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Hayden White
Títuio do originai em inglês:
Tropics o/Discourse: Essays in Cultural Criticism Original
English-language edition published by The Johns
Hopkins University Press
Copyright © 1978 by The Johns Hopkins University
Press
ISBN: 85-314-0235-2
Agradecimentos .......................................................................................... 13
Introdução .................................................................................................... 13
12, n. 1 (1973).
“The Absurdist Moment in Contemporary Literary Theory”, Contem- porary
Literature 7, n. 3 (1976).
Sou grato aos editores por permitirem reproduzir esses ensaios nessa forma.
INTRODUÇÃO
ATROPOLOGIA, O DISCURSO E OS MODOS DÁ CONSCIÊNCIA
HUMANA
1 A disparidade entre discurso, lexis, ou modo de enuncinção, de um lado, e significado, de outro, é evidentemente
um dogma fundamental das modernas teorias estruturalistas e pós-estruturalistas do texto; ela procede da
noção de arbitrariedade da união do sígnificante e do significado no signo, tal como foi postulado por Saussure.
A bibliografia é imensa, mas ver 1'rederic Jameson, The Prisnn-House of Lunguaxc: A Criticai Account of
Structuratism and Ruxsiein Formalism (Princeton, 1972), Cap. 1; Jonathan Culler, Structuralist Poetics:
Structuralism, Linguistics, and the Study of Literatura (Ithaca, 1975), Parte 1; e Terence Hawkes, Structuralism
and Setnioiics (Berkdcy e Los Angeles), 1977, cap. 2.
INTRODUÇÃO 2!
nam entre eles. É aqui que o próprio discurso deve estabelecer a adequação
da linguagem utilizada na análise do campo, aos objetos que o parecem ocupar. E
o discurso efetua esta adequação por meio de um movimento pré-figurativo mais
trópico que lógico.
Os ensaios que compõem esta coletânea se ocupam de um modo ou de outro
do elemento trópico contido em todo discurso, seja do tipo realista seja do tipo mais
imaginativo. Acredito que este elemento não possa ser expungido do discurso das
ciências humanas, por mais realistas que aspirem a ser. Trópico é a sombra da qual
todo discurso realista tenta fugir. Entretanto, esta fuga é inútil, pois trópico é o
processo pelo qual todo discurso constitui os objetos que ele apenas pretende
descrever realisticamente e analisar objetivamente. Como os tropos funcionam nos
discursos das ciências humanas é o tema destes ensaios, e é por isso que lhes dei o
título que dei.
A palavra trópico, de tropo, deriva de tropikos, tropos, que no grego clássico
significa “mudança de direção”, “desvio”, e na koiné “modo” ou “maneira”.
Ingressa nas línguas indo-europeias modernas por meio de tro- pus, que em latim
clássico significava “metáfora” ou “figura de linguagem”, e no latim tardio, em
especial quando aplicada à teoria da música, “tom” ou “compasso”. Todos esses
sentidos, sedimentados na palavra trope, do inglês antigo, encerram a força do
conceito expresso no inglês moderno pelo termo style, um conceito particularmente
apropriado para o exame daquela forma de composição verbal que, a fim de
diferenciá-la, de um lado, da demonstração lógica e, de outro, da pura ficção,
chamamos pelo nome de discurso, Para retóricos, gramáticos e teóricos da
linguagem, os tropos são desvios do uso literal, convencional ou “próprio” da
linguagem, guinadas na locução que não são sancionadas pelo costume ou pela
lógica2. Os tropos geram figuras de linguagem ou de pensamento mediante a
variação do que “normalmente” se espera deles e por via das associações que
estabelecem entre conceitos que habitualmente se supõem estarem ou não
relacionados de maneiras diferentes da sugerida no tropo utilizado. Se, como
aventou Harold Bloom3, um tropo pode ser o equivalente linguístico de um
mecanismo psicológico de defesa (uma defesa contra o sentido literal do discurso,
do mesmo modo que o recalque, a regressão, a projeção etc. constituem defesas
contra a percepção da morte na psique), ele é sempre não apenas um desvio de um
sentido possível, próprio, mas também um desvio em direção a um outro sentido,
2 A bibliografia sobre os tropos é tão grande quanto a bibliografia sobre a teoria do signo - se não for maior - e
cresce diariamente num ritmo frenético, mas sem dar até agora qualquer sinal de um consenso gera! quanto à
sua classificação. Para exames gerais do estado da questão, ver “Rechcrclies rhétoriques”, Communications
(publicação da Ecole Pratique des Hautes Etudes - Centre d’Eiudes des Communicatioas de Masses) 16 (1970);
“Frontières de la rhétorique”, Linérciture, 18 (mai 1975); “Rhétorique et herméneutique”, Poétique 23 (1975).
Estudos sistemáticos dos tropos, segundo as modernas teorias linguísticas, são os de Heinrich Lausberg,
Elemente der literarischcn Rhetorik (München, 1967); J. Dubois et u!ii, Rhétorique générale (Paris, 1970); e Chaim
Perelman e L. Olbrechts-Tyteca, The New Rhetoric: A Treati.se on Argumentation, trad. John Wilkinson e Purcell
Weaver (Notre Dame e London, 1969). Deve- se igualmente mencionar as obras de Kenneth Burke, Gérard
Genette, Roland Barthes, Umberto Eco e Tzvetan Todorov.
3 Harold Bloom, A Map of Misreading (New York, 1975), p. 91.
INTRODUÇÃO 2!
7 Ver Geoffrey Harlman, “The Voice of the Shuttle: Language from the Point of View of Literature”, em
Beyand Formcilism (New York e London, 1970), pp. 337-355.
INTRODUÇÃO 2!
interpretações divergentes deste último. Ele não afirma que os discursos sobre a
realidade podem ser classificados em hipotáticos (conceitualmente
sobredeterminados), de um lado, e paratáticos (conceitualmente subdeterminados),
de outro, e o próprio discurso ocupa o plano médio (do pensamento propriamente
sintático) que todos estão buscando. Ao contrário, o discurso, se for um discurso
genuíno
- isto é, tão crítico de si mesmo quanto é dos outros - desafiará de modo radical a
própria noção de plano médio sintático. Ele põe em dúvida todas as normas
“táticas”, inclusive as que originariamente regem a sua própria formação.
Justamente por ser aporético, ou irônico, com respeito à sua própria adequação, o
discurso não pode ser regido unicamente pela lógica 8. Por estar sempre fugindo ao
domínio da lógica, indagando constantemente se a lógica é adequada para captar a
essência do seu tema, o discurso sempre se volta para a reflexividade
metadiscursiva. É por isso que todo discurso sempre é sobre o próprio discurso e é
sobre os objetos que compõem o seu tema.
Considerado um gênero, então, deve o discurso ser analisado em três níveis:
no da descrição (mimese) dos “dados” encontrados no campo da investigação que
está sendo demarcado ou designado para a análise; no do argumento ou narrativa
(diegese), que corre paralelamente à matéria narrativa ou se entremeia com ela9; e
naquele em que se realiza a combinação desses dois níveis anteriores (diataxe). As
regras que se cristalizam neste último nível do discurso, ou nível diatático,
determinam os possíveis objetos do discurso, os modos pelos quais a descrição e o
argumento se devem combinar, as fases pelas quais o discurso tem de passar no
processo de aquisição do seu direito de conclusão, e a modalidade da metalógica
utilizada para ligar o fecho do discurso com os seus gestos de inauguração.
Encarado dessa maneira, um discurso é em si mesmo um tipo de modelo dos
processos da consciência pelos quais uma dada área da experiência, a princípio
apreendida como apenas um campo de fenômenos que exigem compreensão, é assi-
milada por analogia com aquelas áreas da experiência consideradas já com-
preendidas quanto às suas naturezas essenciais.
A compreensão é um processo de tornar familiar o não-familiar, ou
“estranho”, no sentido freudiano desse termo 10; de removê-lo do domínio das
coisas consideradas “exóticas” e não-classificadas num ou outro domínio da
experiência codificado de modo suficientemente adequado para que seja
considerado humanamente útil, não-ameaçador, ou apenas conhecido por
associação. Este processo de compreensão só pode ser tropológico na essência, pois
o que está envolvido na conversão do não-familiar em familiar é uma criação de
tropos que em geral é figurativa. Segue-se, a meu ver, que esse processo de
compreensão se desenvolve mediante a exploração das principais modalidades da
figuração, que a teoria retórica pós-renascentista diz ser os “tropos principais”
8 Umberto Eco, A Theory of Semioticx (Bloomington e London, 1976), pp. 276-286. Ver também Paul Dc M;in,
Blindness and Insight: Essays in the Rheioric of Contemporary Criticism (New York, 1971), pp. 102-141.
9 Gcrard Genette, “Boundaries of Narrative", New Literary History 8, 1:1-13 (Autumn 1976).
10 Sigmund Freud, “The Uncanny”, em On Creativity and the Uncoitsciaus (New York, ! 958), pp. 122-161.
INTRODUÇÃO 2!
11 Ver Kennelh Burke, A Grammar of Motives (Berkeley e Los Angeles, 1969), apêndice D, pp. 503-517.
12 Giambattixtn Vico, The New Science, trad. Thomax Goddard Bergin e Max Harold Fisch (Ithíicu, 1968), §§
400 e ss., pp. 127 e ss.
13 White, Metahistory, pp. 30 e ss.
14 Tzvctan Todorov, “On Linguisdc Symbolism”, New Literary History 6, 1:111-134 (Autumn 1974).
INTRODUÇÃO 2!
15 Jean Piaget, The Citild and Reality: Praklems ofGeneiic Psychology, trad. Arnold Rosin (New York,
1973), p. 16. Doravante citado no texto pelo número dn página.
16 Vico, The New Science, pp. 127 e ss.; J. J. Rousseau, “Essay on the Origin of Languagcx”, em On The Origin
of Lunguage: Two Essays by Jean Jacques Rousseau and Johann Gottfried Ilerder, trad. John H. Moran e
Alexander Godc (New York, 1966), pp. 11-13; e Fricdrich Nietzsche, Genealogy of Morais, trad. Francis
INTRODUÇÃO 2!
(de modo totalmente inconsciente, devemos supor) não faz qualquer distinção entre
ela própria e outros objetos ou entre objetos, salvo na medida em que estes se
relacionam com ela mesma. Aos dezoito meses, ou pouco mais ou menos, portanto,
vemos uma “descentralização total com respeito ao espaço egocêntrico primitivo”.
Essa descentralização (ou deslocamento) é uma condição necessária para o que
Piaget chama “a função simbólica”, cujo aspecto mais importante é a fala. Somente
graças à possibilidade de apreender relações de contiguidade é que se torna possível
esse processo de simbolização e, a fortiori, do próprio pensamento. Antes da
“revolução copernicana”, não há apreensão de relações contíguas; há apenas a
experiência intemporal, ilimitada, do Mesmo. Com o despontar de uma consciência
de contiguidade - que chamaríamos capacidade metonímica -, ocorre uma
transformação radical sem a qual seria impossível o “grupo de deslocamentos”
necessários para a simbolização, a linguagem e o pensamento (p. 16).
Então, mais uma vez, em torno dos 7 anos, afirma Piaget, outro “momento
decisivo e fundamental é percebido no desenvolvimento da criança. Ela se torna
capaz de uma certa lógica; torna-se capaz de coordenar operações no sentido da
reversibilidade, no sentido do sistema de conjunto”. E o estágio que Piaget chama
lógica pré-adolescente, a qual “não se baseia em enunciações verbais, porém apenas
nos próprios objetos” (p. 21). Será, diz ele, uma lógica das classificações,
22 TRÓPICOS DO DISCURSO
porque os objetos podem ser reunidos conjuntamente ou em classificações; ou, então, será uma
lógica das relações porque os objetos podem ser materialmente contados, mediante a sua manipulação.
Mas, se é uma lógica das classificações, relações c números, ainda não é uma lógica das proposições...
Trata-se de uma lógica no sentido em que as operações estão coordenadas, agrupadas em sistemas de
conjunto, que têm as suas leis como tolalidad.es. E cumpre- nos insistir veementemente na necessidade
dessas estruturas de conjunto para a elaboração do pensamento (pp. 20-21).
O que Piaget descobriu, se ele estiver certo, é a base genética do tropo da si-
nédoque, essa figura de retórica ou de poética que constitui os objetos como partes
de totalidades ou congrega entidades como elementos de um todo que comparte as
mesmas naturezas essenciais. Na criança com idade entre 7 e 12 anos, esta
operação ainda é pré-Iógica em sentido estrito, pois que depende da manípulabi 1
idade física dos objetos que estão sendo classificados; não se trata de uma operação
que normalmente possa ser levada a cabo somente pelo pensamento.
Todavia, com o início da adolescência esta última operação se torna
possível:
A criança não apenas se torna capaz de raciocinar e de deduzir sobre objetos manipuláveis, como
varetas para arrumar, inúmeros objetos para reunir etc., mas também se torna capaz de lógica e de
raciocínio dedutivo sobre teorias e proposições... todo um conjunto de operações específicas se sobrepõem
às operações anteriores, e que se pode chamar de lógica das proposições (p. 24).
17 S. R. G. Collingwood, The Ide a of History (New York, 1956), pp. 1-3; ver também Louis O. Mink, Mind,
History, and Dialcct: The Philoxophy ofR. G. Collingwood (Bloomíngton e London, 1969), pp. 82-92.
INTRODUÇÃO 23
39. G. W. F. Hegel, The Philosophy of Fine An, trad. F. P. B. Osmaston (London, 1920), 4:243-4; Friedrich
Nietzsche, The Binh ofTragcdy, trad. Francis Golffing (New York, 1956), pp. 22, 51, 65.
xão sobre esta confusão se baseia no conceito de “interiorização”. “Por que”,
pergunta ele, “temos de esperar oito anos para adquirir a invariante da substância,
e mais tempo ainda para chegar às outras noções, em vez de elas aparecerem no
momento em que há uma função simbólica, ou seja, a possibilidade de pensar e não
apenas de agir materialmente? ” E sua resposta é: “Pela razão fundamental de que
as ações que permitiram alguns resultados no terreno da efetividade material não
podem ser interiorizadas sem mais e de maneira imediata, e de que se trata de
reaprender no plano do pensamento o que jãfoi aprendido no plano da ação”. E
conclui: “Essa in- teriorização é na realidade uma nova estruturação; não é apenas
uma tradução, mas uma reestruturação, com uma decaiagem que toma um tempo
considerável” (pp. 17-18).
INTRODUÇÃO 25
base ontogenética para esse padrão, ele acrescenta uma outra confirmação, mais
positivista, da sua natureza arque- típica.
A ubiquidade desse padrão de prefiguração tropológica, especialmente na
forma como é utilizada como chave para um entendimento do discurso ocidental
sobre a consciência, suscita inevitavelmente a questão do seu status de fenômeno
psicológico. Se ela apareceu universalmente como um modelo analítico ou
representacional para o discurso, poderíamos tentar dar-lhe o crédito de “lei”
genuína do discurso. Mas, evidentemente, não reivindico para ela o status de lei
do discurso, nem mesmo do discurso sobre a consciência (já que há um grande
número de discursos em que o modelo não aparece plenamente na forma sugerida),
mas apenas o status de um modelo que reaparece constantemente nos discursos
modernos sobre a consciência humana. Reivindico para ela apenas a força de uma
convenção no discurso sobre a consciência e, de modo secundário, no discurso
sobre o próprio discurso, na moderna tradição cultural do Ocidente. E, além disso,
a força de uma convenção que em sua maior parte não foi reconhecida como tal
pelos seus vários reinventores dentro da tradição do discurso sobre a consciência
desde o começo do século XIX. Piaget é apenas o último de uma longa linhagem
de pesquisadores, empíricos e idealistas, que redescobriram ou reinventaram o
esquema quádruplo dos tropos, transformando-o no modelo dos modos de
associação mental característicos da consciência humana, seja ela uma estrutura,
ou um processo. Freud também pode ser incluído na lista desses reinventores ou
redescobridores da estrutura tropológica da consciência, como demonstra
amplamente o famoso Capítulo VI, “A Atividade do Sonho”, de A Interpretação
dos Sonhos. Nessa obra, Freud fornece a base para a crença na operação dos
esquemas tropológicos de figuração no nível do inconsciente; e sua obra pode ser
considerada complementar à de
Piaget, cuja preocupação fundamental era analisar o processo pelo qual se efetiva
o emprego consciente e autoconsciente de tropos.
Na análise da atividade onírica, Freud dá pouca atenção ao desenvolvimento
diacrônico dessa forma de poiesis denominada sonho; e na verdade não se ocupa
muito das fases pelas quais passamos na composição de um sonho. Pelo menos,
não se ocupa disso como o faz Harold Bloom na sua análise do desenvolvimento
fásico de composições conscientes como os poemas líricos. Freud percebia sem
dúvida que o discurso consciente, ou “vígil”, se desenvolve por fases; pois esse
tropo irônico que ele chamou revisão secundária costuma atuar na poiesis
consciente como tropo preponderante, na medida em que todo discurso deve ser
algo que evolui sob a égide da defesa psicológica chamada racionalização 19. Há,
sem dúvida, indícios de uma certa dimensão diacrônica na atividade onírica,
porquanto a revisão secundária parece requerer alguma ação anterior de
condensação, deslocamento ou representação, os outros mecanismos identificados
por Freud, para que ela venha a ser ativada; a revisão secundária necessita de
19 Freud, T/ie Interpreiution of Dreams, trad. James Stracliey (New York, 1965), pp. 526-544.
INTRODUÇÃO 27
alguma “matéria” com que possa trabalhar, e esta é fornecida pelos outros mecanis-
mos da atividade onírica. Mas isso é relativamente pouco importante para o seu
propósito, que é fornecer um método analítico para desconstruir os sonhos
completados e revelar os “pensamentos oníricos” latentes que se emboscam no
interior deles na qualidade de seus verdadeiros “conteúdos”, em oposição aos seus
conteúdos manifestos.
O que me interessa aqui, obviamente, são os mecanismos que Freud
considera responsáveis pelas mediações entre os conteúdos manifestos do sonho e
os pensamentos latentes do sonho. Estes parecem corresponder, como sugeriu
Jakobson20, aos tropos sistematizados como as classes da figuração na moderna
teoria da retórica (teoria com a qual, incidentalmente, na medida em que classifica
as figuras nos quatro tropos da metáfora, da meto- nímia, da sinédoque e da ironia,
Freud estaria familiarizado, por ser um componente do currículo educacional dos
colégios e faculdades de sua época). Pode parecer que sua “descoberta” dos
processos de “condensação”, “deslocamento”, “representação” e “revisão
secundária” esteja sendo minada pelos indícios de que ele apenas redescobrira na
psícodinâmica do ato de sonhar, ou inconscientemente lhe impusera, modelos
transformativos que já haviam sido plenamente explicados, e ma is ou menos nos
mesmos termos utilizados por Freud, como os tropos da retórica.
Mas não queremos subestimar a originalidade da iniciativa de Freud apenas
por termos descoberto que os seus mecanismos da atividade onírica correspondem
quase ponto por ponto às estruturas dos tropos, em primeiro lugar porque o próprio
Freud compara explicitamente os mecanismos da atividade onírica com os da
poiesis e até se vale da terminologia da figuração para descrever estes processos21;
em segundo lugar, porque o propósito do empreendimento de Freud é
suficientemente amplo para lhe permitir apro- priar-se de um domínio da análise
cultural a fim de aplicar os seus princípios a um aspecto limitado desse
empreendimento, sem de modo algum subestimar a envergadura da sua realização
total; e, em terceiro lugar, porque foi uma proeza genial identificar os processos da
atividade do sonho com os processos da consciência vígil, mais imaginativos do
que racionais. Mais importante, porém, para quem quer que se interesse pela teoria
do discurso em geral e do discurso sobre a consciência em particular, a paciente
análise de Freud dos mecanismos da atividade onírica propicia um conhecimento
das operações do pensamento vígil, que se encontra entre as faculdades ima-
ginativas e as faculdades racionais e busca conscientemente servir de mediador
entre estas faculdades, vale dizer, as operações do próprio discurso. Se tiver
identificado corretamente, com os seus próprios termos, a natureza quádrupla dos
processos que atuam na atividade onírica, Freud terá dado uma importante
contribuição para a compreensão dos mesmos processos conforme operam no
20 Roman Jackobson, “Two Types of Language and Two Types of Aphasic Disturbancc”, em Roman Jakobson
e Morris Halle, Fundamentais of Language (The Hague e Paris, 1971), p. 95. Cf. Emile Benveniste, “Remarks
on the Function of Language in Freudian Theory”, em Prahlems in General Linguística, trad. Mary Elizabeth
Meek (Coral Gablex, 1971), pp. 65-75.
21 Ver Freud, Interpretatitm of Dreams, pp. 374-384.
28 TRÓPICOS DO DISCURSO
22 Ver Tz vetan Todorov, “La Rhétorique de Freud”, cm Thêorks du xymhole (Paris, 1977), pp. 303, 315-316.
23 White, Mela history, pp. 320-327.
INTRODUÇÃO 29
O livro é escrito como segue. Na Parte I, oeupo-me das tradições populares vigentes 110 século
XVIII, que influenciaram a decisiva agitação jacobina de 1790. Na Parte II, passo tias influências
subjetivas às objetivas - as experiências de grupos de trabalhadores durante a Revolução Industrial que
me parecem especialmente significativas. Além disso, procuro fazer um balanço do caráter da nova
disciplina de trabalho industrial e do modo como a Igreja Metodista se apoiou nela. Na Parte 11], retomo
a história do Radicalismo plebeu e conduzo-a através do Luddismo até a idade heróica no final das
Guerras Napoleônicas. Por fim, analiso alguns aspectos da teoria política e da consciência de classe nos
anos de 1820 e 1830 (p. 12).
Por que essas divisões no discurso? Thompson insiste em dizer que não está
fornecendo uma “narrativa consecutiva”, mas tão-somente um “grupo de estudos
sobre temas correi atos” (ibid.). Mas o título, com a sua proeminente caracterização
do gerúndio “making”, sugere a natureza ativista e construtivista tanto do tema
tratado quanto do discurso sobre esse tema, ao passo que as partes do discurso
delineadas no prefácio sugerem a “lógica” da organização tropológica.
A Parte I, intitulada “A Árvore da Liberdade”, concentrando-se nas
“tradições populares”, obviamente está ligada apenas à existência de uma classe
vagamente apreendida; trata-se da consciência da classe trabalhadora que desperta
para si mesma, como diriam os hegelianos, mas que capta a sua particularidade
apenas em termos gerais, o tipo de consciência que chamaríamos metafórica, na
qual os trabalhadores apreendem as suas diferenças dos ricos e percebem a sua
semelhança mútua, mas são incapazes de organizar-se, salvo em função do desejo
geral de uma “liberdade” indefinida. AParte 11, intitulada “A Maldição de Adão”,
é um longo discurso, no qual as diferentes formas de existência da classe
trabalhadora, determinadas pela variedade de tipos de trabalho no panorama
industrial, se cristalizam em espécies distintivas, onde o conjunto nada mais tem
que os elementos de uma série. O modo da consciência de classe descrito nessa
seção é metonímico, correspondendo ao modelo da Forma Prolongada do Valor
que Marx explica no discurso sobre as Formas de Valor em O Capital2*. “Os
trabalhadores eram obrigados a um apartheid social e político durante as [Guerras
Napoleônicas]”, diz-nos Thompson; “... o povo era submetido simultaneamente a
uma intensificação de duas formas intoleráveis de relacionamento: a da exploração
econômica e a da opressão política” (pp. 198-199). Todo o período que está sendo
estudado é um período em que “sentimos a pressão geral de longas horas de
trabalho insatisfatório, sob rígida disciplina e para propósitos alheios” (pp. 445-
446). Este, diz Thompson no término da seção, “estava na origem daquela
‘fealdade’ que, como escreveu D. H. Lawrence, ‘traía o espírito do homem do
século XIX’. Dissipadas todas as outras impressões, permanece esta: juntamente
com a da perda de qualquer coesão sentida na comunidade, salvo aquela que os
trabalhadores, em oposição ao seu trabalho e aos seus patrões, construíram para si
próprios” (p. 447).
A Parte III, intitulada “A Presença da Classe Trabalhadora”, assinala um
novo estágio no crescimento da consciência de classe, a verdadeira cristalização
de um nítido espírito de “classe trabalhadora” entre os trabalhadores. Em face da
opressão e da força usadas para destruí-los, principalmente em Peterloo no ano de
INTRODUÇÃO 31
Isso conduz ao último capítuio do livro, que não é uma parte separada, mas apenas
um capítulo que trata da teoria política e dos aspectos da consciência de classe
manifestados na cultura literária e intelectual dos anos de 1820 e 1830.
O relato da quarta fase está impregnado de melancolia, produto da percepção
de uma situação irônica, visto que ele assinala não apenas a ascensão da
consciência de classe à autoconsciência, mas também e ao mesmo tempo a cisão
fatal do próprio movimento da classe trabalhadora. A esse podemos chamar o
estágio da ironia, pois o que está envolvido aqui é o surgimento e o
enfraquecimento simultâneos de dois ideais que poderiam ter dado ao movimento
da classe trabalhadora um futuro radical: o internacionalismo, de um lado, e o
sindicalismo industrial, de outro. Mas, observa Thompson, encerrando a sua obra
com uma nota de melancolia: “Esta visão se perdeu, quase tão depressa quanto fora
encontrada, nas terríveis derrotas de 1834 e 1835” (p. 830). O ganho específico foi
uma espécie de resíliência de classe e o orgulho de pertencer à classe trabalhadora,
mas estes tendiam tanto a isolar os trabalhadores dos seus patrões quanto a
contribuir para a sua organização pela conquista de modestas reformas sindicais.
Na superfície da sociedade, artesãos românticos e radicais continuaram a debater
os seus pontos de vista sobre a natureza do trabalho, o lucro e a produção; porém
ambos fracassaram e, além do mais, contribuíram para uma cisão entre os
intelectuais com relação à natureza da obra, cisão que persistiu até os dias de hoje,
criando duas culturas nas quais, segundo Blake, “mente alguma poderia sentir-se
em casa” (p. 832). Daí a ironia com que o próprio Thompson conclui o seu grande
livro: “Na impossibilidade de duas tradições chegarem a um ponto de junção, algo
se perdeu. Quanto não podemos saber ao certo, pois estamos entre os perdedores”.
Daí, também, o perdoável senti mental is- mo com que acrescenta: “Entretanto, os
trabalhadores não deveriam ser vistos apenas como as miríades perdidas da
eternidade. Eles também cultivaram durante cinqüenta anos, e com incomparável
firmeza, a Arvore da Liberdade. Talvez lhes devamos ser gratos por esses anos de
cultura heróica” (iibid.).
Demorei-me nesse desempacotamento tropológico da estrutura do discurso
de Thompson porque, diferentemente de Piaget e de Freud em suas análises da
24 Thompson, The Eiiglixh Working Class, p. 711; cf. Marx, Capital, 1:37-42.
32 TRÓPICOS DO DISCURSO
25 Hegel, Philoxophy of Mind, irad. William Wallace (Oxford, 1971), 55 451-468, pp. 201-228; Freud, The Ego
and the ld, trad. Joan Riviere (New York, 1962), pp. 10-15; e Nietzsche, “On Truth and Falsity in Their
Ultramoral Sense”, em Early Greek Philosophy and Other Essays, trad. Maxímílían A. Mügge, vol. 2 de The
Complete Works of Friedrich Nietzsche, ed. Oscar Levy (New York, 1924), pp. 179 c ss.
34 TRÓPICOS DO DISCURSO
compreensão, a maneira como dois termos são colocados nos lados opostos da
cópula. O resultado talvez seja visto da perspectiva de um sistema de proposições
posterior e mais complexo, apenas um equívoco; mas, como disse Bacon, quando
se trata de buscar o conhecimento do mundo, uma hipótese errônea é melhor do
que nenhuma hipótese. Pelo menos ela fornece a base para alguma ação consciente,
uma práxis na qual pode ser testada a adequação da proposição ao mundo de que
ela fala. Mais importante, porém, é que essas proposições primitivas, errôneas ou
não, são também e basicamente metáforas, sem as quais seria impensável a nossa
transição de um estado de ignorância para um estado de compreensão prática. E
exatamente porque cada coisa do mundo e cada experiência dele pode ser
equiparada a qualquer outra coisa ou experiência por analogia ou similitude
(porque, sendo elementos da realidade única, elas partilham algum atributo, ainda
que seja apenas o de ser ela própria), então, há um sentido no qual nenhuma
metáfora é de todo errônea. A base de sua unidade, expressa na cópula da
identidade, talvez não seja conhecida e nem sequer concebível para uma dada
inteligência, mas mesmo a transferência metafórica mais drástica, a catacrese mais
paradoxal, o oxímoro mais contraditório ou o trocadilho mais banal produz o efeito
de iluminar, se não a realidade, ao menos a relação entre as palavras e as coisas, o
que é também um aspecto da realidade, pela sua produção desses “erros”. A teoria
tropológica do discurso nos permite compreender a continuidade existencial entre
erro e verdade, ignorância e entendimento, ou, para dizê-lo de outra maneira,
imaginação e pensamento. Por muito tempo a relação entre esses pares foi
concebida como uma oposição. A teoria tropológica do discurso nos ajuda a
entender de que maneira a fala serve de mediadora entre essas supostas oposições,
da mesma forma que o próprio discurso serve de mediador entre a nossa apreensão
desses aspectos da experiência que ainda nos são “estranhos” e os aspectos dela
que “compreendemos” porque encontramos uma ordem de palavras adequada à sua
familiarização.
Finalmente, a teoria tropológica do discurso poderia fornecer-nos um meio
de classificar diferentes tipos de discurso mais por referência aos modos
linguísticos que predominam neles do que por referência a supostos “conteúdos”
que sempre são identificados de modo diferente por intérpretes diferentes. Isso seria
tão verdadeiro para as nossas tentativas de classificar os vários tipos de discurso
“prático”, como os discursos acerca dos fenômenos sociais (loucura, suicídio,
sexualidade, guerra, política, economia), quanto para tentativas semelhantes de
classificar tipos de discurso “formal” (como peças de teatro, romances, poemas e
assim por diante).
Por exemplo, é possível demonstrar que a análise mereci dam ente famosa
de Durkheim dos tipos de suicídio é, entre outras coisas, uma hiposta- tização dos
modos de relacionamento pressupostos no modelo tropológico de possíveis
conceituações das relações das partes (individuais) com as tota- lidades (sociais) de
que são membros26. Do mesmo modo, a tipologia extremamente sugestiva e
26 Emile Durkheim, Suicide: A Study in Sociology, trad. John A. Spaulding e George Simpson, ed. George
INTRODUÇÃO 35
proveitosa que Lukács estabeleceu para o romance moderno, onde cada tipo é
identificado pelo modo de relacionamento que predomina entre o protagonista e o
seu meio social, teria sido aperfeiçoada e melhorada pela atenção dada ao aspecto
linguístico dos seus exemplos27. Porém Lukács, a despeito do seu hegelianismo
declarado na época da composição de seu livro e do seu marxismo igualmente
declarado na época do seu repúdio a esse livro, pensava que poderia especificar um
conteúdo para os romances sem prestar muita atenção ao continente linguístico em
que eles se incorporavam. E essa crença na transparência da linguagem, a sua
natureza mais puramente reflexiva que constitutiva, também ofuscaram Durkheim
na medida em que os seus tipos foram tanto criados pelas suas próprias descrições
dos seus dados quanto explicados a partir dos dados por correlações estatísticas e
suas análises. Quanto a isso, poderíamos acrescentar que as representações
estatísticas são pouco mais que projeções de dados interpretados no modo da
metonímia, cuja validade como contribuições à nossa compreensão da realidade
aumenta somente na medida em que os elementos das estruturas nelas
representadas estão relacionados unicamente pela contiguidade. Quando não estão
relacionados, outros protocolos de linguagem, governados por outros tropos, são
requeridos para uma explicação das suas naturezas adequadas à capacidade humana
de compreender alguma coisa. E o mesmo se pode dizer do modo sinedóquico da
representação, preconizado por Lukács na sua análise dos principais tipos do
romance moderno.
Mas por que, cumpre-nos perguntar, deveríamos desejar semelhante
tipologia dos discursos? Primeiramente, porque o princípio de toda compreensão é
a classificação, e uma classificação dos discursos baseada na tropologia, e não em
conteúdos supostos ou em lógicas manifestas (mas inevitavelmente defeituosas),
haveria de fornecer um meio de apreender a possível estrutura de relações entre
esses dois aspectos de um texto, em vez de negar a adequação de um porque o outro
foi realizado inadequadamente. Em segundo lugar, se o discurso é a nossa mais
direta manifestação da consciência que busca compreender, que ocupa aquele plano
médio entre o despertar de um interesse geral num domínio da experiência e a
aquisição de alguma compreensão dela, então uma tipologia dos modos do discurso
possibilitaria a criação de uma tipologia dos modos de compreensão. Feito o quê,
talvez fosse possível fornecer protocolos para a tradução entre modos alternativos,
que, por serem considerados ou como verdade natural ou como verdade
estabelecida, se petrificaram em ideologias. Em seguida, essa tipologia dos modos
da compreensão poderia permitir-nos servir de mediador entre ideólogos
conflitantes, cada um dos quais considera científica a sua própria posição e a do
seu opositor mera ideologia ou “falsa consciência”. Por fim, uma tipologia dos
modos da compreensão poderia permitir-nos aventar o conceito do que Lukács
definiu como a relação entre “a possível consciência de classe” e “a falsa
0 FARDO DA HISTÓRIA
i.
historiadores contemporâneos, percebe-se uma suspeita cada vez maior de que essa
tática atua essencialmente para impedir considerações mais sérias dos avanços
mais significativos operados na literatura, na ciência social e na filosofia do século
XX. E parece estar tomando vulto entre os não-historíadores a opinião de que,
longe de ser o mediador desejável entre a arte e a ciência que ele reivindica ser, o
historiador é o inimigo irre- missível de ambas. Em resumo, avulta em toda a parte
um ressentimento motivado pelo que parece ser a má fé do historiador em
reivindicar os privilégios tanto do artista quanto do cientista, ao mesmo tempo em
que recusa submeter-se aos modelos críticos que atualmente vão sendo
estabelecidos na arte ou na ciência.
São duas as causas gerais desse ressentimento. Uma delas diz respeito à
natureza da própria profissão de historiador. A história é talvez a disciplina
conservadora por excelência. Desde meados do século XIX, a maioria dos
historiadores simulou um tipo de ingenuidade metodológica deliberada. A
princípio, essa ingenuidade servia a um bom propósito; resguardava o historiador
da tendência a adotar os sistemas explicativos monísticos de um idealismo
militante na filosofia e de um positivismo igualmente militante na ciência. Mas
esta suspeição de sistema tornou-se uma espécie de reação condicionada entre
historiadores que tem levado a uma oposição, em todos os setores dessa área
profissional, a praticamente qualquer tipo de autoanálise crítica. Além disso, como
a história vem-se tornando cada vez mais profissionalizada e especializada, o
historiador comum, empenhado na busca do documento elusivo que o firmará
como autoridade num campo estreitamente definido, tem tido pouco tempo para se
informar acerca dos mais recentes acontecimentos verificados nos campos mais
remotos da arte e da ciência. Por isso, muitos historiadores não têm consciência de
que já não se pode justificar a disjunção radical entre arte e ciência que o seu
pretenso papel de mediadores entre elas pressupõe.
Passemos agora à segunda causa geral da atual hostilidade contra a história.
Esse plano médio supostamente neutro entre arte e ciência que muitos historiadores
do século XIX ocuparam com tanta autoconfiança e orgulho de posse desapareceu
com a descoberta do caráter construtivista habitual das afirmações artísticas e
científicas. A maioria dos pensadores contemporâneos não concorda com a
hipótese do historiador convencional de que arte e ciência são meios
essencialmente distintos de compreender o mundo. Hoje em dia, parece bastante
claro que a crença do século XIX na dessemelhança radical entre arte e ciência
resultou de um mal-entendido promovido pelo medo que o artista romântico sentia
da ciência e pela ignorância que o cientista positivista tinha da arte. Sem dúvida,
tanto o medo que o artista romântico sentia da ciência positivista quanto o desdém
que o cientista positivista votava à arte romântica se justificavam na atmosfera in-
telectual em que nasceram. Porém a crítica moderna - sobretudo em decorrência
dos avanços feitos pelos psicólogos na investigação da capacidade de síntese do
homem - chegou a uma compreensão mais ciara das operações pelas quais o artista
expressa a sua visão de mundo e o cientista exprime as suas hipóteses sobre ele. A
medida que se tornam mais plenamente reconhecidas as implicações dessa
42 TRÓPICOS DO DISCURSO
2.
Não deveria ser preciso seguir de novo as linhas gerais da querela entre a
ciência social e a história que envolveu os profissionais que as exerceram de
maneira filosófica e autoconsciente durante este século. Trata-se de uma velha
controvérsia que remonta ao começo do século XIX. Mas talvez seja útil lembrar
que a disputa chegou a um tipo de solução que não foi possível no século XIX, e
que, do modo como prossegue atualmente, a querela transcende os limites de uma
simples discussão metodológica.
Em primeiro lugar, durante o século XIX a ciência não havia alcançado a
posição hegemônica entre as disciplinas eruditas de que hoje desfruta. Os filósofos
da ciência contemporâneos são mais claros no tocante à natureza d as-explicações
científicas, e os próprios cientistas lograram obter aquele domínio sobre o mundo
físico com que somente podiam sonhar durante a maior parte do século passado.
Assim, em nossa época, uma afirmação, como a do falecido Ernst Cassirer, de que
“não há um segundo poder no nosso mundo moderno que se possa comparar ao
pensamento científico”, deve ser aceita como simples fato; não se pode descartá-la
por mera retórica na disputa pela primazia entre as disciplinas eruditas, como talvez
fosse o caso no século XIX. Atualmente, a ciência é reconhecida, ainda nas palavras
de Cassirer, como “o ponto culminante e a consumação de todas as nossas
atividades humanas, o último capítulo da história da humanidade e o tópico mais
importante de uma filosofia do homem... Talvez, discordemos no que tange aos
resultados da ciência ou aos seus princípios primeiros, mas sua função geral parece
inquestionável. E a ciência que nos dá a garantia de um mundo comum”.
Os fascinantes triunfos da ciência em nosso tempo não apenas incentivaram
0 FARDO DA HISTÓRIA 43
3.
Ora, excluir a história da primeira categoria das ciências não seria decerto
tão desalentador se boa parte da literatura do século XX não manifestasse uma
hostilidade para com a consciência histórica ainda mais exacerbada do que qualquer
coisa encontrada no pensamento científico da nossa época. Poder-se-ia até afirmar
que um dos traços distintivos da literatura contemporânea é a sua convicção
44 TRÓPICOS DO DISCURSO
escreveu ele, “levado ao seu extremo lógico, erradica o futuro porque destrói as
ilusões e priva as coisas existentes da única atmosfera em que podem viver”.
Nietzsche odiava a história ainda mais do que à religião. A história promoveu
nos homens um voyeurismo debilitante, fê-los sentir que eram forasteiros num
mundo onde todas as coisas dignas de fazer já haviam sido feitas e desse modo
solapou aos poucos aquele impulso ao esforço heróico que poderia conferir um
sentido peculiarmente humano, ainda que transitório, a um mundo absurdo. O
senso da história era o produto de uma faculdade que distinguia o homem do
animal, ou seja, a memória, também fonte da consciência. A história devia ser
“seriamente ‘odiada”’, concluía Nietzsche, “como um luxo caro e supérfluo do
entendimento”, para que a própria vida humana não perecesse no culto insensato
daqueles vícios que uma falsa moralidade, baseada na memória, induz nos homens.
Não importa o que, por bem ou por mal, a geração seguinte aprendeu de
Nietzsche, ela absorveu a sua hostilidade à história na maneira como foi
violentamente posta em prática pelos historiadores acadêmicos no final do século
XIX. Mas Nietzsche não foi o único responsável pelo declínio da autoridade da
história entre os artistas fin de siècle. Acusações semelhantes, mais ou menos
explícitas, podem ser encontradas em escritores tão diferentes em temperamento e
propósito quanto George Eliot, Ibsen e Gide.
Em Middlemarch, publicado no mesmo ano que O Nascimento da Tragédia,
Eliot utilizou o encontro entre Dorthea Brooke e o sr. Casaubon para formular uma
acusação convenientemente inglesa contra os perigos do gosto pelas antigualhas.
A srta. Brooke, donzela vitoriana de rendimentos garantidos, que só deseja fazer
uma coisa transcendente em sua vida, vê no sr. Casaubon, vinte e cinco anos mais
velho que ela, “um Bossuet vivo, cuja obra reconciliaria o conhecimento total com
a devoção extremosa”. E, malgrado a diferença de idade, resolve casar-se com ele
e dedicar sua vida a serviço do estudo histórico dos sistemas religiosos do mundo
que ele propunha. Mas, durante sua lua-de-mel em Roma, dissipam-se~lhes as
ilusões. Lá, Casaubon revela sua incapacidade de reagir ao passado que vive à sua
volta nos monumentos da cidade, e também sua incapacidade de levar a termo os
seus próprios esforços intelectuais. “Com o círio à sua frente”, diz a autora a
respeito de Casaubon, “ele se esqueceu de que não havia janelas e, em amargas
observações manuscritas sobre as ideias de outros homens acerca das divindades
solares, tornou-se indiferente ao brilho do sol”. No final, Dorthea renega as suas
obrigações para com Casaubon, o erudito, e se casa com o jovem Ladislaw, o
artista, consumando assim sua fuga do incubo da história. George Eliot não se
preocupa com a questão, mas a essência do seu pensamento é clara; a visão artística
e o estudo histórico são opostos, e as qualidades das respostas à vida que eles
respectivamente evocam são mutuamente exclusivas.
Ibsen, escrevendo na década seguinte, está caracteristicamente mais
preocupado com as limitações de uma cultura que valoriza mais o passado que o
presente e é mais explícito quanto às limitações dessa cultura. Hedda Gabler
carrega o mesmo fardo de Dorthea Brooke: o incubo do passado, um excesso de
46 TRÓPICOS DO DISCURSO
história - formado por um medo difuso do futuro, ou refletido nesse medo. Na volta
de sua lua-de-mel, Hedda e o marido, George Tesman, recebem as boas-vindas da
tia de Tesman, que faz uma insinuação quanto aos prazeres que a sua viagem de
núpcias lhes deve ter proporcionado. Ao que George responde: “Bem, para mim foi
também um tipo de viagem de pesquisa. Tive de pesquisar muito entre velhas
inscrições - e também precisei ler inúmeros livros, tia”.
Tesman, é claro, é um historiador, um sr. Casaubon mais jovem, empenhado
em escrever a história definitiva das indústrias domésticas no Brabante durante a
Idade Média. Seus árduos esforços consomem o seu estreito suprimento de afeição
humana; tanto que se pode dizer que grande parte da inquietação de Hedda tem
origem na devoção de George às indústrias domésticas do passado, quando ele
poderia demonstrar mais indústria doméstica no presente. “Você tinha que tentar,
só isso”, grita Hedda a certa altura: “Não ouvir falar de outra coisa senão da história
da civilização, de manhã, à tarde e à noite!”
Não que a causa das complexas insatisfações de Hedda possa ser localizada
nessa esfera tão limitada quanto a meramente sexual. Ela é a vítima de toda uma
rede de repressões que são endêmicas na sociedade burguesa, uma das quais é
representada pelo uso que Tesman faz do passado para evitar os problemas do
presente. Não obstante, o crescente desprezo de Hedda pelo marido se concentra na
sua devoção ascética à história, o domínio dos mortos e moribundos, que reflete e
aumenta o medo de Hedda ante um futuro desconhecido, simbolizado pelo filho
que se desenvolve no interior de seu corpo.
O rival de Tesman é Eilert Lõvberg, também historiador, porém no estilo
hegeliano, mais grandioso. E um filósofo da história, cujo livro - que se “ocupa da
marcha da civilização, em linhas gerais bem definidas, por assim dizer” - desperta
em Hedda a esperança de que a visão dele possa proporcionar uma possível
liberação do estreito mundo circunscrito pela imaginação fraturada de Tesman.
Ibsen tenciona mostrar-nos Lõvberg como um homem de talento e de empenho
criativo potencial. Ele está elaborando um livro sobre a civilização que solapará,
em vez de sustentar, a moralidade convencional, um livro que contará uma verdade
mais nobre do que a conveniente meia-verdade em que se baseavam o seu primeiro
livro e a sua reputação juvenil. Mas, à proporção que se desenrola a peça, Hedda
passa a odiá-lo; apo- dera-se do seu manuscrito e o destrói, provocando o suicídio
de Lõvberg. A destruição do manuscrito é, de um lado, um ato de vingança pessoal
contra Lõvberg pelo seu romance com a rival de Hedda, a sra. Elvsted. Mas, de
outro, é um repúdio simbólico a essa “civilização” da qual tanto Tesman quanto
Lõvberg, cada qual a seu modo, são devotos desavisados. No final, Hedda é
ameaçada com a sujeição ao juiz Brack, outro depositário da tradição, o que a leva
finalmente ao suicídio. E, na última cena, Tesman e a sra. Elvsted, que
sobreviveram à tragédia, dedicam-se à tarefa vitalícia de editar o Nachlass de
Lõvberg, revelando assim que nenhum dos dois aprendeu coisa alguma com os
trágicos acontecimentos de que poderiam ter prestado testemunho córico. Tesman
escreve o próprio epitáfio ao dizer: “Arrumar os documentos de outras pessoas é o
trabalho certo para mim”. O propósito de Ibsen é fazer-nos ver que isso
0 FARDO DA HISTÓRIA 47
Quando... eu quis reiniciar o meu trabalho e absorver-me uma vez mais num estudo rigoroso do
passado, descobri que aíguma coisa havia, se não destruído, pelo menos modificado o que ele me
proporcionava... e essa coisa era o sentimento do presente. A história do passado assumira para mim a
imobilidade, a fíxidez terrifícante das sombras noturnas do pequeno átrio de Biskra - a imobilidade da
morte. Em dias passados, agradara-me essa fíxidez, que permitia à minha mente trabalhar com precisão;
todos os fatos da história apareciam-me como espécimes num museu, ou, melhor, como plantas num
herbário, permanentemente secas, de modo que era fácil esquecer que um dia elas haviam estado cheias
de seiva e de sol. ... Acabei evitando as ruínas... Acabei desprezando a erudição que a princípio fora o meu
orgulho... Na medida em que era um especialista, eu me via como um tolo; na medida em que era um
homem, porventura me conhecia?
E assim, quando volta a Paris para pronunciar conferências sobre cultura latina
tardia, Michel opõe a sua percepção do presente a essa consciência de- bilitante do
passado:
Descrevi a cultura artística como algo que se derrama sobre todo um povo, como uma secreção,
que a princípio é um sinal de pletora, de uma superabundância de sadde, mas que depois se endurece, se
enrijece, impede o pleno contato da mente com a natureza, esconde sob a constante aparência de vida uma
diminuição da vida, transforma-se num invólucro exterior no qual a mente confinada enlanguesce e
definha, na qual ela finalmente morre. Enfim, levando o meu pensamento às suas conclusões lógicas,
mostrei que a cultura, nascida da vida, é a destruidora da vida.
Logo, porém, mesmo esse uso lõvbergiano do passado para destruir o passado perde
a sua atração para Michel, e ele renuncia à carreira acadêmica para buscar a
comunhão com aquelas forças sombrias que a história obscureceu e a cultura
debilitou em sua pessoa. A conclusão problemática do livro sugere que Gide nos
quer mostrar Michel como alguém permanentemente mutilado por sua precoce
48 TRÓPICOS DO DISCURSO
4.
da guerra; não lhes ensinara o que deles se esperava durante a guerra; e, quando
esta acabou, os historiadores pareciam incapazes de elevar-se acima das estreitas
alianças partidárias e de compreender a guerra de algum modo significativo.
Quando não se limitavam a papaguear os slogans em voga dos governos com
respeito ao propósito criminoso do inimigo, os historiadores tendiam a recorrer à
concepção de que ninguém quisera absolutamente a guerra; de que ela “apenas
acontecera”.
Obviamente, é bem possível que tenha sido esse o caso; porém parecia
menos uma explicação do que uma confissão de que nenhuma explicação era
possível, pelo menos em bases históricas. Se se poderia dizer o mesmo de outras
disciplinas não importava. Os estudos históricos - se incluirmos os clássicos sob
essa denominação - haviam constituído o centro dos estudos humanistas e
científicos antes da guerra; portanto, era natural que se tornassem o alvo principal
de quantos haviam perdido a fé na capacidade do homem para compreender a sua
situação depois que terminara a guerra. Paul Valéry expressou com mais
propriedade a nova atitude anti-historicista quando escreveu:
A história é o mais perigoso produto que surgiu da química do intelecto... A história justificará
qualquer coisa. Ela ensina precisamente coisa alguma, pois traz em si todas as coisas e fornece exemplos
de todas as coisas... Nada foi mais completamente arruinado pela última guerra do que ã pretensão à
antevisão. Mas isso não se deveu a qualquer falta de conhecimento da história, certo?
