele. Vico parecia subordinar a razão à irracionalidade, torná-la uma forma
aprimorada da irracionalidade, cujos produtos eram essencialmente idênticos aos
criados pela irracionalidade. Mas, se os philosophes tivessem alimentado
seriamente a ideia da identidade da razão com a irracionalidade na consciência em
qualquer nível, sua obra crítica teria sido solapada desde o início.
As implicações essencialmente conservadoras do sistema de Vico entraram
em conflito com os interesses conscientes dos filósofos racionalistas da história e
dos seus congêneres na historiografia. Vico havia de ser ignorado ou descartado
pelas mesmas razões por que Leibniz havia de ser rejeitado e satirizado. Poder-se-
ia reconhecer que seu sistema fazia mais justiça aos fatos da história, mas o que os
iluministas procuravam não era tanto a justiça quanto a verdade. A justiça era o que
se procurava para os homens vivos, e a justiça para os homens vivos poderia ser
provida em parte se aqueles resíduos do passado ainda vivos no presente fossem
submetidos ao crivo do julgamento, se fossem expostas suas bases irracionais e a
irracionalidade acarretada pela fidelidade prolongada a elas e fossem relegadas a
um passado que estava efetivamente morto, um objeto apropriado ao interesse de
antiquários, porém nada mais que isso.
Entretanto, o ceticismo radical da época, ceticismo que existiu paralelamente
a uma devoção consciente à razão, destruía, em última análise, a fé na razão que
ele originariamente promovera na sua função exclusivamente critica perante a
tradição e o costume. A própria razão, a razão hipostatiza- da, não poderia continuar
por muito tempo isenta de segundas intenções sobre a irracionalidade de sua
própria hipostatização que o ceticismo inevitavelmente inspirava. Podemos
observar no melhor pensamento histórico da época, e especialmente em Hume, um
crescente reconhecimento das limitações de uma visão histórica cujo principal
objetivo era o desmascaramento da loucura do passado. A abordagem irônica da
história por Hume produz o ennui, cria e dissolve a convicção que originariamente
a inspirou de que os homens da época presente progrediram de maneira absoluta
para além da irracionalidade característica dos seus ancestrais remotos.
De fato, Hume foi forçado a concluir que a relação da loucura com a razão
em sua própria época não se havia alterado de modo significativo em relação ao
que fora em diferentes épocas no passado, que a única mudança ocorrera nas
166 TRÓPICOS DO DISCURSO

formas que a razão e a irracionalidade assumiram com o tempo. Gibbon ainda era
capaz de acalentar a ficção de que a sua própria época era superior à Idade das
Trevas, mas isto era em grande parte uma preferência estética, a consequência de
uma decisão de tratar sua própria época com mais simpatia do que a que poderia
dispensar à Idade Média, e não uma conclusão deduzida mediante um raciocínio
ponderado. O próprio Kant, num ensaio tardio, “Uma Velha Questão Novamente
Suscitada: Estará a Raça Humana em Constante Progresso? ”, foi obrigado a
admitir que as melhores razões para acreditar no progresso eram morais e não
científicas.
O testemunho histórico por si só, observou Kant, autorizava a crença em
qualquer uma de três visões da história: eudemonístíca, terrorista e abde- rítica, que
refletiam a crença respectivamente no progresso histórico, no declínio e na estase.
Era dever moral acreditar na visão progressista, porque as outras duas visões
promoviam atitudes indignas de um homem moralmente responsável. A concepção
de alguém acerca do sentido da história dependia, insistia Kant, do tipo de homem
que ele era, do tipo de homem que queria ser e do tipo de humanidade que desejava
ver desenvolvido no futuro. Se escolhesse acreditar que a humanidade estava em
declínio ou continuava essencialmente a mesma, viveria a vida de modo a realizar
a condição de degeneração ou de estase que lhe parecia refletida no registro do
passado. O modo como encarava o passado da raça condicionava e, com o correr
do tempo, realmente determinava a forma que o futuro deveria assumir. Kant
continuou acreditando até o fim da vida que a história do passado não ensinava
coisa alguma acerca da natureza humana que não pudesse ser aprendida com o
estudo da humanidade nas suas encarnações presentes. Porém insistia em dizer que
não nos é permitido acreditar que não houve qualquer progresso na transição do
passado para o presente, para que não sejamos proibidos de acreditar que o futuro
será melhor do que o presente e não esmoreçamos, neste processo, o empenho
humano em concretizar esse futuro melhor.
Este desejo crescente de acreditar no progresso em face do ensino do
ceticismo, segundo o qual não temos fundamentos racionais para acreditar nele, é
responsável pela acolhida entusiasta à filosofia da história perfilhada por Herder
no final do século XVIII. Aqui, o problema da relação entre a razão e a
irracionalidade é colocado num outro plano, ainda que de molde a eliminar a
distinção como critério de avaliação da natureza da relação entre o passado, o
presente e o futuro. Para Herder, todas as coisas existem num presente intemporal;
a história é uma totalidade de individualidades, cada uma das quais é igualmente
valiosa como indivíduo, e todas manifestam na sua especificidade a mesma mescla
de razão e irracionalidade. A insistência de Herder em afirmar que a reflexão sobre
a história não é inspirada por nenhuma “preocupação” de um tipo “previdente ou
retrospectivo” tira dos ombros do historiador o fardo de ter de julgar o passado.
Ao mesmo tempo, porém, remove o fardo de ter de julgar o presente, bem como
toda a responsabilidade de prever o curso que a sociedade humana deve tomar no
futuro. A fé ingênua de Herder no poder da história de cuidar de si própria, de
produzir o que é necessário para o conjunto da humanidade no tempo e no lugar
0 IRRACIONAL E 0 PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO NO ILUMINISMO 167

requeridos, é a antítese perfeita daquele ceticismo, com a sua ironia debili- tante,
que Hume levou à perfeição como sistema de pensamento.
No entanto, o que Herder sentia ser um renascimento da capacidade humana
da fé na adequação essencial da existência individuada, para Kant era o dogmatismo
que ele de fato era. A crença herderiana na adequação do todo, e na adequação das
partes individuais do todo à totalidade, negava por completo a problemática da
existência histórica, tão efetivamente quanto o fez o ceticismo de Hume. A
principal diferença entre o ceticismo de Hume e o dogmatismo de Herder radicava
no fato de que, enquanto o primeiro levava ao desespero em face do sem-sentido
da história, o segundo promovia um otimismo infundado que não era sancionado
nem pela razão nem pela moral Isto fez a reflexão histórica retroceder ao domínio
da sensibilidade estética, tornou-a nada mais que a interminável discussão sobre as
coisas na sua coerência formal, na riqueza e variedade das suas formas e no
incessante vir-a-ser e passar das coisas cada qual a seu próprio tempo. O tom era
diferente, mas o quadro geral daí resultante era o mesmo.
170 TRÓPICOS DO DISCURSO

AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM ARQUEOLOGIA DE UMA IDEIA

Mas as coisas que não são significativas por si próprias se combinam em


benefício das coisas significativas. SANTO AGOSTINHO, A Cidade de
Deus

1.

Durante a sua época de triunfo, os séculos XVII e XVIII, o Homem Selvagem era
visto como “o Nobre Selvagem82” e servia de modelo de tudo o que era admirável e não-
corrompido na natureza humana. Neste ensaio eu gostaria de dizer algo sobre a linhagem
deste Homem Selvagem, de reconstruir a genealogia do mito do Homem Selvagem e indicar
a função da noção de estado selvagem no pensamento pré-moderno. Para fornecer o pano
de fundo necessário, precisarei dividir a história cultural da civilização ocidental em fatias
relativamente grandes, e talvez indigeríveis, dispô-las em grupos de possível significação e
servi-las numa forma tão crua que obscureça completamente a grande variedade de opiniões
concernentes à noção de estado selvagem que será encontrada na literatura antiga e
medieval. O que oferecerei afinal, portanto, parecerá'mais o depósito de artefatos de um
arqueólogo do que a narrativa fluente do historiador; e provavelmente chegaremos ao fim
mais com um senso de estase estrutural que com um sentido do processo evolutivo pelo qual
várias ideias se uniram e se aglutinaram para produzir o Nobre Selvagem do século XVIII.
O que ofereço aqui é pouca coisa mais que eqüivaleriam para o historiador as notas tomadas
por um arqueólogo de campo, mais reflexões sobre uma busca de formas arquetfpi- cas que
um relato das suas variações* combinações e permutações durante o final da Idade Média e
o início da Era Moderna.
A noção de “estado selvagem” (wildness), ou? na sua forma latiniza- da, “selvageria”,
faz parte de um conjunto de instrumentos culturalmente autolegitimadores que inclui, entre
muitas outras, também as ideias de “loucura” e de “heresia”. Estes termos são utilizados
não só para designar uma condição ou estado de ser específico, mas também para confirmar
o valor das suas antíteses dialéticas, “civilização”, “sanidade” e “ortodoxia”, res-
pectivamente. Assim, não se referem tanto a uma coisa, lugar ou condição específicos,
quanto ditam uma atitude particular que comanda uma relação entre uma realidade vivida e
alguma área problemática da existência que não pode ser conciliada facilmente com as
concepções convencionais do normal ou familiar. Por exemplo, o apóstolo Paulo contrapõe

82 Nós da cultura brasileira estamos mais familiarizados com a expressão “Bom Selvagem”, ligada mais pro- ximamente a “le
hon sauvage” francês. A tendência, então, é traduzir Noblc Wild por Bom Selvagem. No entanto, manteve-se aqui e no
capítulo seguinte o Nobre Selvagem pelos motivos que o próprio autor se encarregará de expor no próximo capítulo. (N.
do T.)
AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 171

heresia a ortodoxia (ou divisão a unidade) como a condição não-desejáveí à desejável da


comunidade cristã, mas de tal maneira que faz a condição não-desejável ser proveitosa às
necessidades da desejável. Assim, ele escreve: “É necessário que haja heresias entre vós a
fim de que possam manifestar-se os de provada virtude em vosso meio” (I Cor. 11:19). E
Santo Agostinho, na passagem de A Cidade de Deus que serve de epígrafe a este ensaio,
distingue os assuntos na sua história que são significativos por si mesmos daqueles que não
têm qualquer significação, mas existem apenas como contra-exemplos ilustrativos da obra
da graça no meio do pecado83. Do mesmo modo que, nas suas Confissões, Santo Agostinho
julgou necessário insistir nos fenômenos do pecado a fim de revelar as ações numênicas da
graça, também na sua “história profética” da humanidade ele foi compelido a se concentrar
no pecaminoso, no herético, no insano e no maldito a fim de delinear a área da virtude
ocupada pelo puro, pelo ortodoxo, pelo são e pelo eleito. Tal como os puritanos que lhe
sucederam, Santo Agostinho achava que uma forma de estabelecer o “sentido” de sua
própria vida era negar sentido a qualquer coisa radicalmente diferente dela, salvo como
antítipo ou exemplo negativo.
Para o filósofo W. B. Gallie, noções como “democracia”, “arte” e o “modo de vida
cristão” são “conceitos essencialmente contestados”, porque a sua definição implica não
apenas a clareza mas também a auto-estima dos grupos que os utilizam em polêmicas
culturais84. Os termos civilização e humanidade poderiam ser caracterizados de modo
semelhante. Prestam-se à definição mais por estipulação que por observação empírica e por
indução. E o mesmo se pode dizer das suas antíteses conceituais estado selvagem e
animalidade. Em épocas de tensão sócio-cultural, quando se afirma a necessidade de
autodefinição positiva mas não aparece qualquer critério irretor- quível de auto-
identificação, é sempre possível dizer alguma coisa como esta: “Talvez eu não conheça o
conteúdo exato da minha própria humanidade, mas certamente não sou assim”, e
simplesmente apontar para algo na paisagem que seja manifestamente diferente de si
próprio. Isto poderia cha- mar-se a técnica de autodefinição aparente por negação, e
certamente é praticada de modo muito mais geral na polêmica cultural do que qualquer
outra forma de definição, salvo talvez as estipulações a priori. Apresenta-se na forma de
um tipo de ação reflexa nos conflitos entre nações, classes e partidos políticos, e não é
desconhecida entre eruditos e intelectuais que procuram estabelecer as suas reivindicações
do status de elite contra o vulgus mobile. É uma técnica particularmente útil para os grupos
nos quais é mais fácil reconhecer as insatisfações que justificar os seus projetos, como
quando os elementos descontentes da nossa própria sociedade usam o termo pig [porco]
para assinalar uma atitude específica com respeito aos símbolos de autoridade
convencional. Se não sabemos o que é a “civilização”, sempre podemos encontrar um
exemplo do que ela não é. Se não temos certeza do que é a sanidade, podemos ao menos
identificar a loucura quando a vemos. Do mesmo modo, no passado, quando os homens não
tinham certeza da qualidade exata do seu senso de humanidade, recorriam ao conceito de
estado selvagem para designar uma área de subumanidade que se caracterizava por tudo o
que esperavam que não fossem.
Sucede o mesmo com a função cultural geral dos conceitos que surgem da
necessidade que têm os homens de dignificar o seu modo específico de existência
comparando-o com os de outros homens, reais ou imaginários, que apenas diferem deles
próprios. Há outro ponto que cabe registrar aqui antes de prosseguirmos. Diz respeito à
carreira histórica de conceitos como estado selvagem, selvageria, loucura, heresia etc., no
pensamento e na literatura ocidentais. Quando, no pensamento e na literatura das
civilizações antigas mais avançadas, estes conceitos aparecem de um modo culturalmente
significativo, funcionam como signos que indicam supostas essências encarnadas em grupos

83 Augustine, The City of God, in IVÍvrfa, trad. Marcus Dods (Edintmrgh, 1934), 2:108.
84 W. B. Gallie, Philosophy and the Historical Understanding (London, 1964), pp. 157-191.
172 TRÓPICOS DO DISCURSO

humanos específicos, ou pelo menos se referem a elas. Não são tratados como designadores
provisórios - isto é, hipóteses destinadas a comandar a investigação ulterior em áreas
específicas da experiência humana - nem como ficções de utilidade heurística limitada para
gerar possíveis maneiras de conceber o mundo humano. São, antes, complexos de símbolos,
cujos referentes se alteram e se modificam em resposta a padrões mutáveis do
comportamento humano que eles pretensamente sustêm.
Assim, por exemplo, como mostrou Michel Foucault no seu estudo do conceito de
loucura durante a Idade da Razão, o termo insanidade impregnou-se de um conteúdo
religioso durante os períodos de devoção religiosa, de um conteúdo político durante os
tempos de integração política intensa e de um conteúdo econômico durante épocas de tensão
ou expansão econômicas85. E, o que é mais importante, Foucault mostrou que, qualquer que
seja a definição especificamente médica de insanidade, o modo como a sociedade trata
aqueles denominados insanos e o lugar e a natureza da sua reclusão e tratamento variam de
acordo com as formas mais gerais de práxis social na esfera pública. Isto é particularmente
verdadeiro com relação às formas de insanidade que a ciência médica é incapaz de analisar
adequadamente. Acode-nos à mente o caso da esquizofrenia em nossa época. R. D. Laing
afirmou que, embora passe por termo médico, na realidade o conceito de esquizofrenia é
utilizado de um modo político; a despeito das ambiguidades da ciência médica em torno da
natureza e causas da esquizofrenia, a ideia é também utilizada para privar dos seus direitos
civis e humanos, nos tribunais de justiça, aquelas pessoas que presumidamente sofrem dessa
doença86.
Tudo isto sinaliza o fato de que as sociedades sentem a necessidade de preencher
áreas da consciência ainda não ocupadas pelo conhecimento científico, com designadores
conceituais que afirmem seus próprios valores e normas planejados existencialmente.
Nenhuma dotação cultural é totalmente adequada à solução de todos os problemas com que
ela poderia deparar; ainda assim, a vitalidade de qualquer cultura depende do seu poder de
convencer a maioria dos seus partidários de que é a única maneira possível de satisfazer-
lhes as necessidades e realizar-lhes as aspirações. Uma dada cultura só é vigorosa na medida
do seu poder de persuadir o seu membro menos dedicado de que as suas ficções são
verdades. Quando os mitos são revelados como as ficções que são, então, no dizer de Hegel,
tornam-se “uma forma de vida obsoleta”. Primeiro a natureza, depois Deus e por último o
próprio homem foram submetidos ao escrutínio desmitologizador da ciência. A
consequência foi que aqueles conceitos que numa época anterior tinham a função de
componentes de mitos culturais de sustentação e de partes do jogo de identificação
civilizacional por definição negativa, passaram, um após outro, para a categoria do fictício;
foram identificados como manifestações de neurose cultural e não raro relegados ao status
de meros preconceitos, cujas consequência s foram por vezes tão destrutivas quanto benéfi-
cas. O desmascaramento de mitos como o do Homem Selvagem nem sempre foram seguidos
do banimento dos seus conceitos constituintes, mas antes da sua interiorização. Pois a
dissolução, graças ao conhecimento científico, da ignorância que levou os primeiros homens
a situar os seus homens selvagens em épocas e lugares específicos não atinge
necessariamente os níveis de ansiedade psíquica em que essas imagens têm a sua origem.
Em parte, a desmitologização gradativa de conceitos como “estado selvagem”,
“selvageria” e “barbárie” tem sido decorrência da extensão do conhecimento àquelas partes
do mundo que, embora relativamente conhecidas (mas não realmente conhecidas), serviram
originariamente de estágios físicos em que a imaginação “civilizada” poderia projetar as
suas fantasias e ansiedades. Dos tempos bíblicos aos dias de hoje, a noção de Homem Selva-
gem esteve associada à ideia de região selvagem - o deserto, a floresta, a selva e as

85 Michel Foucault, Madness und Civilization: A Ilislory of Insanily in lhe Age of Reason, trad. Richard Howard (New York,
1965).
86 R. D. Laing, The Politics of Experience (New York, 1967), cap. 5.
AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 173

montanhas aquelas partes do mundo físico que ainda não haviam sido domesticadas ou
demarcadas para domesticação de algum modo significativo. A proporção que uma após
outra dessas regiões selvagens foi sendo dominada, a ideia do Homem Selvagem foi
progressivamente deses- pacializada. Esta desespacialização acompanhou-se de um
processo compensatório de interiorização psíquica. E a consequência foi que a moderna
antropologia cultural conceituou a ideia de estado selvagem como o conteúdo reprimido
tanto da humanidade civilizada quanto da primitiva. De tal sorte que, em vez do pensamento
relativamente reconfortante de que o Homem Selvagem pode existir fora de lá e pode ser
contido por algum tipo de ação física, admite-se hoje (salvo aqueles ideólogos
contemporâneos de ambos os lados da Cortina de Ferro que julgam poder salvar a
“civilização” se apenas conseguirem destruir bastantes seres humanos “selvagens”) que o
Homem Selvagem está oculto no interior de cada homem, clama por sua libertação dentro
de todos nós e só será negado ao preço da própria vida.
O modelo freudiano da psique, que seria um ego que ocupa uma fortaleza assediada
por um duplo inimigo, o superego e o id, os quais representam as pressões dos mecanismos
dotados de forças motrizes basicamente agressivas, é talvez o exemplo pseudocientífico
mais conhecido deste processo de remitificação87. Mas não é o único. As teorias de C. G.
Jung e de muitos pós-freudianos, inclusive Melanie Klein e seu discípulo americano
Norman O. Brown, representam o mesmo processo, tal como o fazem outros críticos
contemporâneos da cultura que, como Lévi-Strauss, lamentam o triunfo da tecnologia sobre
o homem civilizado e sonham com a libertação da criança perdida ou do Nobre Selvagem
dentro de nós.
Chamo essa interiorização da região selvagem e de seu ocupante tradicional, o
Homem Selvagem, de remitificação, porque ela tem exatamente a mesma função que o mito
do Homem Selvagem teve em culturas antigas, ou seja, a de uma projeção dos desejos e
ansiedades reprimidos, de um exemplo de um modo do pensamento em que foi eliminada a
distinção entre o mundo físico e o mental e em que ficções (como o estado selvagem, a
barbárie, a selvageria) são tratadas, não como instrumentos conceituais para designar uma
área de investigação ou para construir um catálogo das possibilidades humanas, nem como
símbolos que representam uma relação entre duas áreas da experiência, mas como signos
que designam a exisiência de coisas ou entidades cujos atributos encerram justamente
aquelas qualidades que a imaginação, seja lá por que razão, insiste em dizer que encerram.
O que estou sugerindo é que, na história do pensamento ocidental, a ideia do Homem
Selvagem configura uma transição do mito para a ficção e desta para o mito novamente,
assumindo a forma moderna do mito um aspecto pseudocientífico nas várias teorias da
psique que -atualmente solicitam à nossa atenção. Estender-me-ei sobre este processo de
remitificação no final deste ensaio. Por ora, quero explicar, em prelúdio à minha
caracterização da sua história na Idade Média, o que entendo pelo processo de
desmistificação original do mito do Homem Selvagem, sua tradução numa ficção nos tem-
pos modernos, e sua utilização como tal.
A caracterização fictícia, ou provisória, de diferenças radicais entre o que é apenas
uma humanidade superficialmente diversa parece ser estranha ao que Paul Tillich chamou
convenientemente de civilizações “teonômi- cas”88. Sem a secularização ou humanização
da própria cultura, sem um profundo sentimento de que, seja qual for a concepção que
tenhamos do mundo, é a mente humana que atua no processo de dotação de sentido, e não
algum poder ou Divindade transcendental que confere sentido em lugar de nós, a distinção

87 Tenho em mente aqui especificamente o famoso mapa da psique traçado por Freud em The Ego und thc Id, trad. Joan
Riviere (London, 1950), caps. 2 e 3. Para uma exposição da revisão deste mapa, ver J. A. C. Brown, Freud and the Pasl-
Freudians (London, 1963), caps. 5 e 6. Ver também Claude Lévi-Strauss, The Savage Mind (Chicago, 1966), cap. 9; e Norman
O. Brown, Love's Bndy (New York, 1966), cap. 2.
88 Paul Tillich, The Protesmnt Era, irad, James Lulher Adams (Chicago, 1948), cap. 4.
174 TRÓPICOS DO DISCURSO

entre ficção e mito seria literalmente impensável. No pensamento teonômico do antigo


Egito, por exemplo, como no mundo do pensamento da maioria das tribos primitivas, a
diferença percebida entre os “nós” e o “eles” é traduzida numa diferença entre uma
humanidade acabada e uma humanidade imperfeita. Na medida em que é imaginável uma
humanidade unificada, ela é concebida como propriedade de um único grupo.
Entre os antigos hebreus, evidentemente, o monoteísmo ético e a doutrina da criação
única tendiam a forçar o pensamento a considerar a reunificação potencial de uma
humanidade que se tornara dilacerada e fragmentada no tempo em consequência de ações
humanas e como parte do propósito da Divindade em primeiro criar a totalidade da
humanidade e depois permitir que ela se desintegrasse em facções conflitantes. E na teologia
cristã do Medievo, especialmente na sua variedade agostiniana predominante, em virtude
das suas inclinações neoplatônicas, a ideia de uma unificação vertical da totalidade da
criação numa cadeia abrangente do ser, que abarcasse não só o próprio Criador como a
totalidade da sua criação, se harmonizava com a noção de um movimento horizontal
potencial no tempo rumo a uma unificação final no fim dos tempos, quando os que se
salvassem voltariam à comunhão direta com Deus a que Adão havia renunciado na Queda89.
Mesmo aqui, porém, a ideia de uma divisão histórica da humanidade prevalece como força
cultural. Os hebreus vi venciam uma divisão da humanidade em judeus e gentios, mesmo
que sejam obrigados a imaginar, em virtude de sua concepção do poder e justiça de Deus,
uma humanidade que no final será integrada mediante a hebraização do mundo. De modo
análogo, os cristãos medievais vivenciavam uma divisão da humanidade e, na verdade, do
próprio cosmo em hierarquias da graça, que se traduzia numa divisão entre os salvos e os
condenados, embora sua concepção do poder do amor divino os impelisse constantemente
à contemplação de uma época em que a divisão histórica desapareceria no fogo cegan- te da
unificação final do homem consigo mesmo, com o seu semelhante e com Deus. Já que os
homens pareciam diferentes entre si, sua divisão em formas superiores e inferiores de
humanidade tinha de ser admitida; pois, num modo teonômico, uma variação - de classe ou
de gênero - tinha de ser tomada como prova da corrupção da espécie. Pois, se havia um Deus
todo-poderoso e justo que ordenava a totalidade, como se poderia explicar as diferenças
entre os homens, a não ser por algum princípio que postulasse uma aproximação mais
perfeita e uma menos perfeita da forma ideal de humanidade que na mente de Deus
representava o paradigma da espécie? De maneira similar, num universo que se julgava
ordenado, nas suas relações essenciais, mais por normas morais que por forças causais
físicas imanentes, como se poderia explicar as diferenças radicais entre os homens, a não
ser pela suposição de que o diferente era, em certo sentido, inferior ao que passava por
normal, vale dizer, as características do grupo no qual ocorria a percepção da diferença?
Isto não quer dizer que o conceito de humanidade dividida, e de uma humanidade em
que a condição de diferença refletia mais uma variação qualitativa que uma variação
meramente quantitativa, estava ausente naqueles setores das civilizações pagas clássicas em
que se consumara em pensamento um secularismo genuíno e o concomitante pluralismo
humanista. Os escritores e pensadores gregos “humanistas”, tanto quanto os seus congêneres
modernos, secularizados, acharam fácil dividir o mundo nos seus próprios equivalentes dos
“salvos” e “condenados"’ cristãos. Mas, assim como os gregos tendiam a diversificar os
seus deuses com base em atributos, funções e poderes exteriores, tendiam também à
concepção de uma humanidade interiormente diversificada. Mesmo na lei romana, que
principia por uma rígida distinção entre romano e não-romano - e mesmo na própria
comunidade romana entre patrícios e plebeus - de molde a sugerir uma distinção entre um
homem total e um parcial, a tendência geral, sem dúvida em resposta às exigências do
império, preferia incluir o eleito na comunidade a excluí-lo dela.

89 Arlhur O. Lovejoy, The Gteu! Chain of Being: A Study of the History of an Idea (Cambridge, Mass., 1936), cap. 9.
AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 175

Há, pois, uma diferença significativa entre a forma pela qual os pensadores gregos e
romanos imaginam a humanidade total e a forma como a imaginam os pensadores hebreus
e cristãos. Para dizê-lo em termos mais simples: na primeira, vivencia-se a humanidade
como se fosse diversificada de fato, embora unificável em princípio; na segunda, é
vivenciada como se fosse unificável em princípio, conquanto radicalmente dividida de fato.
Isto significa que diferenças percebidas entre homens apresentavam menos significado para
gregos e romanos que para hebreus e cristãos. Para os primeiros, a condição de diferença
era física e cultural; para os segundos, era moral e metafísica. Por conseguinte, as ideias de
diferença nas duas tradições culturais definem os dois arquétipos que convergem na
civilização ocidental medieval para formar o mito do Homem Selvagem. Antecipando o
meu julgamento final sobre o assunto, seja-me permitido dizer que as duas tradições
refletem em geral as preocupações emocionais com padrões culturais que podem ser
convenientemente chamados - segundo Ruth Benedict — de “orientados pela vergonha” e
“orientados pela culpa”, respectivamente 90. A consequência é que a imagem do Homem
Selvagem transmitida pela Idade Média ao começo da Era Moderna tende a transformá-lo
na encarnação do “desejo”, de um lado, e da “ansiedade”, de outro.
Estes representam os aspectos gerais (e, suponho, predominantes) do mito do
Homem Selvagem antes de sua identificação como mito e de sua tradução em ficção no
início da Era Moderna. Certamente, assim como há uma linhagem de “culpa” no paganismo
clássico, há uma linhagem de “vergonha” na cultura judaico-cristã. E mais adiante falarei
da ideia do “bárbaro” como um conceito em que essas duas linhagens convergem numa
imagem única em tempos de tensão cultural e declínio, como na época heíênica tardia e no
final da época romana. Por ora, entretanto, estou apenas tentando delinear as razões que
inspiraram as diferentes concepções de estado selva- ..gem que Richard Bernheimer, no
seu excelente livro WildMen in the Middle Ages:y, descobriu na fábula, no folclore e na arte
medievais. E nestas bases que radicam os diferentes arquétipos do estado selvagem com
que deparamos na cultura ocidental medieval. E a dissolução destas bases através do
moderno estudo científico e humanista que nos permite distinguir entre o estado selvagem
que é mito e o que é ficção, entre o que é estado ontológico e o que é estágio histórico do
desenvolvimento humano, entre o que é condição moral e o que é categoria analítica da
antropologia cultural e, por fim, reconhecer na noção de Homem Selvagem um instrumento
de projeção cultural que é tão anômalo na concepção quanto vicioso na aplicação.

90 Ruth Benedict, The Chrysanthemum and the Sword: Patterns of Japanese Culture (Boston, 1946).
AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 176

2.

Voltarei agora a alguns exemplos do conceito de estado selvagem no modo como


figuram no pensamento hebraico, no grego e no cristão antigo. Estes exemplos não esgotam
nem mesmo os tipos de estado selvagem concebidos pela imaginação pré-moderna.
Ademais, não é o meu intuito tentar caracterizar as complexas diferenças entre os vários
tipos de sub-homens que existiriam em cada uma das tradições abordadas. Meu objetivo é
antes ressaltar os componentes do estado selvagem que a imaginação hebraica, a grega e a
cristã antiga presumiam existir e que contrastam entre si como artefatos culturais distintos.
Estou bem consciente, por exemplo, de que as imagens do Homem Selvagem que o
pensamento hebraico considera encarnações do estado de maldição têm a sua contraparte
nas projeções do medo de possessão demoníaca patentes no pensamento grego, e de que as
descrições dos atributos mentais dos homens selvagens, concebidos como o que
chamaríamos de loucos, insanos ou depravados, são totalmente semelhantes nas duas
culturas. Quero, contudo, identificar as bases ontológicas que fundamentam as designações
de homens selvagens no pensamento hebraico, no grego e no cristão antigo,
respectivamente, a fim de elucidar as atitudes morais diferentes com que os homens assim
designados eram considerados nas diferentes culturas. Somente distinguindo entre as
posturas morais com que judeus, gregos e cristãos enfrentaram a imagem do estado
selvagem podemos lograr uma impressão do modo como a ideia de estado selvagem era
utilizada na polêmica cultural no fim da Idade Média e chegar a alguma compreensão do
modo como o mito do selvagem se traduziu numa ficção no começo do período moderno.
Para começar, cumpre notar que a diferença entre a concepção hebraica e a grega do
estado selvagem reflete tendências dessemelhantes nos pressupostos antropológicos que
servem de base às suas respectivas tradições de comentário social. Esta diferença talvez
tenha tido sua origem numa tendência do pensamento hebraico a dissolver os estados físicos
em estados morais, em contraste com a tendência grega a fazer o inverso. A teoria
antropológica grega tende a objetivar, ou materializar, o que chamaríamos estados interio-
res, espirituais ou psicológicos. O pensamento hebraico tende consistente- mente a reduzir
os atributos exteriores ao status de manifestações de uma condição espiritual. As
implicações literárias e antropológicas destas diferenças fundamentais e a dinâmica da sua
fusão no pensamento e na literatura ocidental mais tardios são plenamente exploradas no
livro Mimesis, de Erich Auerbach, sobretudo no seu primeiro capítulo, merecidamente
famoso91. As bases histórico-culturais destas diferentes tendências são analisadas em duas
obras com que estou particularmente em dívida: The Greeks and the
Irrational de E. R. Dodds e o magistral Israel de Johannes Pedersen, principalmente o
brilhante capitulo sobre a alma no antigo pensamento hebraico92. O ponto importante é que,
conquanto a distinção entre um estado espiritual ou psicológico interior e uma condição
exterior ou física fosse uma distinção muito difícil de estabelecer tanto no pensamento grego
quanto no hebraico, a sintaxe descritiva utilizada para representar estados humanos em geral
tendia a subordinar o que reconheceríamos como fatores interiores a fatores exteriores no
pensamento grego, ao passo que se dava o inverso no pensamento hebraico, Isso explica em
parte os diferentes papéis desempenhados pelas imagens do Homem Selvagem derivadas da
Bíblia, de um lado, e do paganismo clássico, de outro.
A natureza problemática de uma humanidade selvagem surge no pensamento hebraico
em grande parte em função do conceito hebraico de um Deus único, No mito hebraico da
criação, uma Divindade onipotente, onisciente e perfeitamente justa cria o mundo natural e
povoa-o com as várias espécies dos reinos físicos, vegetal e animal - cada qual perfeito na
sua espécie; e em seguida Ele coloca o homem, na plena perfeição da sua espécie, no centro
moral do mundo, a fim de governá-lo. No estado edênico, o universo é concebido

91 Erich Auerbach, Mimesis: The Representation of Reality in Western Literatura, trad. Willard R. Trask (Princeton, 1953).
92 E. R. Dodds, The Greekx and the Irrational (Berkeley, 1951), caps. 2 e 5; Johannes Pedersen, Israel: Its Life and Ctdture
(London, 1954), 1:182-2 f 2.
AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 177

perfeitamente ordenado e harmonioso em suas partes. Confusão e pecado se introduzem


neste estado mediante o pecado de Adão, e o homem é expulso do Éden e enviado a um
mundo que de repente se afigura hostil e cruel. A natureza assume o aspecto de um inimigo
caótico e violento contra o qual o homem tem de lutar para recuperar sua humanidade
própria ou sua natureza divina.
Evidentemente, a queda de Adão não desempenha no pensamento hebraico o mesmo
papel que desempenha no cristão. Para os antigos hebreus, o mito da Queda tinha uma
função essencialmente etiológica: explicava como os homens haviam chegado à sua
condição geral no mundo e por que, embora alguns fossem escolhidos e outros não, mesmo
os escolhidos ainda tinham de trabalhar arduamente para ganhar a sua recompensa. A Queda
não era, como mais tarde veio a ser para o apóstolo Paulo, a causa de uma espécie de mácula
do tipo que é transmitido de Adão a toda a humanidade e que impede que todos os homens
vivam em conformidade com a lei de Deus sem a ajuda propiciada por uma graça especial.
A Queda é simplesmente o acontecimento que explica a condição humana apesar de o
homem ter sido criado por um Deus perfeitamente justo e todo-poderoso; ela não cria uma
imperfeição ontológica no seio da humanidade. E o povo hebraico
- os descendentes de Adão através de Abraão - considerava-se a si próprio uma linhagem
da humanidade que, mesmo na sua condição natural, poderia, aderindo aos termos da
aliança, florescer diante de Deus, receber a bênção (Berâkâh) e alcançar um tipo de paz e
segurança na terra não muito diferente das usufruídas por Adão e Eva no Éden. Assim, o
Antigo Testamento não diz que todos os homens se tornaram “selvagens” pela queda de
Adão, nem mesmo todos os gentios. Com efeito, os gentios servem realmente de paradigma
da humanidade “natural”, assim como os hebreus, o povo da aliança, serve de paradigma de
uma humanidade moralmente redimivel, um tipo de super-humanidade potencial. Ao lado
do homem natural e do superhomem, contudo, há uma terceira alternativa, o “homem
selvagem”, o homem de quem não dimana bênção alguma, porque Deus retirou dele a bên-
ção. Quando Deus retira a bênção de um homem, de um animal, de um povo ou da terra em
geral, o resultado é uma queda num estado de degenerescên- cia inferior ao próprio estado
de “natureza”, um estado peculiarmente horrível em que a possibilidade de redenção é quase
completamente obstada.
Permitam-me ser mais específico. A distinção entre homem e animal, posto que
fundamental para o pensamento hebraico, é menos significativa do que a distinção entre as
coisas que desfrutam a bênção e as que não a desfrutam. A natureza animal não é selvagem
em si mesma; é apenas não-humana. O estado selvagem é uma condição peculiarmente
moral, a manifestação de uma relação específica com Deus, uma causa e, ao mesmo tempo,
uma consequência de estar sob a maldição divina. Mas é também - ou, antes, é
indiscriminadamente - um lugar; ou seja, é não só o quê de um pecado, mas também o onde.
Por exemplo, os índices doutrinais da Bíblia nos dizem que a palavra hebraica para “deserto”
(shemâmâh), usada no sentido de “desolação”, aparece em 2 Sam. 13:20, para caracterizar a
condição da mulher violentada Tamar; mas o lugar da maldição (o ermo, o vazio, a terra
inculta) é também descrito como uma região selvagem. Da mesma forma, o lugar dos mortos
(sheôl) é descrito em Jó 17:14 como um lugar de corrupção e decadência. Estes estados e
lugares de corrupção ou violação se distinguem do “vazio” (bôhuw)93 que existe antes de
Deus criar o céu e a terra e que é o único estado moralmente neutro mencionado na Bíblia.
Todos os outros estados ou são de bem-aventurança ou de maldição. Em resumo, parece
bastante difícil distinguir entre uma condição moral, uma relação, um lugar e uma coisa em
todos aqueles exemplos na Bíblia em que aparecem palavras que poderiam ser traduzidas

93 Outra palavra, que é traduzida em inglês por void (vazio) (nfhüwgâh), é utilizada em justaposição a waste (desolado)
(bâlug) em Nahum 2:10, para caracterizar uma cidade devastada, como quando o profeta fala de Nínive: “Ela está
abandonada, vazia e desolada”.
como “estado selvagem” ou “região selvagem” 94.
Esta fusão
178 de uma condição física com uma DO
TRÓPICOS condição
DISCURSO moral é uma das fontes de poder
dos Profetas. Ela repousa no âmago do terror transmitido por Jó no seu lamento quando,
caracterizando a sua aflição, ele se refere à dissolução que Deus opera em sua “substância”
e diz (em Jó 30:26-31):

Esperava a felicidade e veio a desgraça; esperava a luz e vieram as trevas. Minhas entranhas se abrasatn sem
nenhum descanso, e dias de aflição vêm ao meu encontro. Caminho no luto, sem sol; na congregação levanto-me a
pedir socorro. Tornei-me irmão dos chacais e companheiro dos avestruzes. Minha pele se enegrece e cai, e meus ossos
são consumidos pela febre. Minha citara só dá acordes lúgubres, e minha flauta sons queixosos.

No seu sofrimento, Jó degradou-se à condição que antes (Jó 30:3) atribuíra aos seus
inimigos (“eles eram solitários; fugiam para o deserto desolado e devastado”). O deserto é
o caos que jaz no âmago das trevas, um vazio ao qual a alma é enviada na sua degradação,
um lugar estéril do qual poucos retornam, ou ninguém.
Certamente, a retirada do profeta para o campo é um tema comum no Antigo
Testamento. Vez por outra, o profeta é retratado como alguém que veio do campo, como
Amós, ou ali se recolheu para não colaborar com um Israel pervertido, como Jeremias. Mas
o campo é uma coisa, o deserto é outra bem diversa. O campo ainda é o lugar da bem-
aventurança; o deserto fica no lado oposto do ser, é o lugar onde o poder destruidor de Deus
se manifesta de maneira mais dramática. É por isso que o deserto pode aparecer- no próprio
coração de um ser humano, sob a forma de insanidade, pecado ou mal - qualquer condição
que reflita o afastamento do homem de Deus.
As condições que designaríamos pelos termos estado selvagem, deserto, insanidade
ou selvageria eram todas concebidas pelos antigos hebreus como aspectos da mesma
condição maligna. A relação entre a condição de bem-aventurança e a de selvageria é, pois,
perfeitamente simétrica: os bem- aventurados prosperam, e sua bem-aventurança se reflete
na sua riqueza e na sua saúde, no número de filhos, na sua longevidade e na sua capacidade
de fazer as coisas crescerem. Os malditos secam e erram a esmo pela terra — terríveis, feios,
violentos; e sua terribilidade, feiúra e violência são prova da sua maldição.
Os homens selvagens arquetípicos do Antigo Testamento são os grandes rebeldes
contra o Senhor, os que desafiaram a Deus, os antiprofetas, os gigantes e os nômades -
homens como Caim, Cam e Ismael, os verdadeiros tipos de “heróis” que, na mitologia e na
lenda gregas, poderiam ter ocupado um lugar de honra ao lado de Prometeu, Ulisses e Edipo.
Como os anjos que se rebelaram contra o Senhor e foram arremessados do céu, estes homens
rebeldes contra o Senhor continuam - compul si vãmente, diríamos nós - a cometer o pecado
de Adão. E, mesmo que às vezes pequem por ignorância, nem por isso seu castigo é menos
severo. São descritos como homens selvagens que habitam uma terra selvagem, sobretudo
como caçadores, semeadores de confusão, malditos e geradores de raças que vivem na
ignorância irre- missível ou na violação completa das leis estabelecidas por Deus para o
governo do cosmo. Sua descendência são os filhos de Babel, de Sodoma e Gomorra, uma
progênie conhecida por sua conspurcação. São homens que desceram abaixo da própria
condição de animalidade; o rosto de todos os homens se volta contra eles, e em geral (Caim
é uma notável exceção) podem ser assassinados impunemente.

94 Pedersen, Israel, 2:453-96.


AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 178

Ora, a forma que o estado selvagem desta raça degradada assume é descrita em função
da corrupção da espécie. Uma vez que na Criação Deus formou o mundo e colocou nele as
várias espécies, cada uma perfeita no seu tipo, a ordem natural ideal seria, pois, caracterizada
por uma perfeita pureza da espécie. Em contrapartida, a desordem natural tem sua forma
extrema na corrupção da espécie, na mistura dos tipos (myn) - na união daquilo que Deus
em sua sabedoria tinha decretado, no princípio, que deveria permanecer separado. A mistura
das espécies é, portanto, muito pior do que qualquer luta, mesmo mortal, entre dois ou mais
homens. A luta é natural; a mistura é inatural e destrói uma condição de isolamento da
espécie, que é tanto uma necessidade moral quanto natural. Misturar as espécies é tabu.
Desse modo, os homens que haviam copulado com animais deviam ser exilados da comu-
nidade, exatamente como os animais de diferentes espécies que se haviam associado
sexualmente deviam ser abatidos (Lev. 18:23-30). O horror da conspurcação da espécie é
levado a tais extremos no Código Deuteronômico que lá se proíbe não apenas jungir animais
diferentes ao mesmo arado (Deut. 22:10), mas até semear tipos diversos de semente no
mesmo campo (Lev. 19:19)95.
Um exemplo de uma humanidade que se tornou selvagem pela mistura das espécies
é dado no livro do Gênesis, na passagem famosa, mas ambígua, que registra os efeitos do
acasalamento dos “filhos de Deus” com as “filhas dos homens” (Gên. 6). Este exemplo da
mistura das espécies gerou uma raça de homens dotados de um atributo de selvagem quase
universalmente reconhecido: o gigantismo. A natureza desses gigantes é ainda menos clara
do que a sua linhagem. Os filólogos bíblicos associam a palavra que designa gigante (nephiyl
ou nephíl), que conota as ideias de provocador e tirano, com a raiz do verbo nâphal, que
significa cair, ser arremessado, mas que tem associações secundárias com as noções de
morrer, divisão, imperfeição, ser julgado, perecer, corromper e ser assassinado. É sugerido
que o aparecimento desses gigantes constitui a causa imediata da decisão de Deus de destruir
o mundo no Dilúvio, com exceção, obviamente, de Noé, da sua família e de um casal de
cada espécie animal.
Depois do Dilúvio, porém, o mal e (portanto) o estado selvagem retornaram ao
mundo, sobretudo nos descendentes do filho caçula de Noé, Cam, que foi amaldiçoado por
revelar a nudez do pai. Os genealogistas bíblicos mais recentes determinaram que de Cam
descendeu aquela raça de “homens selvagens” que aliava a rebeldia de Caim à estatura dos
primeiros gigantes. E provável que também tenham sido negros, já que, através de fusão
etimológica, os hebreus fundiam as raízes de palavra utilizadas para indicar a cor negra, a
terra do Egito (isto é, de servidão), a terra de Canaã (isto é, de idolatria paga), a condição
da maldição (e, de maneira irônica, aparentemente a noção de fertilidade), com o próprio
nome de Cam e as suas varia

95 Pedersen, ísrucl, pp. 485-486.


182 TRÓPICOS DO DISCURSO

ções adjetivas. Posteriormente, os comentadores cristãos da Bíblia insistiram em dizer


que Nemrod, o filho de Cush, deve ter descendido de Cam, e isso teria significado que ele
não só era negro, mas também partilhava os atributos dos primeiros gigantes: rudeza e
rebeldia.
Em A Cidade de Deus, por exemplo, Santo Agostinho insiste, na passagem que
descreve Nemrod como “um poderoso caçador diante do Senhor”, em ler “um poderoso
caçador contra o Senhor ”96. E chega a identificar Nemrod com o fundador da cidade de
Babel, cujo povo tentou erguer uma torre aos céus e acarretou para a humanidade a confusão
de línguas que desde então a afligiu. Na associação de Nemrod a Babel (ou Babilônia) e na
associação posterior destas ao relato de como se formaram as diferentes raças e se
constituíram as diferentes famílias de língua, quase completamos o nosso rol dos principais
componentes do mito do Homem Selvagem quando passa da Bíblia para o pensamento
medieval. O estado de maldição, ou selvagem, é identificado com a vida errante do caçador
(em comparação com a vida estável do pastor e do agricultor), com o deserto (que é o hábitat
do Homem Selvagem), com a confusão linguística (que é o atributo principal tanto do
Homem Selvagem quanto do bárbaro), com o pecado e a aberração física tanto na cor (a
preta) quanto no tamanho. Como diz Santo Agostinho: “O que se entende pelo termo
‘caçador’ senão enganador, opressor e destruidor dos animais da terra?”97. Quanto à
incapacidade de falar do Homem Selvagem, que faz parte do mito do Homem Selvagem
onde quer que o encontremos em toda a Idade Média, diz Santo Agostinho: “Como a língua
é o instrumento da dominação, nela o orgulho foi punido”98. A equação está quase completa:
num mundo ordenado moralmente, ser selvagem é ser incoerente ou mudo; falaz, opressivo
e destrutivo; pecador e amaldiçoado; e, por fim, monstro, alguém cujos atributos físicos são
por si próprios uma prova da sua natureza maligna.
Tudo isto sugere os modos pelos quais a concepção de estado selvagem encontrada
no Antigo Testamento se transforma, na esteira da progressiva espiritualização da
concepção hebraica de Deus através da obra dos Profetas e através da simultânea
materialização da natureza em consequência da união do pensamento grego com o
pensamento judaico em épocas bíblicas tardias. No antigo pensamento hebraico, quando um
homem ou uma mulher ou um lugar ou um grupo perdiam a bênção e caíam numa condição
de maldição, essa condição espiritual se manifestava na forma e atributos do estado
selvagem. A essa altura, a relação da comunidade com a coisa amaldiçoada era inambígua:
ela devia ser exilada, isolada e evitada a todo custo, pelo menos até a época em que fosse
retirada a maldição e restaurado o estado de beatitude99. Mas somente Deus poderia retirar
a maldição que lançara sobre uma coisa. E já que, pelo menos na parte mais arcaica do
Antigo Testamento, no pensamento sobre Ele se ressaltava mais a justiça de Deus que a sua
misericórdia, a tendência era considerar o estado de maldição (e, portanto, o estado
selvagem ou de desolação) uma condição quase insuperável depois que alguém havia caído
nela.
A doutrina cristã da redenção pela graça, e da graça como um remédio que poderia
ser dispensado através da administração dos Sacramentos pela Igreja, estimulava uma
atitude muito mais caridosa por parte dos fiéis para com o pecador que decaíra do estado de
graça num estado de selvageria do que o permitia a concepção originariamente puritana da
Divindade no Antigo Testamento. Pelo menos, era essa a teoria. Na realidade, o
universalismo cristão não era menos notavelmente egocêntrico, num sentido confessional,
do que o seu antigo protótipo hebraico. Universalista em princípio, na prática a Igreja reunia
apenas aqueles que aceitavam a qualidade de membros segundo os seus próprios termos.

96 Augustine, City of God, 2:112.


97 Idem, pp. 112-113.
! 7. Idem, p. 113.
99 Pedersen, Israel, 2:455.
AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 183

Isso queria dizer que, embora em princípio qualquer um pudesse ser admitido na-Igreja, o
membro potencial da Igreja tinha de estar pronto a despir-se do homem antigo e revestir o
novo. E, conquanto se admitisse que a queda da graça pudesse ser perdoada, o pecador
decaído que buscasse readmissão na comunidade dos fiéis tinha de exibir prova de sua
intenção de aceitar no futuro a autoridade e a disciplina da Igreja e não tentar introduzir na
comunidade doutrinas e práticas estranhas, importadas do estado de pecado em que, no seu
orgulho, havia caído. Tudo isto esteve envolvido nas lutas contra as heresias de Donato, de
um lado, e de Pelágio, de outro, durante os séculos IV e V 100.
Todavia, os pensadores cristãos insistiam em que um homem poderia pecar e não cair
numa condição da qual não havia absolutamente qualquer redenção. Depois da Encarnação,
todos os homens eram em princípio passíveis de salvação, e isto significava que, qualquer
que fosse o estado de de- generação física em que um homem caísse, a alma permanecia
num estado de graça potencial. O pecado, insiste Santo Agostinho, é menos uma condição
positiva do que uma negação de uma bondade original, uma condição de afastamento da
comunhão com Deus, que é, a um só tempo, a causa e a consequência do orgulho101. E pode
ou não vir acompanhado de sinais de degradação física. Já que somente Deus conhece com
exatidão quem pertence e quem não pertence à sua cidade, resta aos fiéis trabalhar para a
inclusão de todos na comunidade da Igreja. Isto significava que mesmo os homens mais
repugnantes - bárbaros, gentios, pagãos e hereges - tinham de ser considerados objetos de
proselitismo cristão, ser vistos como possíveis convertidos e não como inimigos ou fontes
de corrupção, a serem exilados, isolados e destruídos. Em última análise, diz Santo
Agostinho, mesmo os homens mais monstruosos ainda eram homens, e mesmo aquelas raças
de homens selvagens descritas por viajantes antigos e contemporâneos tinham de ser consi-
deradas potencialmente capazes de partilhar da graça que concedia a qualidade de membro
da Cidade de Deus.
Comentando os diferentes tipos de raças monstruosas relatados pelos antigos
viajantes - raças de homens com um olho no meio da testa, pés voltados para trás, de duplo
sexo, homens sem boca, pigmeus, homens sem cabeça com olhos nos ombros, e homens
com aspecto de cão que ladram em vez de falar (todos os quais, incidentalmente, figuram
na iconografia medieval como representações dos homens selvagens) - Santo Agostinho
insiste em que a estes não se deveria negar a posse de uma humanidade essencial. Todos
devem ser concebidos originários do “protoplasta único”, diz ele; e argumenta que “não nos
deve parecer absurdo que, havendo nas raças individuais partos monstruosos, assim também
na raça total haja raças monstruosas”2'. Certamente, ele acredita que tais raças monstruosas
devem ter descendido de Cam e de Jafé, filhos de Noé, o primeiro considerado pelos teó-
logos medievais o Herege arquetípico, e o segundo o Gentio arquetípico, em contraposição
a Sem, que se acreditava ser o Hebreu arquetípico, o ancestral de Abraão e do próprio Cristo.
Sua descendência do Pecador arquetípico — em contraste com a descendência das raças
gentias do Herege arquetípico - explica a incapacidade destas raças monstruosas de falar
(visto que a confusão da linguagem é considerada reflexo da confusão de pensamento) e a
sua devoção a deuses monstruosos. Não obstante isso, insiste Santo Agostinho, elas são
potencialmente passíveis de salvação, tanto quanto qualquer criança cristã que possa ter
nascido com quatro dedos nas mãos em vez de cinco. A diferença entre estes monstros e a
humanidade cristã normal ou a variante (paga) normal é mais de grau que de tipo, é mais de
mera aparência física que de substância moral manifestada na aparência física.
O acréscimo excessivo de conceitos gregos, e especialmente neoplatô- nicos, a ideias
judaicas no cristianismo tendeu a estimular mais a distinção que a fusão entre essências e

100 Ver Charles Norris Cochrane, Chri.uianity anâ Classical Culture; A Study ofThou^ht and Actionfrom Augustus to Augustine
(London, 1957), pp. 206, 209, 452.
101 Augustine, Of True Religion, vi, 21 -xv, 29, em Augustine: Earlier Writings, trad. J. H. S. Burleigh (London, 1953), pp.
235-239.
184 TRÓPICOS DO DISCURSO

atributos. Os teólogos medievais analisavam o problema do Homem Selvagem não em


função de características físicas que podiam ser manifestações de degradação espiritual, mas
em função da possibilidade de Deus dar a um homem a alma de um animal, ou dar a um
animal a alma de um homem. Era difícil encarar a noção de Homem Selvagem, porque ela
sugeria uma falha do poder de criação de Deus ou um tipo de malevolência para com o
homem da parte de Deus, que a doutrina da caridade cristã negava expressamente. Era lícito
falar de uma natureza degradada, de uma natureza mergulhada na corrupção e na
decadência. E poder-se-ia falar de uma humanidade decaída, o estado do qual Cristo viera
libertar os escravizados pelo pecado de Adão. Mas falar de um Homem Selvagem era falar
de um homem com a alma de um animal, um homem tão degradado que não poderia ser
salvo nem mesmo pela própria graça de Deus.
São Tomás de Aquino analisa longamente as diferenças entre a alma animal e a alma
humana. A alma animal, diz ele, é puro desejo não-discipli- nado pela razão; ela deseja, mas
não sabe que deseja. A alma animal dá vida a uma busca incessante, uma vida de luxúria
sem satisfação, de vontade sem direção, uma perambulação que só cessa com a morte. E
porque possuíam uma alma assim, os animais foram destinados ao serviço do homem e ao
seu governo. E, porque possuíam uma alma como essa, o homem poderia fazer dos animais
o que quisesse: domesticá-los e utilizá-los ou, se necessário, destruí-los sem cometer
pecado102. Se esse era o destino dos animais, então os homens selvagens, homens dotados
de alma animal, tinham de ser tratados de maneira semelhante pelos homens normais. Mas
isto era contrário à mensagem dos Evangelhos, que oferecia a salvação a quem quer que
fosse dotado de uma alma humana, qualquer que fosse a sua condição física. Era por possuir
uma alma humana que o homem era capaz de elevar-se acima do desejo sem objetivo que
caracterizava o estado meramente animal, e de compreender que o seu único propósito na
vida era buscar a união com o seu Criador e trabalhar por ela, com a ajuda de Deus e da
Igreja, do começo ao fim dos seus dias. O estado de selvageria em que a lenda popular
insistia em dizer que um homem poderia cair expressava uma profunda ansiedade, menos
sobre o meio de salvação do que sobre a possibilidade de alguém poder regressar a uma
condição em que pudesse perder a própria oportunidade de salvação. O pensamento cristão
medieval não permitia a contemplação dessa contingência. Em A Divina Comédia, Dante
coloca a coisa o mais próxima possível dos possuidores de uma alma animal que ele pode
imaginar pecadores carnais, aqueles que “sujeitam a razão à luxúria”, no segundo círculo
do inferno. O castigo deles é serem eternamente açoitados por um vento escuro e
tempestuoso103. Se esses pecadores tivessem sido homens selvagens, faltos de uma alma
humana, não teriam sido punidos no inferno, mas, como os monstros pagãos no poema de
Dante, estabelecidos como guardiães do inferno ou torturadores dos pecadores consignados
ao inferno.
A suposta mudez do Homem Selvagem nos lembra que, para muitos pensadores
gregos, um barbaros (termo cujo derivado, bárbaro, somos inclinados a usar para indicar o
estado selvagem) era alguém que não falava grego, alguém que balbuciava e que carecia,
portanto, do único poder pelo qual se poderia exercer a vida política e alcançar uma
verdadeira humanidade. Não surpreende que as imagens do bárbaro e do Homem Selvagem
se combinem entre si em muitos escritores medievais, como em muitos escritores antigos.
Principalmente em tempos de guerra ou revolução, os escritores antigos tendiam a atribuir
selvageria e barbárie a quem quer que nutrisse concepções diferentes das suas próprias. Mas,
em geral, assim como os hebreus distinguiam entre judeus, gentios e homens selvagens,
também os gregos e os romanos faziam distinção entre homens civilizados, bárbaros e ho-
mens selvagens.