Ocorre-me o pensamento de que poderia ser mais revolucionário e mais digno de um homem
vigoroso e ativo ensinar ao seu companheiro esta verdade simples: Es o que és, e nunca serás diferente;
esta é, foi e sempre será a tua vida. Quem tem dinheiro vive muito; quem tem autoridade não pode cometer
nenhuma injustiça; quem tem poder firma o direito. Assim é a história! Ecce historiai Eis o presente; toma
da sua carne, come e morre.
específica nem uma bagagem intelectual específica são requeridas para o estudo da
história. O que se costuma denominar a “preparação” do historiador consiste, na
maioria dos casos, no estudo de algumas línguas, em estágio nos arquivos e no
cumprimento de alguns exercícios destinados a familiarizá-lo com trabalhos de
referência comuns e periódicos ligados ao seu campo. Quanto ao mais, uma
experiência geral dos negócios humanos, a leitura de áreas periféricas, a
autodisciplina e o Sitzfleisch são tudo quanto se requer. Qualquer um é capaz de
dominar os requisitos com toda a facilidade. Como se pode dizer, então, que o
historiador profissional está especificamente qualificado para definir as perguntas
acerca do registro histórico e por si só é capaz de determinar quando foram dadas
as respostas adequadas às questões assim colocadas? Já não é uma verdade óbvia
para a comunidade intelectual como um todo que o estudo desinteressado do
passado - “a bem do próprio passado”, como diz o clichê - dignifica ou até ilumina
a nossa humanidade. Com efeito, o consenso tanto nas artes quanto nas ciências
parece ser exatamente o oposto. E segue-se que o fardo do historiador em nossa
época é restabelecer a dignidade dos estudos históricos numa base que os coloque
em harmonia com os objetivos e propósitos da comunidade intelectual como um
todo, ou seja, transforme os estudos históricos de modo a permitir que o historiador
participe positivamente da tarefa de libertar o presente do fardo da história.
5.
6.
Gombrich em Art and Illusion, não se espera que Constable e Cézanne tenham
procurado a mesma coisa numa dada paisagem, e, quando se comparam suas
respectivas representações de uma paisagem, não se espera ser necessário fazer uma
escolha entre elas e determinar qual é a “mais correta”. O resultado dessa atitude
não é o relativismo, mas o reconhecimento de que o estilo escolhido pelo artista
para representar uma experiência interior ou uma exterior traz consigo, de um lado,
critérios específicos para determinar quando uma dada representação é
internamente consistente e, de outro, fornece um sistema de tradução que permite
ao observador ligar a imagem à coisa representada em níveis específicos de
objetivação. Dessa maneira, o estilo funciona como aquilo que Gombrich chama
“sistema de notação”, como um protocolo provisório ou uma etiqueta. Quando
observamos a obra de um artista - ou, no caso, de um cientista - não indagamos se
ele vê o que veríamos no mesmo campo de fenômenos gerais, mas se introduziu ou
não em sua representação alguma coisa que poderia ser considerada como
informação falsa por alguém que é capaz de entender o sistema de notação
utilizado.
Aplicado à escrita histórica, o cosmopolitismo metodológico e estilístico
promovido por este conceito de representação obrigaria os historiadores a
abandonar a tentativa de retratar “uma parcela particular da vida, do ângulo correto
e na perspectiva verdadeira”, como expressou um famoso historiador anos atrás, e
a reconhecer que não há essa coisa de visão única correta de algum objeto em
exame, mas sim muitas visões corretas, cada uma requerendo o seu próprio estilo
de representação. Isto nos permitiria considerar seriamente as distorções criativas
oferecidas pelas mentes capazes de olhar para o passado com a mesma seriedade
com que o fazemos, mas com diferentes orientações de ordem afetiva e intelectual.
Então, já não deveríamos esperar ingenuamente que as afirmações sobre uma dada
época ou sobre um conjunto de acontecimentos do passado “correspondam” a al-
gum corpo preexistente de “fatos em estado natural”. Pois deveríamos reconhecer
que o que constitui os próprios fatos é o problema que o historiador, como o artista,
tem tentado solucionar na escolha da metáfora com que possa ordenar o seu mundo
passado, presente e futuro. Deveríamos exigir apenas que o historiador
demonstrasse algum tato no uso das suas metáforas regentes: que não as
sobrecarregasse com dados nem deixasse de utilizá-las ao máximo; que respeitasse
a lógica implícita no modó do discurso pelo qual optou; e que, quando a sua
metáfora começasse a se mostrar incapaz de conciliar certos tipos de dados, ele
abandonasse essa metáfora e procurasse outra, mais rica e mais abrangente do que
aquela com que começou - da mesma forma que um cientista descarta uma hipótese
tão logo se esgota a sua utilização.
para todos os três, a história era menos um fim em si que uma preparação
para um entendimento e aceitação mais completos da responsabilidade individual
na criação da humanidade comum do futuro. Hegel, por exemplo, escreve que na
reflexão histórica o Espírito é “tragado na noite da sua própria autoconsciência; sua
existência desvanecida, contudo, é conservada ali; e essa existência descartada - o
estado anterior, porém renascido do ventre do conhecimento - é o novo estágio da
existência, um novo mundo, uma reencarnação ou um novo modo do Espírito”.
Balzac apresenta a sua Comédia Humana como uma “história do coração humano”
que faz o romance avançar além do ponto em que Scott o deixara, graças ao
“sistema” que entrelaça as várias partes do todo numa “história completa da qual
cada capítulo é um romance e cada romance o retrato de um período”, e o conjunto
promove uma percepção mais realista da singularidade da época atual. E, por fim,
Tocqueville oferece o seu Ancien Régime como uma tentativa de “deixar claro em
que aspectos [o sistema social presente] se assemelha ao sistema social que o
antecedeu e em que aspectos se distingue dele; e determinar o que se ganhou com
essa revolução”. Em seguida ele ressalta: “Quando encontrei em nossos
antepassados alguma dessas virtudes tão vitais a uma nação, mas hoje quase
extintas - um espírito de independência salutar, ambições elevadas, fé em si mesmo
e numa causa -, transformei-a em consolo. De modo semelhante, sempre que
encontrei traços de algum daqueles vícios que depois de destruir a antiga ordem
ainda afetam o corpo político, enfatizei-o; pois é à luz dos males que eles
anteriormente provocaram que podemos avaliar os danos que ainda podem fazer”.
Em síntese, todos os três interpretavam o fardo do historiador como a
responsabilidade moral de libertar o homem do fardo da história. Não viam no
historiador alguém que prescreve um sistema ético específico, válido para todos os
tempos e lugares, mas viam nele alguém incumbido da tarefa especial de induzir
nos homens a consciência de que a sua condição presente sempre foi em parte um
produto de opções especificamente humanas, que poderiam, pois, ser mudadas ou
alteradas pela ação humana exatamente nesse grau. A história, assim, sensibilizava
os homens para os elementos dinâmicos contidos no presente, ensinava a
inevitabilidade da mudança e desse modo ajudava a libertar esse presente do
passado sem revolta nem ressentimento. Só depois que os historiadores perderam
de vista esses elementos dinâmicos contidos no seu próprio presente vivido e
começaram a relegar toda mudança significativa a um passado mítico -
contribuindo assim, de maneira implícita, unicamente para a justificativa do status
quo - é que críticos como Nietzsche puderam acusá-los com razão de serem servos
da trivialidade presente, o que quer que ela pudesse ser.
Atualmente, a história tem uma oportunidade de se valer das novas
perspectivas sobre o mundo oferecidas por uma ciência dinâmica e por uma arte
igualmente dinâmica. Tanto a ciência como a arte transcenderam as concepções
mais antigas e estáveis do mundo que exigiam que elas expressassem uma cópia
literal de uma realidade presumivelmente estática. E ambas descobriram o caráter
essencialmente provisório das construções metafóricas de que se valem para
compreender um universo dinâmico. Por isso, afirmam implicitamente a verdade
0 FARDO DA HISTÓRIA 63
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA
28 Essa generalização é mais verdadeira no tocante aos teóricos americanos e ingleses do que aos da Europa
Continental. Para uma seleção representativa das abordagens do problema da explicação histórica desen-
volvidas nos últimos vinte e cinco anos nos Estados Unidos, no Canadá e na Grã-Bretanha, ver W. H. Dray
(ed.), Philosophical Anulysis and History (New York, 1966). Dray resume as principais questões na sua própria
obra, Philoxophy of History (Englewood Cliffs, N. J., 1964); mas ver também Louis O. Mink, “Philosophical
Analysis and Historical Understanding”, Review of Metaphysics 21, n. 4 (june 1968): 667- 698. O interesse da
Europa Continental pelo problema da interpretação histórica se desenvolveu no contexto do interesse geral
pela hermenêutica. Ver Aríhur Child, Interpretalion: A General Theory (Berketey e Los Angeles, 1965); e idem,
“Five Conceptions of History”, Ethics 68, n. 1 (Octobcr 1957); 28-38.
29 O termo meta-histôria é usado como sinônimo de “filosofia especulativa da história” por Northrop Frye em
“New Directions from Old”, em Fables of Ídentity (New York, 1963), pp. 52-66. Sobre a filosofia especulativa
da história, ver Dray, Philoxophy of History, pp. 59 e ss., e W. H. Walsh, Introáuction to the Phitosophy of History
(London, 1961), cap. 3. Sobre a concepção da “filosofia especulativa da história” como mythopoesis implícita,
ver Karl Lõwith, Mcaning in History: The Theological Implica!ions of the Philoxophy of History (Chicago, 1949).
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 91
30 G. W. F. Hegel, Vorlesungen überdie Philosaphíe der Geschichte (Frankfurt am Main, 1970), pp. 14 e ss. Por
historiografia “reflexiva”, Hegel entende a história escrita de um ponto de vista conscientemente crítico e com
plena percepção da distância temporal entre o historiador e os acontecimentos sobre os quais ele escreve. Isto
em comparação com a historiografia “original” ([ursprüngliche), na qual o historiador escreve, por assim dizer,
“ingenuamente” sobre acontecimentos no seu próprio presente, à maneira de Tucídides, e com a historiografia
“filosófica” (philosophischc), na qual um filósofo, refletindo sobre as obras dos historiadores, procura extrair
as leis gerais ou princípios que caracterizam o processo histórico como um todo. Na categoria de historiografia
reflexiva, Hegel estabelece novas distinções com base na autoconsciência crítica do historiador, que vão do
historiador universal “ingenuamente” reflexivo (como Ti to Lívio) aos historiadores conceituais “sentimentais”
de sua própria época (como Niebuhr),
31 J. G. Droysen, “Grundriss der Historik’', em Historik: Vorlesungen der Enzyklopãdie und Methodologie der
Geschichte, ed. Rudolf Hubner, 3. ed. (München, 1958), pp. 340-343.
32 Fricdrich Nietzsche, Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben (Basel, VerJag Birkhauser, s. d,), pp.
17-27.
33 Benedetto Croce, History: hs Theory andPractice, trad. Douglas Ainslee (New York, 1960), pp. 236 e ss.
92 TRÓPICOS DO DISCURSO
34 Droysen, “Grundriss der Historik,” pp. 339, 344, 361-362. A citação é da versão inglesa da obra de Droysen,
feita por E. B. Andrew, Outline of the Principies of History (Boston, 1893), p. 26.
S. Nietzsche, Vom Nutzen und Nachteil der Historie, p. 57. As citações dessa obra no texto são feitas a partir da
tradução de Adrian Collins, em The Use and Abuse of History (Indianapolis e New York, 1957), pp. 37-38.
36 Nietzsche, Vom Nutzen und Nachteil der Historie, p. 59 (na trad. de Collins, p. 39).
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 93
39 Ver Isaiah Berlin, “The Conccpt of Scientific History”, em Dray, Philosophical Analysis oncl History, pp. 40-
51.
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 95
infracientíficos40.
Em sua “Introdução a Le Cm et le Cuit”, Lévi-Strauss afirma que o aspecto
interpretativo da historiografia é especificamente mítico. Comentando a pletora de
obras que se ocupam da Revolução Francesa, ele observa que
nelas os autores nem sempre fazem uso dos mesmos incidentes; quando o fazem, os incidentes são
revelados sob luzes diferentes. E, no entanto, estas são variações relacionadas com o mesmo naís, o mesmo
período e os mesmos acontecimentos - acontecimentos cuja realidade se dispersa por cada nível de uma
estrutura multiestratificada.
Isto sugere que o critério de validade pelo qual se poderia avaliar os relatos
históricos não pode depender de seus “elementos”, isto é, de seu suposto conteúdo
“factual”. Ao contrário, observa ele, “procurado isoladamente, cada elemento
mostra que está fora de alcance. Mas alguns deles derivam sua coerência do fato
de poderem ser integrados a um sistema cujos termos são mais ou menos críveis
quando comparados à coerência global da série”. A coerência da série, todavia, é a
coerência do mito.. Como diz Lévi-Strauss: “A despeito dos esforços meritórios e
indispensáveis para dar vida a um outro momento da história e para apropriar-se
dele, uma história clarividente deveria admitir que ele jamais escapa
completamente à natureza do mito”41.
Decerto, em La Pensée Sauvage, Lévi-Strauss admite que a história pode
distinguir-se do mito em virtude da sua dependência dos “dados” que constituem a
sua especiosa estrutura objetiva, e em virtude da sua responsabilidade para com
eles. As datas, diz ele, justificam a busca de “relações temporais” por parte do
historiador e sancionam a conceituação dos acontecimentos em função “da relação
do antes e do depois”. Mas, continua ele, mesmo essa confiança no registro
cronológico não isenta o historiador de interpretações míticas do seu material. Pois,
com efeito, não se encontram aí apenas cronologias “quentes” e “frias”
(cronologias em que aparece um número maior ou menor de dados a exigir inclusão
em algum relato cabal daquilo “que estava acontecendo”), porém, mais importante
ainda, os próprios dados já nos chegam agrupados em “classes de datas” que
constituem os supostos “domínios da história” que os historiadores de uma dada
época têm de enfrentar na forma de problemas a solucionar. Em suma, o recurso à
sequência cronológica não oferece nenhum indulto da acusação de que a coerência
do relato histórico é mitológico em sua essência. Pois a crônica não é menos
constituída em registro do passado pela própria ação do historiador do que o é a
narrativa que ele elabora com base nela. E quando se trata de elaborar um relato
abrangente dos vários domínios do registro histórico, qualquer “pretensa
continuidade histórica” que se pudesse estabelecer em tal relato “só pode ser
assegurada por meio de esquemas fraudulentos” impostos pelo próprio historiador
ao registro.
impor) um padrão aos seus dados; deve proceder “indutivamente, coletando os seus
fatos e tentando evitar quaisquer padrões de formação, exceto aqueles que ele vê,
ou tem a honesta convicção de ver, nos próprios fatos”. Diferentemente do poeta,
que, no entender de Frye, trabalha “dedutivamente”, a partir de uma apreensão do
padrão que tenciona impor ao seu assunto, o historiador trabalha com vistas a
unificar a forma da sua narrativa, depois de ter terminado a sua “pesquisa”. Mas a
diferença entre um relato histórico e um relato ficcional do mundo é formal, não é
substantiva; reside nos pesos relativos atribuídos aos elementos construtivos
presentes neles: “O padrão de composição do livro do historiador, que é o seu
mythos ou entrecho, é secundário, da mesma forma que o detalhe é secundário para
o poeta”45.
Desse modo, embora pretenda insistir nas importantes diferenças entre
poesia e história, Frye é sensível ao grau em que elas se parecem uma com a outra.
E, embora queira acreditar que a história tradicional pode ser distinguida da meta-
história, na sua própria análise das estruturas da ficção em prosa, Frye deve estar
pronto a admitir que existe um elemento mítico na história tradicional pelo qual as
estruturas e processos descritos em suas narrativas são dotados de sentidos de um
tipo especificamente fictício. Pode-se dizer que uma interpretação histórica, tal
como uma ficção poética, apela para seus leitores como representação plausível do
mundo, em virtude do seu recurso implícito àquelas “estruturas de enredo
genéricas” ou formas arquetípicas de estória que definem as modalidades de uma
dada dotação literária da cultura30. Pode-se dizer que, não menos que os poetas, os
historiadores, quando constroem em suas narrativas padrões de sentido
semelhantes aos fornecidos de maneira mais explícita pela arte literária das culturas
a que pertencem, adquirem uma “disposição explicativa” - além e acima de quais-
quer explicações formais que possam oferecer de eventos históricos específicos.
Este elemento mítico na sua obra é reconhecível naqueles relatos históricos que,
como O Declínio e Queda do Império Romano de Gibbon, continuam a ser
reverenciados como clássicos muito tempo depois que os “fatos” neles contidos
foram reconhecidamente apurados por pesquisas subsequentes e que seus
argumentos explicativos formais foram transcendidos pelo advento de novas
teorias sociológicas e psicológicas.
Estendendo as ideias de Frye, pode-se afirmar que a interpretação na história
consiste em fornecer a uma sequência de acontecimentos uma estrutura de enredo,
de tal modo que a sua natureza de processo abrangente seja revelada por figurar
como uma estória de um tipo particular. O que um historiador pode urdir na forma
de uma tragédia, outro pode fazê-lo na forma de comédia ou de romance. Vista
desse modo, a “estória” que o historiador intenta “encontrar” no registro histórico
é proléptica ao “enredo” pelo qual os acontecimentos são por fim revelados para
representar uma estrutura reconhecível de relações de um tipo especificamente
mítico. Na narrativa histórica, a estória está para o enredo assim como a exposição
do “que aconteceu” no passado está para a caracterização sinóptica daquilo que
mas com que grau de força pensar - e como situar com precisão os constituintes do pensável... para atribuir
aos tipos do fato em questão o elemento ou a qualidade do causativo, ou da causalidade, isto é, a origem
genérica, ... e definir, por seieção-e-arranjo de termos apropriados que constituem a sua forma, essa
espécie ou classe de importância peculiar à ocasião que abrangem.
O elemento mítico na narração histórica, em suma, indica, “formalmente, a
gravidade e o respeito apropriados” que o leitor deve conceder às espécies de fatos
descritos na narrativa48.
46 Ver Mink, “The Autonomy of Historical Understanding”, pp. 179-186, e Walsh, Philosophy af History, p. 33.
Utilizo o termo enredo quase que tio mesmo sentido com que Mink usa a noção de “sintaxe” dos eventos, que
o historiador busca dentro ou por trás da confusão de fatos com que se depara na narrativa. Walsh distingue
entre uma “mera” crônica e a “narrativa plana” construída pelo historiador a partir dos eventos contidos na
crônica. Na “narrativa piana”, diz ele, “todo evento ocupa, por assim dizer, o seu lugar natural, e faz parte
de um todo inteligível. Neste aspecto, o ideal do historiador é em princípio idêntico ao do romancista ou do
dramaturgo”. Sobre a distinção entre estória e enredo, ver Boris Tomashevsky, “Thematics”, pp. 66-75, e
Boris Eichenbaum, “The Theory of the ‘Formal Mcthod’”, pp. 115-121, ambos em Russian Formalist
Criticism: Four Essuys, trad. Lee T. Lemon e Marion J. Reis (Lincoln, 1965).
47 Frye, Anutomy, pp. 352-353.
48 Warner Berthoff, “Fiction, Hisiory, Myth: Notes towards the Discrimination of Narrative Forms”, em The
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 99
Interpretation of Narrative: Theory and Practice, ed. Morton W. Bloomfield (Cambridge, 1970), pp. 277-278.
49 R. G. Collingwood, The Idea of History (Oxford, 1946), pp. 239-241.
50 Collingwood, The Idea of History, pp. 241-245.
100 TRÓPICOS DO DISCURSO
26. Em suas Reflections on the Revolution in France (New York, 1961), Burke caracteriza a Revolução Francesa
como um “estranho caos de frivolidade e ferocidade” em que “todos os tipos de crime” se “misturam a toda
sorte de loucura”. Ele a chama de “monstruosa cena tragicômica” e compara-a à Revolução Inglesa de 1688,
na qual se tornaram finalmente manifestos os verdadeiros princípios da vida nacional. Ver Rejlecíions, pp.
21-22, 29-37. Já Michelet fala dos acontecimentos de 1789-1790 como uma época de unidade perfeita do povo,
do país, da natureza e de Deus: “A fraternidade removeu todo obstáculo, todas as federações estão prestes a
se confederar e a união tende à unidade. - Chega de federações! Elas são inúteis, apenas uma é necessária
agora - a França; e ela parece transfigurada na glória de julho... Tudo respira o puro amor à unidade”. Jules
Michelet, History ofthe French Revolution, trad. Charles Cocks (Chicago, 1967), pp. 442-444. Para a concepção
tocquevilliana da Revolução, ver o famoso capítulo 3 da Parte I de The Old Regime and the French Revolution,
trad. Stuart Gilbert (New York, 1955), pp. 10-13, e cap. 5 da mesma Parte I, “O que realizou a Revolução
Francesa?”, pp. 19-21. Ranke, com uma confiança tipicamente “cômica” no poder da história para efetuar
por meios malévolos uma ordem política geralmente saudável, considera a sua própria época da Restauração
como uma condição perfeitamente “reconciliada”. Em seu Politische Gesprüche, ele caracteriza nos seguintes
termos o sistema dos Estados-nação que tomou forma no despertar da época revolucionária; “listas diversas
comunidades separadas, materiais e espirituais, suscitadas pela energia moral, crescendo irresistivelmente,
progredindo em meio a todo o tumulto do mundo rumo ao ideal, cada uma ao seu próprio modo! Observai-
as, estes corpos celestiais, nos seus ciclos, na sua gravkação mútua, nos seus sistemas!” Theodore von Laue,
Leopold von Runke: The Farmative Years (Princeton, 1950), p. 180. Para a comparação de Marx entre a história
da França e a da Alemanha em função da natureza “trágica” da primeira e da natureza “cômica” da segunda,
ver sua Critique ofHegeVs Phtlosophy ofRight.
27. Frye aborda este ponto no seu ensaio “New Directions from Old”, quando sugere que “há algo do mesmo tipo
de afinidade entre poesia e metafísica que há entre poesia e meta-história” (p. 56). Mas a pressuposição
subjacente à teoria das ficções exposta em Anatomy of Critictim é que as visões míticas do mundo que não
foram deslocadas se opõem à visão de mundo que fundamenta estruturas “realistas” de prosa discursiva,
descritiva e assertiva, com as “ficções” ocupando um plano médio entre elas. Esta dicotomização seria
bastante legítima se os pólos do espectro fossem representados por visões míticas, de um lado, e por
conceituações científicas da realidade, de outro. Mas essas representações do mundo em prosa assertiva na
forma de história não podem ser assimiladas à categoria do científico de um modo inambíguo. Constitui uma
verdade apenas superficial que a história dirige a sua atenção mais para o conteúdo da narrativa (para os
“fatos”) cue para a forma da narrativa em que estão incrustados. Tal como o romance realista, uma história
é em certo nível uma alegoria. O grau de deslocamento da estrutura de enredo informativa (mítica) pode ser
maior na história do que na poesia, mas as diferenças entre uma história e um relato ficcional da realidade é
uma questão de grau, e não de tipo. Dos elementos formais das narrativas históricas podemos dizer o que
Frye diz das ficções em geral. Ou seja, a “forma” pode ser concebida como um princípio “formador” ou como
um princípio “includeme”. Como “formador”, é possível pensá-lo como uma narrativa; como “includente”,
pode-sc pensá-lo como fornecendo “sentido”
(p. 83). E assim também podemos distinguir entre dois tipos de sentido proporcionados pela narrativa
histórica; uma história contém ao mesmo tempo elementos “hipotéticos” e “assertivos”, da mesma forma que
os romances “realistas” contêm (p. 80). Uma história pode apresentar-se como uma “práxis de mimese”,
enquanto os mitos podem ser “imitações secundárias’* de ações - isto é, de ações típicas - que na verdade
podem torná-las mais filosóficas que a história (p. 83). Mas os historiadores não poderh.m compor as suas
narrativas sem invocar, pelo menos implicitamente, as estruturas formais do mito para os efeitos
“formadores” e “includentes” das suas representações da realidade.
renascentista italiana. Um dos propósitos explicitamente declarados de Burckhardt
era escrever história de uma maneira que frustrasse as expectativas convencionais
no tocante à coerência formal do campo histórico. Estava buscando, em suma, o
mesmo tipo de efeito que visa o autor de uma sátira. E, na verdade, Burckhardt
urde a sua estória da Renascença no modo da satura, ou miscelânea, que confere
ao retrato que traçou desse período da história o seu caráter notoriamente elusivo
como “interpretação”. Admiradores mais recentes de Burckhardt elogiaram a sua
oposição resoluta a qualquer impulso no sentido de “superconceituar” as suas
descrições do passado ou de super-urdir as estórias que conta sobre esse passado.
Não reconheceram que essa recusa inflexível a impor uma forma de registro
histórico é em si mesma uma decisão poética, o tipo de decisão que alicerça a ficção
satírica, uma decisão que Burckhardt justificou em seu foro íntimo quando recorreu
ao solipsismo histórico de seu mestre filosófico Schopenhauer. Burckhardt não é
menos meta-histórico do que Hegel; apenas sua marca de meta-história não foi
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 103
reconhecida pela ficção poética que ele representa como foi a de Hegel 51.
O provimento de uma estrutura de enredo, a fim de dar ao relato narrativo
do “que aconteceu no passado” os atributos de um processo de desenvolvimento
abrangente que se assemelhe à articulação de um drama ou de um romance,
constitui um elemento na interpretação do passado pelo historiador. Podemos agora
considerar um outro aspecto das ações interpretativas do historiador, o contido no
argumento formal que ele poderia oferecer (ou que pode ser extrapolado a partir
das suas parábases sobre a sequência dos eventos representados na narrativa) para
“explicar” em termos nomológico- dedutivos por que os eventos se desenvolveram
do modo como parecem tê- lo feito, como dados no relato narrativo. É costume
afirmar que todos esses argumentos nomológico-dedutivos oferecidos pelo
historiador ou são incompletos, defeituosos ou meramente corriqueiros, quando
comparados aos paradigmas daquelas explicações fornecidas por ciências
verdadeiras como a física e a química. E, para o nosso propósito, é conveniente a
concordância geral entre idealistas e positivistas com relação à natureza
comumente insatisfatória de todas as supostas explicações causais oferecidas pelos
historiadores de eventos humanos e sociais, a aceitação comum por eles do seu
caráter semicientífico ou pseudocientífico. Pois isto nos permite proceder de
imediato ao exame do elemento interpretativo em todas essas supostas explicações.
Como os profissionais de todos os campos que ainda não se tornaram
ciências completas, os historiadores, em seus esforços de explicar o passado,
empregam paradigmas diferentes da forma que uma explicação válida pode
assumir. Por paradigma entendo o modelo do que parecerá um conjunto de
acontecimentos históricos depois que foram explicados. Um dos propósitos de uma
explicação é substituir uma percepção vaga ou imprecisa das relações
predominantes entre os fenômenos verificados num dado campo por uma
percepção clara ou precisa. Mas a noção do que possa parecer uma percepção clara
e precisa de um dado domínio do acontecimento histórico difere de historiador para
historiador. Para alguns, um domínio histórico explicado apresenta o aspecto de
um grupo de entidades dispersas, cada uma das quais é claramente discernível
como particularidade única, enquanto o atributo partilhado por todas nada mais é
que a circunstância de habitarem uma comunidade singular de ocorrências. Em
51 Lõwith (Meaning in History, p. 26) considera Burckhardt o primeiro historiador moderno de estatura
inegavelmente clássica a escrever a história sem concessões aos mitos que fascinaram todos os grandes meta-
histori adores antes dei e. Mas teria sido mais exato considerá-lo um cético histórico clássico. O ponto de vista
de Burckhardt é consistentemente irônico, e suas teorias narrativas são as da sátira. Ele denomina a sua
Civilização do Renascimento na Itália de “ensaio” e renuncia explicitamente a qualquer tentativa de
reivindicar para ela o status de relato objetivo ou científico do período tratado. Assim também, Burckhardt
descarta qualquer tentativa de construir uma narrativa diacrônica dos eventos, estruturas e processos que
formam o seu relato da Renascença. Os materiais são agrupados com base em categorias bem gerais ou em
função dos temas, mas não há qualquer empenho em desenvolver um argumento ou uma “história” nos
capítulos individuais do livro; e cada capítulo termina com uma passagem que parece indicar a intenção do
autor de frustrar as tentativas do leitor de constituí-la retrospectivamente em quaisquer termos cogni ti
vãmente significativos. Trata-se literalmente de uma satura, uma miscelânea ou “saíada”, cujo objetivo pode
ser interpretado como semelhante ao do moderno anti-romance - vale dizer, desafiar as expectativas da
“estória” convencional que normalmente trazemos à consideração de uma história.
104 TRÓPICOS DO DISCURSO
52 A distinção aqui estabelecida, entre estratégias de explicação dispersivas e integrativas, é extraída de Stephen
C. Pepper, World Hypotheses (Berkeley e Los Angeles, 1966), pp. 142 e ss., uma análise lamentavelmente
negligenciada das modalidades do discurso filosófico. Pepper afirma que, basicamente, há apenas quatro
hipóteses de mundo “cogni ti vãmente responsáveis”, cada uma das quais introduz no debate filosófico a sua
própria teoria de verdade e concepção das táticas pelas quais as afirmações de verdade podem ser verificadas
com propriedade. Essas quatro hipóteses de mundo, ele as denomina formis- mo, organicismo, mecanicismo
e con textual is mo. Substituí o termo idio grafia pelo seu “formismo”, de
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 105
têm mais ou menos o mesmo aspecto das notas reunidas por um naturalista ou por
um antropólogo no trabalho de campo, mas com esta diferença: enquanto o
naturalista e o antropólogo vêem nas suas observações dados a serem convertidos
subsequentemente em generalizações sobre a estrutura do campo como um todo,
o historiador idiográfico considera acabada a sua obra tão logo os fenômenos que
observou foram adequadamente representados em prosa descritiva exata.
Sem dúvida, alguns historiadores idiográficos insistem em dizer que a
observação dos dados deve acompanhar-se da tentativa de generalizar sobre eles,
de maneira a oferecer ao leitor alguma percepção do “sentido” ou “significado”
possível dos dados observados. Todavia, não se imagina que essas
vez que ele parecia mais auto-explicativo do seu conteúdo para uma discussão dos equivalentes
historiográfícos das hipóteses de mundo de Pepper.
30. B. G. Niebuhr, o grande historiador romântico de Roma, foi um dos primeiros a conceber a história como
palingenesia, especialmente do espírito popular que supostamente estava por trás do relato documentário.
Michelet, numa famosa observação sobre as diferenças entre a sua obra e a de Thierry e Guizot, diz
explicitamente ser a sua tarefa de historiador a “ressurreição” das vozes mortas das gerações perdidas - e
principalmente daquelas que se perderam para a “história” concebida como a estória dos grandes homens e
das aristocracias do passado. A defesa mais eloqüente desse conceito de historiografia, concebida como uma
combinação de poesia c ciência, c o ensaio de Thomas Carlyle, “On History”. Ver A Carlyle Reader, ed. G. B.
Tennyson (New York, 1969), pp. 57-60.
31. Wilhelm Windelband, “Geschichte und Naturwissenschaft”, em Prüludien (Freiburg im Breisgau e
Tübingen, 1884), 2:142-45.
generalizações funcionem como hipóteses basicamente capazes de se transformar
em teorias gerais da causalidade histórica, ou mesmo numa base para um esquema
geral de classificação que se pudesse aplicar aos fenômenos em outros setores do
campo histórico. As generalizações funcionam antes como caracterizações
idiográficas de “contextos” distintos para os acontecimentos individuais
discernidos no campo específico em exame. Este procedimento dá origem àquelas
caracterizações de “períodos”, “tendências”, “eras”, “movimentos” etc. que nos
permitem conceber todo o processo histórico uma sucessão de estruturas e
processos separados, cada um com seus próprios atributos únicos; e o significado
de cada um residiria na “qualidade” ou “atmosfera” de sua textura ricamente
variada53. Quando um acontecimento é posto dentro de seu “contexto” pelo método
que Walsh chamou “coligação”, considera-se completada a tarefa explicatória do
historiador, nessa análise54. O movimento para a integração dos fenômenos cessa
presumivelmente no ponto em que um dado contexto pode ser caracterizado em
termos modestamente gerais. As entidades que habitam o campo em análise ainda
continuam dispersas, porém agora estão provisoriamente integradas umas às
outras na forma de ocupantes de um “contexto” compartilhado ou, como se
costuma dizer, são identificadas como objetos imersos numa “atmosfera” comum.
Essa noção de explicação fundamenta as reivindicações feitas à história como tipo
de ciência pelos que propõem o que Auerbach chama de “historicismo
atmosférico”55. A explicação está completa quando a “atmosfera” foi evocada
numa representação em prosa bem-sucedida. Podemos - seguindo Pepper - chamar
essa estratégia explicatória de contextualismo.
Pode-se observar que esses dois tipos de explicação histórica, a idiografia e
o contextualismo, tenderão a conceber que a explicação dada pelo historiador é
virtualmente indistinguível da “estória” contada no decorrer da narração. Posto que
modestamente integrativo em seu objetivo geral, o contextualismo não estimula
uma síntese organicista de todo o campo, ao modo de Hegel, nem uma redução
mecanicista do campo em termos de leis causais universais que poderiam
“explicar” por que o campo tem as características peculiares que o tornam
identificável como “contexto” de um tipo particular, à maneira de Marx. Assim,
por exemplo, Burckhardt irá declarar continuamente, em todo o seu livro sobre a
cultura da Renascença, que as entidades que ele observou são banhadas por uma
luz comum e partilham o mesmo contexto, o que as torna identificáveis como
fenômenos especificamente pós-medievais e pré-modernos. Mas recusa-se a
especular sobre as “causas” de serem elas o que são e condena as tentativas dos
historiadores positivistas e idealistas de continuar a especificar as razões para
serem o que são, para estarem onde estão e quando estão56.
E desnecessário dizer que, para os historiadores de concepção mecanicista
ou organicista da forma que o campo histórico explicado deve assumir, os produtos
das tentativas idiográficas e contextualistas de “explicar” o que aconteceu no
passado são inteiramente insatisfatórios. O organicista insiste na necessidade de
relacionar os vários “contextos” que perceptivel- mente existem como partes no
registro histórico ao todo que é a história em geral. Ele luta por identificar os
“princípios” pelos quais os diferentes períodos da história podem integrar-se num
processo macrocósmico singular de desenvolvimento. E isso significa que para ele
a explicação deve assumir a forma de uma síntese na qual deve ser mostrada cada
uma das partes do todo a fim de refletir a estrutura da totalidade ou prefigurar a
forma do fim do processo inteiro ou pelo menos a última fase do processo. Hegel,
por exemplo, proíbe expressamente o historiador de fazer especulações sobre o
futuro. A sabedoria histórica, diz ele, só pode estender-se à compreensão do próprio
presente do historiador. Mas para ele esse presente especioso constitui o ponto
culminante de uma sequência milenar de fases num processo que deve ser
considerado universalmente humano57.
55 Cf. Erich Auerbach, Mimesis: The Rcpresentaíion of Reaiity in Western Literature, trad. Willard Trask
(Princeton, 1968), pp. 473-477.
56 Ver, por exemplo, o parágrafo “Societies and Festivais” em Civilization ofthe Renaissance in Italy, trad.
S. G. C. Middlemore (London, 1960), e as observações de Burckhardt sobre as causas da “grande inova-
ção” ocorrida durante a Renascença em Judgments on History and Historians, trad. Harry Zohn (Boston, 1958),
pp. 65-66. Aqui, é exposta explicitamente a concepção de Burckhardt de mudança histórica como
“metástase”.
57 Ver a discussão do “organicismo” de Hegel por Pepper em World Hypatkeses, pp. 293 e ss.
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 107
58 Ibid., cap. 9.
108 TRÓPICOS DO DISCURSO
resoluções que ela encerra, então é óbvio que historiadores, como Tocqueville, que
prefiguram o processo histórico em termos trágicos, se inclinarão a conceber em
termos nomológicos (e não raro mecanicistas) as explicações que devem oferecer.
Se a comédia é quintessencialmente o “drama da reconciliação”, então his-
toriadores, como Ranke, que fazem uma abordagem da história nesses termos,
tenderão a empregar uma concepção organicista da verdade nos argumentos
formais com que explicam por que as coisas aconteceram no passado como
aconteceram. Assim também Michelet, escrevendo no modo do romance, prefere
estratégias explicatórias idiográficas, enquanto Burckhardt, que escreve no modo
da sátira, utiliza uma estratégia explicatória contextualista para dar ao campo
histórico a sua forma explicada59.
Ressalte-se mais uma vez que estamos falando aqui do nível em que o
historiador procura apreender a natureza de todo o campo dos fenômenos que é
apresentado na sua narrativa, e não do nível em que ele investiga as condições
necessárias da ocorrência de um dado acontecimento dentro do campo. Um
historiador pode decidir que uma resolução de ir à guerra foi consequência das
opções políticas de um dado indivíduo ou grupo; e pode- se dizer que dessa maneira
ele explicou por que a guerra irrompeu em determinada época e não em outra. Mas
“explicações” como essas estão ligadas à constituição da crônica dos eventos que
ainda demandam “interpretação” a fim de que, urdindo o seu enredo numa forma
particular de estória, possam se transformar num drama abrangente do
desenvolvimento. E tais explicações devem ser diferençadas da teoria geral das
relações significativas por meio das quais um campo, cujo enredo foi assim
tramado, é provido de uma “explicação” do motivo por que tem a forma que tem
na narrativa.
Afirmei até agora que os historiadores interpretam seu material de duas
maneiras: ou escolhendo uma estrutura de enredo que confira às suas narrativas
uma forma reconhecível, ou escolhendo um paradigma de explicação que dê aos
seus argumentos uma forma, um impulso e um modo de articulação específicos. É
costume dizer que essas duas escolhas são consequência s de uma terceira opção
interpretativa, mais fundamental: uma opção moral ou ideológica. Com efeito, é
convencional usar designações ideológicas de diferentes “escolas” de interpretação
histórica ("liberal” e “conservadora” ou “Whig” e “Tory”) e falar, por exemplo, de
uma “abordagem” marxista da história quando se pretende pôr em dúvida as
“explicações” de um historiador radical, relegando-as à condição de meras
“interpretações”. Assim, os críticos hostis a uma obra como O Dezoito Brumário
de Luís Bonaparte de Marx podem referir-se ao seu tom visivelmente polêmico
como prova de um propósito ideológico, e a ideologia radical que a inspira como a
razão da forma satírica assumida pela narrativa e da natureza mecanicistamente
redutiva das suas explicações dos eventos nela analisados. No entanto, é óbvio que,
59 As caracterizações das estruturas de enredo dadas aqui foram extraídas de Frye, Anatomy, pp. 158-238,
embora devessem ser consideradas como algo mais do que rótulos das complexas caracterizações que ele
oferece.
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 109
60 Obviamente, o próprio M;irx se refere aos eventos que conduzem ao coup de Luís Napoleão como uma
“farsa” e compara-o à “tragédia” da Revolução de 1789. O tom é eminentemente irônico, mas o ponto de
vista é tudo menos isso. Ao contrário, Marx, àquela altura de sua carreira, elaborou de maneira cabal as
teorias explicativas pelas quais pudesse revelar a verdadeira estrutura dos eventos sob consideração. Eles se
carregam de sentido quando inseridos numa estrutura mais ampla de toda a história da burguesia, que, no
Manifesto Comunista, ele caracteriza com um herói trágico “prometéico” do drama da história.
61 Karl Mannheim, “Conservative Thought”, em Essays in Sociology and Social Psychology, ed. Paul Kecskemeti
(New York, 1953), pp. 74-164. Ver também Ideology and Utopia: An Introduclion to the Sociology of Knowledge,
trad. Louis Wirth e Edward Shils (New York, 1946), pp. 180-182, 206-215.
110 TRÓPICOS DO DISCURSO
como uma extensão do passado ao próprio presente do escritor. E o que valia para
as ideologias em geral valia também para a historiografia específica, dado o fato
de que a história não era em nenhum sentido uma ciência, mas antes um elemento
decisivo de toda ideologia que aspira ao título de ciência ou que propõe uma
perspectiva “realista” tanto sobre o passado quanto sobre o presente. Desse modo,
pode- se dizer que mesmo os historiadores que não professavam nenhum compro-
metimento ideológico particular e que reprimiam o impulso para extrair im-
plicações ideológicas explícitas de sua análise das sociedades do passado
escreviam dentro de uma moldura ideológica especificável, graças à adoção de uma
postura em face da forma que a representação histórica devia assumir.
Diferentemente das ciências naturais, as ciências humanas são - como o falecido
Lucien Goldmann gostava de salientar - impelidas inevitavelmente à adoção de
posturas ideológicas devido às apostas epistemológicas que os seus profissionais
eram forçados a fazer entre teorias conflitantes do que poderia parecer uma ciência
humana “objetiva”. E, como afirmava Mannheim, uma historiografia
“contemplativa” é pelo menos consoante com as posições ideológicas do liberal e
do conservador, quando não é uma projeção dessas posições, quer os seus
profissionaisestejam conscientes disso, quer não.
Podemos dizer, então, que na história - como nas ciências humanas em geral
- toda representação do passado tem implicações ideológicas especificáveis e que,
portanto, é possível discernir pelo menos quatro tipos de interpretação histórica que
têm suas origens em tipos diferentes de comprometimento ideológico. A maioria
dos historiógrafos clássicos do século XIX formularam essas implicações
explicitamente, mas o fizeram segundo caminhos nem sempre compatíveis com os
modos de urdidura do enredo que usaram para dar forma às suas narrativas, ou com
as estratégias explicativas que escolheram para, em formas particulares, responder
por suas representações dos processos. Por exemplo, embora seja um liberal
declarado em suas concepções políticas, Michelet urde o enredo da sua história da
França até a Revolução no modo do romance, que é na verdade mais condizente
com a posição ideológica do anarquista. Além do mais, a estratégia explicativa de
Michelet, que era a da idiografia, não era compatível com a convicção liberal da
compreensibilidade racional do processo histórico. E o mesmo se diga de
Tocqueville: ele urde o enredo da história no modo da tragédia e explica-a por meio
de supostas leis do desenvolvimento histórico de um tipo especificamente
mecanicista; mas nega-se a deduzir as implicações radicais dessas estratégias
interpretativas para a compreensão da sociedade da sua própria época. Em vez
disso, tenta resistir à mistura peculiar de ideais liberais e conservadores que o
recomendou aos historiadores posteriores dos dois tipos como o detentor de uma
“sabedoria” infinita em sua análise política.
Historiadores do pensamento histórico costumam lamentar a intrusão de tais
elementos visivelmente ideológicos nas tentativas dos primeiros historiadores de
retratar o passado “objetivamente”. Com mais frequência, porém, reservam tal
queixa para a avaliação da obra dos historiadores que representam posições
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 111
ideológicas diferentes das suas próprias. Como observou Mannheim, nas ciências
sociais a “ciência” de um homem é a “ideologia” de outro. Isso ocorre
particularmente na historiografia, onde o rótulo de “meta-historiador” não raro é
afixado na obra de quem quer que concebe as tarefas de escrever a história
diferentemente de si próprio.
Assim, a interpretação entra na historiografia pelo menos de três maneiras:
esteticamente (na escolha de uma estratégia narrativa), epistemologi- camente (na
escolha de um paradigma explicativo) e eticamente (na escolha de uma estratégia
pela qual as implicações ideológicas de uma dada representação possam ser
deduzidas para a compreensão de problemas sociais do presente). E afirmei que é
quase impossível, salvo para as formas mais doutrinárias da escrita histórica,
atribuir prioridade a um ou a outro dos três momentos assim distinguidos. Isso
levanta uma outra questão: haveria um outro nível de interpretação mais
fundamental do que esse?
Neste ponto, é tentador buscar refúgio no relativismo e asseverar que uma
dada interpretação histórica tem suas origens em fatores puramente pessoais,
peculiares a cada historiador. E isso sugeriria, por sua vez, que há tantos tipos de
interpretação da história quantos são os historiadores de gênio inconteste que
exercem a profissão. Na verdade, porém, um interessante padrão quaternário
reapareceu em nossas análises dos níveis diferentes em que a interpretação entra
na elaboração de uma dada narrativa histórica. A análise das estruturas de enredo
admite quatro tipos: romance, comédia, tragédia e sátira. A das estratégias
explicativas deu origem a quatro paradigmas: idiográfico, organicista, mecanicista
e contextualista. E a teoria da ideologia gerou quatro possibilidades: anarquismo,
conservadorismo, radicalismo e liberalismo. E, embora eu tenha negado a
possibilidade de atribuir prioridade a um ou a outro dos níveis de interpretação que
discriminei, acredito que os tipos de estratégias interpretativas identificados são
estruturalmente homólogos entre si. Sua homologia pode ser graficamente
representada no seguinte quadro de correlações.
62 Ver Thomas S. Kuhn, The Structure ofScietuific Revolutions (Chicago, 1962), pp. 18-20 e cap. 13.
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 113
63 Ver Kennetb Burke, A Gmmrnar of Motives (Berkeley e Los Angeles, 1969), ap. D, “Four Míister Tropes”,
pp. 503-517. A questão da natureza dos tropos é difícil de abordar, e devo confessar a minha hesilação cm
114 TRÓPICOS DO DISCURSO
sugerir que eles são a chave para a compreensão do problema da interpretação em campos protocicntíficos
como a história. Contudo, sinto-me impelido a perseverar nessa crença, não apenas pela obra de Burke mas
também pelo exemplo de Vico. Em A Ciência Nova, Vico sugere (conquanto não toque nesse ponto
explicitamente) que as formas de consciência de uma dada época na história de uma cultura correspondem
às formas de consciência dadas pela própria linguagem ao empenho humano de compreender o mundo.
Desse modo, as formas da ciência, da arte, da religião e da política etc., das quatro idades da evolução de
uma cultura (as épocas dos deuses, dos heróis, dos homens e d;t decadência ou ricorso) correspondem
exatamente aos quatro estágios da consciência refletidos na preponderância de um dado tropo: metáfora,
metonímia, sinédoque e ironia, nessa ordem. Ver The New Science, trad. Thomas Goddard Bergin e Max
Harold Fisch (Ithaca, 1968), §§ 400-410, pp. 127-132 e §§ 443-446, pp. 147-150. Ver também as interessantes
correlações entre os distúrbios mentais e os hábitos linguísticos feitas por Roman Jakobson, com base na
comparação entre linguagem “metafórica” e “metonímica”, em seus Essais de iinguistique générale, trad.
Nicolas Ruwer (Paris, 1963), principalmente o ensaio “Le Langage commun des linguistes et des
anthropologues”, pp. 25-67. Jakobson se estende sobre estas correlações, paçafins de crítica literária, em
“Linguistics and Poeücs”, em Style in Language, ed. Thomas A. Sebeok (New York e London, 1960), pp. 350-
377.
64 Burke, Grammur of Motives, pp. 505-510.
65 Ver Michel Foucault, The Order ofThings: An Archaeology of the Human Sciences (New York, 1970), pp. 298-
300.
A INTERPRETAÇÃO NA HISTÓRIA 115
Uma das maneiras pelas quais uma área de pesquisa erudita faz uma avaliação de si
mesma é examinando a sua história. Entretanto, é difícil obter uma história objetiva de uma
disciplina erudita porque, se o historiador a pratica ele mesmo, provavelmente será adepto
de uma ou outra de suas seitas e, por conseguinte, tendencioso; e, se não a pratica, é
improvável que tenha a perícia necessária para distinguir entre os acontecimentos
significativos e os não-significativos de sua área. Poder-se-ia pensar que estas dificuldades
não surgem no campo da própria história, mas surgem, e não apenas pelas razões acima
mencionadas. Para escrever a história de uma dada disciplina erudita, ou mesmo de uma
ciência, deve-se estar preparado para formular sobre ela um tipo de pergunta que não deve
ser formulado no exercício dela. Deve-se tentar manter-se atrás dos pressupostos que
conferem sustentação a um dado tipo de investigação (ou pelo menos manter-se sob a sua
influência) e formular as perguntas que sua prática pode requerer, no interesse de determinar
por que este tipo de investigação foi projetado para dar solução aos problemas que ele
caracteristicamente procura resolver. É isto o que a meta-história tenta fazer. Ela se volta
para questões como: Qual é a estrutura de uma consciência peculiarmente historical Qual é
o status epistemológico das explicações históricas, quando comparadas a outros tipos de
explicações que poderiam ser oferecidos para esclarecer a matéria de que se ocupam
68 Este ensaio é uma versão revisada de uma conferência dada no Colóquio de Literatura Comparada da Yale University em
24 de janeiro de 1974. Ne!e, tentei desenvolver alguns dos temas que originariamente analisei num artigo, “A Estrutura da
Narrativa Histórica”, Clio I (1972):5-20. Também recorri ao material de meu livro Metahistory: The Historical Imagination
in Nineteenth-Century Europe (Baltimore, 1973), principalmente à introdução, intitulada “A Poética da História”. O ensaio
aproveitou-se de conversas com Michael Holquist e Geoffrey Hartman, ambos da Yale University e especialistas na teoria
da narrativa. As citações de Claude Lévi-Strauss foram extraídas da sua obra, The Savage Mind (London, 1966) e de
“Overture to Le Cru et le Cuit", emStructuralism, ed, Jacques Ehrmann (New York, 1966). Para as observações sobre a
natureza icônica da metáfora, recorri a Paul Henle, Language, Thought, and Culture (Ann Arbor, 1966). As noções de
natureza tropológica do estilo desenvolvidas por Jakobson aparecem em “Linguistics and Poetics”, em Style and Language,
ed. Thomas A. Sebeok (New York e London, 1960). Além de Anatomy ofCriticism de Northrop Frye (Princeton, 1957), ver
também o seu ensaio sobre a filosofia da história, “New Directions from Old”, em Fables ofldentity (New York, 1963). Sobre
estória e enredo na narrativa histórica segundo o pensamento de R. G. Collingwood, ver, obviamente, The Idea of History
(Oxford, 1956).