102 ‘The Sutnma Theologica”, ques. 6, arls. 2-4, in Introducüon to St. Thomux Aquinas, ed. Anlon C. Pcgis (New York, 1948),
pp. 4S3-486.
103 Dante, “O Inferno”, em A Divina Comédia, canto V.
AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 185

A distinção, em ambos os casos, estava ligada à diferença entre os homens que viviam
segundo alguma lei (mesmo uma lei falsa) e os que viviam sob nenhuma lei. Embora
Aristóteles, numa famosa passagem da Política, tenha caracterizado os bárbaros como
“proscritos naturais”, como seres “sem tribo, sem lei e sem coração”, e tenha concordado
com Homero em que “é justo que os gregos devam governar os bárbaros” 104, a maioria dos
escritores clássicos reconheciam que, se tribos bárbaras honravam pelo menos a instituição
da família, deviam viver segundo algum tipo de lei e, portanto, eram capazes de algum tipo
de ordem. Este reconhecimento é provavelmente um meio de indicar uma percepção do fato
incômodo de que as tribos bárbaras eram capazes de se organizar, pelo menos
temporariamente, em grupos suficientemente grandes para constituir uma ameaça à própria
“civilização”. Os pensadores medievais, a exemplo dos romanos antigos, concebiam que os
bárbaros e os homens selvagens eram escravizados à natureza; eram, como os animais,
escravos do desejo e incapazes de dominar as suas paixões; eram volúveis, inconstantes,
confusos, caóticos; eram incapazes de vida sedentária, de autodisciplina e de trabalho
sistemático; eram passionais, perplexos e hostis à humanidade “normal” - tudo o que é
sugerido nas palavras latinas que designam “selvagem” e “selvageria”105. Embora os
bárbaros e os homens selvagens supostamente compartilhassem estas qualidades, uma
importante diferença continuava sem solução entre eles: o Homem Selvagem sempre viveu
sozinho, ou, quando muito, com uma parceira. Segundo o mito que se desenvolve na Idade
Média, o Homem Selvagem é incapaz de assumir as responsabilidades de pai, e, se a sua
parceira tem filhos, ela os abandona no local do nascimento para que sobrevivam ou
pereçam106.
Isto significava que o Homem Selvagem e o bárbaro representavam diferentes tipos
de ameaça aos homens “normais”. Enquanto o bárbaro constituía uma ameaça à sociedade
em geral - à civilização, à pureza da raça, à excelência moral, tudo aquilo de que o orgulho
do grupo fechado se julgava investido o Homem Selvagem representava uma ameaça ao
indivíduo, como nêmese e como um possível destino, como inimigo e como representante
de uma condição em que um homem individual, tendo decaído da graça ou tendo sido levado
da sua cidade, poderia degenerar. Por conseguinte, a relação temporal e espacial do Homem
Selvagem com a humanidade normal difere da do bárbaro com o homem civilizado.
Concebe-se convencionalmente que o lar do bárbaro se localiza bem longe no espaço, e que
o tempo que leva para chegar às fronteiras da civilização é repleto de possibilidades
apocalípticas para o conjunto da humanidade civilizada. Quando surgem as hordas bárbaras,
os alicerces do mundo parecem ruir e os profetas anunciam a morte da era antiga e o advento
da nova107.
Em contrapartida, representa-se convencionalmente o Homem Selvagem como
sempre presente, habitando os limites imediatos da comunidade. Apenas está longe da vista,
além do horizonte, na floresta próxima, no deserto, nas montanhas ou nas colinas. Dorme
em grotas, debaixo de grandes árvores, ou nas cavernas de animais selvagens, para onde
carrega à força crianças ou mulheres indefesas para ali fazer-lhes coisas indizíveis. E é tam-
bém matreiro: rouba as ovelhas do redil, as galinhas do galinheiro, prega partidas ao pastor
e embriaga o guarda-caça. No mito medieval principalmente, o Homem Selvagem é
concebido coberto de pêlos, negro e deformado. Pode ser um gigante ou um anão, ou
simplesmente alguém horrivelmente desfigurado, como Charles Laughton na versão

104 Aristóteles, Política, livro I, cap. 2.


105 A palavra latina para wild (selvagem) éferux (que tem a conotação daquilo que cresce num campo), mas também xihfsicr
(que habita os bosques), indomilus (não-domado), rudis (rude), incultus (i ncul to),/crtu (feroz), irnrnunis (gigantesco, cruel),
saevus (feroz), insanux (louco), lascivus (lascivo); os etimologistas sugerem que ferus tem a mesma raiz de/e/rum (ferro);
ver Bernheimer, Wild Men in the Middle Ages, cap. 1. A obra de Bernheimer é a fonte da maior parte das informações
oferecidas neste ensaio sobre a doutrina do Homem Selvagem; trata-se de uma obra indispensável a quem quer que esteja
buscando relacionar o pensamento oficial sobre o tema do selvagem com os seus equivalentes populares.
106 Bernheimer, Wild Men, pp. 45-46.
107 Ver Denis Sinor, “The Barbarians”, Diogenes 18 (Summer 1957): 47-60.
186 TRÓPICOS DO DISCURSO

americana do filme O Corcunda de Notre-Dame. Mas, qualquer que seja o modo de encará-
lo, o Homem Selvagem quase sempre representa a imagem do homem liberto do controle
social, o homem em quem os impulsos libidinosos lograram predominância total.
Na Idade Média cristã, então, o Homem Selvagem é a destilação das ansiedades
específicas subjacentes às três garantias supostamente fornecidas pelas instituições
especificamente cristãs da vida civilizada: as garantias do sexo (na forma organizada pela
instituição da família), do sustento (proporcionado pelas instituições políticas, sociais e
econômicas) e da salvação (propiciada pela Igreja). O Homem Selvagem não usufrui
nenhuma das vantagens do sexo civilizado, da existência social regularizada ou da graça
institucionalizada. No entanto, é preciso ressaltar, ele tampouco sofre — na imaginação do
homem medieval - qualquer das restrições impostas pelo fato de pertencer a essas
instituições. É o desejo personificado, dotado da força, sagacidade e astúcia que dá plena
expressão a toda a sua lascívia. Analogamente, sua vida é instável. Ele é glutão, come à
saciedade num dia e passa fome no outro: é lascivo e promíscuo, sem qualquer consciência
de pecado ou perversão (e, portanto, obviamente privado dos prazeres dos vícios mais
requintados). E seu poder e agilidade físicos aumentam na razão direta da diminuição da
sua consciência.
Na maioria dos relatos sobre o Homem Selvagem na Idade Média-, ele é forte como
Hércules, rápido como o vento, astuto como o lobo e trapaceiro como a raposa. Em algumas
histórias, esta astúcia se transforma numa espécie de sabedoria natural que o torna um
mágico ou pelo menos um mestre do disfarce108. Isto valia particularmente para a mulher
selvagem da lenda medieval: supunha-se que fosse incomparavelmente feia, coberta de
pêlos à exceção dos seios volumosos e pendentes, que lançava sobre os ombros quando
corria. Esta mulher selvagem, contudo, era supostamente obcecada pelo desejo de homens
normais. A fim de seduzir o cavaleiro ou o pastor incauto, poderia aparecer na forma da
mais atraente dás mulheres, revelando a sua feiúra permanente apenas durante o ato
sexual109.
Evidentemente, aqui, a ideia da mulher selvagem sedutora, tal como o Homem
Selvagem mágico, principia a fundir-se com as noções medievais de demônio, diabo e
feiticeira. Uma vez mais, porém, o pensamento formal distingue entre o Homem Selvagem
e o demônio. Acreditava-se geralmente que o Homem Selvagem (ou a mulher) fosse um
exemplo de regressão humana ao estado animal; o demônio, o diabo e a feiticeira são
espíritos malignos ou seres humanos dotados de poderes espirituais malignos, servos de
Satã, cujas capacidades para o mal jamais poderiam ser igualadas pelo Homem Selvagem.
Como o Homem Selvagem não tinha faculdades racionais, não poderia realizar de maneira
consciente uma ação maléfica. Portanto, seria isento de todo sentimento de culpa ou
consciência. O estado selvagem é o que um ser humano normal assume em consequência
da perda da sua humanidade, e não uma força positiva que se possuía, como o era o poder
do diabo.
A incapacidade do pensamento oficial de conceber uma humanidade selvagem por
certo não destruía o poder que tal concepção exercia sobre a imaginação popular. Mas é
possível que o tenha moderado um pouco. Pois se, durante a Idade Média, o Homem
Selvagem era objeto de náusea e aversão, de medo e ansiedade religiosa, a quintessência da
possível degradação humana, em geral não era tido como exemplo de corrupção espiritual.
Esta posição era reservada a Satã e aos anjos decaídos. Apesar de tudo, o Homem Selvagem
era alguém que perdera a razão e que, na sua loucura, pecava ininterruptamente contra Deus.
Diferentemente dos anjos rebeldes, o Homem Selvagem não sabia que vivia em estado de
pecado, nem mesmo que pecava ou nem mesmo o que poderia ser um “pecado”. Isto quer
dizer que ele possuía, juntamente com a degradação, um tipo de inocência - não a

108 Bernheimer, Wild Men, pp. 38 e s.


109 Ibiá., p. 33.
AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 187

neutralidade moral da fera, certamente, mas antes uma posição “além do bem e do mal”. Ele
pecava, mas pecava por ignorância e não propositadamente. Isto conferia às expressões que
dava à luxúria, violência, perversão e logro um tipo de liberdade que poderia ser invejada
pelos homens normais, homens presos na rede da repressão e da sublimação que constituía
a base da vida comum. Não admira, pois, que, nos séculos XIV e XV, quando os laços
sociais da cultura medieval principiaram a afrouxar-se, o Homem Selvagem tenha passado
pouco a pouco de objeto de abominação e medo (e de inveja apenas velada) a objeto de
inveja declarada e até de admiração. Não surpreende que, numa época de revolução cultural
geral, o antítipo popular da humanidade oficialmente definida como “normal”, o Homem
Selvagem, se transformasse no ideal ou modelo de uma humanidade livre, os seus supostos
atributos se tornassem a essência de uma humanidade perdida e a sua imagem idealizada
fosse usada para justificar a revolta contra a própria civilização.
Esta redenção da imagem do Homem Selvagem começou simultaneamente com a
recuperação da cultura clássica, com o renascimento dos valores humanistas e a
improvisação de uma nova concepção da natureza, de inspiração mais clássica que judaico-
cristã. As ideias clássicas sobre as lendas da natureza e da natureza paga sobreviveram por
toda a Idade Média. Mas, até o século XII, haviam vivido um tipo de existência secreta entre
os intelectuais, de um lado, e o campesinato incompletamente cristianizado, de outro.
Segundo Bernheimer, durante o século XII os homens selvagens começaram a aparecer no
folclore como protetores dos animais e das florestas, e como mestres de uma sabedoria que
se mostrava mais útil ao camponês que a “mágica” do padre cristão3'1. Esta concepção do
Homem Selvagem talvez reflita uma visão mais bucólica da natureza, ela própria, em parte,
um reflexo de uma nova experiência campesina. Por volta do século XII, novas ferramentas
e técnicas agrícolas estavam trazendo vastas áreas da Europa ao cultivo, à proporção que as
florestas eram desbravadas e derrubadas, e o sertão transformado em pastos de carneiros.
Ou talvez essa concepção reflita um tipo de resistência campesina pagã aos missionários
cristãos, que estavam reassumindo a tarefa da Europa cristianizadora, iniciada em tempos
anteriores mas interrompida pelas invasões viquingues, pelas investidas muçulmanas e pelo
estado de guerra feudal. Qualquer que seja a razão, o surgimento do Homem Selvagem
benéfico, o protetor e mentor dos camponeses, é acompanhado de sua identificação com os
sátiros, os faunos, as ninfas e os silenos dos tempos antigos. E esta identificação
complementa, num nível popular, a reivindicação de natureza pelos intelectuais através do
renascimento do pensamento clássico, e principalmente do aristotelismo, que ocorria na
mesma época.

5.

Já observei que os pensadores clássicos consideravam o Homem Selvagem de um


modo diferente do de seus congêneres hebraicos. E salientei que isto não se devia ao fato de
gregos ou romanos recearem menos a região selvagem que os hebreus. Como os judeus, os
gregos contrapunham a vida dos homens que viviam segundo alguma lei à dos homens sem
a lei, a ordem (cosmos) da cidade à perturbação (caos) do campo. Os que eram capazes de
viver fora da cidade, além da norma da lei, insistia Aristóteles, tinham de ser animais ou
deuses. Em suma, ele, como a maioria dos pensadores gregos, concebia basicamente que a
humanidade designava um tipo especial de relação que poderia existir entre os homens, e
não uma essência ou uma substância que poderia distinguir definitivamente os homens dos
deuses, de um lado, e dos animais, de outro - pelo menos, essa é a opinião de Aristóteles em
suas análises de problemas sociais e culturais quando contrapostos aos problemas
metafísicos.
Deste modo, conquanto dividissem a humanidade em civilizados e bárbaros, os
gregos não defendiam obsessivamente uma distinção rígida entre natureza animal e natureza
188 TRÓPICOS DO DISCURSO

humana. Em parte, isto acontecia porque a maioria dos gregos perfilhava a noção de uma
substância simples, universal, da qual todas as coisas eram feitas, ou a noção de um princípio
universal do qual todas as coisas eram manifestações110. O homem “normal” era apenas
alguém que tivera a sorte de nascer numa cidade-estado; o homem “normal”, diz Aristóteles,
é zoon politikon, um animal político. Somente os homens que haviam alcançado o estado
político poderiam esperar realizar uma humanidade plena. Nem todos dentro da cidade
poderiam esperar tornar-se plenamente humanos: na sua Ética, Aristóteles negava
especificamente às mulheres, aos escravos e aos comerciantes tal possibilidade 111. Mas
nenhuma pessoa de fora da cidade tinha a mínima chance de realizar plenamente a sua
humanidade: as condições de uma vida não-regida pela lei o impediam. Quem quer que
vivesse fora do mundo humano poderia tornar-se um objeto de curiosidade ou um tema de
estudo, mas jamais poderia servir de modelo daquilo que os homens devem esforçar-se para
ser. Deste modo, o que um grego teria entendido pela nossa noção de Homem Selvagem
poderia parecer quase uma contradição de termos quanto, posteriormente, para os teólogos
cristãos.
De fato, os gregos não tinham necessidade do conceito que via no Homem Selvagem
uma imagem projetiva de sua vida de fantasia. Sua imaginação povoava o universo inteiro
de grande número de misturas de espécies, produtos da união sexual de deuses com homens,
de homens com animais, de animais com deuses e assim por diante 112. Se, entre os antigos
gregos, a conspurcação da espécie era um temor tão intenso a seu próprio modo quanto
qualquer coisa que os hebreus sentiam acerca disto, a imaginação grega ainda tinha um certo
prazer na contemplação das possíveis consequência s dessa conspurcação. Assim, em
contraposição às vidas dos deuses e heróis, que só diferiam dos homens comuns pela
magnitude de seu poder ou talento, e como que contrabalançando-as, havia criaturas como
os sátiros, os faunos, as ninfas e os silenos; monstros benéficos como os centauros, e ma-
lignos como o Minotauro, nascido da união de uma mulher, Pasífae, com um touro. Estas
criaturas desempenhavam para a imaginação clássica quase o mesmo papel que o Homem
Selvagem representava para o cristão medieval. Eram, sobretudo, representações imagéticas
daqueles impulsos libidinosos que, por razões sociais mais que puramente religiosas, não
poderiam ser expressos nem liberados diretamente. Algumas destas criaturas - faunos,
sátiros e silenos - buscam unicamente o prazer: o objeto do seu desejo é o prazer físico em
si, e são pouco mais que genitálias ambulantes. Sensuais, lascivas, promíscuas, estas
criaturas só podem ser caracterizadas adequadamente se recorrermos ao vernáculo. Com
dotes naturais iguais aos dos carneiros, touros e garanhões, ou possuindo os seios e nádegas
excessivos do eterno feminino, ou, como no caso do Hermafrodita, possuindo ambos os
conjuntos de atributos sexuais, viviam quase que apenas para o intercurso sexual - sem
consciência, autoconsciência ou remorso.
Caracteristicamente, estas criaturas eróticas não habitam o ermo nem o deserto; vívem
em geral nos prados ou nos lagos das montanhas, relativamente mais pacíficos. São tão
indisciplinadas quanto os malditos da doutrina hebraica, mas buscam algum lugar onde
possam satisfazer suas capacidades eróticas (geralmente invejáveis). Os monstros nascidos
da união de um ser humano com um animal são os que habitam os lugares desertos, ou,
como no caso do Minotauro, ocupam um ambiente artificial, o Labirinto, que, como já foi
sugerido, é a representação arquetípica de uma cidade selvagem ou agreste113. Estes
monstros representam o lado escuro da imaginação clássica paga, o tanatótico, em oposição
ao erótico, fantasias do homem pagão. Aqui, o estado selvagem, no seu aspecto maligno,

110 Ver Harold Cherniss, “The Chara:terisücs and Effects of Pre-Socratic Philosophy”, JHI12 (1951): 319- 345; e R. G.
Collingwood, The Idea of Niiiure (Oxford, 1945), pp. 29 e s.
111 Ver Aristóteles, Ética u Nicômuco, livro X, cap. 8; Política, livro 1.
112 Bernheimer relaciona os tipos de sub-homem encontrados na literatura clássica e no folclore. Wild Men, pp. 86-101.
113 Ver Northrop Frye, “Archetypal Criticism: Theory of Myths”, em Anutomy of Criticism: Four Essays (Princeton, 1957),
e.sp. pp. 190 e s. Para uma história da imagem do Labirinto na arte e na literatura mo* dcrnas, ver Gustav René Hocke,
Die Welt ais Ltthyrinth: Mcinier und Munie in der europüischai Kunst (Hamburg, 1957).
AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 189

parecia ser a con- traparte do medo hebraico da perda da bênção de Deus.


Ora, o homem medieval não tinha qualquer necessidade de reviver o lado escuro, o
lado dos Ciclopes ou do Minotauro, da concepção clássica de estado selvagem; este lado já
estava presente na própria concepção do Homem Selvagem, apontado como a
monstruosidade máxima para o cristão crente. O que ele necessitava, quando o momento
era propício, era do outro lado, da representação erótica da libido que busca o prazer, mas
sem consciência. E assim, quando os impulsos que levavam os homens a arejar a sua mente
pela exposição ao pensamento clássico começaram a dar sinais de vida no século XII, o
homem ocidental inconscientemente começou a libertar igualmente as suas emoções. Isto
pelo menos pode ter o significado da atribuição ao Homem Selvagem das características dos
sátiros, faunos, ninfas e alguns dos monstros benfazejos, como os mestres centauros. Esta
associação do Homem Selvagem com as imagens pagãs da liberdade libidinosa, e
principalmente da erótica, criou as reservas imaginativas necessárias para o cultivo de um
primitivismo socialmente revolucionário no começo da Era Moderna.
Seja-me permitido aqui abrir um parêntese para estabelecer uma distinção entre
primitivismo e arcaísmo, a fim de ajudar a esclarecer a relação entre a imagem do Homem
Selvagem e o radicalismo social na cultura moderna. O primitivismo busca idealizar algum
grupo ainda não-violado pela disciplina civilizacional; em contrapartida, o arcaísmo tende
à idealização de ancestrais remotos reais ou lendários, selvagens ou civilizados. Ambos os
tipos de idealização parecem ser momentos eternos na cultura humana, representando um
desejo, sentido de tempos em tempos por todos nós, de escapar às obrigações impostas pelo
envolvimento em empreendimentos sociais comuns. Entretanto, o arcaísmo parece ser o
mais constante, visto que é possívei recorrer a ele tanto segundo maneiras socialmente
consolidadoras quanto de maneiras socialmente disruptivas. A noção de que “era uma vez”
um homem não-corrompido pela cobiça, pelo egoísmo, pela inveja etc. - uma condição da
qual decaíram as gerações atuais - pode servir tanto a forças sociais conservadoras quanto a
radicais. Pode ser utilizada para justificar valores convencionais, bem como o abandono do
comportamento convencional. O arcaísmo cria mitos de capacitação que podem servir para
despertar o orgulho do grupo (como na Eneida de Virgílio ou na História de Roma de Tito
Lívio), ou ser utilizados na sociedade tradicional para promover uma revolução (como a de
Lutero) mais no sentido de um renascimento ou reforma que no de uma inovação. Entre os
gregos, Hesíodo, possivelmente na esperança de inspirar os homens a empreender a reforma
social, usou o mito de uma idade áurea no passado remoto, quando os homens viviam em
harmonia com a natureza e entre si, como uma antítese de sua própria época, a idade do
ferro, quando apenas a força prevalecia. Porém - como se dá no caso de Hesíodo — o
arcaísmo não raro traz em si mesmo o reconhecimento de que os homens da antiga era
idealizada eram inerentemente superiores aos homens do presente, de que eram feitos de
um estofo mais refinado114. E, desse modo, a evocação de uma idade do ouro no passado
pode servir frequentemente tanto para reconciliar os homens com as privações do presente
quanto para inspirar revolta a bem de um futuro melhor.
Coisa inteiramente diversa sucede com o primitivismo. Embora utilizado como
instrumento de critica social quase da mesma forma que o arcaísmo, o primitivismo é
quintessencialmente uma doutrina radical. Pois para ele o fundamental é a convicção de que
os homens são realmente os mesmos através do tempo e do espaço, mas se tornaram maus
em certas épocas e lugares devido à imposição de limites sociais. Os primitivistas
contrapõem o homem selvagem, tanto do passado como do presente, ao homem civilizado
como o modelo e ideal, mas, em vez de salientar as diferenças qualitativas entre eles, fazem
destas diferenças uma questão meramente quantitativa, uma diferença mais em grau de

114 Para um exemplo da ambivalência política do arcaísmo, ver Sir Ronald Syme, The Roman Revolution (Oxford, 1939), pp.
459-475, que analisa “A Organização da Opinião” seguindo o triunfo de Augusto sobre Marco Antônio e a contribuição
dada a ela por Virgílio e Tito Lívio.
190 TRÓPICOS DO DISCURSO

corrupção que em tipo. A consequência é que, no pensamento primitivista, a reforma é


encarada mais como a libertação de um fardo que se tornou pesado demais do que como
uma reconstituição ou reconstrução de uma perfeição humana original e subsequentemente
perdida. O primitivismo apenas exorta os homens a serem eles próprios, a darem vazão aos
seus desejos originais, naturais, mas posteriormente reprimidos, a abolirem as restrições da
civilização e, portanto, a penetrarem um domínio que é naturalmente seu. Como o arcaísmo,
o primitivismo expõe a visão de um mundo perdido, mas, diferentemente do arcaísmo,
insiste em que este mundo perdido ainda está presente de maneira latente no homem
moderno, corrupto e civilizado - e está ali para ser recapturado.
Outro aspecto desta diferença: os arcaístas por vezes diferem dos primitivistas no
modo de conceber aquela natureza-em-geral que funciona como o pano de fundo para as
ações dos seus heróis imaginados ou como o antagonista contra o qual os seus heróis agem
para construir uma dotação humana preciosa. A imagem que os arcaístas têm da natureza é
permeada de violência e turbulência; é a natureza da selva, a natureza animal, a natureza
“de dentes e garras rubros”, de conflito e luta, onde só os mais fortes sobrevivem. E o
“bosque escuro” de Lucrécio, de Maquiavel, de Hobbes e de Vico, a medonha e informe
floresta que para Dante é a linha de partida da jornada do seu peregrino cristão. É a natureza
da caça, na forma como foi retratada por Piero di Cosimo, ou do mistério, como em
Leonardo da Vinci115.
Em contrapartida, a natureza dos primitivistas é arcádica, tranqüila, um local onde o
leão dorme junto com o cordeiro, onde as pastoras se deitam com os pastores, ingênua e
frivolamente; é o mundo do jardim fechado, onde a virgem doma o unicórnio - o mundo do
piquenique. Somente neste segundo tipo de natureza pode o Homem Selvagem assumir o
aspecto do Nobre Selvagem - o gentil selvagem da Faerie Queen de Spenser e do Lamento
dos Homens Selvagens sobre o Mundo Desleal de Hans Sachs116.
No poema de Sachs, escrito no século XVI, o Homem Selvagem vive num estado de
pureza edênica, sem qualquer mácula de pecado original, como um antítipo do mundo
corrompido da corte e da cidade. Bernheimer data do século XIV o aparecimento do Homem
Selvagem como Nobre Selvagem e o renovado interesse numa suposta idade áurea perdida
na Europa Ocidental; e relaciona ambos os desenvolvimentos com os fenômenos de crise
cultural. Durante épocas de colapso cultural, diz ele, os homens sentem a necessidade de
voltar a modos mais simples de vida, a épocas mais sagradas, uma necessidade de recomeçar
a construção da humanidade. Na esteira de Huizinga, cujo grande livro sobre o declínio da
civilização medieval parece ter-lhe inspirado o estudo, Bernheimer atribui o florescimento,
durante essa época, do que chamei primitivismo (para diferenciá-lo do arcadis- mo que
aparece simultanemante a ele) ao fato de a cultura oficial, tanto secular quanto religiosa,
haver-se tornado excessivamente opressiva, visto que as formas disponíveis de sublimação
haviam sido açambarcadas por uma nobreza cavalheiresca, antiquada e psicótica 117.
Escritores e artistas começaram a encarar a história, o mito e a lenda como figuras que
exprimiriam ao mesmo tempo os seus desejos mais íntimos de libertação e dariam expressão
ao seu respeito pela tradição, pelo antigo e pelo familiar. Daí o recurso à natureza primitiva
de Piero di Cosimo, as paisagens oníricas de Leonardo, os romanos simples de Maquiavel,
os apóstolos populares de Lutero, os loucos de Erasmo e os gigantes grosseiros e glutões de
Rabelais, Gargântua e Pantagruel. Numa época de rejeição universal da imagem
convencional de humanidade “normal”, uma noção de humanidade permeada de contradi-
ções entre seu ideal e sua realidade, o radicalismo residia na adoção de qualquer antítipo

115 Para uma análise das imagens divergentes do mundo natura! tal como se manifestaram no início da arte moderna, ver
Kenneth M. Clark, Lundxcupe intoArt (London, 1949), caps. 1-4.
116 Sobre a imagem do Homem Selvagem em Spenser e Sachs, ver Bernheimer, Wild Men, pp. 113 e s.
117 Comparar Bernheimer, Wild Men, pp. 144 e s., e Johann Huizinga, The of the Middle Ages: A
Study of the Forms of Life, Thought, and An in France and the Netherlands in the XlVih and XVth Centuries, trad. F. Hopman
(London, 1967), caps. 17 e 18.
AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 191

daquela imagem que mostrasse que a sua dedicação esquizóide a conceitos mutuamente
exclusivos da natureza do homem era a doença que era. E, como disse Bernheimer, “nada
poderia ter sido mais radical do que a atitude de simpatizar ou identificar-se com o Homem
Selvagem, cujo modo de vida era o repúdio de todos os valores acumulados da
civilização”118.

4.

Dessa forma, por volta do final da Idade Média, o Homem Selvagem tornou-se dotado
de duas personalidades distintas, cada qual consonante com uma das possíveis atitudes que
os homens poderiam assumir em relação à sociedade e à natureza. Se alguém considerasse
a natureza um mundo horrível de lutas, uma natureza animal, e a sociedade uma condição
que, apesar das suas imperfeições, ainda era preferível ao estado natural, então continuaria
a ver no Homem Selvagem o antítipo da humanidade desejável, uma advertência do estado
em que cairiam os homens se rejeitassem definitivamente a sociedade e as suas normas. Se,
por outro lado, a sua visão da natureza fosse a da zona rural cultivada, do que se poderia
chamar natureza her- bática, e se visse na sociedade, com toda a sua luta, uma degradação
da perfeição natural, então ele poderia estar inclinado a povoar esta natureza com homens
selvagens cuja função era servir de antítipos da existência social. A primeira atitude
predomina numa tradição de pensamento que se estende de Maquiavel, passando por
Hobbes e Vico, a Freud e Jean-Paul Sartre. A segunda atitude é representada por Locke e
Spenser, Montesquieu e Rousseau, e tem defensores recentes em Albert Camus e Claude
Lévi-Strauss.
De modo significativo, durante o período de transição da época medieval para a
moderna, muitos pensadores tomaram uma posição mais ambivalente, ao mesmo tempo
sobre a desejabilidade de idealizar o Homem Selvagem e sobre a possibilidade de escapar
da civilização. No seu famoso ensaio sobre o canibalismo, Montaigne utiliza relatos de
povos primitivos no Brasil mais ou menos da mesma forma que o historiador romano Tácito
utilizou relatos sobre as tribos germânicas: para atacar o provincianismo e etnocentrismo do
seu próprio povo, para minar as convenções irrefletida- mente reverenciadas pela sua
própria geração, para explodir preconceitos e ridicularizar as barbaridades de sua própria
época4'1. Mas, nem nos seus momentos mais deprimidos, Montaigne não sugere aos seus
leitores que libertem a fera ou o canibal que têm dentro de si119.
Similarmente, Shakespeare, mesmo naquela que é considerada a sua peça mais
pessimista, A Tempestade, continua ambíguo quanto ao valor relativo do mundo natural e
social. Assim, Shakespeare contrapõe Calibã, a encarnação da libido e senhor de um desejo
insaciável de liberdade, a Próspero, o mago, a quintessência do homem civilizado, todo ego
e superego, sapiente e poderoso, porém cansado e escravo de seu próprio requinte. E a luta
entre eles se resolve de uma forma que definitivamente não aproveita a nenhum dos dois
ideais. Cada um consegue, no fim, o que deseja, mas apenas desistindo de algo que, no
começo da peça, ele havia valorizado mais sumamente, e assumindo alguns dos atributos
do seu inimigo. Calibã é restaurado no reino de sua ilha, mas ao preço da sua inocência
selvagem. Próspero joga fora a sua varinha mágica, abandona a ilha e resolve viver como
um homem entre os homens, sem a vantagem sobre-humana, mas também sem a ilusão, que
talvez seja um tipo superior de inocência120.
Shakespeare, como a maioria dos seus contemporâneos, ainda é o poeta da ordem e

118 Bernheimer, Wild Men, pp. 144-145. O grifo é nosso.


119 Michel de Montaigne, “Of Cannibals”, em The Complete Works of Montaigne, trad. Donaid M. Frame (Stanford, 1958),
p. 152.
120 Ver Jan Kott, “Prospero’s SíafF”, em Shakespeare: Our Contemporary, trad. BoJesíaw Taborski (Garden City, N. Y.,
1964), pp. 237-285.
192 TRÓPICOS DO DISCURSO

da civilização, qualquer que seja o seu discernimento sobre a natureza repressora e opressiva
de ambas. É que, como Montaigne, a quem admirava, ele relutava em ver nas forças que se
opunham à ordem e à civilização a manipulação de um poder distintamente inumano.
E, evidentemente, outros fatores estavam em ação na reabilitação do Homem
Selvagem. Relatos de viajantes e exploradores sobre a natureza dos selvagens que
encontraram em locais longínquos poderiam ser lidos da forma que o leitor, no conforto do
lar, desejasse. Em todo caso, o Homem Selvagem estava sendo distanciado, desembarcado
em lugares suficientemente obscuros para lhe permitir que aparecesse como tudo quanto os
pensadores queriam fazer dele, embora ainda o situando em algum lugar além dos limites
da civilização.
Esta espacialização do mito do Homem Selvagem vinha acompanhada da sua
temporalização no pensamento histórico mais complexo da época. Vico, o filósofo
napolitano que transpôs a lacuna entre Barroco e civilização iluminista, insistia em que a
selvageria era tanto o estágio original quanto necessário de toda forma de humanidade
consumada. Na sua Ciência Nova, originariamente publicada em 1725, Vico retratava o
selvagem como um poeta natural, como a fonte de faculdades imaginativas ainda presentes
no homem moderno, civilizado, como o detentor de uma capacidade estética ou formadora
na qual a civilização tinha as suas origens - pelo menos entre os pagãos121. Foi a capacidade
do homem primitivo de poetizar a sua existência, de impor-lhe uma forma oriunda mais de
impulsos estéticos que morais, que permitiu aos povos pagãos construir um mundo social
unicamente humano em oposição aos seus próprios instintos animais que sentiam mais
profundamente. Para Vico, o selvagem era alguém que sentia naturalmente e pensava
poeticamente, o ancestral do homem moderno que começara vivendo poesia e terminara
tornando-se totalmente prosa. Vico sustentava que a bárbarie original do estado selvagem
era menos inumana que a bárbarie requintada de civilizações que, nos seus estágios finais,
eram tecnicamente avançadas porém moralmente corruptas. Além disso, afirmava que a
única cura para civilizações que haviam entrado em declínio residia talvez no retorno a uma
condição de bárbarie, numa revivescência dos poderes poéticos do selvagem - não o Nobre
Selvagem do philosophe (o selvagem como guardião da razão natural incontaminada e do
senso comum), mas o possuidor da pura vontade que, posteriormente, seria apontado pelos
românticos como uma alternativa para o homem civilizado.

5.

O que quer que seja o mito - um equivalente verbal de um ritual, uma narração poética
das origens, uma projeção das últimas coisas possíveis ele é também, como nos diz Northrop
Frye, um exemplo de pensamento que opera nos extremos da possibilidade humana, uma
projeção de uma visão da realização humana e dos obstáculos que se interpõem no caminho
dessa realização122. Por conseguinte, os mitos são orientados no sentido do ideal da liberdade
perfeita, ou redenção, de um lado, e da possibilidade de total opressão, ou danaçao, de outro.
Sendo os homens obrigados a viver a sua vida num ponto qualquer entre a ordem perfeita e
a desordem total, entre a liberdade e a necessidade, entre a vida e a morte, entre o prazer e
a dor, as duas situações extremas em que estas condições poderiam imaginavelmente ter
triunfado são uma fonte de contínua especulação em todas as culturas, arcaicas e modernas:
daí o fascínio universal pelas especulações utópicas do tipo apocalíptico e do tipo
demoníaco, o sonho do desejo saciado, de um lado, e o pesadelo da frustração completa, de
outro. Os mitos fornecem justificativas imaginativas dos nossos desejos e ao mesmo tempo

121 Ver Edmund Leach, “Vico and Lcvi-Strauss on the Origins of Humanity", em Giambattista Vico: An International
Symposium, ed. Giorgio Tagliacozzo e Hayden V. White (Baitimore, 1969), pp. 309-318.
122 Ver Frye, “Archetypal Criticism”, pp. 131-162, e “Varietíes of Litemry Utopias", em Utopias and Uto- pian Thought, ed.
Frank E. Manuel (Boston, 1967), pp. 25-49.
AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 193

exibem aos nossos olhos imagens das forças cósmicas que excluem a possibilidade de
qualquer satisfação perfeita deles.
O mito do Homem Selvagem serviu a uma dupla função no final da Idade Média.
Como demonstrou Bernheimer, na Idade Média a noção de estado selvagem é projetada de
maneira consistente nas imagens do desejo liberto das peias de toda convenção e ao mesmo
tempo nas imagens do castigo que a sujeição ao desejo atrai sobre nós123. O mito do Homem
Selvagem é o que a imaginação medieval concebe que seria a vida se os homens dessem
expressão imediata aos impulsos libidinosos, tanto em função dos prazeres que tal liberação
poderia proporcionar como em função da dor que dela poderia resultar.
Bernheimer fala, na linguagem freudiana, de recalque e sublimação, e sem dúvida
tem justificativa para fazê-lo124. Mas as tensões que se refletem nas concepções medievais
do Homem Selvagem são compreensíveis como fenômeno distintivamente medieval pelo
fato de que as duas imagens do estado selvagem - uma de desejo, outra de castigo - derivam
de tradições culturais diferentes e essencialmente incompatíveis. O próprio Bernheimer se-
gue a imagética benigna do estado selvagem até os arquétipos clássicos e a imagética
maligna até os arquétipos bíblicos125. Os dois conjuntos de imagens aparentemente se
fundiram (e confundiram) durante a Alta Idade Média, criando assim aquela concepção
anômala do estado selvagem que encontramos na iconografia dos séculos XIIÍ e XIV, de
um Homem Selvagem que é ao mesmo tempo bom e mau, invejado e temido, admirado e
caluniado. O pensamento formal cristão procurou difundir o conceito anômalo de estado
selvagem recorrendo à filosofia cristã da natureza contida na Esco- lástica. O esforço foi
inútil no campesinato, se as provas que Bernheimer apresenta da sobrevivência dos motivos
do Homem Selvagem medieval no folclore contemporâneo podem ser consideradas em seu
significado manifesto. Mas logrou êxito na esfera da alta cultura, Onde a ideia da natureza
era progressivamente purgada de todas as imputações teóricas do mal. Em consequência
desta redenção teórica da natureza, bem como de fatores culturais mais gerais, em alguma
época durante o século XV a concepção benigna do Homem Selvagem se livrou da
concepção maligna, e os escritores e pensadores começaram a reconhecer os usos fecundos
na crítica da cultura que uma versão desmitologizada da imagética benigna- poderia
proporcionar. Em suma, durante algum tempo no começo do período moderno, decerto
como parte de um movimento geral de secularização e como uma função do humanismo, a
imagem do estado selvagem foi “ficcionalizada”, ou seja, separada de uma “essência”
imaginada do estado selvagem, e passou ao uso limitado de instrumento de crítica
intracultural.
Seja-me permitido exemplificar o que entendo pela tradução do mito do selvagem
numa ficção por referência a Montaigne, que aqui, como em tantos outros assuntos, nos dá
uma clara indicação da maneira como irá se desenvolver uma atitude distintamente
moderna. No seu ensaio “Dos Canibais”, Montaigne observa que “todo homem chama de
barbárie tudo o que não é a sua própria prática”. Em seguida, depois de comentar algumas
das práticas mais chocantes dos povos primitivos, tal como são descritas nos relatos dos
viajantes antigos e modernos, observa que só devemos chamar esses povos de “selvagens”
do mesmo modo que “chamamos de selvagens os frutos que a Natureza produziu por si
própria e no seu curso normal”. De fato, diz ele, “deveríamos chamar selvagens aqueles que
alteramos artificialmente e tiramos do caminho da ordem comum”. Pois, enquanto podemos
chamar legitimamente os povos selvagens de bárbaros “com respeito às regras da razão”,
não estamos autorizados a chamá-los assim “com respeito a nós mesmos”, e isto porque “os
superamos em todo tipo de barbárie” 126.
Montaigne joga aqui com a noção de estado selvagem a fim de chamar a atenção para

123 Bernheimer, WildMen, p. 2.


124 Ibid.
125 Ibid., p. 120.
126 Montaigne, “Of Cannibals”, pp. 152-153.
194 TRÓPICOS DO DISCURSO

uma distinção que reside no coração do seu ceticismo, a distinção que gira, não em torno da
antítese divino-natural, como na teologia cristã, mas em torno da antítese natural-artificial.
Para ele, o natural não é necessariamente o que é bom, mas decerto é preferível ao artificial,
principalmente porque a barbárie induzida artificialmente é muito mais repreensível aos
seus olhos que o seu equivalente natural entre os selvagens. Montaigne quer que os seus
leitores identifiquem a artificialidade em si próprios, que reconheçam o grau em que a sua
civilização superficial mascara uma barbárie mais profunda, preparando-os assim para a
libertação, não das suas almas para céu, mas dos seus corpos e mentes para a natureza.
Usando o conceito de selvagem como uma ficção, Montaigne equipara o mito da ci
vilização que a fundamenta a um provincianismo debilitante. Seu propósito não é
tornar selvagens todos os homens nem destruir a civilização, porém fornecer-lhes um
distanciamento crítico sobre a sua artificialidade, que tanto proíbe a consecução da
verdadeira civilização quanto frustra a expressão dos seus impulsos naturais legítimos.
O uso fictício que Montaigne faz da noção de estado selvagem é uma tática
caracteristicamente irônica. Nos tempos romanos, o historiador Tácito usou o conceito de
bárbaro, na sua Germânia, exatamente da mesma forma, ressaltando conscientemente as
presumidas virtudes das tribos selvagens do norte, de modo a forçar os seus leitores a
contemplar os vícios dos romanos civilizados no sul. A mesma tática aparece em grande
parte da obra do moderno antropólogo da cultura Claude Lévi-Strauss sobre os povos pri-
mitivos e “o pensamento selvagem”. Lévi-Strauss sugere que aquilo que os homens
civilizados chamam convencionalmente de “o pensamento selvagem” é o repositório de uma
faculdade imaginativa particularmente poderosa que sob o impacto da modernização quase
desapareceu da sua contrapar- te “civilizada”. O pensamento selvagem, afirma ele, é o
produto de um tipo único de relação com o cosmo que exterminamos ao risco da nossa
própria humanidade.
Tácito, Montaigne e Lévi-Strauss estão ligados pelos usos fictícios que fazem dos
conceitos de barbárie, estado selvagem e selvageria. Nas suas obras, eles sinalizam à sua
consciência que as antíteses que estabeleceram entre uma humanidade ‘‘natural” e uma
humanidade “artificial” não devem ser tomadas literalmente, mas usadas apenas como os
limites conceituais necessários para focalizar criticamente as condições da nossa própria
existência civilizada. Juntando-nos a eles ao agir como se acreditássemos que a humanidade
poderia ser diferenciada tão radicalmente, posta em duas classes mutuamente exclusivas, a
“natural” e a “artificial”, somos levados, pela dialética do próprio pensamento, para o centro
da nossa própria existência complexa enquanto membros de comunidades civilizadas.
Jogando com os extremos, somos levados ao meio-termo; distorcendo um conceito com a
sua antítese, somos levados a dar uma atenção mais rigorosa às nossas próprias percepções;
manipulando as ficções artificialidade e condição natural, aos poucos nos aproximamos de
uma verdade sobre um mundo que é tão complexo e mutável quanto os nossos possíveis
meios de compreender esse mundo.
A falta desta aptidão fictícia, a incapacidade de “jogar” com imagens e ideias como
instrumentos para investigar o mundo das aparências, caracteriza a mente simples onde quer
que ela se apresente, quer no camponês supersticioso, quer no burguês preso a convenções,
ou no primitivo dominado pela natureza. Ela é sem dúvida uma característica distintiva do
pensamento mítico, que, o que quer que ela possa ser, sempre se inclina a tomar os signos e
os símbolos pelas coisas que representam, a tomar as metáforas literalmente e a fazer com
que o mundo fluido indicado pelo uso da analogia e do símile escape do seu controle.
Quando uma ficção, seja um romance ou um poema, é tomada literalmente, mais como um
relato da realidade que uma estrutura verbal com uma referência mais ou menos direta ao
mundo da experiência, ela se torna mitologizada. Todavia, o que Frank Kermode chama de
degeneração das ficções em mitos127 só é discernível a partir da posição vantajosa de uma
cultura cuja operação crítica característica é expor o mito que jaz no coração de toda ficção.
Durante a Idade Média cristã, uma tática crítica semelhante era utilizada para distinguir as
doutrinas religiosas “falsas” das “verdadeiras”, mas com esta diferença em relação à crítica
moderna: lá, o pensamento permanecia encerrado dentro dos limites da metáfora
fundamental que referia o verdadeiro sentido de todas as coisas à sua origem e meta
transcendentais - a metáfora que equiparava literalmente a vida humana a uma busca de
redenção transcendental. Dentro dos limites dessa estratégia mitológica de capacitação, o
conceito de Homem Selvagem tinha pouquíssimas chances de ser exposto como a ficção
útil em que desde então se converteu nas mãos de céticos e radicais, desde Montaigne e

127 Frank Kermode, The Sense of an Ending: Studies in the Theory of Fiction (New York, 1967), p. 39.
Rousseau até Marx e Lévi-Strauss. Pois, conquanto os pensadores e escritores cristãos
por expor o caráter “mitológico”
primassem 196 deDOtoda
TRÓPICOS ideia pagã, não-cristã ou herética,
DISCURSO
permanecia o fato de que, para eles, o pensamento se destinava mais a aj-udar os homens a
escapar do tempo e da história que a compreendê-los e aplicá-los em usos terrenos. Já que
o ideal continuava sendo um tipo de super-homem sagrado em quem não estivesse presente
qualquer das imperfeições da humanidade real, então o horror máximo, a condição que tinha
de ser evitada a todo custo, devia continuar a ser aquele sub-homem que a imaginação
construiu com os seus próprios desejos reprimidos e ao qual o pensamento conferira, nos
tempos clássicos e do Antigo Testamento, a denominação de “selvagem”.

6.

Para terminar, quero delinear alguns aspectos da carreira do Homem Selvagem depois
do século XVIII e sugerir algumas das implicações de sua carreira para a nossa época.
Durante o século XIX e a despeito do Romantismo, o homem primitivo veio a ser
considerado menos como um ideal do que como um exemplo de humanidade interrompida,
como aquela parte da espécie que não se elevara acima da dependência da natureza, como
atavismo, como aquela da qual o homem civilizado, graças à ciência, à indústria, ao
cristianismo e à excelência da raça, se havia elevado finalmente (e definitivamente). Na
imaginação vitoriana, os povos primitivos eram encarados com aquela mistura de fascínio
e aversão que Conrad examina em O Coração das Trevas — como exemplos do que o
homem ocidental poderia ter sido numa época e do que poderia ter-se tornado uma vez
maisse deixasse de cultivar as virtudes que lhe haviam permitido escapar da natureza.
Durante o final do século XIX, certamente, a nova ciência da antropologia já se
empenhava em abrandar este severo julgamento; e no século XX ela trabalhou com afinco
para o destruir, juntamente com o preconceito racial que invariavelmente o acompanhava.
Para a maioria dos modernos cientistas sociais, o homem primitivo não é mais um ideal pelo
qual nos devemos moldar, nem uma lembrança do que nos poderíamos tornar se traíssemos
a nossa humanidade consumada. Ao contrário, as culturas primitivas são vistas como
manifestações diferentes do poder do homem de reagir de maneira diferente aos desafios do
ambiente, como um controle sobre os louvados conceitos da suposta eleição cósmica do
homem ocidental e como uma negação das várias formas de provincianismo cultural.
Assim, nos tempos modernos, a concepção de um “homem selvagem” tornou-se
quase que exclusivamente uma categoria psicológica, mais que antropológica, como nos
séculos XVII e XVIII. (Obviamente, estou-me referindo às categorias psicológicas
populares, não às científicas.) O que uma vez se pensou que representasse uma forma de
humanidade peculiar, um estado pré-social ou supersocial, conforme o caso, tornou-se uma
categoria para designar aqueles que, por razões psicológicas ou puramente físicas, são
incapazes de participar da vida de qualquer sociedade, quer primitiva, quer civilizada. Nos
tempos modernos, o conceito de selvagem, quando aplicado a um grupo humano ou a um
ser humano individual, tende a se confundir com a noção popular de psicose, a ser visto,
portanto, mais como uma forma de doença e refletir mais uma disfunção da personalidade
na relação do indivíduo com a sociedade do que como uma variação, ou diferenciação on-
tológica da espécie.
Desse modo, em nossa época, o conceito de estado selvagem teve um destino
semelhante ao do conceito de barbárie. Assim como não há mais bárbaros, exceto num
sentido sócio-psicológico, como no caso dos nazistas, também não há mais homens
selvagens, salvo no sentido sócio-psicológico, como quando empregamos o termo para
caracterizar gangues de rua, desordeiros ou coisa parecida. Selvageria e barbárie são hoje
usados basicamente para designar as áreas da paisagem psicológica do indivíduo, e não
culturas totais ou espécies de humanidade. Os termos de valor neutro, como primitivo, que
0 TEMA DO NOBRE SELVAGEM COMO FETICHE 197
designam um estágio tecnológico ou uma estrutura social particular, tomaram o seu lugar.
Estado selvagem e barbárie são encarados, em geral, como potencialidades ocultas no
coração de toda pessoa, primitiva ou civilizada, como a sua possível incapacidade de
conciliar-se com o mundo que lhe é socialmente oferecido. Não são vistos como essências
ou substâncias peculiares a uma porção particular da humanidade fora no espaço, ou atrás
no tempo. Pelo menos, não devem ser considerados assim.
Afirmei anteriormente que o pensamento sobre o Homem Selvagem sempre e
concentrou em três problemas difíceis e permanentes que a socie-dade e a civilização
pretendem ter solucionado: os relacionados com o sustento, o sexo e a salvação. Acredito
que não é por acaso que os três pensadores mais revolucionários do século XIX - Marx,
Freud e Nietzsche, respectivamente - usam estes temas como sua matéria principal. Do
mesmo modo, o radicalismo de cada um deles é em parte função de um ateísmo completo
e, mais especificamente, da hostilidade à religiosidade judaico-cristã. Para cada um destes
grandes radicais, o problema da salvação é um problema humano, cuja solução reside
exclusivamente num reexame das formas criativas de vitalidade humana. Cada um deles é,
pois, impelido a recorrer a épocas primitivas da melhor maneira possível a fim de imaginar
como poderia ter sido o homem primitivo, o homem pré-civilizado, o Homem Selvagem que
existiu antes da história - isto é, fora do estado social.
Como Rousseau, cada um destes pensadores interpreta o homem primitivo como o
detentor de uma liberdade invejável, porém, diferentemente daqueles seguidores de
Rousseau que o interpretaram mal e que insistiram em tratar o homem primitivo como um
ideal, Marx, Freud e Nietzsche reconheciam, como Rousseau, que a existência do homem
primitivo deve ter sido inerentemente imperfeita. Cada um deles argumenta que a “queda”
do homem na sociedade foi necessária, o resultado de uma escassez fundamental (de bens
de consumo, de mulheres ou de poder, conforme o caso). E embora cada um diga que a
queda produziu uma forma de opressão exclusivamente humana, todos a encaram como uma
contribuição essencialmente providencial para a construção dessa humanidade total que a
história almeja realizar. Em suma, para eles, o homem tinha de transcender o estado selva-
gem primitivo que lhe era inerente - o qual é tanto uma relação quanto um estado - a fim de
conquistar o seu reino. Os primitivos coletores de alimento de Marx, a horda primitiva de
Freud e os bárbaros de Nietzsche solucionam o problema da escassez de um modo
essencialmente idêntico: por meio da alienação e da opressão dos outros homens. E todos
eles vêem que este processo e alienação resultam na criação de uma falsa consciência, ou
auto-ali- enação, necessária ao mito de que um fragmento da humanidade poderia encarar a
essência de toda a humanidade.
Todos os três viam na história uma luta para libertar os homens da opressão de uma
sociedade criada originariamente como um meio de libertar o homem da natureza. Era a
parte oprimida, explorada, alienada ou reprimida da humanidade que continuava a
reaparecer na imaginação do homem ocidental ~ na forma do Homem Selvagem, do monstro
e do demônio - para o assombrar ou engodar depois disso. Algumas vezes esta humanidade
oprimida ou reprimida surgia como uma ameaça e um pesadelo, outras vezes, como um
objetivo e um sonho; às vezes, como um abismo dentro do qual a humanidade poderia cair,
outras vezes como um pico a ser escalado; mas sempre como uma crítica de toda segurança
e tranqüilidade que um grupo de homens na sociedade adquirira ao preço do sofrimento de
outro grupo.
0 TEMA DO NOBRE SELVAGEM COMO FETICHE
198 TRÓPICOS DO DISCURSO

O tema do Nobre Selvagem é talvez um dos poucos tópicos históricos sobre o qual
nada mais resta dizer. Poucos dos topoi do pensamento do século XVIII foram estudados
mais completamente. As funções do tema do Nobre Selvagem nos debates ideológicos da
época são bastante conhecidas, suas origens remotas foram razoavelmente identificadas e a
sua '‘linhagem”, na expressão de John G. Burke, foi estabelecida com precisão pelos
historiadores das ideias128. As pesquisas de arquivo com certeza não exumarão novos
exemplos do uso do tema na literatura imaginativa e política desde a Renascença até o
período romântico e além, mas as chances de ampliar de algum modo historicamente
significativo o nosso entendimento do conceito poderiam parecer remotas. Em estudos
futuros da história cultural do século XVIII, é provável que o tema do Nobre Selvagem fique
confinado àquelas notas de rodapé reservadas a assuntos a respeito dos quais os eruditos já
não discordam.
No entanto, examinando a literatura relativa ao tema, poderíamos obter uma
percepção relativamente nova de sua função no pensamento do século XVIII se
enfatizássemos o seu caráter fetichista. Pois, assim como o conceito de Homem Selvagem,
do qual ele deriva e contra o qual se levantou ostensivamente, o conceito de Nobre Selvagem
tem todos os atributos de um fetiche. E, se isso for verdade, a ideia do Nobre Selvagem
poderia sér elucidada de modo significativo se a concebêssemos como um momento na
história geral do fetichismo do qual participaram desde o começo da humanidade tanto o
homem civilizado quanto o primitivo.
Na minha análise do caráter fetichista do tema do Nobre Selvagem, utilizarei o termo
fetiche em três sentidos129. Um fetiche é todo objeto natural que se acredita dotado de um
poder mágico ou espiritual. E esse o sentido etnológico tradicional do termo, e dele deriva
seu emprego figurativo convencional para designar algum objeto material encarado com
confiança ou reverência supersticiosa ou extravagante. Desse uso figurativo, por sua vez,
deriva o sentido psicológico, que se aplica a todo objeto ou parte do corpo tomados

128 Ver os ensaios de Gary B. Nash, Earl Miner, Maximillian E. Novak, John G. Burke, Peter L. Thorslev, Jr., e
Hayden White, em The Wild Man Within: An Image in Western Tkought from the Renaissancc to Romanticism, ed- Edward
Dudley e Maximillian E. Novak (Pittsburgh, 1972).
129 Três sentidos não-téenicos, devo acrescentar. Defino o fetichismo, aqui, como uma fixação mais na forma de uma coisa
que no seu conteúdo, ou mais na parte de uma coisa que no seu todo. Um dos pontos que tento ressaltar é que tal
reducionismo é inevitável no uso de conceitos como “humanidade” ou “civilização”, visto que esses conceitos são
inerentemente instáveis e não apresentam qualquer referente in» contestável. Quando uma dada parte da humanidade
se define compulsivãmente como o tipo perfeito da humanidade em geral e define todas as outras partes da espécie
humana como inferiores, imperfeitas, degeneradas ou “selvagens”, chamo a isso um exemplo de fetichismo. Em tal
situação, a tendência é dotar de poderes mágicos, e até sobrenaturais, aquelas partes da humanidade às quais, com efeito,
se está negando qualquer direito ao título de humano, como aconteceu nos mitos do Homem Selvagem na Idade Média.
Se esses poderes mágicos ou sobrenaturais forem considerados desejáveis para todos os homens, inclusive os europeus,
haverá, então, uma tendência a fetichizar os supostos detentores desses poderes, por exemplo, o Nobre Selvagem.
0 TEMA DO NOBRE SELVAGEM COMO FETICHE 199
obsessivamente (catexados) como uma fonte exclusiva de satisfação libidinosa. Desses três
usos extraímos os três sentidos do termo fetichismo aqui utilizados: crença em fetiches
mágicos, devoção extravagante ou irracional e deslocamento patológico do interesse e
satisfação libidinosos para um fetiche.
Assim considerado, o fetichismo é ao mesmo tempo um tipo de crença, um tipo de
devoção e um tipo de posição ou postura psicológica. Ao examinar o tema do Nobre
Selvagem como fetiche, espero mostrar que a própria noção de Nobre Selvagem era
fetichista, dado o contexto histórico em que foi elaborada como uma suposta descrição de
um tipo de humanidade. Quer dizer, a crença na ideia de um Nobre Selvagem era mágica,
era extravagante e irracional no tipo de devoção que pretensamente despertava, e, no fim,
revelava o tipo de deslocamento patológico do interesse libidinoso que normalmente
associamos às formas de racismo que, para se justificarem, dependem da ideia de uma
“humanidade selvagem”.
Certamente, expressões como “Homem Selvagem” e “Nobre Selvagem” são
metáforas; e, na medida em que foram alguma vez tomadas literalmente, podem ser
consideradas simplesmente erros, enganos ou falácias130.
Mas o fato é que a cultura humana não pode prescindir dessas metáforas, e quando
precisamos identificar coisas que não se enquadram nos sistemas convencionais de
classificação, elas se revelam não só funcionalmente úteis como também necessárias para o
bem-estar de grupos sociais. As metáforas são fundamentalmente necessárias quando uma
cultura ou grupo social depara com fenômenos que fraudam expectativas normais ou
experiências cotidianas ou colidem com elas.
Por isso, devemos concluir, com o antropólogo e o psicólogo, que em verdade não há
nada de inerentemente “absurdo” em cada um desses tipos de fetichismo. Do ponto de vista
científico, a atribuição de poderes espirituais a objetos inanimados, ou das qualidades de um
todo às suas partes, pode ser um equívoco, uma falácia da lógica ou uma falha da razão.
Todavia, ambos os tipos de fetichismo estão por demais difundidos para que os conside-
remos patológicos em si mesmos, e são por demais consentâneos com os modos sensatos de
pensamento para que os reputemos inerentemente viciosos ou perniciosos. O cientista social
está muito interessado em saber como uma determinada prática fetichista funciona numa
dada cultura, indivíduo, ou grupo, se é opressiva ou terapeuticamente eficaz, do que em
expor o erro de lógica ou de racionalidade que lhe é subjacente. Uma prática cultural ou
uma crença só pode ser declarada absurda dentro do horizonte de expectativas demarcado
por aquelas práticas e crenças que a tornariam “impensável” ou, quando pensável,
“desarrazoada”. Do ponto de vista de uma ciência social verdadeiramente objetiva, nenhuma
crença é inerentemente absurda se fornecer a base para um funcionamento adequado das
práticas que nela se baseiam, no âmbito da economia total da cultura em que é aceita. E é
aqui que a própria noção de absurdo deve ser associada ao conceito de tabu. Pois, embora
muitas práticas culturais possam revelar-se errôneas, falaciosas, nocivas, ineficazes,
repressoras, desumanizadoras etc., só podem ser consideradas absurdas na medida em que
violam algum tabu sobre o que é pensável ou viável dentro de um dado quadro de referência
moral.
Por exemplo, Marx chama de absurda a “forma de valor dinheiro”, que assume o
aspecto de um “fetichismo do ouro”, porque se baseia, em primeiro lugar, num equívoco (a
confusão dos “meios” de troca [dinheiro] com as coisas a serem trocadas [mercadorias com
um determinado valor de uso]) e, em segundo lugar, na confusão de uma “forma” de troca
(mercadorias) com o “conteúdo” das coisas trocadas (seu valor-trabalho, que lhes confere

130 Os filósofos gastam um bom tempo em expor as expressões metafóricas tomadas literalmente e hipostatizadas como bases
de sistemas metafísicos. Ver, por exemplo, Colin M. Turbayne, The Myth of Metapkor (New Haven e London, 1962; ed.
rev., Columbia, S. C., 1970), que está preocupado, entre outras coisas, em afirmar que a metáfora que reside no coração
da metafísica mecanicista é tanto um “engano” crucial quanto o gerador de um conjunto de “mitos”.
seu valor de uso). O fetichismo do ouro é absurdo porque leva a uma busca interminável da
mais “inútil200das mercadorias” e à negaçãoTRÓPICOS
do “valor” inerente à mais nobre faculdade do
DO DISCURSO
homem, a sua capacidade de produzir por seu próprio trabalho mercadorias com valores de
uso específicos. Marx, porém, estava menos preocupado em exprobrar o fetichismo do ouro
(o que, afinal de contas, os moralistas têm feito corriqueiramente desde a época de Hesíodo
e os Profetas) do que em explicar a lógica dessa crença “absurda” e as práticas “viciosas”
que ela engendrou ou justificou. No processo dessa explicação, Marx aplicou nada menos
que uma lógica que denominou “dialética”, mas que eu chamaria lógica da metáfora, que
para ele era a chave para o entendimento de todas as formas de fetichismo e daquele
processo de alienação pelo qual os homens se distanciaram psicologicamente das coisas que
lhes estavam ontologicamente mais próximas e transformaram em ídolos as que estavam
mais afastadas da sua própria natureza de homens. Antes de analisar a lógica da troca de
mercadorias, Marx expôs uma lógica do pensamento dos homens sobre a mercadoria, de
modo a demonstrar como aquilo que começara na forma de uma equação perfeitamente
compreensível e razoável de uma coisa com outra terminou no fetichismo do ouro,
característico do sistema de troca mais superiormente avançado, o capitalismo 131. Proponho
tentar quase a mesma coisa com a ideia do tema do Nobre Selvagem, do modo como se
desenvolveu no período entre o final do século XV e o começo do século XVIII. Quero
ressaltar, entretanto, que este não é um exercício especificamente marxista, mas um
exercício dialético em geral; e que ele deve tanto a Vico, Hegel, Nietzsche, Freud e Lévi-
Strauss quanto deve a Marx. Apenas este aplicou com mais constância a lógica da metáfora
às estruturas materiais da sociedade. E quer aceitemos ou não como absurda a sua
caracterização da teoria do valor dinheiro (de fato, sua caracterização pressupõe a validade
absoluta da teoria do valor trabalho), ainda podemos ver na sua explicação do fetichismo do
ouro um modelo particularmente apropriado para a nossa própria explicação da concepção
do Homem Selvagem na forma como se desenvolveu no período barroco.
A aplicação desse modelo requer apenas que reconheçamos os elementos de paradoxo
presentes no uso do conceito, a alienação implícita na estrutura desse uso e a identificação,
escondida ou reprimida, dos nativos do Novo Mundo com objetos naturais (ou seja, sua
Jesumanização) a serem usados (consumidos, transformados ou destruídos) do modo que
seus conquistadores (ou proprietários) desejassem. Também não nos deveria surpreender a
idolatração dos nativos implícita no conceito de Nobre Selvagem.

131 Ver o famoso capítulo, intitulado “Mercadorias”, que abre O Capital, trad. da 4- edição alemã por Eden Paul e Cedar Pau!
(New York, ! 929). Marx escreve: “Assim, o misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de
que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios
produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, reflete a relação social dos produtores
com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos. Graças a essa transferência de qualidades,
os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas transcendentais ou sociais que são ao mesmo tempo perceptíveis por
nossos sentidos. ... Estamos preocupados apenas com uma determinada relação sociai entre os próprios homens, que, aos
seus olhos, assume aqui a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Por isso, para encontrar uma analogia, temos
de penetrar no mundo nebuloso da religião. Nesse mundo, os produtos do cérebro humano parecem formas independentes,
dotadas de vida própria, capazes de manter relações entre si e com os homens. No mundo das mercadorias, o mesmo
acontece com os produtos da mão humana. A isso denomino o fetichismo cue adere aos produtos do trabalho”. Idem, pp.
45*46.
0 TEMA DO NOBRE SELVAGEM COMO FETICHE 201
Essa noção representa tão-somente o retorno tardio da humanidade reprimida na
caracterização oximorônica original do nativo como um Homem Selvagem. É significativo,
a meu ver, que essa idolatração dos nativos do Novo Mundo tenha ocorrido somente depois
que fora decidido o conflito entre os europeus e os nativos e quando, portanto, ela não mais
poderia impedir a exploração dos últimos pelos primeiros. Desse ângulo, a fetichização do
Homem Selvagem, a atribuição a ele de poderes sobre-humanos (isto é, nobres) constitui
apenas o estágio final da elaboração do paradoxo implícito na concepção de uma
humanidade que é também selvagem.
Essa fetichização do Homem Selvagem era inevitável porque, antes de tudo, o
conceito de uma natureza especificamente humana só pode ser definido de maneira
negativa. O homem é o que o animal e o divino não são. Tal é, pelo menos, a síntese e
substância das concepções aristotélica, tomista e neoplatônica do homem enquanto
ocupante dos degraus intermediários da escala, ou cadeia, do ser. O cristianismo consolidou
essa ideia da natureza “mediana” do homem com a doutrina da possibilidade de os homens
se tornarem deuses (ou, pelo menos, semelhantes a Deus), mesmo que tenha restringido a
realização desta possibilidade ao mundo que está por vir. Conco- mitantemente, o
cristianismo forneceu a base da crença na possibilidade de uma humanidade asselvajada
quando sugeriu que os homens poderiam degradar ao estado animal neste mundo por meio
do pecado. Mesmo que tenha estendido a esperança de redenção a qualquer humanidade
degradada como essa, por obra da graça divina sobre uma “alma” específica da espécie,
supostamente presente mesmo no mais depravado dos seres humanos, ainda assim o
cristianismo pouco fez para encorajar a ideia de que uma verdadeira humanidade era viável
fora do âmbito da Igreja ou de uma “civilização” geralmente definida como cristã.
Foi, a meu ver, a imprecisão da definição de “humanidade” que gerou a ambiguidade
na avaliação original da “natureza” dos habitantes das Américas. As primeiras descrições
dos nativos americanos são caracteristica- mente anômalas. Por exemplo, o Sphera mundi
de João de Holywood (1498) descreve os nativos da América como “de cor azulada e com
cabeças quadradas”132. Da mesma forma, a legenda de uma gravura de 1505 descreve os
nativos em termos que Hanke chama “fantásticos”:

Eles andam nus, tanto os homens quanto as mulheres... Não têm propriedade particular, mas possuem todas
as coisas em comum. Vivem todos juntos, sem rei e sein governo, e cada qual é o seu próprio senhor. Tomam por
esposa a quem primeiro encontram, e ein tudo isso não há norma alguma. ... E comem uns aos outros. ... Vivem até
cento e cinqüenta anos, e raramente adoecem133.
Ora, essa descrição dos americanos nativos poderia ser considerada uma distorção causada
pela projeção de um sonho de inocência edênica no conhecimento fragmentário do Novo
Mundo disponível na época. Mas, se essa descrição dos americanos nativos é, no nível
manifesto, um sonho, no nível latente ou figurativo ela tem todos os elementos de um
pesadelo. Pois a descrição contém nada menos que cinco referências a transgressões de
tabus considerados invioláveis pelos europeus da época: nudez, comunhão da propriedade,
anomia, promiscuidade sexual e canibalismo. Isso pode ser, nos comentadores europeus,
uma projeção de desejos reprimidos na vida dos nativos (como sugerem as referências à
saúde e à longevidade); mas, se for assim, é um desejo maculado de horror e visto com
desprazer. Dentro dessa caracterização metafórica original dos nativos, temos os dois
momentos necessários para a projeção dos pólos negativo e positivo da dialética do feti-
chismo que nos anos posteriores se separarão em ideais conflitantes: o Homem Selvagem e
o Nobre Selvagem, respectivamente. Sustento que essa dialética pode ser descrita em função
da lógica da própria metáfora. Essa lógica, por seu turno, desenvolve a relação entre desejo
e a acessibilidade dos objetos desejados, a qual requer, por sua vez, um cálculo para a

132 Citado em Lewis Hanke, Aristotle and lhe American Indiunx: A Study in Race Prejudica in the Modcrn World (Chicago,
1959; repr., Bloomington, Ind., 1970), p. 4.
133 Idem, pp. 4-5.
determinação do seu sentido.
Ouro,202 terra, incesto, promiscuidade sexual,
TRÓPICOS canibalismo, longevidade, saúde,
DO DISCURSO
violência, passividade, doença, tudo isso combinado com uma preo- cupação compulsiva
com as almas dos nativos - são esses os temas daqueles debates do Homem Selvagem que
interagem com o tratamento real dos nativos para produzir o fetiche do Nobre Selvagem.
Não precisamos recapitular neste ensaio a saga das espoliações, por parte do europeu, dos
nativos da América (e de outros lugares). Já é bastante conhecida. Estamos interessados,
antes, na dialética ideológica que gerou o Nobre Selvagem idealizado com base no mito do
Homem Selvagem, que o antecede tanto no tempo quanto na lógica da dialética.
Registramos as anomalias contidas nos primeiros relatos dos nativos e os paradoxos
implícitos nas primeiras descrições de suas vidas: embora violem todos os tabus que
deveriam tê-los tornado “imundos” e degenerados, os nativos aparentemente desfrutam dos
atributos que, acreditava-se antes, só possuíam os patriarcas do Antigo Testamento: saúde
robusta e longevidade. A combinação aqui é entre depravação moral e um tipo de super-
huma- nidade física. O que se requeria antes de tudo, para que a teoria acompanhasse a
prática e a crença, era que se explodisse o mito de uma super-hu- manidade física. Para
tanto, poder-se-ia aventar uma destas duas possibilidades: ou os selvagens eram uma raça
de superanimais (semelhantes a cães, ursos ou macacos), o que explicaria sua transgressão
dos tabus humanos e sua suposta superioridade física em relação aos homens; ou eram uma
raça de homens degenerados (descendentes das tribos perdidas de Israel, ou uma raça de
homens destituídos de razão e de senso moral graças aos efeitos de um clima rigoroso) 134.
Qualquer que fosse o caminho tomado pelo argumento, tinha como efeito estabelecer uma
distinção, com o caráter de oposição, entre uma humanidade normal (gentil, inteligente,
decorosa e de cor branca) e uma anormal (obstinada, alegre, livre e de cor vermelha)135.
Essa oposição é suficiente para transformar o nativo, de um ser meramente exótico descrito
nas caracterizações mais antigas, num “objeto” - um “outro” ontológico ou “oposto” aos
homens “normais” - e, conseqüentemente, numa “coisa” a ser tratada conforme o exigisse a
necessidade, a consciência ou o desejo. Las Casas o percebeu muito bem quando, ao criticar
a política imperial espanhola em 1519, acusava que os nativos estavam sendo tratados
“exatamente como se... fossem pedaços de madeira que poderiam ser cortados das árvores
e transportados para fins de construção, ou como rebanhos de carneiros ou qualquer outra
espécie de animais que poderiam ser deslocados de um lugar para outro
indiscriminadamente, e se algum deles morresse na estrada pouca coisa se perderia” 136.
A invocação da autoridade de Aristóteles pelo opositor de Las Casas, Juan Ginés de
Sepúlveda, para justificar o status de um “escravo natural” dado ao índio, foi desde o
começo uma justificativa ideológica para as práticas terroristas supostamente necessárias à
pacificação do Novo Mundo. A coroa espanhola depois do debate de Valladolid em 1550-
1551 negou apoio oficial às opiniões de Sepúlveda; mas a prova que este aduzia na defesa
das suas ideias é instrutiva. Em primeiro lugar, e mais importante, havia a “gravidade dos
pecados que os índios haviam cometido, sobretudo sua idolatria e seus pecados contra a
natureza”, entre os quais ponteavam o canibalismo e o incesto137. O fato de certas tribos do

134 Ver Cap. 7, acima; Gary B. Nash, “The Image of the Indian in the Southern Colonial Mind”, em Dudley e Novak, The
Wild Man Within, pp. 56-57, 71, 77; e Hanke, Aristotle and the American Indianx, p. 27. O estudo definitivo das atitudes
européias para com o Novo Mundo e os seus habitantes deve ser encontrado em Antonello Gerhi, The Dispute of the New
World: The History ofa Polemic, 1750-1900, ed. rev. e ampl., trad. Jeremy Moyle (Pittsburgh, 1973).
135 Ver John G. Burke, “The Wild Man’s Pedigree: Scientific Method and Racial Antropology”, em Dudley e Novak, The
Wild Man Within, pp. 266-67. Segundo Lineu, o asiático é “austero, arrogante e ganancioso” e, evidentemente, “amarelo”,
ao passo que o africano é “matreiro, preguiçoso, desmazelado" e, evidentemente, “negro”. As quatro raças assim
diferenciadas são, contudo, designadas com o título de “Homens” no sistema de Lineu e se distinguem dos homens
“selvagens”, de um lado, e dos “monstros", de outro.
136 Citado em Hanke, Aristotle and the American Indians, p. 17.
137 Ibid, pp. 41,46-47.
0 TEMA DO NOBRE SELVAGEM COMO FETICHE 203
Novo Mundo estarem organizadas segundo linhas matrilineares, em vez de patrilineares,
apenas exacerbava as ansiedades manifestamente sexuais dos europeus, reveladas do modo
mais imediato no terror que tinham (ou nas fantasias que faziam) das práticas incestuosas e
canibalísticas. Essas fantasias, podemos supor, são sublimações de um idílio de consumo
irrestrito, oral e genital, e a sua alternativa, a necessidade de destruir o que não se pode
consumir.
O consumo e a destruição, por sua vez, são aspectos idênticos do idílio de posse
irrestrita (quer de pessoas quer da propriedade) e pressupõem uma desejabilidade da coisa
a possuir, ou seja, a suposição de que a coisa desejada se ainolde à satisfação da pessoa que
a deseja. E essa suposição da desejabilidade da coisa desejada é a base da relação dialética
entre senhor e servo que permeia a patologia psicossocial de todos os sistemas opressores.
O retorno da suspeita reprimida de que os nativos que estavam sendo brutalizados
compartilhavam de fato a humanidade com os seus brutalizadores é a motivação dos longos
debates sobre a questão de saber se os nativos possuem, em seus aspectos e comportamento
supostamente animais, uma alma humana reconhecível.
Antes de tudo, dever-se-ia observar que o problema em debate se relaciona mais com
essências ou qualidades que com atributos ou comportamento; que essas essências ou
qualidades são consideradas espirituais (portanto, capazes de estar presentes por trás ou
dentro de aparências); e que, portanto, elas não são determináveis exclusivamente pelo que
se poderia chamar prova “empírica”. O debate, por conseguinte, esclarece muito mais a
confusão reinante na mente dos europeus sobre a natureza da sua própria humanidade do
que a natureza dos nativos (o que, evidentemente, está subentendido), ou as atitudes para
com os nativos e as crenças a seu respeito que os europeus mantinham.
O argumento do “escravo natural” gira em torno do problema dos talentos,
habilidades ou suposta capacidade dos nativos para agirem de maneira autônoma no mundo,
sem destruir ou ameaçar a existência dos homens “civilizados”. Aqui, a distinção implícita
é entre bárbaros e habitantes da cidade, uma distinção que apenas justapõe dois modos de
vida encontrados universalmente, coloca o indivíduo numa situação de escolha entre esses
dois modos de vida e aceita a força como a forma definitiva de mediação nos casos em que
os dois modos entram em conflito. Alguém poderia dizer que tal distinção é horizontal, uma
vez que distingue entre “pessoas internas” e “externas” a um plano lateral de ser (a cidade
e a floresta, terras semeadas e de estepe, zonas fixas e nômades). Mas a distinção
estabelecida entre “alma humana” e “alma animal” é uma distinção vertical, hierárquica, na
medida em que distingue, não entre dois modos de vida que poderiam existir lado a lado,
mas entre dois estados de ser que ocupam uma posição superior e inferior numa escala
vertical ou cadeia do ser. Contudo, a imagem de uma escala ordenada verticalmente, ou
hierarquia, é inerentemente ambígua, pois pressupõe uma matéria ou essência comum
compartilhada pelas várias criaturas dispersas ao longo de suas categorias, ou alguma fonte
comum da qual derivam todas as criaturas assim dispersas, uma meta comum para a qual
todas elas tendem, ou uma causa única da qual todas elas são efeitos. A metafísica da ideia
de cadeia-do-ser torna instável qualquer tentativa de estabelecer, com base nela, uma
distinção definitiva entre nativos e homens “normais”. Toda tentativa de estabelecer tal
distinção, se for executada rigorosamente, é de fato dirigida, em última análise, para a per-
cepção das qualidades comuns partilhadas não apenas por nativos e europeus mas também
pela natureza animal e humana em geral". Essa instabilidade conceituai é o outro lado do
panteísmo implícito em todas essas doutrinas neoplatônicas. Se todas as criaturas derivam
de Deus e aspiram a retornar a Ele, então todas elas devem participar de algum modo da
essência divina. Isso quer dizer que todas as criaturas são regidas e protegidas pela lei
adequada à plena realização dos seus atributos específicos da espécie - e podem ser usadas
por outras criaturas, inclusive pelo homem, somente para propósitos consoantes com a lei
que governa o todo e as suas partes. A ambiguidade do conceito de uma essência espiritual
e a instabilidade de qualquer tentativa de estabelecer distinções definitivas com base na
noção de realidade de uma cadeia-do-ser podem explicar a duradoura popularidade da tese
de degeneração
204 mais puramente fisicalista,TRÓPICOS
muito DOtempo depois que a teoria aristotélica do
DISCURSO
escravo natural e a teoria neoplatônica da inferioridade ontológica haviam cumprido o seu
curso138.
A tese da degeneração recebeu sua afirmação mais benigna - e de maior autoridade -
na obra de Buffon, cujos argumentos partiam da pressuposição dos efeitos deletérios do
ambiente do Novo Mundo sobre os seus habitantes, tanto animais quanto seres humanos. A
teoria do monstro criada por essa tese teve o seu defensor mais entusiasta em Cornelius de
Pauw139. Tanto a tese da degeneração quanto a do monstro recorrem a um critério/m- co, e
especificamente quantitativo, para diferenciar entre os tipos de humanidade a serem
classificados. Para Buffon, as espécies são geradas por fecundação cruzada de linhagens
genéticas, o que significa que as combinações genéticas podem ser classificadas de acordo
com a capacidade de sobrevivência das raças resultantes. Buffon não tem dúvida de que
todas as espécies da América, inclusive a humana, são inerentemente inferiores às suas
equivalentes do Velho Mundo. Com base na estatura, no vigor, na configuração etc., ele
coloca todas elas na categoria dos “degenerados”. Segue-se naturalmente a transição do
conceito de degeneração para o de monstruosidade - a ideia de que os atributos de
determinada espécie resultam de uma mistura “inatural” de linhagens associada à forma
incestuosa. Entretanto, o degenerado é apenas um tipo inferior em relação à espécie; o
monstro, em contrapartida, é o produto de uma mistura de tipos diferentes em relação à
espécie, cujas partes permanecem distinguíveis quanto à espécie e cuja totalidade constitui
uma anomalia. Buffon se limita a caracterizar os nativos da América como degenerados; De
Pauw transforma a degeneração em monstruosidade.
Obviamente, o que se deve ressaltar aqui não é a validade ou a não-validade dessas
diversas teorias, nem a maneira como poderiam antecipar teorias científicas posteriores, mas
os modos das relações que postulam entre o normal e o anormal. Tanto as concepções
aristotélicas quanto as ideias neo- platônicas sobre a relação entre o mundo animal e o
humano se estabelecem no modo da continuidade. As teorias fisicalistas de Sepúlveda,
Buffon, De Pauw e até de Lineu concebem essa relação no modo da contiguidade. Ora,
enquanto as coisas podem ser associadas nessas duas modalidades de relação, a da
continuidade gera decerto mais aceitação e mediação em grau do que a da contiguidade.
Evidentemente, nenhum dos dois modos é concebível sem o outro, de sorte que em qualquer
sistema de relações imaginadas é necessário determinar qual modo deve ser considerado
estrutural e qual modo deve ser funcional. Geralmente, essa determinação será ditada pelos
interesses do classificador - ou seja, se ele deseja construir um sistema em que devam ser
acentuadas ou as diferenças ou as semelhanças, e se o seu desejo é enfatizar as possibilidades
conflituais ou conciliadoras da situação que está descrevendo. Os dois modos de relação,
contínuo e contíguo, também engendram possibilidades diferentes para a práxis: a atividade
missionária e a conversão, de um lado, a guerra e o extermínio, de outro.
O uso do termo pacificação para designar políticas e práticas de genocídio é
importante, porque significa o advento de um quarto140 momento na história das relações
das raças no período entre a Renascença e o final do século XVIII. Esse novo momento é
assinalado pela aceitação geral da ideia do Nobre Selvagem. Como mostraram Boas e
outros, a ideia do Nobre Selvagem estava presente tanto no pensamento clássico quanto no

138 Ver Getbi, Dispute of the New World, cap. 5.


139 Ibid., pp. 56-57.
140 Os outros três “momentos” são, a meu ver, o momento das caracterizações originariam ente “anômalas” dos nativos, o
momento da sua elevação por Las Casas e outros como espécies de homens infantis e hi- persensíveis, e o momento da
sua degradação como “degenerados” e “monstros”. O advento do conceito de Nobre Selvagem e a sua elevação a um ideal
para o conjunto da humanidade durante a segunda metade do século XVIII é o quarto momento do debate, o “irônico”,
diria eu, por referir-se não aos nativos, mas à suposta “nobreza” dos seres humanos, sobretudo na Europa, aos quais o
título de humanidade plena fora negado pelos defensores da aristocracia como espécimes dessa humanidade “plena”.
0 TEMA DO NOBRE SELVAGEM COMO FETICHE 205
cristão, e foi revivida durante o Renascimento, embora nunca com o entusiasmo que ca-
racterizou o seu uso durante a segunda metade do século XVIII - e principalmente depois
de Rousseau. De que modo explicaremos a popularidade dessa ideia na Europa, sobretudo
à luz do fato de que a época da sua popularidade é posterior à solução da luta contra os
nativos e surge numa época em que a contenda entre os europeus e os nativos já havia sido
decidida em favor dos primeiros? Essa popularidade poderia ser atribuída certamente a
sentimentos de culpa; mas quero sugerir outra possibilidade: a ideia do Nobre Selvagem é
utilizada, não para dignificar o nativo, mas antes para minar a ideia da nobreza em si. Desse
ponto de vista, a noção de Nobre Selvagem representa o estágio irônico na evolução do
motivo do Homem Selvagem no pensamento europeu. Trata-se de uma ideia “absurda”, cuja
natureza fetichista é óbvia; pois o seu verdadeiro referente não são os selvagens do novo ou
de qualquer outro mundo, mas a humanidade em geral, em relação à qual a própria noção
de “nobreza” é uma contradição.
Isto é, o conceito do Nobre Selvagem contraria, e solapa, a noção, não do Homem
Selvagem, mas do “homem nobre”. Isso é coerente com a lógica da concepção de um
Homem Selvagem que, com base nas crenças da época, era diante das circunstâncias uma
contradictio in adiectis. A própria noção de “homem” só é compreensível na medida em
que se opõe a “selvagem” e aos vários sinônimos e cognatos desse termo. Não há
contradição em “selvagem rude”, porquanto se trata das mesmas palavras, de modo que
“selvagem rude” é um pleonasmo. Porém, considerando a teoria das classes que
predominava na época, o Nobre Selvagem é uma anomalia, já que a ideia de nobreza (ou
aristocracia) se opõe ao suposto estado selvagem e selvageria de outras ordens sociais, assim
como “civilidade” se opõe a “barbárie”141. Encarada dessa forma, a ideia do Nobre
Selvagem representa não tanto uma elevação da ideia do nativo quanto um rebaixamento da
ideia de nobreza. Que isto ocorre é fácil depreender da sua utilização, de um lado, e dos seus
efeitos, de outro. Afigura-se em toda parte que a nobreza está sendo atacada; ela não exerce
efeito algum sobre o tratamento dos nativos ou sobre o modo pelo qual os nativos são vistos
pelos seus opressores. Demais, a ideia do No^ bre Selvagem traz ao primeiro plano (ou cria)
o seu oposto: isto é, a noção de selvagem ignóbil, tão em voga nos círculos literários da
Europa quanto o seu oposto142.
Diderot e Rousseau utilizam a ideia do Nobre Selvagem para criticar o sistema social
europeu de privilégio, poder herdado e opressão política. A ideia de selvagem ignóbil é
usada para justificar o comércio de escravos. Certamente, nem todos os adversários da ideia
do Nobre Selvagem eram racistas, como o atestam os exemplos de Goldsmith, Johnson e
Vòltaire; porém todos eram conservadores políticos, o que nos revela alguma coisa sobre os
interesses essencialmente nacionais dos seus adversários mais radicais, os defensores da
ideia do Nobre Selvagem, como Diderot e Rousseau. O Nobre Selvagem era um conceito
destinado a ridicularizar a nobreza, e não a redimir o selvagem.
No entanto, é a função reprimida da ideia do Nobre Selvagem nos debates sociais do
século XVIII que lhe confere o seu caráter fetichista, tanto para os que a esposam como
ideal quanto para os que a rejeitam como ficção. A anomalia do conceito está contida na
ambiguidade do seu referente.
No nível literal, o conceito assevera a nobreza do selvagem. Essa nobreza é afirmada em
face das informações cada vez mais exatas acerca dos nativos do Novo Mundo (como as
fornecidas não só pelos colonizadores na América mas também por exploradores como
Cook), o que sugere, se não seu atraso, pelo menos sua dessemelhança essencial em relação
aos povos europeus. Se o objetivo dos que esposavam a ideia de nobreza dos selvagens foi

141 Ver Robert R. Palmer, The A#e of the Democrutic Revolulion: A Political History of Europe and America, 1760-1800, 2 vols.
(Princeton, 1959-64), vol. ], caps. 1-3, que discute ;i natureza problemática dos termos nobreza e aristocracia às vesperas
da Revolução Francesa.
142 Dispute of the New World, pp. 66 e ss.
obter um tratamento mais humano para os povos nativos, então teriam feito melhor se
tivessem enfatizado
206 os atributos que eles compartilham com os seus congêneres europeus
TRÓPICOS DO DISCURSO
e se tivessem insistido nos direitos do nativo à “vida, à liberdade e à propriedade”,
reivindicados parà as classes médias europeias da época. Mas a melhoria do tratamento dos
nativos não era uma consideração basilar daqueles que promoviam a ideia da sua nobreza.
O objetivo principal dos radicais sociais da época era minar o próprio conceito de nobreza
- ou, pelo menos, a ideia de nobreza ligada à noção de herança genética. No entanto, a ideia
de herança genética estava implícita no conceito de uma “raça” de “selvagens nobres”.
Como explicar essa contradição?
Obviamente, deve-se conceber que a ideia de uma raça de selvagens que são nobres
tinha o fito, dado o testemunho escrito do atraso dos povos nativos, de aviltar a própria ideia
de nobreza. O referente oculto ou reprimido do conceito de Nobre Selvagem é, em suma, o
da própria nobreza143. Esse conceito de nobreza se acha implicitamente caracterizado como
“selvagem” no nível figurativo da frase.
E havia conceito mais problemático, mais sujeito a sentimentos de ambivalência, da
parte do aristocrata e do burguês, do conservador e do radical, no final do século XVIII, do
que o de “nobreza”? Por mais que as classes médias da Europa se indignassem com a
aristocracia, o que elas desejavam era antes compartilhar seus privilégios que destruir a
distinção entre as partes “melhores” e “piores” da raça humana. Por mais que se
ressentissem das prerrogativas herdadas pelos nobres, em geral eles ainda reverenciavam a
ideia de uma hierarquia social, Poderiam imaginar que tal hierarquia se baseava no talento
e na riqueza, e não no nascimento, mas ainda pressupunham uma humanidade dividida em
“ricos” e “pobres”. E tais pressupostos é que tornaram absurdo o conceito de Nobre
Selvagem, e o seu uso no debate social fetichista.
E não poderia ser de outra maneira, pois na basé da ideia do Nobre Selvagem estava
a hipótese, compartilhada por ambos os lados dos debates sociais da época, da divisibilidade
da humanidade em partes qualitativamente diferentes. Que esse era de fato o caso foi
amplamente documentado por Louis Chevalier em sua obra pioneira, Classes
Trabalhadoras e Classes Perigosas em Paris durante a Primeira Metade do Século X I X .
Chevalier mostra que as tentativas, por parte das classes superiores europeias (aristocráticas
e burguesas), de classificar, compreender e controlar as massas urbanas criadas pela
industrialização se caracterizam pelo mesmo sentido de anomalia e pela mesma tendência
ao fetichismo observados nas tentativas anteriores de compreender os nativos do Novo
Mundo. De um lado, havia a tendência geral a negar o status de humanidade a essas novas
classes de indigentes urbanos; eles são vistos como animais, ferozes e selvagens, e trans-
formados em grotescos objetos de medo e angústia. De outro lado, há a tendência, por parte
daqueles qüe queriam ver neles o tipo da humanidade do futuro, a dotá-los de atributos
divinos, uma tendência que alcança o seu apogeu na designação que Marx atribui ao
proletariado, a do verdadeiro tipo de humanidade que ganhará o seu reino no final da
história144. Na base da discussão da natureza das novas “classes perigosas” da sociedade de
massa avulta uma angústia profunda e permanente quanto ao próprio conceito de
humanidade, um conceito que, por seu turno, tem origem numa identificação da verdadeira
humanidade com vinculação a uma classe social específica. Aquela parte das massas
urbanas que Hegel chamou a “turba de indigentes”145 desempenha no pensamento europeu

143 Cabe notar que o “k bon souvage” francês tem as mesmas implicações ideológicas que o “noble savage" inglês analisado
neste ensaio. Em ambos os casos, o efeito do uso é estabelecer uma distinção entre os supostos iipos de humanidace cm
bases visivelmente qualitativas, e não em bases superficiais como a cor da pele, a fisionomia ou o status social. 0 recurso a
critérios qualitativos como “bondade” e “nobreza” deve ser construído ironicamente, é claro, e só é compreensível no
contexto de um sistema social em que uma classe que reivindicou o privilégio aristocrático deixou de exibir as qualidades
de liderança e de governo que originariamente justificavam a sua reivindicação do status de nobre.
144 Louis Chevalier, Laboring Classes and Dangerous Classes in Paris during lhe First Half of the Nineteemh Century, trad.
Frank Jellinek (New York, 1973), pp. 362-372.
145 Georg Wilhelm Friedrich Hegel, liegel‘s Philoxophy ofRight, trad. T. M. Knox (Oxford, 1965), § 244, p. 150.
0 TEMA DO NOBRE SELVAGEM COMO FETICHE 207
do século XIX o mesmo papel que os nativos do Novo Mundo desempenhavam na sua
congênere do século XVIII. Assim como os “homens ferozes” do Novo Mundo, as “classes
perigosas” do Velho Mundo definem as limitações do conceito geral de “humanidade” que
inspirou e justificou a espoliação, por parte dos europeus, de qualquer grupo humano que
surgisse no caminho de sua expansão e a sua necessidade de destruir aquilo que não
poderiam consumir.
Deixem-me resumir: afirmei inicialmente que o próprio conceito de uma
“humanidade selvagem” constituía uma contradição em termos e que, em contrapartida, essa
contradição refletia uma ambiguidade acerca da natureza dessa “humanidade” de que tanto
se orgulhavam os europeus do começo da era moderna. A proximidade de povos inteiros
que diferiam, no aspecto exterior e no modo de vida, dos colonizadores europeus do Novo
Mundo bastava para situar essa ambiguidade no primeiro plano da consciência. Assim, a
anomalia original das primeiras caracterizações dos nativos do Novo Mundo cedeu lugar a
dois modos opostos e, em última análise, contraditórios de conceber a relação entre os
europeus e os nativos. De um lado, concebia-se que os nativos apresentavam uma
continuidade em relação àquela humanidade de que se gabavam os europeus; e era esse
modo de rela-
çao que fundamentava a política de proselitismo e conversão. De outro lado, poder-
se-ia conceber
208 que os nativos existiamTRÓPICOS
apenas em contiguidade com os europeus,
DO DISCURSO
representavam uma raça inferior da humanidade ou uma superior, mas, em todo caso,
essencialmente diferente da raça europeia; e foi esse modo de relação que fundamentou e
justificou as políticas de guerra e extermínio adotadas pelos europeus em todo o século XVII
e na maior parte do século XVIII. Porém, se os nativos eram concebidos em continuidade
com relação à humanidade de que os europeus reivindicavam ser os únicos detentores, ou
como apenas contíguos a essa humanidade, a simples dessemelhança dos modos de vida
dos nativos era suficiente para exacerbar o sentimento de angústia gerado pela ambiguidade
do conceito de humanidade.
Uma ambiguidade semelhante às relações subjacentes entre colonizador e nativo
também estava presente nas discussões europeias acerca das relações da classe social, onde
o conceito de nobreza desempenhava o mesmo papel que desempenhava o conceito de
humanidade nas discussões acerca das relações entre colonizador e nativo. O que a
burguesia e o seu porta-voz atacavam, na sua crítica à nobreza, era a pretensão da nobreza
de representar o tipo mais elevado de humanidade. Mas a atitude das classes emergentes da
Europa do século XVIII para com as classes nobres era um misto de amor e ódio, de inveja
e ressentimento. Queriam para si mesmas o que a aristocracia afirmava ser o seu direito
“natural”. Nesse contexto, o porta- voz das classes emergentes necessitava de um conceito
para exprimir ao mesmo tempo a sua rejeição das reivindicações de um privilégio por parte
da nobreza e o desejo de privilégios semelhantes para elas próprias. O conceito do Nobre
Selvagem servia perfeitamente às suas necessidades ideológicas, pois ao mesmo tempo
minava a reivindicação da nobreza de um status humano especial e estendia esse status ao
conjunto da humanidade. Todavia, essa extensão foi feita apenas em princípio. De fato, a
reivindicação da nobreza não pretendia chegar aos nativos do Novo Mundo nem às classes
mais baixas da Europa, mas apenas à burguesia. Que as coisas eram assim vê-se no fato de
que, tão logo as classes médias estabeleceram o seu direito a reivindicar uma humanidade
idêntica à que antes era reivindicada somente pela nobreza, voltaram-se imediatamente para
a tarefa de desu- manizar as classes inferiores a elas da mesma forma que, nos séculos XVII
e
XVIII, os europeus em geral haviam feito com os nativos do Novo Mundo.
Afirmei que o fetichismo é o ato de confundir a forma de uma coisa com o seu
conteúdo, ou o ato de tomar a parte pelo todo, elevando a forma ou a parte ao status de um
conteúdo ou de uma essência do todo. Desde a Renascença até o final do século XVIII, os
europeus tenderam a fetichizar os povos nativos com que entraram em contato,
considerando-os simultaneamente formas monstruosas de humanidade e objetos
qüintessenciais de desejo. Daí os impulsos alternados para exterminar e redimir os povos
nativos. Ainda mais fundamental, porém, na consciência europeia dessa época era a
tendência a fetichizar o tipo europeu de humanidade como a única forma possível que a
humanidade em geral poderia assumir. Entretanto, esse fetichismo de raça logo se
transformou numa outra forma, e mais virulenta: o fetichismo de classe, que forneceu as
bases da maioria dos conflitos sociais verificados na Europa a partir da Revolução Francesa.
0 TEMA DO NOBRE SELVAGEM COMO FETICHE 209
4

OS TRÓPICOS DA HISTÓRIA
A ESTRUTURA PROFUNDA D~E A CIÊNCIA NOVA

A primeira edição de A Ciência Nova, de Giambattista Vico, foi publicada


em 1725; a segunda e a terceira edições da obra, dadas à luz em 1730 e 1744,
respectivamente, eram tão diferentes da primeira que na verdade constituíam uma
nova obra, que veio a ser conhecida como a Segunda Ciência Nova. É a esta que os
estudiosos normalmente se referem quando falam da obra de Vico e das maneiras
pelas quais ele antecipou as teorias sociais de pensadores tão diversos quanto Hegel,
Marx, Nietzsche, Dilthey, Freud e Lévi-Strauss. A reivindicação de originalidade
por parte de Vico não pode ser posta seriamente em dúvida, embora o grau em que
ele antecipou e influenciou pensadores subsequentes provavelmente continuará a
ser um tema de debate por algum tempo no futuro. Na sua própria época, essa
originalidade consistia principalmente em sua insistência, contrariamente aos carte-
sianos e a alguns dos jusnaturalistas, na necessidade de um aparato conceituai
distinto para a análise de fenômenos sociais e culturais a partir do que se poderia
usar legitimamente para analisar os processos e estruturas da natureza física. A
fórmula em que esse princípio se expressou asseverava a “conversibilidade” do
“verdadeiro” e do “fabricado”, ou o princípio do verum ipsum factum.
De acordo com esse princípio, os homens só podem conhecer aquilo que eles
próprios fizeram ou que, em princípio, são capazes de fazer. Como postulado
auxiliar, ele fornece a Vico os meios de distinguir entre a potencialidade heurística
das ciências da natureza física, de um lado, e as projetadas ciências da natureza
humana, da cultura e da sociedade, de outro. Afirma ele que, embora os cientistas
físicos possam aspirar a um tipo de conhecimento sobre o cosmo físico, jamais
poderão aspirar legitimamente ao total conhecimento dele; pois, sendo incapazes
de criar o mundo físico como Deus o criou, não dispõem de qualquer meio para
confirmar de forma definitiva as suas reivindicações com respeito ao conhecimento
das suas estruturas e processos mais fundamentais. Apenas Deus que fez o cosmo
é capaz de ter o conhecimento perfeito das suas ações. Portanto, o conhecimento
gerado pelas ciências físicas sempre será mais ou menos provável e sempre in-
completo enquanto verdade sobre o cosmo.
Contudo, o conhecimento produzido pelos estudiosos dos fenômenos sociais
OS TRÓPICOS DA HISTÓRIA 211

e culturais é um problema diferente, pois, diversamente do cosmo físico, o mundo


dos artefatos sociais e culturais é uma criação dos próprios homens e, portanto, é
em princípio totalmente passível de ser conhecido pelos homens. O critério de
conhecimento é a capacidade do conhecedor de produzir aquilo de que tem
conhecimento. Apesar de nosso conhecimento do mundo físico não nos permitir
reproduzir esse mundo, nosso conhecimento dos artefatos sociais e culturais nos
possibilita reproduzir aqueles artefatos, como quando demonstramos nossa
capacidade de falar as línguas dos antigos gregos e romanos, de escrever poesia ou
dramas do modo como eles o fizeram, de ir buscar junto a eles as nossas leis e
aplicá-las ao governo das nossas próprias vidas. Essa linha de pensamento parece
fazer de Vico um precursor das tentativas de Hegel e de pensadores do final do
século
XIX, como Durkheim e Weber, de criar as ciências da sociedade e da cultura,
tentativas que resultaram afinal na fundação da antropologia, da sociologia, da
psicologia e da economia política como disciplinas autônomas, com seus próprios
objetos de estudo, métodos de análise e objetivos únicos. Dessa forma, Vico parece
merecer atenção como teórico das ciências sociais e como defensor das
reivindicações, por parte destas, de autonomia em face das ciências físicas, e do seu
direito de buscar nas suas próprias conceitua- ções suas próprias leis relacionais e
proféticas.
Uma segunda realização, pela qual Vico é alternadamente elogiado e
condenado, vem expressa no seu aforismo (Axioma LXIV da sua lista de
princípios), “A ordem das ideias deve seguir a ordem das instituições” (Ciência
Nova, § 238). Esse aforismo e sua aplicação, por Vico, à sua teoria da evolução
cultural parecem antecipar o conceito marxista da relação entre a superestrutura de
uma cultura (as formas publicamente sancionadas de consciência encarnadas na
arte, na religião, na jurisprudência, na filosofia e na literatura de uma época) e a
práxis social dessa cultura (que, segundo Marx, é por sua vez determinada pelos
modos de produção e pelos interesses do grupo que os controla).
Há mais do que uma pequena justificativa para essa concepção da an-
tecipação por Vico das teorias de Marx, pois, diferentemente de muitos dos seus
contemporâneos, Vico não acreditava que a cultura fosse basicamente uma função
das condições ambientais e, mais especificamente, climáticas. Ele considerava a
cultura antes um produto da interação da consciência com o seu meio, tanto social
quanto natural, e de modo a fazer das principais formas de arte, religião, filosofia e
até da ciência pouco mais que racionalizações retrospectivas das formas de
mediação dos homens com o seu meio, nas situações específicas em que eles se
achavam.
Mas as diferenças entre Vico e Marx são tão significativas para uma
compreensão adequada do pensamento de Vico quanto as semelhanças entre eles.
Mais importante ainda, Vico não acreditava que a atmosfera intelectual de uma
época (ou, para dizê-lo em termos marxistas, a “ideologia”) fosse tão-só um reflexo
dos modos de produção e das relações que mantêm com eles as diferentes classes
212 TRÓPICOS DO DISCURSO

na sociedade em questão. O relacionamento dos homens com os seus mundos, o


social e o natural, era intermediado pela consciência de um modo essencial, e
principalmente pela fala, que não era, para Vico, apenas uma representação verbal
do mundo da práxis, uma reprodução, numa consciência, do mundo das coisas e
das relações reais entre elas, mas um poder reprodutivo e criador, ativo e inventivo.
Com efeito, Vico antecipou a noção, que mais tarde Georg Lukács identificou como
o calcanhar-de-aquiles da teoria marxista, de falsa consciência, a capacidade da
mente de interpretar de maneira errônea as verdadeiras relações entre o homem e
seu mundo e de fazer desse erro a base de um projeto destinado a mudar, revisar e
reformar o mundo real.
Vico define a natureza humana como composta de corpo, mente e fala (§
1045), servindo a fala de contrapeso do impulso para transformar ou suster os
modos de relacionamento efetivamente concretizados numa dada sociedade ou
cultura, em oposição ao impulso natural do organismo humano para continuar
satisfeito com qualquer parcela de segurança e bem-estar que ele usufrua em
consequência daqueles modos de relacionamento concretizados. A esse respeito,
Vico parece assemelhar-se mais a Hegel que a Marx, mais a Bergson que a Comte,
mais a Croce que a Paine, em suma, mais à linhagem idealista do pensamento
europeu do século XIX que à materialista, mais à tradição vitalista que à tradição
mecanicista.
Esse aparente proto-idealismo é talvez confirmado pela “filosofia da
história” que Vico sistematiza nos livros 4 e 5 da Ciência Nova. No Livro 4,
intitulado “O Curso [ou Ciclo] que Seguem as Nações”, Vico expõe o que chama a
“história eterna ideal” que todas as nações (ou culturas) não-inspi- radas pelas
verdades redentoras da revelação cristã devem reproduzir, à proporção que
avançam do nascimento e adolescência, passando por um período de maturidade,
até a idade adulta e à dissolução. No Livro 5, intitulado “O Recurso [ou Reciclo]
das Instituições Humanas que Tomam as Nações ao Ressurgir”, Vico se ocupa dos
problemas do progresso mediante uma recapitulação do ciclo original. Aqui ele
parece antecipar o conceito de transcendência por supressão que Hegel utilizou para
explicar o fato de que, embora as sociedades individuais possam ser governadas por
uma lei de ascensão e queda semelhante à que rege qualquer organismo, a cultura
em geral é cada vez mais progressiva e evolucionária no decorrer de muitos retornos
cíclicos como esses. Para Vico, como para Hegel, a cultura humana, tal como a
consciência humana, continua a desenvolver-se a despeito da natureza cíclica das
vidas dos indivíduos que a possuem.
Os estágios pelos quais todas as culturas devem passar (salvo a hebraica e a
cristã, que gozam dos benefícios da iluminação divina nos princípios que as
governam [§ 948]), Vico os caracteriza como a idade dos deuses, a dos heróis e a
dos homens (§ 173). Em cada uma dessas idades, os homens estabelecem uma
relação específica com a natureza, baseada em seus conceitos de mundo natural e
social em cada época e refletida nos tipos de instituições que constroem para
satisfazer às suas necessidades, tal como as concebem, em cada época.
A primeira idade de uma cultura se caracteriza pelos tipos de relação que as
OS TRÓPICOS DA HISTÓRIA 213