0 TEXTO HISTÓRICO COMO ARTEFATO LITERÁRIO 113
mito e história que é tão problemática quanto venerável. Ela serve muito bem aos propósitos
de Frye, visto que lhe permite localizar o especificamente “fictício” no espaço entre os dois
conceitos de “mítico” e “histórico”. Como hão de lembrar-se os leitores da Anatomy of
Criücism, Frye concebe que as ficções consistem parcialmente em sublimados de estruturas
míticas arquetípicas. Estas estruturas foram deslocadas para o interior de artefatos verbais
de modo a servir de sentidos latentes deles. Os sentidos fundamentais de todas as ficções, o
seu conteúdo temático, consistem, segundo Frye, nas “estruturas de enredo pré-genéricas”,
ou mythoi, derivadas dos corpora da literatura religiosa clássica e judaico-cristã. De acordo
com essa teoria, compreendemos por que uma estória particular “se revelou” como fez
quando identificamos o mito arquetípico, ou estrutura de enredo pré-genérica, do qual a
estória é uma exemplificação. E vemos o “ponto” de uma estória quando lhe identificamos
o tema (a tradução de Frye para dianoia), que a transforma numa “parábola ou fábula
ilustrativa”. “Toda obra de literatura”, insiste Frye, “tem ao mesmo tempo um aspecto
ficcional e um aspecto temático”, mas quando nos movemos da “projeção ficcional” para a
articulação aberta do tema, a escrita tende a assumir o aspecto de “comunicação direta, ou
escrita discursiva imediata, e deixa de ser literatura”. E para Frye, como vimos, a história
(ou pelo menos a “história convencional”) pertence à categoria da “escrita discursiva”, de
modo que, quando o elemento ficcional - ou a estrutura mítica do enredo - está presente nela
de maneira óbvia, deixa de ser inteiramente história para tornar-se um gênero bastardo,
produto de uma união profana, embora inatural, entre a história e a poesia.
Entretanto, eu diria que as histórias conseguem parte do seu efeito explicativo graças
ao êxito em criar estórias de simples crônicas; e as estórias, por sua vez, são criadas das
crônicas graças a uma operação que chamei, em outro lugar, de “urdidura de enredo”. E por
urdidura de enredo entendo simplesmente a codificação dos fatos contidos na crônica em
forma de componentes de tipos específicos de estruturas de enredo, precisamente da maneira
como Frye sugeriu ser o caso das “ficções” em geral.
O falecido R. G. Collingwood insistia em dizer que o historiador era sobretudo um
contador de estórias e afirmava que a sensibilidade histórica se manifestava na capacidade
de criar uma estória plausível a partir de uma congérie de “fatos” que, na sua forma não-
processada, carecia absolutamente de sentido. No seu empenho em compreender o registro
histórico, que é fragmentário e sempre incompleto, os historiadores precisam fazer uso do
que Collingwood chamava “imaginação construtiva”, que dizia ao historiador - como o faz
ao detetive competente - qual “deve ter sido o caso”, dados o testemunho disponível e as
propriedades formais que ela revelou à consciência capaz de formular a questão certa com
relação a ela. Esta imaginação construtiva funciona mais ou menos como funcionaria,
segundo Kant, a imaginação apriorística quando ela nos diz que, embora não possamos
perceber simultaneamente ambos os lados do tampo de uma mesa, podemos estar certos de
que ela tem dois lados, já que tem um lado, porque o próprio conceito de um lado implica
pelo menos um outro. Collingwood postulava que os historiadores abordavam o seu
testemunho dotados de um senso das formas possíveis que os diferentes tipos de situação
reconhecidamente humana podem assumir. A esse sentido ele denominava faro para a
“estória” contida no testemunho ou para a “verdadeira” estória que jazia sob a estória
“aparente” ou oculta por trás dela. E concluía que os historiadores fornecem explicações
plausíveis para corpos de testemunhos históricos quando conseguem descobrir a estória ou
o conjunto de estórias contidas implicitamente dentro delas.
O que Collingwood não logrou perceber é que nenhum conjunto dado de
acontecimentos históricos casualmente registrados pode por si só constituir uma estória; o
máximo que pode oferecer ao historiador são os elementos de estória. Os acontecimentos
são convertidos em estória pela supressão ou subordinação de alguns deles e pelo realce de
0 TEXTO HISTÓRICO COMO ARTEFATO LITERÁRIO 115
urdidas dessa forma. Tudo o que o historiador necessita fazer para transformar uma situação
trágica numa cômica é alterar o seu ponto de vista ou mudar o escopo das suas percepções.
Em todo caso, só pensamos nas situações como trágicas ou cômicas porque tais conceitos
fazem parte de nossa herança cultural em geral e literária em particular. O modo como uma
determinada situação histórica deve ser configurada depende da sutileza com que o
historiador harmoniza a estrutura específica de enredo com o conjunto de acontecimentos
históricos aos quais deseja conferir um sentido particular. Trata-se essencialmente de uma
operação literária, vale dizer, criadora de ficção. E chamá-la assim não deprecia de forma
alguma o status das narrativas históricas como fornecedoras de um tipo de conhecimento.
Pois não só as estruturas de enredo pré-genéricas, mediante as quais os conjuntos de eventos
se podem constituírem estórias de um tipo particular, são limitadas em número, como Frye
e outros críticos arquetípicos sugerem; como também a codificação dos eventos em função
de tais estruturas de enredo é uma das maneiras de que a cultura dispõe para tornar
inteligíveis tanto o passado pessoal quanto o passado público.
Podemos conferir sentido a um conjunto de acontecimentos de muitas formas
diferentes. Uma delas é subordinar os eventos às leis causais que podem ter regido a sua
concatenação a fim de produzir a configuração particular que os eventos parecem assumir
quando considerados como “efeitos” de forças mecânicas. E o modo da explicação
científica. Outra maneira de conferir sentido a um conjunto de acontecimentos que parece
estranho, enigmático ou misterioso em suas manifestações imediatas é codificar o conjunto
em função de categorias culturalmente fornecidas, tais como conceitos metafísicos, crenças
religiosas ou formas de estória. O efeito dessas codificações é tornar familiar o não-familiar;
e em geral esse é o modo da historiografia, cujos “dados” sempre são imediatamente
estranhos, para não dizer exóticos, simplesmente em virtude de estarem distantes de nós no
tempo e de se originarem num modo de vida diferente do nosso.
O historiador partilha com seu público noções gerais das formas que as situações
humanas significativas devem assumir em virtude de sua participação nos processos
específicos da criação de sentido que o identificam como membro de uma dotação cultural
e não de outra. No processo de estudar um dado complexo de eventos, ele começa por
perceber a possível forma de estória que tais eventos podem configurar. Em seu relato
narrativo do modo como este conjunto de eventos assumiu a forma que percebe ser inerente
a esse relato, ele urde o seu relato na forma de uma estória de um tipo particular. O leitor,
no processo de acompanhar o relato desses eventos pelo historiador, chega pouco a pouco a
compreender que a estória que está lendo é de um tipo, e não de outro: romance, tragédia,
comédia, sátira, epopeia ou o que quer que seja. E, depois de perceber a classe ou tipo a que
pertence a estória que está lendo, ele experimenta o efeito de ter os eventos da estória
explicados para ele. A essa altura, ele não apenas acompanhou com êxito a estória; ele
captou o seu ponto principal, entendeu-a. A estranheza, mistério ou exotismo original dos
eventos se dispersa e eles assumem um aspecto familiar, não em seus detalhes, mas em suas
funções de elementos de um tipo familiar de configuração. Tornaram-se abrangentes ao
serem submetidos às categorias da estrutura de enredo em que são codificados como uma
estória de um tipo particular. Tornam-se familiares, não só porque o leitor tem agora mais
informações sobre os eventos, mas também porque lhe foi mostrado como os dados se
harmonizam com um ícone de um processo finito abrangente, uma estrutura de enredo com
a qual ele está familiarizado como parte da sua dotação cultural.
Isso não difere do que acontece, ou se supõe acontecer, na psicoterapia. Os conjuntos
de acontecimentos do passado do paciente que são a causa presumida do seu sofrimento,
manifestados na síndrome neurótica, deixaram de ser familiares, tornaram-se estranhos,
misteriosos e ameaçadores e assumiram um sentido que ele não pode aceitar nem rejeitar
0 TEXTO HISTÓRICO COMO ARTEFATO LITERÁRIO 117
efetivamente. Não é que o paciente não sabe quais eram aqueles acontecimentos, não é que
não conhece os fatos; pois, se não conhecesse de algum modo os fatos, seria incapaz de
reconhecê-los e recalcá-los sempre que aflorassem à sua consciência. Ao contrário, ele os
conhece muito bem. Conhece-os tão bem, com efeito, que convive com eles constantemente
e de tal modo que se lhe torna impossível ver quaisquer outros fatos exceto através da
coloração que o conjunto de acontecimentos em questão confere à sua percepção do mundo.
Poderíamos dizer que, de acordo com a teoria da psicanálise, o paciente supertramou esses
acontecimentos, carregou-os de um sentido tão intenso que, sejam reais ou apenas
imaginários, eles continuam a moldar tanto as suas percepções como as suas respostas ao
mundo muito tempo depois que deveriam ter-se tornado “história passada”. O problema do
terapeuta, então, não é exibir diante do paciente os “fatos reais” da questão, a “verdade” em
oposição à “fantasia” que o obceca. Tampouco é ministrar-lhe um curso rápido sobre a teoria
psicanalítica para esclarecê-lo quanto à verdadeira natureza do seu sofrimento, catalogando-
o como manifestação de algum “complexo”. Isto é o que o analista poderia fazer ao relatar
o caso do paciente a uma terceira pessoa, principalmente a outro analista. Mas a teoria
psicanalítica reconhece que o paciente resistirá a estas duas táticas da mesma forma que
resistirá à intrusão, na consciência, dos vestígios de memória traumatizada na forma como
os evoca obsessivamente. O problema é levar o paciente a “retramar” toda a história da sua
vida, de maneira a mudar o sentido para ele daqueles acontecimentos e a sua significação
para a economia de todo o conjunto de acontecimentos que compõem a sua vida. Encarado
dessa forma, o processo terapêutico é um exercício no processo de refamiliarizar os
acontecimentos que deixaram de ser familiares, que se alienaram da história de vida do
paciente em virtude de sua sobredeterminação como forças causais. E poderíamos dizer que
os acontecimentos perdem seu caráter traumático ao serem removidos da estrutura de enredo
em que ocupam um lugar predominante e inseridos em outra na qual tenham uma função
subordinada ou simplesmente banal como elementos de uma vida partilhada com os demais
seres humanos.
Ora, não me interessa forçar a analogia entre psicoterapia e historiografia; utilizo o
exemplo apenas para ilustrar um aspecto importante do componente fictício das narrativas
históricas. Os historiadores procuram nos refamiliarizar com os acontecimentos que foram
esquecidos por acidente, desatenção ou recalque. Ademais, os maiores historiadores sempre
se ocuparam daqueles acontecimentos nas histórias de suas culturas que são “traumáticos”
por natureza e cujo sentido é problemático ou sobredetermi- nado na significação que ainda
encerram para a vida atual, acontecimentos como revoluções, guerras civis, processos em
grande escala como a industrialização e a urbanização, ou instituições que perderam sua
função original numa sociedade mas continuam a desempenhar um papel importante no
cenário social contemporâneo. Ao examinar os modos como essas estruturas tomaram
forma ou evoluíram, os historiadores as refamiliarizam, não só fornecendo mais
informações sobre elas, mas também mostrando como o seu desenvolvimento se conformou
a um ou outro dos tipos de estória a que convencionalmente recorremos para dar um sentido
às nossas próprias histórias de vida.
Ora, se isso é plausível como caracterização do efeito explicativo da narrativa
histórica, também nos diz algo importante sobre o aspecto mimêti- co das narrativas
históricas. Admite-se em geral - como disse Frye - que a história é um modelo verbal de um
conjunto de acontecimentos exteriores à mente do historiador. Mas é errôneo considerar que
uma história é um modelo semelhante a uma maqueta em escala de um avião ou navio, a
um mapa ou a uma fotografia. Pois podemos verificar a adequação deste último tipo de
modelo olhando para o original e aplicando as regras necessárias de tradução, vendo sob
que aspecto o modelo logrou reproduzir efetivamente as características do original. Mas os
118 TRÓPICOS DO DISCURSO
processos e estruturas históricos não são como esses originais; não podemos olhar para eles
a fim de verificar se o historiador os reproduziu com propriedade na sua narrativa. Nem
deveríamos querer tal coisa, mesmo que pudéssemos fazê-lo; pois, apesar de tudo, foi a
própria singularidade do original, tal como apareceu nos documentos, que inspirou o
empenho do historiador em criar um modelo dele no primeiro lugar. Se o historiador o
fizesse apenas para nós, ficaríamos na mesma situação do paciente cujo analista apenas lhe
disse, com base em entrevistas com os seus pais, parentes e amigos de infância, quais foram
os “verdadeiros fatos” do começo da vida do paciente. Não teríamos qualquer razão para
pensar que alguma coisa nos fora de modo algum explicada.
É isso que me leva a pensar que as narrativas históricas são não apenas modelos de
acontecimentos e processos passados, mas também afirmações metafóricas que sugerem
uma relação de similitude entre esses acontecimentos e processos e os tipos de estória que
convencionalmente utilizamos para conferir aos acontecimentos de nossas vidas
significados culturalmente sancionados. Vista de um modo puramente formal, uma narrativa
histórica é não só uma reprodução dos acontecimentos nela relatados, mas também um
complexo de símbolos que nos fornece direções para encontrar um ícone da estrutura desses
acontecimentos em nossa tradição literária.
Aqui, obviamente, estou recorrendo às distinções entre signo, símbolo e ícone que C.
S. Pierce desenvolveu na sua filosofia da linguagem. Acho que estas distinções nos ajudarão
a compreender o que é fictício em todas as representações supostamente realistas do mundo
e o que é realista em todas as representações manifestamente fictícias. Elas nos ajudam, em
resumo, a responder à pergunta: As representações históricas são representações de quê?
Quero crer que devemos dizer das histórias o que Frye parece pensar que vale apenas para
a poesia ou para as filosofias da história, a saber, que, considerada como um sistema de
signos, a narrativa histórica aponta simultaneamente para duas direções: para os
acontecimentos descritos na narrativa e para o tipo de estória ou mythos que o historiador
escolheu para servir como ícone da estrutura dos acontecimentos. A narrativa em si não é o
ícone; o que ela faz é descrever os acontecimentos contidos no registro histórico de modo a
informar ao leitor o que deve ser tomado como ícone dos acontecimentos a fim de torná-los
“familiares” a ele. Assim, a narrativa histórica serve de mediadora entre, de um lado, os
acontecimentos nela relatados e, de outro, a estrutura de enredo pré-genérica,
convencionalmente usada em nossa cultura para dotar de sentido os acontecimentos e
situações não-familiares.
A evasão das implicações da natureza fictícia da narrativa histórica decorre em parte
da utilidade do conceito de “história” para a definição de outros tipos de discurso. Pode-se
comparar a “história” à “ciência” pela sua falta de rigor conceituai e por seu malogro em
criar os tipos de leis universais que as ciências caracteristicamente procuram criar. De modo
semelhante, pode-se comparar a “história” à “literatura” em razão do seu interesse mais no
“real” que no “possível”, o que é supostamente o objeto de representação das obras
“literárias”. Desta forma, numa longa e ilustre tradição crítica que tentou determinar o que
é “real” e o que é “imaginado” no romance, a história serviu como um tipo de arquétipo do
polo “realista” de representação. Tenho em mente Frye, Auerbach, Booth, Scholes, Kellogg
e outros. Tampouco é incomum para os teóricos da literatura, quando se referem ao
“contexto” de uma obra literária, supor que este contexto - o “meio histórico” - tem uma
concretude e uma acessibilidade que a obra em si nunca pode ter, como se fosse mais fácil
perceber a realidade de um mundo passado constituído com base em milhares de
documentos históricos do que sondar as profundezas de uma única obra literária que se
apresenta aos olhos do crítico que a estuda. Mas a suposta concretude e acessibilidade dos
meios históricos, estes contextos dos textos examinados por estudiosos da literatura, são elas
0 TEXTO HISTÓRICO COMO ARTEFATO LITERÁRIO 119
próprias produtos da capacidade fictícia dos historiadores que estudaram estes contextos.
Os documentos históricos não são menos opacos do que os textos estudados pelo crítico
literário. Tampouco é mais acessível o mundo figurado por esses documentos. Um não é
mais “dado” do que o outro. De fato, a opacidade do mundo figurada nos documentos
históricos é, se é lícito falar de opacidade, aumentada pela produção das narrativas
históricas. Cada nova obra histórica apenas se soma ao número de textos possíveis que têm
de ser interpretados se se quiser traçar fielmente um retrato completo e exato de um
determinado meio histórico. A relação entre o passado a analisar e as obras históricas
produzidas pela análise dos documentos é paradoxal; quanto mais conhecemos sobre o
passado, tanto mais difícil se torna fazer generalizações sobre ele.
Mas, se a ampliação do conhecimento que temos do passado torna mais difícil fazer
generalizações sobre ele, deveria ser mais fácil generalizar em torno das formas em que esse
conhecimento nos é transmitido. Nosso conhecimento do passado pode aumentar de maneira
crescente, mas não a compreensão que temos dele. Tampouco a compreensão que temos do
passado se desenvolve mediante o tipo de brechas revolucionárias que associamos ao
desenvolvimento das ciências físicas. Tal como a literatura, a história se desenvolve por
meio da produção de clássicos, cuja natureza é tal que não podemos invalidá-los nem negá-
los, a exemplo dos principais esquemas conceituais das ciências. E é o seu caráter de não-
invalidação que atesta a natureza essencialmente literária dos clássicos históricos. Há algo
numa obra-prima da história que não se pode negar, e esse elemento nao-negável é a sua
forma, a forma que é a sua ficção.
E esquecido muitas vezes ou, quando é lembrado, é negado que nenhum conjunto de
eventos atestados pelo registro histórico compreende uma estória manifestamente acabada
e completa. Isso é tão verdadeiro no caso de acontecimentos que abrangem a vida de um
indivíduo quanto no caso de uma instituição, uma nação ou todo um povo. Não vivemos
estórias, mesmo que confiramos sentido à nossa vida moldando-a retrospectivamente na
forma de estórias. E o mesmo ocorre com nações ou com culturas inteiras. Num ensaio sobre
a natureza “mítica” da historiografia, Lévi-Strauss faz observações sobre o espanto que
sentiria um visitante de outro planeta se se defrontasse com os milhares de histórias escritas
sobre a Revolução Francesa. Pois nessas obras os “autores nem sempre fazem uso dos
mesmos incidentes;
quando o fazem, os incidentes são revelados sob luzes diferentes. E, no entanto, estas são
variações relacionadas com o mesmo país, o mesmo período e os mesmos acontecimentos -
acontecimentos cuja realidade se dispersa por cada nível de uma estrutura
multiestratificada”. E Lévi-Strauss prossegue para sugerir que o critério de validade pelo
qual se poderia avaliar os relatos históricos não pode depender de seus “elementos” -
eqüivale a dizer - de seu suposto conteúdo factual. Pelo contrário, observa ele, “procurado
isoladamente, cada elemento mostra estar fora de alcance. Mas alguns deles derivam a sua
consistência do fato de poderem ser integrados num sistema cujos termos são mais ou menos
críveis quando opostos à coerência global da série”. Mas a sua “coerência da série” não pode
ser a coerência da série cronológica, essa sequência de “fatos” organizados na ordem
temporal da sua ocorrência original. Pois a “crônica” dos eventos com que o historiador
forma a sua estória do “que realmente aconteceu” já nos chega pré-codifica- da. Há
cronologias “quentes” e “frias”, cronologias em que mais datas ou menos datas parecem
demandar inclusão numa crônica total do que aconteceu. Além disso, as próprias datas
chegam até nós já agrupadas em classes de datas, classes que constituem os supostos
domínios do campo histórico, os quais aparecem como problemas para o historiador resolver
se pretender fornecer um relato completo e culturalmente responsável do passado.
Tudo isto sugere a Lévi-Strauss que, quando se trata de elaborar um relato abrangente
120 TRÓPICOS DO DISCURSO
Pela própria constituição de um conjunto de eventos com vistas a criar com eles uma estória
compreensível, o historiador impõe a esses eventos o significado simbólico de uma estrutura
de enredo compreensível. Os historiadores talvez não gostem de pensar que suas obras são
traduções do fato em ficções; mas este é um dos efeitos das suas obras. Ao sugerir enredos
alternativos de uma dada sequência de eventos históricos, os historiadores fornecem aos
eventos históricos todos os possíveis significados de que a arte da literatura da sua cultura é
capaz de dotá-los. A verdadeira controvérsia entre o historiador tradicional e o filósofo da
história diz respeito à insistência do último em dizer que os eventos podem ser urdidos numa
e apenas numa forma de estória. A escrita da história prospera com a descoberta de todas as
possíveis estruturas de enredo que poderiam ser invocadas para conferir sentidos diferentes
aos conjuntos de eventos. E a nossa compreensão do passado aumenta precisamente no grau
com que logramos determinar até que ponto esse passado se adapta às estratégias de dotação
de sentido que estão contidas, em suas formas mais puras, na arte literária.
Conceber as narrativas históricas dessa maneira pode lançar alguma luz na crise do
pensamento histórico que se vem agravando desde o começo do nosso século. Imaginemos
que o problema do historiador seja dar sentido a um hipotético conjunto de eventos e os
arranje numa série a um só tempo cronológica e sintaticamente estruturada, de modo que
seja estruturado todo discurso, desde uma frase até um romance completo. Podemos ver
imediatamente que os imperativos do arranjo cronológico dos eventos que constituem o
conjunto devem estar em tensão com os imperativos das estratégias sintáticas já aludidas,
quer as últimas sejam concebidas como as da lógica (o silogismo) quer como as da narrativa
(a estrutura de enredo).
Temos, assim, um conjunto de eventos
(1) a, b, c, d, e, ,n
ordenados cronologicamente, mas que requerem descrição e caracterização como elementos
do enredo ou argumento pelos quais se pode dar-lhes sentido. Ora, a série pode ser
estruturada de inúmeros modos diferentes e, portanto, dotada de sentidos diferentes sem
violar de modo algum os imperativos do arranjo cronológico. Podemos caracterizar
rapidamente algumas dessas elaborações de enredo nos seguintes modos:
(2) A, b, c, d, e, n
(3) a, 5, c, d, e, n
(4) a, b, C, d, e, ,n
(5) a, b, c, D, e, n
e assim por diante.
As letras maiúsculas indicam o status privilegiado dado a certos eventos ou conjuntos
de eventos na série pelo qual são dotados de força explicativa, como causas que explicam a
estrutura da série toda ou como símbolos da estrutura de enredo da série considerada como
uma estória de um tipo específico. Poderíamos dizer que qualquer história que dote qualquer
evento supostamente original (a) do status de um fator decisivo (A) na estruturação da série
toda de eventos que os sucedem é “determinista”. As urdiduras de enredo da história da
“sociedade” por Rousseau no seu Segundo Discurso, por Marx no seu Manifesto e por Freud
em Totem e Tabu se incluiriam nessa categoria. Do mesmo modo, uma história que confere
ao último evento da série (e), seja real, seja apenas projetado especulativamente, a força do
poder explicativo total (E) é do tipo de todas as histórias escatológicas ou apocalípticas. A
Cidade de Deus de Santo Agostinho e as várias versões da noção Joaquina do advento do
milênio, a Filosofia da História de Hegel e, em geral, todas as histórias idealistas são desse
tipo. No intervalo entre elas teríamos as várias formas de historiografia que recorrem às
122 TRÓPICOS DO DISCURSO
quer dizer que os únicos instrumentos que ele tem para dar sentido aos seus dados, tornar
familiar o estranho e tornar compreensível o passado misterioso são as técnicas de
linguagem figurativa. Todas as narrativas históricas pressupõem caracterizações figurativas
dos eventos que pretendem representar e explicar. E isso significa que as narrativas
históricas, consideradas meros artefatos verbais, podem ser caracterizadas pelo modo do
discurso figurativo em que são moldadas.
Se for este o caso, então é bem possível que o tipo de urdidura de enredo que o
historiador decide usar para dar sentido a um conjunto de eventos históricos é ditado pelo
modo figurativo predominante da linguagem que ele usou para descrever os elementos do
seu relato antes de compor a sua narrativa. Geoffrey Hartman observou-me certa vez,
durante uma conferência que proferi sobre história literária, que não estava certo de saber o
que os historiadores da literatura poderiam querer fazer, mas sabia que escrever uma história
significava colocar um evento dentro de um contexto, relacionando-o como uma parte a
algum todo concebível. E sugeriu que, até onde sabia, havia apenas duas maneiras de
relacionar as partes ao todo, a saber, mediante a metonímia e mediante a sinédoque. Tendo
estado ocupado por algum tempo com o estudo do pensamento de Giambattista Vico, senti-
me muito atraído por essa ideia, porque ela quadrava à noção, defendida por Vico, de que a
“lógica” de toda “sabedoria poética” estava contida nas relações que a própria linguagem
fornecia nos quatro modos principais de representação figurativa: metáfora, metonímia,
sinédoque e ironia. Meu palpite pessoal - e trata-se de um palpite que vejo confirmado nas
reflexões de Hegel sobre a natureza do discurso não-científico — é que, em qualquer arca
de estudo que, como a história, ainda não se “disciplinizou” a ponto de construir um sistema
terminológico-formal para descrever os seus objetos, ao contrário do que sucedeu com a
física e a química, são os tipos de discurso figurativo que ditam as formas fundamentais dos
dados a serem estudados. Isso significa que a forma das relações que parecerão ser inerentes
aos objetos que habitam o campo na realidade foi imposta ao campo pelo investigador no
próprio ato de identificar e descrever os objetos que aí descobre. Daí que os historiadores
constituam os seus temas como possíveis objetos de representação narrativa por meio da
própria linguagem que utilizam para descrevê-los. E, a ser esse o caso, isso significa que os
diferentes tipos de interpretação histórica que temos do mesmo conjunto de eventos, como
a Revolução Francesa que foi interpretada por Michelet, Tocqueville, Taine e outros, são
pouco mais que projeções dos protocolos linguísticos utilizados por esses historiadores para
prefigurar esse conjunto de eventos antes de escrever as suas narrativas. Trata-se apenas de
uma hipótese, mas parece possível que a convicção do historiador de ter “encontrado” a
forma da sua narrativa nos próprios eventos, em vez de tê-la imposto a eles, tal como faz o
poeta, seja uma consequência de certa falta de autoconsciência linguística que obscurece a
extensão em que as descrições dos eventos já constituem interpretações de sua natureza.
Encarada desse modo, a diferença entre os relatos que Michelet e Tocqueville fazem da
Revolução não reside apenas no fato de o primeiro ter narrado a sua história na modalidade
do romance e o segundo na modalidade da tragédia; ela reside igualmente no modo tropo-
lógico - metafórico e metonímico, respectivamente - de que cada um se serviu na sua
apreensão dos fatos à proporção que apareciam nos documentos.
Falta-me espaço para tentar demonstrar a plausibilidade dessa hipótese, que é o
princípio inspirador do meu livro Metahistory. Mas espero que este ensaio possa servir como
sugestão para uma abordagem do estudo das formas de prosa discursiva como a
historiografia, abordagem que é tão velha quanto o estudo da retórica e tão nova quanto a
linguística moderna. Semelhante estudo se faria ao longo das linhas expostas por Roman
Jakobson num ensaio intitulado “Linguística e Poética”, em que ele afirmava que a diferença
entre a poesia romântica e as várias formas de prosa realista do século XIX residia na
124 TRÓPICOS DO DISCURSO
linguagem figurativa utilizada para lhes dar o aspecto de coerência. Isto implica que toda
narrativa não é simplesmente um registro “do que aconteceu” na transição de um estado de
coisas para outro, mas uma redescrição progressiva de conjuntos de eventos de maneira a
desmantelar uma estrutura codificada num modo verbal no começo, a fim de justificar uma
recodificação dele num outro modo no final. Nisto consiste o “ponto médio” de todas as
narrativas.
Tudo isso é altamente esquemático, e sei que essa insistência sobre o elemento
ficcional de todas as narrativas históricas desperta com certeza a ira dos historiadores que
acreditam estar fazendo algo fundamentalmente diferente do romancista, visto se ocuparem
dos acontecimentos “reais”, enquanto o romancista se ocupa dos eventos “imaginados”.
Contudo, nem a forma nem o poder de explicação da narrativa derivam dos diferentes con-
teúdos que ela presumivelmente é capaz de conciliar. Na realidade, a história - o mundo real
ao longo de sua evolução no tempo - adquire sentido da mesma forma que o poeta ou o
romancista tentam provê-lo de sentido, isto é, conferindo ao que originariamente se afigura
problemático e obscuro o aspecto de uma forma reconhecível, porque familiar. Não importa
se o mundo é concebido como real ou apenas imaginado; a maneira de dar-lhe um sentido é
a mesma.
Do mesmo modo, dizer que conferimos sentido ao mundo impondo-lhe a coerência
formal que costumamos associar aos produtos dos escritores de ficção não diminui de
maneira nenhuma o status de conhecimento que atribuímos à historiografia. Só o diminuiria
se acreditássemos que a literatura não nos ensinou algo acerca da realidade, por ter sido o
produto de uma imaginação que não era deste mundo, mas de outro, de um mundo inumano.
A meu ver, vivenciamos a “ficcionalização” da história como uma “explicação” pelo mesmo
motivo que vivenciamos a grande ficção como iluminação de um mundo que habitamos
juntamente com o autor. Em ambas reconhecemos as formas pelas quais a consciência
constitui e povoa o mundo que ela procura habitar confortavelmente.
Por fim, é possível observar que, se os historiadores quisessem reconhecer o elemento
ficcional de suas narrativas, isso não significaria a degradação da historiografia ao status de
ideologia ou propaganda. Com efeito, tal reconhecimento serviria de antídoto eficaz para a
tendência dos historiadores a apegar-se a preconceitos ideológicos que eles não reconhecem
como tais mas reverenciam como a forma de percepção “correta” do “modo como as coisas
realmente são”. Trazendo a historiografia para mais perto das suas origens na sensibilidade
literária, deveríamos ser capazes de identificar o elemento ideológico, porque fictício,
contido em nosso próprio discurso. Sempre podemos ver o elemento fictício nos
historiadores de cujas interpretações de um dado conjunto de eventos discordamos;
raramente percebemos esse elemento em nossa própria prosa. Do mesmo modo, se
reconhecêssemos o elemento literário ou fictício de todo relato histórico, seriamos capazes
de conduzir o ensino da historiografia a um nível de autoconsciência mais elevado do que o
que ela ocupa nos dias de hoje.
Que professor não lamentou a sua incapacidade de instruir os principiantes sobre a
escrita da história? Que bacharelando em história já não desesperou de tentar compreender
e imitar o modelo que os seus instrutores parecem louvar, mas cujos princípios continuam
inexplorados? Se reconhecêssemos a existência de um elemento fictício em toda narrativa
histórica, haveríamos de encontrar na própria teoria da linguagem e da narrativa a base para
a representação daquilo em que consiste a historiografia, representação mais sutil do que
aquela que simplesmente exorta o estudante a ir adiante e a “descobrir os fatos”, lançando-
os por escrito de modo a relatar “o que realmente aconteceu”.
A meu ver, a história enquanto disciplina vai mal atualmente porque perdeu de vista
as suas origens na imaginação literária. No empenho de parecer científica e objetiva, ela
0 TEXTO HISTÓRICO COMO ARTEFATO LITERÁRIO 127
reprimiu e negou a si própria sua maior fonte de vigor e renovação. Ao fazer a historiografia
recuar uma vez mais até à sua íntima conexão com a sua base literária, não devemos estar
apenas nos resguardando contra distorções simplesmente ideológicas; devemos fazê-lo no
intuito de chegar àquela “teoria” da história sem a qual não se pode de maneira alguma
considerá-la “disciplina”.
128 TRÓPICOS DO DISCURSO
HISTORICISMO, HISTÓRIA E A
IMAGINAÇÃO FIGURATIVA
Os debates sobre o “historicismo” vez por outra se originam da suposição de que ele
representa uma distorção discernível e injustificável de um modo propriamente “histórico”
de figurar a realidade. Assim, por exemplo, há os que falam do interesse particularizador do
historiador em comparação aos interesses generalizadores do historicista. De novo supõe-se
que o historiador, ao contrário do historicista, está interessado mais em elaborar pontos de
vista que em construir teorias. Em seguida, supõe-se que o historiador prefere um modo de
representação narrativista, e o historicista um modo de representação analítico. E,
finalmente, enquanto o historiador estuda o passado a bem dele próprio, ou, como se diz,
“por ele mesmo”, o historicista quer usar o seu conhecimento do passado para lançar luzes
sobre os problemas do seu presente, ou, o que é pior, predizer o caminho do futuro desen-
volvimento da história69.
Como se pode ver desde logo, essas caracterizações das diferenças entre uma
abordagem da história propriamente histórica e uma historicista correspondem àquelas que
são convencionalmente utilizadas para diferençar a “historiografia” da “filosofia da
história”. Já afirmei em outro local que as distinções convencionais entre historiografia e
filosofia da história mais obscurecem do que esclarecem a verdadeira natureza da
representação histórica2. Neste ensaio, tentarei demonstrar que as distinções convencionais
entre “história” e “historicismo” virtualmente não têm valor. Sustentarei, ao contrário, que
toda representação “histórica” - por.mais particularizadora, narrativista, autoconscien tem
ente perpectivista e fixada no seu tema “a bem dele próprio” que seja - traz em si mesma a
maioria dos elementos do que a teoria convencional chama “historicismo”. O historiador
molda a sua matéria, senão em conformidade com o que Popper chama de (e critica como)
“estrutura de ideias preconcebidas”3, portanto em resposta aos imperativos do discurso
narrativo em geral. Estes imperativos são retóricos por natureza. No que segue, procurarei
69 Obviamente, este é o ponto de vista de Popper. Ver Karl R. Popper, The Poverty of Historicism (London, 1961), pp. 143-152.
Da mesma, forma, George Iggers faz uma distinção entre o que ele chama de “sentido da história” e “historicismo”; o
primeiro está ligado a “uma percepção de que o passado é fundamentalmente diferente do presente”, e o segundo à tentativa
de compreender “o passado em sua singularidade” e à rejeição do impulso para “avaliar o passado pelas normas do
Iluminismo”. Ver o seu artigo “Historicism” em Dictionary of the History ofldeas, ed. Philip W. Wiener (New York, 1973),
2:457, Aqui, é claro, Iggers está interessado no tipo de historicismo que Meinecke analisou na sua famosa obra Die
Enistehung des Historismus (München, 1936), isto 6, na variedade “individualizadora” em comparação com a
“generalizadora”. Para Meinecke, Historismus não era uma distorção do “sentido histórico”, mas o seu ponto culminante.
Entretanto, na medida em que Meinecke elevou um “sentido histórico” geral a uma visão de mundo que incluía o
“intuicionismo”, o “holismo”, o “organi cismo” etc., isto teria constituído
HISTORICISMO, HISTÓRIA E A IMAGINAÇÃO FIGURATIVA 129
mostrar que, na própria linguagem de que o historiador se serve para descrever o seu objeto
de estudo, anteriormente a qualquer esforço formal que possa fazer para explicá-lo ou
interpretá-lo, ele submete esse objeto de estudo ao tipo de distorção que os historicistas im-
põem à sua matéria de um modo mais explícito e formal.
Trazer à baila a questão da retórica do discurso histórico é levantar o problema da
natureza da descrição e análise em áreas de estudo que, como a historiografia, ainda não
alcançaram o status de ciência, tal como o alcançaram a física, a química e a biologia.
um resvalar para aquele “historicismo”, no sentido pejorativo do termo utilizado por Popper, embora Popper o chame de
variedade “antinaturaüsta”.
Maurice Mandelbaum, no que se deve considerar hoje a análise /í/aHÍ/íra mais abrangente do termo, define o historicismo
como uma exigência de que “rejeitemos a opinião de que os eventos históricos apresentam um caráter individual passível
de ser apreendido independentemente de os vermos incrustados num modelo de desenvolvimento”. History, Man, and
Reason: Study in Nineteenth-Century Thought (Baltimore, 1971), pp. 42-43. Mandelbaum nega, contudo, que o historicismo
seja um Weltcinschüuung, ou uma ideologia, e muito menos uma posição filosófica. O historicismo, afirma ele, é antes uma
“crença metodológica que diz respeito ã explicação e à avaliação” segundo a qual “uma compreensão adequada da natureza
de qualquer fenômeno e uma avaliação adequada do seu valor devem ser obtidas pela sua consideração em função do lugar
que ele ocupou e do papel que desempenhou num processo de desenvolvimento” (ibid.). Desta forma, o historicismo é,
segundo Mandelbaum, uma teoria de valor ligada a alguma versão do geneticismo. Não obstante, suas objeções a ele são
substancialmente idênticas às de Popper. Os historicistas erram em conceituar a história mais como um “fluxo” de
desenvolvimento que como “uma trama extremamente complexa cujos fios individuais apresentam histórias ^separadas,
conquanto entrelaçadas” (ibid.).
2, Hayden Whiten, Metahistory: The Historical Imagination in Nineteenth-Cenlury Europe (Baltimore, 1973), Introdução.
3. Embora faça objeções a uma “estrutura de ideias preconcebidas”, Popper não se opõe à adoção, por parte do historiador,
de um “ponto de vista seletivo preconcebido” como base para a sua narrativa. Ver Popper, The Paverty of Historicism, p.
150. A diferença parece residir no fato de que o primeiro leva a uma distorção dos fatos com o fito de adaptar uma teoria,
enquanto o segundo fornece uma perspectiva sobre os fatos. O primeiro resulta em “teorias” sobre a história, o segundo
em “interpretações”. O critério para avaliar interpretações conflitantes implica considerar as afirmações feitas a respeito
delas (se devem ser consideradas como teorias confirmadas) e verificar se são “interessantes” e “férteis” na sua “sugestivida-
de” (ibid., pp. 143-145).
Por ora, deixo de lado a afirmação de Claude Lévi-Strauss de que a história não dispõe de
um método que seja exclusivamente seu, nem, em última análise, de um assunto único; e de
que a sua técnica fundamental, que consiste no arranjo dos eventos que ela deve analisar na
ordem serial de sua ocorrência original, é simplesmente uma fase preliminar de qualquer
análise digna da designação “científica”70. Quero, porém, deter-me momentaneamente na
alegação de Lévi-Strauss segundo a qual na história, como em qualquer campo de ocorrência
submetido a análise, existe uma relação paradoxal entre a quantidade de informação que
pode ser transmitida em algum relato desse campo e o tipo de compreensão que dele
podemos ter.
Lévi-Strauss afirma que “o campo histórico”, o objeto geral do interesse do
historiador, consiste num campo de eventos que se dissolve, no micronível, num amálgama
de impulsos físico-químicos e, no macronível, nos ritmos periódicos de ascensão e queda
de todas as civilizações. No seu esquema, o micronível e o macronível correspondem aos
limites de um conjunto de estratégias explicativas que vão da simples criação da crônica de
eventos particulares, de um lado, ao recurso a cosmologias abrangentes, de outro. A relação
entre o micronível e o macronível Lévi-Strauss caracteriza em termos de uma díade:
informação-compreensão. E formula a relação entre eles na forma de um paradoxo: quanto
mais informação procuramos registrar sobre um dado campo de ocorrência, menos
compreensão desse campo podemos propiciar; e quanto mais compreensão pretendemos
oferecer dele, menos a informação é abarcada pelas generalizações que se destinam a
explicá-lo71.
E óbvio que aqui Lévi-Strauss estendeu à teoria do conhecimento a sua própria versão
do conceito estruturalista de bipolaridade da linguagem: sua díade informação-explicação
corresponde aos termos utilizados por Roman Jakobson e outros para caracterizar os dois
eixos da linguagem, os pólos metonímico e metafórico, respectivamente 72. Estes dois pólos
do uso da linguagem são identificados aos eixos da combinação e da seleção de qualquer
ato de fala significativo. Isto fornece a base para a caracterização, por parte de Lévi-Strauss,
da relação entre o eixo sintagmático e o paradigmático de todo discurso que pretensamente
represente um campo de acontecimentos que tenha simultaneamente os aspectos de processo
e estrutura, de diacronicidade e sincronicidade. Desse modo, no limite inferior (ou micro)
do campo histórico, não há similaridade, apenas contiguidade; no limite superior (ou macro)
não há diferença, apenas similaridade. E o mesmo ocorre no discurso que construíssemos
para representar o que percebemos ter acontecido no “campo histórico”: o discurso histórico
procura representar o desdobramento, ao longo de uma linha temporal, de uma estrutura
cujas partes são sempre um pouco menos que a totalidade que elas constituem e cuja
totalidade é sempre um pouco mais que a soma das partes ou fases que a compõem.
Não pretendo de ter-me nessa extensão da teoria da linguagem à teoria do
conhecimento. Por ora, quero simplesmente observar que, para Lévi-Strauss, todas as
ciências (inclusive as ciências físicas) são constituídas por delineamentos arbitrários dos
domínios que ocuparão entre, de um lado, os pólos de compreensões míticas da totalidade
da experiência e, de outro, a “ruidosa e florescente confusão” de percepções individuais. E,
a seu ver, isto é particularmente verdadeiro para um campo como a historiografia, que
procura ocupar um domínio especificamente humano que constitui o pretenso “plano
médio” entre os extremos. Mas este suposto plano médio não emerge apoditicamente da
confusão de eventos e informações que temos do passado e do presente humanos; deve ser
constituído. E é constituído, como supõe Lévi-Strauss, graças a uma estratégia conceituai
que é mítica e que identifica o “histórico” com as experiências, os modos do pensamento e
a práxis peculiares à civilização ocidental moderna. Lévi-Strauss afirma que a suposta
“coerência” da história, que o pensamento histórico ocidental toma como objeto de estudo,
é a coerência do mito. E isto vale tanto para a historiografia narrativa “propriamente dita”,
ou convencional, quanto para seus equivalentes mais altamente esquematizados da filosofia
da história73.
Ora, por coerência do mito Lévi-Strauss parece entender o resultado da aplicação de
estratégias narrativas mediante as quais unidades básicas de estória (ou aglomerados de
eventos) são arranjados de molde a conferir a alguma estrutura ou processo puramente
humano o aspecto de necessidade, adequação ou inevitabilidade cósmica (ou natural). As
histórias da fundação de cidades ou Estados, da origem das diferenças e privilégios de
classe, das transformações sociais básicas causadas por revolução e reforma, das reações
sociais específicas a catástrofes naturais, e assim por diante - todas estas histórias, segundo
ele, apresentadas quer sob o aspecto de ciência social, quer de história, participam do mítico
na medida em que “cosmologizam” ou “naturalizam” o que, na realidade, nada mais é que
construções humanas que poderiam muito bem ser diferentes do que por acaso são.
Encarado desta forma, historicizar qualquer estrutura, escrever a sua história, é mitologi-
zá-la: seja com o fito de efetuar a sua transformação mostrando quão “inatu- ral” ela é (como
no caso de Marx e do capitalismo tardio), seja com o fito de consolidar a sua autoridade
mostrando quão consoante ela é com o seu contexto, quão adequadamente ela se adapta à
“origem das coisas” (como no caso de Ranke e da sociedade da Restauração). A história,
72 Roman Jakobson e Morris Halle, Fundamentais of Language (The Hague, 1956), cap. 6.
73 Claude Lévi-Strauss, “Overture to Le Cru et le cuit'\ em Structuralism, ed. Jacques Ehrmann (New York, 1966), pp. 47-48.
HISTORICISMO, HISTÓRIA E A IMAGINAÇÃO FIGURATIVA 131
Tudo isto é altamente abstrato, sem dúvida, e para se tornar convincente requer a
ampliação teórica e a exemplificação. No que segue, portanto, tentarei caracterizar o
discurso histórico em termos um pouco mais formais e, depois, analisar uma passagem de
prosa “propriamente” histórica a fim de explicar a relação predominante entre os seus
sentidos manifestos e latentes (figurativos). Em seguida, voltarei, de um lado, ao problema
da relação entre a historiografia “propriamente dita” e a sua contraparte historicista e, de
outro, a algumas observações gerais sobre os possíveis tipos ou modos da representação
histórica sugeridos pela análise figurativa.
Afirmei em outro local que um discurso histórico não deve ser considerado uma
HISTORICISMO, HISTÓRIA E A IMAGINAÇÃO FIGURATIVA 133
constituem o nível figurativo do discurso. Mostrarei também que esse sentido latente do
discurso pode ser identificado com a própria linguagem usada para descrever os eventos
analisados. Esse uso da linguagem serve como um “código” pelo qual o leitor é convidado
a assumir uma determinada atitude para com os fatos e a interpretação que deles se oferece
no nível manifesto do discurso. Eis o trecho:
A República criada pela Assembléia Constituinte em Weimar durou teoricamente catorze anos, de 1919 a
1933. Sua vida real foi mais curta. Seus quatro primeiros anos foram gastos na confusão política e econômica que se
seguiu à Guerra dos Quatro Anos; nos seus últimos três anos houve uma ditadura provisória, parcialmente disfarçada
de legalidade, que reduziu a República a um simulacro muito antes que fosse abertamente derrubada. Apenas por
seis anos a Alemanha levou uma vida ostensivamente democrática, ostensivamente pacífica; porém, aos olhos de
muitos observadores estrangeiros, estes seis anos pareceram normais, a “verdadeira” Alemanha, em relação aos quais
os séculos anteriores e a década subsequente da história da Alemanha foram uma aberração. Uma investigação mais
aprofundada poderia ter encontrado para estes seis anos outras causas que não a beleza do caráter alemão 78.
Escolhi este trecho “ao acaso”, já que simplesmente abri uma antologia de escritos
históricos sobre o Terceiro Reich e examinei algumas caracterizações sinópticas da “era”
escritas por historiadores de tendência metodológica e convicções ideológicas diferentes.
Para os meus propósitos, apresenta a vantagem de ser escrito num inglês comum, e não num
jargão técnico, além de ter um estilo visivelmente “literário”.
O historiador que escreveu essa passagem é bastante elogiado como escritor; é
também amplamente reconhecido como um escritor que fornece fatos não-absurdos e como
um polemista de talentos excepcionais, embora de modo algum obstinado. Além disso, se
lhe fosse insinuado que o que ele tem a dizer - ou seja, a sua apresentação dos fatos e os
argumentos que oferece para apoiar sua explicação desses fatos - é indistinguível do modo
como ele diz, com toda certeza veria nisso um insulto à sua competência profissional. Mas
o seu relato desse período da história da Alemanha é pouco mais que um discurso no qual
ele adquire progressivamente o direito à caracterização retórica dos eventos que pretende
apenas descrever e analisar objetivamente. Como todas as representações históricas, essa é
também uma codificação progressiva, num nível profundo ou figurativo, de eventos que
existem no plano da superfície como simples descrição e análise.
Ora, grande parte disso se evidencia a partir da enunciação da passagem. Isso, por si
só, revela a postura irônica do escritor, não só no que tange aos “observadores estrangeiros”
anônimos dos seis anos que a eles pareciam “normais”, mas igualmente com respeito à
“Alemanha” desse período. Aqui, contudo, há mais do que meramente um tom irônico. O
fato e a caracterização figurativa se combinaram para criar uma imagem de um objeto - o
referente real do discurso - que é inteiramente distinto do referente manifesto, a saber, a
própria Alemanha. Esse referente latente é constituído pelas técnicas retóricas de iguração
que são identificáveis na superfície do discurso.
Consideremos, antes de tudo, a informação factual contida no trecho citado. É-nos
dito que
1. A República foi criada pela Assembléia Constituinte em Weimar.
2. Ela durou catorze anos, de 1919 a 1933.
3. Seus primeiros quatro anos foram marcados pela confusão política e econômica; e,
finalmente,
4. Nos seus últimos três anos, foi governada por uma ditadura.
O que poderia parecer ser outras afirmações do fato são, na realidade, juízos ou
78 A. J. P. Taylor, The Course of German History: A Survey of the Development of Germany since 1815 (New York, 1946), pp.
189-190.
HISTORICISMO, HISTÓRIA E A IMAGINAÇÃO FIGURATIVA 135
interpretações:
5. A República durou “teoricamente” catorze anos, mas “na realidade” muito menos.
6. A ditadura foi “parcialmente disfarçada de legalidade”.
7. Essa ditadura “reduziu” a República a um “simulacro” antes de ser “abertamente”
derrubada; e, assim,
8. Apenas por seis anos a Alemanha “levou uma vida ostensivamente democrática,
ostensivamente pacífica”.
O restante do trecho consta de insinuações e censuras vagamente dissimuladas sobre
a ingenuidade de certos “observadores estrangeiros”, bem como de uma alusão a uma
“investigação mais aprofundada” que “poderia ter encontrado” para os seis anos em questão
“outras causas” que não a “beleza do caráter alemão” e, supostamente, um meio de penetrar
através da forma “ostensiva” da história alemã desse período até a sua substância obvi-
amente corrupta.
Ora, esse trecho é um bom exemplo, por assim dizer em microcosmo, dos elementos
essenciais de qualquer discurso histórico. No nível manifesto, temos a crônica dos eventos
que fornecem aos elementos de uma estória um começo (1919-1923), um meio (1923-1929)
e um fim (1929-1932) discerníveis. Essa história, por sua vez, apresenta uma estrutura de
enredo identificável que une essas fases num processo que descreve o desenrolar de uma
pseudotragédia. A estrutura de enredo serve como um tipo de elaboração secundária dos
eventos que compõem a crônica e o seu arranjo numa estória, desvelando o sentido latente
da representação manifesta dos fatos. Ela atua sobre a nossa capacidade presumida, porém
não invocada formalmente, de “seguir” os eventos relatados na história e de “decodificar”
subconscientemente a sua estrutura subliminarmente codificada como um tipo de estória
particular (uma pseudotragédia ou uma tragédia satírica). Em outras palavras, os eventos da
estória são codificados pelo uso da linguagem figurativa em que são caracterizados, a fim
de permitir a sua identificação como elementos do tipo específico de estória a que pertence
essa estória.