crianças mantêm com os seus mundos, e os modos de organização planejados


nessas idades são sempre derivados da consciência essencialmente religiosa dessas
épocas de fé ingênua na experiência imediata. Daí ele chamar de idade dos deuses
a primeira idade de uma cultura, pois nela os homens supostamente projetaram no
mundo natural suas concepções de suas próprias naturezas passionais e sensuais,
dotaram de um animus, ou espírito, todos os aspectos da natureza, e conceberam-
se a si próprios regidos por esses produtos de suas próprias imaginações febris e
venerando-os.
A segunda idade de uma cultura Vico chama de idade dos heróis, porque
nela os homens começaram a se identificar com as forças espirituais de que
dotaram a natureza, e de maneira a justificar a posição privilegiada que certos
homens ou uma certa classe de homens ~ usualmente os mais poderosos,
considerados portanto os mais sábios, ou, pelo menos, os guardiães da sabedoria
da raça - usufruem às custas dos membros mais frágeis das suas comunidades, a
saber, crianças, mulheres e estrangeiros. As instituições dessa idade refletem a
natureza dilacerada da sociedade que elas sustêm: divisão de classes, disparidade
de privilégios e responsabilidades entre fortes e fracos, e uma ideologia que imputa
às classes superiores os atributos dos deuses (dos quais os heróis supostamente
descendem) e às inferiores os atributos das feras (das quais supostamente se
originaram).
Entretanto, na terceira idade, a idade dos homens, a humanidade efeti-
vamente compartilhada por classes superiores e inferiores é afirmada como um
direito pelas classes inferiores e se torna a base de um novo tipo de Estado, regido
por leis escritas. Os conflitos entre as classes, de um lado, e entre o indivíduo
privado e o bem público, de outro, estão sujeitos à mediação de juizes em nome do
conceito abstrato de justiça. Essa é a idade da razão na história de uma cultura ou
sociedade, uma idade muito mais de reflexão e conciliação que de poder e luta, e é
uma idade que, pelo fato mesmo da sua natureza racional, traz consigo as sementes
de sua própria destruição; pois idades de reflexão e conciliação, argumenta Vico,
tendem inerentemente ao relativismo na moralidade e ao ceticismo na fé. A
devoção, base de qualquer comunidade saudável, é minada; todo cidadão se torna
cada vez mais consciente das origens exclusivamente humanas das instituições, leis
e costumes que ele supostamente reverencia como mentores da sua consciência; e
todos são impelidos a buscar prazeres particulares às expensas do bem público.
Com isso, a sociedade ou a cultura passa para a sua fase de declínio e dissolução,
o que resulta numa “segunda barbárie”, mais bárbara do que a selvageria primitiva,
visto que não é contida pelo medo e ignorância que, em épocas primitivas, levaram
os homens a impor limites aos seus desejos. E a cultura mergulha espontaneamente
na decadência, no primeiro caso, ou se torna presa de inimigos externos, no
segundo, fornecendo assim as condições para o começo de um novo ciclo e um
novo reciclo, um mundo sem fim.
Em todas as suas obras, Vico isenta a civilização cristã da lei do corso e
ricorso, que, insiste ele, é o destino inelutável de toda cultura (salvo a hebraica) que
não é ajudada pela verdadeira fé, a religião cristã. Essa isenção ocorre com base
214 TRÓPICOS DO DISCURSO

numa distinção entre a revelação direta das relações apropriadas do homem com
Deus, com a natureza e com o homem (outorgada aos hebreus através de Abraão,
de Moisés e dos Profetas, e aos cristãos através de Jesus, dos Apóstolos e da Igreja)
e a revelação indireta da própria Criação, sobre a qual se funda a sabedoria dos
gentios. Por terem o benefício do conhecimento direto do que Deus proibia aos
homens, os antigos hebreus e os cristãos possuíam regras pelas quais se pautarem
na construção de comunidades que talvez escapassem ao destino dos gentios e
realizassem a pouco e pouco a communiías ideal que prefiguraria, ainda que não a
representasse perfeitamente, a Cidade de Deus prometida aos eleitos no Céu (§
948).
Vico é bastante explícito e bastante coerente na defesa dessa concepção da
história dos povos eleitos do mundo. A história desses povos não apresenta os
problemas de interpretação que têm as histórias dos povos gentios (ou pagãos); pois
os princípios que permitem interpretar a história das sociedades hebraica e cristã
estão contidos nas mesmas Sagradas Escrituras que fornecem as bases e os
princípios norteadores do seu governo. Seus problemas de filósofo da história são
dois: (1) explicar o nível de civilização alcançado pelos povos pagãos, que, nos
exemplos mais eminentes (os gregos e os romanos), se aproximaram bastante
daquele a que chegaram os povos cristãos, mas que foi alcançado sem o benefício
da revelação direta do tipo desfrutado pelos hebreus e cristãos; e (2) determinar a
relação entre os ciclos de crescimento e declínio manifestados na história dos povos
pagãos (e principalmente dos gregos e romanos) e a história progressiva dos
hebreus e cristãos. Esses dois problemas o conduzem a investigações em dois níveis
de existência histórica: o das sociedades pagãs específicas e o do gênero global das
sociedades, pagã, hebraica e cristã. Assim, para resolver os dois problemas acima
discriminados, Vico se viu forçado a criar dois tipos de leis históricas: o tipo intra-
social (que governa a dinâmica dos diferentes tipos de sociedades) e o inter-social
(que rege as relações estruturais entre os diferentes tipos de sociedades).
Vico resolveu os dois problemas de maneira semelhante a Hegel, ou seja,
estabeleceu uma distinção qualitativa entre diferentes tipos de ordens sociais (pagã
e cristã) e, depois, traduziu essa distinção em termos espaciais e temporais,
tornando o que era contíguo no espaço (grego, romano, hebraico, cristão)
convergente no tempo, de tal modo que os três primeiros pudessem ser tratados
como componentes da síntese realizada no quarto. A cultura grega é caracterizada
como excepcional em virtude do brilhantismo de sua realização cultural, e a romana
é considerada excepcional em virtude de sua longa duração e de suas realizações
no âmbito da política e da lei. Assim como em Hegel, a Grécia é a “poesia” e Roma,
a “prosa” do mundo dos povos pagãos.
A cultura hebraica, em comparação, é apresentada como uma consequência
do império da lei divina parcialmente conhecida, ou seja, como um conjunto de
proibições (especificamente contra a impureza e a divinação), o que a tornou mais
justa do que qualquer coisa realizada pelos povos pagãos. E a cultura cristã é
considerada uma consequência de uma revelação definitiva de Deus ao homem, o
que não apenas o manteve na senda da justiça como lhe permitiu expandir-se e
OS TRÓPICOS DA HISTÓRIA 215

florescer, a ponto de na própria época de Vico (graças às suas luzes) acenar com a
promessa de abarcar o globo.
Essas quatro correntes culturais - grega, romana, hebraica e cristã - se unem
e se fundem numa ordem social nova e definitivamente progressiva na Europa
Ocidental depois da queda do império Romano, entre os séculos V e XII, após o
quê o conjunto da história humana é assentado numa nova base, que permite a
antecipação de uma época na qual o mundo todo será regido por princípios cristãos
de governo, na qual a relação verdadeira e correta entre poder e justiça não somente
será conhecida mas também posta em prática para criar um Céu virtual na terra,
uma imagem da Nova Jerusalém prometida nas Escrituras.
Ora, tudo isso lembra Hegel e, como Karl Lõwith observou em Mean- ing of
History, indica uma possível filiação do pensamento de Vico à tradição joaquita,
ou milenarista, do final da Idade Média, da qual se supõe algumas vezes tenha o
próprio Hegel derivado. Mas, a admitir uma semelhança com Hegel e com as
concepções milenaristas do sentido da história humana, a significação dessa
semelhança é obscura. Além disso, sua utilidade como recurso heurístico é assaz
questionável. Tendo em vista as semelhanças superficiais entre as tradições
viquiana (e hegeliana) e joaquita (ou milenarista) da especulação meta-histórica, a
verdadeira originalidade das reflexões históricas de Vico é totalmente obscurecida,
ou, pelo menos, reduzida a um grau em que tem de receber menos crédito do que
merece. Pois no âmago do pensamento de Vico reside um princípio de
interpretação, ou, para fazer uso de um termo revivido recentemente, um “princípio
hermenêutico”, do qual pensador algum na Europa antes de Hegel sequer
vislumbrou a possibilidade. Esse princípio deriva da percepção, original em Vico
na forma que ele lhe deu, de que a própria fala fornece a chave para a interpretação
dos fenômenos culturais e das categorias pelas quais podem ser caracterizados os
estágios evolutivos de uma dada cultura. Aqui, a distinção básica se dá entre
expressão poética, de um lado, e representação em prosa discursiva, de outro. Na
sua concepção, a primeira é uma força criativa e ativa graças à qual a consciência
apreende o seu mundo; a segunda, uma operação receptiva e passiva na qual se
refletem “as coisas como elas são”. O efeito desses dois aspectos do discurso sobre
a consciência estabelece na própria consciência uma tensão que gera uma tendência
do pensamento a transcender-se e a criar, a partir da notória inadequação da
linguagem ao seu objeto, as condições para o exercício da sua liberdade essencial.
Qual é a natureza do poder criativo da linguagem? A resposta a essa pergunta
não pode ser encontrada nas observações gerais de Vico sobre as funções da
imaginação poética (como quando afirma que a função da grande poesia é inventar
fábulas convenientes ao entendimento popular, estimular e sancionar a fé [§ 376]);
deve, antes, ser procurada na sua análise da natureza da metáfora, no começo do
Livro 2 da Ciência Nova.
A teoria da metáfora criada por Vico é desenvolvida no contexto de sua
discussão da “lógica poética” e funciona como uma chave para essa discussão. No
tratamento de Vico, a lógica poética designa as formas pelas quais as coisas, tal
como são apreendidas pelo homem primitivo, são significadas (§ 400). Uma vez
216 TRÓPICOS DO DISCURSO

que os primeiros homens eram “feras estúpidas, insensatas e horríveis”, o seu


conhecimento das coisas não era “racional e abstrato”, mas apenas “sentido e
imaginado” (§ 375). A sua “metafísica”, diz Vico, era a sua “poesia”; ou, em outras
palavras, devido à sua capacidade poética eles criaram, ou intuíram, uma metafísica
- uma consciência da natureza das coisas {ibid.). Projetando as imagens das suas
próprias naturezas sobre o mundo inanimado mais amplo - a terra, o céu e o mar
fizeram “de toda a natureza um vasto corpo animado que sente paixão e efeitos” (§
377).
Ora, a “lógica poética” é o termo de Vico que designa os modos de ação dessa
consciência primitiva, os meios mediante os quais ela atua; e o conhecimento
modos de ação provê os princípios pelos quais devem
ser interpreiaua.v . : asoes dessa consciência primitiva. Desse modo, Vico inicia o
exame da lógica poética com uma distinção:

O que é metafísica, na medida em que contempla as coisas em todas as formas do seu ser, é lógica
na medida em que considera as coisas em todas as formas pelas quais podem ser significadas. Do mesmo
modo, assim como a poesia foi por nós considerada acima uma metafísica poética, na qual os poetas
teológicos imaginavam que os corpos eram na maioria dos casos substâncias divinas, assim também essa
mesma poesia é considerada como lógica poética, pela qual as significa (§ 400).
A conexão entre metafísica, a ciência das coisas em todas as formas do seu
ser, e lógica, a ciência das formas pelas quais elas podem ser significadas, é
explicada na filosofia da linguagem que Vico desenvolve nesse capítulo de seu
livro. A lógica poética, lógica do homem primitivo, afirma Vico, difere da lógica
dos homens modernos (ou, como ele os chamou, homens reflexivos) pela direção
que o pensamento adota na sua atribuição de características às coisas. Nos tempos
primitivos, o pensamento vai do familiar para o não-familiar e do concreto para o
que chamaríamos abstrato, de modo que as “formas pelas quais as coisas são
significadas” nos tempos primitivos devem ser sempre interpretadas como a
projeção no não-familiar de atributos que parecem caracterizar o familiar. As
origens do conhecimento humano, e afortiori da sociedade e da cultura do homem,
serão encontradas nos poderes onomatéticos dos homens primitivos, o poder de
“dar nomes” aos objetos, de distingui-los de outros objetos e, nesse processo, de
dotá-los de atributos específicos. Daí a identificação de Vico do sentido do logos
grego com palavra e lógica, visto que a lógica dos homens primitivos não era outra
coisa senão a operação mediante a qual eles “nomeavam” e, portanto,
“compreendiam” os objetos e processos desenvolvidos no mundo circundante e
dentro de si mesmos. A primeira linguagem, diz ele, “não era uma linguagem de
acordo com a natureza das coisas com as quais lidava... mas um discurso fantástico
[no sentido de imaginativo] que fazia uso de substâncias físicas dotadas de vida e
em sua maioria imaginadas como divinas” (§ 401). Essas identificações primitivas
do mundo não-familiar e ameaçador de coisas naturais com os atributos familiares
da natureza humana, e principalmente dos sentidos e paixões, é que são, supõe
Vico, os verdadeiros conteúdos e sentidos dos mitos e fábulas legados a nós pelos
povos primitivos.
Porém não basta interpretar esses mitos e fábulas como simples alegorias,
OS TRÓPICOS DA HISTÓRIA 217

pois a lógica poética, dada a natureza metafórica original de seus conteúdos, tem a
sua própria dinâmica interior ou, como poderíamos dizer, dialética. Assim, a
relação entre a linguagem e o mundo das coisas não é simplesmente reflexiva. As
representações linguísticas primitivas do mundo das coisas não são apenas imagens
invertidas do mundo dadas na percepção sensorial, como o seriam se fossem apenas
um produto do pensamento que reflete sobre o mundo das coisas numa linguagem
restrita a metáforas, baseadas na identificação do mundo exterior com os estados
emocionais interiores. Pois as identificações metafóricas têm a sua própria lógica,
que não é a do silogismo nem a do sorites (§ 499), as duas concepções da cadeia de
raciocínio que Vico conhecia a partir de fontes clássicas, mas, antes, a lógica das
figuras de linguagem ou tropos, os “tópicos sensoriais” do homem primitivo (§§
495-98).
Vico argumenta que todas as figuras de linguagem podem ser reduzidas a
quatro modos ou tropos: metáfora, sinédoque, metonímia e ironia (§ 404-9). Essa
asserção baseia-se em Aristóteles, mas com uma diferença:
Vico limita o sentido da operação mental indicada por cada tropo. Ademais, faz da
metáfora um tipo de tropo primário (genérico), de modo que a sinédoque e a
metonímia são consideradas refinamentos dela, e a ironia é vista como seu oposto.
Dessa maneira, já que a metáfora constitui a base de toda fábula (ou mito), a fuga
da linguagem metafórica e a transição para o uso de uma linguagem
conscientemente figurativa (e, desse modo, para o discurso literal e denotativo, ou
em prosa) se tornam possíveis pelo surgimento de uma sensibilidade irônica. É
assim que a dialética do discurso figurativo (tropológico) em si se torna concebível
como o modelo por meio do qual se pode explicar a evolução do homem da
bestialidade à humanidade. Ou, para dizer de outra forma, a teoria da transformação
metafórica serve de modelo para uma teoria da autotransformação da consciência
humana em história. O modo como Vico desenvolveu uma visão como essa só pode
ser exposto depois que tivermos considerado a sua teoria dos tropos.
Segundo Vico, o tropo “mais luminoso e, portanto, o mais necessário e
frequente” é a metáfora, mas a metáfora de um tipo específico, isto é, aquela em
que “sentido e paixão” são atribuídos a “coisas insensíveis”. Foi por esse tipo de
projeção metafórica que “os primeiros poetas atribuíram aos corpos o ser de
substâncias animadas, com capacidades medidas pelas suas próprias, a saber,
sentido e paixão, e desse modo as converteram em fábulas” (§ 404).
É preciso lembrar que, aqui, o termo “fábula” se refere, não a uma estória,
mas a um tipo de operação nomeativa na qual o não-familiar é identificado com o
familiar, de modo a constituir um campo de percepção povoado de seres
particulares (fantásticos), cada um dos quais está relacionado com algum aspecto
de um eu apreendido por semelhança e por diferença. Dessa forma, por exemplo, a
identificação, por parte do homem primitivo, do trovão com a raiva, provocada pelo
medo que tinha do som, e o seu reconhecimento dela como o estado emocional que
ele associava naturalmente a esse som pressupõem uma semelhança entre tipos de
ruídos (o emitido por um homem furioso e o ouvido no trovão) e uma diferença
entre eles (baseada no fato de que os seus volumes são desiguais). A diferença no
218 TRÓPICOS DO DISCURSO

volume é tão decisiva quanto a semelhança no tom, pois a diferença se faz


necessária para que o homem primitivo identifique o som. A identificação do som
com a raiva ao mesmo tempo o familiariza e desfamiliariza; ou seja, torna o som
reconhecível como um tipo específico de som e converte-o numa manifestação de
um tipo especial de ação geradora de som, fornecendo nesse caso a base para a
presunção de que ele é criado por uma ação sobre-humana, ou é uma manifestação
dela. Dessa forma, o ato de dar nome ao trovão cria implicitamente o que Vico
chama um conceito de classe imaginativo (genere fantastico), que pode, por sua
vez, servir como sujeito de outros atributos do mundo natural similarmente
apavorantes no seu aspecto. Tal é o sentido das afirmações de Vico de que “toda
metáfora... é uma fábula resumida” (§ 404) e de que as “mitologias são as
linguagens adequadas das fábulas” (§ 403), isto é, extensões alegóricas das
características dos conceitos de classe (construídos por fabulação) às “diversas
espécies ou aos diversos indivíduos compreendidos nos gêneros” (ibid.).
A mais importante asserção de Vico é que essa classificação primitiva dos
fenômenos por simples identificação metafórica do não-familiar cria uma tensão
entre as coisas e as palavras usadas para as caracterizar que torna necessária a
especificação adicional da natureza das coisas e torna possível o aperfeiçoamento
adicional da linguagem por variação tropológica. Uma vez que o trovão é
identificado com a raiva, então a própria noção de raiva na forma excepcional em
que é apreendida torna-se um objeto ao qual outras qualidades podem ser
atribuídas. A raiva do trovão se torna particula- rizada em virtude tanto de sua
identificação como um estado emocional quanto do reconhecimento nele de um
grau excepcional de poder. Torna-se conhecido e desconhecido; conhecido na
medida em que possui um nome, desconhecido na medida em que o nome dado a
ele não explica alguns dos seus aspectos, especificamente o poder ou volume do
som. O aspecto desconhecido da coisa particular assim classificada
provisoriamente como um estado emocional requer tentativas adicionais de
classificação, cujos modos o próprio Vico classifica em função dos tropos da
metonímia e da sinédoque.
O cabedal de nomes de que o homem primitivo dispunha para a carac-
terização de coisas desconhecidas, ou daqueles aspectos de coisas conhecidas que
requeriam caracterização adicional, Vico supõe que se tenha formado a partir das
ideias “mais particulares” e “mais sensíveis”. Aquilo que é mais proeminente no
campo perceptual, aquilo que é experimentado mais vividamente, que é observado
de maneira mais imediata tem particularidade. Aquilo que é experimentado mais
vividamente é o corpo e as suas várias partes, de um lado, e as emoções e os seus
vários estados, de outro. Eles fornecem as referências para o tipo mais primitivo de
identificação metafórica, bem como as bases para a atribuição a um processo
natural, como o trovão, das qualidades do estado emocional que se lhe assemelham
numa experiência humana. Quando o trovão é partícularizado como raiva, torna-se
o sujeito de especificação adicional por dois tipos de redução tropológica: metoní-
mia e sinédoque.
OS TRÓPICOS DA HISTÓRIA 219

Mediante a metonímia da causa pelo efeito, os aspectos mais sensíveis da


raiva do trovão se revestem dos atributos da ação. O que chamaríamos o efeito do
trovão é apreendido pelo homem primitivo como sendo, em si mesmo, uma ação
causai. Mediante a metonímia do agente pelo ato, sendo o ato ele próprio o aspecto
mais sensível dessa suposta ação causai, ele é dotado mais tarde dos atributos da
atividade intencional. E mediante a metonímia do sujeito pela forma e acidente (ou
das características primárias pelas secundárias), essa ação é personalizada, criando
assim as condições para a institucionalização da religião primitiva: a divinação (o
esforço de determinar a vontade dos deuses) e o culto (a tentativa de apaziguá-los).
Pelas reduções metonímicas, o trovão se reveste de todas as características
necessárias à sua conceituação como um ser poderoso, obstinado e propositado, um
grande espírito com o qual, por sua semelhança com o homem em alguns de seus
atributos, se pode tratar, e que se pode servir e apaziguar.
Uma vez constituído esse ser - ou seja, transformado numa particularidade
com atributos específicos torna-se mais tarde passível de caracterização, por
sinédoque, como uma unidade conceituai. Assim como a metonímia representa um
movimento de pensamento da ideia mais sensível para a menos sensível, de sorte
que o abstrato é experimentado como uma realidade tangível ou concreta, assim
também Vico entende que a sinédoque se move da ideia mais particular para a mais
geral, o que resulta em “elevar” os particulares a universais, e as partes ao todo.
Vico dá vários exemplos:

Assim, o termo “mortais” era originária e propriamente aplicado apenas aos homens, como os
únicos seres cuja mortalidade era sempre notória. O uso de “cabeça” em lugar de homem ou pessoa, tão
frequente no latim vulgar, se deveu ao fato de que nas florestas só a cabeça de um homem pode ser vista à
distância. O próprio termo “homem” é abstrato, compreendendo, como num gênero filosófico, o corpo e
todas as suas partes, a mente e todas as suas faculdades, o espírito e todas as suas inclinações (§ 407).

Os três tropos até aqui distinguidos por Vico - a metáfora, a metonímia e a


sinédoque - fornecem-lhe as bases de uma teoria da dinâmica linguística. Os três
tropos e as relações estruturais entre eles esboçadas acima são para Vico as
categorias do que ele chama lógica poética. O pensamento primitivo opera, segundo
ele, exatamente de acordo com os mesmos princípios da linguagem figurativa (ou
poética), mas com a diferença de que, enquanto o poeta moderno é capaz de
distinguir entre linguagem figurativa e literal, e de utilizar a primeira de maneira
autoconsciente para lograr tipos específicos de efeitos poéticos, presume-se que o
homem primitivo era capaz a princípio de falar apenas figurativamente e de pensar
em alegorias, e de tomar essas figuras e alegorias como verdades literais, ou
representações denotativas, do mundo exterior. E, diz Vico, só depois de reconhecer
as disparidades entre essas representações figurativas da realidade e os objetos que
elas pretendiam literalmente caracterizar é que se tornou possível o quarto tropo
principal, a ironia.
A ironia, afirma Vico, “é formada de falsidade por força de uma reflexão que
veste a máscara da verdade”. A ironia representa um estágio na evolução da
consciência no qual a própria linguagem se tornou objeto de reflexão, e a percebida
220 TRÓPICOS DO DISCURSO

inadequação da linguagem à plena representação do seu objeto veio a ser


considerada como um problema. O discurso irônico pressupõe uma percepção da
possibilidade de fingir, de mentir ou de dissimular. Dessa maneira, diz Vico, “a
ironia não poderia certamente ter começado antes do período da reflexão”, pois, “já
que os primeiros homens do mundo gentio tinham a simplicidade das crianças, que
são sinceras por natureza, as primeiras fábulas não poderiam fingir uma coisa falsa”
(§ 408). Vale dizer, as fábulas do homem primitivo deviam representar um relato
verdadeiro da realidade.
A ironia pressupõe a percepção da distinção entre verdade e falsidade, da
possibilidade de representar erroneamente a realidade na linguagem e da diferença
entre uma representação literal e uma figurativa. Portanto, afirma Vico, os tropos
não devem ser considerados as “invenções engenhosas” de eras mais complexas da
civilização avançada, mas antes “os modos de expressão necessários” dos homens
primitivos (§ 409). Eles se tornaram as bases da linguagem figurativa somente
quando, “com o desenvolvimento ulte- rior da mente humana, foram inventadas
palavras para significar formas ou gêneros abstratos que compreendem as suas
espécies ou relacionam as partes com o seu todo” (ibid.). Desse modo, o tropo da
ironia, no qual a falsidade é apresentada como a verdade, constitui o limite das
caracterizações figurativas da realidade; pois um enunciado irônico não é
simplesmente uma afirmação sobre a realidade, como o são a metáfora, a
metonímia e a sinédoque, mas pressupõe pelo menos uma percepção tácita da
disparidade entre uma afirmação e a realidade que ela supostamente representa. O
discurso irônico invoca implicitamente a distinção entre a elocução verdadeira e a
falsa e, assim, indica a distinção entre representação literal e figurativa,
constituindo assim a base de todas aquelas ciências que, graças ao emprego de
sentidos estipulados, buscam conscientemente não apenas fazer afirmações
verdadeiras sobre o mundo mas também revelar o erro ou inadequação de qualquer
caracterização figurativa dele.
Ora, o ponto importante não é saber se a teoria da linguagem inventiva de
Vico é correta, ou mesmo se a sua caracterização dos tropos principais e da relação
entre eles é válida, mas conhecer o papel que os tropos desempenham na sua teoria
da consciência primitiva. Pois, de fato, a sua concepção tropológica do que ele
chama lógica poética lhe serve não só como base de um método para interpretar os
mitos, fábulas e lendas dos gregos e romanos, e para relacioná-los com as
instituições sociais das quais são reflexões ou racionalizações, mas também como
um modelo pelo qual se possa descrever as características estruturais das antigas
sociedades e como um esquema para relacionar as fases que elas atravessam em
sua evolução.
Convém lembrar que Vico postula três estágios pelos quais todas as culturas
passam nos seus ciclos, do primitivismo à civilização avançada - religioso, poético
e prosaico cada um com sua própria forma distintiva da natureza humana (religiosa,
heróica e humana) e uma repetição do ciclo com a volta da barbárie quando essas
culturas atingem o seu termo. De fato, na sua discussão dos corsi, esses três estágios
OS TRÓPICOS DA HISTÓRIA 221

são depois subdivididos em subfases: nascimento, crescimento, maturidade,


decadência e dissolução, Mas as subfases se relacionam com os estágios pelos
equivalentes conceituais das relações entre o homem e o seu mundo, analisados na

RELIGIOSO HERÓICO HUMANO RECAPITULAÇÃO

discussão dos tropos principais. O quadro na página ao lado ilustrará a questão.


ESTÁGIO:

Transição da metáfora à da metonímia à da sinédoque à


metonímia sinédoque ironia
Subfase nascimento e maturidade declínio e
crescimento dissolução

Tipo de poética heróica humana (§§ 916-18)


natureza humana

Tipo de sociedade teocrática aristocrática democrática (§§ 925-27)

Tipo de linguagem muda heráldica articulada (§5 928-31)

Tipo de lei divina contratual forense (§§ 937-40)

Tipo de razão divina natural civil (§§ 947-51)

Tipo de escrita hieroglífica imaginativa vulgar (§§ 932-35)

Como sistema de classificação de culturas e sociedades, o esquema de Vico


não é nem mais nem menos original que os de Aristóteles e de São Tomás de
Aquino, ou, para dar exemplos modernos, os de Maquiavel, Montesquieu, Hegel,
Marx, Spengler ou Toynbee. Tampouco sua concepção da natureza humana como
mente e corpo mediados pelo discurso é particularmente nova; nem sua concepção
da relação entre a consciência, de um lado, e o seu meio social diferente, de outro.
Mesmo o tipo de distinção que ele faz entre linguagem poética e linguagem prosaica
fora antecipado por Aristóteles, como também a distinção entre os dois tipos de
“lógica” exigidos para as afirmações científicas, de um lado, e as afirmações
poéticas, de outro. O que ê original é o uso que ele faz da análise tropológica da
linguagem figurativa para a construção de um modelo graças ao qual ambos os es-
tágios evolutivos da consciência possam ser definidos e as transições de um para o
outro explicadas em termos de “modificações da mente humana”. Como teoria do
desenvolvimento histórico da natureza humana da bestiali- dade à civilização, a
Ciência Nova sustenta uma analogia estrita entre a dinâmica das transformações
metafóricas na linguagem e as transformações da consciência e da sociedade. Essa
é a dialética de Vico, que não é uma dialética do silogismo (tese, antítese, síntese),
mas antes a dialética do intercâmbio entre a linguagem e a realidade que ela busca
abranger. Para simplificar, a analogia enuncia as seguintes semelhanças genéricas
entre as transições nas sociedades e as transformações tropológicas do discurso:
222 TRÓPICOS DO DISCURSO

1. A transição que vai das principais identificações metafóricas mediante a


nominação da realidade exterior em termos tirados das ideias mais particulares e
mais sensíveis das partes do corpo e dos estados emocionais, até as reduções
metonímicas é análoga à transição, na sociedade, da norma dos deuses para a
norma das aristocracias.
2. A transição das reduções metonímicas para as construções sinedóquicas do todo
a partir das partes, dos gêneros a partir das espécies, e assim por diante, é análoga
à transição da norma aristocrática para a norma democrática; e
3. A transição das construções sinedóquicas para a afirmação irônica é análoga à
transição das democracias regidas pela lei para as sociedades decadentes cujos
membros não têm qualquer respeito pela lei.

Essa ideia é sustentada pela crença de Vico segundo a qual o modo de


organização social de um dado estágio de desenvolvimento cultural é análogo aos
modos de relacionar os aspectos desconhecidos ou problemáticos da experiência
humana com seus aspectos conhecidos ou cognitivamente seguros, característicos
dos quatro tropos principais. No primeiro estágio, os homens projetam nos deuses
as qualidades que percebem em si mesmos, atribuindo-lhes o poder que vêem
manifestado nas ocorrências naturais cataclísmicas, como o trovão, o relâmpago,
as erupções vulcânicas, as enchentes e assim por diante. Julgam-se efetivamente
criaturas inferiores, servos ou escravos desses poderes superiores, e organizam a
vida segundo essas funções. O medo encerra os homens em cavernas; as enchentes
os expulsam para cavernas altas nas escarpas das montanhas; a lascívia os impele
a arrastar consigo as mulheres para coabitarem nas cavernas; e a necessidade, a
ameaça de destruição física, os mantêm nas cavernas, forçando assim a formação
das primeiras famílias. Dentro das famílias, as relações são regidas pela lei do mais
forte; exatamente como entre as famílias e os deuses de cuja ira estão fugindo, o
medo de poderes mais fortes do que o mais forte dos homens lança os fundamentos
das primeiras práticas religiosas; o culto e a divinação. Assim também, nas
concepções dos primeiros homens sobre as relações entre as gerações, o medo e a
força são os princípios regentes (o medo que as crianças têm dos pais e o medo que
os pais têm dos mortos). Os homens desses primeiros tempos encontram-se
totalmente alheados de si próprios em virtude de sua capacidade (puramente
humana) de projeção metafórica das próprias naturezas na natureza ambiente.
Como diz Vico, eles viviam com medo de si mesmos, ou seja, dos aspectos de sua
própria natureza que haviam projetado no mundo físico, imaginando-os deuses. Em
sua consciência, os homens eram nada e os deuses tudo, mesmo que os deuses
fossem meros produtos de sua imaginação e nada mais que projeções de suas
próprias capacidades animais e humanas.
Essa relação de alienação total é mediada por mudanças na consciência
análogas às que se refletem nas supostas diferenças entre a metáfora simples, de
um lado, e a metonímia, de outro. Na família primeva, as relações são, com efeito,
determinadas pela lei do mais forte, o pai, que explora a própria família e a protege
de outros predadores - dos predadores animais e humanos, graças à sua força física,
OS TRÓPICOS DA HISTÓRIA 223

e dos divinos e espirituais, graças à sua sabedoria religiosa e seu domínio da magia
e do ritual. Esse modo de práxis social, característico da família, torna-se, por seu
tumo, a base para a atribuição de características específicas aos deuses; são
identificados como capazes de exercer sobre os homens o mesmo tipo de poder que
os pais exercem sobre as famílias, de modo que, por analogia, as diferenças radicais
percebidas entre os deuses e os homens são conciliadas, ao menos parcial e
seletivamente, pela progressiva humanização dos deuses e pela progressiva
divinização dos pais.
A diferenciação interna de condição, funções, privilégios e responsabilidade
dentro da família com base na força é acompanhada da extensão do poder dos
patriarcas aos forasteiros expulsos das florestas e planícies abaixo, onde a luta
primeva de todos contra todos continua a eliminar os mais fracos ou a forçá-los a
buscar a proteção das famílias estabelecidas nas cavernas acima. Esses refúgios
formam a base dos socii que, em troca da proteção dos patriarcas, realizam tarefas
servis para eles, da mesma forma que os primeiros homens trabalhavam como
escravos para os deuses. Isso cria uma divisão na humanidade socializada, tanto na
prática quanto na consciência, porque os membros da classe servil não têm o status
de homens, são definidos como feras e tratados como tais. Dessa forma, dá-se aos
patriarcas uma oportunidade para a definição posterior de sua própria humanidade
por exemplo negativo, não em comparação com os deuses, mas com os homens
animais de cujo trabalho passam a depender cada vez mais. Assim, as sociedades
heróicas se formam das sociedades divinas, e a idade dos deuses dá lugar à idade
dos heróis (aristocracias).
A consciência dessas sociedades heróicas é expressa no modo da iden-
tificação metonímica. É essencialmente redutiva, não no modo da metáfora, mas
principalmente no da metonímia. Pois entre os mais fortes e mais poderosos e entre
os mais fracos e mais servis, a ordem social é mantida mediante a aceitação do fato
de que é da natureza das coisas a ordem social dividida. Isto é, tanto entre
governantes quanto entre governados, o ato de governar é confundido com o
governo; a forma e acidente da soberania são confundidos com a sua essência ou
sujeito; e o efeito da soberania é confundido com a causa de ser ela o que é. E tudo
isso de acordo com o princípio segundo o qual os mais vividos objetos da
experiência, neste caso os homens mais fortes e aterradores do grupo, são tratados
como os dados primitivos da consciência a que todas as apreensões extrínsecas da
existência humana se devem referir para a determinação de seu significado. Os
produtos culturais desse tipo de sociedade são similarmente metonímicos, porque
o estilo grandioso das epopeia s, que têm como matéria os feitos dos “heróis” ou
dos mais nobres dos homens, pressupõe a nobreza, a descendência divina, dos seus
protagonistas, e ressalta as diferenças essenciais entre os heróis e os homens
comuns. E o mesmo se dá com as leis desse período. Elas lidam em primeiro lugar
com os privilégios da nobreza que as preservam com receio de que os plebeus,
simplesmente por saberem que existe uma lei, passem a exigir uma lei para regular
as relações entre eles próprios e a nobreza.
A transição da idade dos heróis para a idade dos homens, do governo da
224 TRÓPICOS DO DISCURSO

aristocracia para o governo da lei que é concebida como mediadora entre as classes,
é efetivada, afirma Vico, por uma mudança na consciência entre as ordens
inferiores, mudança análoga à progressão do modo metonímico da percepção para
o modo sinedóquico. Pois a revolta da classe subserviente pressupõe a percepção
da unidade do indivíduo com a espécie e da espécie com o gênero. Portanto, de
conformidade com o princípio segundo o qual, na sinédoque primitiva, a
identificação sempre é feita com respeito aos atributos apreendidos do modo mais
sensível, essa percepção investe a classe servil da humanidade que a nobreza
originariamente reivindicara apenas para si.
A sinédoque primitiva toma a parte pelo todo ou a espécie pelo gênero. Ela
fornece, desse modo, a explicação da atribuição a si mesmos, por parte dos plebeus,
das qualidades originariamente atribuídas aos deuses e posteriormente
reivindicadas pela nobreza. Vico descreve a transição da idade heróica para a idade
humana da seguinte forma:

Os pais de família, tomando-se grandes pela religião e virtude dos seus ancestrais e mediante o
labor dos seus clientes, começaram a violar as leis de proteção e a governar os clientes com dureza. Quando
se desviaram assim da ordem natural, que é a da justiça, seus clientes se rebelaram. Mas, visto que sem
ordem (vale dizer, sem Deus) a sociedade humana não pode subsistir nem por um instante, a providência
levou os pais de famílias a se unirem naturalmente aos seus parentes em ordens contra os seus clientes.
Para pacificara estes, lhes concederam, na que foi a primeira lei agrária do mundo, a posse bonitária dos
campos, conservando para si mesmos o domínio mais favorável ou soberano da família. Surgiram assim
as primeiras cidades baseadas nas ordens reinantes de nobres. E, à proporção que declinava a ordem
natural, a qual se baseara, de acordo com o estado da natureza de então, na [superioridade de] tipo, sexo,
idade e virtude, a providência engendrou a ordem civil juntamente com as cidades. E a primeira de todas
[as ordens civis], a que mais se aproximava da natureza: a de que por força da nobreza da espécie humana
(pois, nesse estado de coisas, a nobreza só poderia basear-se na reprodução, à maneira humana, com
esposas tomadas sob os auspícios divinos) e, assim, em razão de um heroísmo, os nobres deveriam reinar
sobre os plebeus (que não contraíram matrimônio com tais solenidades) e, agora que terminaram os
governos divinos (sob os quais as famílias haviam sido governadas por auspícios divinos) os heróis deviam
governar em virtude da forma dos próprios governos heróicos, que a instituição básica dessas comunidades
deveria ser a religião salvaguardada dentro das ordens heróicas, e que através dessa religião todas as leis
civis e instituições deveriam pertencer apenas aos heróis. Mas, como a nobreza se tomara agora uma
dádiva da fortuna, a providência suscitou entre os nobres a ordem dos próprios país de famílias, como
sendo naturalmente mais digna por causa da idade. E entre os pais fez com que os mais animosos e mais
robustos se erigissem em reis, com o dever de liderar os outros e organizá-los em ordens que pudessem
deter e intimidar os clientes que se rebelavam contra eles (§ 1100).

Essa longa passagem contém in nuce os princípios da filosofia da história de Vico,


apresentando imagens tanto das relações estruturais predominantes entre
consciência e práticas sociais, quanto um esquema explicativo da transição de um
estágio a outro. É seguida por outra passagem, igualmente representativa, em que o
surgimento da consciência sinedóquica é invocado explicitamente como a causa da
luta de classes e como a base do governo popular que dela surge.

Mas, com o correr dos anos e cora o desenvolvimento muito maior da mente humana, a plebe dos povos finalmente se deu conta
das pretensões desse heroísmo e compreendeu que ela própria tinha a mesma natureza humana que os nobres, e, portanto, insistiu
em entrar nas instituições civis das cidades. Dessa forma [...] nasceram as repúblicas populares... Em tais
repúblicas povos inteiros, que têm em comum o desejo de justiça, usufruem leis que são justas porque são
OS TRÓPICOS DA HISTÓRIA 225

boas para todos {§ 1101; o grifo é nosso).

Somente nessas comunidades “humanas”, resume Vico, surge aquela consciência


filosófica que busca conciliar a verdade e a falsidade, e da mesma forma que a lei,
explicitamente, concilia a justiça e a injustiça. “Tudo isso foi ordenado pela
providência”, observa Vico, “a fim de que, não sendo mais as ações virtuosas
instigadas por sentimentos religiosos como antigamente, a filosofia pudesse tornar
as virtudes compreendidas na ideia delas, e por força de reflexão sobre isso, se os
homens não tivessem virtude, eles pelo menos pudessem envergonhar-se dos seus
vícios” (ibid.).
Mas esse tipo de consciência traz em si as sementes de sua própria dis-
solução. Da mesma forma que a ironia pressupõe a consciência da distinção entre
verdade e falsidade, assim também a visão de uma comunidade humana
diferenciada internamente embora legalmente unificada é inerentemente destinada
a promover um declínio da condição de virtude para a de vício. A marca da
corrupção aparece no “descenso” da filosofia para o ceticismo, e da oratória, da
eloqüência para a erística. Assim escreve Vico:

Mas, à medida que os Estados populares se corrompiam, corruptas também se tomavam as


filosofias. Caíam no ceticismo. Os doutos estultos se punham a caluniar a verdade. Daí surgir uma falsa
eloqüência, pronta a sustentar indiferentemente um ou outro dos lados opostos de um caso. Sucedeu então
que, por abuso da eloqüência, como o dos tribunos da plebe em Roma, quando os cidadãos já não se
contentavam em fazer da riqueza a base da ordem social, esforçaram-se para transformá-la em
instrumento de poder. E, assim como os ventos furiosos do sul agitavam o mar, da mesma forma esses
cidadãos provocaram guerras civis nas suas repúblicas e as lançaram na desordem total. Dessa maneira,
fizeram com que as comunidades decaíssem da perfeita liberdade para a perfeita tirania da anarquia
desenfreada dos povos livres, que é a pior de todas as tiranias (§ 1102).

Quando essa condição se manifesta, afirma Vico, a Providência fornece um destes


três tipos de remédio: convoca um homem forte (como Augusto), lança sobre a
sociedade decadente uma horda de conquistadores bárbaros, ou permite que a lógica
interna da relação entre virtude e vício se resolva na autodestruição. O último
“remédio” representa o caso em que a consciência irônica serve como lei reguladora
das relações sociais. Assim, Vico escreve:
Mas se os povos estão apodrecendo nessa extrema doença civil, e não podem concordar na escolha
de um monarca interno, nem são conquistados e preservados por melhores nações externas, então a
providência tem à mão, para essa doença extrema, o seu remédio extremo. Pois esses povos, como tantas
feras, caíram no vício de todo homem de pensar apenas nos seus interesses particulares e chegaram ao
extremo da debilidade, ou melhor do orgulho, quais animais ferozes que ao menor desagrado se eriçam e
vociferam. Dessa forma, não importa quantos sejam, vivem como bestas selvagens numa funda solidão de
espírito e de vontade, em que nem mesmo dois podem estar de acordo, de vez que cada qual segue o próprio
prazer ou capricho (§ 1106).

Devido a “facções obstinadas” e a “guerras civis desesperadas”, as cidades se


transformam em “florestas e as florestas em antros e covis de homens”. “Dessa
forma”, conclui Vico, “no decorrer de longos séculos de barbárie, o ócio eliminará
as malnascidas sutilezas dos engenhos maliciosos que os transformaram em feras
226 TRÓPICOS DO DISCURSO

mais desumanas pela barbárie da reflexão do que os primeiros homens pela


barbárie do sentido” (§ 1106; o grifo é nosso). Isso cria condições para a volta à
“devoção, à fé e à verdade” graças ao mesmo tipo de transformações da consciência
descritas na análise dos tropos e na mesma ordem de transformação, de modo que
o corso da transição original da barbárie para a civilização sobrevive uma vez mais,
como um ricorso, dotado de novos conteúdos mas regido pelas mesmas leis de
estrutura e processo.
A concepção de Vico do “Recurso das Instituições Humanas que Tomam as
Nações ao Ressurgir”, exposta no Livro 5 da Ciência Nova, é formulada de maneira
menos clara do que a sua concepção do seu curso original. E isso porque, embora
se ocupe de dois exemplos principais dos cursos, Grécia e Roma, utiliza apenas um
exemplo de recurso, a antiga Europa medieval. A implicação desse exemplo se
torna ambígua pelo fato de que, no caso da Europa medieval, os conteúdos de
consciência são de duas ordens, cristã e pagã, ao invés da ordem única que Vico
lhes atribui na idade bárbara original. Todavia, as relações estruturais entre a
consciência e seus objetos são supostamente as mesmas que nos tempos primitivos
originais, e as transições de um estágio para outro são analisadas na mesma analogia
com a transformação linguística.
A natureza excepcional desse exemplo único de ricorso é ressaltada na
observação de Vico, no começo do Livro 5, de que, no início da Idade Média, Deus
“permitiu que uma nova ordem da humanidade nascesse entre as nações” para que
a verdadeira religião “pudesse se estabelecer firmemente de acordo com o curso
natural das próprias coisas (cose) humanas” (§ 1047). Mas o modo de relação da
religião cristã com os povos pagãos, assevera Vico, era o mesmo que o homem
primitivo mantinha com a natureza; e sua verdade para a humanidade pagã foi
estabelecida pelos mesmos meios, com base no seu apelo às ideias mais particulares
e mais sensíveis das coisas na consciência infantil. “Operando segundo meios
sobre-humanos”, diz Vico, “Deus [...] revelou e confirmou a verdade da religião
cristã, opondo a virtude dos mártires ao poder de Roma, e o ensinamento dos Padres
da Igreja, juntamente com os milagres, à vã sabedoria da Grécia” (§ 1047; o grifo
é nosso). Em suma, a verdade da religião cristã se estabeleceu primeiramente por
meio dos atos dos mártires, dos ensinamentos dos Padres da Igreja e dos milagres
realizados por Deus, isto é, por um tipo de poesis divina adequada ao entendimento
de naturezas infantis reduzidas ao temor e angústia pela anarquia da sua condição.
Dessa forma, das “cavernas” das cidades em ruínas os homens fugiram, em busca
de proteção, para “asilos” no campo, oferecidos por “bispos e abades” que eram
“comparativamente humanos em meio a semelhante barbárie”, formando assim a
contrapartida cristã das primeiras famílias dos patriarcas nas idades divinas
originais (§ 1056).
Esses “tempos divinos” foram seguidos, diz Vico, “por certos tempos
heróicos, em consequência da volta de uma certa distinção entre naturezas quase
opostas, a heróica [ou seja, aristocrática] e a humana” (§ 1057). Esse modo de
relação social corresponde à consciência metonímica que floresceu durante os
tempos heróicos originais. E é transcendido, não por uma mudança nas próprias
OS TRÓPICOS DA HISTÓRIA 227

relações sociais, mas antes por uma mudança de consciência que corresponde à
identificação sinedóquica do geral com o específico, ou do específico com o
exemplo individual de humanidade. Dessa forma, argumenta Vico:

Mas finalmente, com a abertura de escolas nas universidades da Itália e com o ensino das leis
romanas contidas nos livros de Justiniano, leis baseadas na lei natural das gentes humanas, as mentes agora
mais desenvolvidas e mais inteligentes se dedicaram ao cultivo da jurisprudência da eqüidade natural, que
torna o povo comum e os seus nobres iguais em direitos civis, da mesma forma que são iguais na natureza
humana. [...] Os plebeus, uma vez que sabem ter natureza igual à dos nobres, naturalmente não consentirão
em permanecer inferiores a eles nos direitos civis: e alcançarão a igualdade nas repúblicas livres ou sob as
monarquias (§ 1086, 1087; o grifo é nosso).