A estipulação desse sentido secundário é assinalada nas duas fases iniciais do trecho,
em que a duração da República de “teoricamente” quatorze anos é comparada com a sua
“vida real” de apenas seis anos. Esse contraste entre a “vida” teórica e a real da República
logo move o tema do discurso para aquela categoria de grotescos que comumente
encontramos na sátira. Os principais verbos ativos utilizados na exposição, “criada”,
“gastos”, “reduziu” e “derrubada” - eles próprios servem para caracterizar as fases da ficção
literária arquetípica a que a vida da República está sendo implicitamente comparada, a
saber, a pseudotragédia.
Que a curta vida da República foi apenas uma pseudotragédia, indica-o o fato de que
o relato da destruição progressiva da República não é atenuado por qualquer indício de
tendências opostas nela. Quando estas tendências são indicadas, são rotuladas de apenas
“ostensivas”. E os “observadores estrangeiros” para quem os “seis anos” intermediários
representavam a Alemanha “normal” e “verdadeira” são, por sua vez, caracterizados,
mediante uma metonímia convencional de “olhos” por “mente”, como sendo tão superficiais
em sua percepção quanto o seria qualquer olho comum não-orientado pela inteligência. A
“investigação mais aprofundada” que esses “observadores estrangeiros” não conseguiram
levar a cabo (e que o autor provavelmente conseguiu) alude por dissimulação irônica
(“poderia ter descoberto”) à “fealdade” do caráter alemão assinalada figurativamente (isto
é, ironicamente) na referência à sua “beleza” apenas aparente.
Ora, invectivei esse trecho um tanto inócuo de prosa histórica, que A. J. R Taylor
deve ter escrito de maneira inteiramente espontânea e natural, para destacar um ponto muito
136 TRÓPICOS DO DISCURSO
simples. O ponto é este: mesmo no mais simples discurso em prosa, e mesmo num discurso
em que o objeto da representação não pretende ser mais que um fato, o uso da própria
linguagem projeta um nível de sentido secundário que fundamenta os fenômenos que estão
sendo “descritos”, ou está por trás deles. Esse sentido secundário existe inteiramente à parte
dos próprios “fatos” e de qualquer argumento explícito que poderia ser oferecido no nível
extradescritivo, mais puramente analítico ou interpretativo do texto. Esse nível figurativo é
produzido por um processo construtivo, de natureza poética, que prepara o leitor do texto
de maneira mais ou menos subconsciente para receber tanto a descrição dos fatos quanto a
sua explicação como sendo plausíveis, de um lado, e mutuamente adequadas, de outro.
Assim encarado, o discurso histórico pode ser decomposto em dois níveis de sentido.
Os fatos e a sua explicação ou interpretação formal aparecem como a “superfície” manifesta
ou literal do discurso, ao passo que a linguagem figurativa, utilizada para caracterizar os
fatos, indica um sentido estrutural profundo. Esse sentido latente de um discurso histórico
consiste no tipo genérico de estória do qual os próprios fatos, arranjados numa ordem
específica e dotados de diferentes graus de importância, são a forma manifesta. Entendemos
a estória específica que está sendo contada sobre os fatos quando identificamos o tipo
genérico de estória do qual a estória particular é uma ilustração.
Essa concepção do discurso histórico nos permite considerar a estória específica
como uma imagem dos eventos sobre os quais a estória é contada, enquanto o tipo genérico
de estória serve como um modelo conceituai com que devem ser comparados os eventos a
fim de permitir sua codificação como elementos de uma estrutura reconhecível.
Um modelo conceituai pode ser empregado mais ou menos explicitamente e
apresentado mais ou menos formalmente no empenho de explicar ou interpretar os eventos
representados na narrativa. Mas tais empregos formais e explícitos de um modelo
conceituai, como, por exemplo, num argumento nomológico-dedutivo, devem ser
diferenciados do sentido figurativo do discurso histórico. O sentido figurativo está implícito
mesmo na simples descrição dos eventos antes da sua análise, bem como na estória contada
sobre eles. A estória transforma os eventos, fazendo-os passar da falta de sentido do seu
arranjo serial numa crônica para uma estrutura hipotaticamente arranjada de ocorrências
sobre as quais podem ser feitas perguntas significativas (o que, onde, quando, como e por
quê). Esse elemento de estória no discurso histórico existe mesmo nos exemplos mais
intransigentes de escrita histórica estruturalista, sincrônica, estatística ou representativa.
Esse discurso histórico não apresentaria nenhuma problemática se não distinguisse ta-
citamente entre a ordem serial dos eventos e algum tipo de transformação dessa ordem numa
estrutura acerca da qual se possa formular perguntas significativas.
Evidentemente, é um lugar-comum dizer que um discurso histórico não representa
um equivalente perfeito do campo fenomênico que ele se propõe descrever, em dimensão,
em escopo ou na ordem serial em que ocorreram os eventos. Mas esse fato não raro é
interpretado mais como uma simples redução por seleção que como a distorção que ele de
fato é. A maneira mais óbvia de distorção é o afastamento da ordem cronológica da ocorrên-
cia original dos eventos, de molde a expor os seus sentidos “verdadeiros” ou “latentes”.
Aqui, naturalmente, devemos enfrentar a distinção convencional, mas nunca totalmente
analisada, entre a “mera” crônica e a história propriamente dita. Todo mundo admite que o
historiador deve ir além da organização serial dos eventos até a determinação da sua
coerência como uma estrutura, e deve atribuir valores funcionais diferentes aos eventos
individuais e às classes de eventos a que parecem pertencer. Contudo, geralmente se con-
cebe essa tarefa como sendo o empenho de “descobrir” a estória ou estórias que
supostamente se acham incrustadas dentro da confusão dos fatos relatados no registro ou da
série diacrônica dos eventos tal como são arranjados na crônica. Na realidade, porém, nada
HISTORICISMO, HISTÓRIA E A IMAGINAÇÃO FIGURATIVA 137
! 7. Freud, The Inteqiretation ofDreams, em Basic Writings, trad. e ed. A. Brill (New York, 1938) pp. 456-463.
um outro discurso, uma “elaboração secundária” que caminha ao longo do nível mais
obviamente representacional do discurso, que em geral se afigura como uma fala direta ao
leitor e fornece as bases cognitivas explícitas (a “racionalização”) para a forma manifesta
do discurso em geral.
Para esclarecer o que está implícito aqui, voltemos ao trecho extraído do livro de
138 TRÓPICOS DO DISCURSO
Taylor sobre a Alemanha. Nessa breve caracterização sinóptica do período entre 1919 e
1933, são óbvias as provas de condensação. Não importa que tenhamos tomado para análise
apenas um parágrafo, e não um capítulo ou uma parte maior do texto. O livro inteiro
condensa necessariamente o seu material, não apenas no sentido de reduzir a esfera da
possível representação, isto é, as dimensões do objeto abordado, mas também no sentido de
sobredeterminar certos elementos do objeto, de molde a revelar a natureza pseudotrágica
da totalidade dos eventos retratados, considerada como um processo completo. Quanto à
prova de deslocamento, esta é igualmente óbvia na justaposição da “vida real” da República
à sua vida aparente (“teórica”). Essa “vida real” é o centro do discurso, enquanto a “vida
teórica” é progressivamente remetida à periferia por meio da sua revelação como ilusão. O
mesmo se aplica às considerações de representabilidade. Aprova destas aparece na
superfície do texto como uma citação das causas da queda da República: a “confusão” do
período do pós-guerra, a criação de uma “ditadura provisória” que continuou a minar o
espírito (embora não a carta) da Constituição, e a natureza geral de “simulacro” da estrutura
política da República. Mas as causas reais do fracasso da República são indicadas apenas
figurativamente, como se residissem naquela “fealdade” do caráter alemão que a noção de
sua “beleza” apenas aparente invoca ironicamente.
As duas afirmações causais feitas no trecho requerem uma análise mais extensa. A
primeira declara que os “primeiros quatro anos [da República] foram gastos na confusão
política e econômica que se seguiu à Guerra dos Quatro Anos”. Literalmente, a afirmação
sugere que a confusão causa fraqueza política; mas na verdade ela diz que “anos” podem
ser “gastos” em “confusão”. Aqui, a palavra “anos” é uma metonímia para “vida”, que, por
sua vez, é uma metáfora para “energias”. Porém o uso de um verbo na passiva (“foram
gastos”), mais adiante, sugere que essas “energias” eram débeis desde o começo. Um
contraste semelhante entre o que é dito literalmente e o que é sugerido pelas inversões
figurativas pode ser visto na segunda afirmação causai do trecho: a “ditadura provisória,
parcialmente disfarçada de legalidade, ... reduziu a República a um simulacro muito antes
que ela fosse derrubada abertamente”. Literalmente, a afirmação assevera que a “ditadura
provisória, parcialmente disfarçada de legalidade” (ela própria uma caracterização
metafórica que sugere a ação de forças sinistras na cena) “reduziu” a República a um
“simulacro”. Mas aqui o verbo utilizado (“reduziu”) é mais ativo que passivo e, portanto,
sugere o poder e força dos inimigos da República em contraste com a fraqueza dos seus
defensores. Este contraste implícito permite aos leitores aceitar a explicação da queda da
República que em última análise será fornecida como plausível. Afinal de contas, não
surpreende que os poderes fortes e ativos deveriam conseguir destruir os poderes débeis e
confusos. É na natureza das coisas que as entidades “reais” sobrepujam as “falsas”.
Estamos agora em condição de identificar a metáfora dominante de todo o trecho,
aquela que serve de mediadora entre a dimensão literal e a figurativa do discurso, tal como
se revelam na palavra simulacro [sham]. Esta palavra se liga etimologicamente à palavra
inglesa shame [vergonha], e no registro dos seus usos mais antigos conota “truque”,
“fraude” e “contrafação”79. É esta metáfora, com a sua insinuação de má fé, vacuidade e
meras aparências, que sanciona o uso dos verbos que demarcam os estágios sucessivos do
processo de desintegração da “vida” da República: “criada”, “gastos”, “reduziu” e
finalmente “derrubada”. E também esta metáfora que sanciona a atitude irônica de Taylor
para com o tema do seu discurso, a República de Weimar, e aqueles “observadores
estrangeiros” cujos olhos eram tão cegos quanto suas mentes eram desatentas.
O aspecto a ser destacado aqui é que o objeto da representação de Taylor, o referente
79 Ver The Oxford Dictinnary ofEnglixh Eiymology, ed. C. T. Onions (Oxford, 1967), p. 816.
HISTORICISMO, HISTÓRIA E A IMAGINAÇÃO FIGURATIVA 139
do discurso, não é a República de Weimar como tal, mas antes o “simulacro” em que a
República se constituiu. A metáfora do “simulacro” é predominante no sentido de fornecer
o eixo paradigmático do trecho que sanciona a passagem da percepção da aparência exterior
para a decomposição interna no eixo sintagmático. A estrutura implícita da relação entre
exterior e interior, aparência e realidade, da República é a mesma da relação entre os olhos
e as mentes vazias dos seus observadores estrangeiros favoráveis. Trata-se de uma forma
sem substância. E caracterizar esta forina sem substância é o objetivo último do restante do
relato que Taylor faz da história da Alemanha desde 1815 até Hitler.
Ora, quero sugerir que um tipo semelhante de análise poderia ser feito de todo o livro
de Taylor ou, na verdade, de qualquer obra histórica, inclusive especialmente aquelas que
normalmente consideramos “clássicas”, tais como as obras de Michelet, Ranke,
Tocqueville, Marx, Burckhardt, bem como as de autores modernos como Huizinga,
Braudel, Marc Bloch e Croce. Tais obras se prestam ao tipo de análise retórica que tentei
fazer neste trecho de Taylor muito mais facilmente do que a dele, tão manifestadamente
“literárias” elas são. O trecho de Taylor foi escolhido pelo que se poderia considerar um
tipo de supereapacidade analítica, porque é tão inconscientemente retórico, porque pretende
de modo tão patente descrever os fatos sem ornamentação e apresentar o argumento
vivamente e de maneira direta. Meu objetivo não foi lançar dúvidas sobre a interpretação
específica que Taylor oferece da sua matéria, mas explicar o que se poderia entender pelo
“ponto de vista” a partir do qual ele escreveu e mostrar que o que ele diz acerca do seu
tópico aparente e o modo como o diz eram realmente indistintos.
Dificilmente se poderia elogiar o trecho pela vividez da linguagem. Na verdade, a
maioria das metáforas nele contidas são metáforas mortas, mas não devemos subestimar a
atração que as metáforas mortas exercem sobre uma classe particular de leitores. Elas
podem, com efeito, ser encoraja- doras, podem consolidar visões já aceitas e servir para
familiarizar fenômenos que de outra forma continuariam exóticos ou estranhos. Raramente
se observa como o efeito da “objetividade” pode ser alcançado pelo uso da linguagem não-
poética, vale dizer, pela linguagem em que as metáforas mortas, e não as vivas, fornecem a
substância do discurso. Mas, morta ou vivida, a linguagem desse trecho funciona
exatamente* da mesma forma que a poesia o faz para desviar a atenção do nível manifesto
do discurso para um nível latente ou figurativo e vice-versa. Isso concede ao autor o direito
à explicação formal do motivo pelo qual as coisas são diferentes do que parecem ser, e da
razão pela qual o seu direito revela o modo como as coisas realmente eram.
Ora, se por essa análise estabeleci a plausibilidade da ideia de que todo discurso
histórico tem um nível figurativo de sentido, é possível, suponho, resolver alguns problemas
convencionais da teoria histórica. Primeiro, podemos ver agora tanto as similaridades como
as diferenças entre a “filosofia da história” e a “historiografia”. Como qualquer filosofia da
história, uma narrativa histórica logra os seus efeitos como explicação quando revela o
sentido mais profundo dos eventos que ela descreve através da sua caracterização na
linguagem figurativa. Sua diferença principal consiste no fato de que, enquanto na filosofia
da história o elemento figurativo do discurso é trazido à superfície do texto, formalizado
pela abstração e tratado como a “teoria” que orienta tanto a investigação dos eventos quanto
a sua representação, na narrativa histórica o elemento figurativo é deslocado para o interior
do discurso onde ele vagamente toma forma na consciência do leitor e serve como a base
sobre a qual o “fato” e a “explicação” se podem combinar numa relação de adequação
mútua. Na medida, então, em que o historiador tradicional continua a não ter consciência do
grau em que a sua própria linguagem determina não apenas a maneira, mas também o tema
e o sentido do seu discurso, ele deve ser julgado menos autoconsciente criticamente e até
140 TRÓPICOS DO DISCURSO
menos “objetivo” do que o filósofo da história. Este, pelo menos, tenta controlar o seu
discurso mediante a utilização de uma terminologia técnica que torna o sentido pretendido
claro e aberto à crítica.
a formulação dos problemas e o registro das suas resoluções. Por isso eu afirmaria,
conquanto não possa defender aqui o argumento, que podemos falar dos modos metafórico,
metonímico, sinedóquico e irônico do discurso histórico. E, como esses modos corres-
pondem às modalidades de uso da linguagem do leitor (e, portanto, à sua maneira de
conceituar o mundo), eles fornecem a base para a comunicação da compreensão e dos
sentidos entre, de um lado, -as “escolas” específicas de historiadores e, de outro, os públicos
específicos. Em virtude de haver um elemento geralmente poético em toda escrita histórica,
elemento que aparece no discurso em prosa na forma de retórica, as grandes obras históricas,
quer de historiadores, quer de historicistas, conservam a sua vividez e autoridade muito
tempo depois de terem deixado de contar como contribuições para a “ciência”.Em quarto
lugar, o reconhecimento da dimensão figurativa no discurso histórico nos abre uma nova
perspectiva sobre o problema do relativismo histórico. O historicismo rankiano, mais antigo,
era relativista na medida em que acreditava que a compreensão de um fenômeno histórico
requeria que o historiador o visse “segundo os seus próprios termos” ou “por ele mesmo”.
Aqui, a “objetividade” consistia em pôr-se de fora da própria época e cultura do historiador,
em pensar a sua trajetória na consciência da época em exame, em ver o mundo a partir da
sua perspectiva e em reproduzir o modo como o mundo aparecia aos atores no drama que
ele estava narrando. O ramo absolutista mais recente do historicismo - o de Hegel, Marx,
Spengler et alia, aqueles historicistas “científicos” tão severamente criticados por Popper -
afirmava transcender o relativismo mediante a importação de teorias científicas para a
análise histórica, pelo uso de uma terminologia técnica e pela descoberta das leis que regiam
o processo histórico em todas as épocas e lugares. Da mesma forma, também os
historiadores mais modernos, de orientação cientificamente social, afirmaram transcender o
relativismo pelo uso que fizeram do método rigoroso e da sua abstenção das técnicas
“impressionistas” usadas por seus congêneres narrativistas mais convencionais. No entanto,
se a minha hipótese estiver correta, não pode haver essa coisa de representação não-
relativista da realidade histórica, pois que todo relato do passado sofre a mediação por parte
do modo de linguagem em que o historiador molda a sua descrição original do campo
histórico antes de qualquer análise, explicação ou interpretação que possa oferecer dele.
estes, ao passo que podemos imaginar meios de traduzir entre diferentes códigos de
linguagem. Não tem sentido dizer que podemos traduzir as percepções de um francês nas de
um alemão, as de um homem da Renascença nas de um homem da Idade Média ou as de um
radical nas de um liberal. Mas não tem sentido dizer que podemos traduzir as percepções de
um historiador, que moldou o seu discurso no modo da metáfora, nas percepções de alguém
que moldou o seu no modo da sinédoque, ou as percepções de alguém que vê o mundo
ironicamente nas de alguém que o vê no modo da metonímia. E se os tropos da linguagem
são limitados, se os tipos de figuração são finitos, então é possível imaginar o modo como
as nossas representações do mundo histórico se agregam numa visão total e abrangente
desse mundo, e como se torna possível progredir na compreensão que temos dele. Cada
nova representação do passado significa um teste e um refinamento das nossas capacidades
de figurar o mundo na linguagem, de modo que cada nova geração é herdeira não apenas de
mais informações sobre o passado, mas também de mais conhecimentos adequados da nossa
capacidade de compreendê-lo.
Isto me leva ao último aspecto que quero destacar, o qual diz respeito à revelação
entre a história considerada como arte e a história considerada como ciência. O tipo de
análise que empreendi do trecho do livro de Taylor poderia ter sido feito com qualquer texto
histórico. Como eu disse, teria sido mais fácil fazê-lo com escritores clássicos como
Michelet, Ranke, Tocqueville, Burckhardt, Huizinga, Marx, Hegel ou Spengler, pela
simples razão de que são “artísticos” ou “literários” de maneira mais óbvia do que os seus
congêneres menos autoconscientes artisticamente. Longe de fixar limites para o seu status
de historiadores, contudo, é precisamente esse componente literário ou artístico do seu
discurso que os resguarda de um desmentido definitivo e lhes garante um lugar entre os
“clássicos” da historiografia. É à força da imaginação criadora desses escritores clássicos
que pagamos tributo quando lhes louvamos as obras como modelos do ofício do historiador
muito tempo depois de termos deixado de dar crédito à sua erudição ou às explicações
específicas que eles ofereceram para os “fatos” que buscaram elucidar. Quando retiramos
uma grande obra histórica - como fazemos com Gibbon - da esfera da ciência para venerá-
la na esfera da literatura como um clássico, estamos rendendo tributo, em última análise, ao
gênio do historiador plástico, figurativo e, finalmente, linguístico. Robert Frost disse certa
vez que, quando um poeta envelhece, ele morre para a filosofia. Quando uma grande obra
da historiografia ou da filosofia da história se torna antiquada, la enasce para a arte.
AS FICÇÕES DA REPRESENTAÇÃO FACTUAL
históricos diferem dos eventos ficcionais nos modos pelos quais se convencionou
caracterizar as suas diferenças desde Aristóteles. Os historiadores ocupam-se de
eventos que podem ser atribuídos a situações específicas de tempo e espaço,
eventos que são (ou foram) em princípio observáveis ou perceptíveis, ao passo que
os escritores imaginativos - poetas, romancistas, dramaturgos - se ocupam tanto
desses tipos de eventos quanto dos imaginados, hipotéticos ou inventados. O
problema não é a natureza dos tipos de eventos com que se ocupam historiadores e
escritores imaginativos. O que nos deveria interessar na discussão da “literatura do
fato” ou, como preferi chamar, das “ficções da representação factual”, é o grau em
que o discurso do historiador e o do escritor imaginativo se sobrepõem, se asseme-
lham ou se correspondem mutuamente. Embora os historiadores e os escritores de
ficção possam interessar-se por tipos diferentes de eventos, tanto as formas dos seus
respectivos discursos como os seus objetivos na escrita são amiúde os mesmos.
Além disso, a meu ver, pode-se mostrar que as técnicas ou estratégias de que se
valem na composição dos seus discursos são substancialmente as mesmas, por
diferentes que possam parecer num nível puramente superficial, ou diccional, dos
seus textos.
Os leitores de histórias e de romances dificilmente deixam de se surpreender
com as semelhanças entre eles. Há muitas histórias que poderiam passar por
romance, e muitos romances que poderiam passar por histórias, considerados em
termos puramente formais (ou, diríamos, formalistas). Vistos apenas como artefatos
verbais, as histórias e os romances são indistinguíveis uns dos outros. Não podemos
distinguir com facilidade entre eles, em bases formais, a menos que os abordemos
com pré-concepçoes específicas sobre os tipos de verdade de que cada um
supostamente se ocupa. Mas o escopo do escritor de um romance deve ser o mesmo
que o do escritor de uma história. Ambos desejam oferecer uma imagem verbal da
“realidade”. O romancista pode apresentar a sua noção desta realidade de maneira
indireta, isto é, mediante técnicas figurativas, em vez de fazê-lo diretamente, ou
seja, registrando uma série de proposições que supostamente devem corresponder
detalhe por detalhe a algum domínio extratextual de ocorrências ou acontecimentos,
como o historiador afirma fazer. Mas a imagem da realidade assim construída pelo
romancista pretende corresponder, em seu esquema geral, a algum domínio da
experiência humana que não é menos “real” do que o referido pelo historiador. Não
se trata, pois, de um conflito entre dois tipos de verdade (que o preconceito
ocidental com relação ao empiris- mo como única via de acesso à realidade nos
impingiu), de um conflito entre a verdade de correspondência, de um lado, e a
verdade de coerência, de outro. Toda história precisa submeter-se tanto a padrões
de coerência quanto a padrões de correspondência se quiser ser um relato plausível
do “modo como as coisas realmente aconteceram”. Pois o preconceito empirista é
reforçado pela convicção de que a “realidade” é não só perceptível como coerente
na sua estrutura. Uma simples lista de afirmações existenciais singulares, passíveis
de confirmação, não indica um relato da realidade se não houver alguma coerência,
lógica ou estética, que as ligue entre si. Da mesma forma, toda ficção deve passar
por um teste de correspondência (deve ser “adequada” como imagem de alguma
144 TRÓPICOS DO DISCURSO
coisa que está além de si mesma), se pretender apresentar uma visão ou iluminação
da experiência humana do mundo. Quer os eventos representados num discurso
sejam interpretados como partes diminutas de um todo molar, quer como possíveis
ocorrências dentro de uma totalidade perceptível, o discurso tomado na sua
totalidade como imagem de alguma realidade comporta uma relação de
correspondência com aquilo de que ele constitui uma imagem. É nesse duplo
sentido que todo discurso escrito se mostra cognitivo em seus fins e mimético em
seus meios. E isto vale também para o discurso mais lúdico e aparentemente mais
expressivo, para a poesia tanto quanto para a prosa e até para aquelas formas de
poesia que parecem querer iluminar apenas a própria “escrita”. Neste aspecto, a
história não é menos uma forma de ficção do que o romance é uma forma de
representação histórica.
verdade; e isto significava que as técnicas de criar ficção eram tão necessárias à
composição de um discurso histórico quanto o seria a erudição.
Entretanto, no começo do século XIX tornou-se convencional, pelo menos
entre os historiadores, identificar a verdade com o fato e considerar a ficção o
oposto da verdade, portanto um obstáculo ao entendimento da realidade e não um
meio de apreendê-la. A história passou a ser contraposta à ficção, e sobretudo ao
romance, como a representação do “real” em contraste com a representação do
“possível” ou apenas do “imaginável”. E assim nasceu o sonho de um discurso
histórico que consistisse tão-somente nas afirmações factualmente exatas sobre um
domínio de eventos que eram (ou foram) observáveis em princípio, cujo arranjo na
ordem de sua ocorrência original lhes permitisse determinar com clareza o seu
verdadeiro sentido ou significação. Caracteristicamente, o objetivo do historiador
do século XIX era expungir do seu discurso todo traço do fictício, ou simplesmente
do imaginável, abster-se das técnicas do poeta e do orador e privar-se do que se
consideravam os procedimentos intuitivos do criador de ficções na sua apreensão
da realidade.
Para entender esta evolução do pensamento histórico, cumpre reconhecer que
a historiografia tomou forma como disciplina erudita distinta no Ocidente durante
o século XIX, contra o pano de fundo de uma imensa hostilidade a todas as formas
de mito. Tanto a direita quanto a esquerda políticas responsabilizaram o
pensamento mítico pelos excessos e fracassos da Revolução. Interpretações erradas
da história, concepções equivocadas da natureza do processo histórico, expectativas
irrealistas sobre as maneiras pelas quais as sociedades históricas poderiam ser
transformadas - tudo isso levara primeiramente à eclosão da Revolução, ao estranho
curso que os acontecimentos revolucionários tomaram e às consequência s das
atividades revolucionárias no decurso do tempo. Era imperativo colocar-se acima
de todo e qualquer impulso para interpretar o registro histórico à luz de preconceitos
partidários, expectativas utópicas ou vinculações sentimentais a instituições
tradicionais. Para encontrar o próprio caminho por entre as exigências conflitantes
dos partidos que se constituíram durante e após a Revolução, era necessário detectar
algum ponto de vista da percepção social que fosse verdadeiramente “objetivo”,
verdadeiramente “realista”. Se os processos sociais e as estruturas pareciam
“demoníacos” em sua capacidade de opor-se à direção, de tomar rumos inesperados
e de solapar os projetos mais grandiosos, frustrando os desejos mais sinceros, o
estudo da história tinha, pois, de ser desmistificado. Mas, no pensamento da época,
a desmistificação de qualquer campo de pesquisa tendia a ser igualmente
equiparada à desfic- cionalizaçao desse campo.
A distinção entre mito e ficção, que constitui um lugar-comum no
pensamento do nosso século, dificilmente era apreendida por muitos dos ideólogos
de destaque do começo do século XIX. Sucedeu então que a história, a ciência
realista por excelência, se viu contraposta à ficção como o estudo do real versus o
estudo do meramente imaginável. Embora Ranke, quando criticou severamente o
romance como mera fantasia, tivesse em mente aquela forma de romance que desde
146 TRÓPICOS DO DISCURSO
80 Tentei exemplificar minuciosamente cada uma dessas redes de relação em alguns historiadores no meu livro
Metahistory; The Historical Imaginai ion in Nineteenth-Century Europe (Baltimore e London, 1973).
AS FICÇÕES DA REPRESENTAÇÃO FACTUAL 151
81 As citações, no texto, da Origin of Species de Darwin se referem à Dolphin Edition (New York, n. d.).
152 TRÓPICOS DO DISCURSO
não deseja ver nesta ordem um produto de algum poder espiritual ou teleológico. A
ordem que ele procura nos dados deve achar-se, pois, manifesta nos próprios fatos,
mas não de modo a revelar as ações de um poder transcendental. Para estabelecer
esta noção de plano da natureza, ele pretende primeiramente tratar “objetivamente”
todos os “fatos” da história natural fornecidos pelos naturalistas de campo,
criadores domésticos e estudantes do registro geológico - quase da mesma forma
com que o historiador trata os dados fornecidos pelos arquivos. Mas este tratamento
do registro não é mera recepção de fatos; trata-se de uma maneira de lidar com os
fatos com vistas a desacreditar todos os sistemas taxonômicos precedentes em que
foram codificados.
Como Kant antes dele, Darwin insiste em que a fonte de todo erro é a
aparência. A analogia, diz ele repetidas vezes, é sempre um “guia enganoso” (ver
pp. 61, 66, 473). Em comparação com a analogia ou, como eu diria, com as
caracterizações meramente metafóricas dos fatos, Darwin deseja provar as suas
alegações pela existência de “afinidades” reais genealogica- mente construídas. O
estabelecimento destas afinidades lhe permitirá postular a união de todas as coisas
vivas com todas as outras mediante as “leis” ou “princípios” da descendência
genealógica, da variação e da seleção natural. Estas leis e princípios são os
elementos formais de sua explicação mecanicista do motivo por que as criaturas
são arranjadas em famílias numa série temporal. Mas esta explicação não poderia
ser fornecida enquanto os dados permanecessem codificados nos modos
linguísticos da metáfora ou da sinédoque, os modos da conexão qualitativa.
Enquanto as criaturas forem classificadas em função da aparência ou da unidade
essencial, o domínio das coisas orgânicas deve permanecer um caos de ligação
arbitrariamente afirmada ou uma hierarquia de formas superiores e inferiores.
Entretanto, a ciência, como Darwin a entendia, não pode trabalhar com as
categorias “superior” e “inferior”, como não o pode com as categorias “normal” e
“monstruoso”. Tudo deve ser tratado como o que manifestamente parece ser. Coisa
alguma pode ser considerada “surpreendente” e muito menos “miraculosa”.
Há muitos tipos de fatos invocados em The Origin ofSpecies: Darwin fala de
fatos “extraordinários” (p. 301), fatos “notáveis” (p. 384), fatos “capitais” (pp. 444,
447), fatos “desimportantes” (p. 58), fatos “bem estabelecidos” e até fatos
“estranhos” (p. 105); porém não há fatos “surpreendentes”. Todas as coisas, tanto
para Darwin como para Nietzsche, são exatamente o que parecem ser - mas o que
as coisas parecem ser são dados registrados sob a perspectiva de mera contiguidade
no espaço (todos os fatos reunidos pelos naturalistas no mundo todo) e no tempo
(os registros dos criadores domésticos e o registro geológico). Como os elementos
de um problema (ou, antes, de um quebra-cabeça, pois Darwin acha que existe uma
solução para o seu problema), os fatos da história natural existem naquele modo de
relação pressuposto na ação do tropo linguístico da metonímia, tropo favorito de
todo discurso científico moderno (esta é uma dàs distinções fundamentais entre as
ciências modernas e as pré-modernas). A substituição do nome da parte de uma
coisa pelo nome do todo é pré-linguisticamente sancionada pela importância que a
consciência científica concede à mera contiguidade. Considerações sobre a
AS FICÇÕES DA REPRESENTAÇÃO FACTUAL 153
aparência são tacitamente removidas no emprego deste tropo, da mesma forma que
considerações de diferença e contraste. E isso que confere à consciência
metonímica o que Kenneth Burke chama seu aspecto “redutivo”. Existem coisas
em relações contíguas que só são definíveis espacial e temporal mente. Esta
metonimização do mundo, esta codificação preliminar dos fatos em função de
relações meramente contíguas, é necessária para remover dos fenômenos a
metáfora e a teleologia, o que toda ciência moderna busca realizar. E Darwin passa
a maior parte do seu livro a justificar essa codificação, ou descrição original da
realidade, a fim de eximir-se dos erros e da confusão que seu perfil meramente
metafórico produziu.
Mas esta não passa de uma operação preliminar. Darwin então reestru- tura
os fatos - mas apenas ao longo de um eixo da grade de tempo e espaço em que ele
originariamente os dispôs. Em vez de ressaltar a simples contiguidade dos
fenômenos, ele muda as engrenagens, ou antes os modos tropo- lógicos, e começa
por se concentrar nas diferenças - mas em dois tipos de diferenças: as variações
dentro das espécies, de um lado, e os contrastes entre as espécies, de outro. “Os
sistematas”, escreve ele, “[...] só precisam decidir [...] se alguma forma é
suficientemente constante e distinta de outras formas para ser passível de definição;
e, quando é passível de definição, se as diferenças são bastante importantes para
merecer um nome científico”. Mas a distinção entre uma espécie e uma variedade
é apenas uma questão de grau.
Doravante seremos compelidos a reconhecer que a única distinção entre as espécies e as variedades
bem caracterizadas é saber ou acreditar que estas últimas se acham atualmente associadas por gradação
intermediária, ao passo que as espécies estavam anteriormente associadas dessa maneira. Por conseguinte,
sem rejeitar a consideração da existência presente de gradações intermediárias entre duas formas quaisquer,
seremos induzidos a ponderar com mais cuidado e a valorizar mais a extensão real das diferenças entre elas. É
bem possível que formas hoje reconhecidas como simples variedades sejam doravante julgadas dignas de
nomes específicos; e, neste caso, a linguagem científica e a linguagem comum entrarão em acordo. Em suma, teremos
de tratar a espécie da mesma forma que os naturalistas tratam os gêneros, os quais admitem que os gêneros
são apenas combinações artificiais criadas por conveniência. Esta pode não ser uma perspectiva
animadora; mas pelo menos estaremos livres da busca infrutífera da essência não-encontrada e não-
encontrável do termo “espécie” (pp. 474- 475; grifos nossos).
de transição”, pp. 179-182, 310) não é senão os fatos expostos numa linha temporal,
em vez da espacial, e tratados como uma “série” que permite “imprimir... na mente
a ideia de uma passagem real” (p. 66). Todos os seres orgânicos são então
(gratuitamente, com base tanto nos fatos quanto nas teorias de que Darwin podia
dispor) tratados (metaforicamente no nível literal do texto, mas sinedoquicamente
no nível alegórico) como se pertencessem a famílias ligadas pela descendência
genealógica (através da ação da variação e seleção natural) a partir dos quatro ou
cinco protótipos postulados. Só a sua aversão à “analogia”, diz-nos ele, é que o
impede de dar “um passo adiante, a saber, rumo à crença de que todas as plantas e
animais descendem de algum protótipo único” (p. 473). Mas Darwin chegou tão
perto de uma doutrina da unidade orgânica quanto lho permitiu o respeito aos
“fatos”, na sua codificação original no modo da contiguidade. Ele transformou os
“fatos” de uma estrutura de particulares relacionados de maneira meramente contí-
gua numa sinédoque sublimada. E isto a fim de colocar uma visão nova e mais
confortadora (bem como, segundo ele, mais interessante e abrangente) da natureza
no lugar da visão dos seus oponentes vitalistas.
A imagem que ele por fim oferece - de uma sucessão ininterrupta de gerações
- talvez tenha exercido um efeito perturbador sobre os seus leitores, de vez que
eliminou a distinção entre o “superior” e o “inferior” na natureza (e, em
consequência, na sociedade) e o “normal” e o “monstruoso” na vida (e, portanto,
na cultura). Mas, segundo Darwin, a nova imagem da natureza orgânica na forma
de uma continuidade essencial dos seres gerou a certeza de que nenhum
“cataclisma” jamais “devastou o mundo” e permitiu-lhe antecipar um “futuro
seguro e o progresso rumo à perfeição” (p. 477). Em vez de “cataclisma” podemos
ler evidentemente “revolução”, e em vez de “futuro seguro”, “status quo social”.
Mas tudo isto é apresentado,'não como imagem, mas como fato evidente. Darwin
só é irônico com respeito aos sistemas de classificação que desejavam fundamentar
a “realidade” em ficções que ele não aprovava. Darwin distingue entre os códigos
tropológi- cos “responsáveis” pelos dados e aqueles que não o são. Mas o critério
de responsabilidade pelos dados não é extrínseco à operação pela qual os “fatos”
são ordenados na descrição inicial que faz deles; tal critério é intrínseco a essa
operação.
Vista desse ângulo, mesmo The Origin of Spe.cies, essa summa da “literatura
do fato” do século XIX, deve ser lida como um tipo de alegoria - uma história da
natureza que pretende ser entendida literalmente, mas que apela, em última análise,
para uma imagem da coerência e ordenação que ela constrói apenas por meio de
“desvios” linguísticos. E se isso é verdadeiro para a Origin, quanto mais não será
para qualquer história das sociedades humanas? Na realidade, os historiadores não
estão de acordo quanto a um sistema terminológico para a descrição dos eventos
que eles querem tratar como fatos e engastar nos seus discursos como dados auto-
revela- dores. A maioria das disputas historio gráficas - entre os estudiosos de eru-
dição e inteligência mais ou menos iguais - versa precisamente sobre a questão de
saber qual dentre os muitos protocolos linguísticos deve ser utilizado para descrever
os eventos em controvérsia, e não sobre que sistema explicativo deve ser aplicado
AS FICÇÕES DA REPRESENTAÇÃO FACTUAL 155
serem velhas, que constitui o indício da obsolescência de uma cultura. Pois, uma
vez encetado o trabalho de aniquilação, é difícil impor-lhe um limite e recobrar a
reverência pelas raízes e o respeito pelas virtudes conservadoras sem os quais o
organismo humano não pode sobreviver. Entretanto, em sua época, a atitude super-
histórica do Iluminis- mo foi tão necessária quanto desejável, e sua forte hostilidade
à irracionalidade não deixou de produzir discernimentos históricos significativos.
Sem a sua abordagem exclusivamente “crítica” da história, os iluministas não te-
riam sido capazes de praticar a sua obra de desmantelamento das instituições
decadentes e de descrédito da autoridade de uma tradição que havia muito
degenerara em rotina mecânica. Uma abordagem crítica do registro histórico, tal
como a fornecida pela tradição, era condição prévia do programa dos iluministas
para cultivar uma segunda natureza em lugar da primeira, que, legada pelos seus
predecessores, era a única forma possível que qualquer vida especificamente
humana poderia assumir.
A principal acusação contra os iluministas é que seu racionalismo militante
quebrou qualquer impulso para encarar com simpatia e tolerância as muitas
manifestações do irracional com que depararam nos registros históricos, e
especialmente nos registros da Idade Média e da Antigüidade remota. A acusação
é bastante exata e descreve a abordagem dos melhores pensadores históricos da
época na corrente principal do racionalismo - Bayle, Mon- tesquieu, Voltaire,
Robertson, Hume e Gibbon embora não faça justiça aos representantes da
convenção variante - Leibniz, Vico, Mõser e Herder. Mas, sendo um juízo que
atribui uma limitação fundamental à consciência histórica dos racionalistas, ela
suscita implicitamente a questão dos usos a cujo serviço devem ser postos o
conhecimento em geral e o conhecimento histórico em particular. Esta questão é
meía-historiográfica - ligada que está ao valor que se atribui ao estudo
desinteressado do passado - e não pode, pois, ser adjudicada a partir do próprio
pensamento histórico. O modo de abordar o passado, a postura assumida diante
dos dados da história, a voz com que se relatam as descobertas feitas sobre o
passado, a relação entre as capacidades de tolerância de uma pessoa e o interesse
de alguém em interpretar e criticar - tudo isso é função de uma decisão metó-
historiográfica, e especificamente ética, no concernente aos usos a serviço dos
quais deve ser posto o conhecimento de alguém. É verdade que os pensadores
históricos do século XVIII tendiam a superestimar o irracional como fator causai
no processo histórico e a subestimá-lo como possível fonte de força social criativa.
Mas, se não eram tolerantes para com o que nós já não consideramos irraci-
onalidade, mas antes fé, eles foram culpados apenas de um juízo equivocado; seu
instinto era por demais sadio. O importante não é saber se deixaram de distinguir
entre não-razão e fé, mas que percepções criticas da natureza da existência histórica
lhes proporcionou o seu fracasso em fazer adequadamente essa distinção.
Não que o século XVIII não estivesse familiarizado com a forma men- tis
que, no século XIX, iria triunfar na forma de historicismo e que, no caso,
estabeleceria que tolerância e simpatia para com todas as coisas do passado,
racionais e irracionais, era um cânone inconteste de ortodoxia no pensamento
156 TRÓPICOS DO DISCURSO
histórico. Na filosofia de Leibniz, por exemplo, deparamos com atitudes que não
só dotam o irracional de um valor específico, mas também suprimem simplesmente
a distinção entre razão e irracionalidade como critério de avaliação. Na
Monadologia (1714), o próprio conceito de irracional é descartado como categoria
do ser histórico significativo, porquanto a noção de irracionalidade intrínseca teria
indicado alguma inadequação na Criação e portanto, por implicação, no Criador. A
doutrina da continuidade de Leibniz, com suas ideias cognatas de raciocínio
analógico na epistemo- logia e de evolução na ontologia, cria a concepção de
transição gradual de uma localização espacial a outra e de um instante temporal a
outro, que, efetivamente, nega a adequação de qualquer caracterização do mundo
em termos de oposições. Do mesmo modo, em seu conceito de natureza humana,
Leibniz não vê qualquer descontinuidade entre os atributos físicos e espirituais dos
homens, entre diferentes tipos de homem ou entre diferentes estados espirituais dos
homens. Assim como a própria noção de homem “monstruoso” era uma anomalia,
refletindo mais uma falha de conhecimento ou de imaginação no conhecedor do
que uma inadequação na coisa conhecida, assim também a noção de homem
inerentemente “irracional” refletia uma falha de conhecimento ou uma concepção
inadequada da natureza humana. Contíguo no espaço, contínuo no tempo: tais eram
os pressupostos da noção de processo histórico que Leibniz introduziu nas suas
tentativas de escrita histórica. Assim, a forma “analítica” de representação histórica
que ele promoveu era mais que um artifício para organizar mecanicamente o campo
histórico: refletia a ordem do ser no tempo, a evolução gradual, essa continuidade
do processo histórico da qual o próprio cosmo era um equivalente espacial.
As implicações desse conceito de história só foram plenamente formuladas
durante as duas últimas décadas do século XVIII, particularmente por Herder, cujo
Ideen zur Philosophie der Geschichte des Menschheits veio a lume entre 1784 e
1791. Entre 1714, o ano da Monadologia de Leibniz, e a década de 1780, a doutrina
da continuidade, o conceito de evolução e o princípio do raciocínio analógico
haviam passado por dias ruins, não apenas na filosofia natural, da qual haviam sido
banidos por Newton e Locke, mas igualmente na historiografia. Seu retorno à
historiografia com Herder, porém, não só assinala o renascimento de uma
sensibilidade histórica genuína, mas também marca uma importante transição de
uma forma de pensamento histórico para outra, uma transição da historiografia
“crítica” do Iluminismo para o “pietismo” histórico do século XIX. Semelhante
transição só pode ser considerada como um progressus absoluto para aqueles que
não acreditaram na distinção nietzschiana entre as diversas maneiras de abordar o
campo histórico.
Mesmo Cassirer, que esteve entre os primeiros a se opor à ideia de que o
Iluminismo carecia de sensibilidade histórica, ressaltou a natureza revolucionária
do ataque de Herder ao “pensamento analítico e ao princípio de identidade” que -
na opinião de Cassirer - impedira o desenvolvimento de uma historiografia
completamente tolerante ao longo da maior parte do século anterior. Herder, diz
Cassirer, “desfaz a ilusão de identidade”; para ele, nenhuma coisa é realmente
idêntica a qualquer outra, nada retorna da mesma forma. Para Herder,
0 IRRACIONAL E 0 PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO NO ILUMINISMO 157
a história produz novas criaturas em sucessão ininterrupta, c a cada uma ela confere como direito inato
uma forma única e um modo independente de existência. Toda generalização abstrata é, pois, impotente
com respeito à história, e nem uma norma genérica nem qualquer norma universal podem abranger a
sua riqueza.
Mas, por revolucionária que possa ter sido esta aplicação da doutrina da
continuidade, ela não autoriza a concluir que, como acreditava Cassirer, a
sensibilidade histórica da época seguinte foi absolutamente superior à dos
racionalistas do século XVIII. Pois o tipo de pensamento de Herder não só
dissolveu a distinção entre o “exótico” e o “familiar”, mas também suprimiu a
distinção entre o racional e o irracional, sem a qual a historiografia “crítica” não
pode ser prática de maneira nenhuma.
Para Herder, tudo na história é igualmente exótico ou igualmente familiar,
vale dizer, igualmente digno de ser encarado como apenas mais uma manifestação
da maravilhosa capacidade humana de sobrevivência, ajustamento, acomodação,
desenvolvimento ou adaptação. Para Herder, a própria existência é um valor. Ele
se encanta com o fato de que “o que pode ocorrer em alguma parte, ocorre; o que
pode atuar, atua”. E, com base neste fato, é- Ihe permitido advertir os seus leitores
contra qualquer “consideração” sobre a história de um tipo “previdente ou
retrospectivo”. “Tudo o que pode ser, é”, diz ele reiteradas vezes; “tudo o que pode
vir a ser, será, se não hoje, amanhã. [...] Todas as coisas que poderiam florescer
sobre a terra o fizeram, cada uma no seu próprio tempo e ambiente; elas feneceram,
e tornarão a florescer quando o seu tempo chegar”.
Herder não se coloca acima do registro histórico, nem se arvora o direito de
julgar o que for neste registro. Não tem nem mais nem menos respeito pelos
romanos do que pelos nativos desmazelados do Sul da Califórnia, dos quais teve
informação pelos missionários enviados àquelas praias exóticas. Estes
californianos, que mudam de moradia “umas cem vezes por ano”, que dormem a
qualquer hora e em qualquer lugar “sem prestar a menor atenção à imundície do
solo e sem tentar se proteger dos vermes nocivos”, e que se alimentam de sementes
que, “quando oprimidos pela miséria, colhem com os dedos do próprio
excremento” - estes humildes californianos não são nem melhores nem piores que
os mais nobres dos romanos. Ambos foram, como ele diz especificamente dos
romanos, “exatamente aquilo que eram capazes de se tornar: todas as coisas
perecíveis que lhes pertenciam pereceram, e o que era suscetível de permanência
permaneceu”. Assim, na história como na natureza, Herder conclui, “tudo, ou
nada, é fortuito; tudo, ou nada, é arbitrário. ... Este é o único método filosófico de
contemplar a história e foi praticado, mesmo inconscientemente, por todas as
mentes pensantes”.
E desnecessário dizer que, para Herder, nada é fortuito, nada é arbitrário; e
nada - nem mesmo o ato mais irracional - deixa de ter suas razões para ser
exatamente o que foi na época e no lugar em que ocorreu.
Esta postura pietista diante do evento histórico particular - diante do
irracional como diante do racional na natureza humana - difere radicalmente da
atitude irônica vigente na principal linha do pensamento histórico do século XVIII
158 TRÓPICOS DO DISCURSO
de Bayle a Gibbon. Isto não significa que aos racionalistas faltava totalmente a
simpatia pela humanidade irracional, ou que eram totalmente incapazes de
tolerância para com a irracionalidade do homem, tão amplamente exibida no
registro histórico. Em geral, o ceticismo dos iluministas os resguardou muito bem
da tendência de contrapor a loucura dos homens do passado à pretensa sabedoria
dos seus contemporâneos. Esse tipo de maniqueísmo simplório, para o qual a razão
e a loucura eram estados mentais opostos e mutuamente exclusivos, é encontrado
entre racionalistas doutrinários como Turgot e Condorcet; mas, entre os melhores
historiadores na tradição racíonalísta - Voítaire, Hume, Gibbon tal maniqueísmo
tem a função mais de um artifício retórico do que de uma concepção da relação
entre razão e irracionalidade na humanidade de todos os tempos e de todos os
lugares.
Como historiadores, os iluministas tendem em geral a fundamentar a sua
apreensão da loucura - e, por conseguinte, os seus juízos sobre ela - na situação em
que ela se manifesta. Na sua História de Carlos XII, por exemplo, Voltaire
distingue de maneira muito rigorosa e consistente entre o tipo de cálculo
equivocado que levou Carlos a empreender a conquista da Rússia e a loucura mais
profunda que se refletia nas suas tentativas de alcançar glória através de conquista.
Diferentemente da Filosofia da História, que é marcada pela tendência a conceber
o conflito entre razão e irracionalidade (ou entre charlatanismo e estupidez) em
termos maniqueístas, a História de Carlos XIí faz uma sutil distinção entre certo
número de diferentes tipos de irracionalidade na carreira de Carlos. E possível que
Voltaire se compraza em expor a estupidez assim do passado como do presente,
porém essa epopeia do escárnio (como a chamou Lionel Gossman em sua brilhante
análise desse trabalho como obra de arte) é entremeada de simpatia por um
soberano cuja razão era insuficiente para orientá-lo no sentido de utilizar os seus
talentos mais para fins pacíficos que militares. Os trechos em que Voltaire descreve
a morte de Carlos nas trincheiras de Frederikshall e extrai a moralidade de uma
vida dissipada na busca da glória militar são dignos de comparação com qualquer
coisa produzida pelos historiadores do século seguinte. O objetivo didático é
patente, mas os juízos, sendo juízos especificamente históricos, são irrepreensíveis.
E se tornam mais convincentes graças ao melancólico reconhecimento de que nem
o talento por si só nem a razão de um certo tipo constitui suficiente garantia contra
o poder da loucurá. Voltaire, assim como Bayle, sentia um prazer perverso em
catalogar a extensa gama de formas que a loucura poderia assumir; mas esta própria
apreensão das formas que a irracionalidade poderia tomar o leva no final ao
reconhecimento de que a loucura poderia predominar na natureza humana com o
passar do tempo. E o seu conhecimento do poder da loucura até mesmo sobre os
homens dotados dos mais extraordinários talentos resguardou Voltaire do otimismo
ingênuo que uma fé racionalista doutrinária no poder da razão fomentou em
pensadores como Turgot. E o mesmo se pode dizer de Hume e Gibbon.