No entanto, devido à circunstância de a religião dos europeus ser a verdadeira


religião (§ 1094), a nova sociedade que se desenvolveu na Europa Ocidental no
começo da Idade Média está, segundo Vico, resguardada de um modo especial
contra a queda na consciência irônica que assediou os seus equivalentes pagãos.
Pois a verdade que se opõe à falsidade nas sociedades cristãs, assevera Vico, é
superior às verdades naturais alcançadas por meios naturais nas mentes não-
inspiradas pela fé cristã. Assim, o Cristianismo se apresenta como um solvente, de
origem divina, da consciência irônica, como a medida de toda verdade, e como o
critério pelo qual toda crença meramente humana e todo conhecimento humano
devem ser julgados. E do ponto de vista da verdade cristã que é permitido a Vico,
na sua própria mente, ver, com ironia autoconsciente, os cursos que tomam as
nações gentias na sua passagem do nascimento e do crescimento, através da
maturidade, para o declínio e a dissolução. E essa ironia que lhe confere a
imparcialidade necessária para a constituição das leis que regem o desenvolvimento
das nações gentias. Essa imparcialidade, por sua vez, lhe permitiu conceber as
histórias dessas nações como processos puramente autônomos de desenvolvimento,
governados pela Providência apenas na medida em que ela fornecia, na constituição
da própria natureza humana como corpo, mente e discurso, as três variáveis cujas
interações as histórias pagãs representam. E dando primazia, como força mediadora,
ao discurso em lugar da mente ou do corpo, pôde afirmar que havia explicado a
evolução da razão a partir da emoção, da humanidade a partir da bestialidade, e da
civilização a partir da selvageria, de um modo que ninguém antes dele conseguiu
fazer.
A metáfora essencial da concepção que Vico teni da história deve, pois, ser
encontrada na teoria da transformação linguística que ele utilizou como um modelo
tanto da relação da consciência com os seus objetos quanto da dinâmica das
transformações da consciência no tempo. A dinâmica interna do sistema representa
uma projeção da teoria dos tropos e de suas inter-relações, que ele tomou por inteiro
da poética clássica. A trama que Vico elabora da história humana apresenta dois
níveis: o cristão-hebraico, que descreve uma evolução progressiva da consciência
à luz da verdade revelada; e o pagão, que descreve um padrão de recorrência cíclica,
cujas fases são descritas em termos tropológicos na analogia da evolução linguística
da metáfora simples, passando pela metonímia e pela sinédoque, até à ironia.
A atitude adotada por Vico diante dos seus dados é dupla: no que tange aos
228 TRÓPICOS DO DISCURSO

dados da história hebraico-cristã, ela se mostra piedosa e inteiramente não-crítica;


com respeito a todas as histórias pagãs, é irônica, pois naquilo que todos os
pensadores pagãos consideram a verdade por excelência, o próprio Vico vê uma
mistura de verdade e erro. A voz com que Vico fala dos acontecimentos históricos
é a de um conhecedor da verdade por excelência que se reflete nas misturas de
verdade e erro produzidas pelos pensadores pagãos, mas com simpatia por suas
tentativas de descobrir verdade, e louvor por alcançarem a distinção entre verdade
e erro. Tal simpatia provém da sua convicção, produto de sua fé cristã, de que
aqueles pensadores eram inata- mente incapazes de se elevar à verdade superior que
ele, juntamente com todos os outros cristãos, possuía. Portanto, a voz com que se
dirige aos contemporâneos é de dois tipos: uma produzida pela suposição de uma
crença religiosa compartilhada, a outra usada para se dirigir àqueles que estão pri-
vados da crença correta. Seu orgulho nasce da sua convicção de que enfrentou os
inimigos da fé crista no próprio terreno deles, e de que derivou apenas da
consideração da evidência uma justificativa para a crença nos atos da Providência
mesmo entre povos não-conhecedores da verdade cristã. E sua alegação é que sua
nova ciência fornece um meio de dissolver a consciência irônica da qual os
modernos filósofos do acaso, de um lado, e do determinismo estrito, de outro, são
representantes. Ela alcança esse efeito, na visão de Vico, invertendo a relação entre
os componentes da consciência irônica, de modo que o falso seja visto, não em
oposição ao verdadeiro, mas contido nele como um estágio necessário ao alcance
da verdade total. Essa é a ironia superior, elogiada e posta em prática por Erasmo,
o qual percebeu que a loucura não é o oposto da razão ou sanidade, mas está
dialeticamente relacionada a ela, a base e pressuposição da obtenção de
racionalidade e saúde. Assim, aos dualismos e monismos de sua época, Vico opôs
uma terceira alternativa, baseada no reconhecimento de que da mesma forma que a
morte está contida na vida e a vida na morte, assim também a selvageria está contida
na civilização e a civilização na selvageria; e5 o que talvez seja mais importante,
baseada no reconhecimento de que o bestial existe no humano da mesma forma que
o humano existe no bestial.
0 QUE ESTÁ VIVO E O QUE ESTÁ MORTO NA CRÍTICA DE
CROCE A VICO

Por mais de meio século, o falecido Benedetto Croce trabalhou para estabelecer
o caráter de originalidade de Vico e o seu direito a um lugar proeminente, para não
dizer único, na história do pensamento europeu. Secundado e apoiado pelo colega
Fausto Nicolini, Croce reiterava firmemente a sua crença na amplitude e fecundidade
da obra de Vico. E a fama sólida de que Vico goza atualmente, bem como o elevado
prestígio de que desfruta em tantas disciplinas diferentes, pode ser atribuído em grande
parte à incansável defesa que fizeram de sua causa. Negar isso seria impreciso e
mesquinho.
Croce e Nicolini eram advogados formidáveis e donos de uma riqueza quase
assustadora de conhecimento, erudição e sagacidade polêmica. Mas o que os motivou
foi tanto o orgulho nacional, o bairrismo e um provável sentimento pessoal de posse
quanto o respeito à filosofia de Vico. Ademais, a estratégia de sua defesa era
questionável. Um dos seus objetivos era apresentar Vico como precursor da “filosofia
do espírito” crociana, e, para isso, tinham de negar a legitimidade das tentativas de
Vico de fundar uma ciência da sociedade e de elaborar uma filosofia da história. Pois
essas duas atividades eram anátemas para a visão de mundo crociana. Dessa forma,
mesmo que Croce e Nicolini tenham trabalhado arduamente para consolidar a repu-
tação de Vico no século XX, a concepção que tinham de sua obra era tão tendenciosa
quanto limitada. E boa parte da divergência atual em torno da natureza exata da
contribuição de Vico ao pensamento moderno tem origem na estreita definição, por
parte deles, “do que está vivo e do que está morto” na filosofia de Vico.
Ora, a determinação “do que está vivo e do que está morto” em sistemas
filosóficos anteriores era uma operação crociana característica, que ele executava com
particular insistência. Na condição de árbitro autonomeado do gosto peio humanismo
europeu na sua fase moderna, Croce se sentia compelido a demonstrar com frequência
mais que normal as suas capacidades de analisador. Basicamente, quase todo grande
pensador e escritor europeu acabou instalado num lugar preciso de uma hierarquia de
realizações onde a própria filosofia de Croce fornecia o teste final de ortodoxia. Assim,
230 TRÓPICOS DO DISCURSO

por exemplo, Hegel ficou junto do summum bonum; De Sanctis, Goethe, Kant, Dante,
Aristóteles e Sócrates foram colocados de maneira apropriada para que pudessem
entrevê-lo; a Marx foi permitido apenas um vislumbre refletido, enquanto Freud foi
relegado às regiões mais profundas, onde a luz dificilmente penetrava. A posição de
Vico era mais difícil de determinar; pois ele era, ao mesmo tempo, o descobridor do
princípio formador da hierarquia e o seu possível subversor.
Para Croce, Vico era (como Goethe o chamou) “der Altvater” - o patriarca,
paradigma de um modo peculiar de “sentir” a filosofia italianamen- te, embora a
“pensasse” ao mesmo tempo cosmopoliticamente146. Croce confessava um sentimento
de apego filial a Vico147, mas, apropriadamente, o sentimento era de clara
ambivalência. Era grato ao “patriarca” por lhe fornecer uma sanção clássica à sua
própria revolta contra as ortodoxias predominantes de sua geração, o positivismo e o
vitalismo, livrando-a assim da acusação de mera excentricidade. Mas não podia
perdoar Vico por aparentemente fornecer justificativas semelhantes para os sistemas
que ele queria rejeitar. Se Vico representava a primeira antecipação visível da própria
filosofia do espírito de Croce, era também o primeiro praticante sofisticado das aberra-
ções intelectuais que Croce mais odiava, a sociologia e a filosofia da história.
Essencialmente, portanto, muito mais que os outros pensadores que Croce respeitava,
Vico tinha de ser afirmado e contestado, exaltado e negado; pois, se Vico era
justificado em sua tentativa de fundar as ciências da sociedade e da história, então todo
o sistema de Croce fora mal concebido, o seu papel cultural fora definido de modo
incorreto, e grande parte de sua atividade carecia de valor.
A combinação de reverência e reserva que marcaram firmemente os
comentários de Croce sobre Vico estava presente nas suas primeiras referências a ele.
Croce leu pela primeira vez a Scienza Nuova seriamente, durante o seu recolhimento
de antiquário em Nápoles, entre 1886 e 1892148. Voltou ao estudo sistemático de toda
a filosofia de Vico somente depois de 1893, quando seu ensaio “A História Incluída
sob o Conceito Geral de Arte” o envolveu no debate em curso sobre a natureza do
conhecimento histórico e o transformou de antiquário em filósofo. Nesse ensaio,
Croce afirmava que, embora a história seja uma arte e não uma ciência, é, não obstante,
uma forma de cognição - e não mera ilusão, narcótico, ou passatempo, como ensi-
navam as escolas de estética da época. Todavia, não explicou de que modo uma
intuição pura (que ele considerava ser a essência da arte) poderia ser imediata e,
também, ter um conteúdo cognitivo (como queria asseverar acerca das intuições
históricas); e, aparentemente, ele não havia resolvido naquela época a questão para a
sua própria satisfação. Mas dentro em pouco ele o faria, e a sua solução, bem como a

146 Bencdetlo Croce, 1M Filosofia di GiambatlisUi Vico, 5. ed. rev. (Bari, 1953), prefácio à 1. ed., p. viii.
Doravante citada no texto. Todas as citações dessa obra serão dadas nas versões fornecidas por R. G. Collingwood
em sua tradução, The Philosophy of Giambattista Vico (New York, 1913). Como quase todas as citações são tiradas
dos capítulos X, XI, XIII e XX, não forneci os números de páginas específicos da versão inglesa. Além disso, mudei
as traduções de Collingwood nas passagens em que, a meu ver, sua tendência a “anglicizar” o pensamento dc Croce
obscureeeu o seu tom italiano distintivo.
147 Fausto Nicolini, Croce (Torino, 1962), p. 252.
148 Benedetto Croce, “Contributo alia Critica de Me Stesso”, cm sua Etica e Política (Bari, 1956), p. 392.
0 QUE ESTÁ VIVO E O QUE ESTÁ MORTO NA CRÍTICA DE CROCE A VICO 231

sua atitude com relação a Vico (que se reduzia ao mesmo problema), é assinalada nas
referências de passagem que faz ao pensamento de Vico nesse ensaio inicial. Cita Vico
duas vezes - uma com desdouro (juntamente com Herder), como um representante da
“filosofia da história”, e uma com aprovação, conquanto de maneira vaga, como uma
autoridade na verdadeira natureza da faculdade poética149.
Em seu esboço autobiográfico escrito alguns anos depois, Croce diz que, na
época do ensaio, Vico era apenas um fator entre muitos (junto com De Sanctis,
Labriola e os estéticos alemães) na economia da sua vida intelectual150. Entretanto,
durante os dez anos seguintes, Vico passou a ocupar pouco a pouco o centro do
pensamento de Croce, sugerindo os postulados de capacitação da embrionária filosofia
do espírito e dos meios de finalmente distinguir de maneira precisa entre história, arte,
ciência e filosofia. Desse modo, por volta de 1902, quando Croce publicou a sua
Estética, havia creditado a Vico não apenas a descoberta da ciência da estética mas
também a percepção, se bem que imprecisa, da verdadeira relação entre a poesia e a
história151. Mais especificamente, Vico havia formulado “novos princípios da poesia”
e analisado corretamente o “momento poético ou imaginativo” na vida do espírito
(Estética, pp. 255-56). Na realidade, ele não havia compreendido a natureza dos outros
momentos da vida do espírito - o momento lógico, o ético e o econômico; e essa falta
de entendimento das outras dimensões da atividade do espírito levara-o a fundir
“história concreta” com “filosofia do espírito”, lançando-se desse modo nos abismos
da “filosofia da história” (ibid.., p. 256). Felizmente, afirmava Croce, a “ciência nova”
de Vico - isto é, a sua epistemologia - nada tinha a ver com a “história concreta e
particular, que se desenvolve no tempo”. Era, antes, uma “ciência do ideal, uma
filosofia do espírito”, que se ocupava das “modificações da mente humana” {ibid., p.
255). Por conseguinte, poderia ser desembaraçada da aplicação errônea delas à história
concreta; e Vico poderia ser elogiado por tê-la descoberto, mas criticado por tê-la
utilizado de maneira imprópria.
De acordo com a análise inicial de Croce, então, Vico fracassara em duas
avaliações: sua investigação da vida do espírito não fora completa; e ele confundira
história concreta com filosofia do espírito, gerando assim as falácias da filosofia da
história. A filosofia da história, asseverava Croce, era impossível porque ela se
fundamentava na crença de que a “história concreta poderia ser submetida à razão” e
de que “épocas e eventos poderiam ser deduzidos conceitualmente” (ibid.). Era a
contrapartida da fantasia do filósofo nutrida pelo cientista social, isto é, a crença de
que se poderia derivar do estudo dos acontecimentos individuais leis universais do
processo social, o que gerava as falácias do sociologismo. Na verdade, contudo, se
fosse desenvolvida corretamente, a aguda visão de Vico da “autonomia do mundo
estético” e sua descoberta do elemento cognitivo na poesia forneciam um antídoto
tanto para a filosofia da história quanto para o sociologismo (ibid., p. 258). O gênio

149 Benedetto Croce, “La Storia Ridotta sotto il Concetto Genemle dell’Arte”, em seus Primi Saggi (Bari, 1951), p.
211 ep. 23, n. 1,
150 Croce, “Contributo”, p. 392.
151 Benedetto Croce, Estética come Scienza deWEspressione e Linguística, 9. ed. rev. (Bari, 1950), pp. 242, 246.
Doravante citada no texto.
232 TRÓPICOS DO DISCURSO

de Vico era comprovado pelo fato de haver fornecido, embora inconscientemente, a


cura para a doença à qual ele próprio sucumbira.
Cabe notar que, embora Croce repudiasse qualquer tentativa de construir uma
filosofia da história, ele não era contrário ao que chamava “teoria da história”. Num
ensaio escrito para a Revue de synthèse historique, que foi publicado no mesmo ano
que a Estética, Croce dístinguia entre “teoria da história” e “filosofia da história”. A
primeira, argumentava ele, estava preocupada em estabelecer os critérios pelos quais
os historiadores davam às suas narrativas uma forma, unidade e conteúdo apropriados;
a segunda buscava descobrir as supostas leis pelas quais as ações humanas assumiam
necessariamente as formas que haviam assumido em épocas e lugares diferentes. Uma
teoria da história era admissível, mas apenas se ela procedesse por meio de uma lógica
das intuíções, não de uma lógica dos conceitos - vale dizer, só se se admitisse que a
história operava dentro dos limites da arte152. Com efeito, a única teoria da história
concebível, sustentava Croce, era a estética . “Por ser uma ciência da intuição pura,
uma ciência do objeto individual e da intuição pura, a estética constitui uma filosofia
da arte; contudo, por ser uma teoria de um grupo especial de intuições (intuições que
têm por objeto o indivíduo real), a estética constitui uma teoria da historiografia”
(“Etudes”, p. 184). Era possível, então, “filosofar” sobre os modos pelos quais os
historiadores, diferentemente dos artistas “puros”, distinguiam em meio às intuições
“entre o factualmente real (réel de fait) e o idealmente possível” (ibid., p. 185). Porém
- e aqui está o ponto fundamental da questão para Croce naquela época - qualquer
tentativa de “estabelecer leis históricas” tinha de ser severamente reprimida (ibid., p.
186). A busca de leis era uma iniciativa científica; a ciência se ocupava do “universal,
do necessário e do essencial”. A história, por sua vez, se ocupava do individual, do
empírico e do transitório (“aquilo que aparecia e desaparecia no tempo e no espaço”
{ibid.}). Seguia-se, pois, que o conhecimento histórico era “por natureza estético e não
lógico, representacional e não abstrato”, “intuitivo” e não “conceituai” (ibid., pp. 184-
85). Obviamente, para o Croce desse período, a história ainda não era o “método” da
filosofia, como viria a ser mais tarde; era uma forma de arte de segunda ordem, nada
mais, nada menos - a arte girava em torno da representação do individualmente real, e
não em torno do imaginário. E tinha de se manter livre do impulso do cientista em ver
que os seus objetos ocupavam um campo de relações causalmente determinadas, de
um lado, e da tendência do metafísico a considerar tais objetos como funções de
processos espirituais transcendentais ou imanentes, de outro (ibid., p. 186). A luz
dessas distinções rígidas, o destino de Vico era ser considerado deficiente, não só em
questões específicas, mas também no sentido do seu empreendimento principal, a sua
tentativa de fazer da história uma ciência.
A década que se segue à publicação da Estética foi um período de prodigiosa
criatividade para Croce. Durante essa época ele completou a articulação da sua
“filosofia do espírito”, fundou e editou o jornal La Critica e produziu uma série de

152 Benedetto Croce, “Les Etudes relatives à la théorie de 1’histoire en Italie durant íes quinze dernières années”,
originariamente publicado na Revue de synthèse historique (Paris, 1902) e reproduzido em Primi Saggí, p. 184.
Doravante citado no texto.
0 QUE ESTÁ VIVO E O QUE ESTÁ MORTO NA CRÍTICA DE CROCE A VICO 233

estudos importantes na história da filosofia, dos quais os ensaios sobre Hegel e Vico
foram os mais importantes*. Nos quatro volumes que compõem a “filosofia do
espírito”, Vico figura eminentemente como guia e autoridade, embora com as reservas
habituais acerca de sua incompletude e da inadequação de seu sistema total.
Realmente, a atividade de Croce durante esse tempo poderia ser caracterizada como
um preenchimento, um completamento e uma correção do sistema de Vico à luz da
sua crítica original desse sistema. Decerto, a sua leitura de Vico, tal como aparece em
sua obra magistral, A Filosofia de Giambattista Vico (1911), é pouco mais que uma
avaliação da “nova ciência” à luz da sua aproximação, ou afastamento, dos dogmas da
filosofia acabada de Croce.
O Capítulo III de A Filosofia de Giambattista Vico, intitulado “A Estrutura
Interna da Ciência Nova”, expõe os princípios críticos que orientaram Croce na sua
leitura final de Vico. Todo o sistema de Vico, explica Croce, abrange efetivamente
três diferentes “classes de investigação; filosófica, histórica e empírica; e no todo
contém uma filosofia do espírito, uma história (ou congérie de histórias) e uma ciência
social”. A primeira classe
de investigação se ocupa das “ideias” sobre fantasia, mito, religião, juízo, moral,
força e lei, o certo e o verdadeiro, as paixões, a Providência, e assim por diante -
em outras palavras, “todas as [...] determinações que afetam o curso ou
desenvolvimento necessário da mente ou espírito humano”. Da segunda classe
fazem parte o esboço que Vico traça da história universal do homem após o Dilúvio
e o das origens das diferentes civilizações; a descrição das idades heróicas na Grécia
em Roma; e a análise do costume, da lei, da língua e das constituições políticas,
bem como da poesia primitiva, das lutas das classes sociais e do colapso de
civilizações e de seu retorno a uma segunda barbárie, como no começo da Idade
Média na Europa. Por fim, a terceira classe de investigação relaciona-se com a
tentativa de Vico de “estabelecer um curso (corso) uniforme da história nacional”
e se ocupa da sucessão de formas políticas e mudanças correlativas tanto na vida
teórica quanto na vida prática, bem como das suas generalizações acerca do
patriciado, dos plebeus, da família patriarcal, da lei simbólica, da linguagem
metafórica, da escrita hieroglífica e assim por diante (Filosofia, pp. 37-38)153,
Croce argumenta que Vico confundiu irremediavelmente esses três tipos de
investigação, fundiu-os em seus relatos e cometeu um grande número de erros de
categoria no processo de expô-los na Ciência Nova. A obscuridade da Ciência Nova
resulta, afirma ele, não da profundidade da percepção básica, mas de uma confusão
intrínseca, isto é, da “obscuridade das suas [de Vico] ideias, de um conhecimento
deficiente de certas conexões; vale dizer, de um elemento de arbitrariedade que
Vico introduz em seu pensamento, ou, para dizê-lo de maneira mais simples, de
erros evidentes” (ibid., p. 39). Vico não percebera corretamente a “relação entre
filosofia, história e ciência empírica". Tendia a “converter” uma na outra (ibid., p.
40). Assim, tratava a “filosofia do espírito” primeiramente como ciência empírica,
depois como história; tratava a ciência empírica ora como filosofia, ora como

153 Cf. Nicolini, Croce, pp. 254-255.


234 TRÓPICOS DO DISCURSO

história; e não raro atribuía a simples afirmações históricas a universalidade dos


conceitos filosóficos ou a generalidade dos esquemas empíricos (ibid.). A confusão
dos conceitos com os fatos, e vice-versa, foi desastrosa para a historiografia de Vico
e para a sua ciência social. Por exemplo, observa Croce, quando Vico não tinha um
documento, costumava recorrer a um princípio filosófico geral para imaginar o que
rezaria o documento se o possuísse realmente; ou, quando deparava com um fato
duvidoso, confirmava-o ou invalidava-o apelando para alguma lei empírica. E
mesmo quando dispunha de documentos e fatos, por vezes não os deixava contar a
sua própria história - como se espera do verdadeiro historiador - mas, ao contrário,
interpretava-os de acordo com os seus próprios objetivos, ou seja, acomodava-os
às suas próprias generalizações sociológicas intencionalmente ideadas (ibid., pp.
41-42, 157).
Croce declarava preferir a crônica mais banal a essa manipulação intencional
do registro histórico. Poderia perdoar a Vico os numerosos erros factuais que lhe
povoam a obra; impreciso em questões sem importância, Vico compensou a falha com
a abrangência de sua visão e com sua compreensão do modo pelo qual o espírito agia
para criar um mundo especificamente humano (ibid., p. 158). Contudo, a causa de sua
confusão, de sua identificação da filosofia com a ciência e a história, isso Croce não
poderia perdoar. Essa “tendência à confusão, ou [...] confusão de tendências” foi fatal
à pretensão de Vico ao papel de cientista social e constituiu a causa da sua queda na
filosofia da história. Uma leitura adequada de Vico requeria, pois, uma cuidadosa
separação do “ouro” filosófico, encontrado em sua obra, da escória pseudocientífica
e pseudo-histórica que o recobria (ibid., pp. 43-44). E a essa tarefa de separação (ou
transmutação, pois é isso o que ela realmente era) Croce procedeu, nos capítulos que
se seguiam, com uma sinceridade só excedida pela certeza de que com sua própria
filosofia ele estava de posse da pedra filosofal que permitia a determinação correta do
“que está vivo e do que está morto” em qualquer sistema. Pronto a julgar e mesmo a
perdoar Vico à luz dos padrões eruditos predominantes no século XVIII, Croce não
estava disposto a estender essa condescendência historicis- ta aos empreendimentos
filosóficos de Vico.
Um exemplo perfeito - e um teste decisivo - do método crítico de Croce aparece
no capítulo XI de A Filosofia de Giambattista Vico, onde é examinada a lei de Vico
referente à mudança da civilização, a chamada lei dos ricorsi. Resumida rapidamente,
essa lei afirma que todos os povos pagãos devem passar por um “curso” específico de
relações sociais com instituições políticas e culturais correspondentes e que,
terminado o curso, eles devem, se não foram aniquilados, seguir novamente esse curso
num plano semelhante, conquanto significativamente metamorfoseado, da existência,
ou nível de autoconsciêncía. Se forem destruídos ao final do ciclo, serão substituídos
por outro povo, que atravessará o curso na mesma sequência dos estágios e até o
mesmo fim.
Ora, Croce afirma que essa lei nada mais é que uma forma generalizada do
padrão que Vico acreditava ter descoberto na história romana (Filosofia, p. 129). Vico
estendeu infundadamente essa lei a todas as sociedades pagãs, o que o obrigou a
submeter os fatos a um padrão que só se aplicava, se é que se aplicava, ao exemplo
0 QUE ESTÁ VIVO E O QUE ESTÁ MORTO NA CRÍTICA DE CROCE A VICO 235

romano. Essa “rarefação” da história de Roma numa teoria geral da dinâmica social
revelava a interpretação errônea de Vico do modo como são geradas as leis empíricas,
afirmava Croce. Em vez de generalizar a partir de casos concretos e, dessa maneira,
idear uma descrição sumária dos atributos partilhados por todos os exemplos do con-
junto, contra a qual poderiam ser delineadas as diferenças entre os exemplos, Vico
procura estender as características gerais do conjunto romano de modo a incluir todos
os conjuntos que se assemelham aos romanos em seu caráter pagão. Entretanto, a
inadequação da lei de Vico foi revelada pelo grande número de exceções a ela, cuja
existência até Vico tinha de admitir (ibid. pp. 139-131). Se Vico não se tivesse
extraviado por lealdade à sua interpretação tendenciosa da história romana, a “teoria
empírica dos ricorsi" jamais seria forçada a admitir tantas exceções (ibid., p. 133). E,
liberto da necessidade de submeter outras sociedades ao modelo fornecido pelo exem-
plo romano, Vico poderia ter logrado aplicar às suas diversas histórias a verdade
contida na teoria dos ricorsi.
A verdade contida nessa teoria era uma verdade filosófica, a saber, a de que “o
espírito, tendo atravessado seus estágios progressivos, depois de ter- se elevado
sucessivamente da sensação ao universal imaginativo e racional, da violência à
eqüidade, deve, em conformidade com sua natureza eterna, seguir de novo o seu
curso, reincidir na violência e na sensação e daí renovar o seu movimento ascendente,
recomeçar o seu curso” (ibid., p. 136). Como um guia geral para o estudo das
sociedades históricas específicas, essa verdade atenta para a “conexão entre períodos
predominantemente imaginativos e predominantemente intelectuais, espontâneos e
reflexivos, os segundos se originando dos primeiros por um aumento de energia e a
eles retornando por degeneração e decomposição” (ibid., p. 133-134). Em todo caso,
a teoria só descreve o que acontece em geral em todas as sociedades; nem prescreve
o que deve acontecer em determinadas épocas e locais, nem prediz o resultado de uma
tendência particular. Distinções como as sancionadas por Croce - por exemplo, as
existentes entre “períodos predominantemente imaginativos e predominantemente
intelectuais [...]” - são, “em grande parte, quantitativas e são feitas em benefício da
conveniência” (ibid., p. 134). Não têm nenhuma força de lei. Vico continua apegado,
portanto, a um erro e a uma ilusão; errou quando tentou estender uma generalização
empírica a todas as classes que se assemelham superficialmente àquela a que se
poderia aplicar legitimamente a generalização e foi iludido pela esperança de tratar
um discernimento filosófico como um cânone de interpretação histórica válido para
todas as sociedades, em todas as épocas e lugares.
Croce considera duas possíveis objeções à sua critica de Vico: de um lado, diz
ele, poder-se-ia argumentar que Vico explica as exceções à sua lei, referindo-se às
influências externas ou às contingências que fizeram um determinado povo deter-se
antes do fim, ou fundir-se com o corso de outro povo e se tornar uma parte dele. De
outro lado, observa ele, poder-se-ia afirmar - com base na própria interpretação de
Croce do verdadeiro valor da “lei” - que, uma vez que a lei realmente se ocupa do
corso do espírito, e não do corso da sociedade ou da cultura, nenhuma quantidade de
provas empíricas pode servir para desafiá-la. Croce descarta sumariamente a segunda
objeção. “A questão em pauta”, diz ele,
236 TRÓPICOS DO DISCURSO

é [...] precisamente o aspecto empírico dessa lei, não o filosófico; e a verdadeira resposta nos parece ser, como
já sugerimos, que Vico não poderia e não deveria ter levado em conta outras circunstâncias, da mesma forma
que, para lembrar um exemplo, qualquer um que esteja estudando as várias fases da vida descreve as
primeiras manifestações do desejo sexual intenso nas fantasias vagas e fenômenos semelhantes da puberdade,
e não leva em conta os meios mediante os quais os menos experientes podem ser iniciados no amor pelos mais
experientes, visto que está planejando lidar não com as leis sociais da imitação, mas com as leis fisiológicas do
desenvolvimento orgânico (ibid., p. 136).

Em suma, a “lei” de Vico ou predomina universalmente - como as “leis fisiológicas


do desenvolvimento orgânico” - ou não; uma exceção basta para tirar-lhe a validade.
Entretanto, essa era uma linha curiosa a ser seguida por Croce, pois exigia que
ele aplicasse à “lei” de Vico critérios de adequação mais semelhantes aos exigidos
pelos positivistas do que aos requeridos pela própria concepção que tinha Croce das
leis físicas e científicas como foram expostas na sua Lógica. Com efeito, Croce
criticara os positivistas por não perceberem que a função das leis nas ciências era a de
“serem úteis” e não “constitutivas”154. As leis da ciência física, dizia ele, não passam
de ficções ou pseudoconceitos, ideados por homens ou grupos de homens em resposta
a necessidades geradas por projetos práticos em diferentes épocas e lugares, cuja
autoridade estava limitada, pois, à duração dos próprios projetos (Lógica, p. 227).
Especificamente, Croce negava que as ciências naturais prognosticassem em qualquer
sentido significativo; a convicção de que o faziam representava o reaparecimento de
um desejo primitivo de profetizar ou de predizer o futuro, o que nunca pode ser feito.
Tais crenças repousavam na suposição infundada de que a natureza era regular em
todas as suas operações quando, na realidade, o único fenômeno “regular” na natureza
era o da mente empenhada em compreender a natureza (ibid., p. 228). As chamadas
leis da natureza estavam sendo constantemente violadas e gerando exceções,
seguindo-se daí que, longe de serem capazes de reivindicar uma condição de
previsibilidade, as ciências naturais dependiam muito mais de um conhecimento
histórico da natureza do que as próprias ciências humanas, as quais, pelo menos,
apresentavam os fenômenos constantes da mente como ponto de partida para a
generalização (ibid., pp. 229-231).
Porém, se essa é a verdadeira natureza da lei nas ciências físicas, deve também
ser a verdadeira natureza de toda e qualquer lei que é possível nas ciências sociais; e,
sendo esse o caso, que objeção poderia haver para que Vico usasse a lei dos ricorsi a
fim de caracterizar o processo evolutivo de todas as sociedades e estimular a pesquisa
sobre elas no sentido de descobrir o grau do seu afastamento do modelo romano? A
objeção pareceria residir unicamente na hostilidade de Croce a qualquer tentativa de
considerar a sociedade e a cultura, que ele julgava produtos do espírito, como se
fossem efeitos determinados de causas puramente físicas. A desconfiança de Croce
com relação a qualquer tentativa de tratar a sociedade como possível objeto da ciência
é bem conhecida155. Ao tentar caracterizar as operações do espírito nas suas

154 Benedetto Croce, Logica come Scienza dei Conceito Puro, 3. ed. rev. (Bari, 1917), p. 204, Doravante citada no
texto.
155 Cf. Primi Saggi, pp. 190-191, para uma expressão antiga da desconfiança de Croce pelo próprio conceito de
sociedade.
0 QUE ESTÁ VIVO E O QUE ESTÁ MORTO NA CRÍTICA DE CROCE A VICO 237

manifestações concretas, nas formas sociais que elas assumiram, em termos de leis,
Vico parecia estar involuntariamente materializando-as ou naturalizando-as, e, dessa
forma, privando-as da sua condição de criações do espírito. Pelo menos era essa a
opinião de Croce. Vico tratava a sociedade e a cultura como produtos de um processo
material invariável (traindo desse modo sua compreensão equivocada da verdadeira
natureza desse processo); e Croce exigia dele que, tendo optado por esse tratamento,
fosse coerente, e realmente considerasse o processo como invariável. Veio daí o
impulso de Croce para recorrer à analogia segundo a qual quem quer que esteja
“estudando as várias fases da vida” deve limitar-se a uma consideração das “leis
fisiológicas do desenvolvimento orgânico”, e não ocupar-se das “leis sociais da
imitação”.
Mas a analogia trai a tendência na crítica. Pois, para levar a analogia até o fim e
de maneira correta, o que está em questão no caso de Vico não é uma combinação de
leis que operam num processo com leis que operam em outro; é a convergência de
dois sistemas, cada um governado por leis semelhantes, um neutralizando ou
frustrando as ações do outro. Por exemplo, mesmo uma pessoa que estude as várias
fases da vida humana não se vê - como um cientista - embaraçada pelo fato de um
dado indivíduo não chegar à puberdade, mas, digamos, morrer. A morte de uma pessoa
antes da puberdade não invalida as “leis fisiológicas do desenvolvimento orgânico”
que regem a fase pubertária; ela tão-somente requer, se quisermos explicar a inca-
pacidade particular de chegar à puberdade, que invoquemos outras leis, es-
pecificamente as que expliquem a morte do organismo, para esclarecer por que não se
confirmou a prediçao de que a puberdade ocorreria normalmente.
Dá-se o mesmo com as civilizações. Nossa caracterização do “curso” que,
segundo a nossa previsão, elas deverão seguir não é invalidado por algum fracasso de
dada civilização em completar semelhante curso, se o fracasso puder ser explicado
pela invocação de outra lei, que abarcasse a desintegração das civilizações antes do
seu termo normal. Dessa forma, nenhum número de sociedades que não conseguem
completar o corso descrito pelo modelo romano, utilizado por Vico como arquétipo,
pode invalidar a “lei” de Vico. Isso se deve ao fato de ser a “lei dos ricorsi” menos
uma “lei” que uma teoria ou uma interpretação, vale dizer, um conjunto de leis cuja
utilidade para fins de previsão requer a especificação das condições-limite em que se
aplicam aquelas leis. Em princípio, não há absolutamente nada de errado na opção de
Vico a usar o exemplo romano como paradigma do desenvolvimento da civilização a
partir do qual poderia ser avaliado o desenvolvimento de todas as outras civilizações
que ele conhecia, à exceção da judaica e da cristã. Trata-se de um procedimento
sociocientífico perfeitamente
0 QUE ESTÁ VIVO E O QUE ESTÁ MORTO NA CRÍTfCA DE CROCE A VÍCO 25/

adequado, por imperfeito que tenha sido o modo pelo qual foi levado a cabo no
caso de Vico. A objeção de Croce era a qualquer tipo de procedimento sociocientífico,
pois, a seu ver, ele representava um esforço para tratar um produto do espírito “livre”
como algo causalmente determinado. E, assim, aplicou um padrão de adequação
inviavelmente rigoroso - padrão que ele próprio repudiaria especificamente na sua
rejeição das exigências que os positivistas haviam feito às ciências físicas - ao
empenho de Vico em elaborar uma ciência das sociedades. Essa inconsistência na
utilização por Croce do conceito de “lei” só pode ser explicada pelo seu desejo de
reivindicar a sanção de Vico para sua própria maneira de filosofar, negando ao mesmo
tempo qualquer reivindicação, da parte dos modernos cientistas sociais, de estarem
seguindo até as últimas consequência s o programa de análise social de Vico.
Pode-se dar um exemplo melhor da crítica de Croce aos esforços de Vico para
elaborar uma história universal, ou uma filosofia da história mundial. Aqui, parece ter
ocorrido uma mistura genuína de categorias. De um lado, salienta Croce de maneira
correta, Vico quer utilizar a teoria dos ricorsi como o modelo para todo
desenvolvimento da civilização; de outro, quer excetuar o exemplo judaico e o cristão,
atribuindo-lhes, respectivamente, uma memória especial e uma capacidade particular
de renovação, o que impediu o seu término antes do fim do mundo. Essa distinção era
gratuita, e Croce parece estar certo em descobrir a sua origem no conflito entre o
devoto cristão que se ocultava no peito de Vico e o cientista social que triunfara em
sua mente (Filosofia, pp. 149-150). Mas, como ressaltaram quase todos os
comentadores de Vico, mesmo essa inconsistência não nega o esforço, firmemente
procurado no aspecto sociocientífico de sua obra, de elaborar uma filosofia universal
da história. O próprio Croce o admitia quando, comentando a tentativa de Vico de
estabelecer semelhanças entre Homero e Dante, considerava essas classificações a
base necessária de qualquer história verdadeira; pois, segundo afirmou, “sem a
percepção da semelhança, como conseguir estabelecer as diferenças? (ibid., p. 156).
Mas também aqui ele deplorava a procura de semelhanças como um fim em si; o
impulso de classificar, disse ele, impedira Vico de realizar a tarefa do historiador, a de
“representar e narrar” (ibid., p. 157).
O que, pois, está “vivo” e o que está “morto” na avaliação feita por Croce da
obra de Vico? A pista para a solução desse problema é fornecida por dois juízos de
Croce, um sobre Vico, outro sobre si mesmo. Resumindo sua análise de Vico no
último capítulo de La Filosofia di Giambattista Vico, Croce dizia que, afinal de contas,
Vico “não era nada mais nada menos que o século XIX em estado embrionário” (ibid.,
p. 257). E alguns meses depois, em resposta à crítica “d’annunziana” que Borgese fez
desse livro, escreveu que “a filosofia com que interpreto e critico o pensamento de
Vico, e sob alguns aspectos a minha própria [...] é, essencialmente, apenas a filosofia
idea
252 TRÓPICOS DO DISCURSO

lista do século XIX”.12 De fato, Croce afirmava ter purificado a filosofia


idealista do século XIX, tornando-a mais “realista” e mais “crítica” de si própria; mas,
no fim, continuava dentro dos seus horizontes. Amplos como eram, tais horizontes
não abrangiam de maneira adequada as operações das ciências físicas ou das ciências
sociais fundadas em objetivos e métodos semelhantes. Por conseguinte, a crítica de
Vico por Croce não aborda a principal contribuição da “ciência nova” de Vico, o
esforço pelo qual o louvaram muitos dos principais teóricos sociocientífícos do século
XIX.

1 Ver Benedetto Croce, “Pretese di Bella Letterntura nella Storia delia Filosofia”, em suas Pagine Sparse (Napoli,
1943), 1:333.
4

FOUCAULT DECODIFICADO NOTAS DO SUBTERRÂNEO

i.

Michel Foucault costuma ser considerado o filósofo por excelência do


movimento estruturalista francês, o equivalente filosófico de Claude Lévi-Strauss na
etnologia e de Jacques Lacan na psicologia. Essa caracterização de Foucault é bastante
justa, muito embora Jean Piaget tenha recentemente excluído Foucault do universo
estruturalista e o próprio Foucault haja rejeitado qualquer filiação a esse movimento.
Foucault partilha com Lévi-Strauss e com Lacan um certo interesse pelas estruturas
profundas da consciência humana, a convicção de que o estudo dessas estruturas
profundas deve começar por uma análise da linguagem e uma concepção da linguagem
que tem sua origem na obra do pai reconhecido da linguística estrutural, Ferdinand de
Saussure. Os três pensadores perfilham a ideia de que a distinção entre a linguagem,
de um lado, e o pensamento humano e a ação, de outro, deve ser eliminada se se desejar
compreender os fenômenos humanos como eles de fato são, vale dizer, como
elementos de um sistema de comunicação.
Os estruturalistas franceses, em geral, começam tratando todos os fenômenos
humanos como se fossem fenômenos linguísticos. Desse modo, Lacan insiste em dizer
que a psicanálise deve começar, não pelo exame do conteúdo dos sonhos, mas, antes,
pela consideração da linguagem na qual o sonho é relatado pelo analisando ao analista.
Entre o relato do sonho e o seu verdadeiro conteúdo encontra-se o protocolo
linguístico em que é codifica
254 TRÓPICOS DO DISCURSO

do o relato. Já que a decodificação do sonho requer uma teoria geral da lin-


guagem, essa teoria deve preceder a teoria mais abrangente da psique. Assim, Lévi-
Strauss insiste igualmente em afirmar que, para se entender qualquer prática de uma
sociedade primitiva, impõe-se primeiramente determinar o modo linguístico em que
foi vazada a prática, considerada como elemento de um sistema de comunicação e
troca. Para Lévi-Strauss, todos os gestos devem ser tratados primeiramente como
signos; e todos os sistemas de gestos, assim como qualquer sistema de sinais, devem
ser referidos à modalidade de sua relação, se se quiser entender o seu conteúdo
simbólico. Dessa maneira, por exemplo, não basta saber como o homem primitivo
nomeia e utiliza, de maneiras diferentes, as várias espécies de pássaros, plantas,
animais etc.; cumpre também determinar a modalidade de relação entre o mundo
humano e o não-humano em que é efetivada essa operação de nomeação e utilização.
Para Lévi-Strauss, como para Lacan, os homens sempre significam algo diferente do
que dizem ou fazem, e sempre dizem e fazem algo diferente do que significam. Esse
“algo diferente” é dado na suposta relação existente entre as coisas significadas na fala
ou no gesto e os signos usados para significá-las. Essa relação, por seu turno, é a
“estrutura profunda” que deve ser revelada antes que se possa realizar a interpretação
daquilo que o signo quer dizer para a pessoa que o está utilizando. E essa relação, por
fim, pode ser especificada pela identificação do modo linguístico em que foi vazado o
sistema de signos.
Ora, Foucault quase sempre concorda com tudo isso. Mas o que o torna um
pensador pós-estruturalista, para não dizer antiestruturalista, é o fato de voltar essa
estratégia interpretativa contra as ciências humanas em geral e contra o próprio
estruturalismo em particular. Insiste em afirmar que disciplinas como a etnologia e a
psicanálise, mesmo nas suas formas estruturalis- tas, continuam presas aos protocolos
linguísticos em que são vazadas as suas interpretações de seus objetos de estudo
característicos. O movimento estruturalista em geral, ele o toma como prova de que as
ciências humanas chegam à consciência de estarem elas mesmas encarceradas nos
seus modos particulares de discurso. As duas principais disciplinas estruturalistas, a
etnologia e a psicanálise, não apenas abarcam as outras ciências humanas, no sentido
de as transcender e explicar; elas indicam igualmente a dissolução da crença na
“positividade” de conceitos como “homem”, “sociedade” e “cultura”. O
estruturalismo assinala, na opinião de Foucault, a descoberta, por parte do pensamento
ocidental, das bases linguísticas de conceitos como “homem”, “sociedade” e “cultura”,
a descoberta de que esses conceitos dizem respeito, não a coisas, mas a formas
linguísticas que não têm referentes específicos na realidade. Para ele, isso implica que
as ciências humanas, do modo como se desenvolveram no período moderno, não
passam de jogos jogados com as linguagens em que foram formulados os seus
conceitos básicos. Na realidade, propõe Foucault, as ciências humanas têm
permanecido presas aos modos figurativos do discurso em que constituíram (em vez
de simplesmente significarem) os objetos com que simulam tratar. E o propósito dos
vários estudos de Foucault acerca da evolução das ciências humanas é revelar as
estratégias figurativas (e, em última análise, míticas) que sancionam os rituais de
conceituação em que essas ciências caracíeristicamente se comprazem.
FOUCAULT DECODIFICADO 255

Dessa forma, Foucault vê o movimento estruturalista ironicamente, como a


última fase de um desenvolvimento nas ciências humanas que principiou no século
XVI, quando o pensamento ocidental foi presa da ilusão de que “a ordem das coisas”
poderia ser representada de maneira adequada numa “ordem das palavras”, se se
pudesse achar a ordem correta das palavras. A ilusão em que todas as ciências
modernas se basearam é a de que as palavras gozam de uma condição privilegiada na
ordem das coisas, como ícones transparentes, como instrumentos de representação de
valor neutro. A atribuição às palavras de uma condição ontologicamente privilegiada
como essa na ordem das coisas é um erro que a moderna teoria linguística permitiu
por fim identificar. O que a moderna teoria linguística demonstra é que as palavras
não passam de coisas entre outras coisas no mundo, que elas sempre haverão de
obscurecer tanto quanto aclarar objetos que pretendem significar, e que, portanto, todo
sistema de pensamento elaborado com a esperança de idear um sistema de
representação de valor neutro está fadado à dissolução quando a área das coisas que
ele remete à obscuridade emerge para insistir em seu próprio reconhecimento. Dessa
forma, se Foucault é ironicamente indulgente com o movimento estruturalista, é mais
que indulgentemente irônico com respeito a todas as chamadas ciências humanas que
o antecederam: a ciência política, a sociologia, a psicologia, a filologia, a economia e
sobretudo a história. Para ele, todos os conceitos estabelecidos por essas "ciências”
para o estudo do homem, da sociedade e da cultura são pouco mais que abstrações das
regras dos jogos de linguagem que eles representam. Suas “teorias” são apenas
“formalizações” das estratégias sintáticas de que se valem para nomear as “relações”
supostamente existentes entre seus objetos de estudo. E suas “leis” não passam de
projeções do campo semântico pressuposto pelos modos do discurso em que
“nomearam” os objetos que habitam os seus respectivos domínios de análise.

2.

A obra mais importante de Foucault, e provavelmente a mais interessante para


os historiadores e filósofos da história, é Les Mots et les choses: Une Archéologie des
sciences humaines. Na tradução para o inglês recebeu o título de The Order ofThings.
Esse título foi escolhido indubitavelmente dentro daquele espírito de ironia que
permeia o conjunto da oeuvre de Foucault. Pois sugere que Foucault é mais um
daqueles racionalistas franceses para os quais o mundo das coisas tem uma ordem e
que a desordem é introduzida no mundo somente pela incapacidade da mente de
apreender essa ordem de modo apropriado. Porém, como indiquei acima, Foucault não
é racionalista. Ao contrário, seu objetivo é forçar a consciência a uma apreensão do
mundo na forma como este poderia ter existido antes de aparecer nele a consciência
humana, um mundo de coisas que não é ordenado nem desordenado, mas que é
simplesmente o que parece ser. Longe de acreditar que as coisas têm uma ordem
intrínseca, Foucault nem sequer louva a coisa chamada ordem. Embora tenha
recentemente revelado uma afinidade com o pensamento do falecido Ernst Cassirer,
Foucault vê na capacidade da mente de ordenar os dados da experiência um obstáculo
256 TRÓPICOS DO DISCURSO

à apreciação correta do modo como as coisas realmente são.


Obviamente, Cassirer via na linguagem um agente de mediação entre as
categorias da mente e o mundo dado ao pensamento na percepção. Em contrapartida,
para Foucault a linguagem constitui tanto as categorias quanto as percepções a serem
ordenadas por elas. E por essa razão que apela para a autoridade, não dos filósofos,
mas dos poetas, principalmente para Nietzsche e Mallarmé, um o profeta da palavra
feita carne, o outro o profeta da carne feita palavra. Com Nietzsche, Foucault insiste
em que a dinâmica da linguagem deve ser buscada numa “fisiologia” da consciência;
e, com Mallarmé, acredita que “as coisas” só existem afinal para viver nos livros,
numa “ordem de palavras”. Por conseguinte, Foucault parece anunciar a morte das
coisas em geral, e principalmente a morte da coisa chamada homem. Mas, na
realidade, aguarda com ansiedade um tempo em que a coisa denominada ciência
desaparecerá, quando a forma apolínea de ciência, “so- dificada na rigidez egípcia”
(como disse Nietzsche), se dissipará na cele- v ao dionisíaca de uma “orgia de
formas”. E por isso que suas “histórias” <J'' pensamento e da prática ocidentais são
exercícios de desmascaramento, d «^mistificação e desmembramento.
Foucault celebra o espírito da efesordenação, da üíesestruturação, da
desnomeação criativas. Todo o seu esforço como historiador pode ser caracterizado
como uma promoção constante da “í/e?lembrança das coisas passadas”. Tanto Les
Mots et les choses quanto o mais recente UArchéologie du savoir são ataques a todas
aquelas histórias de representação realista que, de Hegel a Gombrich, afirmam
explicar a verdadeira natureza da relação entre “as palavras e as coisas”. Desse ângulo,
podemos ver em Les Mots et les choses, sobretudo, uma espécie de Phãnomenologie
des Geistes pós-nietzs- chiana, ou seja, um relato do desenvolvimento da consciência
humana com a exclusão do Phanomen e do Geist.
Certamente, Les Mots et les choses parece ser uma história das ideias, um relato
das diferentes teorias da vida, da riqueza e da linguagem que surgiram na Europa
Ocidental entre o século XVI e o século XX. Mas Foucault nega explicitamente que
esteja interessado em escrever uma história do tipo convencional. Com efeito, ele
considera a história menos um método ou um modo do pensamento que um sintoma
do mal-estar peculiar ao século XIX, que teve origem na descoberta da temporalidade
de todas as coisas. A louvada “consciência histórica” do século XIX (e, afortiori, a de
nossa própria época) nada mais é que a formalização de um mito, ele próprio uma
forma- ção-reação contra a descoberta da serialidade da existência. Foucault, desse
modo, encara as obras dos historiadores profissionais quase com a mesma atitude de
desprezo com que Artaud encarava as obras de todos os dramaturgos modernos, ou
como Robbe-Griííet encara a obra de todos os romancistas. Ele é um historiador anti-
histórico, como Artaud era um dramaturgo antidra- mático e como Robbe-Grillet é
um romancista anti-romanesco. Foucault escreve a “história” a fim de destruí-la
enquanto disciplina, enquanto modo de consciência e enquanto modo de existência
(social).
Foucault propõe substituir a história pelo que ele chama “arqueologia”. Com
este termo, pretende ressaltar seu total desinteresse pela matéria- prima da história
convencional das ideias: as continuidades, as tradições, as influências, as causas, as
FOUCAULT DECODIFICADO 257

comparações, as tipologias etc. Segundo nos diz, está interessado apenas nas
“rupturas”, nas “descontinuidades” e nas “disjunções” verificadas na história da
consciência, vale dizer, muito mais nas diferenças entre as várias épocas na história
da consciência que nas semelhanças. O interesse do historiador convencional pelas
continuidades, afirma Foucault, é apenas um sintoma do que ele chama “agorafobia
temporal”, uma obsessão pelos espaços intelectuais preenchidos. E igualmente legíti-
mo, e terapeuticamente mais salutar para o futuro das ciências humanas, ressaltar as
descontinuidades no pensamento do homem ocidental acerca do seu próprio estar-no-
mundo. Em vez de tentar captar a evolução diacrônica das ciências humanas, Foucault
tenta, então, apreender-lhes toda a história sincronicamente, ou seja, como uma
totalidade cuja soma é menos do que as partes que a constituem.
Dessa forma, conquanto Les Mots et les choses verse sobre as mudanças que
ocorreram nas ciências humanas entre o século XVI e o século XX, pouca coisa há no
livro que possa ser pensada como uma “estória”, e virtualmente nada que possa ser
identificado como uma linha narrativa. O que temos, antes, é uma série de
“diagnósticos” do que Foucault chama “episte- mes” (domínios epistêmicos), que
sancionam os “discours” (modos do discurso) diferentes dentro dos quais podem ser
elaboradas “sciences humaines” diferentes. Cada uma dessas ciências é concebida
dotada de seus próprios objetos de estudo peculiares (“empiricités”) e sua própria
estratégia única para determinar as relações (“positivités”) que existem entre os obje-
tos que habitam o seu domínio. Mas essas “epistem.es” (que funcionam mais ou menos
como os “paradigmas” de Kuhn) não se sucedem umas às outras dialeticamente, nem
se agregam. Elas simplesmente surgem uma ao lado da outra - de maneira catastrófica,
por assim dizer, sem pé nem cabeça. Desse modo, o surgimento de uma nova “ciência
humana” não representa uma “revolução” no pensamento ou na consciência. Uma
nova ciência da vida, da riqueza ou da linguagem não se insurge contra as suas
predecessoras; ela simplesmente se cristaliza ao lado delas, preenchendo o “espaço”
deixado pelo “discurso” das ciências anteriores. Tampouco uma nova ciência se de-
senvolve da forma que supunham Hegel ou os neokantianos, isto é, como a
manifestação de algum modo de entendimento inerente à consciência, porém
inadequadamente representada no espectro das ciências de uma dada época. Dessa
forma, Foucault não rejeita qualquer continuidade apenas para as ciências; rejeita-a
também para a consciência em geral. As chamadas ciências humanas não passam, no
seu entender, das formas de expressão assumidas pela consciência na sua tentativa de
compreender o seu mistério essencial. Encaradas dessa forma, as ciências humanas
são pouco mais do que produtos de cartadas diferentes jogadas pelos homens no
tocante à possibilidade de apreender o segredo da vida humana na linguagem.
Foucault identifica quatro grandes “épocas” de coerência epistêmica naquilo
que devemos, segundo ele, chamar a “crônica” das ciências humanas: a primeira
começa no final da Idade Média e termina no fim do século XVI; a segunda abarca os
séculos XVII e XVIII; a terceira começa por volta de 1785 e se estende até o início do
século XX; e a quarta está surgindo. Ele se recusa a ver nessas quatro épocas atos de
um drama do desenvolvimento, ou cenas de uma narrativa. As transições que marcam
o começo e o fim das épocas não são transformações de um tema duradouro, mas antes
258 TRÓPICOS DO DISCURSO

rupturas na consciência ocidental, disjunções ou descontinuidades tão extremas que


chegam efetivamente a isolar as épocas umas das outras. As imagens utilizadas para
caracterizar as épocas não são a de um “rio do tempo” ou “fluxo da consciência”, mas
a de um arquipélago, uma cadeia de ilhas epistêmicas, cujas conexões mais profundas
são desconhecidas - e desconhecíveis. A explicação que Foucault nos dá do conjunto
dessas épocas se assemelha a uma dessas peças absurdas que surtem efeito quando
frustram toda expectativa de unificação sinóptica que temos da fruição das suas cenas
individuais. Assim, o livro de Foucault parece ter um tema, mas não tem um enredo.
Seu tema é a representação da ordem das coisas na ordem das palavras nas ciências
humanas. Se ele fala de alguma coisa, é da “representação” em si. Mas há um
protagonista oculto nessa “satura” com que Foucault nos brindou; e esse protagonista
oculto é a linguagem. Em Les Mots et les choses, os vários modos de representação
que surgem nos agrupamentos das ciências humanas entre os séculos XVI e XX
representam apenas o lado fenomênico do ágon por que passa a própria linguagem no
caminho da sua atual ressurreição e retorno à “vida”.
Lembramo-nos imediatamente das histórias da representação oferecidas em
formatos mais convencionais: Art and lllusion: A Study in the Psychology of Pictorial
Representation de Gombrich; Mimesis: The Repre- sentation of Reality in Western
Literature de Auerbach; Philosophy ofSym- bolic Forms de Cassirer; e Der Aufbau
der geschichtlichen Welt in den Geis- teswissenschaften de Dilthey. Mas a obra de
Foucault difere dessas por sua recusa resoluta a pensar a representação como algo que
está “se desenvolvendo”, “evoluindo”, ou “progredindo”, e pela sua negação do
“realismo” essencial de qualquer das ciências humanas. Com efeito, longe de se orgu-
lhar dos esforços do homem ocidental, a partir do século XVI, para representar a
realidade “realisticamente”, Foucault vê em todo esforço de representação a
consequência de uma interpretação fundamentalmente equivocada da natureza da
linguagem. E, longe de ver qualquer progresso no “realismo” durante a era moderna,
considera um fracasso total todo o esforço do homem moderno para representar a
realidade de maneira realista. No melhor dos casos, o efeito foi negativo. Na nossa
própria época, diz ele com o que parece ser um suspiro de alívio, a linguagem
finalmente regressou de sua descida órfica à “representação” e se nos apresentou mais
uma vez como fora desde o princípio: apenas uma coisa entre as muitas coisas que se
apresentam à percepção - e tão opaca, tão misteriosa quanto todas as outras “coisas”
no mundo.
Apesar de tudo, é possível dizer que o livro de Foucault tem um “enredo”, mas
o enredo está envolvido com o seu protagonista oculto, a linguagem. Assim como em
seu íivro anterior acerca da loucura, Folie etdéraison, que abordava o
“desaparecimento” e o “reaparecimento” da loucura na economia psíquica do homem
moderno, assim também em Les Mots et les choses Foucault faz a crônica do
desaparecimento e do reaparecimento da linguagem - o seu desaparecimento na
“representação” e o seu reaparecimento no lugar da representação, quando esta última
acabou finalmente no reconhecimento, por parte da consciência ocidental, de seu
fracasso em criar as ciências humanas com algo parecido com o poder possuído pelos
seus equivalentes nas ciências físicas.
FOUCAULT DECODIFICADO 259

É por querer destruir o mito do progresso das ciências humanas que Foucault
abre mão das estratégias explicativas convencionais da história intelectual, de
qualquer que seja a escola ou gênero. Ele recusa todas as estratégias “reducionistas”
que passam por explicações nos relatos históricos e científicos tradicionais. Para ele,
as diferentes ciências humanas produzidas pelas quatro épocas não apenas empregam
técnicas distintas para apreender os objetos que habitam o campo do humano, elas nem
sequer se aplicam ao estudo dos mesmos objetos. Foucault afirma que, mesmo que a
terminologia, digamos, dos historiadores naturais do século XVIII e dos biólogos do
século XIX contenham os mesmos elementos léxicos (o que pareceria justificar a
busca de analogias, influências, tradições e coisas parecidas), as diferenças entre as
“sintaxes” da história natural do século XVIII e da biologia do século XIX são tão
grandes que tornam todas as similaridades léxicas entre elas triviais como prova. E o
mesmo ocorre com as ciências da linguagem e da economia desenvolvidas durante o
século XVIII e o século XIX, respectivamente. Entre a busca de uma “gramática geral”
do período anterior e a “filologia” do período posterior, há tão pouca continuidade
quanto entre a “análise da riqueza” levada a cabo durante o Iluminismo e a “ciência
da economia” cultivada em nossa época. E isso porque os analistas da vida, do trabalho
e da linguagem das duas épocas habitavam “universos do discurso” diferentes,
cultivavam modos de representação diferentes e permaneciam presos a concepções
diferentes da natureza das relações predominantes entre as coisas, de um lado, e as
palavras, de outro. Isso se deve, na opinião de Foucault, ao fato de o conteúdo oculto
de toda suposta ciência humana ser o modo de representação que ela dignificava como
o único meio possível de relacionar os palavras com as coisas, sem o qual teria sido
impossível o seu “discurso” acerca do mundo “humano”.
Talvez haja meios de traduzir os “sentidos” de um universo do discurso para
outro, mas Foucault parece duvidar disso. E, ò que é mais interessante, não parece
estar muito preocupado com essa dúvida. Pelo contrário, já que para ele toda
“tradução” é sempre uma “redução” (em que algum conteúdo fundamental é perdido
ou suprimido), mostra-se satisfeito com o que chama de “transcrições” do “discurso”
sobre a humanidade produzidas durante as diferentes épocas. Isso tem importantes
implicações metodológicas para a abordagem foucaultiana do estudo das ideias.
A suspeição, por parte de Foucault, de reducionismo em toda a sua forma se
evidencia em sua declarada falta de interesse na relação de uma obra ou de um corpus
de obras com o seu contexto social, econômico e político. Por exemplo, tentar
“explicar” as transformações da consciência entre o século XVIII e o século XIX pelo
recurso ao “impacto” da Revolução Francesa sobre o pensamento social seria, para
ele, uma forma de petitio príncipii. Pois o que chamamos de “Revolução Francesa”
foi na verdade um complexo de eventos que ocorreram extrinsecamente à
“consciência formalizada” da época. As ciências humanas daquele tempo tinham de
dar sentido à Revolução, codificá-la e decodificá-la segundo as estratégias sintáticas
disponíveis na época e no lugar. Mas um acontecimento como a “Revolução” só tem
sentido na medida em que é traduzido num “fato” pela aplicação das modalidades de
representação predominantes na época de sua ocorrência. Para a consciência
260 TRÓPICOS DO DISCURSO

formalizada de qualquer época, um evento como esse não poderia sequer configurar
um “fato”. E isso significa, para Foucault, que a consciência formalizada de uma
época não se altera em resposta aos “eventos” que ocorrem na sua vizinhança ou nos
domínios delimitados pelas suas diversas ciências humanas. Ao contrário, os eventos
adquirem a condição de “fatos” em virtude da sua suscetibilidade à inclusão no
conjunto das relações léxicas e da análise, pelas estratégias sintáticas sancionadas
pelos modos de representação predominantes numa dada época e lugar. É o caso
especialmente quando se trata de tentar localizar com precisão, identificar e analisar
os dados primários de categorias gerais da existência como “vida”, “trabalho” e
“linguagem” - as três áreas da investigação que se diz ser o refúgio das ciências
especificamente “humanas”. Mas “vida”, “trabalho” e “linguagem” nada mais são que
aquilo que a relação porventura existente entre as palavras e as coisas lhes permite
parecer ser numa dada época.
Se Foucault não está interessado em relacionar uma obra científica específica,
ou um corpus de obras, com o seu contexto social, econômico e político, menos
interessado ainda se mostra em relacioná-la com a vida de seu autor. Da mesma forma
que antigamente o objetivo de um certo tipo de historiador da arte era escrever uma
“história da arte sem nome”, isto é, a história dos estilos artísticos da qual fossem
eliminadas todas as referências aos artistas, assim também Foucault prefigura uma
história das ciências humanas sem nomes. Não há qualquer informação biográfica
sobre as figuras mencionadas como representantes das ciências e das disciplinas
analisadas por ele. Os nomes dos indivíduos que aparecem são meros recursos taqui-
gráficos para designar os textos; e os textos são, por sua vez, menos importantes que
as configurações macroscópicas da consciência formalizada que representam.
Mas os textos a que se refere não são analisados; são simplesmente
“transcritos”. E transcritos com um propósito específico: devem ser “diagnosticados”
para que se determine a natureza da doença da qual são sintomáticos. A doença
descoberta neles é sempre de caráter linguístico. Foucault procede à maneira do
patologista. “Lê” um texto do mesmo modo como um cancerologista “lê” um raio X.
Ele está em busca de uma síndrome e procurando provas das formações metastáticas
que indicarão um novo desenvolvimento da doença, que consiste no impulso para usar
a linguagem a fim de “representar” a ordem das coisas na ordem das palavras.