A meu ver, as causas dos fracassos dos iluministas, bem como dos seus
êxitos como historiadores, não devem ser buscadas numa incapacidade qualquer
de compreender o irracional na história, ou mesmo de simpatizar com ele e de
0 IRRACIONAL E 0 PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO NO ILUMINISMO 159
feitos, diz ele. Segundo Mably, o principal problema do historiador, uma vez
consumada sua investigação do relato histórico, era escolher entre as estruturas de
enredo da comédia e da tragédia para descrever os eventos do passado dignos de
figurar numa história escrita. E, na sua análise desse problema, Mably admite,
como a maioria dos seus contemporâneos parecem ter feito, que as normas da
retórica e da poética clássicas são suficientes para a sua resolução. Todas as
manifestações históricas de heroísmo e vilania, do bem e do mal, ou da razão e da
loucura poderiam ser aproximadas e tecidas numa história edificante e de interesse
humano geral pela aplicação dos princípios narrativos contidos nos modelos clássi-
cos comprovados. A sabedoria era necessária para a escolha do modelo a ser usado
num exemplo específico, mas, na visão de Mably, já se nascia sábio ou não. A
habilidade era o requisito básico para saber como “narrar” os eventos de maneira
apropriada.
Os conselhos de Mably sobre o modo de escrever história revelam uma
importante pressuposição latente na historiografia do Iluminismo, uma contradição
que obstruiu o empenho dos seus melhores historiadores em lidar com os principais
problemas da representação histórica, quer do irracional, quer de qualquer outra
coisa. Esta contradição decorre da sujeição dos historiadores do Iluminismo às
regras da retórica e poética clássicas como metodologia da representação histórica,
e de uma suspeição simultânea da linguagem figurativa e do raciocínio analógico
requeridos para a sua aplicação adequada. Voltaire ainda vê a historiografia em
termos clássicos; ela é a filosofia que ensina pelo exemplo, mais imageticamente,
por assim dizer, que pela lógica discursiva. Ao mesmo tempo, porém, ele exclui
explicitamente a linguagem figurativa dos instrumentos apropriados para transmitir
o sentido de um relato histórico. Assim, escreve no seu Dicionário Filosófico:
“Imaginação ardente, paixão, desejo - por vezes frustrados - criam o estilo
figurativo. Não o admitimos na história, pois metáforas em demasia são danosas,
não só à clareza mas também à verdade, por dizerem mais ou menos do que a
própria coisa”. E na sua análise dos tropos poéticos ele critica os Padres da Igreja
pelo uso excessivo que delas fazem, o que, no seu entender, leva mais à fabulação
que a uma representação da verdade. A linguagem figurativa só pode ser utilizada
com propriedade na poesia, diz ele; e cita Ovídio como um poeta que se vale das
figuras e dos tropos de maneira a não “frustrar” ninguém.
O que Voltaire e a maioria dos iluministas não viram foi que a linguagem
figurativa é justamente um meio que tanto pode exprimir uma verdade apreendida
de maneira incompleta quanto dissimular um erro ou uma falsidade reconhecidos
de modo incompleto. A distinção rígida entre a linguagem figurativa para efeitos
poéticos e a representação em prosa discursiva para relatar a verdade das coisas
impediu os iluministas de considerar seriamente as fábulas, lendas e mitos que
chegaram até eles como sendo as verdades pelas quais os homens das épocas
passadas tinham vivido. Os iluministas não consideraram as paixões ou a
imaginação como elementos expun- gíveis da natureza humana, a serem
contrapostos à razão como seus inimigos; ao contrário, o que buscavam era um
equilíbrio judicioso da razão e das emoções na criação de uma humanidade justa.
0 IRRACIONAL E 0 PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO NO ILUMINISMO 161
época, segundo a qual era suficiente conhecer a história das palavras e as suas
etimologias, sem investigar o problema mais fundamental da função da linguagem
no processo da civilização.
A indiferença dos iluministas para com os tipos de questão que Vico trouxe
à baila ajuda a iluminar alguns pressupostos significativos do pensamento deles.
Um modo de caracterizar o pensamento de uma época é identificar as questões que
os seus pensadores representativos levantam consis- tentemente. Uma questão
levantada pelo Iluminismo foi a da natureza do conhecimento histórico - não a
questão do que aconteceu nem o sentido do processo histórico, mas a questão de
saber de que forma é possível o conhecimento histórico. Foi isto o que eu quis dizer
quando afirmei que a história como tal não era um problema para os iluministas.
Prova disso é que a linguagem não era um problema para eles. Não quer dizer que
não estudassem as línguas nem reconhecessem a importância da linguagem na
evolução da cultura, mas antes que não consideravam a linguagem em si, com o
seu poder de iluminar ou de obscurecer, como um problema. E isto limitou de modo
fundamental sua capacidade de compreender os modos de expressão de culturas
radicalmente distintas da deles.
Na medida em que se considerava suficiente para o historiador apenas
aprender a língua em que os documentos do passado haviam sido escritos, em vez
de penetrar os modos de pensamento refletidos em convenções linguísticas
distintas, a mente das épocas passadas tinha de continuar inacessível a qualquer
coisa que se aproximasse da plena compreensão das suas operações. A preferência
dos iluministas pela história recente, em oposição à remota, refletia, pois, uma
habilidade louvável. Enquanto se ocupavam de culturas não muito dessemelhantes
da sua própria, produziam uma historiografia como a História de Carlos XII, O
Século de Luís XIV ou Declínio e Queda do Império Romano, que era tão boa
quanto qualquer coisa criada pelos historiadores que viveram depois. Quando
tentavam ocupar-se de épocas e culturas radicalmente diferentes, tendiam a
superestimar ou a subestimar a sua originalidade e singularidade, como fez Gibbon
com Bizâncio, Winckelmann com a Grécia, Robertson com a América e Hume com
a Idade Média. Quando descobriram coisas admiráveis nessas épocas e culturas
remotas, inclinavam-se a moderar sua admiração com benigna ironia. Quando
deparavam com coisas que desprezavam, inclinavam-se simplesmente a censurá-
las, em vez de tentar compreender-lhes as funções em mundos diferentes do deles
próprios. Seu fracasso residia na relutância em acreditar plenamente na sua
capacidade prodigiosa de identificação poética com o diferente e o estranho. Não
confiavam em seus próprios poderes oníricos. Porém, dada a tarefa que se haviam
imposto, qual seja, a de desacreditar qualquer instituição ou ideia que dificultasse
a construção de uma sociedade justa na sua própria época, esta era uma decisão
legítima. Pois, como disse Nietzsche, nem sempre é uma decisão criativa procurar
compreender quando a situação exige a critica, ou demonstrar tolerância quando o
que se requer é uma afirmação dos direitos do presente sobre as reivindicações do
passado.
Vico permaneceu ignorado durante todo o século XVIII, não apenas porque
0 IRRACIONAL E 0 PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO NO ILUMINISMO 165
formas que a razão e a irracionalidade assumiram com o tempo. Gibbon ainda era
capaz de acalentar a ficção de que a sua própria época era superior à Idade das
Trevas, mas isto era em grande parte uma preferência estética, a consequência de
uma decisão de tratar sua própria época com mais simpatia do que a que poderia
dispensar à Idade Média, e não uma conclusão deduzida mediante um raciocínio
ponderado. O próprio Kant, num ensaio tardio, “Uma Velha Questão Novamente
Suscitada: Estará a Raça Humana em Constante Progresso? ”, foi obrigado a
admitir que as melhores razões para acreditar no progresso eram morais e não
científicas.
O testemunho histórico por si só, observou Kant, autorizava a crença em
qualquer uma de três visões da história: eudemonístíca, terrorista e abde- rítica, que
refletiam a crença respectivamente no progresso histórico, no declínio e na estase.
Era dever moral acreditar na visão progressista, porque as outras duas visões
promoviam atitudes indignas de um homem moralmente responsável. A concepção
de alguém acerca do sentido da história dependia, insistia Kant, do tipo de homem
que ele era, do tipo de homem que queria ser e do tipo de humanidade que desejava
ver desenvolvido no futuro. Se escolhesse acreditar que a humanidade estava em
declínio ou continuava essencialmente a mesma, viveria a vida de modo a realizar
a condição de degeneração ou de estase que lhe parecia refletida no registro do
passado. O modo como encarava o passado da raça condicionava e, com o correr
do tempo, realmente determinava a forma que o futuro deveria assumir. Kant
continuou acreditando até o fim da vida que a história do passado não ensinava
coisa alguma acerca da natureza humana que não pudesse ser aprendida com o
estudo da humanidade nas suas encarnações presentes. Porém insistia em dizer que
não nos é permitido acreditar que não houve qualquer progresso na transição do
passado para o presente, para que não sejamos proibidos de acreditar que o futuro
será melhor do que o presente e não esmoreçamos, neste processo, o empenho
humano em concretizar esse futuro melhor.
Este desejo crescente de acreditar no progresso em face do ensino do
ceticismo, segundo o qual não temos fundamentos racionais para acreditar nele, é
responsável pela acolhida entusiasta à filosofia da história perfilhada por Herder
no final do século XVIII. Aqui, o problema da relação entre a razão e a
irracionalidade é colocado num outro plano, ainda que de molde a eliminar a
distinção como critério de avaliação da natureza da relação entre o passado, o
presente e o futuro. Para Herder, todas as coisas existem num presente intemporal;
a história é uma totalidade de individualidades, cada uma das quais é igualmente
valiosa como indivíduo, e todas manifestam na sua especificidade a mesma mescla
de razão e irracionalidade. A insistência de Herder em afirmar que a reflexão sobre
a história não é inspirada por nenhuma “preocupação” de um tipo “previdente ou
retrospectivo” tira dos ombros do historiador o fardo de ter de julgar o passado.
Ao mesmo tempo, porém, remove o fardo de ter de julgar o presente, bem como
toda a responsabilidade de prever o curso que a sociedade humana deve tomar no
futuro. A fé ingênua de Herder no poder da história de cuidar de si própria, de
produzir o que é necessário para o conjunto da humanidade no tempo e no lugar
0 IRRACIONAL E 0 PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO NO ILUMINISMO 167
requeridos, é a antítese perfeita daquele ceticismo, com a sua ironia debili- tante,
que Hume levou à perfeição como sistema de pensamento.
No entanto, o que Herder sentia ser um renascimento da capacidade humana
da fé na adequação essencial da existência individuada, para Kant era o dogmatismo
que ele de fato era. A crença herderiana na adequação do todo, e na adequação das
partes individuais do todo à totalidade, negava por completo a problemática da
existência histórica, tão efetivamente quanto o fez o ceticismo de Hume. A
principal diferença entre o ceticismo de Hume e o dogmatismo de Herder radicava
no fato de que, enquanto o primeiro levava ao desespero em face do sem-sentido
da história, o segundo promovia um otimismo infundado que não era sancionado
nem pela razão nem pela moral Isto fez a reflexão histórica retroceder ao domínio
da sensibilidade estética, tornou-a nada mais que a interminável discussão sobre as
coisas na sua coerência formal, na riqueza e variedade das suas formas e no
incessante vir-a-ser e passar das coisas cada qual a seu próprio tempo. O tom era
diferente, mas o quadro geral daí resultante era o mesmo.
170 TRÓPICOS DO DISCURSO
1.
Durante a sua época de triunfo, os séculos XVII e XVIII, o Homem Selvagem era
visto como “o Nobre Selvagem82” e servia de modelo de tudo o que era admirável e não-
corrompido na natureza humana. Neste ensaio eu gostaria de dizer algo sobre a linhagem
deste Homem Selvagem, de reconstruir a genealogia do mito do Homem Selvagem e indicar
a função da noção de estado selvagem no pensamento pré-moderno. Para fornecer o pano
de fundo necessário, precisarei dividir a história cultural da civilização ocidental em fatias
relativamente grandes, e talvez indigeríveis, dispô-las em grupos de possível significação e
servi-las numa forma tão crua que obscureça completamente a grande variedade de opiniões
concernentes à noção de estado selvagem que será encontrada na literatura antiga e
medieval. O que oferecerei afinal, portanto, parecerá'mais o depósito de artefatos de um
arqueólogo do que a narrativa fluente do historiador; e provavelmente chegaremos ao fim
mais com um senso de estase estrutural que com um sentido do processo evolutivo pelo qual
várias ideias se uniram e se aglutinaram para produzir o Nobre Selvagem do século XVIII.
O que ofereço aqui é pouca coisa mais que eqüivaleriam para o historiador as notas tomadas
por um arqueólogo de campo, mais reflexões sobre uma busca de formas arquetfpi- cas que
um relato das suas variações* combinações e permutações durante o final da Idade Média e
o início da Era Moderna.
A noção de “estado selvagem” (wildness), ou? na sua forma latiniza- da, “selvageria”,
faz parte de um conjunto de instrumentos culturalmente autolegitimadores que inclui, entre
muitas outras, também as ideias de “loucura” e de “heresia”. Estes termos são utilizados
não só para designar uma condição ou estado de ser específico, mas também para confirmar
o valor das suas antíteses dialéticas, “civilização”, “sanidade” e “ortodoxia”, res-
pectivamente. Assim, não se referem tanto a uma coisa, lugar ou condição específicos,
quanto ditam uma atitude particular que comanda uma relação entre uma realidade vivida e
alguma área problemática da existência que não pode ser conciliada facilmente com as
concepções convencionais do normal ou familiar. Por exemplo, o apóstolo Paulo contrapõe
82 Nós da cultura brasileira estamos mais familiarizados com a expressão “Bom Selvagem”, ligada mais pro- ximamente a “le
hon sauvage” francês. A tendência, então, é traduzir Noblc Wild por Bom Selvagem. No entanto, manteve-se aqui e no
capítulo seguinte o Nobre Selvagem pelos motivos que o próprio autor se encarregará de expor no próximo capítulo. (N.
do T.)
AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 171
83 Augustine, The City of God, in IVÍvrfa, trad. Marcus Dods (Edintmrgh, 1934), 2:108.
84 W. B. Gallie, Philosophy and the Historical Understanding (London, 1964), pp. 157-191.
172 TRÓPICOS DO DISCURSO
humanos específicos, ou pelo menos se referem a elas. Não são tratados como designadores
provisórios - isto é, hipóteses destinadas a comandar a investigação ulterior em áreas
específicas da experiência humana - nem como ficções de utilidade heurística limitada para
gerar possíveis maneiras de conceber o mundo humano. São, antes, complexos de símbolos,
cujos referentes se alteram e se modificam em resposta a padrões mutáveis do
comportamento humano que eles pretensamente sustêm.
Assim, por exemplo, como mostrou Michel Foucault no seu estudo do conceito de
loucura durante a Idade da Razão, o termo insanidade impregnou-se de um conteúdo
religioso durante os períodos de devoção religiosa, de um conteúdo político durante os
tempos de integração política intensa e de um conteúdo econômico durante épocas de tensão
ou expansão econômicas85. E, o que é mais importante, Foucault mostrou que, qualquer que
seja a definição especificamente médica de insanidade, o modo como a sociedade trata
aqueles denominados insanos e o lugar e a natureza da sua reclusão e tratamento variam de
acordo com as formas mais gerais de práxis social na esfera pública. Isto é particularmente
verdadeiro com relação às formas de insanidade que a ciência médica é incapaz de analisar
adequadamente. Acode-nos à mente o caso da esquizofrenia em nossa época. R. D. Laing
afirmou que, embora passe por termo médico, na realidade o conceito de esquizofrenia é
utilizado de um modo político; a despeito das ambiguidades da ciência médica em torno da
natureza e causas da esquizofrenia, a ideia é também utilizada para privar dos seus direitos
civis e humanos, nos tribunais de justiça, aquelas pessoas que presumidamente sofrem dessa
doença86.
Tudo isto sinaliza o fato de que as sociedades sentem a necessidade de preencher
áreas da consciência ainda não ocupadas pelo conhecimento científico, com designadores
conceituais que afirmem seus próprios valores e normas planejados existencialmente.
Nenhuma dotação cultural é totalmente adequada à solução de todos os problemas com que
ela poderia deparar; ainda assim, a vitalidade de qualquer cultura depende do seu poder de
convencer a maioria dos seus partidários de que é a única maneira possível de satisfazer-
lhes as necessidades e realizar-lhes as aspirações. Uma dada cultura só é vigorosa na medida
do seu poder de persuadir o seu membro menos dedicado de que as suas ficções são
verdades. Quando os mitos são revelados como as ficções que são, então, no dizer de Hegel,
tornam-se “uma forma de vida obsoleta”. Primeiro a natureza, depois Deus e por último o
próprio homem foram submetidos ao escrutínio desmitologizador da ciência. A
consequência foi que aqueles conceitos que numa época anterior tinham a função de
componentes de mitos culturais de sustentação e de partes do jogo de identificação
civilizacional por definição negativa, passaram, um após outro, para a categoria do fictício;
foram identificados como manifestações de neurose cultural e não raro relegados ao status
de meros preconceitos, cujas consequência s foram por vezes tão destrutivas quanto benéfi-
cas. O desmascaramento de mitos como o do Homem Selvagem nem sempre foram seguidos
do banimento dos seus conceitos constituintes, mas antes da sua interiorização. Pois a
dissolução, graças ao conhecimento científico, da ignorância que levou os primeiros homens
a situar os seus homens selvagens em épocas e lugares específicos não atinge
necessariamente os níveis de ansiedade psíquica em que essas imagens têm a sua origem.
Em parte, a desmitologização gradativa de conceitos como “estado selvagem”,
“selvageria” e “barbárie” tem sido decorrência da extensão do conhecimento àquelas partes
do mundo que, embora relativamente conhecidas (mas não realmente conhecidas), serviram
originariamente de estágios físicos em que a imaginação “civilizada” poderia projetar as
suas fantasias e ansiedades. Dos tempos bíblicos aos dias de hoje, a noção de Homem Selva-
gem esteve associada à ideia de região selvagem - o deserto, a floresta, a selva e as
85 Michel Foucault, Madness und Civilization: A Ilislory of Insanily in lhe Age of Reason, trad. Richard Howard (New York,
1965).
86 R. D. Laing, The Politics of Experience (New York, 1967), cap. 5.
AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 173
montanhas aquelas partes do mundo físico que ainda não haviam sido domesticadas ou
demarcadas para domesticação de algum modo significativo. A proporção que uma após
outra dessas regiões selvagens foi sendo dominada, a ideia do Homem Selvagem foi
progressivamente deses- pacializada. Esta desespacialização acompanhou-se de um
processo compensatório de interiorização psíquica. E a consequência foi que a moderna
antropologia cultural conceituou a ideia de estado selvagem como o conteúdo reprimido
tanto da humanidade civilizada quanto da primitiva. De tal sorte que, em vez do pensamento
relativamente reconfortante de que o Homem Selvagem pode existir fora de lá e pode ser
contido por algum tipo de ação física, admite-se hoje (salvo aqueles ideólogos
contemporâneos de ambos os lados da Cortina de Ferro que julgam poder salvar a
“civilização” se apenas conseguirem destruir bastantes seres humanos “selvagens”) que o
Homem Selvagem está oculto no interior de cada homem, clama por sua libertação dentro
de todos nós e só será negado ao preço da própria vida.
O modelo freudiano da psique, que seria um ego que ocupa uma fortaleza assediada
por um duplo inimigo, o superego e o id, os quais representam as pressões dos mecanismos
dotados de forças motrizes basicamente agressivas, é talvez o exemplo pseudocientífico
mais conhecido deste processo de remitificação87. Mas não é o único. As teorias de C. G.
Jung e de muitos pós-freudianos, inclusive Melanie Klein e seu discípulo americano
Norman O. Brown, representam o mesmo processo, tal como o fazem outros críticos
contemporâneos da cultura que, como Lévi-Strauss, lamentam o triunfo da tecnologia sobre
o homem civilizado e sonham com a libertação da criança perdida ou do Nobre Selvagem
dentro de nós.
Chamo essa interiorização da região selvagem e de seu ocupante tradicional, o
Homem Selvagem, de remitificação, porque ela tem exatamente a mesma função que o mito
do Homem Selvagem teve em culturas antigas, ou seja, a de uma projeção dos desejos e
ansiedades reprimidos, de um exemplo de um modo do pensamento em que foi eliminada a
distinção entre o mundo físico e o mental e em que ficções (como o estado selvagem, a
barbárie, a selvageria) são tratadas, não como instrumentos conceituais para designar uma
área de investigação ou para construir um catálogo das possibilidades humanas, nem como
símbolos que representam uma relação entre duas áreas da experiência, mas como signos
que designam a exisiência de coisas ou entidades cujos atributos encerram justamente
aquelas qualidades que a imaginação, seja lá por que razão, insiste em dizer que encerram.
O que estou sugerindo é que, na história do pensamento ocidental, a ideia do Homem
Selvagem configura uma transição do mito para a ficção e desta para o mito novamente,
assumindo a forma moderna do mito um aspecto pseudocientífico nas várias teorias da
psique que -atualmente solicitam à nossa atenção. Estender-me-ei sobre este processo de
remitificação no final deste ensaio. Por ora, quero explicar, em prelúdio à minha
caracterização da sua história na Idade Média, o que entendo pelo processo de
desmistificação original do mito do Homem Selvagem, sua tradução numa ficção nos tem-
pos modernos, e sua utilização como tal.
A caracterização fictícia, ou provisória, de diferenças radicais entre o que é apenas
uma humanidade superficialmente diversa parece ser estranha ao que Paul Tillich chamou
convenientemente de civilizações “teonômi- cas”88. Sem a secularização ou humanização
da própria cultura, sem um profundo sentimento de que, seja qual for a concepção que
tenhamos do mundo, é a mente humana que atua no processo de dotação de sentido, e não
algum poder ou Divindade transcendental que confere sentido em lugar de nós, a distinção
87 Tenho em mente aqui especificamente o famoso mapa da psique traçado por Freud em The Ego und thc Id, trad. Joan
Riviere (London, 1950), caps. 2 e 3. Para uma exposição da revisão deste mapa, ver J. A. C. Brown, Freud and the Pasl-
Freudians (London, 1963), caps. 5 e 6. Ver também Claude Lévi-Strauss, The Savage Mind (Chicago, 1966), cap. 9; e Norman
O. Brown, Love's Bndy (New York, 1966), cap. 2.
88 Paul Tillich, The Protesmnt Era, irad, James Lulher Adams (Chicago, 1948), cap. 4.
174 TRÓPICOS DO DISCURSO
89 Arlhur O. Lovejoy, The Gteu! Chain of Being: A Study of the History of an Idea (Cambridge, Mass., 1936), cap. 9.
AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 175
Há, pois, uma diferença significativa entre a forma pela qual os pensadores gregos e
romanos imaginam a humanidade total e a forma como a imaginam os pensadores hebreus
e cristãos. Para dizê-lo em termos mais simples: na primeira, vivencia-se a humanidade
como se fosse diversificada de fato, embora unificável em princípio; na segunda, é
vivenciada como se fosse unificável em princípio, conquanto radicalmente dividida de fato.
Isto significa que diferenças percebidas entre homens apresentavam menos significado para
gregos e romanos que para hebreus e cristãos. Para os primeiros, a condição de diferença
era física e cultural; para os segundos, era moral e metafísica. Por conseguinte, as ideias de
diferença nas duas tradições culturais definem os dois arquétipos que convergem na
civilização ocidental medieval para formar o mito do Homem Selvagem. Antecipando o
meu julgamento final sobre o assunto, seja-me permitido dizer que as duas tradições
refletem em geral as preocupações emocionais com padrões culturais que podem ser
convenientemente chamados - segundo Ruth Benedict — de “orientados pela vergonha” e
“orientados pela culpa”, respectivamente 90. A consequência é que a imagem do Homem
Selvagem transmitida pela Idade Média ao começo da Era Moderna tende a transformá-lo
na encarnação do “desejo”, de um lado, e da “ansiedade”, de outro.
Estes representam os aspectos gerais (e, suponho, predominantes) do mito do
Homem Selvagem antes de sua identificação como mito e de sua tradução em ficção no
início da Era Moderna. Certamente, assim como há uma linhagem de “culpa” no paganismo
clássico, há uma linhagem de “vergonha” na cultura judaico-cristã. E mais adiante falarei
da ideia do “bárbaro” como um conceito em que essas duas linhagens convergem numa
imagem única em tempos de tensão cultural e declínio, como na época heíênica tardia e no
final da época romana. Por ora, entretanto, estou apenas tentando delinear as razões que
inspiraram as diferentes concepções de estado selva- ..gem que Richard Bernheimer, no
seu excelente livro WildMen in the Middle Ages:y, descobriu na fábula, no folclore e na arte
medievais. E nestas bases que radicam os diferentes arquétipos do estado selvagem com
que deparamos na cultura ocidental medieval. E a dissolução destas bases através do
moderno estudo científico e humanista que nos permite distinguir entre o estado selvagem
que é mito e o que é ficção, entre o que é estado ontológico e o que é estágio histórico do
desenvolvimento humano, entre o que é condição moral e o que é categoria analítica da
antropologia cultural e, por fim, reconhecer na noção de Homem Selvagem um instrumento
de projeção cultural que é tão anômalo na concepção quanto vicioso na aplicação.
90 Ruth Benedict, The Chrysanthemum and the Sword: Patterns of Japanese Culture (Boston, 1946).
AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 176
2.
91 Erich Auerbach, Mimesis: The Representation of Reality in Western Literatura, trad. Willard R. Trask (Princeton, 1953).
92 E. R. Dodds, The Greekx and the Irrational (Berkeley, 1951), caps. 2 e 5; Johannes Pedersen, Israel: Its Life and Ctdture
(London, 1954), 1:182-2 f 2.
AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 177
93 Outra palavra, que é traduzida em inglês por void (vazio) (nfhüwgâh), é utilizada em justaposição a waste (desolado)
(bâlug) em Nahum 2:10, para caracterizar uma cidade devastada, como quando o profeta fala de Nínive: “Ela está
abandonada, vazia e desolada”.
como “estado selvagem” ou “região selvagem” 94.
Esta fusão
178 de uma condição física com uma DO
TRÓPICOS condição
DISCURSO moral é uma das fontes de poder
dos Profetas. Ela repousa no âmago do terror transmitido por Jó no seu lamento quando,
caracterizando a sua aflição, ele se refere à dissolução que Deus opera em sua “substância”
e diz (em Jó 30:26-31):
Esperava a felicidade e veio a desgraça; esperava a luz e vieram as trevas. Minhas entranhas se abrasatn sem
nenhum descanso, e dias de aflição vêm ao meu encontro. Caminho no luto, sem sol; na congregação levanto-me a
pedir socorro. Tornei-me irmão dos chacais e companheiro dos avestruzes. Minha pele se enegrece e cai, e meus ossos
são consumidos pela febre. Minha citara só dá acordes lúgubres, e minha flauta sons queixosos.
No seu sofrimento, Jó degradou-se à condição que antes (Jó 30:3) atribuíra aos seus
inimigos (“eles eram solitários; fugiam para o deserto desolado e devastado”). O deserto é
o caos que jaz no âmago das trevas, um vazio ao qual a alma é enviada na sua degradação,
um lugar estéril do qual poucos retornam, ou ninguém.
Certamente, a retirada do profeta para o campo é um tema comum no Antigo
Testamento. Vez por outra, o profeta é retratado como alguém que veio do campo, como
Amós, ou ali se recolheu para não colaborar com um Israel pervertido, como Jeremias. Mas
o campo é uma coisa, o deserto é outra bem diversa. O campo ainda é o lugar da bem-
aventurança; o deserto fica no lado oposto do ser, é o lugar onde o poder destruidor de Deus
se manifesta de maneira mais dramática. É por isso que o deserto pode aparecer- no próprio
coração de um ser humano, sob a forma de insanidade, pecado ou mal - qualquer condição
que reflita o afastamento do homem de Deus.
As condições que designaríamos pelos termos estado selvagem, deserto, insanidade
ou selvageria eram todas concebidas pelos antigos hebreus como aspectos da mesma
condição maligna. A relação entre a condição de bem-aventurança e a de selvageria é, pois,
perfeitamente simétrica: os bem- aventurados prosperam, e sua bem-aventurança se reflete
na sua riqueza e na sua saúde, no número de filhos, na sua longevidade e na sua capacidade
de fazer as coisas crescerem. Os malditos secam e erram a esmo pela terra — terríveis, feios,
violentos; e sua terribilidade, feiúra e violência são prova da sua maldição.
Os homens selvagens arquetípicos do Antigo Testamento são os grandes rebeldes
contra o Senhor, os que desafiaram a Deus, os antiprofetas, os gigantes e os nômades -
homens como Caim, Cam e Ismael, os verdadeiros tipos de “heróis” que, na mitologia e na
lenda gregas, poderiam ter ocupado um lugar de honra ao lado de Prometeu, Ulisses e Edipo.
Como os anjos que se rebelaram contra o Senhor e foram arremessados do céu, estes homens
rebeldes contra o Senhor continuam - compul si vãmente, diríamos nós - a cometer o pecado
de Adão. E, mesmo que às vezes pequem por ignorância, nem por isso seu castigo é menos
severo. São descritos como homens selvagens que habitam uma terra selvagem, sobretudo
como caçadores, semeadores de confusão, malditos e geradores de raças que vivem na
ignorância irre- missível ou na violação completa das leis estabelecidas por Deus para o
governo do cosmo. Sua descendência são os filhos de Babel, de Sodoma e Gomorra, uma
progênie conhecida por sua conspurcação. São homens que desceram abaixo da própria
condição de animalidade; o rosto de todos os homens se volta contra eles, e em geral (Caim
é uma notável exceção) podem ser assassinados impunemente.
Ora, a forma que o estado selvagem desta raça degradada assume é descrita em função
da corrupção da espécie. Uma vez que na Criação Deus formou o mundo e colocou nele as
várias espécies, cada uma perfeita no seu tipo, a ordem natural ideal seria, pois, caracterizada
por uma perfeita pureza da espécie. Em contrapartida, a desordem natural tem sua forma
extrema na corrupção da espécie, na mistura dos tipos (myn) - na união daquilo que Deus
em sua sabedoria tinha decretado, no princípio, que deveria permanecer separado. A mistura
das espécies é, portanto, muito pior do que qualquer luta, mesmo mortal, entre dois ou mais
homens. A luta é natural; a mistura é inatural e destrói uma condição de isolamento da
espécie, que é tanto uma necessidade moral quanto natural. Misturar as espécies é tabu.
Desse modo, os homens que haviam copulado com animais deviam ser exilados da comu-
nidade, exatamente como os animais de diferentes espécies que se haviam associado
sexualmente deviam ser abatidos (Lev. 18:23-30). O horror da conspurcação da espécie é
levado a tais extremos no Código Deuteronômico que lá se proíbe não apenas jungir animais
diferentes ao mesmo arado (Deut. 22:10), mas até semear tipos diversos de semente no
mesmo campo (Lev. 19:19)95.
Um exemplo de uma humanidade que se tornou selvagem pela mistura das espécies
é dado no livro do Gênesis, na passagem famosa, mas ambígua, que registra os efeitos do
acasalamento dos “filhos de Deus” com as “filhas dos homens” (Gên. 6). Este exemplo da
mistura das espécies gerou uma raça de homens dotados de um atributo de selvagem quase
universalmente reconhecido: o gigantismo. A natureza desses gigantes é ainda menos clara
do que a sua linhagem. Os filólogos bíblicos associam a palavra que designa gigante (nephiyl
ou nephíl), que conota as ideias de provocador e tirano, com a raiz do verbo nâphal, que
significa cair, ser arremessado, mas que tem associações secundárias com as noções de
morrer, divisão, imperfeição, ser julgado, perecer, corromper e ser assassinado. É sugerido
que o aparecimento desses gigantes constitui a causa imediata da decisão de Deus de destruir
o mundo no Dilúvio, com exceção, obviamente, de Noé, da sua família e de um casal de
cada espécie animal.
Depois do Dilúvio, porém, o mal e (portanto) o estado selvagem retornaram ao
mundo, sobretudo nos descendentes do filho caçula de Noé, Cam, que foi amaldiçoado por
revelar a nudez do pai. Os genealogistas bíblicos mais recentes determinaram que de Cam
descendeu aquela raça de “homens selvagens” que aliava a rebeldia de Caim à estatura dos
primeiros gigantes. E provável que também tenham sido negros, já que, através de fusão
etimológica, os hebreus fundiam as raízes de palavra utilizadas para indicar a cor negra, a
terra do Egito (isto é, de servidão), a terra de Canaã (isto é, de idolatria paga), a condição
da maldição (e, de maneira irônica, aparentemente a noção de fertilidade), com o próprio
nome de Cam e as suas varia
Isso queria dizer que, embora em princípio qualquer um pudesse ser admitido na-Igreja, o
membro potencial da Igreja tinha de estar pronto a despir-se do homem antigo e revestir o
novo. E, conquanto se admitisse que a queda da graça pudesse ser perdoada, o pecador
decaído que buscasse readmissão na comunidade dos fiéis tinha de exibir prova de sua
intenção de aceitar no futuro a autoridade e a disciplina da Igreja e não tentar introduzir na
comunidade doutrinas e práticas estranhas, importadas do estado de pecado em que, no seu
orgulho, havia caído. Tudo isto esteve envolvido nas lutas contra as heresias de Donato, de
um lado, e de Pelágio, de outro, durante os séculos IV e V 100.
Todavia, os pensadores cristãos insistiam em que um homem poderia pecar e não cair
numa condição da qual não havia absolutamente qualquer redenção. Depois da Encarnação,
todos os homens eram em princípio passíveis de salvação, e isto significava que, qualquer
que fosse o estado de de- generação física em que um homem caísse, a alma permanecia
num estado de graça potencial. O pecado, insiste Santo Agostinho, é menos uma condição
positiva do que uma negação de uma bondade original, uma condição de afastamento da
comunhão com Deus, que é, a um só tempo, a causa e a consequência do orgulho101. E pode
ou não vir acompanhado de sinais de degradação física. Já que somente Deus conhece com
exatidão quem pertence e quem não pertence à sua cidade, resta aos fiéis trabalhar para a
inclusão de todos na comunidade da Igreja. Isto significava que mesmo os homens mais
repugnantes - bárbaros, gentios, pagãos e hereges - tinham de ser considerados objetos de
proselitismo cristão, ser vistos como possíveis convertidos e não como inimigos ou fontes
de corrupção, a serem exilados, isolados e destruídos. Em última análise, diz Santo
Agostinho, mesmo os homens mais monstruosos ainda eram homens, e mesmo aquelas raças
de homens selvagens descritas por viajantes antigos e contemporâneos tinham de ser consi-
deradas potencialmente capazes de partilhar da graça que concedia a qualidade de membro
da Cidade de Deus.
Comentando os diferentes tipos de raças monstruosas relatados pelos antigos
viajantes - raças de homens com um olho no meio da testa, pés voltados para trás, de duplo
sexo, homens sem boca, pigmeus, homens sem cabeça com olhos nos ombros, e homens
com aspecto de cão que ladram em vez de falar (todos os quais, incidentalmente, figuram
na iconografia medieval como representações dos homens selvagens) - Santo Agostinho
insiste em que a estes não se deveria negar a posse de uma humanidade essencial. Todos
devem ser concebidos originários do “protoplasta único”, diz ele; e argumenta que “não nos
deve parecer absurdo que, havendo nas raças individuais partos monstruosos, assim também
na raça total haja raças monstruosas”2'. Certamente, ele acredita que tais raças monstruosas
devem ter descendido de Cam e de Jafé, filhos de Noé, o primeiro considerado pelos teó-
logos medievais o Herege arquetípico, e o segundo o Gentio arquetípico, em contraposição
a Sem, que se acreditava ser o Hebreu arquetípico, o ancestral de Abraão e do próprio Cristo.
Sua descendência do Pecador arquetípico — em contraste com a descendência das raças
gentias do Herege arquetípico - explica a incapacidade destas raças monstruosas de falar
(visto que a confusão da linguagem é considerada reflexo da confusão de pensamento) e a
sua devoção a deuses monstruosos. Não obstante isso, insiste Santo Agostinho, elas são
potencialmente passíveis de salvação, tanto quanto qualquer criança cristã que possa ter
nascido com quatro dedos nas mãos em vez de cinco. A diferença entre estes monstros e a
humanidade cristã normal ou a variante (paga) normal é mais de grau que de tipo, é mais de
mera aparência física que de substância moral manifestada na aparência física.
O acréscimo excessivo de conceitos gregos, e especialmente neoplatô- nicos, a ideias
judaicas no cristianismo tendeu a estimular mais a distinção que a fusão entre essências e
100 Ver Charles Norris Cochrane, Chri.uianity anâ Classical Culture; A Study ofThou^ht and Actionfrom Augustus to Augustine
(London, 1957), pp. 206, 209, 452.
101 Augustine, Of True Religion, vi, 21 -xv, 29, em Augustine: Earlier Writings, trad. J. H. S. Burleigh (London, 1953), pp.
235-239.
184 TRÓPICOS DO DISCURSO
102 ‘The Sutnma Theologica”, ques. 6, arls. 2-4, in Introducüon to St. Thomux Aquinas, ed. Anlon C. Pcgis (New York, 1948),
pp. 4S3-486.
103 Dante, “O Inferno”, em A Divina Comédia, canto V.
AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 185
A distinção, em ambos os casos, estava ligada à diferença entre os homens que viviam
segundo alguma lei (mesmo uma lei falsa) e os que viviam sob nenhuma lei. Embora
Aristóteles, numa famosa passagem da Política, tenha caracterizado os bárbaros como
“proscritos naturais”, como seres “sem tribo, sem lei e sem coração”, e tenha concordado
com Homero em que “é justo que os gregos devam governar os bárbaros” 104, a maioria dos
escritores clássicos reconheciam que, se tribos bárbaras honravam pelo menos a instituição
da família, deviam viver segundo algum tipo de lei e, portanto, eram capazes de algum tipo
de ordem. Este reconhecimento é provavelmente um meio de indicar uma percepção do fato
incômodo de que as tribos bárbaras eram capazes de se organizar, pelo menos
temporariamente, em grupos suficientemente grandes para constituir uma ameaça à própria
“civilização”. Os pensadores medievais, a exemplo dos romanos antigos, concebiam que os
bárbaros e os homens selvagens eram escravizados à natureza; eram, como os animais,
escravos do desejo e incapazes de dominar as suas paixões; eram volúveis, inconstantes,
confusos, caóticos; eram incapazes de vida sedentária, de autodisciplina e de trabalho
sistemático; eram passionais, perplexos e hostis à humanidade “normal” - tudo o que é
sugerido nas palavras latinas que designam “selvagem” e “selvageria”105. Embora os
bárbaros e os homens selvagens supostamente compartilhassem estas qualidades, uma
importante diferença continuava sem solução entre eles: o Homem Selvagem sempre viveu
sozinho, ou, quando muito, com uma parceira. Segundo o mito que se desenvolve na Idade
Média, o Homem Selvagem é incapaz de assumir as responsabilidades de pai, e, se a sua
parceira tem filhos, ela os abandona no local do nascimento para que sobrevivam ou
pereçam106.
Isto significava que o Homem Selvagem e o bárbaro representavam diferentes tipos
de ameaça aos homens “normais”. Enquanto o bárbaro constituía uma ameaça à sociedade
em geral - à civilização, à pureza da raça, à excelência moral, tudo aquilo de que o orgulho
do grupo fechado se julgava investido o Homem Selvagem representava uma ameaça ao
indivíduo, como nêmese e como um possível destino, como inimigo e como representante
de uma condição em que um homem individual, tendo decaído da graça ou tendo sido levado
da sua cidade, poderia degenerar. Por conseguinte, a relação temporal e espacial do Homem
Selvagem com a humanidade normal difere da do bárbaro com o homem civilizado.
Concebe-se convencionalmente que o lar do bárbaro se localiza bem longe no espaço, e que
o tempo que leva para chegar às fronteiras da civilização é repleto de possibilidades
apocalípticas para o conjunto da humanidade civilizada. Quando surgem as hordas bárbaras,
os alicerces do mundo parecem ruir e os profetas anunciam a morte da era antiga e o advento
da nova107.
Em contrapartida, representa-se convencionalmente o Homem Selvagem como
sempre presente, habitando os limites imediatos da comunidade. Apenas está longe da vista,
além do horizonte, na floresta próxima, no deserto, nas montanhas ou nas colinas. Dorme
em grotas, debaixo de grandes árvores, ou nas cavernas de animais selvagens, para onde
carrega à força crianças ou mulheres indefesas para ali fazer-lhes coisas indizíveis. E é tam-
bém matreiro: rouba as ovelhas do redil, as galinhas do galinheiro, prega partidas ao pastor
e embriaga o guarda-caça. No mito medieval principalmente, o Homem Selvagem é
concebido coberto de pêlos, negro e deformado. Pode ser um gigante ou um anão, ou
simplesmente alguém horrivelmente desfigurado, como Charles Laughton na versão
americana do filme O Corcunda de Notre-Dame. Mas, qualquer que seja o modo de encará-
lo, o Homem Selvagem quase sempre representa a imagem do homem liberto do controle
social, o homem em quem os impulsos libidinosos lograram predominância total.
Na Idade Média cristã, então, o Homem Selvagem é a destilação das ansiedades
específicas subjacentes às três garantias supostamente fornecidas pelas instituições
especificamente cristãs da vida civilizada: as garantias do sexo (na forma organizada pela
instituição da família), do sustento (proporcionado pelas instituições políticas, sociais e
econômicas) e da salvação (propiciada pela Igreja). O Homem Selvagem não usufrui
nenhuma das vantagens do sexo civilizado, da existência social regularizada ou da graça
institucionalizada. No entanto, é preciso ressaltar, ele tampouco sofre — na imaginação do
homem medieval - qualquer das restrições impostas pelo fato de pertencer a essas
instituições. É o desejo personificado, dotado da força, sagacidade e astúcia que dá plena
expressão a toda a sua lascívia. Analogamente, sua vida é instável. Ele é glutão, come à
saciedade num dia e passa fome no outro: é lascivo e promíscuo, sem qualquer consciência
de pecado ou perversão (e, portanto, obviamente privado dos prazeres dos vícios mais
requintados). E seu poder e agilidade físicos aumentam na razão direta da diminuição da
sua consciência.
Na maioria dos relatos sobre o Homem Selvagem na Idade Média-, ele é forte como
Hércules, rápido como o vento, astuto como o lobo e trapaceiro como a raposa. Em algumas
histórias, esta astúcia se transforma numa espécie de sabedoria natural que o torna um
mágico ou pelo menos um mestre do disfarce108. Isto valia particularmente para a mulher
selvagem da lenda medieval: supunha-se que fosse incomparavelmente feia, coberta de
pêlos à exceção dos seios volumosos e pendentes, que lançava sobre os ombros quando
corria. Esta mulher selvagem, contudo, era supostamente obcecada pelo desejo de homens
normais. A fim de seduzir o cavaleiro ou o pastor incauto, poderia aparecer na forma da
mais atraente dás mulheres, revelando a sua feiúra permanente apenas durante o ato
sexual109.
Evidentemente, aqui, a ideia da mulher selvagem sedutora, tal como o Homem
Selvagem mágico, principia a fundir-se com as noções medievais de demônio, diabo e
feiticeira. Uma vez mais, porém, o pensamento formal distingue entre o Homem Selvagem
e o demônio. Acreditava-se geralmente que o Homem Selvagem (ou a mulher) fosse um
exemplo de regressão humana ao estado animal; o demônio, o diabo e a feiticeira são
espíritos malignos ou seres humanos dotados de poderes espirituais malignos, servos de
Satã, cujas capacidades para o mal jamais poderiam ser igualadas pelo Homem Selvagem.
Como o Homem Selvagem não tinha faculdades racionais, não poderia realizar de maneira
consciente uma ação maléfica. Portanto, seria isento de todo sentimento de culpa ou
consciência. O estado selvagem é o que um ser humano normal assume em consequência
da perda da sua humanidade, e não uma força positiva que se possuía, como o era o poder
do diabo.
A incapacidade do pensamento oficial de conceber uma humanidade selvagem por
certo não destruía o poder que tal concepção exercia sobre a imaginação popular. Mas é
possível que o tenha moderado um pouco. Pois se, durante a Idade Média, o Homem
Selvagem era objeto de náusea e aversão, de medo e ansiedade religiosa, a quintessência da
possível degradação humana, em geral não era tido como exemplo de corrupção espiritual.
Esta posição era reservada a Satã e aos anjos decaídos. Apesar de tudo, o Homem Selvagem
era alguém que perdera a razão e que, na sua loucura, pecava ininterruptamente contra Deus.
Diferentemente dos anjos rebeldes, o Homem Selvagem não sabia que vivia em estado de
pecado, nem mesmo que pecava ou nem mesmo o que poderia ser um “pecado”. Isto quer
dizer que ele possuía, juntamente com a degradação, um tipo de inocência - não a
neutralidade moral da fera, certamente, mas antes uma posição “além do bem e do mal”. Ele
pecava, mas pecava por ignorância e não propositadamente. Isto conferia às expressões que
dava à luxúria, violência, perversão e logro um tipo de liberdade que poderia ser invejada
pelos homens normais, homens presos na rede da repressão e da sublimação que constituía
a base da vida comum. Não admira, pois, que, nos séculos XIV e XV, quando os laços
sociais da cultura medieval principiaram a afrouxar-se, o Homem Selvagem tenha passado
pouco a pouco de objeto de abominação e medo (e de inveja apenas velada) a objeto de
inveja declarada e até de admiração. Não surpreende que, numa época de revolução cultural
geral, o antítipo popular da humanidade oficialmente definida como “normal”, o Homem
Selvagem, se transformasse no ideal ou modelo de uma humanidade livre, os seus supostos
atributos se tornassem a essência de uma humanidade perdida e a sua imagem idealizada
fosse usada para justificar a revolta contra a própria civilização.
Esta redenção da imagem do Homem Selvagem começou simultaneamente com a
recuperação da cultura clássica, com o renascimento dos valores humanistas e a
improvisação de uma nova concepção da natureza, de inspiração mais clássica que judaico-
cristã. As ideias clássicas sobre as lendas da natureza e da natureza paga sobreviveram por
toda a Idade Média. Mas, até o século XII, haviam vivido um tipo de existência secreta entre
os intelectuais, de um lado, e o campesinato incompletamente cristianizado, de outro.
Segundo Bernheimer, durante o século XII os homens selvagens começaram a aparecer no
folclore como protetores dos animais e das florestas, e como mestres de uma sabedoria que
se mostrava mais útil ao camponês que a “mágica” do padre cristão3'1. Esta concepção do
Homem Selvagem talvez reflita uma visão mais bucólica da natureza, ela própria, em parte,
um reflexo de uma nova experiência campesina. Por volta do século XII, novas ferramentas
e técnicas agrícolas estavam trazendo vastas áreas da Europa ao cultivo, à proporção que as
florestas eram desbravadas e derrubadas, e o sertão transformado em pastos de carneiros.
Ou talvez essa concepção reflita um tipo de resistência campesina pagã aos missionários
cristãos, que estavam reassumindo a tarefa da Europa cristianizadora, iniciada em tempos
anteriores mas interrompida pelas invasões viquingues, pelas investidas muçulmanas e pelo
estado de guerra feudal. Qualquer que seja a razão, o surgimento do Homem Selvagem
benéfico, o protetor e mentor dos camponeses, é acompanhado de sua identificação com os
sátiros, os faunos, as ninfas e os silenos dos tempos antigos. E esta identificação
complementa, num nível popular, a reivindicação de natureza pelos intelectuais através do
renascimento do pensamento clássico, e principalmente do aristotelismo, que ocorria na
mesma época.
5.
humana. Em parte, isto acontecia porque a maioria dos gregos perfilhava a noção de uma
substância simples, universal, da qual todas as coisas eram feitas, ou a noção de um princípio
universal do qual todas as coisas eram manifestações110. O homem “normal” era apenas
alguém que tivera a sorte de nascer numa cidade-estado; o homem “normal”, diz Aristóteles,
é zoon politikon, um animal político. Somente os homens que haviam alcançado o estado
político poderiam esperar realizar uma humanidade plena. Nem todos dentro da cidade
poderiam esperar tornar-se plenamente humanos: na sua Ética, Aristóteles negava
especificamente às mulheres, aos escravos e aos comerciantes tal possibilidade 111. Mas
nenhuma pessoa de fora da cidade tinha a mínima chance de realizar plenamente a sua
humanidade: as condições de uma vida não-regida pela lei o impediam. Quem quer que
vivesse fora do mundo humano poderia tornar-se um objeto de curiosidade ou um tema de
estudo, mas jamais poderia servir de modelo daquilo que os homens devem esforçar-se para
ser. Deste modo, o que um grego teria entendido pela nossa noção de Homem Selvagem
poderia parecer quase uma contradição de termos quanto, posteriormente, para os teólogos
cristãos.