3.

Em UArchéologie du savoir, Foucault designa a área entre consciência e não-


consciência como o domínio do “ênoncé”, isto é, do “enunciado” ou do “expresso em
palavras”. E fala desse nível como se ele lhe permitisse contemplar uma atividade
peculiarmente humana que ele chama “enunciar” (1’énoncer). UArchéologie
pergunta: Como é possível o exprimir em palavras? Les Mots et les choses trata desse
tipo de enunciação que toma por objetos os mistérios da vida, do trabalho e da
linguagem. As modalidades de enunciação, escolhidas para constituir um dado campo
de investigação, geram aquelas ciências humanas diferentes que se oferecem como
FOUCAULT DECODIFICADO 261

explicações da condição humana, mas que na verdade são pouco mais que os mitos
pelos quais são retroativamente justificados os rituais epistêmicos requeridos pela
suposição de uma dada postura diante das palavras e das coisas.
Mas de que modo essas diferentes épocas na crônica das ciências humanas se
relacionam umas com as outras? Em UArchéologie du savoir, Foucault rejeita
explicitamente quatro tipos de explicação dos eventos que ele relatou em Les Mots et
les choses. Em primeiro lugar, rejeita o chamado método comparativo, que recorre a
métodos analógicos para definir as similaridades que parecem existir entre formas de
pensamento diferentes. Em seguida, rejeita o método tipológico, que procura
estabelecer a ordem, a classe, o gênero e as características da espécie dos objetos que
presumida- mente habitam o campo de estudo. Em terceiro lugar, rejeita a explicação
causai dos fenômenos da “história das ideias”, todas as explicações causais, de
qualquer tipo. Por fim, rejeita qualquer explicação que apele para a noção de Zeitgeist
ou de mentalité de uma era.
Surge, porém, a questão: se Foucault não quer “explicar” coisa alguma, então
por que se dá ao trabalho de escrever? Qual o propósito de simplesmente “transcrever”
as ilusões de uma época? As respostas a essas perguntas devem ser procuradas na
concepção que tem Foucault da função da anti-história. Ao negar todas as categorias
convencionais da descrição e explicação históricas, Foucault espera encontrar o
“limiar” da própria consciência histórica. A “arqueologia” das ideias forma um
contraponto fugal para a “história” das ideias; é a antítese sincrônica da representação
compulsiva- mente diacrônica das fases pelas quais a consciência formalizada passou
desde a queda da linguagem no limbo criado pela exigência não-realista de que ela
represente a ordem das coisas. O “Unbehagen der Kultur” fundamental não é - como
Russell, Wittgenstein e Sartre acreditavam - a própria linguagem; é a tarefa da
representação, que atribui à linguagem um grau de transparência que ela jamais
poderia alcançar. E a forma que esse “descontentamento” assume em qualquer era ou
época não é outra coisa senão as próprias ciências humanas.
É da natureza das ciências humanas tentar a elaboração de protocolos
linguísticos ontologicamente neutros com os quais possam representar a ordem das
coisas para a consciência com vistas à reflexão e análise. Mas, como a própria
linguagem não passa de uma coisa entre outras, a atribuição a qualquer protocolo
linguístico dessa condição privilegiada de instrumento de representação está fadada a
provocar uma disparidade fundamental entre o ser do mundo e o conhecimento que
poderíamos ter dele. Esse desequilíbrio se reflete nas áreas de qualquer discurso em
que prevalece o silêncio. Não é possível uma ciência do humano, argumenta Foucault,
não porque o homem seja qualitativamente diferente de tudo o mais no cosmo, mas
porque é precisamente igual a tudo o mais. A crença de que o homem é qualita-
tivamente distinto de todas as outras coisas se reforça, entretanto, pela atribuição de
um lugar privilegiado, na ordem das coisas, à coisa denominada linguagem.
“Devemos guardar silêncio a respeito do que não podemos falar”: Foucault leva
a sério a injunção de Wittgenstein, mas não porque haja algumas palavras que podem
ser ditas legitimamente e outras não podem. Pois é possível dizer tudo. O motivo real
por que devemos guardar silêncio acerca de aigumas coisas é que, em todo esforço
262 TRÓPICOS DO DISCURSO

para encerrar a ordem das coisas na linguagem, condenamos à obscuridade um certo


aspecto dessa ordem. Visto que a linguagem é uma “coisa” como qualquer outra, ela
é opaca por sua própria natureza. Atribuir, portanto, à linguagem a tarefa de “represen-
tar” o mundo das coisas, como se ela pudesse cumpri-la de maneira apropriada, é um
erro crasso. Então, qualquer modo do discurso é passível de identificação, não pelo
que ele permite à consciência dizer acerca do mundo, mas pelo que a proíbe de dizer,
a área da experiência que o próprio ato linguístico elimina da representação na
linguagem. Falar é um ato repressivo, identificável como uma forma específica de
repressão pela área da experiência que ele condena ao silêncio.
O objetivo da “arqueologia das ideias” é penetrar o interior de qualquer modo
de discurso a fim de determinar o ponto em que ele condena certa área da experiência
ao limbo das coisas que não se podem dizer. Assim encarada, a “crônica” das ciências
humanas compreende uma série de atos violentos praticados contra o mundo das
coisas em prol de um ideal impossível de transparência linguística. As quatro épocas
que Foucault discerne na crônica das ciências humanas, do século XVI ao século XX,
representam discretas colonizações da ordem das coisas por protocolos linguísticos
fundamentalmente diferentes, cada um dos quais continuava encerrado em sua própria
cartada no tocante à pertinência de sua estratégia de “enunciar”. Essas cartadas
linguísticas, todavia, permitiram a constituição de “campos epistêmicos” diferentes
em que grupos diferentes das ciências humanas se poderiam desenvolver em cada uma
das quatro épocas discernidas. Esses grupos, então, atravessam um tipo de ciclo
semelhante ao da planta, ou imitam o curso de uma doença. Trazem em si uma certa
potencialidade para apreender corpos particulares de dados (“empiricidades”) e para
constituí- los em possíveis objetos de estudo (“positividades”) sobre os quais as ciên-
cias humanas de uma época podem ser formuladas. Mas, depois que um determinado
grupo de ciências humanas completou seu ciclo, ele não é tanto derrubado quanto
simplesmente substituído por outro, que vive uma existência similarmente parasitária
fora do mesmo campo primevo da linguagem e da consciência. Como certas espécies
de fungos, um grupo dado de ciências humanas é deliqüescente num sentido exato:
alimenta-se de ar e se liqüefaz pela absorção da umidade atmosférica. No caso de um
grupo dado das ciências humanas, esse “ar” é a linguagem e essa “atmosfera” a área
da experiência excluída do exame pela cartada original sobre a adequação de um modo
específico do discurso para representar a ordem das coisas na ordem das palavras.
Para o arqueólogo das ideias, então, uma dada época da história intelectual deve
ser tratada como um sítio de escavação. Tem por objeto de estudo não sua fisiografia
aparente, representada pelas ciências humanas surgidas dentro de suas fronteiras, mas
antes as estruturas da cartada linguística e dos compromissos epistemológicos que
originariamente a constituíram. Começa-se com um exame das “formalizações” de
pensamento predominantes acerca da vida, do trabalho e da linguagem numa dada
época e daí se passa para uma consideração das estratégias léxicas e sintáticas por
meio das quais os objetos de estudo são identificados e a relação entre eles explica-
das. Essa análise permite, pois, perceber os “modos de discurso” predomi-/ nantes
numa dada época, o que, por sua vez, possibilita a derivação do “campo
epistemológico” e da atividade de “enunciação” que fundamenta e sanciona um
FOUCAULT DECODIFICADO 263

dado modo de discurso.

4.
Nas chamadas ciências humanas, os objetos de percepção são os fenômenos
da vida (o homem na sua essência biológica), do' trabalho (o homem na sua essência
social) e da linguagem (o homem na sua essência cultural). Mas não há objetos
perenes que correspondam às palavras vida, trabalho e linguagem. O que esses
termos significam nas diferentes épocas da história da consciência, do século XVI
ao século XX, muda constantemente, e o faz, além disso, em conformidade com as
transformações que ocorrem num nível metalinguístico de apercepção, um nível
em que modos de discurso diferentes geram categorias diferentes para a
constituição dos elementos e relacionamentos que supostamente habitam o mundo
“humano”.
Cada uma das épocas da história cultural ocidental, então, parece aprisionada
num modo específico de discurso, o que ao mesmo tempo possibilita o seu acesso
à “realidade” e delimita o horizonte daquilo que pode possivelmente parecer real.
Por exemplo, argumenta Foucault, no século XVI o modo predominante de
discurso era inspirado pelo desejo de encontrar o Mesmo no Diferente, de
determinar o grau em que um dado objeto se parecia com outro; em suma, as
ciências do século XVI eram obcecadas pela noção de Similitude. Sua busca das
Semelhanças abrangia não apenas as relações entre as coisas, mas também a relação
entre as coisas e as palavras destinadas a significá-las. As categorias predominantes
da ciência da época eram, então, as da emulação, da analogia, da concordância, da
simpatia etc. E era o testar dessas categorias que fundamentava, de um lado, a
elaboração de listas de palavras floreadas e, de outro, as várias formas de “mágica
verbal” em que o século XVI se comprazia. A “ciência” da época pressupunha que
o domínio das palavras poderia fornecer a base de um domínio das coisas que “se
pareciam” com elas. A atitude dos eruditos do século XVI para com as palavras
era, dessa forma, essencialmente edênica, ou, antes, tinha o projeto de recuperar
aquela onomatéia divina que Adão possuía antes da Queda. E a natureza
aparentemente bizarra das obras produzidas pelos eruditos e cientistas do século
XVI só é compreensível, assevera Foucault, se posta no contexto da crença de que
a essência de uma coisa poderia ser revelada pela descoberta da palavra que a
significasse verdadeiramente.
Mas a busca das similitudes continha as sementes de sua própria frustração
final. Pois a extensão das listas de similitudes e a desvirtuada constru- ção-de-ponte
necessária para demonstrar que se poderia mostrar, numa análise final, que uma
dada coisa se assemelha de alguma maneira a tudo o mais,
essencialmente só lograram revelar à consciência o fato das dessemelhanças
fundamentais entre todas as coisas particulares. E essa apreensão da dessemelhança
essencial entre as coisas levou a um abandono do modo de discurso fundado no
paradigma da semelhança. Em consequência , o século XVII apresentou à consciência
264 TRÓPICOS DO DISCURSO

essa apreensão da Dessemelhança como o problema a ser resolvido. E propôs resolvê-


lo dispondo o mundo das coisas no modo, não da continuidade, mas da contiguidade.
Em lugar da simpatia, da emulação, da concordância etc., o século XVII optou pelas
categorias da ordem e da mensuração, concebidas em termos essencialmente
especiais. E o problema fundamental para a ciência da época era o de “determinar de
que modo o signo poderia estar ligado ao que ele significava”156. Foucault descreve a
situação do século XVII nos seguintes termos:

A atividade da mente [...] não mais consistirá em aproximar as coisas entre si, na busca de todas as
coisas que poderiam revelar algum tipo de parentesco, atração ou uma natureza secretamente partilhada
dentro delas, mas, ao contrário, em discriminá-las, ou seja, estabelecer as suas identidades e depois a
inevitabilidade das conexões com todos os graus sucessivos de uma série. Nesse sentido, a discriminação impõe
à comparação a primeira e fundamental investigação da diferença: prover-se, por meio da intuição, de uma
representação distinta das coisas e apreender claramente a conexão inevitável entre um elemento da série e
aquele que lhe é imediatamente posterior. Por fim, como consequência final, já que conhecer é discriminar, a
história e a ciência deverão se separar uma da outra (p. 55).

Dessa forma, do começo ao fim dos séculos XVII e XVIII, encontramos, de um


lado, a erudição, que fornece os materiais das ciências humanas da vida, do trabalho e
da linguagem; e, de outro, a ciência, que fornece os materiais suscetíveis de análise
por via da mensuração e do arranjo serial, passíveis de representação em símbolos
matemáticos. E o próprio êxito das ciências físicas sugeriria a conveniência de reduzir
os dados das ciências humanas à representação numa “linguagem universal dos
signos”. Essa linguagem universal dos signos forneceria um instrumento para a
representação da ordem essencial das coisas à consciência com vistas à análise. A or-
dem das coisas poderia, então, ser representada num quadro de relações essenciais no
qual seria exposto sem ambiguidade um “conhecimento baseado na identidade e na
diferença”.
As ciências humanas fundamentais da âge classique eram, na visão de Foucault,
as da gramática geral, da história natural e da análise da riqueza. Cada qual se
caracterizava por uma busca da origem genética do seu objeto peculiar de estudo: a
linguagem, a vida e a riqueza, respectivamente. A análise, nessas ciências, se
desenvolve na esperança de confirmar a crença de que, se se pudesse descobrir o
sistema de signos pelo qual pode ser representada a verdadeira natureza da linguagem,
do organismo e da riqueza, tor- nar-se-ia possível elaborar uma ars combinatoria que
permitisse o controle de cada um deles (pp. 203-204). A âge classique esperava que,
se fosse descoberto o quadro correto de relações, seria possível manobrar a “vida”, a
“riqueza” e a “linguagem” pela manipulação dos signos que os significavam.
Para Foucault, o aspecto importante é que o século XVIII se mostrava mais forte
ali onde estava metafisicamente mais seguro, e não onde se achava empiricamente
pleno, e mais frágil ali onde se encontrava metafisicamente inseguro, e não onde se
achava empiricamente vazio. Os limites da história natural no século XVIII residiam em

156 Les Mots et les choses, traduzido para o inglês com o título de The Order ofThings: íntroduction to the Archeology of
the Human Sciences (New York, 1970), pp. 42-43. Daqui por diante, todas as citações são dessa edição.
FOUCAULT DECODIFICADO 265

sua incapacidade até de pensar a categoria da “vida”; ela só poderia cogitar da


realidade de organismos distintos, que ela classificava interminavelmente na esperança
de encontrar a “rede de relações” que une o que chamamos “vida” num conünuum de
intercâmbios de sustentação mutua entre a vida e a morte. Portanto, ver na biologia do
século XIX uma continuação da história natural do século XVIII representa um profundo
erro para Foucault. Diga-se o mesmo da relação entre a gramática geral do século XVIII
e a filologia do século XIX, ou da relação entre a análise da riqueza do século XVIII e a
economia política do século XIX. Como diz Foucault:

A filologia, a biologia e a economia política foram estabelecidas, não nos lugares anteriormente
ocupados pela gramática gerai, pela história natural e pela análise da riqueza, mas numa área onde aquelas
formas de conhecimento não existiam, no espaço que deixaram em branco, nas profundas lacunas que
separavam os seus amplos segmentos teóricos e que foram preenchidas com o murmúrio do cantinuum
ontoldgico. O objeto do conhecimento no século XIX é formado no próprio lugar onde a plenitude clássica do
ser silenciou (p. 207).

Em vez de procurar a “linguagem original”, como fizeram os gramáticos gerais do


século XVIII, os filólogos do século XIX se ocuparam das afiliações e parentescos entre
as famílias de línguas supostamente irredutíveis ao mesmo campo. Em vez da
identificação da ordem, classe, gênero e espécie a que pertencia o organismo
individual, os biólogos do século XIX ponderaram o problema da evolução do Diferente
a partir do Mesmo. E, em lugar da análise da riqueza, os economistas políticos do
século XIX se voltaram para a anáiise dos modos de produção. Assim, contra as
categorias da Mensuração e da Ordem, que haviam dominado o pensamento na âge
classique, testemunhamos agora o surgimento das categorias da Analogia e da
Sucessão como sendo as modalidades dominantes de análise da nova era (p. 218). Esse
advento assinalou a crescente consciência do significado do Tempo para a
compreensão da vida, do trabalho e da linguagem, e atesta a historici- zação das
ciências humanas:

A partir do século XIX, a História devia distribuir, numa série temporal, as analogias que relacionam
entre si as diferentes estruturas orgânicas. Essa mesma história também deverá impor progressivamente suas
leis à análise da produção, à análise dos seres organicamente estruturados e, finalmente, à análise dos grupos
linguísticos. A História cede lugar a estruturas orgânicas analógicas, da mesma forma que a Ordem abriu
caminho para sucessivas identidades e diferenças [na âge classique] (p. 219).

Pelo termo “História”, obviamente, Foucault não se refere de modo algum ao


que é representado pela historiografia acadêmica, essa “compilação das sucessões
factuais e sequência s do modo como possam ter ocorrido”, apresentada numa linha
narrativa fracamente definida (p. 219). Por “História” ele entende o “modo
fundamental de ser das empiricidades” de tal modo que as coisas sejam concebidas
existindo exteriormente umas às outras de um modo essencial, de um modo diferente
do sugerido pelo quadro espaciaiizado da âge classique. Pois, na verdade, a
contiguidade espacial sugere a possibilidade de uma rede de relações por meio da qual
é possível reunir as coisas enquanto habitantes do mesmo campo “intemporal”. Não
há, porém, na ordem da serialidade temporal, nenhum modo legítimo de conceber um
266 TRÓPICOS DO DISCURSO

território em que se possa dizer que os elementos particulares da série têm origem
comum. Quando os seres são lançados no oceano ondu- lante do tempo, no modo da
Sucessão, só se podem relacionar uns com os outros pela Analogia. E quanto mais
longa se imagina a série temporal, mais dispersas aparecem as coisas que algum dia
estiveram ordenadas no campo espaciaiizado fechado do quadro clássico.
A pergunta que as ciências humanas tinham de enfrentar no século XIX era: O
que significa ter uma história? Essa pergunta, afirma Foucault, registra uma “grande
mudança” na consciência do homem ocidental, uma mudança que diz respeito
essencialmente à “nossa modernidade”, a qual, por seu turno, é a noção que temos de
ser completamente diferentes de todas as formas de humanidade conhecidas na
história com h minúsculo (pp. 219-220).
O novo interesse pela história, que é convencionalmente creditado ao século
XIX, é - segundo Foucault - não a causa, mas o efeito de uma mudança que ocorreu
num nível estrutural profundo, da apreensão dos objetos em termos da relação
Contiguidade-Continuidade à apreensão dos objetos em termos da relação Sucessão-
Analogia. O que as ciências humanas do século XVIII levaram a cabo foi a revelação
das diferenças fundamentais entre dois objetos quaisquer que habitam o campo
perceptual. A própria inteireza da busca dos quadros pelos quais se poderia criar coisas
contíguas no espaço a fim de que refletissem a sua pertença a uma “rede de relações”
contínua que, em essência, era intemporal, só conseguiu demonstrar que as coisas de
fato não comprovavam a sua localização dentro dessa rede intemporal. A resposta dos
pensadores do século XIX a essa falência do pensamento do século XVIII foi elevar a
categoria da temporalidade à condição de dado irredutível, cuja significação era
calcular em que medida as coisas se poderiam relacionar entre si como membros de
famílias específicas de espécies orgânicas (Cuvier), de modos de produção (Ricardo)
e de usos linguísticos (Bopp). Mas os grandes criadores de sistemas do século XIX -
Hegel, Comte, Marx, Mill e outros - apenas conseguiram demonstrar, segundo
Foucault, a inutilidade de tentar captar a variedade de coisas numa ordem de palavras
que as colocasse com precisão numa série temporal que seja ao mesmo tempo
completa e esclarecedora do modo como todo o processo temporal avança em seu
longo curso.
A falência da investigação da “série temporal” no século XIX foi assinalada por
Nietzsche, que percebeu corretamente que o verdadeiro problema que o pensamento
moderno ocultara de si mesmo era o da opacidade da linguagem, sua incapacidade de
servir ao propósito de representação que lhe fora impingido, de modo totalmente
inconsiderado, no final do século XVI. As duas grandes “contraciências” do século
XX, que uma visão similarmente nietzschiana da opacidade da linguagem criou - a
psicanálise e a etnologia - confirmam, segundo Foucault, a justeza da crescente
compreensão do homem ocidental quanto à impossibilidade de elaborar algum dia
uma verdadeira ciência do homem. Pois, de acordo com Foucault, o que essas duas
contraciências representam é uma tendência a rebaixar a análise do fenômeno
“homem” a um nível em que desapareça sua “humanidade” e fazê-la recuar ao tempo
anterior à aparição do “humano”. Diferentemente dos filósofos da história do século
XIX, Freud e Lévi-Strauss procedem, não com base nas categorias da Sucessão e da
FOUCAULT DECODIFICADO 267

Analogia, mas nas da Finitude e da Infinidade. Demais, tanto a psicanálise quanto a


etnologia, nos seus aspectos mais criativos e radicais, percebem que o obstáculo à
plena realização da obra das ciências humanas é a própria linguagem. Eles procedem
com pleno reconhecimento da opacidade, da coisidade da linguagem, e de tal maneira
que tornam suspeita aos seus seguidores a adequação de suas próprias caracterizações
linguísticas da “humanidade” que eles estudam.

5.

E óbvio que Les Mots et les choses tem a mesma estrutura de enredo que a obra
anterior de Foucault, Folie et déraison, a sua história da loucura no Ocidente do século
XVI ao século XX. Nesse livro, Foucault forneceu o que parecia ser uma história das
ideias da insensatez e da loucura do século XVI ao final do século XIX. Mas, como
vários críticos salientaram, a obra era menos uma história das teorias da insanidade,
ou do tratamento dos insanos, do que um discurso digressivo sobre a loucura que se
acha no âmago da própria razão. A partir da consideração de um corpo de dados
bastante limitado, Foucault como que ideou um verdadeiro registro do “lado inferior”
do pensamento acerca da razão e da loucura e expôs a angústia subjacente à obsessão
do homem ocidental pelo problema de sua própria sanidade.
A coisa mais original no livro, considerado uma contribuição à história das
ideias, era a insistência, por parte de Foucault, em afirmar que não se poderia lograr
qualquer noção válida da concepção do homem ocidental acerca do racional mediante
o estudo das várias teorias da racionalidade e da loucura desenvolvidas pelos
escritores sobre esses temas durante o período em questão. Ao contrário, o verdadeiro
teor do conceito de “racionalidade” tinha de ser procurado nos modos como foram
considerados os indivíduos designados “insanos”. Foucault se concentrou nas
questões: Quem era considerado insano? Como se identificava a insanidade dessas
pessoas? Quais os modos do seu confinamento? De que forma eram tratadas? E que
critérios eram utilizados para determinar quando e se tais pessoas haviam sido
curadas?
Ele afirmava que a história da loucura não revelava nenhum progresso
consistente na sua conceituação teórica de uma doença; que, ao contrário, a história
do tratamento dos insanos revelava uma tendência consistente a projetar preconceitos
e angústias sociais muito gerais em sistemas teóricos que justificavam o confinamento
de todo grupo social ou tipo de personalidade que parecesse ameaçar a sociedade
durante um dado período.
Foucault identificou quatro períodos principais na história da loucura: o final da
Idade Média, os séculos XVII e XVIII (l’âge classique), o século XIX e o século XX.
Afirmava que, ao fim da Idade Média, via-se nos insanos, não os representantes de
alguma forma obscura de anti-humanidade, mas, ao contrário, uma variante humana
peculiarmente abençoada, cuja inocência e natureza infantil se mantinham como
lembretes aos homens “comuns” de sua dependência da graça e beneficência de Deus.
Os “insensatos” do mundo eram tidos como possuidores de uma sabedoria mais
268 TRÓPICOS DO DISCURSO

profunda que a “insensatez dos sábios mundanos”, conforme ensinavam os Evange-


lhos. Por conseguinte, aos loucos não só era permitido viver entre os supostamente
sãos, mas também eram até tratados com respeito e reverenciados como modelos da
simplicidade a que todos os cristãos deveriam aspirar na busca da salvação.
Por volta do final do século XVI, entretanto, a atitude do homem ocidental para
com os insanos começou a mudar radicalmente. Essa mudança foi marcada pelo
surgimento de um medo generalizado dos insanos e se manifestou no impulso para
excluí-los do convívio com os homens “comuns”, confinando-os nos ieprosários
recém-esvaziados em consequência da diminuição da lepra durante aquele século. Em
suma, a insanidade deixou de ser considerada um sinal de beatitude e passou a ser
encarada, antes, como um sintoma de doença, a ser “tratada” pela excomunhão e
confinamento físico dos chamados insanos nos “hospitais” anteriormente utilizados
para abrigar leprosos. Essa exclusão e confinamento assinalaram, por seu turno, a
transformação dos insanos de “sujeitos” em “objetos”. Daí por diante, são tratados
como objetos de derrisão, sevícias, zombaria e divertimento, mas com a consequência
de retirar dos homens comuns as vantagens da percepção de suas próprias naturezas
potencialmente insanas que o convívio íntimo com os insanos lhes poderia ter
propiciado. Todo o discurso acerca e em louvor da razão que caracterizou o século
XVII e o século XVIII foi levado adiante,
portanto, sem o benefício de uma compreensão imediata e simpática de sua .
antítese, a desrazão ou a loucura. E a consequência foi que o conhecimento que o
homem ocidental tinha da razão e da desrazão tendeu a cair sob a influência de
uma natureza social mais prática, em vez de se desenvolver na forma de um exame
científico rigoroso daquilo em que uma ou outra poderia ter consistido.
Por exemplo, Foucault ressalta que o conceito de loucura algumas vezes era
identificado como regressão ao estado infantil e, outras vezes, como regressão ao
estado animal. Para alguns, a criminalidade e a insanidade eram uma coisa só, ao
passo que para outros não havia distinção entre o modo como os pobres e os
insanos deviam ser tratados. Os insanos, os criminosos e os pobres eram todos
arrebanhados nos mesmos locais de confinamento, tratados (ou, antes, maltratados)
da mesma forma, exibidos como objetos de lucro e diversão, alternadamente
manipulados como animais, como criminosos ou como crianças, mas sempre de
maneira desumana. Esse tratamento dos insanos não refletia apenas a noção
insegura que tinham os homens daquilo em que consistia a sua própria
humanidade; refletia também a percepção que a sociedade tinha de sua
incapacidade de lidar com as baixas do seu sistema de práxis da época. A louvada
“idade da razão” se ocupava dos produtos de seus fracassos - os pobres, os
criminosos e os doentes mentais - simplesmente prendendo-os. Por baixo ou por
trás do tratamento de quantos eram designados merecedores da reclusão estava a
profunda angústia quanto aos modos da organização e do comportamento social
característicos daqueles que continuavam “livres” e quanto à natureza da
“sanidade” que estes se haviam arrogado.
Uma segunda mudança fundamental de atitude para com os insanos ocorreu
no final do século XVIII e no começo do século XIX, e foi representada pelas
FOUCAULT DECODIFICADO 269

reformas introduzidas no tratamento dos insanos por Tuke e Pinei. Nessa época, a
doença mental passou a ser definida como uma enfermidade eminentemente física,
a ser tratada por meios especificamente médicos. Nessa época, ressalta Foucault,
os doentes mentais eram diferenciados dos criminosos e dos pobres, e modos
distintos de tratamento eram prescritos para cada uma dessas categorias. Qual a
causa dessa mudança? Segundo Foucault, a mudança tinha muito pouco a ver com
o avanço do conhecimento teórico acerca da verdadeira natureza da doença mental.
Ao contrário, se houve de fato algum avanço, ele se deu em consequência de
transformações mais fundamentais ocorridas na sociedade. A libertação dos pobres
dos locais de confinamento, onde haviam sido lançados tanto em companhia dos
criminosos como dos doentes mentais, foi a resposta à necessidade de aumentar a
força de trabalho durante um período de industrialização. Isso não significava que
os pobres fossem mais bem tratados, pois eram liberados dos hospitais apenas para
serem entregues às leis cruéis da oferta e da procura de trabalho e à “disciplina”
das fábricas. Assim também, a diferenciâ- ção entre os doentes mentais e os
criminosos refletia uma nova atitude soei-
a! para com o segundo, e não um avanço teórico na compreensão do primeiro. Pois a
categoria do “criminoso” se confundia com a do elemento subversivo,
“revolucionário”, da sociedade, que a burguesia passava a temer ainda mais do que ao
insano. Em suma, a distinção entre o criminoso e o doente mental se dava
principalmente em função de considerações políticas, e não científicas. O doente
mental talvez se tenha beneficiado dessa distinção, mas a base dela consistia em
transformações mais genericamente sociais, e não especificamente científicas.
E escusado dizer que essa concepção do “progresso” da medicina não granjeava
para Foucault a simpatia dos que viam em sua evolução um triunfo prometéico,
análogo ao curso do desenvolvimento manifestado nas histórias da física e da química.
Foucault estava sugerindo, como o fizera em seus primeiros dois livros, Maladie
mentale et personnalité e La Naissance de la clinique, que a medicina não era
absolutamente uma ciência e que o seu desenvolvimento, longe de representar uma
compreensão crescente das necessidades do paciente, estava intimamente ligado muito
mais à práxis permanente da sociedade que a uma compreensão mais profunda do
animal humano. A prática médica, argumentava ele, representava pouco mais que a
aplicação de concepções ideológicas da natureza do homem vigentes entre as classes
dominantes de uma dada sociedade num dado tempo. A clínica e o hospital eram
microcosmos das atitudes para com o homem que prevaleciam no mundo
macrocósmico da sociedade em geral. Vista desse ângulo, a medicina era mais uma
disciplina política que científica; e tal era em especial o caso daquele ramo da medicina
que pretendia ocupar-se dos doentes mentais, pois aqui os preconceitos que motivaram
o mau tratamento de todo transviado social se refletiam em sua brutalidade,
incompreensão e falta de conhecimento científico.
E no contexto de considerações como essas que Foucault avaliava a importância
de Freud para a história cultural do Ocidente. A revolução de Freud - que representa
uma terceira mudança em nossa atitude para com os loucos - consistia simplesmente
numa disposição a ouvir os doentes mentais, a tentar apreender a natureza da loucura
270 TRÓPICOS DO DISCURSO

de dentro da experiência dos próprios insanos e a usar a perspectiva deles sobre o


mundo para entender as distorções presentes nas percepções do mundo por parte dos
notoriamente “sãos”. Assim, Freud abriu caminho para um restabelecimento de
comunicações não apenas entre os doentes mentais e os “sãos”, mas também entre os
aspectos “insanos” e “sadios” da “personalidade bem-ajustada” aparentemente.
Entretanto, segundo Foucault, Freud não representa - a exemplo de seus congêneres
“psicofísicos”, como Wundt- o estabelecimento de uma ciência genuína da mente
humana. De fato, o êxito da técnica psicoterapêuti- câ de Freud fornece a Foucault a
prova da necessidade de descartar todas as tentativas de uma teoria formalista da
psique humana, do tipo que o próprio Freud desenvolveu nas suas obras ulteriores. Em
comparação com o formalismo abstrato e mecanicista da teoria freudiana, a técnica
terapêutica utilizada por Freud em seu tratamento dos pacientes indica a necessidade
de uma abordagem do estudo do homem que seja essencialmente hermenêutica,
interpretativa ou “artística”, em vez de sistemática ou “científica”.
O tema real de Folie et déraison não era a loucura nem a razão, mas a estrutura
mutável de relações entre os que eram tratados como insanos e os que se haviam
arrogado a condição de pessoas sãs. Nos termos de Foucault, isso fez do livro a história
de um silêncio, o exame de um vácuo que se abriu entre os insanos e os sãos na esteira
da dissolução do diálogo que predominara entre eles durante a fase final da Idade
Média. Encarada desse ângulo, a história da loucura era uma história do que não se
conhecia e do que não se dizia acerca do assunto e dos modos mutáveis da relação
entre os sãos e os insanos tal como eram representados na linguagem gestual do tra-
tamento. Entre o fim do século XVI e a época de Freud, o diálogo foi eliminado; havia
muita conversa acerca do que seriam tanto a “razão” quanto a “loucura”, mas
absolutamente nenhum esforço para decodificar as mensagens que emanavam das
profundezas da loucura no “balbuciar” dos loucos.
A resposta dos historiadores da medicina ao Folie et déraison de Foucault era
previsível (seus dados eram por demais limitados, seu método demasiadamente
apriorístico, seu escopo exageradamente ideológico e assim por diante) e, do ponto de
vista de Foucault, previsivelmente irrelevante. Pois seu propósito, como ele dissera,
fora lançar luzes sobre uma modalidade específica de relacionamento na sociedade
entre os que nela ocupavam lugares privilegiados e os que eram considerados dignos
de ser excluídos dela. Não pretendera apresentar “dados” novos, mas, com base em
certa quantidade de elementos acessíveis, esclarecer a natureza contraditória das
teorias da loucura, de um lado, e a natureza irracional do tratamento dos insanos, de
outro. Seu interesse principal, como deixou bem claro em Les Mots et les choses, era
a natureza não-científica das ciências humanas em geral; pois, como vimos, Les Mots
et les choses, que tem a aparência de um levantamento da evolução das ciências
humanas desde o século XVI até o século XX, estende a acusação de irracionalidade
a todas as ciências da vida, do trabalho e da linguagem que se originaram nesse
período. Além do mais, nesse livro, o problema de como o homem representa para si
mesmo a sua própria natureza e os produtos dessa natureza passa a ocupar o centro
das atenções do autor. E o problema do diálogo, que fora o tema de seu estudo das
relações entre os sãos e os insanos em Folie et déraison, é ampliado agora para incluir
FOUCAULT DECODIFICADO 271

o problema da linguagem em geral. Analogamente, há uma mudança de ênfase, da


matriz social em que vêm à luz concepções distintas da “natureza humana” para a
matriz linguística em que essas concepções têm sua origem. Concepções de vida,
trabalho e linguagem diferentes - temas atribuídos às ciências humanas, como a
biologia, a psicologia, a antropologia, a economia, a ciência política, a sociologia, a
história, a filologia e assim por diante - se tornam, na avaliação de Foucault, pouco
mais que reificaçÕes dos protocolos linguísticos diferentes em que os seus “fenôme-
nos” são constituídos. Para Foucault, todo discurso sobre a natureza e o sentido da
vida, do trabalho e da linguagem que foi praticado do século XVI ao século XX
representa pouco mais do que um balbuciar sobre a racionalidade no qual o discurso
sobre a loucura foi desenvolvido durante o mesmo período. Os homens não conhecem
mais sobre a vida, o trabalho e a linguagem atualmente do que conheciam durante o
século XVI, quando a possibilidade de semelhante discurso tinha origem na questão:
Como podemos estar certos de que as palavras designam realmente as coisas que
devem significar? Nas ciências humanas da idade moderna, a linguagem foi tratada da
mesma forma que o foi a loucura na Idade da Razão. Foi simultaneamente afirmada
como uma presença para a consciência e negada como um problema da consciência.
Foi tratada ao mesmo tempo como o instrumento de análise pelo qual se deve descobrir
o sentido de “humanidade” e como o instrumento transparente da representação pelo
qual essa “humanidade” deve ser oferecida ao pensamento com vistas à análise. E
agora que a linguagem finalmente se viu liberada de seu cárcere, resgatada do reino
do silêncio a que fora exilada pela decisão de utilizá-la para a “representação”, toda a
problemática das ciências humanas transferiu-se para um nível de contemplação novo
e radicalmente diverso.
As ciências humanas de nossa própria época, argumenta Foucault, tenderam a
ser tanto positivistas quanto escatológicas. Vale dizer, perseguiram
concomitantemente a ideia da neutralidade de valor, de um lado, e a da redenção
social, de outro. É por essa razão, argumenta ele, que as principais sistematizações do
pensamento a respeito do humano se têm inclinado para os pólos da Formalização
(como em Russell, Wittgenstein e Chomsky) e da Interpretação (como em Sartre,
Freud e Heidegger). Assim, a condição de desunião e de ineficácia das ciências
humanas para a nossa época é, então, denunciada pela natureza das filosofias que elas
geram: o atomismo lógico e a análise linguística, a fenomenologia e o estruturalismo,
o existencialismo e o neokantismo, todos sintomáticos da falta de confiança que os
homens têm no seu próprio pensamento e da descoberta da opacidade da linguagem
que obsta à construção do sistema total que cada um imagina ser no final o fruto dos
seus esforços.
No entanto, tem havido certa melhoria nesse encarceramento secular da
linguagem dentro da tarefa da representação, o mesmo tipo de melhoria que Nietzsche,
no final da Genealogia, considerava o resultado de dois milênios de ascetismo. A
vontade foi disciplinada e libertada, disciplinada pelo seu exílio da palavra e libertada
pela sua volta ao poder da palavra. Mas, aqui, a palavra a que se refere não é a da
Escritura; não se trata da palavra sagrada, mas da palavra dessacraíizada, que voltou à
ordem das coisas onde ocupa lugar como uma coisa entre muitas. A consequência da
272 TRÓPICOS DO DISCURSO

dessacraliza- ção da palavra é destruir o impulso para perceber hierarquias eternas na


ordem das coisas. Uma vez que a linguagem se vê livre da tarefa de representar o
mundo das coisas, este mundo se dispõe diante da consciência exatamente como
aquilo que foi desde o princípio: um espaço repleto de meras coisas, nenhuma das
quais pode reivindicar a condição privilegiada em relação a qualquer outra. Como a
própria sanidade, as ciências humanas, ao se libertarem da tirania que a palavra
reprimida exercia sobre elas, não têm absolutamente qualquer necessidade de
reivindicar o status de “ciências”. E o homem é solto num reino em que tudo é possível
porque nada está excluído da categoria do real.
Como Foucault escreve no final de Les Mots et les choses:

Em nossos dias - e uma vez mais Nietzsche se antecipou na determinação do ponto crítico - não é tanto
a ausência ou a morte de Deus que se afirma, mas o fim do homem... Deuses novos, os mesmos deuses, já
avolumam o fuíuro oceano; o homem desaparecerá. Em vez da morte de Deus - ou, antes, na esteira dessa
morte, e em profunda correlação com ela -, o que o pensamento de Nietzsche anuncia é o fim do seu assassino;
é o esfacelamento do rosto do homem no riso e a volta das máscaras; é a dispersão do profundo escoar do
tempo pelo qual ele se sentia transportado e cuja pressão suspeitava no próprio ser das coisas; é a identidade
do Rclorno do Mesmo com a absoluta dispersão do homem (p. 385).

O que temos aqui não é tanto metáfora quanto uma vontade de retornar a um mundo
anterior à própria metáfora, anterior à linguagem. Foucault anuncia o renascimento
dos deuses quando o que tenciona anunciar é o renascimento de uma imaginação pré-
religiosa.

6.

Coisa temerária, certamente. E é inteiramente compreensível que Foucault


tenha sido alvo do ataque de quase todos aqueles que não se sentiram apenas perplexos
com ele. Jean Piaget descartou as ideias de Foucault por serem um misto de
“sagacidade [...] afirmações vazias e omissões”, um “estruturalismo sem estruturas”.
Aquilo de que Piaget mais sente falta na obra de Foucault é de um sistema de
transformação pelo qual se possa justificar a substituição de um “campo epistêmico”
por outro. Como diz Piaget:

Suas epistemes se seguem, mas não uma à outra, quer formalmente, quer dialeticamen- te. Uma episteme
não se filia a outra, ou genética ou historicamente. A mensagem dessa “arqueologia” da razão é, em suma, a
de que as autotransformações da razão não têm nenhuma razão, e suas estruturas aparecem e desaparecem
mediante transformações fortuitas e como resultado de ressurgências momentâneas. A história da razão é, em
outras palavras, quase a história das espécies tal qual ela foi concebida pelos biólogos antes de entrar em cena
o estruturalismo cibernético157.

Mas Piaget tomou pelo seu sentido aparente as asserções de Foucault sobre suas
intenções, em vez de submeter à análise o que fez Foucault em Les
Mots et les choses; pois estamos diante de um sistema transformacional elaborado na
concepção que Foucault tem da sucessão de formas das ciências humanas, mesmo que

157 Jean Piaget, Stritcturulism (New York, 1970).


FOUCAULT DECODIFICADO 273

Foucault não pareça saber que ele se encontra ali.


A meu ver, a afirmação principal de Les Mots et les choses é correta e
esclarecedora. As ciências humanas, à proporção que se desenvolvem entre o século
XVI e o século XX, podem ser caracterizadas em função da sua incapacidade de
reconhecer até que ponto cada uma é cativa da própria linguagem, sua incapacidade
de ver na linguagem um problema. Isso não significa que elas não estudaram as
linguagens, nem se ocuparam do problema mais geral da representação. Mas Foucault
parece estar correto em sua afirmação de que a atitude delas em face da própria
linguagem era ambígua. De um lado, elas não poderiam deixar de perceber que o
pensamento se achava, sob certo aspecto, preso à linguagem em que representava os
seus objetos para si mesmo com vistas à análise; de outro lado, todas elas queriam
elaborar linguagens de valor neutro pelas quais pudessem libertar o pensamento das
constrições das linguagens comuns, ou naturais. Em parte, como ressalta Foucault, o
sonho de uma linguagem de valor neutro para as ciências humanas inspirava-se no
êxito das ciências físicas em aplicar linguagens estipuladas e protocolos matemáticos
à análise de seus dados. E isso acarretava um efeito importante sobre o
desenvolvimento das atitudes dentro do campo das ciências humanas com respeito ao
problema da linguagem em geral. Tinha o efeito de ocultar aos praticantes das ciências
humanas o grau em que a própria constituição do seu campo de estudo era um ato
poético, uma genuína “criação” ou “invenção” de um domínio da investigação no qual
não apenas são sancionados modos específicos de representação e outros excluídos,
mas também são determinados os próprios conteúdos da percepção.
Uma disciplina científica dada representa um compromisso com um “estilo” de
representação, da mesma forma que um gênero dado representa um compromisso com
uma estrutura de representação pela qual se possa figurar os conteúdos e relações
predominantes num campo finito da ocorrência ficcional. As ciências são criadas pelo
empenho em reduzir alguma área de experiência cognitivamente problemática para a
compreensão em função de alguma área de experiência que seja considerada
cognitivamente segura
- ou por disciplinas estabelecidas, ou pelo “senso comum” da cultura na qual é tentada
a criação. Todos os sistemas de conhecimento principiam, em suma, numa
caracterização metafórica de algo supostamente desconhecido em função de algo
supostamente conhecido, ou pelo menos familiar. A caracterização que Foucault faz
das ciências humanas do século XVI representa nada mais que sua atribuição, àquelas
ciências, do modo da metáfora como método por elas utilizado para mapear ou
codificar o mundo da experiência da época.
A metáfora, seja ela o que for, se caracteriza pela afirmação de uma semelhança
entre dois objetos que se oferecem à percepção como manifestamente distintos. E a
afirmação “A = B” ou “A é B” assinala a apreensão, pela pessoa que a faz, tanto de
uma semelhança quanto de uma diferença entre os dois objetos representados pelos
símbolos em cada lado da cópula. Todavia, qualquer “ciência” comprometida com a
constituição de uma lista completa de todas as semelhanças que se poderia pensar
entre as coisas no mundo - tal como as ciências humanas no século XVI estavam, no
relato de Foucault, comprometidas a fazer - é levada necessariamente, pela lógica da
274 TRÓPICOS DO DISCURSO

própria operação de elaborar uma lista, a uma.apreensão de todas as diferenças que


poderiam existir entre as coisas. Quanto mais longa for a lista, mais o fato da
dessemelhança se impõe à reflexão. Uma vez que a própria busca das similitudes é
inconcebível na ausência de qualquer senso de dessemelhança, a categoria da
dessemelhança é implicitamente dotada da mesma autoridade que tem a categoria da
semelhança na ciência construída como a solução para o problema das relações
predominantes entre as coisas. A multiplicação dos dados nessas ciências aumentaria
inevitavelmente o número de coisas aparentemente diferentes entre si, e desse modo
deformaria a capacidade dos observadores de discernir as semelhanças supostamente
existentes entre elas. Quando a lista de coisas semelhantes umas às outras alcançasse
certo limite, toda a operação se decomporia; e o fato da aparente dessemelhança de
todas as coisas com relação a todas as outras coisas assumiria a condição de um dado
primário da percepção. A esta altura, a “ciência” teria de encarregar-se de uma tarefa
inteiramente diversa, a saber, a de elaborar as relações presumivelmente existentes
entre as coisas diferentes, em meio às quais a única relação aparente seria sua
existência no modo de contiguidade , isto é, relações espaciais. O tropo dominante das
ciências projetadas nessa base seria o da metonímia, uma palavra que significa
literalmente apenas “deslocamento do nome”, mas que também tem a conotação de
modo de utilização linguística pelo qual o mundo das aparências se decompõe em duas
ordens de ser, como nas relações de causa e efeito ou de agente c ato.
A metonímia é a estratégia poética pela qual as entidades contíguas podem ser
reduzidas à condição de funções uma da outra, como quando o nome que designa a
parte de uma coisa é tomado por toda a coisa - como, por exemplo, na expressão
“cinqüenta velas” utilizada para significar “cinqüenta barcos”. As ciências humanas
do século XVIII, na forma como foram descritas por Foucault, representam pouco
mais que projeções epistemológi- cas do tropo da metonímia. São essas projeções que
justificam a busca pelos gramáticos da “gramática universal”, a busca pelos
economistas da “verdadeira base da riqueza” ou na terra, ou no ouro ou em outro
elemento semelhante de produção ou troca, e a busca pelos historiadores naturais das
essências das espécies orgânicas na contemplação de seus atributos externos. O que
os praticantes de cada uma dessas ciências fazem, segundo o relato que Foucault nos
fornece delas, é buscar as essências dos objetos de estudo em uma ou outra das partes
das totalidades que investigam. Daí as elaborações intermináveis daquelas tabelas de
atributos, como na Taxonomia universalis de Lineu, destinadas a revelar finalmente a
“rede de relações” que congrega as entidades numa “ordem das coisas”.
O estudo das coisas sob o aspecto de sua existência como totalidades
constituídas de partes separadas, que é a verdadeira base da natureza meca- nicista do
pensamento da época, está, em última análise, tão fadado ao fracasso quanto o estudo
das coisas sob o aspecto de sua semelhança e dessemelhança mútuas. Quanto mais
próximo o exame, maior o número de “partes” que poderiam ser utilizadas para
representar a natureza do todo. E fatalmente tem início o debate acerca de qual parte
é o aspecto verdadeiramente distintivo do todo e por referência à qual a natureza do
todo deve ser significada. Quando uma tabela de atributos é tão plausível quanto outra
qualquer, então o mundo se oferece como um espaço cheio de particulares que não só
FOUCAULT DECODIFICADO 275

são diferentes uns dos outros, mas também parecem existir exteriormente uns aos
outros, não só numa única espécie mas também em qualquer organismo. A descoberta
de que as coisas não apenas diferem umas das outras mas diferem internamente dentro
de si próprias, ao longo do percurso dos seus ciclos vitais, é a base para a
temporalização da ordem das coisas que Foucault atribuiu à consciência do século
XIX.
Segundo ele, as ciências da vida, do trabalho e da linguagem do século XIX
procedem com base na descoberta da diferenciação funcional das partes dentro da
totalidade e na apreensão do modo da Sucessão como a modalidade da relação entre
as entidades, de um lado, e entre as partes diferentes de uma entidade única, de outro.
Mas essa “apreensão conjunta” das partes de uma coisa como aspectos de um todo que
é maior que a soma das partes, essa atribuição da totalidade e da unidade orgânica a
uma congérie de elementos num sistema, é exatamente a modalidade de relações que
é dada na linguagem pelo tropo da sinédoque. Esse tropo é o equivalente, no uso
poético, da relação entre as coisas que os filósofos que falam de relações microcosmo-
macrocosmo presumem existir.
O aspecto importante é que o discurso de Foucault sobre as ciências humanas
do século XIX, tal como se desenvolveram nos limites impostos pelas categorias da
Sucessão e da Analogia, e pelas categorias secundárias da interdependência funcional
e da evolução, sugere a seguinte relação entre as ciências desse século e as do século
anterior: a linguagem metonímica está para a linguagem sinedóquica assim como as
ciências humanas do século XVIII estão para as ciências humanas do século XIX. Em
outras palavras, Foucault tem ao mesmo tempo um sistema de explicação e uma teoria
da transformação da razão, ou da ciência, ou da consciência, quer saiba disso ou o
admita ou não. Tanto o sistema quanto a teoria pertencem a uma tradição do
historicismo linguístico que remonta a Vico, antes dele aos filósofos linguistas da
Renascença e antes ainda aos oradores e retóricos da Grécia e da Roma clássicas. O
que Foucault fez foi redescobrir a importância do aspecto projetivo ou gerativo da
linguagem, o grau em que ela não apenas “representa” o mundo das coisas mas
também constitui a modalidade das relações entre as coisas pelo ato mesmo de assumir
uma postura diante delas. Foi esse aspecto da linguagem que se perdeu quando a
“ciência” se desvinculou da “retórica” no século XVII, obscurecendo desse modo para
a própria ciência a percepção da sua própria natureza “poética”.
Vico afirmava que havia quatro tropos principais, dos quais derivavam todas as
figuras de linguagem, e cuja análise fornecia a base para uma compreensão adequada
dos ciclos por que passa a consciência nas suas tentativas de conhecer um mundo que
sempre ultrapassou nossa capacidade de o conhecer plenamente. Esses quatro tropos
serviam de base para a sua própria teoria do ciclo de quatro estágios pelos quais todas
as civilizações passaram, desde a “idade dos deuses”, através da “idade dos heróis”,
até a “idade dos homens” e daí, finalmente, até a idade da decadência e da dissolução,
a idade do famoso ricorso. Os quatro tropos e as suas idades correspondentes no ciclo
vital de uma civilização eram a metáfora (a idade dos deuses), a metonímia (a idade
dos heróis), a sinédoque (a idade dos homens) e a ironia (a idade da decadência e do
ricorso)1.
276 TRÓPICOS DO DISCURSO

Um tipo semelhante de redução tropológica fundamenta e apóia a análise de


Foucault do curso das ciências humanas desde o século XVI até o século XX. De fato,
poderíamos dizer que, para Foucault, as ciências humanas do século XX podem ser
caracterizadas precisamente pela relação Irônica que elas mantêm com os seus
objetos. E é possível mostrar que de fato ele vê em filosofias e sistemas de pensamento
como a psicanálise, o existencia-

3. Giambaitista Vico, The New Science, trad. Thomus Goddard Bergin e Max Harold Fisch (Itbaca, 1968), 400-410,
443-446. A natureza tropológica do pensamento estruturalista parece ter sido desprezada pelos comentadores. Sem
dúvid;i, o sistema binário de interpretação utilizado por Lévi-Strauss é manifestamente tropológico. Todos os
sistemas de nomeação, do ponto de vista de Lévi-Strauss, representam algum tipo de resolução dialética do pólo
metafórico e do metonímico do comportamento linguístico. Ver, por exemplo, o seu Savage Minei (London, 1966),
pp. 205-244. A. mesma díade é utilizada por Jacques Lacan para decodificar os sonhos. Ver o seu “Insistence of
the Letter in the Unconscious”, em Structumíism, cd. Jacques Lhrmann (New York, 1966), pp. 101-136. Ela é
utilizada como base de análise para os estilos literários por Roman Jakobxon em “Linguistics and Poetics”, cm
Style en lutnguage, ed. Thomus A. Sebeok (New York e London, 1960), pp. 350-377. Os tropos da metáfora e da
metonímia são utilizados por esses pensadores para distinguir entre o eixo diacrônico e o sincrônico do uso
linguístico, permitindo-lhes utilizar u própria linguagem como base para a caracterização de modos diferentes de
consciência. O resultado é uma teoria binária da consciência que ameaça dissolver-se num dualismo. Afirmei que
Foucault simplesmente expandiu o número de tropos até a classificação quaternária convencional efetivada pelos
retóricos da Renascença, empregada por Vico na sua Ciência Nova e posteriormente aperfeiçoada por modernos
teóricos da literatura, como Kenneth Burke, Ver, por exemplo, A Grammur of Motives (Berkc)cy e Los Angeles,
1969), ap. D, “Four Master Tropes”, pp. 503-517. Não estou sugerindo uma influência de Vico ou de Burke em
Foucault, apenas uma similaridade de abordagem, embora a primeira edição do livro de Burke tenha aparecido
em 1945. Aliás, o uso dos tropos como base para a análise dos modos dc consciência é examinado por Emile
Benvenisie no seu “Remarks on the Function of Language in Freudian Theory”, cm Pntblvms of Gvnsrul Lingitixiics
(Coral Gables, 1971), pp. 75-76. Eu poderia acrescentar que geralmente não se reconhece quão penetrante tem sido
a percepção dos tropos como base de modos não-cicntíficos do discurso na filosofia “dialética”. A meu ver, a Lógica
de Hegel representa pouco mais que uma formalização, na própria terminologia de Hegel, das dimensões
tropológicas da linguagem; e a famosa segunda metade do capítulo de Marx sobre as mercadorias cm O Capitai
pode ser compreendida como uma aplicação da teoria dos tropos à “linguagem” das mercadorias. Foucault atua
nessa tradição.
lismo, a análise linguística, o atomismo lógico, a fenomenologia, o estruturalismo e
assim por diante - os principais sistemas da nossa época - projeções do tropo da ironia.
Ou pelo menos assim ele os caracterizaria se compreendesse corretamente aquilo de
que se ocupara. E sua própria postura, que ele define como pós-moderna, é pós-
irônica, na medida em que deseja fazer que o pensamento se perca mais uma vez no
mito.