De fato, os gregos não tinham necessidade do conceito que via no Homem Selvagem
uma imagem projetiva de sua vida de fantasia. Sua imaginação povoava o universo inteiro
de grande número de misturas de espécies, produtos da união sexual de deuses com homens,
de homens com animais, de animais com deuses e assim por diante 112. Se, entre os antigos
gregos, a conspurcação da espécie era um temor tão intenso a seu próprio modo quanto
qualquer coisa que os hebreus sentiam acerca disto, a imaginação grega ainda tinha um certo
prazer na contemplação das possíveis consequência s dessa conspurcação. Assim, em
contraposição às vidas dos deuses e heróis, que só diferiam dos homens comuns pela
magnitude de seu poder ou talento, e como que contrabalançando-as, havia criaturas como
os sátiros, os faunos, as ninfas e os silenos; monstros benéficos como os centauros, e ma-
lignos como o Minotauro, nascido da união de uma mulher, Pasífae, com um touro. Estas
criaturas desempenhavam para a imaginação clássica quase o mesmo papel que o Homem
Selvagem representava para o cristão medieval. Eram, sobretudo, representações imagéticas
daqueles impulsos libidinosos que, por razões sociais mais que puramente religiosas, não
poderiam ser expressos nem liberados diretamente. Algumas destas criaturas - faunos,
sátiros e silenos - buscam unicamente o prazer: o objeto do seu desejo é o prazer físico em
si, e são pouco mais que genitálias ambulantes. Sensuais, lascivas, promíscuas, estas
criaturas só podem ser caracterizadas adequadamente se recorrermos ao vernáculo. Com
dotes naturais iguais aos dos carneiros, touros e garanhões, ou possuindo os seios e nádegas
excessivos do eterno feminino, ou, como no caso do Hermafrodita, possuindo ambos os
conjuntos de atributos sexuais, viviam quase que apenas para o intercurso sexual - sem
consciência, autoconsciência ou remorso.
Caracteristicamente, estas criaturas eróticas não habitam o ermo nem o deserto; vívem
em geral nos prados ou nos lagos das montanhas, relativamente mais pacíficos. São tão
indisciplinadas quanto os malditos da doutrina hebraica, mas buscam algum lugar onde
possam satisfazer suas capacidades eróticas (geralmente invejáveis). Os monstros nascidos
da união de um ser humano com um animal são os que habitam os lugares desertos, ou,
como no caso do Minotauro, ocupam um ambiente artificial, o Labirinto, que, como já foi
sugerido, é a representação arquetípica de uma cidade selvagem ou agreste113. Estes
monstros representam o lado escuro da imaginação clássica paga, o tanatótico, em oposição
ao erótico, fantasias do homem pagão. Aqui, o estado selvagem, no seu aspecto maligno,
110 Ver Harold Cherniss, “The Chara:terisücs and Effects of Pre-Socratic Philosophy”, JHI12 (1951): 319- 345; e R. G.
Collingwood, The Idea of Niiiure (Oxford, 1945), pp. 29 e s.
111 Ver Aristóteles, Ética u Nicômuco, livro X, cap. 8; Política, livro 1.
112 Bernheimer relaciona os tipos de sub-homem encontrados na literatura clássica e no folclore. Wild Men, pp. 86-101.
113 Ver Northrop Frye, “Archetypal Criticism: Theory of Myths”, em Anutomy of Criticism: Four Essays (Princeton, 1957),
e.sp. pp. 190 e s. Para uma história da imagem do Labirinto na arte e na literatura mo* dcrnas, ver Gustav René Hocke,
Die Welt ais Ltthyrinth: Mcinier und Munie in der europüischai Kunst (Hamburg, 1957).
AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 189
114 Para um exemplo da ambivalência política do arcaísmo, ver Sir Ronald Syme, The Roman Revolution (Oxford, 1939), pp.
459-475, que analisa “A Organização da Opinião” seguindo o triunfo de Augusto sobre Marco Antônio e a contribuição
dada a ela por Virgílio e Tito Lívio.
190 TRÓPICOS DO DISCURSO
115 Para uma análise das imagens divergentes do mundo natura! tal como se manifestaram no início da arte moderna, ver
Kenneth M. Clark, Lundxcupe intoArt (London, 1949), caps. 1-4.
116 Sobre a imagem do Homem Selvagem em Spenser e Sachs, ver Bernheimer, Wild Men, pp. 113 e s.
117 Comparar Bernheimer, Wild Men, pp. 144 e s., e Johann Huizinga, The of the Middle Ages: A
Study of the Forms of Life, Thought, and An in France and the Netherlands in the XlVih and XVth Centuries, trad. F. Hopman
(London, 1967), caps. 17 e 18.
AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 191
daquela imagem que mostrasse que a sua dedicação esquizóide a conceitos mutuamente
exclusivos da natureza do homem era a doença que era. E, como disse Bernheimer, “nada
poderia ter sido mais radical do que a atitude de simpatizar ou identificar-se com o Homem
Selvagem, cujo modo de vida era o repúdio de todos os valores acumulados da
civilização”118.
4.
Dessa forma, por volta do final da Idade Média, o Homem Selvagem tornou-se dotado
de duas personalidades distintas, cada qual consonante com uma das possíveis atitudes que
os homens poderiam assumir em relação à sociedade e à natureza. Se alguém considerasse
a natureza um mundo horrível de lutas, uma natureza animal, e a sociedade uma condição
que, apesar das suas imperfeições, ainda era preferível ao estado natural, então continuaria
a ver no Homem Selvagem o antítipo da humanidade desejável, uma advertência do estado
em que cairiam os homens se rejeitassem definitivamente a sociedade e as suas normas. Se,
por outro lado, a sua visão da natureza fosse a da zona rural cultivada, do que se poderia
chamar natureza her- bática, e se visse na sociedade, com toda a sua luta, uma degradação
da perfeição natural, então ele poderia estar inclinado a povoar esta natureza com homens
selvagens cuja função era servir de antítipos da existência social. A primeira atitude
predomina numa tradição de pensamento que se estende de Maquiavel, passando por
Hobbes e Vico, a Freud e Jean-Paul Sartre. A segunda atitude é representada por Locke e
Spenser, Montesquieu e Rousseau, e tem defensores recentes em Albert Camus e Claude
Lévi-Strauss.
De modo significativo, durante o período de transição da época medieval para a
moderna, muitos pensadores tomaram uma posição mais ambivalente, ao mesmo tempo
sobre a desejabilidade de idealizar o Homem Selvagem e sobre a possibilidade de escapar
da civilização. No seu famoso ensaio sobre o canibalismo, Montaigne utiliza relatos de
povos primitivos no Brasil mais ou menos da mesma forma que o historiador romano Tácito
utilizou relatos sobre as tribos germânicas: para atacar o provincianismo e etnocentrismo do
seu próprio povo, para minar as convenções irrefletida- mente reverenciadas pela sua
própria geração, para explodir preconceitos e ridicularizar as barbaridades de sua própria
época4'1. Mas, nem nos seus momentos mais deprimidos, Montaigne não sugere aos seus
leitores que libertem a fera ou o canibal que têm dentro de si119.
Similarmente, Shakespeare, mesmo naquela que é considerada a sua peça mais
pessimista, A Tempestade, continua ambíguo quanto ao valor relativo do mundo natural e
social. Assim, Shakespeare contrapõe Calibã, a encarnação da libido e senhor de um desejo
insaciável de liberdade, a Próspero, o mago, a quintessência do homem civilizado, todo ego
e superego, sapiente e poderoso, porém cansado e escravo de seu próprio requinte. E a luta
entre eles se resolve de uma forma que definitivamente não aproveita a nenhum dos dois
ideais. Cada um consegue, no fim, o que deseja, mas apenas desistindo de algo que, no
começo da peça, ele havia valorizado mais sumamente, e assumindo alguns dos atributos
do seu inimigo. Calibã é restaurado no reino de sua ilha, mas ao preço da sua inocência
selvagem. Próspero joga fora a sua varinha mágica, abandona a ilha e resolve viver como
um homem entre os homens, sem a vantagem sobre-humana, mas também sem a ilusão, que
talvez seja um tipo superior de inocência120.
Shakespeare, como a maioria dos seus contemporâneos, ainda é o poeta da ordem e
da civilização, qualquer que seja o seu discernimento sobre a natureza repressora e opressiva
de ambas. É que, como Montaigne, a quem admirava, ele relutava em ver nas forças que se
opunham à ordem e à civilização a manipulação de um poder distintamente inumano.
E, evidentemente, outros fatores estavam em ação na reabilitação do Homem
Selvagem. Relatos de viajantes e exploradores sobre a natureza dos selvagens que
encontraram em locais longínquos poderiam ser lidos da forma que o leitor, no conforto do
lar, desejasse. Em todo caso, o Homem Selvagem estava sendo distanciado, desembarcado
em lugares suficientemente obscuros para lhe permitir que aparecesse como tudo quanto os
pensadores queriam fazer dele, embora ainda o situando em algum lugar além dos limites
da civilização.
Esta espacialização do mito do Homem Selvagem vinha acompanhada da sua
temporalização no pensamento histórico mais complexo da época. Vico, o filósofo
napolitano que transpôs a lacuna entre Barroco e civilização iluminista, insistia em que a
selvageria era tanto o estágio original quanto necessário de toda forma de humanidade
consumada. Na sua Ciência Nova, originariamente publicada em 1725, Vico retratava o
selvagem como um poeta natural, como a fonte de faculdades imaginativas ainda presentes
no homem moderno, civilizado, como o detentor de uma capacidade estética ou formadora
na qual a civilização tinha as suas origens - pelo menos entre os pagãos121. Foi a capacidade
do homem primitivo de poetizar a sua existência, de impor-lhe uma forma oriunda mais de
impulsos estéticos que morais, que permitiu aos povos pagãos construir um mundo social
unicamente humano em oposição aos seus próprios instintos animais que sentiam mais
profundamente. Para Vico, o selvagem era alguém que sentia naturalmente e pensava
poeticamente, o ancestral do homem moderno que começara vivendo poesia e terminara
tornando-se totalmente prosa. Vico sustentava que a bárbarie original do estado selvagem
era menos inumana que a bárbarie requintada de civilizações que, nos seus estágios finais,
eram tecnicamente avançadas porém moralmente corruptas. Além disso, afirmava que a
única cura para civilizações que haviam entrado em declínio residia talvez no retorno a uma
condição de bárbarie, numa revivescência dos poderes poéticos do selvagem - não o Nobre
Selvagem do philosophe (o selvagem como guardião da razão natural incontaminada e do
senso comum), mas o possuidor da pura vontade que, posteriormente, seria apontado pelos
românticos como uma alternativa para o homem civilizado.
5.
O que quer que seja o mito - um equivalente verbal de um ritual, uma narração poética
das origens, uma projeção das últimas coisas possíveis ele é também, como nos diz Northrop
Frye, um exemplo de pensamento que opera nos extremos da possibilidade humana, uma
projeção de uma visão da realização humana e dos obstáculos que se interpõem no caminho
dessa realização122. Por conseguinte, os mitos são orientados no sentido do ideal da liberdade
perfeita, ou redenção, de um lado, e da possibilidade de total opressão, ou danaçao, de outro.
Sendo os homens obrigados a viver a sua vida num ponto qualquer entre a ordem perfeita e
a desordem total, entre a liberdade e a necessidade, entre a vida e a morte, entre o prazer e
a dor, as duas situações extremas em que estas condições poderiam imaginavelmente ter
triunfado são uma fonte de contínua especulação em todas as culturas, arcaicas e modernas:
daí o fascínio universal pelas especulações utópicas do tipo apocalíptico e do tipo
demoníaco, o sonho do desejo saciado, de um lado, e o pesadelo da frustração completa, de
outro. Os mitos fornecem justificativas imaginativas dos nossos desejos e ao mesmo tempo
121 Ver Edmund Leach, “Vico and Lcvi-Strauss on the Origins of Humanity", em Giambattista Vico: An International
Symposium, ed. Giorgio Tagliacozzo e Hayden V. White (Baitimore, 1969), pp. 309-318.
122 Ver Frye, “Archetypal Criticism”, pp. 131-162, e “Varietíes of Litemry Utopias", em Utopias and Uto- pian Thought, ed.
Frank E. Manuel (Boston, 1967), pp. 25-49.
AS FORMAS DO ESTADO SELVAGEM 193
exibem aos nossos olhos imagens das forças cósmicas que excluem a possibilidade de
qualquer satisfação perfeita deles.
O mito do Homem Selvagem serviu a uma dupla função no final da Idade Média.
Como demonstrou Bernheimer, na Idade Média a noção de estado selvagem é projetada de
maneira consistente nas imagens do desejo liberto das peias de toda convenção e ao mesmo
tempo nas imagens do castigo que a sujeição ao desejo atrai sobre nós123. O mito do Homem
Selvagem é o que a imaginação medieval concebe que seria a vida se os homens dessem
expressão imediata aos impulsos libidinosos, tanto em função dos prazeres que tal liberação
poderia proporcionar como em função da dor que dela poderia resultar.
Bernheimer fala, na linguagem freudiana, de recalque e sublimação, e sem dúvida
tem justificativa para fazê-lo124. Mas as tensões que se refletem nas concepções medievais
do Homem Selvagem são compreensíveis como fenômeno distintivamente medieval pelo
fato de que as duas imagens do estado selvagem - uma de desejo, outra de castigo - derivam
de tradições culturais diferentes e essencialmente incompatíveis. O próprio Bernheimer se-
gue a imagética benigna do estado selvagem até os arquétipos clássicos e a imagética
maligna até os arquétipos bíblicos125. Os dois conjuntos de imagens aparentemente se
fundiram (e confundiram) durante a Alta Idade Média, criando assim aquela concepção
anômala do estado selvagem que encontramos na iconografia dos séculos XIIÍ e XIV, de
um Homem Selvagem que é ao mesmo tempo bom e mau, invejado e temido, admirado e
caluniado. O pensamento formal cristão procurou difundir o conceito anômalo de estado
selvagem recorrendo à filosofia cristã da natureza contida na Esco- lástica. O esforço foi
inútil no campesinato, se as provas que Bernheimer apresenta da sobrevivência dos motivos
do Homem Selvagem medieval no folclore contemporâneo podem ser consideradas em seu
significado manifesto. Mas logrou êxito na esfera da alta cultura, Onde a ideia da natureza
era progressivamente purgada de todas as imputações teóricas do mal. Em consequência
desta redenção teórica da natureza, bem como de fatores culturais mais gerais, em alguma
época durante o século XV a concepção benigna do Homem Selvagem se livrou da
concepção maligna, e os escritores e pensadores começaram a reconhecer os usos fecundos
na crítica da cultura que uma versão desmitologizada da imagética benigna- poderia
proporcionar. Em suma, durante algum tempo no começo do período moderno, decerto
como parte de um movimento geral de secularização e como uma função do humanismo, a
imagem do estado selvagem foi “ficcionalizada”, ou seja, separada de uma “essência”
imaginada do estado selvagem, e passou ao uso limitado de instrumento de crítica
intracultural.
Seja-me permitido exemplificar o que entendo pela tradução do mito do selvagem
numa ficção por referência a Montaigne, que aqui, como em tantos outros assuntos, nos dá
uma clara indicação da maneira como irá se desenvolver uma atitude distintamente
moderna. No seu ensaio “Dos Canibais”, Montaigne observa que “todo homem chama de
barbárie tudo o que não é a sua própria prática”. Em seguida, depois de comentar algumas
das práticas mais chocantes dos povos primitivos, tal como são descritas nos relatos dos
viajantes antigos e modernos, observa que só devemos chamar esses povos de “selvagens”
do mesmo modo que “chamamos de selvagens os frutos que a Natureza produziu por si
própria e no seu curso normal”. De fato, diz ele, “deveríamos chamar selvagens aqueles que
alteramos artificialmente e tiramos do caminho da ordem comum”. Pois, enquanto podemos
chamar legitimamente os povos selvagens de bárbaros “com respeito às regras da razão”,
não estamos autorizados a chamá-los assim “com respeito a nós mesmos”, e isto porque “os
superamos em todo tipo de barbárie” 126.
Montaigne joga aqui com a noção de estado selvagem a fim de chamar a atenção para
uma distinção que reside no coração do seu ceticismo, a distinção que gira, não em torno da
antítese divino-natural, como na teologia cristã, mas em torno da antítese natural-artificial.
Para ele, o natural não é necessariamente o que é bom, mas decerto é preferível ao artificial,
principalmente porque a barbárie induzida artificialmente é muito mais repreensível aos
seus olhos que o seu equivalente natural entre os selvagens. Montaigne quer que os seus
leitores identifiquem a artificialidade em si próprios, que reconheçam o grau em que a sua
civilização superficial mascara uma barbárie mais profunda, preparando-os assim para a
libertação, não das suas almas para céu, mas dos seus corpos e mentes para a natureza.
Usando o conceito de selvagem como uma ficção, Montaigne equipara o mito da ci
vilização que a fundamenta a um provincianismo debilitante. Seu propósito não é
tornar selvagens todos os homens nem destruir a civilização, porém fornecer-lhes um
distanciamento crítico sobre a sua artificialidade, que tanto proíbe a consecução da
verdadeira civilização quanto frustra a expressão dos seus impulsos naturais legítimos.
O uso fictício que Montaigne faz da noção de estado selvagem é uma tática
caracteristicamente irônica. Nos tempos romanos, o historiador Tácito usou o conceito de
bárbaro, na sua Germânia, exatamente da mesma forma, ressaltando conscientemente as
presumidas virtudes das tribos selvagens do norte, de modo a forçar os seus leitores a
contemplar os vícios dos romanos civilizados no sul. A mesma tática aparece em grande
parte da obra do moderno antropólogo da cultura Claude Lévi-Strauss sobre os povos pri-
mitivos e “o pensamento selvagem”. Lévi-Strauss sugere que aquilo que os homens
civilizados chamam convencionalmente de “o pensamento selvagem” é o repositório de uma
faculdade imaginativa particularmente poderosa que sob o impacto da modernização quase
desapareceu da sua contrapar- te “civilizada”. O pensamento selvagem, afirma ele, é o
produto de um tipo único de relação com o cosmo que exterminamos ao risco da nossa
própria humanidade.
Tácito, Montaigne e Lévi-Strauss estão ligados pelos usos fictícios que fazem dos
conceitos de barbárie, estado selvagem e selvageria. Nas suas obras, eles sinalizam à sua
consciência que as antíteses que estabeleceram entre uma humanidade ‘‘natural” e uma
humanidade “artificial” não devem ser tomadas literalmente, mas usadas apenas como os
limites conceituais necessários para focalizar criticamente as condições da nossa própria
existência civilizada. Juntando-nos a eles ao agir como se acreditássemos que a humanidade
poderia ser diferenciada tão radicalmente, posta em duas classes mutuamente exclusivas, a
“natural” e a “artificial”, somos levados, pela dialética do próprio pensamento, para o centro
da nossa própria existência complexa enquanto membros de comunidades civilizadas.
Jogando com os extremos, somos levados ao meio-termo; distorcendo um conceito com a
sua antítese, somos levados a dar uma atenção mais rigorosa às nossas próprias percepções;
manipulando as ficções artificialidade e condição natural, aos poucos nos aproximamos de
uma verdade sobre um mundo que é tão complexo e mutável quanto os nossos possíveis
meios de compreender esse mundo.
A falta desta aptidão fictícia, a incapacidade de “jogar” com imagens e ideias como
instrumentos para investigar o mundo das aparências, caracteriza a mente simples onde quer
que ela se apresente, quer no camponês supersticioso, quer no burguês preso a convenções,
ou no primitivo dominado pela natureza. Ela é sem dúvida uma característica distintiva do
pensamento mítico, que, o que quer que ela possa ser, sempre se inclina a tomar os signos e
os símbolos pelas coisas que representam, a tomar as metáforas literalmente e a fazer com
que o mundo fluido indicado pelo uso da analogia e do símile escape do seu controle.
Quando uma ficção, seja um romance ou um poema, é tomada literalmente, mais como um
relato da realidade que uma estrutura verbal com uma referência mais ou menos direta ao
mundo da experiência, ela se torna mitologizada. Todavia, o que Frank Kermode chama de
degeneração das ficções em mitos127 só é discernível a partir da posição vantajosa de uma
cultura cuja operação crítica característica é expor o mito que jaz no coração de toda ficção.
Durante a Idade Média cristã, uma tática crítica semelhante era utilizada para distinguir as
doutrinas religiosas “falsas” das “verdadeiras”, mas com esta diferença em relação à crítica
moderna: lá, o pensamento permanecia encerrado dentro dos limites da metáfora
fundamental que referia o verdadeiro sentido de todas as coisas à sua origem e meta
transcendentais - a metáfora que equiparava literalmente a vida humana a uma busca de
redenção transcendental. Dentro dos limites dessa estratégia mitológica de capacitação, o
conceito de Homem Selvagem tinha pouquíssimas chances de ser exposto como a ficção
útil em que desde então se converteu nas mãos de céticos e radicais, desde Montaigne e
127 Frank Kermode, The Sense of an Ending: Studies in the Theory of Fiction (New York, 1967), p. 39.
Rousseau até Marx e Lévi-Strauss. Pois, conquanto os pensadores e escritores cristãos
por expor o caráter “mitológico”
primassem 196 deDOtoda
TRÓPICOS ideia pagã, não-cristã ou herética,
DISCURSO
permanecia o fato de que, para eles, o pensamento se destinava mais a aj-udar os homens a
escapar do tempo e da história que a compreendê-los e aplicá-los em usos terrenos. Já que
o ideal continuava sendo um tipo de super-homem sagrado em quem não estivesse presente
qualquer das imperfeições da humanidade real, então o horror máximo, a condição que tinha
de ser evitada a todo custo, devia continuar a ser aquele sub-homem que a imaginação
construiu com os seus próprios desejos reprimidos e ao qual o pensamento conferira, nos
tempos clássicos e do Antigo Testamento, a denominação de “selvagem”.
6.
Para terminar, quero delinear alguns aspectos da carreira do Homem Selvagem depois
do século XVIII e sugerir algumas das implicações de sua carreira para a nossa época.
Durante o século XIX e a despeito do Romantismo, o homem primitivo veio a ser
considerado menos como um ideal do que como um exemplo de humanidade interrompida,
como aquela parte da espécie que não se elevara acima da dependência da natureza, como
atavismo, como aquela da qual o homem civilizado, graças à ciência, à indústria, ao
cristianismo e à excelência da raça, se havia elevado finalmente (e definitivamente). Na
imaginação vitoriana, os povos primitivos eram encarados com aquela mistura de fascínio
e aversão que Conrad examina em O Coração das Trevas — como exemplos do que o
homem ocidental poderia ter sido numa época e do que poderia ter-se tornado uma vez
maisse deixasse de cultivar as virtudes que lhe haviam permitido escapar da natureza.
Durante o final do século XIX, certamente, a nova ciência da antropologia já se
empenhava em abrandar este severo julgamento; e no século XX ela trabalhou com afinco
para o destruir, juntamente com o preconceito racial que invariavelmente o acompanhava.
Para a maioria dos modernos cientistas sociais, o homem primitivo não é mais um ideal pelo
qual nos devemos moldar, nem uma lembrança do que nos poderíamos tornar se traíssemos
a nossa humanidade consumada. Ao contrário, as culturas primitivas são vistas como
manifestações diferentes do poder do homem de reagir de maneira diferente aos desafios do
ambiente, como um controle sobre os louvados conceitos da suposta eleição cósmica do
homem ocidental e como uma negação das várias formas de provincianismo cultural.
Assim, nos tempos modernos, a concepção de um “homem selvagem” tornou-se
quase que exclusivamente uma categoria psicológica, mais que antropológica, como nos
séculos XVII e XVIII. (Obviamente, estou-me referindo às categorias psicológicas
populares, não às científicas.) O que uma vez se pensou que representasse uma forma de
humanidade peculiar, um estado pré-social ou supersocial, conforme o caso, tornou-se uma
categoria para designar aqueles que, por razões psicológicas ou puramente físicas, são
incapazes de participar da vida de qualquer sociedade, quer primitiva, quer civilizada. Nos
tempos modernos, o conceito de selvagem, quando aplicado a um grupo humano ou a um
ser humano individual, tende a se confundir com a noção popular de psicose, a ser visto,
portanto, mais como uma forma de doença e refletir mais uma disfunção da personalidade
na relação do indivíduo com a sociedade do que como uma variação, ou diferenciação on-
tológica da espécie.
Desse modo, em nossa época, o conceito de estado selvagem teve um destino
semelhante ao do conceito de barbárie. Assim como não há mais bárbaros, exceto num
sentido sócio-psicológico, como no caso dos nazistas, também não há mais homens
selvagens, salvo no sentido sócio-psicológico, como quando empregamos o termo para
caracterizar gangues de rua, desordeiros ou coisa parecida. Selvageria e barbárie são hoje
usados basicamente para designar as áreas da paisagem psicológica do indivíduo, e não
culturas totais ou espécies de humanidade. Os termos de valor neutro, como primitivo, que
0 TEMA DO NOBRE SELVAGEM COMO FETICHE 197
designam um estágio tecnológico ou uma estrutura social particular, tomaram o seu lugar.
Estado selvagem e barbárie são encarados, em geral, como potencialidades ocultas no
coração de toda pessoa, primitiva ou civilizada, como a sua possível incapacidade de
conciliar-se com o mundo que lhe é socialmente oferecido. Não são vistos como essências
ou substâncias peculiares a uma porção particular da humanidade fora no espaço, ou atrás
no tempo. Pelo menos, não devem ser considerados assim.
Afirmei anteriormente que o pensamento sobre o Homem Selvagem sempre e
concentrou em três problemas difíceis e permanentes que a socie-dade e a civilização
pretendem ter solucionado: os relacionados com o sustento, o sexo e a salvação. Acredito
que não é por acaso que os três pensadores mais revolucionários do século XIX - Marx,
Freud e Nietzsche, respectivamente - usam estes temas como sua matéria principal. Do
mesmo modo, o radicalismo de cada um deles é em parte função de um ateísmo completo
e, mais especificamente, da hostilidade à religiosidade judaico-cristã. Para cada um destes
grandes radicais, o problema da salvação é um problema humano, cuja solução reside
exclusivamente num reexame das formas criativas de vitalidade humana. Cada um deles é,
pois, impelido a recorrer a épocas primitivas da melhor maneira possível a fim de imaginar
como poderia ter sido o homem primitivo, o homem pré-civilizado, o Homem Selvagem que
existiu antes da história - isto é, fora do estado social.
Como Rousseau, cada um destes pensadores interpreta o homem primitivo como o
detentor de uma liberdade invejável, porém, diferentemente daqueles seguidores de
Rousseau que o interpretaram mal e que insistiram em tratar o homem primitivo como um
ideal, Marx, Freud e Nietzsche reconheciam, como Rousseau, que a existência do homem
primitivo deve ter sido inerentemente imperfeita. Cada um deles argumenta que a “queda”
do homem na sociedade foi necessária, o resultado de uma escassez fundamental (de bens
de consumo, de mulheres ou de poder, conforme o caso). E embora cada um diga que a
queda produziu uma forma de opressão exclusivamente humana, todos a encaram como uma
contribuição essencialmente providencial para a construção dessa humanidade total que a
história almeja realizar. Em suma, para eles, o homem tinha de transcender o estado selva-
gem primitivo que lhe era inerente - o qual é tanto uma relação quanto um estado - a fim de
conquistar o seu reino. Os primitivos coletores de alimento de Marx, a horda primitiva de
Freud e os bárbaros de Nietzsche solucionam o problema da escassez de um modo
essencialmente idêntico: por meio da alienação e da opressão dos outros homens. E todos
eles vêem que este processo e alienação resultam na criação de uma falsa consciência, ou
auto-ali- enação, necessária ao mito de que um fragmento da humanidade poderia encarar a
essência de toda a humanidade.
Todos os três viam na história uma luta para libertar os homens da opressão de uma
sociedade criada originariamente como um meio de libertar o homem da natureza. Era a
parte oprimida, explorada, alienada ou reprimida da humanidade que continuava a
reaparecer na imaginação do homem ocidental ~ na forma do Homem Selvagem, do monstro
e do demônio - para o assombrar ou engodar depois disso. Algumas vezes esta humanidade
oprimida ou reprimida surgia como uma ameaça e um pesadelo, outras vezes, como um
objetivo e um sonho; às vezes, como um abismo dentro do qual a humanidade poderia cair,
outras vezes como um pico a ser escalado; mas sempre como uma crítica de toda segurança
e tranqüilidade que um grupo de homens na sociedade adquirira ao preço do sofrimento de
outro grupo.
0 TEMA DO NOBRE SELVAGEM COMO FETICHE
198 TRÓPICOS DO DISCURSO
O tema do Nobre Selvagem é talvez um dos poucos tópicos históricos sobre o qual
nada mais resta dizer. Poucos dos topoi do pensamento do século XVIII foram estudados
mais completamente. As funções do tema do Nobre Selvagem nos debates ideológicos da
época são bastante conhecidas, suas origens remotas foram razoavelmente identificadas e a
sua '‘linhagem”, na expressão de John G. Burke, foi estabelecida com precisão pelos
historiadores das ideias128. As pesquisas de arquivo com certeza não exumarão novos
exemplos do uso do tema na literatura imaginativa e política desde a Renascença até o
período romântico e além, mas as chances de ampliar de algum modo historicamente
significativo o nosso entendimento do conceito poderiam parecer remotas. Em estudos
futuros da história cultural do século XVIII, é provável que o tema do Nobre Selvagem fique
confinado àquelas notas de rodapé reservadas a assuntos a respeito dos quais os eruditos já
não discordam.
No entanto, examinando a literatura relativa ao tema, poderíamos obter uma
percepção relativamente nova de sua função no pensamento do século XVIII se
enfatizássemos o seu caráter fetichista. Pois, assim como o conceito de Homem Selvagem,
do qual ele deriva e contra o qual se levantou ostensivamente, o conceito de Nobre Selvagem
tem todos os atributos de um fetiche. E, se isso for verdade, a ideia do Nobre Selvagem
poderia sér elucidada de modo significativo se a concebêssemos como um momento na
história geral do fetichismo do qual participaram desde o começo da humanidade tanto o
homem civilizado quanto o primitivo.
Na minha análise do caráter fetichista do tema do Nobre Selvagem, utilizarei o termo
fetiche em três sentidos129. Um fetiche é todo objeto natural que se acredita dotado de um
poder mágico ou espiritual. E esse o sentido etnológico tradicional do termo, e dele deriva
seu emprego figurativo convencional para designar algum objeto material encarado com
confiança ou reverência supersticiosa ou extravagante. Desse uso figurativo, por sua vez,
deriva o sentido psicológico, que se aplica a todo objeto ou parte do corpo tomados
128 Ver os ensaios de Gary B. Nash, Earl Miner, Maximillian E. Novak, John G. Burke, Peter L. Thorslev, Jr., e
Hayden White, em The Wild Man Within: An Image in Western Tkought from the Renaissancc to Romanticism, ed- Edward
Dudley e Maximillian E. Novak (Pittsburgh, 1972).
129 Três sentidos não-téenicos, devo acrescentar. Defino o fetichismo, aqui, como uma fixação mais na forma de uma coisa
que no seu conteúdo, ou mais na parte de uma coisa que no seu todo. Um dos pontos que tento ressaltar é que tal
reducionismo é inevitável no uso de conceitos como “humanidade” ou “civilização”, visto que esses conceitos são
inerentemente instáveis e não apresentam qualquer referente in» contestável. Quando uma dada parte da humanidade
se define compulsivãmente como o tipo perfeito da humanidade em geral e define todas as outras partes da espécie
humana como inferiores, imperfeitas, degeneradas ou “selvagens”, chamo a isso um exemplo de fetichismo. Em tal
situação, a tendência é dotar de poderes mágicos, e até sobrenaturais, aquelas partes da humanidade às quais, com efeito,
se está negando qualquer direito ao título de humano, como aconteceu nos mitos do Homem Selvagem na Idade Média.
Se esses poderes mágicos ou sobrenaturais forem considerados desejáveis para todos os homens, inclusive os europeus,
haverá, então, uma tendência a fetichizar os supostos detentores desses poderes, por exemplo, o Nobre Selvagem.
0 TEMA DO NOBRE SELVAGEM COMO FETICHE 199
obsessivamente (catexados) como uma fonte exclusiva de satisfação libidinosa. Desses três
usos extraímos os três sentidos do termo fetichismo aqui utilizados: crença em fetiches
mágicos, devoção extravagante ou irracional e deslocamento patológico do interesse e
satisfação libidinosos para um fetiche.
Assim considerado, o fetichismo é ao mesmo tempo um tipo de crença, um tipo de
devoção e um tipo de posição ou postura psicológica. Ao examinar o tema do Nobre
Selvagem como fetiche, espero mostrar que a própria noção de Nobre Selvagem era
fetichista, dado o contexto histórico em que foi elaborada como uma suposta descrição de
um tipo de humanidade. Quer dizer, a crença na ideia de um Nobre Selvagem era mágica,
era extravagante e irracional no tipo de devoção que pretensamente despertava, e, no fim,
revelava o tipo de deslocamento patológico do interesse libidinoso que normalmente
associamos às formas de racismo que, para se justificarem, dependem da ideia de uma
“humanidade selvagem”.
Certamente, expressões como “Homem Selvagem” e “Nobre Selvagem” são
metáforas; e, na medida em que foram alguma vez tomadas literalmente, podem ser
consideradas simplesmente erros, enganos ou falácias130.
Mas o fato é que a cultura humana não pode prescindir dessas metáforas, e quando
precisamos identificar coisas que não se enquadram nos sistemas convencionais de
classificação, elas se revelam não só funcionalmente úteis como também necessárias para o
bem-estar de grupos sociais. As metáforas são fundamentalmente necessárias quando uma
cultura ou grupo social depara com fenômenos que fraudam expectativas normais ou
experiências cotidianas ou colidem com elas.
Por isso, devemos concluir, com o antropólogo e o psicólogo, que em verdade não há
nada de inerentemente “absurdo” em cada um desses tipos de fetichismo. Do ponto de vista
científico, a atribuição de poderes espirituais a objetos inanimados, ou das qualidades de um
todo às suas partes, pode ser um equívoco, uma falácia da lógica ou uma falha da razão.
Todavia, ambos os tipos de fetichismo estão por demais difundidos para que os conside-
remos patológicos em si mesmos, e são por demais consentâneos com os modos sensatos de
pensamento para que os reputemos inerentemente viciosos ou perniciosos. O cientista social
está muito interessado em saber como uma determinada prática fetichista funciona numa
dada cultura, indivíduo, ou grupo, se é opressiva ou terapeuticamente eficaz, do que em
expor o erro de lógica ou de racionalidade que lhe é subjacente. Uma prática cultural ou
uma crença só pode ser declarada absurda dentro do horizonte de expectativas demarcado
por aquelas práticas e crenças que a tornariam “impensável” ou, quando pensável,
“desarrazoada”. Do ponto de vista de uma ciência social verdadeiramente objetiva, nenhuma
crença é inerentemente absurda se fornecer a base para um funcionamento adequado das
práticas que nela se baseiam, no âmbito da economia total da cultura em que é aceita. E é
aqui que a própria noção de absurdo deve ser associada ao conceito de tabu. Pois, embora
muitas práticas culturais possam revelar-se errôneas, falaciosas, nocivas, ineficazes,
repressoras, desumanizadoras etc., só podem ser consideradas absurdas na medida em que
violam algum tabu sobre o que é pensável ou viável dentro de um dado quadro de referência
moral.
Por exemplo, Marx chama de absurda a “forma de valor dinheiro”, que assume o
aspecto de um “fetichismo do ouro”, porque se baseia, em primeiro lugar, num equívoco (a
confusão dos “meios” de troca [dinheiro] com as coisas a serem trocadas [mercadorias com
um determinado valor de uso]) e, em segundo lugar, na confusão de uma “forma” de troca
(mercadorias) com o “conteúdo” das coisas trocadas (seu valor-trabalho, que lhes confere
130 Os filósofos gastam um bom tempo em expor as expressões metafóricas tomadas literalmente e hipostatizadas como bases
de sistemas metafísicos. Ver, por exemplo, Colin M. Turbayne, The Myth of Metapkor (New Haven e London, 1962; ed.
rev., Columbia, S. C., 1970), que está preocupado, entre outras coisas, em afirmar que a metáfora que reside no coração
da metafísica mecanicista é tanto um “engano” crucial quanto o gerador de um conjunto de “mitos”.
seu valor de uso). O fetichismo do ouro é absurdo porque leva a uma busca interminável da
mais “inútil200das mercadorias” e à negaçãoTRÓPICOS
do “valor” inerente à mais nobre faculdade do
DO DISCURSO
homem, a sua capacidade de produzir por seu próprio trabalho mercadorias com valores de
uso específicos. Marx, porém, estava menos preocupado em exprobrar o fetichismo do ouro
(o que, afinal de contas, os moralistas têm feito corriqueiramente desde a época de Hesíodo
e os Profetas) do que em explicar a lógica dessa crença “absurda” e as práticas “viciosas”
que ela engendrou ou justificou. No processo dessa explicação, Marx aplicou nada menos
que uma lógica que denominou “dialética”, mas que eu chamaria lógica da metáfora, que
para ele era a chave para o entendimento de todas as formas de fetichismo e daquele
processo de alienação pelo qual os homens se distanciaram psicologicamente das coisas que
lhes estavam ontologicamente mais próximas e transformaram em ídolos as que estavam
mais afastadas da sua própria natureza de homens. Antes de analisar a lógica da troca de
mercadorias, Marx expôs uma lógica do pensamento dos homens sobre a mercadoria, de
modo a demonstrar como aquilo que começara na forma de uma equação perfeitamente
compreensível e razoável de uma coisa com outra terminou no fetichismo do ouro,
característico do sistema de troca mais superiormente avançado, o capitalismo 131. Proponho
tentar quase a mesma coisa com a ideia do tema do Nobre Selvagem, do modo como se
desenvolveu no período entre o final do século XV e o começo do século XVIII. Quero
ressaltar, entretanto, que este não é um exercício especificamente marxista, mas um
exercício dialético em geral; e que ele deve tanto a Vico, Hegel, Nietzsche, Freud e Lévi-
Strauss quanto deve a Marx. Apenas este aplicou com mais constância a lógica da metáfora
às estruturas materiais da sociedade. E quer aceitemos ou não como absurda a sua
caracterização da teoria do valor dinheiro (de fato, sua caracterização pressupõe a validade
absoluta da teoria do valor trabalho), ainda podemos ver na sua explicação do fetichismo do
ouro um modelo particularmente apropriado para a nossa própria explicação da concepção
do Homem Selvagem na forma como se desenvolveu no período barroco.
A aplicação desse modelo requer apenas que reconheçamos os elementos de paradoxo
presentes no uso do conceito, a alienação implícita na estrutura desse uso e a identificação,
escondida ou reprimida, dos nativos do Novo Mundo com objetos naturais (ou seja, sua
Jesumanização) a serem usados (consumidos, transformados ou destruídos) do modo que
seus conquistadores (ou proprietários) desejassem. Também não nos deveria surpreender a
idolatração dos nativos implícita no conceito de Nobre Selvagem.
131 Ver o famoso capítulo, intitulado “Mercadorias”, que abre O Capital, trad. da 4- edição alemã por Eden Paul e Cedar Pau!
(New York, ! 929). Marx escreve: “Assim, o misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de
que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios
produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, reflete a relação social dos produtores
com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos. Graças a essa transferência de qualidades,
os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas transcendentais ou sociais que são ao mesmo tempo perceptíveis por
nossos sentidos. ... Estamos preocupados apenas com uma determinada relação sociai entre os próprios homens, que, aos
seus olhos, assume aqui a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Por isso, para encontrar uma analogia, temos
de penetrar no mundo nebuloso da religião. Nesse mundo, os produtos do cérebro humano parecem formas independentes,
dotadas de vida própria, capazes de manter relações entre si e com os homens. No mundo das mercadorias, o mesmo
acontece com os produtos da mão humana. A isso denomino o fetichismo cue adere aos produtos do trabalho”. Idem, pp.
45*46.
0 TEMA DO NOBRE SELVAGEM COMO FETICHE 201
Essa noção representa tão-somente o retorno tardio da humanidade reprimida na
caracterização oximorônica original do nativo como um Homem Selvagem. É significativo,
a meu ver, que essa idolatração dos nativos do Novo Mundo tenha ocorrido somente depois
que fora decidido o conflito entre os europeus e os nativos e quando, portanto, ela não mais
poderia impedir a exploração dos últimos pelos primeiros. Desse ângulo, a fetichização do
Homem Selvagem, a atribuição a ele de poderes sobre-humanos (isto é, nobres) constitui
apenas o estágio final da elaboração do paradoxo implícito na concepção de uma
humanidade que é também selvagem.
Essa fetichização do Homem Selvagem era inevitável porque, antes de tudo, o
conceito de uma natureza especificamente humana só pode ser definido de maneira
negativa. O homem é o que o animal e o divino não são. Tal é, pelo menos, a síntese e
substância das concepções aristotélica, tomista e neoplatônica do homem enquanto
ocupante dos degraus intermediários da escala, ou cadeia, do ser. O cristianismo consolidou
essa ideia da natureza “mediana” do homem com a doutrina da possibilidade de os homens
se tornarem deuses (ou, pelo menos, semelhantes a Deus), mesmo que tenha restringido a
realização desta possibilidade ao mundo que está por vir. Conco- mitantemente, o
cristianismo forneceu a base da crença na possibilidade de uma humanidade asselvajada
quando sugeriu que os homens poderiam degradar ao estado animal neste mundo por meio
do pecado. Mesmo que tenha estendido a esperança de redenção a qualquer humanidade
degradada como essa, por obra da graça divina sobre uma “alma” específica da espécie,
supostamente presente mesmo no mais depravado dos seres humanos, ainda assim o
cristianismo pouco fez para encorajar a ideia de que uma verdadeira humanidade era viável
fora do âmbito da Igreja ou de uma “civilização” geralmente definida como cristã.
Foi, a meu ver, a imprecisão da definição de “humanidade” que gerou a ambiguidade
na avaliação original da “natureza” dos habitantes das Américas. As primeiras descrições
dos nativos americanos são caracteristica- mente anômalas. Por exemplo, o Sphera mundi
de João de Holywood (1498) descreve os nativos da América como “de cor azulada e com
cabeças quadradas”132. Da mesma forma, a legenda de uma gravura de 1505 descreve os
nativos em termos que Hanke chama “fantásticos”:
Eles andam nus, tanto os homens quanto as mulheres... Não têm propriedade particular, mas possuem todas
as coisas em comum. Vivem todos juntos, sem rei e sein governo, e cada qual é o seu próprio senhor. Tomam por
esposa a quem primeiro encontram, e ein tudo isso não há norma alguma. ... E comem uns aos outros. ... Vivem até
cento e cinqüenta anos, e raramente adoecem133.
Ora, essa descrição dos americanos nativos poderia ser considerada uma distorção causada
pela projeção de um sonho de inocência edênica no conhecimento fragmentário do Novo
Mundo disponível na época. Mas, se essa descrição dos americanos nativos é, no nível
manifesto, um sonho, no nível latente ou figurativo ela tem todos os elementos de um
pesadelo. Pois a descrição contém nada menos que cinco referências a transgressões de
tabus considerados invioláveis pelos europeus da época: nudez, comunhão da propriedade,
anomia, promiscuidade sexual e canibalismo. Isso pode ser, nos comentadores europeus,
uma projeção de desejos reprimidos na vida dos nativos (como sugerem as referências à
saúde e à longevidade); mas, se for assim, é um desejo maculado de horror e visto com
desprazer. Dentro dessa caracterização metafórica original dos nativos, temos os dois
momentos necessários para a projeção dos pólos negativo e positivo da dialética do feti-
chismo que nos anos posteriores se separarão em ideais conflitantes: o Homem Selvagem e
o Nobre Selvagem, respectivamente. Sustento que essa dialética pode ser descrita em função
da lógica da própria metáfora. Essa lógica, por seu turno, desenvolve a relação entre desejo
e a acessibilidade dos objetos desejados, a qual requer, por sua vez, um cálculo para a
132 Citado em Lewis Hanke, Aristotle and lhe American Indiunx: A Study in Race Prejudica in the Modcrn World (Chicago,
1959; repr., Bloomington, Ind., 1970), p. 4.
133 Idem, pp. 4-5.
determinação do seu sentido.
Ouro,202 terra, incesto, promiscuidade sexual,
TRÓPICOS canibalismo, longevidade, saúde,
DO DISCURSO
violência, passividade, doença, tudo isso combinado com uma preo- cupação compulsiva
com as almas dos nativos - são esses os temas daqueles debates do Homem Selvagem que
interagem com o tratamento real dos nativos para produzir o fetiche do Nobre Selvagem.
Não precisamos recapitular neste ensaio a saga das espoliações, por parte do europeu, dos
nativos da América (e de outros lugares). Já é bastante conhecida. Estamos interessados,
antes, na dialética ideológica que gerou o Nobre Selvagem idealizado com base no mito do
Homem Selvagem, que o antecede tanto no tempo quanto na lógica da dialética.
Registramos as anomalias contidas nos primeiros relatos dos nativos e os paradoxos
implícitos nas primeiras descrições de suas vidas: embora violem todos os tabus que
deveriam tê-los tornado “imundos” e degenerados, os nativos aparentemente desfrutam dos
atributos que, acreditava-se antes, só possuíam os patriarcas do Antigo Testamento: saúde
robusta e longevidade. A combinação aqui é entre depravação moral e um tipo de super-
huma- nidade física. O que se requeria antes de tudo, para que a teoria acompanhasse a
prática e a crença, era que se explodisse o mito de uma super-hu- manidade física. Para
tanto, poder-se-ia aventar uma destas duas possibilidades: ou os selvagens eram uma raça
de superanimais (semelhantes a cães, ursos ou macacos), o que explicaria sua transgressão
dos tabus humanos e sua suposta superioridade física em relação aos homens; ou eram uma
raça de homens degenerados (descendentes das tribos perdidas de Israel, ou uma raça de
homens destituídos de razão e de senso moral graças aos efeitos de um clima rigoroso) 134.
Qualquer que fosse o caminho tomado pelo argumento, tinha como efeito estabelecer uma
distinção, com o caráter de oposição, entre uma humanidade normal (gentil, inteligente,
decorosa e de cor branca) e uma anormal (obstinada, alegre, livre e de cor vermelha)135.
Essa oposição é suficiente para transformar o nativo, de um ser meramente exótico descrito
nas caracterizações mais antigas, num “objeto” - um “outro” ontológico ou “oposto” aos
homens “normais” - e, conseqüentemente, numa “coisa” a ser tratada conforme o exigisse a
necessidade, a consciência ou o desejo. Las Casas o percebeu muito bem quando, ao criticar
a política imperial espanhola em 1519, acusava que os nativos estavam sendo tratados
“exatamente como se... fossem pedaços de madeira que poderiam ser cortados das árvores
e transportados para fins de construção, ou como rebanhos de carneiros ou qualquer outra
espécie de animais que poderiam ser deslocados de um lugar para outro
indiscriminadamente, e se algum deles morresse na estrada pouca coisa se perderia” 136.
A invocação da autoridade de Aristóteles pelo opositor de Las Casas, Juan Ginés de
Sepúlveda, para justificar o status de um “escravo natural” dado ao índio, foi desde o
começo uma justificativa ideológica para as práticas terroristas supostamente necessárias à
pacificação do Novo Mundo. A coroa espanhola depois do debate de Valladolid em 1550-
1551 negou apoio oficial às opiniões de Sepúlveda; mas a prova que este aduzia na defesa
das suas ideias é instrutiva. Em primeiro lugar, e mais importante, havia a “gravidade dos
pecados que os índios haviam cometido, sobretudo sua idolatria e seus pecados contra a
natureza”, entre os quais ponteavam o canibalismo e o incesto137. O fato de certas tribos do
134 Ver Cap. 7, acima; Gary B. Nash, “The Image of the Indian in the Southern Colonial Mind”, em Dudley e Novak, The
Wild Man Within, pp. 56-57, 71, 77; e Hanke, Aristotle and the American Indianx, p. 27. O estudo definitivo das atitudes
européias para com o Novo Mundo e os seus habitantes deve ser encontrado em Antonello Gerhi, The Dispute of the New
World: The History ofa Polemic, 1750-1900, ed. rev. e ampl., trad. Jeremy Moyle (Pittsburgh, 1973).
135 Ver John G. Burke, “The Wild Man’s Pedigree: Scientific Method and Racial Antropology”, em Dudley e Novak, The
Wild Man Within, pp. 266-67. Segundo Lineu, o asiático é “austero, arrogante e ganancioso” e, evidentemente, “amarelo”,
ao passo que o africano é “matreiro, preguiçoso, desmazelado" e, evidentemente, “negro”. As quatro raças assim
diferenciadas são, contudo, designadas com o título de “Homens” no sistema de Lineu e se distinguem dos homens
“selvagens”, de um lado, e dos “monstros", de outro.
136 Citado em Hanke, Aristotle and the American Indians, p. 17.
137 Ibid, pp. 41,46-47.
0 TEMA DO NOBRE SELVAGEM COMO FETICHE 203
Novo Mundo estarem organizadas segundo linhas matrilineares, em vez de patrilineares,
apenas exacerbava as ansiedades manifestamente sexuais dos europeus, reveladas do modo
mais imediato no terror que tinham (ou nas fantasias que faziam) das práticas incestuosas e
canibalísticas. Essas fantasias, podemos supor, são sublimações de um idílio de consumo
irrestrito, oral e genital, e a sua alternativa, a necessidade de destruir o que não se pode
consumir.
O consumo e a destruição, por sua vez, são aspectos idênticos do idílio de posse
irrestrita (quer de pessoas quer da propriedade) e pressupõem uma desejabilidade da coisa
a possuir, ou seja, a suposição de que a coisa desejada se ainolde à satisfação da pessoa que
a deseja. E essa suposição da desejabilidade da coisa desejada é a base da relação dialética
entre senhor e servo que permeia a patologia psicossocial de todos os sistemas opressores.
O retorno da suspeita reprimida de que os nativos que estavam sendo brutalizados
compartilhavam de fato a humanidade com os seus brutalizadores é a motivação dos longos
debates sobre a questão de saber se os nativos possuem, em seus aspectos e comportamento
supostamente animais, uma alma humana reconhecível.
Antes de tudo, dever-se-ia observar que o problema em debate se relaciona mais com
essências ou qualidades que com atributos ou comportamento; que essas essências ou
qualidades são consideradas espirituais (portanto, capazes de estar presentes por trás ou
dentro de aparências); e que, portanto, elas não são determináveis exclusivamente pelo que
se poderia chamar prova “empírica”. O debate, por conseguinte, esclarece muito mais a
confusão reinante na mente dos europeus sobre a natureza da sua própria humanidade do
que a natureza dos nativos (o que, evidentemente, está subentendido), ou as atitudes para
com os nativos e as crenças a seu respeito que os europeus mantinham.
O argumento do “escravo natural” gira em torno do problema dos talentos,
habilidades ou suposta capacidade dos nativos para agirem de maneira autônoma no mundo,
sem destruir ou ameaçar a existência dos homens “civilizados”. Aqui, a distinção implícita
é entre bárbaros e habitantes da cidade, uma distinção que apenas justapõe dois modos de
vida encontrados universalmente, coloca o indivíduo numa situação de escolha entre esses
dois modos de vida e aceita a força como a forma definitiva de mediação nos casos em que
os dois modos entram em conflito. Alguém poderia dizer que tal distinção é horizontal, uma
vez que distingue entre “pessoas internas” e “externas” a um plano lateral de ser (a cidade
e a floresta, terras semeadas e de estepe, zonas fixas e nômades). Mas a distinção
estabelecida entre “alma humana” e “alma animal” é uma distinção vertical, hierárquica, na
medida em que distingue, não entre dois modos de vida que poderiam existir lado a lado,
mas entre dois estados de ser que ocupam uma posição superior e inferior numa escala
vertical ou cadeia do ser. Contudo, a imagem de uma escala ordenada verticalmente, ou
hierarquia, é inerentemente ambígua, pois pressupõe uma matéria ou essência comum
compartilhada pelas várias criaturas dispersas ao longo de suas categorias, ou alguma fonte
comum da qual derivam todas as criaturas assim dispersas, uma meta comum para a qual
todas elas tendem, ou uma causa única da qual todas elas são efeitos. A metafísica da ideia
de cadeia-do-ser torna instável qualquer tentativa de estabelecer, com base nela, uma
distinção definitiva entre nativos e homens “normais”. Toda tentativa de estabelecer tal
distinção, se for executada rigorosamente, é de fato dirigida, em última análise, para a per-
cepção das qualidades comuns partilhadas não apenas por nativos e europeus mas também
pela natureza animal e humana em geral". Essa instabilidade conceituai é o outro lado do
panteísmo implícito em todas essas doutrinas neoplatônicas. Se todas as criaturas derivam
de Deus e aspiram a retornar a Ele, então todas elas devem participar de algum modo da
essência divina. Isso quer dizer que todas as criaturas são regidas e protegidas pela lei
adequada à plena realização dos seus atributos específicos da espécie - e podem ser usadas
por outras criaturas, inclusive pelo homem, somente para propósitos consoantes com a lei
que governa o todo e as suas partes. A ambiguidade do conceito de uma essência espiritual
e a instabilidade de qualquer tentativa de estabelecer distinções definitivas com base na
noção de realidade de uma cadeia-do-ser podem explicar a duradoura popularidade da tese
de degeneração
204 mais puramente fisicalista,TRÓPICOS
muito DOtempo depois que a teoria aristotélica do
DISCURSO
escravo natural e a teoria neoplatônica da inferioridade ontológica haviam cumprido o seu
curso138.
A tese da degeneração recebeu sua afirmação mais benigna - e de maior autoridade -
na obra de Buffon, cujos argumentos partiam da pressuposição dos efeitos deletérios do
ambiente do Novo Mundo sobre os seus habitantes, tanto animais quanto seres humanos. A
teoria do monstro criada por essa tese teve o seu defensor mais entusiasta em Cornelius de
Pauw139. Tanto a tese da degeneração quanto a do monstro recorrem a um critério/m- co, e
especificamente quantitativo, para diferenciar entre os tipos de humanidade a serem
classificados. Para Buffon, as espécies são geradas por fecundação cruzada de linhagens
genéticas, o que significa que as combinações genéticas podem ser classificadas de acordo
com a capacidade de sobrevivência das raças resultantes. Buffon não tem dúvida de que
todas as espécies da América, inclusive a humana, são inerentemente inferiores às suas
equivalentes do Velho Mundo. Com base na estatura, no vigor, na configuração etc., ele
coloca todas elas na categoria dos “degenerados”. Segue-se naturalmente a transição do
conceito de degeneração para o de monstruosidade - a ideia de que os atributos de
determinada espécie resultam de uma mistura “inatural” de linhagens associada à forma
incestuosa. Entretanto, o degenerado é apenas um tipo inferior em relação à espécie; o
monstro, em contrapartida, é o produto de uma mistura de tipos diferentes em relação à
espécie, cujas partes permanecem distinguíveis quanto à espécie e cuja totalidade constitui
uma anomalia. Buffon se limita a caracterizar os nativos da América como degenerados; De
Pauw transforma a degeneração em monstruosidade.
Obviamente, o que se deve ressaltar aqui não é a validade ou a não-validade dessas
diversas teorias, nem a maneira como poderiam antecipar teorias científicas posteriores, mas
os modos das relações que postulam entre o normal e o anormal. Tanto as concepções
aristotélicas quanto as ideias neo- platônicas sobre a relação entre o mundo animal e o
humano se estabelecem no modo da continuidade. As teorias fisicalistas de Sepúlveda,
Buffon, De Pauw e até de Lineu concebem essa relação no modo da contiguidade. Ora,
enquanto as coisas podem ser associadas nessas duas modalidades de relação, a da
continuidade gera decerto mais aceitação e mediação em grau do que a da contiguidade.
Evidentemente, nenhum dos dois modos é concebível sem o outro, de sorte que em qualquer
sistema de relações imaginadas é necessário determinar qual modo deve ser considerado
estrutural e qual modo deve ser funcional. Geralmente, essa determinação será ditada pelos
interesses do classificador - ou seja, se ele deseja construir um sistema em que devam ser
acentuadas ou as diferenças ou as semelhanças, e se o seu desejo é enfatizar as possibilidades
conflituais ou conciliadoras da situação que está descrevendo. Os dois modos de relação,
contínuo e contíguo, também engendram possibilidades diferentes para a práxis: a atividade
missionária e a conversão, de um lado, a guerra e o extermínio, de outro.
O uso do termo pacificação para designar políticas e práticas de genocídio é
importante, porque significa o advento de um quarto140 momento na história das relações
das raças no período entre a Renascença e o final do século XVIII. Esse novo momento é
assinalado pela aceitação geral da ideia do Nobre Selvagem. Como mostraram Boas e
outros, a ideia do Nobre Selvagem estava presente tanto no pensamento clássico quanto no
141 Ver Robert R. Palmer, The A#e of the Democrutic Revolulion: A Political History of Europe and America, 1760-1800, 2 vols.
(Princeton, 1959-64), vol. ], caps. 1-3, que discute ;i natureza problemática dos termos nobreza e aristocracia às vesperas
da Revolução Francesa.
142 Dispute of the New World, pp. 66 e ss.
obter um tratamento mais humano para os povos nativos, então teriam feito melhor se
tivessem enfatizado
206 os atributos que eles compartilham com os seus congêneres europeus
TRÓPICOS DO DISCURSO
e se tivessem insistido nos direitos do nativo à “vida, à liberdade e à propriedade”,
reivindicados parà as classes médias europeias da época. Mas a melhoria do tratamento dos
nativos não era uma consideração basilar daqueles que promoviam a ideia da sua nobreza.
O objetivo principal dos radicais sociais da época era minar o próprio conceito de nobreza
- ou, pelo menos, a ideia de nobreza ligada à noção de herança genética. No entanto, a ideia
de herança genética estava implícita no conceito de uma “raça” de “selvagens nobres”.
Como explicar essa contradição?
Obviamente, deve-se conceber que a ideia de uma raça de selvagens que são nobres
tinha o fito, dado o testemunho escrito do atraso dos povos nativos, de aviltar a própria ideia
de nobreza. O referente oculto ou reprimido do conceito de Nobre Selvagem é, em suma, o
da própria nobreza143. Esse conceito de nobreza se acha implicitamente caracterizado como
“selvagem” no nível figurativo da frase.
E havia conceito mais problemático, mais sujeito a sentimentos de ambivalência, da
parte do aristocrata e do burguês, do conservador e do radical, no final do século XVIII, do
que o de “nobreza”? Por mais que as classes médias da Europa se indignassem com a
aristocracia, o que elas desejavam era antes compartilhar seus privilégios que destruir a
distinção entre as partes “melhores” e “piores” da raça humana. Por mais que se
ressentissem das prerrogativas herdadas pelos nobres, em geral eles ainda reverenciavam a
ideia de uma hierarquia social, Poderiam imaginar que tal hierarquia se baseava no talento
e na riqueza, e não no nascimento, mas ainda pressupunham uma humanidade dividida em
“ricos” e “pobres”. E tais pressupostos é que tornaram absurdo o conceito de Nobre
Selvagem, e o seu uso no debate social fetichista.
E não poderia ser de outra maneira, pois na basé da ideia do Nobre Selvagem estava
a hipótese, compartilhada por ambos os lados dos debates sociais da época, da divisibilidade
da humanidade em partes qualitativamente diferentes. Que esse era de fato o caso foi
amplamente documentado por Louis Chevalier em sua obra pioneira, Classes
Trabalhadoras e Classes Perigosas em Paris durante a Primeira Metade do Século X I X .
Chevalier mostra que as tentativas, por parte das classes superiores europeias (aristocráticas
e burguesas), de classificar, compreender e controlar as massas urbanas criadas pela
industrialização se caracterizam pelo mesmo sentido de anomalia e pela mesma tendência
ao fetichismo observados nas tentativas anteriores de compreender os nativos do Novo
Mundo. De um lado, havia a tendência geral a negar o status de humanidade a essas novas
classes de indigentes urbanos; eles são vistos como animais, ferozes e selvagens, e trans-
formados em grotescos objetos de medo e angústia. De outro lado, há a tendência, por parte
daqueles qüe queriam ver neles o tipo da humanidade do futuro, a dotá-los de atributos
divinos, uma tendência que alcança o seu apogeu na designação que Marx atribui ao
proletariado, a do verdadeiro tipo de humanidade que ganhará o seu reino no final da
história144. Na base da discussão da natureza das novas “classes perigosas” da sociedade de
massa avulta uma angústia profunda e permanente quanto ao próprio conceito de
humanidade, um conceito que, por seu turno, tem origem numa identificação da verdadeira
humanidade com vinculação a uma classe social específica. Aquela parte das massas
urbanas que Hegel chamou a “turba de indigentes”145 desempenha no pensamento europeu
143 Cabe notar que o “k bon souvage” francês tem as mesmas implicações ideológicas que o “noble savage" inglês analisado
neste ensaio. Em ambos os casos, o efeito do uso é estabelecer uma distinção entre os supostos iipos de humanidace cm
bases visivelmente qualitativas, e não em bases superficiais como a cor da pele, a fisionomia ou o status social. 0 recurso a
critérios qualitativos como “bondade” e “nobreza” deve ser construído ironicamente, é claro, e só é compreensível no
contexto de um sistema social em que uma classe que reivindicou o privilégio aristocrático deixou de exibir as qualidades
de liderança e de governo que originariamente justificavam a sua reivindicação do status de nobre.
144 Louis Chevalier, Laboring Classes and Dangerous Classes in Paris during lhe First Half of the Nineteemh Century, trad.
Frank Jellinek (New York, 1973), pp. 362-372.
145 Georg Wilhelm Friedrich Hegel, liegel‘s Philoxophy ofRight, trad. T. M. Knox (Oxford, 1965), § 244, p. 150.
0 TEMA DO NOBRE SELVAGEM COMO FETICHE 207
do século XIX o mesmo papel que os nativos do Novo Mundo desempenhavam na sua
congênere do século XVIII. Assim como os “homens ferozes” do Novo Mundo, as “classes
perigosas” do Velho Mundo definem as limitações do conceito geral de “humanidade” que
inspirou e justificou a espoliação, por parte dos europeus, de qualquer grupo humano que
surgisse no caminho de sua expansão e a sua necessidade de destruir aquilo que não
poderiam consumir.
Deixem-me resumir: afirmei inicialmente que o próprio conceito de uma
“humanidade selvagem” constituía uma contradição em termos e que, em contrapartida, essa
contradição refletia uma ambiguidade acerca da natureza dessa “humanidade” de que tanto
se orgulhavam os europeus do começo da era moderna. A proximidade de povos inteiros
que diferiam, no aspecto exterior e no modo de vida, dos colonizadores europeus do Novo
Mundo bastava para situar essa ambiguidade no primeiro plano da consciência. Assim, a
anomalia original das primeiras caracterizações dos nativos do Novo Mundo cedeu lugar a
dois modos opostos e, em última análise, contraditórios de conceber a relação entre os
europeus e os nativos. De um lado, concebia-se que os nativos apresentavam uma
continuidade em relação àquela humanidade de que se gabavam os europeus; e era esse
modo de rela-
çao que fundamentava a política de proselitismo e conversão. De outro lado, poder-
se-ia conceber
208 que os nativos existiamTRÓPICOS
apenas em contiguidade com os europeus,
DO DISCURSO
representavam uma raça inferior da humanidade ou uma superior, mas, em todo caso,
essencialmente diferente da raça europeia; e foi esse modo de relação que fundamentou e
justificou as políticas de guerra e extermínio adotadas pelos europeus em todo o século XVII
e na maior parte do século XVIII. Porém, se os nativos eram concebidos em continuidade
com relação à humanidade de que os europeus reivindicavam ser os únicos detentores, ou
como apenas contíguos a essa humanidade, a simples dessemelhança dos modos de vida
dos nativos era suficiente para exacerbar o sentimento de angústia gerado pela ambiguidade
do conceito de humanidade.
Uma ambiguidade semelhante às relações subjacentes entre colonizador e nativo
também estava presente nas discussões europeias acerca das relações da classe social, onde
o conceito de nobreza desempenhava o mesmo papel que desempenhava o conceito de
humanidade nas discussões acerca das relações entre colonizador e nativo. O que a
burguesia e o seu porta-voz atacavam, na sua crítica à nobreza, era a pretensão da nobreza
de representar o tipo mais elevado de humanidade. Mas a atitude das classes emergentes da
Europa do século XVIII para com as classes nobres era um misto de amor e ódio, de inveja
e ressentimento. Queriam para si mesmas o que a aristocracia afirmava ser o seu direito
“natural”. Nesse contexto, o porta- voz das classes emergentes necessitava de um conceito
para exprimir ao mesmo tempo a sua rejeição das reivindicações de um privilégio por parte
da nobreza e o desejo de privilégios semelhantes para elas próprias. O conceito do Nobre
Selvagem servia perfeitamente às suas necessidades ideológicas, pois ao mesmo tempo
minava a reivindicação da nobreza de um status humano especial e estendia esse status ao
conjunto da humanidade. Todavia, essa extensão foi feita apenas em princípio. De fato, a
reivindicação da nobreza não pretendia chegar aos nativos do Novo Mundo nem às classes
mais baixas da Europa, mas apenas à burguesia. Que as coisas eram assim vê-se no fato de
que, tão logo as classes médias estabeleceram o seu direito a reivindicar uma humanidade
idêntica à que antes era reivindicada somente pela nobreza, voltaram-se imediatamente para
a tarefa de desu- manizar as classes inferiores a elas da mesma forma que, nos séculos XVII
e
XVIII, os europeus em geral haviam feito com os nativos do Novo Mundo.
Afirmei que o fetichismo é o ato de confundir a forma de uma coisa com o seu
conteúdo, ou o ato de tomar a parte pelo todo, elevando a forma ou a parte ao status de um
conteúdo ou de uma essência do todo. Desde a Renascença até o final do século XVIII, os
europeus tenderam a fetichizar os povos nativos com que entraram em contato,
considerando-os simultaneamente formas monstruosas de humanidade e objetos
qüintessenciais de desejo. Daí os impulsos alternados para exterminar e redimir os povos
nativos. Ainda mais fundamental, porém, na consciência europeia dessa época era a
tendência a fetichizar o tipo europeu de humanidade como a única forma possível que a
humanidade em geral poderia assumir. Entretanto, esse fetichismo de raça logo se
transformou numa outra forma, e mais virulenta: o fetichismo de classe, que forneceu as
bases da maioria dos conflitos sociais verificados na Europa a partir da Revolução Francesa.
0 TEMA DO NOBRE SELVAGEM COMO FETICHE 209
4
OS TRÓPICOS DA HISTÓRIA
A ESTRUTURA PROFUNDA D~E A CIÊNCIA NOVA
numa distinção entre a revelação direta das relações apropriadas do homem com
Deus, com a natureza e com o homem (outorgada aos hebreus através de Abraão,
de Moisés e dos Profetas, e aos cristãos através de Jesus, dos Apóstolos e da Igreja)
e a revelação indireta da própria Criação, sobre a qual se funda a sabedoria dos
gentios. Por terem o benefício do conhecimento direto do que Deus proibia aos
homens, os antigos hebreus e os cristãos possuíam regras pelas quais se pautarem
na construção de comunidades que talvez escapassem ao destino dos gentios e
realizassem a pouco e pouco a communiías ideal que prefiguraria, ainda que não a
representasse perfeitamente, a Cidade de Deus prometida aos eleitos no Céu (§
948).
Vico é bastante explícito e bastante coerente na defesa dessa concepção da
história dos povos eleitos do mundo. A história desses povos não apresenta os
problemas de interpretação que têm as histórias dos povos gentios (ou pagãos); pois
os princípios que permitem interpretar a história das sociedades hebraica e cristã
estão contidos nas mesmas Sagradas Escrituras que fornecem as bases e os
princípios norteadores do seu governo. Seus problemas de filósofo da história são
dois: (1) explicar o nível de civilização alcançado pelos povos pagãos, que, nos
exemplos mais eminentes (os gregos e os romanos), se aproximaram bastante
daquele a que chegaram os povos cristãos, mas que foi alcançado sem o benefício
da revelação direta do tipo desfrutado pelos hebreus e cristãos; e (2) determinar a
relação entre os ciclos de crescimento e declínio manifestados na história dos povos
pagãos (e principalmente dos gregos e romanos) e a história progressiva dos
hebreus e cristãos. Esses dois problemas o conduzem a investigações em dois níveis
de existência histórica: o das sociedades pagãs específicas e o do gênero global das
sociedades, pagã, hebraica e cristã. Assim, para resolver os dois problemas acima
discriminados, Vico se viu forçado a criar dois tipos de leis históricas: o tipo intra-
social (que governa a dinâmica dos diferentes tipos de sociedades) e o inter-social
(que rege as relações estruturais entre os diferentes tipos de sociedades).
Vico resolveu os dois problemas de maneira semelhante a Hegel, ou seja,
estabeleceu uma distinção qualitativa entre diferentes tipos de ordens sociais (pagã
e cristã) e, depois, traduziu essa distinção em termos espaciais e temporais,
tornando o que era contíguo no espaço (grego, romano, hebraico, cristão)
convergente no tempo, de tal modo que os três primeiros pudessem ser tratados
como componentes da síntese realizada no quarto. A cultura grega é caracterizada
como excepcional em virtude do brilhantismo de sua realização cultural, e a romana
é considerada excepcional em virtude de sua longa duração e de suas realizações
no âmbito da política e da lei. Assim como em Hegel, a Grécia é a “poesia” e Roma,
a “prosa” do mundo dos povos pagãos.
A cultura hebraica, em comparação, é apresentada como uma consequência
do império da lei divina parcialmente conhecida, ou seja, como um conjunto de
proibições (especificamente contra a impureza e a divinação), o que a tornou mais
justa do que qualquer coisa realizada pelos povos pagãos. E a cultura cristã é
considerada uma consequência de uma revelação definitiva de Deus ao homem, o
que não apenas o manteve na senda da justiça como lhe permitiu expandir-se e
OS TRÓPICOS DA HISTÓRIA 215
florescer, a ponto de na própria época de Vico (graças às suas luzes) acenar com a
promessa de abarcar o globo.
Essas quatro correntes culturais - grega, romana, hebraica e cristã - se unem
e se fundem numa ordem social nova e definitivamente progressiva na Europa
Ocidental depois da queda do império Romano, entre os séculos V e XII, após o
quê o conjunto da história humana é assentado numa nova base, que permite a
antecipação de uma época na qual o mundo todo será regido por princípios cristãos
de governo, na qual a relação verdadeira e correta entre poder e justiça não somente
será conhecida mas também posta em prática para criar um Céu virtual na terra,
uma imagem da Nova Jerusalém prometida nas Escrituras.
Ora, tudo isso lembra Hegel e, como Karl Lõwith observou em Mean- ing of
History, indica uma possível filiação do pensamento de Vico à tradição joaquita,
ou milenarista, do final da Idade Média, da qual se supõe algumas vezes tenha o
próprio Hegel derivado. Mas, a admitir uma semelhança com Hegel e com as
concepções milenaristas do sentido da história humana, a significação dessa
semelhança é obscura. Além disso, sua utilidade como recurso heurístico é assaz
questionável. Tendo em vista as semelhanças superficiais entre as tradições
viquiana (e hegeliana) e joaquita (ou milenarista) da especulação meta-histórica, a
verdadeira originalidade das reflexões históricas de Vico é totalmente obscurecida,
ou, pelo menos, reduzida a um grau em que tem de receber menos crédito do que
merece. Pois no âmago do pensamento de Vico reside um princípio de
interpretação, ou, para fazer uso de um termo revivido recentemente, um “princípio
hermenêutico”, do qual pensador algum na Europa antes de Hegel sequer
vislumbrou a possibilidade. Esse princípio deriva da percepção, original em Vico
na forma que ele lhe deu, de que a própria fala fornece a chave para a interpretação
dos fenômenos culturais e das categorias pelas quais podem ser caracterizados os
estágios evolutivos de uma dada cultura. Aqui, a distinção básica se dá entre
expressão poética, de um lado, e representação em prosa discursiva, de outro. Na
sua concepção, a primeira é uma força criativa e ativa graças à qual a consciência
apreende o seu mundo; a segunda, uma operação receptiva e passiva na qual se
refletem “as coisas como elas são”. O efeito desses dois aspectos do discurso sobre
a consciência estabelece na própria consciência uma tensão que gera uma tendência
do pensamento a transcender-se e a criar, a partir da notória inadequação da
linguagem ao seu objeto, as condições para o exercício da sua liberdade essencial.
Qual é a natureza do poder criativo da linguagem? A resposta a essa pergunta
não pode ser encontrada nas observações gerais de Vico sobre as funções da
imaginação poética (como quando afirma que a função da grande poesia é inventar
fábulas convenientes ao entendimento popular, estimular e sancionar a fé [§ 376]);
deve, antes, ser procurada na sua análise da natureza da metáfora, no começo do
Livro 2 da Ciência Nova.
A teoria da metáfora criada por Vico é desenvolvida no contexto de sua
discussão da “lógica poética” e funciona como uma chave para essa discussão. No
tratamento de Vico, a lógica poética designa as formas pelas quais as coisas, tal
como são apreendidas pelo homem primitivo, são significadas (§ 400). Uma vez
216 TRÓPICOS DO DISCURSO
O que é metafísica, na medida em que contempla as coisas em todas as formas do seu ser, é lógica
na medida em que considera as coisas em todas as formas pelas quais podem ser significadas. Do mesmo
modo, assim como a poesia foi por nós considerada acima uma metafísica poética, na qual os poetas
teológicos imaginavam que os corpos eram na maioria dos casos substâncias divinas, assim também essa
mesma poesia é considerada como lógica poética, pela qual as significa (§ 400).
A conexão entre metafísica, a ciência das coisas em todas as formas do seu
ser, e lógica, a ciência das formas pelas quais elas podem ser significadas, é
explicada na filosofia da linguagem que Vico desenvolve nesse capítulo de seu
livro. A lógica poética, lógica do homem primitivo, afirma Vico, difere da lógica
dos homens modernos (ou, como ele os chamou, homens reflexivos) pela direção
que o pensamento adota na sua atribuição de características às coisas. Nos tempos
primitivos, o pensamento vai do familiar para o não-familiar e do concreto para o
que chamaríamos abstrato, de modo que as “formas pelas quais as coisas são
significadas” nos tempos primitivos devem ser sempre interpretadas como a
projeção no não-familiar de atributos que parecem caracterizar o familiar. As
origens do conhecimento humano, e afortiori da sociedade e da cultura do homem,
serão encontradas nos poderes onomatéticos dos homens primitivos, o poder de
“dar nomes” aos objetos, de distingui-los de outros objetos e, nesse processo, de
dotá-los de atributos específicos. Daí a identificação de Vico do sentido do logos
grego com palavra e lógica, visto que a lógica dos homens primitivos não era outra
coisa senão a operação mediante a qual eles “nomeavam” e, portanto,
“compreendiam” os objetos e processos desenvolvidos no mundo circundante e
dentro de si mesmos. A primeira linguagem, diz ele, “não era uma linguagem de
acordo com a natureza das coisas com as quais lidava... mas um discurso fantástico
[no sentido de imaginativo] que fazia uso de substâncias físicas dotadas de vida e
em sua maioria imaginadas como divinas” (§ 401). Essas identificações primitivas
do mundo não-familiar e ameaçador de coisas naturais com os atributos familiares
da natureza humana, e principalmente dos sentidos e paixões, é que são, supõe
Vico, os verdadeiros conteúdos e sentidos dos mitos e fábulas legados a nós pelos
povos primitivos.
Porém não basta interpretar esses mitos e fábulas como simples alegorias,
OS TRÓPICOS DA HISTÓRIA 217
pois a lógica poética, dada a natureza metafórica original de seus conteúdos, tem a
sua própria dinâmica interior ou, como poderíamos dizer, dialética. Assim, a
relação entre a linguagem e o mundo das coisas não é simplesmente reflexiva. As
representações linguísticas primitivas do mundo das coisas não são apenas imagens
invertidas do mundo dadas na percepção sensorial, como o seriam se fossem apenas
um produto do pensamento que reflete sobre o mundo das coisas numa linguagem
restrita a metáforas, baseadas na identificação do mundo exterior com os estados
emocionais interiores. Pois as identificações metafóricas têm a sua própria lógica,
que não é a do silogismo nem a do sorites (§ 499), as duas concepções da cadeia de
raciocínio que Vico conhecia a partir de fontes clássicas, mas, antes, a lógica das
figuras de linguagem ou tropos, os “tópicos sensoriais” do homem primitivo (§§
495-98).
Vico argumenta que todas as figuras de linguagem podem ser reduzidas a
quatro modos ou tropos: metáfora, sinédoque, metonímia e ironia (§ 404-9). Essa
asserção baseia-se em Aristóteles, mas com uma diferença:
Vico limita o sentido da operação mental indicada por cada tropo. Ademais, faz da
metáfora um tipo de tropo primário (genérico), de modo que a sinédoque e a
metonímia são consideradas refinamentos dela, e a ironia é vista como seu oposto.
Dessa maneira, já que a metáfora constitui a base de toda fábula (ou mito), a fuga
da linguagem metafórica e a transição para o uso de uma linguagem
conscientemente figurativa (e, desse modo, para o discurso literal e denotativo, ou
em prosa) se tornam possíveis pelo surgimento de uma sensibilidade irônica. É
assim que a dialética do discurso figurativo (tropológico) em si se torna concebível
como o modelo por meio do qual se pode explicar a evolução do homem da
bestialidade à humanidade. Ou, para dizer de outra forma, a teoria da transformação
metafórica serve de modelo para uma teoria da autotransformação da consciência
humana em história. O modo como Vico desenvolveu uma visão como essa só pode
ser exposto depois que tivermos considerado a sua teoria dos tropos.
Segundo Vico, o tropo “mais luminoso e, portanto, o mais necessário e
frequente” é a metáfora, mas a metáfora de um tipo específico, isto é, aquela em
que “sentido e paixão” são atribuídos a “coisas insensíveis”. Foi por esse tipo de
projeção metafórica que “os primeiros poetas atribuíram aos corpos o ser de
substâncias animadas, com capacidades medidas pelas suas próprias, a saber,
sentido e paixão, e desse modo as converteram em fábulas” (§ 404).
É preciso lembrar que, aqui, o termo “fábula” se refere, não a uma estória,
mas a um tipo de operação nomeativa na qual o não-familiar é identificado com o
familiar, de modo a constituir um campo de percepção povoado de seres
particulares (fantásticos), cada um dos quais está relacionado com algum aspecto
de um eu apreendido por semelhança e por diferença. Dessa forma, por exemplo, a
identificação, por parte do homem primitivo, do trovão com a raiva, provocada pelo
medo que tinha do som, e o seu reconhecimento dela como o estado emocional que
ele associava naturalmente a esse som pressupõem uma semelhança entre tipos de
ruídos (o emitido por um homem furioso e o ouvido no trovão) e uma diferença
entre eles (baseada no fato de que os seus volumes são desiguais). A diferença no
218 TRÓPICOS DO DISCURSO
Assim, o termo “mortais” era originária e propriamente aplicado apenas aos homens, como os
únicos seres cuja mortalidade era sempre notória. O uso de “cabeça” em lugar de homem ou pessoa, tão
frequente no latim vulgar, se deveu ao fato de que nas florestas só a cabeça de um homem pode ser vista à
distância. O próprio termo “homem” é abstrato, compreendendo, como num gênero filosófico, o corpo e
todas as suas partes, a mente e todas as suas faculdades, o espírito e todas as suas inclinações (§ 407).
e dos divinos e espirituais, graças à sua sabedoria religiosa e seu domínio da magia
e do ritual. Esse modo de práxis social, característico da família, torna-se, por seu
tumo, a base para a atribuição de características específicas aos deuses; são
identificados como capazes de exercer sobre os homens o mesmo tipo de poder que
os pais exercem sobre as famílias, de modo que, por analogia, as diferenças radicais
percebidas entre os deuses e os homens são conciliadas, ao menos parcial e
seletivamente, pela progressiva humanização dos deuses e pela progressiva
divinização dos pais.
A diferenciação interna de condição, funções, privilégios e responsabilidade
dentro da família com base na força é acompanhada da extensão do poder dos
patriarcas aos forasteiros expulsos das florestas e planícies abaixo, onde a luta
primeva de todos contra todos continua a eliminar os mais fracos ou a forçá-los a
buscar a proteção das famílias estabelecidas nas cavernas acima. Esses refúgios
formam a base dos socii que, em troca da proteção dos patriarcas, realizam tarefas
servis para eles, da mesma forma que os primeiros homens trabalhavam como
escravos para os deuses. Isso cria uma divisão na humanidade socializada, tanto na
prática quanto na consciência, porque os membros da classe servil não têm o status
de homens, são definidos como feras e tratados como tais. Dessa forma, dá-se aos
patriarcas uma oportunidade para a definição posterior de sua própria humanidade
por exemplo negativo, não em comparação com os deuses, mas com os homens
animais de cujo trabalho passam a depender cada vez mais. Assim, as sociedades
heróicas se formam das sociedades divinas, e a idade dos deuses dá lugar à idade
dos heróis (aristocracias).
A consciência dessas sociedades heróicas é expressa no modo da iden-
tificação metonímica. É essencialmente redutiva, não no modo da metáfora, mas
principalmente no da metonímia. Pois entre os mais fortes e mais poderosos e entre
os mais fracos e mais servis, a ordem social é mantida mediante a aceitação do fato
de que é da natureza das coisas a ordem social dividida. Isto é, tanto entre
governantes quanto entre governados, o ato de governar é confundido com o
governo; a forma e acidente da soberania são confundidos com a sua essência ou
sujeito; e o efeito da soberania é confundido com a causa de ser ela o que é. E tudo
isso de acordo com o princípio segundo o qual os mais vividos objetos da
experiência, neste caso os homens mais fortes e aterradores do grupo, são tratados
como os dados primitivos da consciência a que todas as apreensões extrínsecas da
existência humana se devem referir para a determinação de seu significado. Os
produtos culturais desse tipo de sociedade são similarmente metonímicos, porque
o estilo grandioso das epopeia s, que têm como matéria os feitos dos “heróis” ou
dos mais nobres dos homens, pressupõe a nobreza, a descendência divina, dos seus
protagonistas, e ressalta as diferenças essenciais entre os heróis e os homens
comuns. E o mesmo se dá com as leis desse período. Elas lidam em primeiro lugar
com os privilégios da nobreza que as preservam com receio de que os plebeus,
simplesmente por saberem que existe uma lei, passem a exigir uma lei para regular
as relações entre eles próprios e a nobreza.
A transição da idade dos heróis para a idade dos homens, do governo da
224 TRÓPICOS DO DISCURSO
aristocracia para o governo da lei que é concebida como mediadora entre as classes,
é efetivada, afirma Vico, por uma mudança na consciência entre as ordens
inferiores, mudança análoga à progressão do modo metonímico da percepção para
o modo sinedóquico. Pois a revolta da classe subserviente pressupõe a percepção
da unidade do indivíduo com a espécie e da espécie com o gênero. Portanto, de
conformidade com o princípio segundo o qual, na sinédoque primitiva, a
identificação sempre é feita com respeito aos atributos apreendidos do modo mais
sensível, essa percepção investe a classe servil da humanidade que a nobreza
originariamente reivindicara apenas para si.
A sinédoque primitiva toma a parte pelo todo ou a espécie pelo gênero. Ela
fornece, desse modo, a explicação da atribuição a si mesmos, por parte dos plebeus,
das qualidades originariamente atribuídas aos deuses e posteriormente
reivindicadas pela nobreza. Vico descreve a transição da idade heróica para a idade
humana da seguinte forma:
Os pais de família, tomando-se grandes pela religião e virtude dos seus ancestrais e mediante o
labor dos seus clientes, começaram a violar as leis de proteção e a governar os clientes com dureza. Quando
se desviaram assim da ordem natural, que é a da justiça, seus clientes se rebelaram. Mas, visto que sem
ordem (vale dizer, sem Deus) a sociedade humana não pode subsistir nem por um instante, a providência
levou os pais de famílias a se unirem naturalmente aos seus parentes em ordens contra os seus clientes.
Para pacificara estes, lhes concederam, na que foi a primeira lei agrária do mundo, a posse bonitária dos
campos, conservando para si mesmos o domínio mais favorável ou soberano da família. Surgiram assim
as primeiras cidades baseadas nas ordens reinantes de nobres. E, à proporção que declinava a ordem
natural, a qual se baseara, de acordo com o estado da natureza de então, na [superioridade de] tipo, sexo,
idade e virtude, a providência engendrou a ordem civil juntamente com as cidades. E a primeira de todas
[as ordens civis], a que mais se aproximava da natureza: a de que por força da nobreza da espécie humana
(pois, nesse estado de coisas, a nobreza só poderia basear-se na reprodução, à maneira humana, com
esposas tomadas sob os auspícios divinos) e, assim, em razão de um heroísmo, os nobres deveriam reinar
sobre os plebeus (que não contraíram matrimônio com tais solenidades) e, agora que terminaram os
governos divinos (sob os quais as famílias haviam sido governadas por auspícios divinos) os heróis deviam
governar em virtude da forma dos próprios governos heróicos, que a instituição básica dessas comunidades
deveria ser a religião salvaguardada dentro das ordens heróicas, e que através dessa religião todas as leis
civis e instituições deveriam pertencer apenas aos heróis. Mas, como a nobreza se tomara agora uma
dádiva da fortuna, a providência suscitou entre os nobres a ordem dos próprios país de famílias, como
sendo naturalmente mais digna por causa da idade. E entre os pais fez com que os mais animosos e mais
robustos se erigissem em reis, com o dever de liderar os outros e organizá-los em ordens que pudessem
deter e intimidar os clientes que se rebelavam contra eles (§ 1100).
Mas, com o correr dos anos e cora o desenvolvimento muito maior da mente humana, a plebe dos povos finalmente se deu conta
das pretensões desse heroísmo e compreendeu que ela própria tinha a mesma natureza humana que os nobres, e, portanto, insistiu
em entrar nas instituições civis das cidades. Dessa forma [...] nasceram as repúblicas populares... Em tais
repúblicas povos inteiros, que têm em comum o desejo de justiça, usufruem leis que são justas porque são
OS TRÓPICOS DA HISTÓRIA 225
relações sociais, mas antes por uma mudança de consciência que corresponde à
identificação sinedóquica do geral com o específico, ou do específico com o
exemplo individual de humanidade. Dessa forma, argumenta Vico:
Mas finalmente, com a abertura de escolas nas universidades da Itália e com o ensino das leis
romanas contidas nos livros de Justiniano, leis baseadas na lei natural das gentes humanas, as mentes agora
mais desenvolvidas e mais inteligentes se dedicaram ao cultivo da jurisprudência da eqüidade natural, que
torna o povo comum e os seus nobres iguais em direitos civis, da mesma forma que são iguais na natureza
humana. [...] Os plebeus, uma vez que sabem ter natureza igual à dos nobres, naturalmente não consentirão
em permanecer inferiores a eles nos direitos civis: e alcançarão a igualdade nas repúblicas livres ou sob as
monarquias (§ 1086, 1087; o grifo é nosso).
Por mais de meio século, o falecido Benedetto Croce trabalhou para estabelecer
o caráter de originalidade de Vico e o seu direito a um lugar proeminente, para não
dizer único, na história do pensamento europeu. Secundado e apoiado pelo colega
Fausto Nicolini, Croce reiterava firmemente a sua crença na amplitude e fecundidade
da obra de Vico. E a fama sólida de que Vico goza atualmente, bem como o elevado
prestígio de que desfruta em tantas disciplinas diferentes, pode ser atribuído em grande
parte à incansável defesa que fizeram de sua causa. Negar isso seria impreciso e
mesquinho.
Croce e Nicolini eram advogados formidáveis e donos de uma riqueza quase
assustadora de conhecimento, erudição e sagacidade polêmica. Mas o que os motivou
foi tanto o orgulho nacional, o bairrismo e um provável sentimento pessoal de posse
quanto o respeito à filosofia de Vico. Ademais, a estratégia de sua defesa era
questionável. Um dos seus objetivos era apresentar Vico como precursor da “filosofia
do espírito” crociana, e, para isso, tinham de negar a legitimidade das tentativas de
Vico de fundar uma ciência da sociedade e de elaborar uma filosofia da história. Pois
essas duas atividades eram anátemas para a visão de mundo crociana. Dessa forma,
mesmo que Croce e Nicolini tenham trabalhado arduamente para consolidar a repu-
tação de Vico no século XX, a concepção que tinham de sua obra era tão tendenciosa
quanto limitada. E boa parte da divergência atual em torno da natureza exata da
contribuição de Vico ao pensamento moderno tem origem na estreita definição, por
parte deles, “do que está vivo e do que está morto” na filosofia de Vico.
Ora, a determinação “do que está vivo e do que está morto” em sistemas
filosóficos anteriores era uma operação crociana característica, que ele executava com
particular insistência. Na condição de árbitro autonomeado do gosto peio humanismo
europeu na sua fase moderna, Croce se sentia compelido a demonstrar com frequência
mais que normal as suas capacidades de analisador. Basicamente, quase todo grande
pensador e escritor europeu acabou instalado num lugar preciso de uma hierarquia de
realizações onde a própria filosofia de Croce fornecia o teste final de ortodoxia. Assim,
230 TRÓPICOS DO DISCURSO
por exemplo, Hegel ficou junto do summum bonum; De Sanctis, Goethe, Kant, Dante,
Aristóteles e Sócrates foram colocados de maneira apropriada para que pudessem
entrevê-lo; a Marx foi permitido apenas um vislumbre refletido, enquanto Freud foi
relegado às regiões mais profundas, onde a luz dificilmente penetrava. A posição de
Vico era mais difícil de determinar; pois ele era, ao mesmo tempo, o descobridor do
princípio formador da hierarquia e o seu possível subversor.
Para Croce, Vico era (como Goethe o chamou) “der Altvater” - o patriarca,
paradigma de um modo peculiar de “sentir” a filosofia italianamen- te, embora a
“pensasse” ao mesmo tempo cosmopoliticamente146. Croce confessava um sentimento
de apego filial a Vico147, mas, apropriadamente, o sentimento era de clara
ambivalência. Era grato ao “patriarca” por lhe fornecer uma sanção clássica à sua
própria revolta contra as ortodoxias predominantes de sua geração, o positivismo e o
vitalismo, livrando-a assim da acusação de mera excentricidade. Mas não podia
perdoar Vico por aparentemente fornecer justificativas semelhantes para os sistemas
que ele queria rejeitar. Se Vico representava a primeira antecipação visível da própria
filosofia do espírito de Croce, era também o primeiro praticante sofisticado das aberra-
ções intelectuais que Croce mais odiava, a sociologia e a filosofia da história.
Essencialmente, portanto, muito mais que os outros pensadores que Croce respeitava,
Vico tinha de ser afirmado e contestado, exaltado e negado; pois, se Vico era
justificado em sua tentativa de fundar as ciências da sociedade e da história, então todo
o sistema de Croce fora mal concebido, o seu papel cultural fora definido de modo
incorreto, e grande parte de sua atividade carecia de valor.
A combinação de reverência e reserva que marcaram firmemente os
comentários de Croce sobre Vico estava presente nas suas primeiras referências a ele.
Croce leu pela primeira vez a Scienza Nuova seriamente, durante o seu recolhimento
de antiquário em Nápoles, entre 1886 e 1892148. Voltou ao estudo sistemático de toda
a filosofia de Vico somente depois de 1893, quando seu ensaio “A História Incluída
sob o Conceito Geral de Arte” o envolveu no debate em curso sobre a natureza do
conhecimento histórico e o transformou de antiquário em filósofo. Nesse ensaio,
Croce afirmava que, embora a história seja uma arte e não uma ciência, é, não obstante,
uma forma de cognição - e não mera ilusão, narcótico, ou passatempo, como ensi-
navam as escolas de estética da época. Todavia, não explicou de que modo uma
intuição pura (que ele considerava ser a essência da arte) poderia ser imediata e,
também, ter um conteúdo cognitivo (como queria asseverar acerca das intuições
históricas); e, aparentemente, ele não havia resolvido naquela época a questão para a
sua própria satisfação. Mas dentro em pouco ele o faria, e a sua solução, bem como a
146 Bencdetlo Croce, 1M Filosofia di GiambatlisUi Vico, 5. ed. rev. (Bari, 1953), prefácio à 1. ed., p. viii.
Doravante citada no texto. Todas as citações dessa obra serão dadas nas versões fornecidas por R. G. Collingwood
em sua tradução, The Philosophy of Giambattista Vico (New York, 1913). Como quase todas as citações são tiradas
dos capítulos X, XI, XIII e XX, não forneci os números de páginas específicos da versão inglesa. Além disso, mudei
as traduções de Collingwood nas passagens em que, a meu ver, sua tendência a “anglicizar” o pensamento dc Croce
obscureeeu o seu tom italiano distintivo.
147 Fausto Nicolini, Croce (Torino, 1962), p. 252.
148 Benedetto Croce, “Contributo alia Critica de Me Stesso”, cm sua Etica e Política (Bari, 1956), p. 392.
0 QUE ESTÁ VIVO E O QUE ESTÁ MORTO NA CRÍTICA DE CROCE A VICO 231
sua atitude com relação a Vico (que se reduzia ao mesmo problema), é assinalada nas
referências de passagem que faz ao pensamento de Vico nesse ensaio inicial. Cita Vico
duas vezes - uma com desdouro (juntamente com Herder), como um representante da
“filosofia da história”, e uma com aprovação, conquanto de maneira vaga, como uma
autoridade na verdadeira natureza da faculdade poética149.
Em seu esboço autobiográfico escrito alguns anos depois, Croce diz que, na
época do ensaio, Vico era apenas um fator entre muitos (junto com De Sanctis,
Labriola e os estéticos alemães) na economia da sua vida intelectual150. Entretanto,
durante os dez anos seguintes, Vico passou a ocupar pouco a pouco o centro do
pensamento de Croce, sugerindo os postulados de capacitação da embrionária filosofia
do espírito e dos meios de finalmente distinguir de maneira precisa entre história, arte,
ciência e filosofia. Desse modo, por volta de 1902, quando Croce publicou a sua
Estética, havia creditado a Vico não apenas a descoberta da ciência da estética mas
também a percepção, se bem que imprecisa, da verdadeira relação entre a poesia e a
história151. Mais especificamente, Vico havia formulado “novos princípios da poesia”
e analisado corretamente o “momento poético ou imaginativo” na vida do espírito
(Estética, pp. 255-56). Na realidade, ele não havia compreendido a natureza dos outros
momentos da vida do espírito - o momento lógico, o ético e o econômico; e essa falta
de entendimento das outras dimensões da atividade do espírito levara-o a fundir
“história concreta” com “filosofia do espírito”, lançando-se desse modo nos abismos
da “filosofia da história” (ibid.., p. 256). Felizmente, afirmava Croce, a “ciência nova”
de Vico - isto é, a sua epistemologia - nada tinha a ver com a “história concreta e
particular, que se desenvolve no tempo”. Era, antes, uma “ciência do ideal, uma
filosofia do espírito”, que se ocupava das “modificações da mente humana” {ibid., p.
255). Por conseguinte, poderia ser desembaraçada da aplicação errônea delas à história
concreta; e Vico poderia ser elogiado por tê-la descoberto, mas criticado por tê-la
utilizado de maneira imprópria.
De acordo com a análise inicial de Croce, então, Vico fracassara em duas
avaliações: sua investigação da vida do espírito não fora completa; e ele confundira
história concreta com filosofia do espírito, gerando assim as falácias da filosofia da
história. A filosofia da história, asseverava Croce, era impossível porque ela se
fundamentava na crença de que a “história concreta poderia ser submetida à razão” e
de que “épocas e eventos poderiam ser deduzidos conceitualmente” (ibid.). Era a
contrapartida da fantasia do filósofo nutrida pelo cientista social, isto é, a crença de
que se poderia derivar do estudo dos acontecimentos individuais leis universais do
processo social, o que gerava as falácias do sociologismo. Na verdade, contudo, se
fosse desenvolvida corretamente, a aguda visão de Vico da “autonomia do mundo
estético” e sua descoberta do elemento cognitivo na poesia forneciam um antídoto
tanto para a filosofia da história quanto para o sociologismo (ibid., p. 258). O gênio
149 Benedetto Croce, “La Storia Ridotta sotto il Concetto Genemle dell’Arte”, em seus Primi Saggi (Bari, 1951), p.
211 ep. 23, n. 1,
150 Croce, “Contributo”, p. 392.
151 Benedetto Croce, Estética come Scienza deWEspressione e Linguística, 9. ed. rev. (Bari, 1950), pp. 242, 246.
Doravante citada no texto.
232 TRÓPICOS DO DISCURSO
152 Benedetto Croce, “Les Etudes relatives à la théorie de 1’histoire en Italie durant íes quinze dernières années”,
originariamente publicado na Revue de synthèse historique (Paris, 1902) e reproduzido em Primi Saggí, p. 184.
Doravante citado no texto.
0 QUE ESTÁ VIVO E O QUE ESTÁ MORTO NA CRÍTICA DE CROCE A VICO 233
estudos importantes na história da filosofia, dos quais os ensaios sobre Hegel e Vico
foram os mais importantes*. Nos quatro volumes que compõem a “filosofia do
espírito”, Vico figura eminentemente como guia e autoridade, embora com as reservas
habituais acerca de sua incompletude e da inadequação de seu sistema total.
Realmente, a atividade de Croce durante esse tempo poderia ser caracterizada como
um preenchimento, um completamento e uma correção do sistema de Vico à luz da
sua crítica original desse sistema. Decerto, a sua leitura de Vico, tal como aparece em
sua obra magistral, A Filosofia de Giambattista Vico (1911), é pouco mais que uma
avaliação da “nova ciência” à luz da sua aproximação, ou afastamento, dos dogmas da
filosofia acabada de Croce.
O Capítulo III de A Filosofia de Giambattista Vico, intitulado “A Estrutura
Interna da Ciência Nova”, expõe os princípios críticos que orientaram Croce na sua
leitura final de Vico. Todo o sistema de Vico, explica Croce, abrange efetivamente
três diferentes “classes de investigação; filosófica, histórica e empírica; e no todo
contém uma filosofia do espírito, uma história (ou congérie de histórias) e uma ciência
social”. A primeira classe
de investigação se ocupa das “ideias” sobre fantasia, mito, religião, juízo, moral,
força e lei, o certo e o verdadeiro, as paixões, a Providência, e assim por diante -
em outras palavras, “todas as [...] determinações que afetam o curso ou
desenvolvimento necessário da mente ou espírito humano”. Da segunda classe
fazem parte o esboço que Vico traça da história universal do homem após o Dilúvio
e o das origens das diferentes civilizações; a descrição das idades heróicas na Grécia
em Roma; e a análise do costume, da lei, da língua e das constituições políticas,
bem como da poesia primitiva, das lutas das classes sociais e do colapso de
civilizações e de seu retorno a uma segunda barbárie, como no começo da Idade
Média na Europa. Por fim, a terceira classe de investigação relaciona-se com a
tentativa de Vico de “estabelecer um curso (corso) uniforme da história nacional”
e se ocupa da sucessão de formas políticas e mudanças correlativas tanto na vida
teórica quanto na vida prática, bem como das suas generalizações acerca do
patriciado, dos plebeus, da família patriarcal, da lei simbólica, da linguagem
metafórica, da escrita hieroglífica e assim por diante (Filosofia, pp. 37-38)153,
Croce argumenta que Vico confundiu irremediavelmente esses três tipos de
investigação, fundiu-os em seus relatos e cometeu um grande número de erros de
categoria no processo de expô-los na Ciência Nova. A obscuridade da Ciência Nova
resulta, afirma ele, não da profundidade da percepção básica, mas de uma confusão
intrínseca, isto é, da “obscuridade das suas [de Vico] ideias, de um conhecimento
deficiente de certas conexões; vale dizer, de um elemento de arbitrariedade que
Vico introduz em seu pensamento, ou, para dizê-lo de maneira mais simples, de
erros evidentes” (ibid., p. 39). Vico não percebera corretamente a “relação entre
filosofia, história e ciência empírica". Tendia a “converter” uma na outra (ibid., p.