7.

Parece seguro vaticinar que a obra de Michel Foucault não conquistará o


interesse apaixonado da comunidade filosófica anglo-americana. Foucault trabalha na
grande tradição da filosofia europeia continental, a tradição de Leibniz, Hegel, Comte,
Bergson e Heidegger, vale dizer, ele é um metafísico, por mais que enfatize sua
filiação à convenção positivista. Foucault visa a um sistema capaz de explicar quase
tudo, e não ao esclarecimento de problemas técnicos levantados pela lógica formal ou
pelos usos da linguagem comum. Mas é precisamente esse aspecto sistemático da obra
de Foucault que o poderia recomendar à atenção dos historiadores, sobretudo os da
FOUCAULT DECODIFICADO 277

cultura ou das ideias. Pois, com a sucessiva publicação de seis livros, Foucault se
firmou como um filósofo da história à maneira “especulativa” de Vico, Hegel e
Spengler. Ele pelo menos oferece uma interpretação importante da evolução da
consciência “formalizada” do homem ocidental desde o fim da Idade Média. Três de
suas obras - Folie et déraison, Les Mots et les choses e UArchéologie du savoir -
fornecem uma reconceituação fundamental da história intelectual europeia. Nessas
obras, Foucault traz à baila a questão de saber se há mesmo uma lógica interna na
evolução das ciências humanas, semelhante àquela que os historiadores pretenderam
encontrar no desenvolvimento das suas contrapartidas, as ciências físicas.
Cumpre notar, de imediato, que Foucault não trabalha na vertente principal da
historiografia ocidental, ou segundo as convenções de sua ramificação, a história das
ideias. Diferentemente do historiador convencional, preocupado em esclarecer e,
dessa forma, refamiliarizar seus leitores com os artefatos de culturas e épocas
passadas, Foucault tenta desfamiliarizar os fenômenos do homem, da sociedade e da
cultura que se tornaram demasiado transparentes depois de um século de estudos,
interpretações e sobredeter- minações conceituais. Nesse aspecto, Foucault representa
a continuidade de uma tradição do pensamento histórico que se origina no
Romantismo e que foi retomada, numa forma peculiarmente autoconsciente, por
Nietzsche no último quartel do século XIX.
Já que estão sempre lidando com um assunto estranho, e por vezes exótico, os
historiadores não raro admitem que seu objetivo principal deveria ser tornar esse
assunto “familiar” aos seus leitores. O que à primeira vista parece estranho deve-se
apresentar, no decorrer da narrativa, dotado de razões suficientes para sua ocorrência
e, portanto, acessível ao entendimento mediante o senso comum esclarecido. Como
todas as coisas históricas presumivelmente tiveram sua origem no pensamento e na
prática humanos, supõe-se que uma “natureza humana” vagamente imaginada deve
ser capaz de reconhecer algo de si própria nos resíduos desse pensamento e dessa
prática, que surgem como artefatos no registro histórico. Nihil humanum mihi alienum
puto - o credo do humanista e a hipótese de trabalho do historiador convergem para
uma simples fé na transparência de todos os fenômenos históricos. Daí o efeito
essencialmente domesticador da maior parte da escrita histórica. Ao tornar familiar o
estranho, o historiador converte o mundo humano do mistério em que ele está
envolvido em virtude da sua antiguidade e sua procedência numa forma de vida
diferente daquela aceita como “normal” pelos seus leitores.
Por certo, “tornar familiar o estranho” é apenas um lado dessa dupla operação
que Novalis, em sua famosa definição do Romantismo, atribuía à poesia. O outro lado,
“tornar estranho o familiar”, em geral não tem sido encarado como uma das principais
tarefas do historiador, mesmo por aqueles historiadores que concebem a historiografia
uma arte essencialmente literária. Os grandes historiadores românticos -
Chateaubriand, Carlyle eMichelet
- viam a questão de maneira diferente. Michelet dizia que o objetivo da historiografia
era a “ressurreição”, restituir às “vozes esquecidas” o seu poder de falar aos homens
vivos. Todavia, argumentava Michelet, não se devia confundir ressurreição com
reconstrução, o tipo de coisa feita pelo arqueólogo quando junta os fragmentos
278 TRÓPICOS DO DISCURSO

dispersos de um vaso a fim de lhe restituir a forma original. Ressurreição significa


penetrar até os mais fundos recessos das vidas passadas a fim de as reconstituir em
toda a sua estranheza e mistério como forças vitais, e de molde a lembrar aos homens
a variedade irredutível da vida humana, despertando assim nos vivos uma humildade
adequada diante dos seus predecessores e reverência para com eles.
Nietzsche falava num estado de espírito semelhante em O Uso e o Abuso da
História, punindo o efeito domesticador da historiografia acadêmica e insistindo em
que a historiografia poética constituía um antídoto para a “ironia” debilitante diante
de todas as coisas humanas que a “erudição” engendrou. Tornar estranho o familiar,
imprimir no cotidiano o selo da eternidade, elevar um “tema provavelmente banal” à
grandeza de uma melodia universal - eram esses os mais altos objetivos a que poderia
aspirar o historiador na condição de poeta. Spengler levou Nietzsche a sério nesse
aspecto, asseverando que o seu Declínio do Ocidente pretendia revelar muito mais as
diferenças fundamentais entre as formas da civilização que as similaridades que as
tornavam exemplos de formas genéricas de civilização (uma afirmação amiúde
negligenciada pelos que classificaram Spengler como um historiador positivista na
mesma tradição de Toynbee). O que Spengler queria demonstrar não era a maneira
pela qual a moderna civilização ocidental dava continuidade à sua predecessora grega,
mas até que ponto se afastara dela. Ele tentou mostrar como estamos isolados dentro
das nossas modalidades peculiares de experiência, tanto que não poderíamos esperar
encontrar análogos e modelos para a solução do problema que nos defronta e, desse
modo, esclarecer-nos quanto aos elementos peculiares em nossa própria “situação”
atual.
Essa concepção da historiografia tem profundas implicações na avaliação da
crença humanista numa “natureza humana” que está em toda parte e que é sempre a
mesma, por diferentes que sejam as suas manifestações em épocas e lugares distintos.
Ela questiona a própria noção de uma humanitas universal em que se baseia a cartada
do historiador no tocante à sua capacidade de “entender” qualquer coisa humana. E
ela apresenta implicações interessantes para o modo como os historiadores poderiam
pensar a tarefa da representação narrativa. Se o escopo do historiador é a
desfamiliarização e não a refamiliarização, sua postura diante de sua platéia deve ser
fundamentalmente diferente da que ele adotará em face de seu tema. Diante deste, ele
se mostrará inteiramente simpático e tolerante, um receptor de mensagens em sintonia
mais com os seus conteúdos simbólicos que com os seus conteúdos significativos; será
um conhecedor de mistérios e obscuridades, daqueles aspectos do seu conteúdo
poético perdidos na tradução. Diante de sua platéia, entretanto, aparecerá como o
crítico perverso do senso comum, o subversor da ciência e da razão, o provedor
arrogante de uma “sabedoria secreta” que mais intensifica que elimina as angústias da
existência social do momento.
Semelhante concepção da historiografia é coerente com os objetivos de grande
parte da poesia contemporânea, ou, pelo menos, recente. Da mesma forma que os
poetas modernos - Hopkins, Yeats, Stevens, Benn, Kafka, Joyce e mesmo Eliot -
buscavam reconduzir a percepção a uma consciência da estranheza das coisas comuns,
alguns historiadores modernos têm trabalhado nesse sentido nas suas descrições do
FOUCAULT DECODIFICADO 279

passado. Tal era a recomendação da brilhante (e negligenciada) Geschichte ais


Sinngebung der Sinnlõsen de Theodor Lessing e de toda a tentativa historiográfica
daquele produto aparentemente incompreensível da Schlachkultur vienense, Egon
Friedell. Orientação semelhante se pode ver num clássico da historiografia
supostamente humanista como o Waning ofthe Middle Ages de Johann Huizinga. O
interesse de Huizinga pelas manifestações mais bizarras, para não dizer grotescas, da
natureza humana na vida religiosa do final da Idade Média tem por efeito nos
distanciar da humanitas numênica que supostamente partilhamos com os seus agentes
humanos representativos. Um efeito similarmente alie- nante pode ser identificado na
obra do modelo de Hui2inga, Jacob Burck- hardt. O interesse pelo singular, bizarro,
grotesco e exótico, não a fim de reduzi-lo pelos “desmascaramentos” psicológicos ou
sociológicos dos seus conteúdos aparentemente corriqueiros, exerce o mesmo efeito
na historiografia realizada por Lévi-Strauss em suas reflexões mandarinescas acerca
das formas do pensamento e da ação “selvagens”.
Diferentemente de seus congêneres mais domesticadores em seu cam- po de
estudo, Lévi-Strauss não introduz a distinção entre o pensamento “selvagem” e o
“civilizado” para finalmente afirmar as continuidades entre eles. Ao contrário, propõe
sua distinção entre eles a fim de os oferecer como formas alternativas, mutuamente
exclusivas, da humanidade, secundado pela afirmação de que o “selvagem” é a mais
humana das opções. O método de análise e de explicação das sociedades primitivas de
Lévi-Strauss é desfami- liarizador num duplo sentido. De um lado, ele nos transmite
a sensação de quão tragicamente afastado está o homem civilizado do seu congênere
selvagem e presumivelmente mais “humano”; de outro, ele nos aliena dos modos de
pensamento e comportamento que antes valorizávamos como provas de nossa
“civilidade”. Estamos simultaneamente distanciados de nossa base selvagem e
alienados de nossa superestrutura civilizada. Nesse processo, as próprias palavras que
costumeiramente utilizávamos para apreender a experiência com vistas à reflexão se
tornam suspeitas de serem possíveis portadoras de “sentido” genuíno. Nas complexas
análises das fórmulas verbais que Lévi-Strauss realiza em seu processo
desfamiliarizador, não se imagina mais que as palavras denotem uma realidade
exterior ao âmbito de seu uso. Ao contrário, como sucede com Mallarmé, as palavras
são concebidas conotativas de um universo de símbolos multiestratificado, cujo
“sentido” se supõe residir na sua auto-referência anaclástica. Em resumo, a linguagem
se torna uma música, cuja estrutura é mais significativa que qualquer conteúdo
proposicional que se poderia extrair dela por análise lógica.
E esse interesse na desfamiliarização que permite classificar Foucault entre os
estruturalistas, a despeito de sua negação de não fazer causa comum com eles. Aliás,
deveríamos distinguir duas vertentes do movimento estruturalista: a positivista, a que
podemos vincular Saussure, Piaget, Goldmann e os marxistas, como Althusser e o
falecido Lucien Sebag; e a escatológica, a que pertencem Lacan, Lévi-Strauss, Barthes
e o próprio Foucault. O grupo positivista tem-se ocupado da determinação científica
das estruturas de consciência pelas quais os homens formam uma concepção do mundo
que habitam e em cuja base idealizam modos de práxis para chegar a um acordo com
esse mundo. Sua concepção de estrutura é, antes de tudo, uma concepção
280 TRÓPICOS DO DISCURSO

funcionalista, ou pragmática. Já a vertente escatológica se concentra nas formas pelas


quais as estruturas de consciência realmente ocultam a realidade do mundo e, mediante
esse ocultamento, efetivamente isolam os homens dentro de universos do discurso, do
pensamento e da ação diferentes, para não dizer mutuamente exclusivos. A primeira
vertente é, podemos dizer, integrativa no seu escopo, na medida em que considera
uma “estrutura das estruturas” pela qual se poderia ver que os diferentes modos do
pensamento e da prática manifestam um nível unificado de consciência humana
partilhado por todos os homens em todos os lugares, fossem quais fossem as diferenças
culturais que pudessem revelar. A segunda vertente é essencialmente dispersiva,
porquanto conduz o pensamento ao interior de um dado modo de consciência no qual
todo o seu mistério essencial, sua opacidade e particularidade são celebrados como
prova da variedade irredutível da natureza humana. É por essa razão que o ramo
escatológico do movimento estruturalista por vezes parece ser profundamente
anticientífico em suas implicações, e obstinadamente obscurantista em seus métodos.
Na verdade, Lacan, Lévi-Strauss e Foucault consideram a forma positivista da
“ciência” pouco mais que um mito, ao qual opõem sua própria concepção,
fundamentalmente “poética”, de uma ciência do concreto e do particular na forma de
uma alternativa humanamente benéfica. Mas essa concepção alternativa da ciência
como poesis os expõe aos perigos do sectarismo. Cada um dos principais
representantes do ramo escatológico alcançou a condição de guru, com o seu estilo
particular e tom oracular e com o seu próprio bando dedicado de seguidores que vêem
nas doutrinas que recebem dos seus lideres as portadoras de uma “sabedoria secreta”
subtraída aos olhos profanos dos não-iniciados. Os estruturalistas escatológicos, como
o rótulo que lhes dei pretende implicar, trabalham com epifanias - não aquela epifania
do Verbo feito Carne que é a suprema concepção dos seus congêneres cristãos, desde
São Joao Evangelista até Karl Barth, mas, antes, a da “Carne tornada Verbo”, tal como
foi ensinada no Evangelho segundo Santo Stéphane Mallarmé. Eles levam a sério a
convicção de Mallarmé de que as coisas existem para que possam viver nos livros.
Para eles, a totalidade da vida humana deve ser tratada como um “texto”, cujo sentido
não é outra coisa senão o que é. Interpretar esse texto é o seu objetivo. Aqui, porém, a
interpretação não leva à descoberta da relação entre as palavras do texto e o universo
das coisas imaginado fora do texto e ao qual se referem as palavras do texto. Ela
significa, como Foucault sugeriu, como que a chave para o entendimento do seu
método, ou “transcrição”, de modo a revelar a dinâmica interna dos processos do
pensamento por meio dos quais uma dada representação do mundo em palavras se
fundamenta na poesis. Transformar a prosa em poesia é o objetivo de Foucault, e dessa
maneira ele está interessado, sobretudo, em mostrar de que modo todos os sistemas de
pensamento nas ciências humanas podem ser considerados pouco mais que formaliza-
ções terminológicas dos fechos poéticos com o mundo das palavras, e não com as
“coisas” que elas parecem representar e explicar.
0 MOMENTO ABSURDISTA
4 NA TEORIA LITERÁRIA
CONTEMPORÂNEA

Qualquer tentativa de caracterizar o estado atual da crítica literária deve


primeiramente lidar com o fato de que a crítica literária contemporânea não constitui um
campo coerente de teoria e prática. Os contornos da crítica não são claros, sua geografia
não é especificada e sua topografia, portanto, é incerta. Como forma de prática
intelectual, nenhum campo é mais imperialista. A moderna crítica literária não reconhece
obstáculos dis- ciplinares, quer no tocante ao assunto, quer no que respeita aos métodos.
Na crítica literária, tudo é admitido. Essa ciência de regras não tem regras. Nem mesmo
se pode dizer que tem um objeto de estudo preferido.
Poder-se-ia pensar a priori que a crítica literária é distinguível de outros tipos de
atividade intelectual em virtude de seu interesse no artefato especificamente literário.
Mas isso só é verdadeiro num sentido geral. Os criti- cos literários modernos se
assemelham aos seus protótipos históricos devido ao interesse que demonstram pela
literatura e à concentração no artefato literário que convertem no ponto de partida para a
composição de seus discursos. Mas esse interesse e essa concentração são para muitos
críticos modernos apenas possibilidades teóricas - e isso porque a moderna crítica lite-
rária não tem uma ideia segura do que representa a “literatura” ou do que parece ser um
artefato especificamente “literário”. Ela não sabe onde traçar a linha que separa a
“literatura”, de um lado, e a “linguagem”, de outro. Nem mesmo está certa de que seja
necessário, desejável ou mesmo possível traçar essa linha.
Para muitos críticos modernos - embora de maneira nenhuma para todos ou mesmo
para286a maioria deles já que tudo é potencialmente
TRÓPICOS DO DISCURSOin- terpretável como linguagem, então
tudo é potencialmente interpretável como literatura; ou, se a linguagem é considerada
tão-somente um caso particular do campo mais abrangente da semiótica, nada é
interpretável como fenômeno especificamente “literário”, a “literatura” como tal não
existe, e a principal tarefa da moderna crítica literária (se a questão for levada às últimas
consequência s) é comandar a sua própria dissolução. A posição é manifestamente
Absurda, pois os críticos que defendem esse ponto de vista não só continuam a escrever
sobre as virtudes do silêncio, como o fazem numa extensão interminável e alta voce. No
pensamento de Bataille, Blanchot, Foucault e Jacques Derrida, testemunhamos a
emergência de um movimento na crítica literária que suscita a questão fundamental
apenas para obter uma satisfação cruel na contemplação da impossibilidade de resolvê-
la algum dia, ou, no extremo limite do pensamento, de sequer formulá-la. A literatura é
reduzida à escrita, a escrita à linguagem e a linguagem, num paroxismo final de
frustração, ao palavreado oco sobre o silêncio. Essa apoteose do “silêncio” é o destino
inevitável de um campo de estudo que se libertou das suas amarras culturais; mas o
impulso da crítica literária não é mais casual do que o da cultura ocidental em geral. Não
é apenas na crítica literária que o balbuciar deixa de ser um problema para tornar-se uma
norma. Mas em nenhum lugar essa norma é mais reverenciada do que na obra daqueles
críticos Absurdistas que fazem críticas intermináveis em defesa da ideia de que a crítica
é impossível.
Certamente, a maioria dos críticos - que deveríamos chamar críticos Normais -
continuam a acreditar que a literatura não só tem um sentido, como também confere
sentido à experiência. Por conseguinte, continuam a acreditar que a crítica é ao mesmo
tempo necessária e possível. A crítica Normal não é um problema, pois - pelo menos para
os críticos Normais. O problema deles é a crítica Absurdista, que põe em dúvida as
práticas da crítica Normal. Obviamente, seria bom para os críticos Normais que
ignorassem os seus críticos Absurdistas, ou antes os seus metacríticos Absurdistas - pois
a crítica Absurdista trata mais da crítica que da literatura. Quando o crítico Absurdista -
Foucault, Barthes, Derrida - fala sobre um artefato literário, é sempre com o intuito de
ressaltar um aspecto metacrítico. Mas para o crítico Normal é difícil ignorar o crítico
Absurdista, pois este sempre dá mostras de levar mais seriamente o empreendimento
crítico do que aquele: ele está disposto a questionar o próprio empreendimento crítico. E
de que modo pode um crítico Normal negar a legitimidade do impulso para criticar a
crítica? Depois que a crítica se lançou em seu curso de questionamento, de que modo
pode deter-se antes de questionar-se a si própria?
Mas, na crítica, esse é um problema doméstico. Por que deveria o historiador da
cultura levar a sério a crítica Absurdista? Qual é o status da crítica Absurdista,
considerada um dado de história cultural? Por que deveria o historiador da cultura
considerar a crítica Absurdista um dado privilegiado em qualquer apreciação da condição
da crítica literária em nossa época?
Diferentemente da Nova Crítica, da crítica prática, do formalismo, e mesmo da
crítica fenomenológica, os Absurdistas não representam um movimento de reforma na
comunidade crítica. Não reconhecem a atividade crítica, e chegam a recomendar
reformas metodológicas específicas que lhe permitirão fazer melhor o que ela sempre
havia feito de maneira adequada. Ao contrário, os Absurdistas atacam todo o
empreendimento crítico, e o fazem onde a crítica Normal, em todas as suas formas, é
mais vulnerável: na teoria da linguagem. Para as convenções críticas mais antigas, a
linguagem em si não era um problema. A linguagem era apenas o meio de corporificar a
mensagem literária. O propósito da crítica era penetrar de um lado ao outro do meio, por
análise filológica,0 MOMENTO ABSURDISTA
tradução, NA TEORIAgramatical
explicação LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA 287 à
e sintática, a fim de chegar
mensagem, ao “sentido”, ao nível semântico que está por baixo dele. O problema da
interpretação emergiu tão logo foi alcançado esse nível mais profundo. A crítica
Absurdista, em contrapartida, trata a linguagem em si como um problema e se demora
indefinidamente na superfície do texto, na contemplação do poder da linguagem de
ocultar ou difundir o sentido, de opor-se à decodificação ou à tradução e, em última aná-
lise, de encantar o entendimento mediante um jogo infinito de signos.
Isso não quer dizer que os críticos Absurdistas participam da tentativa de Chomsky
e outros linguistas técnicos de criar uma ciência da linguagem. Ao contrário, seu
empreendimento é completamente diferente. Eles buscam inspiração em Nietzsche,
Mallarmé e Heidegger, que viam na linguagem o problema humano por excelência, o
mal que tornou possível a “civilização” e engendrou os seus “descontentamentos”
mutiladores. Mas revestem seu ataque à linguagem de uma terminologia tirada de
Saussure, de molde a lhe conferir certa qualidade técnica e a colocar os críticos
convencionais na defensiva no local onde são mais vulneráveis, nos níveis superficiais
do texto, antes mesmo de ter início o que normalmente se pensava ser “interpretação”.
Exatamente pelo fato de a crítica Normal não ter visto na linguagem em si um problema
(apenas um quebra-cabeça a resolver antes de abordar o problema real: a revelação do
sentido oculto na linguagem), ela era vulnerável a uma estratégia crítica segundo a qual
o problema da interpretação estaria na superfície do discurso, na própria linguagem em
que o discurso ao mesmo tempo revelava e escondia a sua própria falta de sentido.
A crítica Absurdista questiona o status do texto, a textualidade em si. Ao fazê-lo,
localiza um ponto de tensão da crítica convencional e expõe uma presunção não-
reconhecida de todas as formas de crítica anteriores, a presunção da transparência do
texto, a presunção de que, com bastante erudição e agudeza, o texto pode ser
compreendido no tocante ao “sentido” (mais ou menos ambíguo) que subjaz à sua textura
superficial.
Para o crítico Absurdista, a noção do texto se torna uma categoria abrangente do
empreendimento interpretativo; conceba-se ou não que o tex
to não existe absolutamente em parte alguma, que desaparece no fluxo da
linguagem,
285 no jogo dos signos. Essa fetichização
TRÓPICOS DO DISCURSO do texto ou da textualida- de não é,
contudo, o produto de um impulso estranho à crítica convencional. Sempre houve na
crítica uma tendência a deificar o texto, a conceber o texto como o verdadeiro paradigma
da experiência e a conceber o ato de ler como um análogo privilegiado do modo pelo
qual damos sentido a todas as coisas. Sempre houve na crítica um impulso para ver o
texto como, de acordo com Hillis Miller, o crítico Beguin da Escola de Genebra o vê:
como um sacramento que traz em si “o precioso testemunho ... da presença de Deus na
criação” (“The Geneva School”, in Simon, p. 289)'.
Mas qual é a condição do texto numa cultura que não acredita mais em Deus, na
tradição, na cultura, ou mesmo na “literatura”? Torna-se possível, então, considerar o
texto ou como um significante que é o seu próprio significado (Derrida) ou como uma
mera “coleção de signos dados sem relação com ideias, linguagem ou estilo e que
intentava definir, na densidade de .todos os modos da expressão possível, a solidão da
linguagem ritual” (Barthes, citado por Velan, em Simon, p. 332). Tal é particularmente
o caso da abordagem estruturalista do texto. Como diz Edward W. Said, para o es-
truturalista, “tudo é um texto... ou... nada é um texto” (“Abecedarium Culturae:
Structuralism, Absence, Writing”, em Simon, p. 379). Desse modo, o texto se torna um
análogo do Ser ou a sua antítese. Em ambos os casos, com tais visões encabeçando a lista
dos postulados que possibilitam a crítica, é fácil entender de que modo “o ato de ler”
pôde tornar-se fetichiza- do, transformado num mistério que é uma atividade ao mesmo
tempo fascinante e cruelmente mutiladora. E pode-se compreender de que modo, dada a
noção do texto como “tudo... ou... nada”, a critica seria levada a tentar distinguir
rigorosamente entre o que se poderia chamar “leitores senhores” e “leitores servos” - isto
é, leitores dotados da autoridade para estender-se sobre os mistérios dos textos e leitores
carentes dessa autoridade. Não é de surpreender, então, que grande parte da critica
contemporânea gire em torno da tentativa de estabelecer os critérios para determinar as
técnicas e a autoridade do leitor privilegiado.
Esse fascínio pela noção do leitor privilegiado é em si mesmo sintomático da
possibilidade absurdista contida dentro do campo geral da crítica

1. Esle ensaio foi escrito a convite de Murray Krieger, para uma ediçüo especial de Contemporary Literatura (Summer
1976), dedicada a uma avaliação do panorama atual da crítica literária. O professor Krieger convidou diversos críticos
e historiadores da literatura a refletirem sobre esse panorama mediante uma análise de inúmeras antologias de crítica
recém-publicadas. Daí o âmbito relativamente limitado de alusões neste ensaio. As antologias consideradas foram:
Mcrton W. Bloomfield (ed.), In Search of Literary Theory (Itliaca, 1972); Vemon W. Gras (cd.), European Literary Theory
and Pratica: From Existentia! Phenomenology lo Structuralism (New York, 1973); Richard Macksey c Eugênio Donato
(eds.), The Languages of Criticism and lhe Sciences of Man; The Structuralist Controversy (Baltimore, 1970); Richard
Macksey (ed.), Veloci/iex of Ckange: Criticai Essuys from MLN (Baltimore, 1974); Gregory T. Polietta (ed.), Issues in
Contemporary Literary Criticism (Boston, 1973); John K. Simon (ed.), Modern French Criticism: From Proust and Valéry
to Structuralism (Chicago, 1972).
0 MOMENTO
literária numa sociedade ABSURDISTA NA TEORIA
pós-industrial. EleLITERÁRIA
refleteCONTEMPORÂNEA 289
uma falta de confiança generalizada
em nossa capacidade de localizar a realidade ou os centros de poder na sociedade pós-
industrial e de compreendê-los quando são localizados. Numa sociedade em que são
indetermináveis tanto as estruturas quanto os processos, todas as atividades se tornam
questionáveis, mesmo a crítica, mesmo a leitura. Mas, porque essas atividades continuam
a ser praticadas, continuam a reivindicar uma autoridade sem fundamentos teóricos
adequados para tanto, torna-se imperativo determinar quem é responsável por elas e por
que deveriam ser praticadas. A leitura torna-se tão problemática quanto a escrita, a
política ou o comércio e, como eles, converte-se na prerrogativa de uns poucos
privilegiados.
Evidentemente, a leitura sempre fora considerada um precioso dote humano, um
artigo de luxo, o sinal e a base da civilização, e a prerrogativa de uns poucos. Mas era
também tradicionalmente considerada um talento que em princípio todos os homens
possuíam, era vista como uma atividade humana comum cuja conquista exigia apenas
talentos humanos normais. Mas, sob o imperativo de mistificar o texto, ele próprio uma
função de um imperativo anterior de mistificar a linguagem, a leitura se reveste de quali-
dades mágicas, é vista como um privilégio de algumas inteligências excepcionais. Não
admira, portanto, que alguns dos críticos modernos mais Absurdistas vejam na leitura,
assim como na escrita, atividades “perigosas”, que só devem ser encetadas sob condições
cuidadosamente reguladas ou sob a direção daqueles leitores profissionais que compõem
a elite da comunidade crítica.
Dessa maneira, por exemplo, Heidegger define a linguagem como a mais perigosa
posse do homem (“Hõlderlin and the Essence of Poetry”, em Gras, p. 31), enquanto Jean
Paulhan concebe a linguagem como “traição” (Alvin Eustis, “The Paradoxes of
Language: Jean Paulhan”, em Simon, p. 110). Segundo Beaujour, Bataille vê na literatura
o paradigma da “transgressão” (“Eros and Nonsense: Georges Bataille”, em Simon, p.
149), enquanto Maurice Blanchot, como nos diz de Man, concebe o “processo de leitura”
situado “antes ou além do ato de entendimento” (“Maurice Blanchot”, em Simon, p. 257).
E Said escreve que Derrida acredita que a escrita “participa constantemente da violência
de cada traço que faz” (“Abecedarium Cul- turaé'’, em Simon, p. 385). A mistificação
do texto resulta no fetichismo da escrita e no narcisismo do leitor. O leitor privilegiado
olha em derredor e só encontra textos e, nos textos, apenas a si próprio.
Essa não é de modo nenhum uma atitude encontrada apenas nos críticos
Absurdistas, que Eustis chama de “Terroristas” (“The Paradoxes of Language”, em
Simon, pp. 111-112). Ela estava desde o início potencialmente presente na própria
atividade da crítica. Tomemos um exemplo menos extremado. Georges Poulet
dificilmente pode ser considerado um Terrorista. Em sua prática crítica, ele se acha muito
mais próximo das escolas críticas convencionais, como as representadas pelos Novos
Críticos da América, pe~ los críticos práticos da Grã-Bretanha e pela tradição da história-
das-ideias representada pelo falecido A. O. Lovejoy, ou da tradição filológica de Spitzer
- a velha guarda da crítica contemporânea. Entretanto, numa notável celebração da sua
própria experiência de leitura como um paradigma da prática crítica, Poulet, no famoso
ensaio “A Fenomenologia da Leitura”, termina dizendo: “Parece então que a crítica, a
fim de acompanhar a mente na sua tentativa de desprender-se de si mesma, precisa
aniquilar, ou pelo menos esquecer momentaneamente, os elementos objetivos da obra e
elevar-se à apreensão de uma subjetividade sem objetividade” (em Polletta, p. 118).
O leitor ingênuo perguntará: O que pode significar isso? Em que poderia consistir
uma “subjetividade sem objetividade”? Poulet continua acreditando na realidade da obra
literária e considerando-a o produto de uma atividade humana reconhecível. “Há”,
escreve ele, “na obra [literária] uma atividade mental profundamente comprometida com
formas objetivas”. Ao mesmo tempo, porém, ele postula “um outro nível” da obra onde,
“abandonando
290 todas as formas, umTRÓPICOS
assunto [...] se revela a si mesmo (e a mim) na sua
DO DISCURSO
transcendência sobre tudo o que se reflete nele”. Quando o leitor, ou antes Poulet (pois
ele é um leitor solitário), atinge esse ponto, “nenhum objeto pode mais exprimi-lo,
nenhuma estrutura pode mais defini-lo; ele está exposto na sua inefabilidade e na sua
indeterminação fundamental” (ibid.).
Assim caracterizado, o texto literário tem todos os atributos da divindade, do
espírito ou do nume; é um efeito que é a sua própria causa, e uma causa que é o seu
próprio efeito. Tal é, precisamente, o ponto de vista do Terrorista Blanchot, que insiste,
juntamente com Mallarmé, em que o livro “vem a ser por si próprio; é feito, e existe, por
si mesmo” (De Man, em Simon, p. 263). Mas, diferentemente de Blanchot, que insiste
em dizer que nem mesmo o autor é capaz de ler sua obra (ibid., p. 260), Poulet sugere
que a obra lê-se a si própria por meio dele. Como ele diz:

Não devo hesitar crn reconhecer qus, enquanto é animada por essa inspiração vital sugerida pelo ato de
leitura, uma obra literária se toma (às custas do leitor cuja própria vida ela suspende) uma espécie de ser humano;
que ela é uma mente consciente de si própria e se constitui em mim como o sujeito dos seus próprios objetos.
A obra vive sua própria vida dentro de mim; em certo sentido, ela se pensa, e mesmo confere a si mesma
um sentido em mim (“Phenomenology of Reading”, em Polletta, p. 109).

O que poderia ser mais órfico! Não se trata de tomar esse trecho como uma aproximação
figurativa do que Poulet literalmente experimenta no ato de leitura. Quando falamos
teoricamente, somos tão responsáveis pelas figuras de linguagem que utilizamos para
ilustrar um problema quanto pelas palavras que escolhemos para denotar o seu conteúdo.
Aqui a obra é personificada no modo do espírito; o ato de leitura se torna constitutivo de
sentido; e a troca entre obra e leitor é construída à maneira de uma invasão da consciência
por uma presença fantasmagórica (embora sempre benigna). Não é de surpreender que
Poulet use a linguagem da análise esquizofrênica para glosar essa ideia:

Ocorre uma defasagem, uma espécie de distinção esquizóide entre o que sinto e o que o outro sente; uma
percepção confusa de dilação, de modo que a obra parece primeiramente pensar por si própria, e, depois,
informar-me o que ela pensou. Assim, tenho às vezes a impressão, enquanto leio, de simplesmente testemunhar
uma ação que ao mesmo tempo concerne e no entanto não concerne a mim. Isso provoca em mim um certo
sentimento de espanto. Sou uma consciência atônita com uma existência que não é minha, mas que experimento
como se fosse minha.
Essa consciência atônita é, com efeito, a consciência do crítico {ibid., p. 110).

O que é espantoso na identificação que Poulet faz do espanto com a consciência


critica é que ele se recusa a continuar emudecido, aturdido; ao invés disso, escreve
ininterruptamente sobre o seu próprio espanto diante (ou dentro) do texto. Nesse aspecto,
ele não difere absolutamente do crítico Absurdista que nega de modo geral a
possibilidade de crítica, e o faz repetidas vezes numa celebração de uma capacidade de
interpretar mal, que, no extremo, nega a sua própria autenticidade. Isso se torna ainda
mais interessante no fato de que a celebração que Poulet faz da leitura como um rito de
iniciação órfica se desenvolve no interesse de defender a “literatura” contra a sua
assimilação a mera escrita, de um lado, e ao domínio dos artefatos meramente materiais,
de outro. Mas o efeito sobre a conceituação da natureza da leitura e sobre as tarefas da
crítica é o mesmo. Poulet faz da leitura um sacramento e da crítica a disciplina das
disciplinas, como a teologia o era (ou reivindicava sê-lo) na Idade Média, mesmo que,
enquanto disciplina, aquilo a que ela mais aspira seja, não o entendimento, mas o
“espanto”.
De que modo podemos explicar a tendência, manifestada por inúmeros críticos de
0 MOMENTO
nossa época, a mistificar a ABSURDISTA
literaturaNAe TEORIA LITERÁRIA aCONTEMPORÂNEA
transformar 291
leitura num mistério do qual apenas
os mais profundamente iniciados podem tomar parte autorizadamente? Em The Fate of
Reading, Geoffrey Hartman encontra a causa da tagarelice crítica atual num “novo mal
du sièclé”. As palavras perderam o seu valor, juntamente com todos os outros signos,
porque foram superproduzidas através do “fluxo de estímulo” da mídia. “Sabemos” de-
mais; ou, antes, temos “informações” em demasia. E a consequência é “a impaciência:
[...] Parecemos incapazes de concluir um tema, ou qualquer investigação. O remate é a
morte” (Hartman, pp. 250-251). O desaparecimento da literatura na linguagem e desta
nos signos inflaciona, inevitavelmente, o valor do desempenho crítico embora, ao mesmo
tempo, revestindo esse desempenho do aspecto de um mistério. O crítico já não sabe
exatamente por que está fazendo o que faz ou como o faz; no entanto, ele não pode parar.
Acha-se sob domínio de uma vis interpretativa cujo poder compulsivo o impele a refletir
mais sobre crítica do que sobre “leitura”. A metacrítica torna-se o modo. “A literatura é
hoje tão facilmente assimilada ou cooptada que muitas vezes a função da crítica deve ser
desfamiliarizá-ía.” Assim escreve Hartman. O mesmo se pode dizer da própria crítica.
Nesse estado de coisas, o crítico se vê tentado a desfamiliarizar a crítica. E um dos meios
de fazê-lo é reivindicar para ela a mesma autoridade que os críticos anteriormente
reivindicavam somente para a literatura. Hartman, com excessiva cautela, considera a
possibilidade de que a crítica seja em si mesma “uma forma de arte”, mas parece relutante
em tirar todas as consequência s desse ponto de vista. Em vez disso, ele se refugia por
trás da alegação de que a leitura deve ser restaurada como “a forma consciente e
escrupulosa daquilo que chamamos crítica literária” (ibid., p. 272).
A aflição de Hartman pode ser interpretada como um sintoma do mal du siècle que
ele procura transcender. A mensagem dos críticos Absurdistas é clara: numa sociedade
em que o trabalho humano deixou de ser um valor ou aquilo que confere valor aos seus
produtos, nem os textos literários nem qualquer outra coisa podem reivindicar uma
condição ontologicamente privilegiada. Os textos literários são mercadorias, assim como
todas as outras entidades que habitam o reino da cultura, diferindo dos objetos naturais
exclusivamente pela quantidade de dinheiro que podem exigir numa economia de troca
ou de mercado. E, enquanto o valor do trabalho humano permanecer não-reconhecido ou
indeterminado, ou calculado em termos do seu valor de troca por um equivalente em
dinheiro, o artefato artístico continuará sujeito ao tipo de fetichização a que o próprio
dinheiro está sujeito. O empenho da parte de Poulet, e de Hartman, em devolver
dignidade ao ato de ler continuará sujeito à tendência à mistificação, enquanto todas as
outras formas especificamente humanas de trabalho permanecerem desvalorizadas,
subvalorizadas ou valorizadas exclusivamente em termos de dinheiro.
Não é de surpreender que a crítica esteja em crise. Visto que ela é, apesar de tudo,
quintessencialmente uma atividade valorativa, está sujeita aos mistérios da valorização
que predominam no setor determinante da moderna vida social: o econômico.
Obviamente, os críticos - leitores profissionais de textos - têm interesse em aumentar o
valor tanto da sua própria atividade quanto dos objetos, os textos, que são a razão dessa
atividade. Um dos modos de promover esse aumento é dotar a obra literária de todos os
atributos de um “espírito” cujo desaparecimento na esteira de uma profunda
materialização da cultura é sinalizado apenas por aquelas “esteiras de vapor” que
Nietzsche divisava no horizonte remoto da “civilização”. Esse é o caminho tomado por
Poulet e por outros representantes da crítica Normal desde os Novos Críticos e os críticos
práticos do período entre as guerras, passando pela crítica arquetípica de Northrop Frye
e pelos representantes da Escola de Yale em nossa própria época.
Outra maneira de aumentar o valor da literatura e da crítica é a adotada pela
linhagem de críticos que vêm de Heidegger e de Sartre em sua fase inicial, passando pela
fenomenologia e pelo estruturalismo. Essa maneira enfatiza a natureza “demoníaca” da
literatura,
292 da linguagem e da cultura em geral.
TRÓPICOS Esse processo de demonização prepara o
DO DISCURSO
terreno para a recepção do discurso Absurdista de Bataille, Blanchot e outros, e culmina
em Barthes, Foucault e Derrida. Negando a condição privilegiada da literatura e do arte-
fato literário, os críticos Absurdistas simplesmente exacerbam o impulso de acomodar
tudo à sua conclusão lógica - e absurda.
Assim, quando Foucault diz que as palavras ou a linguagem são apenas “coisas”
entre as outras coisas que habitam o mundo, está menos interessado em rebaixar
ontologicamente as palavras e a linguagem do que em desafiar as convenções culturais
que opõem “cultura” a “natureza” no modo da oposição qualitativa, identificando
“cultura” com “espírito” e “natureza” com “matéria” em teoria, mas na prática tratando
todo o artefato cultural como mera mercadoria. Foucault está menos interessado em
desespirituali- zar a cultura do que em renaturalizá-la; ou, antes, apenas em naturalizá-la,
uma vez que, do seu ponto de vista, a cultura desde a fundação da sociedade esteve
vivendo a ilusão de sua espiritualidade. É esse interesse na de- sespiritualização dos
artefatos culturais da sociedade moderna que integra a ele e a Barthes no projeto
grandioso e anticivilizacional de Lévi-Strauss. Como Lévi-Strauss, Foucault e Barthes
vêem na função da crítica a desmitologização da moderna sociedade industrial.
Desmitologizar, insiste Barthes, é mostrar de que forma todo artefato cultural que
reivindique a condição de natural é, na realidade, artificial e, afinal de contas, um simples
produto humano. Revelar a origem humana dessas ideias e práticas que a sociedade
considera naturais é mostrar quão antinaturais elas são e é voltar a atenção para uma
ordem social genuinamente humana em que a busca da espiritualidade terá sido
definitivamente sepultada porque a cultura haverá de ser considerada contínua com a
natureza, em vez de separada dela.
É no contexto desse empreendimento mais amplo e socialmente utópico que devem
ser compreendidas as atitudes Absurdistas para com a crítica enquanto atividade e para
com outros críticos, os Normais. Para o Absurdista, o papel da crítica é tomar o partido
da natureza contra a cultura. Daí a celebração, por parte desses críticos, de fenômenos
anti-sociais como a barbárie, a criminalidade, a insanidade, a infantilidade - qualquer
coisa que em geral seja violenta e irracional. O lado sombrio da existência civilizada -
aquele que, como disse Nietzsche, tinha de ser abandonado, reprimido, confinado ou
apenas ignorado, se se quisesse que a civilização fosse fundada - foi simplesmente
evitado pelos críticos Normais, que definem a sua tarefa principal como a defesa da
civilização contra todas essas coisas. Assim também, na medida em que a crítica Normal
julga que a “literatura” ou a “arte” consiste apenas naquelas criações do homem que lhe
reforçam as capacidades para a repressão, a má fé ou a violência requintada, ela deve ser
encarada como cúmplice dos próprios processos de autonegação que caracterizam as
modernas sociedades de consumo.
A crítica Absurdista realiza o seu distanciamento crítico da cultura, da arte e da
literatura modernas invertendo a suposição, até agora não-questio- nada, de que a
“civilização” vale o preço pago em sofrimento humano, an~ gústia e dor pelos “não-
civilizados” do mundo (os povos primitivos, as culturas tradicionais, as mulheres, as
crianças, os proscritos ou párias da história mundial) e afirmando os direitos dos “não-
civilizados” contra os “civilizadores”. A crítica Absurdista inspira-se na intuição de que
a arte e a literatura não constituem atividades inocentes que, mesmo nos seus melhores
representantes, são totalmente destituídas de cumplicidade na exploração da maioria pela
minoria. Ao contrário, pela sua própria natureza de produtos sociais, a arte e a literatura
não apenas são cúmplices na violência que mantém uma dada forma de sociedade, como
têm o seu próprio lado inferior sombrio e a sua origem na criminalidade, na barbárie e no
0 MOMENTO ABSURDISTA NA TEORIA LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA
desejo de destruição. 293

A arte e a literatura, na avaliação Absurdista, não apenas podem curar como ferir,
não apenas unir como dividir, não apenas elevar como rebaixar - e, com efeito, é o que
fazem ininterruptamente no interesse dos que detêm o poder e os privilégios das classes
dominantes em todas as sociedades conhecidas da história. É por isso que o marquês de
Sade é a presença predominante da crítica que se desenvolve sob o aspecto de ataques
Absurdistas à literatura, à arte, à civilização e à própria humanidade. Sade, Marx,
Nietzsche e Freud são os quatro luminares dessa tradição crítica porque ensinaram, de
uma forma ou de outra, o que Dostoiévski exprimiu em palavras que se tornaram o clichê
sancionador de tantos movimentos culturais modernos: se Deus está morto, tudo é
permitido. Descobrir quais são os limites da liberdade que esse clichê autoriza é o
principal objetivo da crítica Absurdista.
A crítica Absurdista é, pois, programaticamente “anormal”. Ela questiona os
próprios conceitos de normal e de normativo na sociedade moderna. E o faz insistindo
na anormalidade daqueles valores que a crítica Normal admite. Esta procura ignorar ou
desprezar a acusação de anormal que se lança contra ela; mas não pode fazê-lo de modo
consistente, primeiro porque a crítica Absurdista continua a se desenvolver entre os
críticos mais jovens, ainda fascinados pelo arrojo dos seus postulados de capacitação; em
segundo lugar, e ainda mais importante, porque a crítica Absurdista é simplesmente uma
extensão lógica dos princípios predominantes, mas não reconhecidos, que têm habitado
o cerne da própria crítica Normal desde a sua cristalização no período anterior e posterior
à Segunda Guerra Mundial.
Cumpre indagar, portanto: O que é a crítica Normal? Negativamente, ela é
qualquer coisa que não é Absurdista; mas, positivamente, pode ser definida por certos
atributos reconhecíveis. Em primeiro lugar, a critica Normal toma forma contra o pano
de fundo das várias formas de critica praticadas nas universidades antes da Segunda
Guerra Mundial. Essas formas de crítica eram variadas, mas todas essencialmente
normativas na prática. E, embora exibissem vários graus de consciência teórica, não se
caracterizavam por um grau muito elevado de autoconsciência teórica. Isto é, conquanto
apresentassem diferentes teorias sobre o artefato literário, a fim de interpretá-lo, de re-
velar seus significados, de situá-lo nos seus diversos conteúdos históricos e assim por
diante, não julgavam a crítica em si um problema. Ao contrário, tendiam a ver na
existência da crítica literária um dado, um fato da vida, por assim dizer, e passavam
diretamente da pergunta “Por que fazer crítica?” para o problema teoricamente posterior
de “Como fazer crítica?”. A crítica que predominou nas universidades durante o período
entre as guerras pode ter sido inspirada por várias noções gerais das tarefas da crítica,
inspiradas por filósofos tão diferentes quanto Arnold, Croce, Taine ou Dilthey, mas essas
noções eram alimentadas “ingenuamente” na medida em que eram tidas como
justificativas para criticar, e não como razões para a consideração problemática da
natureza da crítica em geral.
Podemos chamar de Elementar esse modo de discurso crítico, no sentido de que
ele não questionava a possibilidade do serviço prestado pelo crítico à literatura, sua
habilidade em sondar as profundezas do sentido de um texto, de situar um texto nos seus
contextos históricos e de comunicar as características da estrutura do texto e do conteúdo
ao leitor comum. Concebida dessa forma, a literatura era “valiosa”, mas não era
misteriosa; julgava-se que servisse inequivocamente às causas de valores mais elevados,
como cultura, civilização, humanidade ou vida; o objetivo do crítico era distinguir a
literatura “boa” da “ruim” ou “imperfeita” e, depois, proceder à demonstração de como
a literatura “boa” fazia de maneira satisfatória o que a literatura “ruim” fazia
imperfeitamente.
Porém, contra esse modo Elementar da crítica levantou-se nos anos entre as guerras
um 294
modo alternativo cujo centro deTRÓPICOS
atividade estava fora da universidade (ou dentro dela,
DO DISCURSO
mas perifericamente). Esse outro modo constituía uma ameaça tanto ao conceito de
literatura quanto às noções das tarefas da crítica que o modo Elementar partilhava com
os seus progenitores do século XIX. O novo modo era representado pelo marxismo, pela
psicanálise e pelas várias formas de sociologia do conhecimento geradas pela era da
ideologia. Uma característica de todas essas escolas antiacadêmicas de crítica era desafiar
a “inocência” da cultura em geral, considerar a literatura como um epifenômeno de
impulsos e necessidades humanas ou sociais mais básicas e definir a tarefa da crítica
como o desmascaramento da subestrutura ideológica do texto e a descoberta dos meios
pelos quais não somente a literatura, mas todas as formas de arte sublimavam,
obscureciam ou reforçavam impulsos humanos mais ou menos “sociais” na natureza,
porém sempre especificamente pré-estéticos e pré-morais. Essas convenções críticas
eram, assim, Reducionistas, imaginando que o objetivo da crítica não era a união com a
obra de arte no modo da empatia, nacherleben, ou celebração, mas, antes, a efetivação
do distanciamento na obra de arte, a sua distorção e a revelação do seu conteúdo oculto,
mais essencial, e pré-literário.
Todavia, nenhum dos representantes dessas convenções — nem Lukács, Trótski,
Brecht, Hauser, Mannheim, Caudwell, Benjamin, Adorno, Freud, Reich, nem os outros
psicanalistas - era inimigo da literatura ou da crítica. Todos tinham uma fé comum na
possibilidade de um “método” que favorecesse a mediação entre o conteúdo humano da
obra de arte que analisavam e as necessidades humanas daqueles que as liam. Ademais,
todos compartilhavam a crença na possibilidade de comunicação com as diversas
comunidades de críticos e de traduções entre elas. Eles poderiam revelar como sendo o
verdadeiro conteúdo de uma determinada obra de arte as ações das relações sociais de
produção, da psique ou da ideologia que inspirava a consciência de seu criador,
“reduzindo” desse modo os aspectos especificamente estéticos da obra de arte à condição
de manifestação de impulsos, necessidades ou desejos mais fundamentais. Contudo,
encaravam esses impulsos, necessidades e desejos como produtos universalmente hu-
manos da condição social da humanidade, com base em cujo conhecimento poderiam
avaliar e classificar as obras de arte em progressistas ou retrógradas. E julgavam que a
função do crítico era fomentar a causa das forças progressistas na vida humana, mais ou
menos como fizera Arnold - mesmo que a sua concepção do que era culturalmente
“saudável” e do que não o era diferisse do toto caelo de Arnold.
O modo Reducionista surgiu concomitantemente à franca politização da crítica,
que os regimes totalitários da Rússia, da Alemanha e da Itália promoveram durante os
anos entre as guerras. E os inimigos diretos dos praticantes liberais e radicais do
Reducionismo eram os intelectuais e os artistas “lacaios” desses regimes totalitários, e
não os acadêmicos que faziam crítica no modo Elementar. O que os Reducionistas
combatiam era sobretudo o “falso reducionismo” dos críticos, escritores e intelectuais
fascistas. Entretanto, devido ao fato de tenderem a encarar a crítica acadêmica como uma
aliada pelo menos tácita do fascismo, em virtude, para não dizer outra coisa, de sua
incapacidade de perceber as implicações ideológicas de uma crítica geralmente “ética”,
ou claramente “estética”, eles também combatiam a crítica acadêmica.
E à luz desse ataque, por parte dos Reducionistas, à crítica predominante na
academia que se pode compreender os movimentos teóricos da Crítica Nova, da crítica
prática e, em certa medida, do formalismo - as escolas que passaram à linha de frente da
crítica acadêmica durante a Segunda Guerra Mundial e depois dela. Essas escolas
buscavam fornecer uma base teórica para as práticas críticas da academia de um modo
que pudesse rebater a acusação dos Reducionistas de que tais práticas eram, se não
execráveis, pelo menos0 MOMENTOteoricamente
ABSURDISTA NA TEORIA LITERÁRIACada
ingênuas. CONTEMPORÂNEA 295
uma dessas escolas de crítica
procurava obter um distanciamento teórico da obra de arte de um modo semelhante ao
dos marxistas, psicanalistas e sociólogos do conhecimento, mas não para ameaçar o que
o pensamento humanista tradicional considerava ser o aspecto especificamente “estético”
da “obra de arte”.
A Crítica Nova, a crítica prática e o formalismo se concentravam, respectivamente,
no significado estético, moral e epistemológico da obra de arte literária, porém, no que
se afirmava ser um meio não-reducionista, isto é, de molde a deixar sem questionamento
a “literariedade” da literatura. Diferentemente da crítica acadêmica mais antiga,
representada por, digamos,
Spitzer e pela escola filológica, que procuravam colocar o crítico “no centro criativo do
artista [...] e recriar o organismo artístico”, os Críticos Novos, os críticos práticos e os
formalistas tentaram manter a obra de arte a certa distância do crítico (e do leitor) de
modo que pudesse tornar-se manifesta a sua integridade como arte. Mas a integridade da
obra como arte consistia, a despeito de todas essas convenções críticas, na extensão com
que a obra de arte se colocava ao lado da vida ou contra ela.
Críticos práticos como Trilling e Leavis poderiam achar que a tarefa do crítico era
“dar testemunho pessoal” aos valores estéticos e morais presentes nas obras estudadas;
no entanto, esses valores eram dignos de “testemunho” somente na medida em que
representavam uma transcendência dos valores da existência humana corriqueira, ou uma
alternativa a eles. Os Críticos Novos poderiam insistir em que a tarefa do crítico era
demonstrar o que “fazia” a obra, e não o que ela “significava”, mas isso devido ao fato
de as obras de arte fazerem coisas que nenhum outro artefato cultural (e pouquíssimos
seres humanos) seriam capazes de fazer. Os críticos formalis- tas poderiam incitar os seus
colegas a empreender a nova descrição da obra de arte de modo a mostrar as suas
similaridades genéricas com outras obras de arte de uma dada tradição, ou mesmo a
revelar as formas de arte populares ou folclóricas que lhes forneceram seus atributos
distintivos e seu poder de persuasão. Isso, contudo, sugeria que o mundo literário era
fechado e se gerava a si mesmo, que pairava acima de outros setores da cultura e tinha
pouca responsabilidade para com eles e que, finalmente, existia por si só - como uma
ideia platônica ou uma forma autotélica de Aristóteles. Assim, a crítica nesse modo pode
ser chamada de Inflacionária, diferindo do modo Elementar por sua autoconsciência
teórica, e do modo Reducionista pelo seu desejo de salvar a esfera da arte de um
embasamento teórico na “mera” vida.
No final da Segunda Guerra Mundial, pode-se dizer que o cenário crítico era
colonizado por representantes de três modos distintivos de crítica: o Elementar, o
Reducionista e o Inflacionário. Os três foram elaborados levando em conta os serviços
que o crítico poderia prestar à literatura e os benefícios que a literatura poderia trazer à
civilização. Mas o tipo de serviços que a crítica poderia prestar à literatura e os métodos
a serem utilizados nessa tarefa eram interpretados de modo diferente. Os representantes
do modo Elementar simplesmente reconheciam a existência da “literatura”, de- finiam-
na por sua diferença dos elementos cotidianos da cultura, e chegavam a admitir que esse
domínio literário poderia ser penetrado pelo crítico e, em última análise, embasado na
“história” da cultura da qual originalmente nascera.
Contra a naiveté do modo Elementar, os críticos Reducionistas lançaram um
ataque, não apenas contra a tradicional distinção humanista entre “literatura” e “vida”,
mas também contra a concepção do estudo humanista em que estava baseada a crítica
Elementar. Os Reducionistas fundamentavam a literatura na vida com grande fúria. Para
eles a literatura não era a antítese da vida, mas uma sublimação de forças mais essenciais,
forças que conferiam à vida humana as suas várias formas. A tarefa do crítico, do modo
como a viam os Reducionistas, era analisar as obras literárias “cientificamente” e
determinar
296 o conteúdo libertador TRÓPICOS
(progressista)
DO DISCURSOou repressor (reacionário) de obras
específicas.
Para os críticos Elementares, esse modo Reducionista constituía uma ameaça à
literatura tão perigosa quanto o tipo de crítica promovido pelos regimes totalitários
contra o qual os Reducionistas haviam lançado o seu desafio. Mas a crítica Elementar
não poderia defender-se dos Reducionistas, porque era inerentemente suspeita de todas
as formas de especulação metateórica. Restava aos críticos Inflacionários -
representados pelos teóricos Novos, práticos e formalistas - defender a “literatura”
contra o reducionismo em todas as suas formas.
Os críticos Inflacionários partilhavam um desejo comum de assentar o estudo e
a crítica literária numa base “objetiva”. Em vez dos métodos impressionistas vigentes
no modo Elementar e dos métodos pseudocientíficos utilizados no modo Reducionista,
os métodos dos críticos Inflacionários deviam ser “objetivos”. Entretanto, ser objetivo
significava tratar a obra de arte como uma coisa-em-si, um artefato especificamente
estético, ligado, de inúmeras formas diferentes, aos seus diversos contextos históricos,
mas, em última análise, regido pelos seus próprios princípios autotélicos. A manifes-
tação extrema da atitude Inflacionária foi a que tomou forma na tentativa dos Críticos
Novos de defender suas reivindicações de autotelismo para a obra de arte. Pouco a
pouco eles cortaram, por interpretativãmente triviais, as relações que o artefato
literário mantinha com o seu contexto histórico, o seu autor e o(s) seu(s) público(s),
fazendo com que se pensasse que a situação crítica ideal era aquela em que um único
leitor sensível, geralmente um Crítico Novo, estudava uma única obra literária na
tentativa de determinar a dinâmica interna da ironia intrínseca dessa obra.
O formalismo situava a obra individual numa dada tradição genérica, mas
insistia - como Northrop Frye o faria posteriormente no seu Anatomy of Criticism, o
locus classicus da crítica arquetípica - em que toda literatura versava sobre outra
literatura ou sobre os mitos religiosos que historicamente antecederam e inspiraram
cada tradição literária discernível. Poder-se-ia argumentar que a crítica prática era mais
responsável historicamente, no sentido de que pelo menos contrapunha a moral ao
impulso puramente estético como origem de toda arte culturalmente significativa.
Porém, na medida em que tendia a identificar a “arte significativa” como a “Grande
Tradição” da prática literária da Europa Ocidental, a crítica prática continuava sujeita
ao ataque ao seu elitismo e provincianismo que o marxismo, a psicanálise e a
sociologia de conhecimento haviam lançado contra a crítica convencional dos seus
predecessores acadêmicos.
O modo Inflacionário da critica era uma extensão de muitos dos princípios que
haviam inspirado o modo Elementar, mas foi mais longe na tentativa de separar a
literatura da vida e a arte do processo histórico de que se originou. A ultrapassada crítica
filológica pelo menos relacionava a literatura à linguagem e às formas culturais, e
imaginava um vínculo entre a obra de arte e o ambiente em que a obra literária era escrita
e posteriormente lida. Já a crítica Inflacionária insistia em isolar a esfera da literatura (se
não da vida) pelo menos na tradição da alta cultura que pairava acima da vida das
civilizações e, em última análise, lhe dava sentido.
Não se pode dizer, sem reservas, que o modo Inflacionário fetichizava a obra de
arte e transformava a crítica num serviço sacerdotal ao objeto assim fetichizado. Mas,
para os críticos que trabalhavam nesse modo, a base de semelhante fetichismo estava
potencialmente presente. Sua tendência a situar a literatura num domínio do ser cultural
que pairava acima da “existência humana comum” e lhe dava sentido, mas que era regido
pelos seus próprios princípios autotélicos, tendia a fazer da literatura um mistério que
somente os iniciados maisABSURDISTA
0 MOMENTO sensíveis na “tradição”
NA TEORIA que fornecia o seu contexto eram
LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA 297

capazes de deslindar. Ademais, era inerente ao modo Inflacionário, desde o início, um


impulso puramente contemplativo que negava implicitamente as reivindicações de
objetividade feitas para a sua prática crítica. O que quer que fosse a literatura, fosse uma
obra singular, a tradição dentro da qual a obra tinha o seu ser, ou o gênero do qual era
um tipo-espécie, ela continuava sendo uma coisa verdadeiramente “diferente” da mera
vida. Nessa tendência de dotar a arte de um valor que a própria vida comum jamais
poderia reivindicar, os críticos Inflacionários pareciam insinuar que, se se tivesse de fazer
uma escolha entre elas, a arte deveria prevalecer sobre a vida.
Era a inflação da arte às custas da vida que despertava a ira dos críticos
existencialistas do período da guerra. Fartos de ideologia em todas as suas formas, eles
consideravam o formalismo difuso do modo Inflacionário insensível às necessidades e
desejos humanos que inspiravam a criatividade artística. Nessa objeção, lembravam os
praticantes da crítica no modo Reducionista; e isso explica a tendência de muitos
existencialistas da primeira época a se aliarem aos marxistas, psicanalistas e sociólogos
do conhecimento. Mas eles - ou, pelo menos, Sartre, Camus e os seus seguidores -
estavam igualmente receosos das tendências Reducionistas dessas escolas
antiacadêmicas de crítica. E insistiam em trazer à baiía, uma vez mais, as questões básicas
que todos os teóricos da literatura, inclusive os marxistas, os psicanalistas e outros,
haviam admitido como verdadeiras, ou simplesmente não-formuladas, questões como
“Por que escrever?”, “Por que ler?” e “Por que criticar?”.
Dessa maneira, na obra de Sartre, é difícil estabelecer a distinção entre escrever e
fazer crítica; uma atividade é indistinta da outra. Tanto o escrever como o criticar são
pensados como formas de preencher a lacuna não apenas entre literatura e vida, mas
também entre arte e obra, pensamento e ação, história e consciência. Como a escrita em
geral, a crítica era considerada ação e não contemplação, violenta e não pacífica, agressão
e não generosidade - embora Sartre, como Camus, desejasse que ela não fosse nada disso.
Em todo caso, sob a pressão da crítica existencialista que via na sociedade um inferno e
na cultura um purgatório, o status da literatura e da crítica foi questionado radicalmente.
E as ações da fenomenologia e do estruturalismo podem ser compreendidas como tipos
pós-existencialistas de prática crítica que pretendiam levar às últimas consequência s a
dúvida radical do existencialismo e descobrir se ela era ou não justificada.
No entanto, essa dúvida radical não é uma dúvida simplesmente literária ou crítico-
literária: é uma dúvida ontoiógica e epistemológica, que encontra expressão no impulso
fenomenológico para “pôr entre parênteses” a experiência de toda consciência
determinada a fim de chegar a uma noção da consciência-em-geral. Nessa tentativa, a
atividade da leitura desfruta de um lugar privilegiado de modelo da atividade da
consciência na medida em que ela enfrenta um mundo estranho e tenta conferir-lhe
sentido.
Vernon Gras, na introdução à sua antologia, salienta que, se o existencialismo
existe de algum modo hoje em dia, se deve compreendê-lo como um “momento” na
evolução das duas escolas críticas que afirmam fornecer soluções para a problemática
que ele elabora: a fenomenologia e o estruturalismo. Esses dois movimentos,
considerados como molduras para escolas ou convenções específicas de crítica literária,
compartilham a tendência a elevar a consciência humana à categoria fundamental do Ser-
em-geral (donde o seu fascínio não apenas por Hegel mas também por Heidegger) e a
interpretar a literatura como um caso particular daquela “linguagem” que é o instrumento
privilegiado da consciência em sua tarefa de conferir sentido a um mundo inerentemente
falto dele. Essa elevação da consciência à condição de categoria fundamental do Ser,
aliada à noção de que a linguagem em geral representa a chave fundamental para a
natureza da consciência, explica a tendência dos fenomenologistas e estruturalistas a, de
um 298
lado, elevar a crítica a uma forma solene
TRÓPICOS de arte, igual, se não superior, à poesia, e,
DO DISCURSO
de outro, rebaixar a “literatura” a uma condição inferior à da “linguagem-em-geral”.
À consumação do programa fenomenológico-estruturalista podemos denominar o
modo de crítica Generalizado, “generalizado” na medida em que todos os fenômenos
não são reunidos numa classe única de fenômenos e, desse modo, “reduzidos” a
manifestações do conjunto favorecido, mas, antes, colocados no mesmo nível ontológico
como manifestações do misterioso poder humano de atribuir sentido às coisas por meio
da linguagem. Esse poder de atribuir sentido é misterioso na medida em que é concebido
preceder, lógica se não ontologicamente, todas as tentativas do sujeito que pensa, que
sente e que quer determinar o sentido do sentido, ou a condição do sentido no mundo. A
linguagem ou fala se investe misteriosamente do poder de criar sentidos e, ao mesmo
tempo, frustrar toda tentativa de chegar
/ ' * o,
0 MOMENTO ABSURDISTA NA TEORIA UTERARIA CONTEMPOR ANEA v ^JQrl.

a um sentido definitivo. Assim considerada, a expressão literária não pode


reivindicar uma condição privilegiada no universo dos atos da fala; é apenas um
tipo de ato de fala entre os muitos que constituem a capacidade humana para criar,
manipular e consumir signos. Mas, se a expressão literária não pode reivindicar
uma condição particular, a crítica, considerada uma ciência da semiologia, não
apenas pode reivindicar a condição de ciência das ciências ou arte das artes, como
efetivamente o faz. Pois a semiologia é o estudo do fato paradoxal segundo o qual,
no próprio ato de investir as coisas de sentido, a humanidade obscurece, a partir de
si mesma, o seu próprio sentido único possível.
Alguns estruturalistas, principalmente Lévi-Strauss e seus seguidores,
afirmam estar em busca de uma ciência universal da humanidade, da cultura ou da
mente. Na verdade, porém, eles negam a possibilidade de uma ciência universal da
humanidade, da cultura ou da mente, graças à franqueza com que insistem na
unicidade de todas as formas de sentido que os homens, nos seus trajetos históricos,
conferem ao mundo que habitam. Eles parecem, de maneira igualmente paradoxal,
comprazer-se em revelar que a ciência do homem, do humano, à qual professam
aspirar, é efetivamente impossível, dada a natureza do objeto escolhido dessa
ciência, isto é, a linguagem, e a natureza da única técnica capaz de analisar esse
objeto, o bricolage, que está menos interessada na coerência e na consistência
lógica (os atributos de toda ciência conhecida na história) do que na improvisação
e atenção à fun- Ção do fenômeno no seu local espácio-temporal-cultural
específico.
Paradoxos como esses indicam uma ambiguidade fundamental nos
postulados capacitadores da “atividade estruturalista”. Essa ambiguidade decorre
do impulso simultâneo para afirmar a autoridade daquela convenção científica
positivista que é o inimigo secreto da atividade da maioria dos estruturalistas,
reivindicando ao mesmo tempo para os próprios estruturalistas a condição de
intérpretes privilegiados do que são em toda a parte a humanidade, a cultura, a
história e a civilização, para não mencionar a literatura, a arte e a linguagem. Essa
reivindicação dupla e autocontraditória dos estruturalistas irrompe periodicamente
na forma de impulsos de autone- gação, manifestados na tendência de negar que
exista algo como uma filosofia ou movimento estruturalista, de um lado, e no desejo
de negar o valor da ciência, da cultura, da civilização e até da própria “humanidade”
(como em Foucault), de outro.
Considerado desse modo, pode-se dizer que o estruturalismo é o que
Northrop Frye chamaria de “projeção existencial” da teoria da natureza bifurcada
da realidade que reside na definição saussuriana original de fala como uma
oposição entre langue e parole. Qualquer que seja o seu valor para os linguistas
técnicos, essa definição de fala, quando traduzida para uma teoria geral da cultura
(como em Lévi-Strauss), da literatura (como em Jakobson), da mente (como em
Lacan), das ideias (como em Foucault) ou dos signos (como em Barthes), só pode
gerar contradições teóricas inso-

BIBLIOTECA ~ TODíaS*
GAMPtfiB DJS BAIJBÂ'
lúveis. Contradições desse tipo foram esmiuçadas por Jacques Derrida, o mago atual do
cenário intelectual parisiense, que define como seu objetivo querer postar-se “num ponto
em que eu não saiba mais para onde vou” (“Structure, Sign and Play in the Discourse of
Human Sciences”, em Macksey
the 300 e Donato,
TRÓPICOS p. 267). Mas esse “eu” que já não sabe
DO DISCURSO
para onde “ele” está indo é um importante indicador do lugar aonde esse modo de crítica
tenciona ir. Sinaliza a hipostatização do “eu” crítico, a dissociação do crítico de todo
empreendimento coletivo, a elevação da crítica à condição de super- ciência que é ao
mesmo tempo puramente subjetiva e propensa a reivindicar a significação universal. Não
é por acaso que Nietzsche é invocado como o paradigma desse programa crítico; ele é o
arquétipo da postura crítica que celebra o sol i ps is mo como atitude e a vontade de poder
como método.
E no contexto de ideias como essas que podemos compreender o significado
histórico do momento Absurdista na crítica literária contemporânea. O estruturalismo
“generaliza” o domínio dos textos literários, afirmando assim tacitamente o seu valor
compartilhado, mas situa esse valor no seu atributo mais obviamente compartilhado - a
sua condição de artefatos literários. Isso não significa uma redução nem uma inflação,
porque o texto literário é tomado exatamente como o que parece ser, isto é, um sistema
de signos. Com efeito, em vez de considerar o texto literário um epifenômeno ou uma
manifestação de algum nível mais básico da consciência ou processo humano, o
estruturalismo estende a noção do texto a todos os sistemas de signos, dos rituais
religiosos ao esporte, aos hábitos alimentares, à moda, às práticas inumatórias, ao
comportamento econômico e a tudo o mais. Todos os fenômenos culturais são exemplos
da capacidade humana para produzir, trocar e consumir os signos. Conseqüentemente, a
interpretação dos fenômenos culturais é considerada meramente um caso particular do
ato de ler no qual a manipulação e a permuta dos signos é levada a efeito de modo mais
consciente, o ato de ler textos literários.
Em vez de ver no texto literário um produto de processos culturais mais
fundamentais do que a escrita, a escrita é considerada o análogo básico de todos aqueles
atos de significação pelos quais se confere sentido a uma existência que de outro modo
não teria sentido, donde a aguda melancolia da atividade estruturalista; todos os seus
“tropiques” são “tristes” porque para ela todos os sistemas culturais são produtos da
imposição de um sentido puramente fictício a uma realidade que de outro modo careceria
de sentido. Todo sentido deriva do poder da linguagem de cativar a inteligência com a
promessa de um sentido que a análise sempre pode demonstrar ser arbitrário e, na
verdade, espúrio. Os livros sempre nos frustram, acreditam os estruturalistas, porque seu
caráter fictício ressalta diretamente para a inteligência crítica capaz de discernir a sua
condição de mero sistema de signos. E tudo o mais na cultura também nos frustra, à
medida que é analisado e revelado como um mero sistema de signos. De que modo pode
um determinado sistema de signos - como a literatura - reclamar algum valor particular
se todas as coisas, até mesmo a “natureza”, em última análise, não passam de um sistema
de signos? O estruturalismo não pode responder a essa pergunta porque sua resposta
também seria apenas um sistema de signos - portanto, tão arbitrária quanto a experiência
da cultura que inspirou a pergunta.
No cerne do estruturalismo, pois, reside uma percepção da natureza arbitrária do
empreendimento cultural total e, afortiori, do empreendimento crítico. A crítica
Absurdista, que surgiu originariamente no pensamento de Paulhan, Bataille, Blanchot e
Heidegger como uma doença até à morte com a linguagem, apodera-se dessa noção de
arbitrariedade e, no pensamento de Foucault, Barthes e Derrida, leva-a à sua conclusão
lógica. Esses pensadores fazem da arbitrariedade do signo uma regra e do “livre jogo” da
significação um ideal.
Ouçamos Derrida falar dos problemas fundamentais da história da metafísica:
O acontecimento 0 MOMENTO ABSURDISTA
que chamei NA TEORIA
de ruptura, o LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA
dilaceramento 301
a que aludi no começo desta preleção,
provavelmente se teria produzido quando a cstruturalidade da estrutura teve de começar a ser pensada, quer
dizer, repelida, e é por isso que eu disse que esse dilaceramento era repetição, em todos os sentidos da palavra. A
partir daí tornou-se necessário pensar a lei que comandava, por assim dizer, a aspiração ao centro na constituição
da estrutura e o processo de significação que prescreve os seus deslocamentos e as suas substituições por essa lei
da presença central - mas uma presença central que nunca foi ela mesma, que sempre foi deportada para fora de
si no seu substituto. O substituto não substitui coisa alguma que de certo modo lhe tenha preexistido. A partir daí,
foi provavelmente necessário começar a pensar que não havia centro, que o centro não podia ser pensado na
forma de um estar-presente, que o centro não tinha lugar natural, que não era um lugar fixo, mas uma função,
uma espécie de não-lugar no qual se fazia um numero infinito de substituições de signos. Foi nesse momento que
a linguagem invadiu a problemática universal; o momento em que, na ausência de um centro ou origem, tudo se
tornava discurso - desde que possamos chegar a um acordo sobre esta palavra isto é, todas as coisas se tornavam
um sistema em que o significado central, originário ou transcendental, nunca está absolutamente presente fora
de um sistema de diferenças. A ausência de significado transcendental amplia indefinidamente o domínio e o jogo
recíproco ou significação (“Structure, Sign and Play”, cm Macksey e Donato, p. 249).

A filosofia de Derrida - se é que se pode legitimamente chamá-la assim - não


representa senão a hipostatização da teoria do discurso que fundamenta e sanciona a
atividade estruturalista. Derrida considera a própria filosofia como uma transcendência
da problemática estruturalista, mas ele está errado: ela é sua fetichização. Para ele o
conceito saussuriano de fala é uma dialética de langue eparole e o contraste lévi-
straussiano/jakobsoniano entre o pólo metafórico e o metonímico do uso da linguagem
são as categorias fundamentais do Ser. Derrida pode criticar a Lévi-Strauss a
incapacidade de des- mitologizar o seu próprio pensamento, porém não é menos mitólogo
quando reflete sobre a natureza do que chama de “a interpretação da interpretação”.
Assim, por exemplo, ele escreve que “há [...] duas interpretações da interpretação [...].
Uma procura decifrar, sonha decifrar uma verdade ou uma origem que escapam ao livre
jogo e à ordem do signo, e sente como um exílio a necessidade de interpretação. A outra
[...] afirma o livre jogo e tenta superar o homem e o humanismo. [...] [e] não procura na
etnografia [...] a ‘inspiradora de um novo humanismo”’ (ibid., pp. 264-265). No que diz
respeito a ele próprio, Derrida acha que não se trata de escolher entre elas, porque

[...] em primeiro lugar [...] encontramo-nos aqui numa região [...] em que a categoria da escolha parece
particularmente trivial; e, em segundo lugar, porque devemos primeiro tentar pensar o solo comum e a différence
dessa diferença irredutível. Existe aqui um tipo de questão, chamemo-la histórica, cuja concepção, formação,
gestação e trabalho hoje apenas entrevemos. Admito que emprego tais palavras com os olhos voltados para as
operações da procria- ção - mas também para aqueles que, numa companhia da qual não me excluo, desviam os
olhos em face do ainda inominável que se anuncia e que só pode fazê-lo, como se impõe toda vez que está iminente
um nascimento, sob a espécie da não-espécie, sob a forma informe, muda, infante e terrificante da
monstruosidade (ibid., p. 265).

Aqui, a crítica se converte na celebração de uma “monstruosidade” ■que ainda


não nasceu e é, portanto, inominável. O que poderia ser mais Absurdista? Não
simplesmente absurdo, pois o meramente absurdo é tão-só aquilo que não pode ser
pensado. Derrida não apenas pensa o impensável como o transforma num ídolo, no seu
próprio equivalente daquele mana que Lévi-Strauss define como sendo “ao mesmo
tempo força e ação, qualidade e estado, substantivo e verbo; abstrato e concreto,
onipresente e localizado. [...] quase se poderia dizer que a função das noções do tipo
mana é de opor- se à ausência de significação, sem acarretar por si mesma nenhuma
significação particular” (citado por Derrida em ibid., pp. 261-262). Derrida consi- dera-
se um crítico do estruturalismo (ver ibid., p. 268), mas, como ele caracteriza seu próprio
ponto de vista, é menos o critico do que a vítima desse ponto de vista. Ele é o minotauro
aprisionado no labirinto hipostatizado da linguagem do estruturalismo. Como ele mesmo
admite,
ignoro agora o que é a percepção, e não creio que existe algo como percepção. Percepção é precisamente um
conceito, um conceito de uma intuição ou de um dado que sc origina da própria coisa, presente por sua vez no
302 TRÓPICOS DO DISCURSO
seu sentido, independentemente da linguagem, do sistema de referência. E acredito que a percepção é
interdependente com o conceito de origem e de centro e, por conseguinte, o que quer que ataque a metafísica da
qual falei também ataca o próprio conceito de percepção. Não crcio que haja alguma percepção (ibid., p. 272).

Aqui, a crítica é concebida literalmente cega; porém, em vez de se ressentir dessa


cegueira, ela se compraz nela e, como Edipo, celebra-a como um sinal da sua autoridade
para profetizar. Superficialmente, em Derrida, a critica chegou, pelo menos no momento
Absurdista, à condição de pura farsa em que afirma o seu próprio “livre jogo”, de um
lado, e a sua “cegueira”, de outro.
Contudo, há um momento positivo na celebração desse carnaval da critica; ele é
literalmente uma “iluminação da carne”, uma “desrealização” do materialismo da
cultura. Num ensaio intitulado “Mitologia Branca”, destinado a responder à pergunta “O
que é metafísica?” (uma questão heidegge- riana), Derrida sugere que o empreendimento
crítico está fundamentalmente ligado ao problema do valor numa economia de troca (NLH
6, n? 1 [outono de 1974]: 16-17). Ele reduz o problema da troca ao problema linguístico
da natureza da metáfora.
Entretanto, diferentemente de Marx, cuja análise da base figurativa do fetichismo
do ouro no primeiro capítulo de O Capital ele cita, Derrida não conclui que a fuga do
fetichismo do ouro pode ser realizada pela descoberta dos modos nos quais a própria
linguagem fascina o poder humano de ver através do figurativo o sentido literal do “valor-
dinheiro”. Ao contrário, Derrida mostra de que forma todo “ver através” é impossível
(ibid., pp. 18 e ss.). Ver através do figurativo o sentido literal de qualquer tentativa de se
apoderar da experiência na linguagem é impossível, entre outras razões, porque não há
uma “percepção” pela qual se possa distinguir a “realidade” das suas diversas figurações
linguísticas e do conteúdo-de-verdade relativo de figurações rivais discernidas (ibid., pp.
44-46). Há apenas figuração - daí não haver qualquer posição privilegiada vinda do
interior da linguagem pela qual a linguagem possa ser questionada. Ser, em si mesmo, é
absurdo. Portanto, não há um “sentido”, mas apenas o balé espectral de “sentidos” al-
ternativos, fornecidos por diversos modos de figuração. Estamos presos a uma série
infinita de traduções metafóricas de um universo de sentido fornecido figurativamente
para outro. E todos eles são igualmente figurativos.
Mas essa disjunção de sentido do Ser revela o tropo privilegiado sob o qual ocorre
o próprio ato de filosofar (ou de antifilosofar) de Derrida. Esse tropo é a catacrese, tropo
irônico por excelência. Segundo ele, é contra a absurda imposição de sentido ao sem-
sentido que se levantam todos os outros tropos (metáfora, metonímia e sinédoque). E é
contra o absurdo impulso para dotar de sentido o sem-sentido que se desenvolve o próprio
ato de antifilosofar de Derrida. Entretanto, como as vítimas da “metáfora” a quem ele
critica, Derrida também se revela vítima de um “desvio” linguístico. Em vez de “projetar
existencialmente” no Ser os tropos da metáfora, da metonímia e da sinédoque, o seu tropo
privilegiado, o seu tropo dos tropos, é a catacrese (abusio). A “boca cega” não apenas
fala; ela fala ininterruptamente acerca da própria “cegueira”. E devemos indagar: Não
seria esse discurso sem fim a respeito da própria cegueira uma projeção da elevação da
parole acima da langue, uma defesa da fala contra a escrita e contra a audição?
Os oráculos são notoriamente ambíguos. Porém, a oracularidade é um sinal
inequívoco de uma condição de cultura e, na medida em que obtém aceitação num
determinado círculo de trabalho intelectual, um sinal inambí- guo de esterilidade. Não
admira que o “monstruoso” seja celebrado e o “sem-sentido” deificado. Quando a obra
em si perde o seu sentido, por que a obra intelectual deveria ser eximida de tirar as
consequência s da sua própria condição mutilada?
Percorremos0 MOMENTO
um longoABSURDISTA NA TEORIA
caminho, emLITERÁRIA CONTEMPORÂNEA
pouquíssimo 303
tempo, desde o nosso tópico
original, que era a condição atual da crítica literária. E o nosso discurso se viu
contaminado pela doença daqueles cuja condição desejávamos explicar. Poder-se-ia
facilmente descartar a obra dos críticos Absurdistas por ser apenas um outro exemplo da
cultura de mandarim em que ela floresce. Eles são absurdos, e a sua obra é demasiado
valiosa para justificar a tentativa de ver através deles os problemas culturais revelados
por sua popularidade. Mas não são incompreensíveis; e tampouco sua obra é
insignificante.
Os críticos Absurdistas representam um momento no empreendimento crítico que
estava potencialmente presente o tempo todo, presente, na verdade, desde a época em
que Platão contrapôs o mundo das ideias ao mundo das formas e Aristóteles contrapôs a
vida contemplativa à vida ativa como o fim em relação aos meios. Esse momento
Absurdista estava potencialmente presente desde o começo do moderno humanismo
europeu, com sua tendência gnóstica, sua celebração da erudição como um fim em si
mesmo, sua concepção de leitores privilegiados que usufruem da condição de sacerdotes
encarregados de interpretar o livro da vida para aqueles que viviam, trabalhavam e
morriam na vida “comum”. Estava potencialmente presente na moderna filosofia
ocidental, com sua insistência em dizer que as coisas nunca são o que parecem ser, mas
são manifestações de essências numênicas cuja realidade deve ser suposta, mas cujas
“naturezas” jamais podem ser conhecidas. E estava presente na moderna crítica literária
pós-romântica, com suas pretensões a objetividade, exatidão científica e sensibilidade
privilegiada.
Na crítica Absurdista, o dualismo do pensamento ocidental e o elitismo da prática
social e cultural do Ocidente voltam à sua casa. Hoje em dia o dualismo é hipostatizado
como a condição do Ser-em-geral e a falta de sentido é adotada como meta. E o elitismo
é colocado à sua testa. Quando ao mundo é negada toda substância e a percepção é cega,
quem deve dizer quem são os escolhidos, e quem são os condenados? Em que bases
podemos afirmar que os insanos, os criminosos e os bárbaros estão errados? E por que se
deveria conceder à literatura uma posição privilegiada entre todas as coisas criadas pelo
homem? Por que a leitura haveria de ser importante? E por que deveriam os críticos
criticar com palavras quando aqueles que possuem o verdadeiro poder criticam com
armas? Os críticos Absurdistas formulam tais questões e, ao fazê-lo, colocam os críticos
Normais na obrigação de fornecer as respostas com as quais eles próprios não conseguem
atinar.
ÍNDICE REMISSIVO
Absurdismo, na crítica literária, 285-306. Blanchot, Maurice, 290.
Aquino, Santo Tomás de, sobre os tipos dc alma, Bloom, Harold, sobre a interpretação, 14-15, 27.
185. Boas, Franz, sobre o Nobre Selvagem, 212.
Arcaísmo, sua relação com o primitivismo, 192-194. Brown, Norman O., 52, 57; sobre a história como fi-
Aristóteles, sobre os tipos de humanidade, 190. xação, 52.
Auerbach, Erich, 177, 258. Buffon, G. L. L. de, sobre a degeneração, 211.
Agostinho de Hipona, Santo, 169-170; sobre os Burckhardt, Jacob, 47-48, 56, 83-84; sobre o indivi-
monstros, 184. dualismo, 57; ironista, 80; satirista, 80 n. 28. Burke,
Edmund, sobre a Revolução Francesa, 77, 78 n. 26.
Bacon, sir Francis, 35. Burke, Kenneth, sobre os tropos, 18, 91-92, 148.
Balzac, Honoré de, 61.
Bárbaros, Nietzsche sobre os, 202. Cage, John, 58.
Barthes, Roland, sobre a desmitologização, 293. Cam progenitordo Homem Selvagem, 181, 184.
Bataille, Georges, 289. Camus, Albert, 50.
Bayle, Pierre, sobre a história, 158. Cassirer, Ernst: sobre a autoridade da ciência, 42;
Benn, Gottfried, sobre a história, 49. sobre Herder, 156; influência de, sobre Foucault,
Bergson, Henri, 48, 256.
Bernheimer, Richard, sobre o Homem Selvagem, Causalidade na historiografia, 70.
176, 189. Ceticismo no Iluminismo, 165.
Berthoff, Werner, 75. Chevalier, Louis, 215.
Ciências humanas, Foucault sobre as, 273-275.
Coligação, Walsh sobre a, 83.
Collingwood, R. G.: sobre a estória na escrita histó-
rica, 100-102; sobre a “imaginação construtiva”,
100; sobre a interpretação histórica, 76-77.
Compreensão: e discurso, 18; teoria da, 34-35; e
J
tropologia, 34.
Conrad, Joseph, 200-1.
Consciência: processos de, 18-20; teorias da, 34.
Contextualismo: na explicação histórica, 83; Pcpper
sobre o, 83.
Crítica literária: conceito de, por Sartre, 299-300;
disciplina, 285-86; e fetichismo do texto, 288; e
teoria da linguagem, 288; tipos de, 294-306.
Croce, Benedetto, 48; sobre a distinção entre teoria
e filosofia da história, 244-245; filósofo da história,
242-243; sobre a natureza da ciência, 249-251; sobre
tipos de historiografia, 67-69; sobre Vico como
filósofo da história, 230-232, 241,243-252.
Crônica e 308
estória, 126-128. TRÓPICOS DO129;
124, DISCURSO
Foucault sobre, 271; Todorov sobre, 28;
Cultura, evolução da, em Vico, 230-232.
tropologia na obra de, 27-28.
Dante, 185. Friedell, Egon, 281.
Darwin, Charles: crítico do pensamento analógico, Frye, Northrop, 292, 298, 301-302; sobre enredos, 78-
147; estilo dc, 147*151; tropos em, 147-150. 79; sobre história e mito, 73-74, 143; sobre mimese,
Degeneração, De Pauw sobre a, 211-12. 104; sobre mito, 78-79 n. 27, 98-99, 197.
De Pauw, Cornelius, 211.
Derrida, Jacques, 302-305; ironista, 305; e Marx, Gallie, W. H„ 170. .
305; Said sobre, 289. Gay, Peter, 160-161.
Diataxe, 17. Gershenson, M. O., 49.
Diderot, Denis, sobre o Nobre Selvagem, 213. Gibbon, Edward, 74.
Dicgese, 17. Gide, André, 46-47.
Diithey, Wilhelm, 48, 258. Goldmann, Lucien, sobre ideologia, 88.
Discurso: e compreensão humana, 18-20; t cons- Gombricb, E. H., 59, 258.
ciência humana, 18-20; etimologia do, 16; como Gras, Vernon, 300.
gênero, 17; e tropologia, 14, 26.
Dodds, E. R., 177-178. Hartman, Gcoffrey, 111, 291-292.
Droysen, J. C.: sobre a poética da historiografia, Hegei, G. W. F., 23, 26, 34, 84, 172; antecipado por
140; sobre tipos de historiografia, 67-68,94-95. Vico, 221-222, 224; filosofia da história de, 61- 63;
Durkheim, Emile, 36,48. sobre a história como arte literária, 69; sobre
processos de consciência, 18; sobre tipos de his-
Eliot, George, 44-45. toriografia, 67 n. 3, 69 n. 10, 94-95.
Emprego de Iropos e silogismo, 16. Hempel, Car!, 42, 70 n. 11.
Enredo: Frye sobre o, 78-79; na historiografia, 75 Herder, J. G. von: Cassirer sobre, 156; filosofia da his-
n.21, 101-103, 109-11, 123-24; e tropos, 113- 114. tória de, 166-167; método histórico de, 155-156,
Escola de Yale, 292. História: como arte, 39, 55, 82 n. 30, 139; Bayle sobre
Estado selvagem, conceito de: na Idade Média, 185- a, 158; Benn sobre a, 49; e ciência, 39, 90; e ficção,
194; no pensamento grego, 177; no pensamento 104-105, 115, 137-139; e filosofia da história, 143;
hebraico, 177-184; no Renascimento, 194-195. Foucault sobre a, 267-268; e hístori- cismo, 118;
Estilo na narrativa, 114. hostilidade à, 40; c ideologia, 121; Lévi-Strauss
Estória: e crônica, 99-101, 126-128; e enredo, 77, sobre a, 121; e meta-história, 90, 154; e mito, 73,
100-103, 127; explicação da história, 79; e mito, 77. 143; e poesia, 114-115; e realismo, 105-106; Valéry
Estruturalismo, 13 n.l, 253-255, 301-303. sobre a, 49.
Explicação na história, 79-86. Historiador: reação do, à Primeira Guerra Mundial,
48; como é representado na literatura moderna, 43,
Fato na história, 150; Lévi-Strauss sobre o, 71-72. 53.
Fetichismo, 216; definição, 204-206; Marx sobre o, Historicismo, 134-35; distinto de história, 118; Iggcrs
do ouro, 205-206; no tema do Nobre Selvagem, 203- sobre o, 117 n.l, Mandelbaum sobre o, 118 n. I,
217. Popper sobre o, 117 n. 1, 118 n. 3.
Ficção: c história, 137-140; e mito, 372, 199-200; Historiografia: análise retórica da, 124; Croce sobre a,
Vico sobre a, 162. 68-69, 94-95; Droysen sobre a, 67; cpoca áurea da,
Figuração e narrativa, 121-122; em historiografia, 61; explicação na, 81-86; c figuração, 132-136; e
132-135. filosofia da história, 118, 132-133; forma analítica
Filosofia da história: de Balzac, 62; de Foucault, 279- da, 156; Frye sobre a, 73-75; Hege! sobre a, 94-95;
282; de Hegel, 61-62; e historiografia, 118, 132-133, Hegel sobre a, como arte literária, 69; e ideologia,
143; Vico sobre a, 234-235. 87-90; no Iluminismo, 153; ironia em, 110; Lévi-
Foucault, Michel: sobre os ciclos da civilização oci- Strauss sobre a, 71-73, 106-107; e linguagem, 143-
dental, 258; sobre as ciências humanas, 264-283; 44; Mably sobre, 159; mecani cismo em, 84-85;
comparado com Cassirer, 256; conceito de “ar- Nietzsche sobre a, 67-69, 94-95; níveis de sentido
queologia” de, 257-283; crítica de, por Piaget, 274; na, 127; noção marxista dc, 145; organicismo' em,
emprego de tropos em, 275-279; sobre a época 84-85; Popper sobre a, 118; e psicoterapia, 103-
clássica, 265-266, 269; e estruturalismo, 253-255; 104; e
filosofia da história de, 280-281; sobre Freud, 271;
sobre a história como disciplina, 267-268; e Lévi-
Strauss, 282-283; sobre a linguagem, 259-261, 293;
sobre a loucura, 172, 26S-274; método de, 261-283;
sobre a “morte do homem”, 256; sobre Nietzsche,
268, 280-281.
Freud, Sigmund, 34; sobre a atividade onírica, 26- 27,
ÍNDICE REMISSIVO 309

realismo literário, 140; romântica, 82; e tropologia, 92- Mably, abbé de, sobre escrita histórica, 159.
94, 133-134,141-142, 144-145; Voltaire sobre a, Malraux, André, 49.
159-160. Mandelbaum, Maurice, sobre historicismo, 118 n. 1.
Hitler, Adolf, 50. Mannheim, KarI, sobre ideologia, 87-88, 121.
Homem Selvagem: Santo Agostinho sobre o, 182- 1S4; Marx, KarI: comparado com Vico, 220-221; O 18
ameaça às civilizações, 174; antítipo do homem Brtwiário de Luís Bonaparte, 29, 86-87; e Derrida,
social, 194; atributos do, 185-189; Bernheimer 305; sobre fetichismo do ouro, 205; Manifesto
sobre o mito do, 189, 194, 197-198; conceito grego Comunista, 29: como mecanicista, 84; sobre
de, 190-191; conceito de, interiorizado, 172-173; mercadoria, 206 n. 4; sobre primitivos, 202; sobre
descendente de Cam, 181; mito, 173, 176; proletariado, 215; sobre a Revolução Francesa, 77-
Montaigne sobre o, 198- 199; e motivo do Nobre 78; tropologia em, 18, 28-29.
Selvagem, 203-204; mudez do, 185; produto da Mecanicismo, 84-85.
corrupção da espécie, 181; Rousseau sobre o, 202; Mercadoria, Marx sobre, 206 n. 4.
Sachs sobre o, 193- 194; no século XX, 201; em Metáfora: Burke sobre, 92; emprego de, por Foucault,
Shakespeare, 195; Vico sobre o, 196. 275; como modo de consciência, 144; em narrativas
Hughes, H. Stuart, 55. históricas, 107-108, 132; Vico sobre, 227.
Huizinga, Johann, 281. Meta-história, 66-67; e história, 66 n. 2,90,98, 154.
Hume, David, ironia de, 165-167. Metonímia: Burke sobre, 92; emprego de, por
Foucault, 276; como modo dc consciência, 18- 19;
Ibsen, Hcnrik, e representação dos historiadores em em narrativas históricas, 145; Vico sobre, 228-229.
Heááa Gabler, 45-46. Michelet, Jules, 54, 77, 78 n. 26, 85; ideologia de, 88.
Ideologia; e historiografia, 87-90; Mannheini sobre, 87- Miller, J. Hillis, 288.
88; de Michelet, 88; e objetividade, 88; de Mimese, 17; Frye sobre, 98-99; em narrativas histó-
Tocqueville, 88. ricas, 105.
Iggers, Georg, sobre o historicismo, 119 n. 1. Mito: e estória, 77; e ficção, 140, 200; Frye sobre, 78 n.
Interpretação: Bloom sobre, 15; Collingwood sobre, 27, 98-99, 143; e historiografia, 143-144; Lévi-
76; Hartman sobre, 291-292; na história, 65-66, 89- Strauss sobre, 75.
90; e relativismo, 89; e tropologia, 94. Modo de consciência: ironia como, 19; metáfora como,
Ironia: cmBurckhardt, 80; Burke sobre, 93; emprega 18; metonímia como, 18-19; sinédoque como, 19.
de, cm Foucault, 278-279; em Derrida, 305; em Montaigne, Michel de, 198-199.
Hume, 165; como modo de consciência, 19; em Mulher Selvagem na Idade Média, 188.
narrativas históricas, 110; Taylor como exemplo
dc, 125-132; em Tocqueville, 146; Vico sobre, 229- Narração, 56, 70-71, 77, 144.
230. Narrativa: como explicação, 70 n. 12; e estilo, ll4;e
figuração, 121-123; e mimese, 105.
Jakobson, Roman: sobre distinção entre prosa e poesia, Nemrod: como Homem Selvagem, 182; Santo Agos-
112-113; teoria da linguagem dc, 119-122; sobre tinho sobre, 182,
tropos, 27-28. Nicolini, Fausto, 241-242.
Jó, 179-180. Nietzsche, Friedrich, 20, 23, 26, 34, 48, 60, 62, 63, 164;
João de Hollywood, 207. sobre bárbaros, 202; comparado com Foucault,
279-280; Foucault sobre, 268; sobre história, 44,
Kant, Immanuel, 166-167.
153-154; Nascimento da Tragédia, 44; sobre tipos de
Kantismo, 37.
historiografia, 68-69, 95; Uso e Abusa da História,
Kermode, Frank, 200.
44.
Klages, Ludwig, 48.
Nobre Selvagem: antítese do homem nobre, 213- 214;
Leibniz, G. W. von, conceito de história de, 155, Boas sobre o, 212; e le ban sauvage, 214 n. 17;
Lessing, Theodor, 281. Diderot sobre o, 213; ideia do, no século XVIIí,
Lévi-Strauss, Claude, 173; sobre a história como dis- 169; e o motivo do Homem Selvagem, 203-204;
ciplina, 119-121; sobre a narrativa na história, 35- Rousseau sobre o, 213.
Nova Crítica, 287-288.
36, 71-72, 107-108; relação de Foucault com, 282-
283; teoria da linguagem de, 120-121; Ortega y Gasset, José, 49.
Lineu, Carl, sobre tipos de humanidade, 209 n. 8.
Paulo, São, sobre heresia, 170.
Linguagem: e critica literária, 288; Foucault sobre,
Pedersen, Johannes, 178.
258-261, 293; e historiografia, 111-112, 143- 144;
Peirce, C. S., 105.
Vico sobre, 225,238.
Pepper, Stephen, 81; sobre hipóteses de mundo, 81 n.
Lovejoy, A. 0„ 290.
29.
Lõwíth, KarI: sobre Burckhardt, 80 n. 28; sobre Vico,
Piaget, Jean, 34; crítico de Foucault, 274; teoria da
224.
consciência, 19-26; tropologista, 24.
Lukács, Georg, 36, 221.
Pirronismo,310no pensamento histórico do século TRÓPICOS DO DISCURSO
Urdidura de enredo na escrita histórica; de
XV1I1, 159. Burckhardt, 85; de Marx, 86; de Michelet, 85; de
Popper, KarI R.: sobre historicismo, 117 n. 1, 118 n. Ranke, 85; de Tocqueville, 86.
3, 124, 134; sobre historiografia, 118.
Poulet, Georges, sobre leitura, 289-291. Valcry, Paul, sobre história, 49.
Primitivismo, e arcaísmo, 192-194. Vico, Giambattista, 26; Ciência Nova, 161 -163, 219;
Primitivos: Freud sobre, 202; Marx sobre, 202. comparado com Marx, 220-221; comparado com
Progresso, ideia de, 166. Piaget, 20; crítico do cartesianismo, 219; Croce
Proletariado, celebração dc, por Marx, 215. sobre, 241-248, 250-252; sobre fases da evolução
Providência, 235-236. cultural, 220-223, 230-232; filosofia da história de,
Psicoterapia, comparada com reconstrução histórica, 234-235; e Hegel, 221-224; sobre linguagem, 225,
103-104. 238; “lógica poética” de, 225-236; Lüwith sobre,
224; sobre o lugar dos hebreus na história, 223-
Ranke, Leopold von, 85; ideia de história em, 67, 78 n. 224; sobre natureza humana, 221; princípio do
26. verum ipsum factum, 219-220; sobre a Providência,
Realismo e história, 105-106, 140. 235-236; sobre o ricorso das civilizações, 236-237;
Relativismo em historiografia, 89. sobre o selvagem como poeta natural, 196; teoria
Romantismo em historiografia, S2. da consciência, 20; sobre tropos, 18, 92 n. 42, 111-
Rousseau, Jean-Jacqucs, 20; e motivo do Homem 112, 163,278.
Selvagem, 202; sobre o Nobre Selvagem, 213. Voltaire: antipatia à linguagem figurativa de, 160;
Filosofia da História, 157; História de Carlos XII,
Sachs, Hans, 193-194. 157; sobre historiografia, 159.
Sade, Marquês de, 294.
Walsh, W. H., sobre a coligação, 83 e n. 33.
Said, Edward W., 288, 289.
Weber, Max, 48, 56.
Sartre, Jean-Paul: como anti-historicista, 50-51; sobre
Windelband, Wilhelm, 48; sobre idiografia, 82-83.
literatura moderna, 299-300; A Náusea, 50- 51; As
Palavras, 51; O Ser e o Nada, 51.
Schopenhauer, Arthur, 56.
Selvagem, etimologia de, 170.
Shakespeare, William, 195.
Silogismo e tropos, 15.
Sinédoque: Burke sobre, 92; emprego de, por
Foucault, 275-279; como modo de consciência, 19;
Vico sobre, 229.
Spengler, Oswald, 49, 280.

Taylor, A. J. P., 125.


Texto, fetichismo do, 288.
Thompson, E. P., tropologista, 29-33.
Tillich, Paul, 174.
Tocqueville, Alexis de, 54, Ancien Regime, 62, 89;
Democracia nu América, 89; como historiador, 89;
ideologia de, 88; sobre a Revolução Francesa, 77;
Todorov, Tzvetan, sobre tropos em Freud, 28.
Tomás de Aquino, Santo, sobre os tipos de alma, 185.
Tragédia, Frye sobre, 85.
Trilling, Líonel, 297.
Trópico, origem do termo, 14.
Tropologia: e a compreensão, 34-37; e discurso, 13- 14,
26; em Freud, 27-28; e interpretação, 91-95; cm
Marx, 28-29; em Piaget, 24; em Thompson, 29-33.
Tropos, 14; Burke sobre, 18, 91-93, 148; emprego de,
por Foucault, 275-279; e estrutura dc enredo, 113-
14; em historiografia, 133-134, 141-142, 144-145;
Jakobson sobre, 27; na Origem das Espécies de
Darwin, 147-149; problema dos, 92 n. 42; e
processos de consciência, 18, c silogismo, 15-16; em
sonho, 129; teoria dos, 14 n. 2; Vico sobre, 18, 111-
112, 163,226-228.
Título Projeto Gráfico Laserfilm Impressão
Produção Capa Trópicos do Discurso Marina Mayumi
Orelha e 4- Capa Watanabe Marcos Keith Takahashi
Composição Marina Mayumi Watanabe Roney
Cytrynowicz Sidney Itto
Maurício Siqueira Silva Anderson
Tradução Massahito Nobara Alípio Correia de
Franca Neto Antônio de Pádua Danesi
Editoração de Texto
Alice Kyoko Miyashiro Geraldo Gerson
Revisão de Texto
de Souza Rosângela Nardelli Lucia
Revisão de Provas
Helena Siqueira Barbosa Julia Yagi

Arte-final Geraldo Gerson de Souza Denise

índice Cavalcante Gomes Ana Paula Hisayama

Divulgação Durvanorte Teixeira Correia Rose Pires


Sueli Monteiro Garcia
16 x 23 cm
Secretaria Editorial 26 x 45,5 paicas
Times Roman 10/12
Formato Cartão Duplex 250 g/m2 (capa)
Mancha Off-set linha d’água 90 g/m2 (miolo)
Tipologia 312
Papel 1500
Edusp
Número de Páginas
Imesp
Tiragem
Índices para catálogo sistemático:
I. Historiografia 907.2
312 TRÓPICOS reservados
Direitos em língua portuguesa DO DISCURSOà
Edusp - Editora da
Universidade de São Paulo
Av. Prof. Luciano
Gtialberío, Travessa J, 374
69 andar - Ed. da Antiga Reitoria -
Cidade Universitária 05508-900 - São
Paulo - SP - Brasil Fax (011) 211-6988
Tel. (011) 813-8837/818-4156/818-4160

Printed in Brazil 1994

Foi feito o depósito legal


13. Hayden White, MeUihistory: The Historical Inui^ination in
Nineteentk-Century Europc (Baltimore, 1973), pp. 287 e ss.
26. II. P. Thompson, The Making of the English Working Class (New
York, 1963), pp. 9-10. Doravante citado no texto pelo número da
página.
27. Karl Marx e Frederick Engcls, “Manifesto of the Communist
Party”, The Murx-Engels Reudtr, ed. Roberl C. Tucker (New York,
1972), pp. 353-360.
28. Karl Marx, Capital, trad. Eden Paul c Cedar Paul (London, 1962),
1:34-37; cf. White, Metahisu/iy, pp. 290-296.
30. O plano de quatro eslágios de Hegel é analisado em Metahistory, pp.
123-131. Ver a representação esquemática dos estágios da história
do mundo dada em Hegel, Philoxophy of Right, trad. T. M. Knox
(Oxford, 1965), §§ 352-356. pp. 219-223.
10. Os comentadores da ideia de Hegei acerca da história por vezes não
percebem
que sua análise mais
abrangente da escrita histórica deve ser encontrada, não em sua
Philosophie der Geschichte, mas no seu Vorlesungen iiher die Asthetik,
Dritter Teíl, Drittes Kapitel, que se intitula “Die Poesie”. Hegel
considera a escrita da história uma forma de poesia em prosa, que
difere da poesia em geral não pelo seu objetivo e forma mas pelo seu
conteúdo, que são os acontecimentos “prosaicos" da vida cotidiana.
Ele nega, evidentemente, que a história seja uma “arte livre”, porque
o historiador está limitado à representação dos “fatos” atestados
pelos documentos. Mas insiste, como Nietzsche posteriormente, cm
que os princípios da escrita da história são exatamente os mesmos
que inspiram o drama, e especificamente o drama trágico. Ver a
Asthetik (Frankfurt am Main, 1970), 3:256-61. Deve-se ressaltar que
a Philosophie der Geschichte não lida com a escrita da história per se,
mas com o problema de estabelecer generalizações sobre o curso da
história mundial a partir dos reíatos fragmentários fornecidos pelos
historiadores que ascenderam ao quarto nível de auto consciência
historiográfica, a conceituação (Begtiffsg eschi chie). O exame que
Croce faz da história como arte pode ser encontrado em Aesthetic: As
Science of Expression and General Linguistic (New York, 1968), pp. 26-
30.
20. Northrop Frye, Anuwmy of Criíicism: Foitr Exsayx (Princeton, 1957),
pp. 162 e ss.
10. Roman Jakobson, “Linguistics and Poetics”, em Stylc in Language,
ed. Thomas A. Sebeok (New York e London, 1960), pp. 350-377.
9. Richard Bernheimer, WildMen in the Middle Ages (Cambridge, Mass.,
1952).
21. Augustine, City ofGod, 2:118.
30. Bernheimer, Wild Men, pp. 24-25.
40. Tácito, De Germania, cap. 19.
11. A percepção de uma essência comum não é uma ameaça aos sistemas
lateralmente dispersivos de pensamento, porquanto se pressupõe aí
a base da diferenciação dada no modo de relações contíguas.
Entretanto, nos sistemas verticais, a percepção de semelhanças
constitui um problema, pois o que é dado em todo arranjo
hierárquico é o caráter diferencial.
8. Os quatro volumes que compõem a ‘‘filosofia do espírito” são a
Estética (1902), a Lógica (1908), a Filosofia delia Pratica (1908) e a
Teoria e Storia delia Storiografia (1917). O quarto volume não apareceu
numa edição completa até a data mencionada, mas os ensaios que
deviam constituí-lo começaram a ser publicados em periódicos em
1912. Sobre o desenvolvimento do pensamento de Croce durante esse
período, ver Nicolini, Croce, cap. 23.

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