40). Assim, tratava a “filosofia do espírito” primeiramente como ciência empírica,
depois como história; tratava a ciência empírica ora como filosofia, ora como
romano. Essa “rarefação” da história de Roma numa teoria geral da dinâmica social
revelava a interpretação errônea de Vico do modo como são geradas as leis empíricas,
afirmava Croce. Em vez de generalizar a partir de casos concretos e, dessa maneira,
idear uma descrição sumária dos atributos partilhados por todos os exemplos do con-
junto, contra a qual poderiam ser delineadas as diferenças entre os exemplos, Vico
procura estender as características gerais do conjunto romano de modo a incluir todos
os conjuntos que se assemelham aos romanos em seu caráter pagão. Entretanto, a
inadequação da lei de Vico foi revelada pelo grande número de exceções a ela, cuja
existência até Vico tinha de admitir (ibid. pp. 139-131). Se Vico não se tivesse
extraviado por lealdade à sua interpretação tendenciosa da história romana, a “teoria
empírica dos ricorsi" jamais seria forçada a admitir tantas exceções (ibid., p. 133). E,
liberto da necessidade de submeter outras sociedades ao modelo fornecido pelo exem-
plo romano, Vico poderia ter logrado aplicar às suas diversas histórias a verdade
contida na teoria dos ricorsi.
A verdade contida nessa teoria era uma verdade filosófica, a saber, a de que “o
espírito, tendo atravessado seus estágios progressivos, depois de ter- se elevado
sucessivamente da sensação ao universal imaginativo e racional, da violência à
eqüidade, deve, em conformidade com sua natureza eterna, seguir de novo o seu
curso, reincidir na violência e na sensação e daí renovar o seu movimento ascendente,
recomeçar o seu curso” (ibid., p. 136). Como um guia geral para o estudo das
sociedades históricas específicas, essa verdade atenta para a “conexão entre períodos
predominantemente imaginativos e predominantemente intelectuais, espontâneos e
reflexivos, os segundos se originando dos primeiros por um aumento de energia e a
eles retornando por degeneração e decomposição” (ibid., p. 133-134). Em todo caso,
a teoria só descreve o que acontece em geral em todas as sociedades; nem prescreve
o que deve acontecer em determinadas épocas e locais, nem prediz o resultado de uma
tendência particular. Distinções como as sancionadas por Croce - por exemplo, as
existentes entre “períodos predominantemente imaginativos e predominantemente
intelectuais [...]” - são, “em grande parte, quantitativas e são feitas em benefício da
conveniência” (ibid., p. 134). Não têm nenhuma força de lei. Vico continua apegado,
portanto, a um erro e a uma ilusão; errou quando tentou estender uma generalização
empírica a todas as classes que se assemelham superficialmente àquela a que se
poderia aplicar legitimamente a generalização e foi iludido pela esperança de tratar
um discernimento filosófico como um cânone de interpretação histórica válido para
todas as sociedades, em todas as épocas e lugares.
Croce considera duas possíveis objeções à sua critica de Vico: de um lado, diz
ele, poder-se-ia argumentar que Vico explica as exceções à sua lei, referindo-se às
influências externas ou às contingências que fizeram um determinado povo deter-se
antes do fim, ou fundir-se com o corso de outro povo e se tornar uma parte dele. De
outro lado, observa ele, poder-se-ia afirmar - com base na própria interpretação de
Croce do verdadeiro valor da “lei” - que, uma vez que a lei realmente se ocupa do
corso do espírito, e não do corso da sociedade ou da cultura, nenhuma quantidade de
provas empíricas pode servir para desafiá-la. Croce descarta sumariamente a segunda
objeção. “A questão em pauta”, diz ele,
236 TRÓPICOS DO DISCURSO
é [...] precisamente o aspecto empírico dessa lei, não o filosófico; e a verdadeira resposta nos parece ser, como
já sugerimos, que Vico não poderia e não deveria ter levado em conta outras circunstâncias, da mesma forma
que, para lembrar um exemplo, qualquer um que esteja estudando as várias fases da vida descreve as
primeiras manifestações do desejo sexual intenso nas fantasias vagas e fenômenos semelhantes da puberdade,
e não leva em conta os meios mediante os quais os menos experientes podem ser iniciados no amor pelos mais
experientes, visto que está planejando lidar não com as leis sociais da imitação, mas com as leis fisiológicas do
desenvolvimento orgânico (ibid., p. 136).
154 Benedetto Croce, Logica come Scienza dei Conceito Puro, 3. ed. rev. (Bari, 1917), p. 204, Doravante citada no
texto.
155 Cf. Primi Saggi, pp. 190-191, para uma expressão antiga da desconfiança de Croce pelo próprio conceito de
sociedade.
0 QUE ESTÁ VIVO E O QUE ESTÁ MORTO NA CRÍTICA DE CROCE A VICO 237
manifestações concretas, nas formas sociais que elas assumiram, em termos de leis,
Vico parecia estar involuntariamente materializando-as ou naturalizando-as, e, dessa
forma, privando-as da sua condição de criações do espírito. Pelo menos era essa a
opinião de Croce. Vico tratava a sociedade e a cultura como produtos de um processo
material invariável (traindo desse modo sua compreensão equivocada da verdadeira
natureza desse processo); e Croce exigia dele que, tendo optado por esse tratamento,
fosse coerente, e realmente considerasse o processo como invariável. Veio daí o
impulso de Croce para recorrer à analogia segundo a qual quem quer que esteja
“estudando as várias fases da vida” deve limitar-se a uma consideração das “leis
fisiológicas do desenvolvimento orgânico”, e não ocupar-se das “leis sociais da
imitação”.
Mas a analogia trai a tendência na crítica. Pois, para levar a analogia até o fim e
de maneira correta, o que está em questão no caso de Vico não é uma combinação de
leis que operam num processo com leis que operam em outro; é a convergência de
dois sistemas, cada um governado por leis semelhantes, um neutralizando ou
frustrando as ações do outro. Por exemplo, mesmo uma pessoa que estude as várias
fases da vida humana não se vê - como um cientista - embaraçada pelo fato de um
dado indivíduo não chegar à puberdade, mas, digamos, morrer. A morte de uma pessoa
antes da puberdade não invalida as “leis fisiológicas do desenvolvimento orgânico”
que regem a fase pubertária; ela tão-somente requer, se quisermos explicar a inca-
pacidade particular de chegar à puberdade, que invoquemos outras leis, es-
pecificamente as que expliquem a morte do organismo, para esclarecer por que não se
confirmou a prediçao de que a puberdade ocorreria normalmente.
Dá-se o mesmo com as civilizações. Nossa caracterização do “curso” que,
segundo a nossa previsão, elas deverão seguir não é invalidado por algum fracasso de
dada civilização em completar semelhante curso, se o fracasso puder ser explicado
pela invocação de outra lei, que abarcasse a desintegração das civilizações antes do
seu termo normal. Dessa forma, nenhum número de sociedades que não conseguem
completar o corso descrito pelo modelo romano, utilizado por Vico como arquétipo,
pode invalidar a “lei” de Vico. Isso se deve ao fato de ser a “lei dos ricorsi” menos
uma “lei” que uma teoria ou uma interpretação, vale dizer, um conjunto de leis cuja
utilidade para fins de previsão requer a especificação das condições-limite em que se
aplicam aquelas leis. Em princípio, não há absolutamente nada de errado na opção de
Vico a usar o exemplo romano como paradigma do desenvolvimento da civilização a
partir do qual poderia ser avaliado o desenvolvimento de todas as outras civilizações
que ele conhecia, à exceção da judaica e da cristã. Trata-se de um procedimento
sociocientífico perfeitamente
0 QUE ESTÁ VIVO E O QUE ESTÁ MORTO NA CRÍTfCA DE CROCE A VÍCO 25/
adequado, por imperfeito que tenha sido o modo pelo qual foi levado a cabo no
caso de Vico. A objeção de Croce era a qualquer tipo de procedimento sociocientífico,
pois, a seu ver, ele representava um esforço para tratar um produto do espírito “livre”
como algo causalmente determinado. E, assim, aplicou um padrão de adequação
inviavelmente rigoroso - padrão que ele próprio repudiaria especificamente na sua
rejeição das exigências que os positivistas haviam feito às ciências físicas - ao
empenho de Vico em elaborar uma ciência das sociedades. Essa inconsistência na
utilização por Croce do conceito de “lei” só pode ser explicada pelo seu desejo de
reivindicar a sanção de Vico para sua própria maneira de filosofar, negando ao mesmo
tempo qualquer reivindicação, da parte dos modernos cientistas sociais, de estarem
seguindo até as últimas consequência s o programa de análise social de Vico.
Pode-se dar um exemplo melhor da crítica de Croce aos esforços de Vico para
elaborar uma história universal, ou uma filosofia da história mundial. Aqui, parece ter
ocorrido uma mistura genuína de categorias. De um lado, salienta Croce de maneira
correta, Vico quer utilizar a teoria dos ricorsi como o modelo para todo
desenvolvimento da civilização; de outro, quer excetuar o exemplo judaico e o cristão,
atribuindo-lhes, respectivamente, uma memória especial e uma capacidade particular
de renovação, o que impediu o seu término antes do fim do mundo. Essa distinção era
gratuita, e Croce parece estar certo em descobrir a sua origem no conflito entre o
devoto cristão que se ocultava no peito de Vico e o cientista social que triunfara em
sua mente (Filosofia, pp. 149-150). Mas, como ressaltaram quase todos os
comentadores de Vico, mesmo essa inconsistência não nega o esforço, firmemente
procurado no aspecto sociocientífico de sua obra, de elaborar uma filosofia universal
da história. O próprio Croce o admitia quando, comentando a tentativa de Vico de
estabelecer semelhanças entre Homero e Dante, considerava essas classificações a
base necessária de qualquer história verdadeira; pois, segundo afirmou, “sem a
percepção da semelhança, como conseguir estabelecer as diferenças? (ibid., p. 156).
Mas também aqui ele deplorava a procura de semelhanças como um fim em si; o
impulso de classificar, disse ele, impedira Vico de realizar a tarefa do historiador, a de
“representar e narrar” (ibid., p. 157).
O que, pois, está “vivo” e o que está “morto” na avaliação feita por Croce da
obra de Vico? A pista para a solução desse problema é fornecida por dois juízos de
Croce, um sobre Vico, outro sobre si mesmo. Resumindo sua análise de Vico no
último capítulo de La Filosofia di Giambattista Vico, Croce dizia que, afinal de contas,
Vico “não era nada mais nada menos que o século XIX em estado embrionário” (ibid.,
p. 257). E alguns meses depois, em resposta à crítica “d’annunziana” que Borgese fez
desse livro, escreveu que “a filosofia com que interpreto e critico o pensamento de
Vico, e sob alguns aspectos a minha própria [...] é, essencialmente, apenas a filosofia
idea
252 TRÓPICOS DO DISCURSO
1 Ver Benedetto Croce, “Pretese di Bella Letterntura nella Storia delia Filosofia”, em suas Pagine Sparse (Napoli,
1943), 1:333.
4
i.
2.
comparações, as tipologias etc. Segundo nos diz, está interessado apenas nas
“rupturas”, nas “descontinuidades” e nas “disjunções” verificadas na história da
consciência, vale dizer, muito mais nas diferenças entre as várias épocas na história
da consciência que nas semelhanças. O interesse do historiador convencional pelas
continuidades, afirma Foucault, é apenas um sintoma do que ele chama “agorafobia
temporal”, uma obsessão pelos espaços intelectuais preenchidos. E igualmente legíti-
mo, e terapeuticamente mais salutar para o futuro das ciências humanas, ressaltar as
descontinuidades no pensamento do homem ocidental acerca do seu próprio estar-no-
mundo. Em vez de tentar captar a evolução diacrônica das ciências humanas, Foucault
tenta, então, apreender-lhes toda a história sincronicamente, ou seja, como uma
totalidade cuja soma é menos do que as partes que a constituem.
Dessa forma, conquanto Les Mots et les choses verse sobre as mudanças que
ocorreram nas ciências humanas entre o século XVI e o século XX, pouca coisa há no
livro que possa ser pensada como uma “estória”, e virtualmente nada que possa ser
identificado como uma linha narrativa. O que temos, antes, é uma série de
“diagnósticos” do que Foucault chama “episte- mes” (domínios epistêmicos), que
sancionam os “discours” (modos do discurso) diferentes dentro dos quais podem ser
elaboradas “sciences humaines” diferentes. Cada uma dessas ciências é concebida
dotada de seus próprios objetos de estudo peculiares (“empiricités”) e sua própria
estratégia única para determinar as relações (“positivités”) que existem entre os obje-
tos que habitam o seu domínio. Mas essas “epistem.es” (que funcionam mais ou menos
como os “paradigmas” de Kuhn) não se sucedem umas às outras dialeticamente, nem
se agregam. Elas simplesmente surgem uma ao lado da outra - de maneira catastrófica,
por assim dizer, sem pé nem cabeça. Desse modo, o surgimento de uma nova “ciência
humana” não representa uma “revolução” no pensamento ou na consciência. Uma
nova ciência da vida, da riqueza ou da linguagem não se insurge contra as suas
predecessoras; ela simplesmente se cristaliza ao lado delas, preenchendo o “espaço”
deixado pelo “discurso” das ciências anteriores. Tampouco uma nova ciência se de-
senvolve da forma que supunham Hegel ou os neokantianos, isto é, como a
manifestação de algum modo de entendimento inerente à consciência, porém
inadequadamente representada no espectro das ciências de uma dada época. Dessa
forma, Foucault não rejeita qualquer continuidade apenas para as ciências; rejeita-a
também para a consciência em geral. As chamadas ciências humanas não passam, no
seu entender, das formas de expressão assumidas pela consciência na sua tentativa de
compreender o seu mistério essencial. Encaradas dessa forma, as ciências humanas
são pouco mais do que produtos de cartadas diferentes jogadas pelos homens no
tocante à possibilidade de apreender o segredo da vida humana na linguagem.
Foucault identifica quatro grandes “épocas” de coerência epistêmica naquilo
que devemos, segundo ele, chamar a “crônica” das ciências humanas: a primeira
começa no final da Idade Média e termina no fim do século XVI; a segunda abarca os
séculos XVII e XVIII; a terceira começa por volta de 1785 e se estende até o início do
século XX; e a quarta está surgindo. Ele se recusa a ver nessas quatro épocas atos de
um drama do desenvolvimento, ou cenas de uma narrativa. As transições que marcam
o começo e o fim das épocas não são transformações de um tema duradouro, mas antes
258 TRÓPICOS DO DISCURSO
É por querer destruir o mito do progresso das ciências humanas que Foucault
abre mão das estratégias explicativas convencionais da história intelectual, de
qualquer que seja a escola ou gênero. Ele recusa todas as estratégias “reducionistas”
que passam por explicações nos relatos históricos e científicos tradicionais. Para ele,
as diferentes ciências humanas produzidas pelas quatro épocas não apenas empregam
técnicas distintas para apreender os objetos que habitam o campo do humano, elas nem
sequer se aplicam ao estudo dos mesmos objetos. Foucault afirma que, mesmo que a
terminologia, digamos, dos historiadores naturais do século XVIII e dos biólogos do
século XIX contenham os mesmos elementos léxicos (o que pareceria justificar a
busca de analogias, influências, tradições e coisas parecidas), as diferenças entre as
“sintaxes” da história natural do século XVIII e da biologia do século XIX são tão
grandes que tornam todas as similaridades léxicas entre elas triviais como prova. E o
mesmo ocorre com as ciências da linguagem e da economia desenvolvidas durante o
século XVIII e o século XIX, respectivamente. Entre a busca de uma “gramática geral”
do período anterior e a “filologia” do período posterior, há tão pouca continuidade
quanto entre a “análise da riqueza” levada a cabo durante o Iluminismo e a “ciência
da economia” cultivada em nossa época. E isso porque os analistas da vida, do trabalho
e da linguagem das duas épocas habitavam “universos do discurso” diferentes,
cultivavam modos de representação diferentes e permaneciam presos a concepções
diferentes da natureza das relações predominantes entre as coisas, de um lado, e as
palavras, de outro. Isso se deve, na opinião de Foucault, ao fato de o conteúdo oculto
de toda suposta ciência humana ser o modo de representação que ela dignificava como
o único meio possível de relacionar os palavras com as coisas, sem o qual teria sido
impossível o seu “discurso” acerca do mundo “humano”.
Talvez haja meios de traduzir os “sentidos” de um universo do discurso para
outro, mas Foucault parece duvidar disso. E, ò que é mais interessante, não parece
estar muito preocupado com essa dúvida. Pelo contrário, já que para ele toda
“tradução” é sempre uma “redução” (em que algum conteúdo fundamental é perdido
ou suprimido), mostra-se satisfeito com o que chama de “transcrições” do “discurso”
sobre a humanidade produzidas durante as diferentes épocas. Isso tem importantes
implicações metodológicas para a abordagem foucaultiana do estudo das ideias.
A suspeição, por parte de Foucault, de reducionismo em toda a sua forma se
evidencia em sua declarada falta de interesse na relação de uma obra ou de um corpus
de obras com o seu contexto social, econômico e político. Por exemplo, tentar
“explicar” as transformações da consciência entre o século XVIII e o século XIX pelo
recurso ao “impacto” da Revolução Francesa sobre o pensamento social seria, para
ele, uma forma de petitio príncipii. Pois o que chamamos de “Revolução Francesa”
foi na verdade um complexo de eventos que ocorreram extrinsecamente à
“consciência formalizada” da época. As ciências humanas daquele tempo tinham de
dar sentido à Revolução, codificá-la e decodificá-la segundo as estratégias sintáticas
disponíveis na época e no lugar. Mas um acontecimento como a “Revolução” só tem
sentido na medida em que é traduzido num “fato” pela aplicação das modalidades de
representação predominantes na época de sua ocorrência. Para a consciência
260 TRÓPICOS DO DISCURSO
formalizada de qualquer época, um evento como esse não poderia sequer configurar
um “fato”. E isso significa, para Foucault, que a consciência formalizada de uma
época não se altera em resposta aos “eventos” que ocorrem na sua vizinhança ou nos
domínios delimitados pelas suas diversas ciências humanas. Ao contrário, os eventos
adquirem a condição de “fatos” em virtude da sua suscetibilidade à inclusão no
conjunto das relações léxicas e da análise, pelas estratégias sintáticas sancionadas
pelos modos de representação predominantes numa dada época e lugar. É o caso
especialmente quando se trata de tentar localizar com precisão, identificar e analisar
os dados primários de categorias gerais da existência como “vida”, “trabalho” e
“linguagem” - as três áreas da investigação que se diz ser o refúgio das ciências
especificamente “humanas”. Mas “vida”, “trabalho” e “linguagem” nada mais são que
aquilo que a relação porventura existente entre as palavras e as coisas lhes permite
parecer ser numa dada época.
Se Foucault não está interessado em relacionar uma obra científica específica,
ou um corpus de obras, com o seu contexto social, econômico e político, menos
interessado ainda se mostra em relacioná-la com a vida de seu autor. Da mesma forma
que antigamente o objetivo de um certo tipo de historiador da arte era escrever uma
“história da arte sem nome”, isto é, a história dos estilos artísticos da qual fossem
eliminadas todas as referências aos artistas, assim também Foucault prefigura uma
história das ciências humanas sem nomes. Não há qualquer informação biográfica
sobre as figuras mencionadas como representantes das ciências e das disciplinas
analisadas por ele. Os nomes dos indivíduos que aparecem são meros recursos taqui-
gráficos para designar os textos; e os textos são, por sua vez, menos importantes que
as configurações macroscópicas da consciência formalizada que representam.
Mas os textos a que se refere não são analisados; são simplesmente
“transcritos”. E transcritos com um propósito específico: devem ser “diagnosticados”
para que se determine a natureza da doença da qual são sintomáticos. A doença
descoberta neles é sempre de caráter linguístico. Foucault procede à maneira do
patologista. “Lê” um texto do mesmo modo como um cancerologista “lê” um raio X.
Ele está em busca de uma síndrome e procurando provas das formações metastáticas
que indicarão um novo desenvolvimento da doença, que consiste no impulso para usar
a linguagem a fim de “representar” a ordem das coisas na ordem das palavras.
3.
explicações da condição humana, mas que na verdade são pouco mais que os mitos
pelos quais são retroativamente justificados os rituais epistêmicos requeridos pela
suposição de uma dada postura diante das palavras e das coisas.
Mas de que modo essas diferentes épocas na crônica das ciências humanas se
relacionam umas com as outras? Em UArchéologie du savoir, Foucault rejeita
explicitamente quatro tipos de explicação dos eventos que ele relatou em Les Mots et
les choses. Em primeiro lugar, rejeita o chamado método comparativo, que recorre a
métodos analógicos para definir as similaridades que parecem existir entre formas de
pensamento diferentes. Em seguida, rejeita o método tipológico, que procura
estabelecer a ordem, a classe, o gênero e as características da espécie dos objetos que
presumida- mente habitam o campo de estudo. Em terceiro lugar, rejeita a explicação
causai dos fenômenos da “história das ideias”, todas as explicações causais, de
qualquer tipo. Por fim, rejeita qualquer explicação que apele para a noção de Zeitgeist
ou de mentalité de uma era.
Surge, porém, a questão: se Foucault não quer “explicar” coisa alguma, então
por que se dá ao trabalho de escrever? Qual o propósito de simplesmente “transcrever”
as ilusões de uma época? As respostas a essas perguntas devem ser procuradas na
concepção que tem Foucault da função da anti-história. Ao negar todas as categorias
convencionais da descrição e explicação históricas, Foucault espera encontrar o
“limiar” da própria consciência histórica. A “arqueologia” das ideias forma um
contraponto fugal para a “história” das ideias; é a antítese sincrônica da representação
compulsiva- mente diacrônica das fases pelas quais a consciência formalizada passou
desde a queda da linguagem no limbo criado pela exigência não-realista de que ela
represente a ordem das coisas. O “Unbehagen der Kultur” fundamental não é - como
Russell, Wittgenstein e Sartre acreditavam - a própria linguagem; é a tarefa da
representação, que atribui à linguagem um grau de transparência que ela jamais
poderia alcançar. E a forma que esse “descontentamento” assume em qualquer era ou
época não é outra coisa senão as próprias ciências humanas.
É da natureza das ciências humanas tentar a elaboração de protocolos
linguísticos ontologicamente neutros com os quais possam representar a ordem das
coisas para a consciência com vistas à reflexão e análise. Mas, como a própria
linguagem não passa de uma coisa entre outras, a atribuição a qualquer protocolo
linguístico dessa condição privilegiada de instrumento de representação está fadada a
provocar uma disparidade fundamental entre o ser do mundo e o conhecimento que
poderíamos ter dele. Esse desequilíbrio se reflete nas áreas de qualquer discurso em
que prevalece o silêncio. Não é possível uma ciência do humano, argumenta Foucault,
não porque o homem seja qualitativamente diferente de tudo o mais no cosmo, mas
porque é precisamente igual a tudo o mais. A crença de que o homem é qualita-
tivamente distinto de todas as outras coisas se reforça, entretanto, pela atribuição de
um lugar privilegiado, na ordem das coisas, à coisa denominada linguagem.
“Devemos guardar silêncio a respeito do que não podemos falar”: Foucault leva
a sério a injunção de Wittgenstein, mas não porque haja algumas palavras que podem
ser ditas legitimamente e outras não podem. Pois é possível dizer tudo. O motivo real
por que devemos guardar silêncio acerca de aigumas coisas é que, em todo esforço
262 TRÓPICOS DO DISCURSO
4.
Nas chamadas ciências humanas, os objetos de percepção são os fenômenos
da vida (o homem na sua essência biológica), do' trabalho (o homem na sua essência
social) e da linguagem (o homem na sua essência cultural). Mas não há objetos
perenes que correspondam às palavras vida, trabalho e linguagem. O que esses
termos significam nas diferentes épocas da história da consciência, do século XVI
ao século XX, muda constantemente, e o faz, além disso, em conformidade com as
transformações que ocorrem num nível metalinguístico de apercepção, um nível
em que modos de discurso diferentes geram categorias diferentes para a
constituição dos elementos e relacionamentos que supostamente habitam o mundo
“humano”.
Cada uma das épocas da história cultural ocidental, então, parece aprisionada
num modo específico de discurso, o que ao mesmo tempo possibilita o seu acesso
à “realidade” e delimita o horizonte daquilo que pode possivelmente parecer real.
Por exemplo, argumenta Foucault, no século XVI o modo predominante de
discurso era inspirado pelo desejo de encontrar o Mesmo no Diferente, de
determinar o grau em que um dado objeto se parecia com outro; em suma, as
ciências do século XVI eram obcecadas pela noção de Similitude. Sua busca das
Semelhanças abrangia não apenas as relações entre as coisas, mas também a relação
entre as coisas e as palavras destinadas a significá-las. As categorias predominantes
da ciência da época eram, então, as da emulação, da analogia, da concordância, da
simpatia etc. E era o testar dessas categorias que fundamentava, de um lado, a
elaboração de listas de palavras floreadas e, de outro, as várias formas de “mágica
verbal” em que o século XVI se comprazia. A “ciência” da época pressupunha que
o domínio das palavras poderia fornecer a base de um domínio das coisas que “se
pareciam” com elas. A atitude dos eruditos do século XVI para com as palavras
era, dessa forma, essencialmente edênica, ou, antes, tinha o projeto de recuperar
aquela onomatéia divina que Adão possuía antes da Queda. E a natureza
aparentemente bizarra das obras produzidas pelos eruditos e cientistas do século
XVI só é compreensível, assevera Foucault, se posta no contexto da crença de que
a essência de uma coisa poderia ser revelada pela descoberta da palavra que a
significasse verdadeiramente.
Mas a busca das similitudes continha as sementes de sua própria frustração
final. Pois a extensão das listas de similitudes e a desvirtuada constru- ção-de-ponte
necessária para demonstrar que se poderia mostrar, numa análise final, que uma
dada coisa se assemelha de alguma maneira a tudo o mais,
essencialmente só lograram revelar à consciência o fato das dessemelhanças
fundamentais entre todas as coisas particulares. E essa apreensão da dessemelhança
essencial entre as coisas levou a um abandono do modo de discurso fundado no
paradigma da semelhança. Em consequência , o século XVII apresentou à consciência
264 TRÓPICOS DO DISCURSO
A atividade da mente [...] não mais consistirá em aproximar as coisas entre si, na busca de todas as
coisas que poderiam revelar algum tipo de parentesco, atração ou uma natureza secretamente partilhada
dentro delas, mas, ao contrário, em discriminá-las, ou seja, estabelecer as suas identidades e depois a
inevitabilidade das conexões com todos os graus sucessivos de uma série. Nesse sentido, a discriminação impõe
à comparação a primeira e fundamental investigação da diferença: prover-se, por meio da intuição, de uma
representação distinta das coisas e apreender claramente a conexão inevitável entre um elemento da série e
aquele que lhe é imediatamente posterior. Por fim, como consequência final, já que conhecer é discriminar, a
história e a ciência deverão se separar uma da outra (p. 55).
156 Les Mots et les choses, traduzido para o inglês com o título de The Order ofThings: íntroduction to the Archeology of
the Human Sciences (New York, 1970), pp. 42-43. Daqui por diante, todas as citações são dessa edição.
FOUCAULT DECODIFICADO 265
A filologia, a biologia e a economia política foram estabelecidas, não nos lugares anteriormente
ocupados pela gramática gerai, pela história natural e pela análise da riqueza, mas numa área onde aquelas
formas de conhecimento não existiam, no espaço que deixaram em branco, nas profundas lacunas que
separavam os seus amplos segmentos teóricos e que foram preenchidas com o murmúrio do cantinuum
ontoldgico. O objeto do conhecimento no século XIX é formado no próprio lugar onde a plenitude clássica do
ser silenciou (p. 207).
A partir do século XIX, a História devia distribuir, numa série temporal, as analogias que relacionam
entre si as diferentes estruturas orgânicas. Essa mesma história também deverá impor progressivamente suas
leis à análise da produção, à análise dos seres organicamente estruturados e, finalmente, à análise dos grupos
linguísticos. A História cede lugar a estruturas orgânicas analógicas, da mesma forma que a Ordem abriu
caminho para sucessivas identidades e diferenças [na âge classique] (p. 219).
território em que se possa dizer que os elementos particulares da série têm origem
comum. Quando os seres são lançados no oceano ondu- lante do tempo, no modo da
Sucessão, só se podem relacionar uns com os outros pela Analogia. E quanto mais
longa se imagina a série temporal, mais dispersas aparecem as coisas que algum dia
estiveram ordenadas no campo espaciaiizado fechado do quadro clássico.
A pergunta que as ciências humanas tinham de enfrentar no século XIX era: O
que significa ter uma história? Essa pergunta, afirma Foucault, registra uma “grande
mudança” na consciência do homem ocidental, uma mudança que diz respeito
essencialmente à “nossa modernidade”, a qual, por seu turno, é a noção que temos de
ser completamente diferentes de todas as formas de humanidade conhecidas na
história com h minúsculo (pp. 219-220).
O novo interesse pela história, que é convencionalmente creditado ao século
XIX, é - segundo Foucault - não a causa, mas o efeito de uma mudança que ocorreu
num nível estrutural profundo, da apreensão dos objetos em termos da relação
Contiguidade-Continuidade à apreensão dos objetos em termos da relação Sucessão-
Analogia. O que as ciências humanas do século XVIII levaram a cabo foi a revelação
das diferenças fundamentais entre dois objetos quaisquer que habitam o campo
perceptual. A própria inteireza da busca dos quadros pelos quais se poderia criar coisas
contíguas no espaço a fim de que refletissem a sua pertença a uma “rede de relações”
contínua que, em essência, era intemporal, só conseguiu demonstrar que as coisas de
fato não comprovavam a sua localização dentro dessa rede intemporal. A resposta dos
pensadores do século XIX a essa falência do pensamento do século XVIII foi elevar a
categoria da temporalidade à condição de dado irredutível, cuja significação era
calcular em que medida as coisas se poderiam relacionar entre si como membros de
famílias específicas de espécies orgânicas (Cuvier), de modos de produção (Ricardo)
e de usos linguísticos (Bopp). Mas os grandes criadores de sistemas do século XIX -
Hegel, Comte, Marx, Mill e outros - apenas conseguiram demonstrar, segundo
Foucault, a inutilidade de tentar captar a variedade de coisas numa ordem de palavras
que as colocasse com precisão numa série temporal que seja ao mesmo tempo
completa e esclarecedora do modo como todo o processo temporal avança em seu
longo curso.
A falência da investigação da “série temporal” no século XIX foi assinalada por
Nietzsche, que percebeu corretamente que o verdadeiro problema que o pensamento
moderno ocultara de si mesmo era o da opacidade da linguagem, sua incapacidade de
servir ao propósito de representação que lhe fora impingido, de modo totalmente
inconsiderado, no final do século XVI. As duas grandes “contraciências” do século
XX, que uma visão similarmente nietzschiana da opacidade da linguagem criou - a
psicanálise e a etnologia - confirmam, segundo Foucault, a justeza da crescente
compreensão do homem ocidental quanto à impossibilidade de elaborar algum dia
uma verdadeira ciência do homem. Pois, de acordo com Foucault, o que essas duas
contraciências representam é uma tendência a rebaixar a análise do fenômeno
“homem” a um nível em que desapareça sua “humanidade” e fazê-la recuar ao tempo
anterior à aparição do “humano”. Diferentemente dos filósofos da história do século
XIX, Freud e Lévi-Strauss procedem, não com base nas categorias da Sucessão e da
FOUCAULT DECODIFICADO 267
5.
E óbvio que Les Mots et les choses tem a mesma estrutura de enredo que a obra
anterior de Foucault, Folie et déraison, a sua história da loucura no Ocidente do século
XVI ao século XX. Nesse livro, Foucault forneceu o que parecia ser uma história das
ideias da insensatez e da loucura do século XVI ao final do século XIX. Mas, como
vários críticos salientaram, a obra era menos uma história das teorias da insanidade,
ou do tratamento dos insanos, do que um discurso digressivo sobre a loucura que se
acha no âmago da própria razão. A partir da consideração de um corpo de dados
bastante limitado, Foucault como que ideou um verdadeiro registro do “lado inferior”
do pensamento acerca da razão e da loucura e expôs a angústia subjacente à obsessão
do homem ocidental pelo problema de sua própria sanidade.
A coisa mais original no livro, considerado uma contribuição à história das
ideias, era a insistência, por parte de Foucault, em afirmar que não se poderia lograr
qualquer noção válida da concepção do homem ocidental acerca do racional mediante
o estudo das várias teorias da racionalidade e da loucura desenvolvidas pelos
escritores sobre esses temas durante o período em questão. Ao contrário, o verdadeiro
teor do conceito de “racionalidade” tinha de ser procurado nos modos como foram
considerados os indivíduos designados “insanos”. Foucault se concentrou nas
questões: Quem era considerado insano? Como se identificava a insanidade dessas
pessoas? Quais os modos do seu confinamento? De que forma eram tratadas? E que
critérios eram utilizados para determinar quando e se tais pessoas haviam sido
curadas?
Ele afirmava que a história da loucura não revelava nenhum progresso
consistente na sua conceituação teórica de uma doença; que, ao contrário, a história
do tratamento dos insanos revelava uma tendência consistente a projetar preconceitos
e angústias sociais muito gerais em sistemas teóricos que justificavam o confinamento
de todo grupo social ou tipo de personalidade que parecesse ameaçar a sociedade
durante um dado período.
Foucault identificou quatro períodos principais na história da loucura: o final da
Idade Média, os séculos XVII e XVIII (l’âge classique), o século XIX e o século XX.
Afirmava que, ao fim da Idade Média, via-se nos insanos, não os representantes de
alguma forma obscura de anti-humanidade, mas, ao contrário, uma variante humana
peculiarmente abençoada, cuja inocência e natureza infantil se mantinham como
lembretes aos homens “comuns” de sua dependência da graça e beneficência de Deus.
Os “insensatos” do mundo eram tidos como possuidores de uma sabedoria mais
268 TRÓPICOS DO DISCURSO
reformas introduzidas no tratamento dos insanos por Tuke e Pinei. Nessa época, a
doença mental passou a ser definida como uma enfermidade eminentemente física,
a ser tratada por meios especificamente médicos. Nessa época, ressalta Foucault,
os doentes mentais eram diferenciados dos criminosos e dos pobres, e modos
distintos de tratamento eram prescritos para cada uma dessas categorias. Qual a
causa dessa mudança? Segundo Foucault, a mudança tinha muito pouco a ver com
o avanço do conhecimento teórico acerca da verdadeira natureza da doença mental.
Ao contrário, se houve de fato algum avanço, ele se deu em consequência de
transformações mais fundamentais ocorridas na sociedade. A libertação dos pobres
dos locais de confinamento, onde haviam sido lançados tanto em companhia dos
criminosos como dos doentes mentais, foi a resposta à necessidade de aumentar a
força de trabalho durante um período de industrialização. Isso não significava que
os pobres fossem mais bem tratados, pois eram liberados dos hospitais apenas para
serem entregues às leis cruéis da oferta e da procura de trabalho e à “disciplina”
das fábricas. Assim também, a diferenciâ- ção entre os doentes mentais e os
criminosos refletia uma nova atitude soei-
a! para com o segundo, e não um avanço teórico na compreensão do primeiro. Pois a
categoria do “criminoso” se confundia com a do elemento subversivo,
“revolucionário”, da sociedade, que a burguesia passava a temer ainda mais do que ao
insano. Em suma, a distinção entre o criminoso e o doente mental se dava
principalmente em função de considerações políticas, e não científicas. O doente
mental talvez se tenha beneficiado dessa distinção, mas a base dela consistia em
transformações mais genericamente sociais, e não especificamente científicas.
E escusado dizer que essa concepção do “progresso” da medicina não granjeava
para Foucault a simpatia dos que viam em sua evolução um triunfo prometéico,
análogo ao curso do desenvolvimento manifestado nas histórias da física e da química.
Foucault estava sugerindo, como o fizera em seus primeiros dois livros, Maladie
mentale et personnalité e La Naissance de la clinique, que a medicina não era
absolutamente uma ciência e que o seu desenvolvimento, longe de representar uma
compreensão crescente das necessidades do paciente, estava intimamente ligado muito
mais à práxis permanente da sociedade que a uma compreensão mais profunda do
animal humano. A prática médica, argumentava ele, representava pouco mais que a
aplicação de concepções ideológicas da natureza do homem vigentes entre as classes
dominantes de uma dada sociedade num dado tempo. A clínica e o hospital eram
microcosmos das atitudes para com o homem que prevaleciam no mundo
macrocósmico da sociedade em geral. Vista desse ângulo, a medicina era mais uma
disciplina política que científica; e tal era em especial o caso daquele ramo da medicina
que pretendia ocupar-se dos doentes mentais, pois aqui os preconceitos que motivaram
o mau tratamento de todo transviado social se refletiam em sua brutalidade,
incompreensão e falta de conhecimento científico.
E no contexto de considerações como essas que Foucault avaliava a importância
de Freud para a história cultural do Ocidente. A revolução de Freud - que representa
uma terceira mudança em nossa atitude para com os loucos - consistia simplesmente
numa disposição a ouvir os doentes mentais, a tentar apreender a natureza da loucura
270 TRÓPICOS DO DISCURSO
Em nossos dias - e uma vez mais Nietzsche se antecipou na determinação do ponto crítico - não é tanto
a ausência ou a morte de Deus que se afirma, mas o fim do homem... Deuses novos, os mesmos deuses, já
avolumam o fuíuro oceano; o homem desaparecerá. Em vez da morte de Deus - ou, antes, na esteira dessa
morte, e em profunda correlação com ela -, o que o pensamento de Nietzsche anuncia é o fim do seu assassino;
é o esfacelamento do rosto do homem no riso e a volta das máscaras; é a dispersão do profundo escoar do
tempo pelo qual ele se sentia transportado e cuja pressão suspeitava no próprio ser das coisas; é a identidade
do Rclorno do Mesmo com a absoluta dispersão do homem (p. 385).
O que temos aqui não é tanto metáfora quanto uma vontade de retornar a um mundo
anterior à própria metáfora, anterior à linguagem. Foucault anuncia o renascimento
dos deuses quando o que tenciona anunciar é o renascimento de uma imaginação pré-
religiosa.
6.
Suas epistemes se seguem, mas não uma à outra, quer formalmente, quer dialeticamen- te. Uma episteme
não se filia a outra, ou genética ou historicamente. A mensagem dessa “arqueologia” da razão é, em suma, a
de que as autotransformações da razão não têm nenhuma razão, e suas estruturas aparecem e desaparecem
mediante transformações fortuitas e como resultado de ressurgências momentâneas. A história da razão é, em
outras palavras, quase a história das espécies tal qual ela foi concebida pelos biólogos antes de entrar em cena
o estruturalismo cibernético157.
Mas Piaget tomou pelo seu sentido aparente as asserções de Foucault sobre suas
intenções, em vez de submeter à análise o que fez Foucault em Les
Mots et les choses; pois estamos diante de um sistema transformacional elaborado na
concepção que Foucault tem da sucessão de formas das ciências humanas, mesmo que
são diferentes uns dos outros, mas também parecem existir exteriormente uns aos
outros, não só numa única espécie mas também em qualquer organismo. A descoberta
de que as coisas não apenas diferem umas das outras mas diferem internamente dentro
de si próprias, ao longo do percurso dos seus ciclos vitais, é a base para a
temporalização da ordem das coisas que Foucault atribuiu à consciência do século
XIX.
Segundo ele, as ciências da vida, do trabalho e da linguagem do século XIX
procedem com base na descoberta da diferenciação funcional das partes dentro da
totalidade e na apreensão do modo da Sucessão como a modalidade da relação entre
as entidades, de um lado, e entre as partes diferentes de uma entidade única, de outro.
Mas essa “apreensão conjunta” das partes de uma coisa como aspectos de um todo que
é maior que a soma das partes, essa atribuição da totalidade e da unidade orgânica a
uma congérie de elementos num sistema, é exatamente a modalidade de relações que
é dada na linguagem pelo tropo da sinédoque. Esse tropo é o equivalente, no uso
poético, da relação entre as coisas que os filósofos que falam de relações microcosmo-
macrocosmo presumem existir.
O aspecto importante é que o discurso de Foucault sobre as ciências humanas
do século XIX, tal como se desenvolveram nos limites impostos pelas categorias da
Sucessão e da Analogia, e pelas categorias secundárias da interdependência funcional
e da evolução, sugere a seguinte relação entre as ciências desse século e as do século
anterior: a linguagem metonímica está para a linguagem sinedóquica assim como as
ciências humanas do século XVIII estão para as ciências humanas do século XIX. Em
outras palavras, Foucault tem ao mesmo tempo um sistema de explicação e uma teoria
da transformação da razão, ou da ciência, ou da consciência, quer saiba disso ou o
admita ou não. Tanto o sistema quanto a teoria pertencem a uma tradição do
historicismo linguístico que remonta a Vico, antes dele aos filósofos linguistas da
Renascença e antes ainda aos oradores e retóricos da Grécia e da Roma clássicas. O
que Foucault fez foi redescobrir a importância do aspecto projetivo ou gerativo da
linguagem, o grau em que ela não apenas “representa” o mundo das coisas mas
também constitui a modalidade das relações entre as coisas pelo ato mesmo de assumir
uma postura diante delas. Foi esse aspecto da linguagem que se perdeu quando a
“ciência” se desvinculou da “retórica” no século XVII, obscurecendo desse modo para
a própria ciência a percepção da sua própria natureza “poética”.
Vico afirmava que havia quatro tropos principais, dos quais derivavam todas as
figuras de linguagem, e cuja análise fornecia a base para uma compreensão adequada
dos ciclos por que passa a consciência nas suas tentativas de conhecer um mundo que
sempre ultrapassou nossa capacidade de o conhecer plenamente. Esses quatro tropos
serviam de base para a sua própria teoria do ciclo de quatro estágios pelos quais todas
as civilizações passaram, desde a “idade dos deuses”, através da “idade dos heróis”,
até a “idade dos homens” e daí, finalmente, até a idade da decadência e da dissolução,
a idade do famoso ricorso. Os quatro tropos e as suas idades correspondentes no ciclo
vital de uma civilização eram a metáfora (a idade dos deuses), a metonímia (a idade
dos heróis), a sinédoque (a idade dos homens) e a ironia (a idade da decadência e do
ricorso)1.
276 TRÓPICOS DO DISCURSO
3. Giambaitista Vico, The New Science, trad. Thomus Goddard Bergin e Max Harold Fisch (Itbaca, 1968), 400-410,
443-446. A natureza tropológica do pensamento estruturalista parece ter sido desprezada pelos comentadores. Sem
dúvid;i, o sistema binário de interpretação utilizado por Lévi-Strauss é manifestamente tropológico. Todos os
sistemas de nomeação, do ponto de vista de Lévi-Strauss, representam algum tipo de resolução dialética do pólo
metafórico e do metonímico do comportamento linguístico. Ver, por exemplo, o seu Savage Minei (London, 1966),
pp. 205-244. A. mesma díade é utilizada por Jacques Lacan para decodificar os sonhos. Ver o seu “Insistence of
the Letter in the Unconscious”, em Structumíism, cd. Jacques Lhrmann (New York, 1966), pp. 101-136. Ela é
utilizada como base de análise para os estilos literários por Roman Jakobxon em “Linguistics and Poetics”, cm
Style en lutnguage, ed. Thomus A. Sebeok (New York e London, 1960), pp. 350-377. Os tropos da metáfora e da
metonímia são utilizados por esses pensadores para distinguir entre o eixo diacrônico e o sincrônico do uso
linguístico, permitindo-lhes utilizar u própria linguagem como base para a caracterização de modos diferentes de
consciência. O resultado é uma teoria binária da consciência que ameaça dissolver-se num dualismo. Afirmei que
Foucault simplesmente expandiu o número de tropos até a classificação quaternária convencional efetivada pelos
retóricos da Renascença, empregada por Vico na sua Ciência Nova e posteriormente aperfeiçoada por modernos
teóricos da literatura, como Kenneth Burke, Ver, por exemplo, A Grammur of Motives (Berkc)cy e Los Angeles,
1969), ap. D, “Four Master Tropes”, pp. 503-517. Não estou sugerindo uma influência de Vico ou de Burke em
Foucault, apenas uma similaridade de abordagem, embora a primeira edição do livro de Burke tenha aparecido
em 1945. Aliás, o uso dos tropos como base para a análise dos modos dc consciência é examinado por Emile
Benvenisie no seu “Remarks on the Function of Language in Freudian Theory”, cm Pntblvms of Gvnsrul Lingitixiics
(Coral Gables, 1971), pp. 75-76. Eu poderia acrescentar que geralmente não se reconhece quão penetrante tem sido
a percepção dos tropos como base de modos não-cicntíficos do discurso na filosofia “dialética”. A meu ver, a Lógica
de Hegel representa pouco mais que uma formalização, na própria terminologia de Hegel, das dimensões
tropológicas da linguagem; e a famosa segunda metade do capítulo de Marx sobre as mercadorias cm O Capitai
pode ser compreendida como uma aplicação da teoria dos tropos à “linguagem” das mercadorias. Foucault atua
nessa tradição.
lismo, a análise linguística, o atomismo lógico, a fenomenologia, o estruturalismo e
assim por diante - os principais sistemas da nossa época - projeções do tropo da ironia.
Ou pelo menos assim ele os caracterizaria se compreendesse corretamente aquilo de
que se ocupara. E sua própria postura, que ele define como pós-moderna, é pós-
irônica, na medida em que deseja fazer que o pensamento se perca mais uma vez no
mito.
7.
cultura ou das ideias. Pois, com a sucessiva publicação de seis livros, Foucault se
firmou como um filósofo da história à maneira “especulativa” de Vico, Hegel e
Spengler. Ele pelo menos oferece uma interpretação importante da evolução da
consciência “formalizada” do homem ocidental desde o fim da Idade Média. Três de
suas obras - Folie et déraison, Les Mots et les choses e UArchéologie du savoir -
fornecem uma reconceituação fundamental da história intelectual europeia. Nessas
obras, Foucault traz à baila a questão de saber se há mesmo uma lógica interna na
evolução das ciências humanas, semelhante àquela que os historiadores pretenderam
encontrar no desenvolvimento das suas contrapartidas, as ciências físicas.
Cumpre notar, de imediato, que Foucault não trabalha na vertente principal da
historiografia ocidental, ou segundo as convenções de sua ramificação, a história das
ideias. Diferentemente do historiador convencional, preocupado em esclarecer e,
dessa forma, refamiliarizar seus leitores com os artefatos de culturas e épocas
passadas, Foucault tenta desfamiliarizar os fenômenos do homem, da sociedade e da
cultura que se tornaram demasiado transparentes depois de um século de estudos,
interpretações e sobredeter- minações conceituais. Nesse aspecto, Foucault representa
a continuidade de uma tradição do pensamento histórico que se origina no
Romantismo e que foi retomada, numa forma peculiarmente autoconsciente, por
Nietzsche no último quartel do século XIX.
Já que estão sempre lidando com um assunto estranho, e por vezes exótico, os
historiadores não raro admitem que seu objetivo principal deveria ser tornar esse
assunto “familiar” aos seus leitores. O que à primeira vista parece estranho deve-se
apresentar, no decorrer da narrativa, dotado de razões suficientes para sua ocorrência
e, portanto, acessível ao entendimento mediante o senso comum esclarecido. Como
todas as coisas históricas presumivelmente tiveram sua origem no pensamento e na
prática humanos, supõe-se que uma “natureza humana” vagamente imaginada deve
ser capaz de reconhecer algo de si própria nos resíduos desse pensamento e dessa
prática, que surgem como artefatos no registro histórico. Nihil humanum mihi alienum
puto - o credo do humanista e a hipótese de trabalho do historiador convergem para
uma simples fé na transparência de todos os fenômenos históricos. Daí o efeito
essencialmente domesticador da maior parte da escrita histórica. Ao tornar familiar o
estranho, o historiador converte o mundo humano do mistério em que ele está
envolvido em virtude da sua antiguidade e sua procedência numa forma de vida
diferente daquela aceita como “normal” pelos seus leitores.
Por certo, “tornar familiar o estranho” é apenas um lado dessa dupla operação
que Novalis, em sua famosa definição do Romantismo, atribuía à poesia. O outro lado,
“tornar estranho o familiar”, em geral não tem sido encarado como uma das principais
tarefas do historiador, mesmo por aqueles historiadores que concebem a historiografia
uma arte essencialmente literária. Os grandes historiadores românticos -
Chateaubriand, Carlyle eMichelet
- viam a questão de maneira diferente. Michelet dizia que o objetivo da historiografia
era a “ressurreição”, restituir às “vozes esquecidas” o seu poder de falar aos homens
vivos. Todavia, argumentava Michelet, não se devia confundir ressurreição com
reconstrução, o tipo de coisa feita pelo arqueólogo quando junta os fragmentos
278 TRÓPICOS DO DISCURSO
1. Esle ensaio foi escrito a convite de Murray Krieger, para uma ediçüo especial de Contemporary Literatura (Summer
1976), dedicada a uma avaliação do panorama atual da crítica literária. O professor Krieger convidou diversos críticos
e historiadores da literatura a refletirem sobre esse panorama mediante uma análise de inúmeras antologias de crítica
recém-publicadas. Daí o âmbito relativamente limitado de alusões neste ensaio. As antologias consideradas foram:
Mcrton W. Bloomfield (ed.), In Search of Literary Theory (Itliaca, 1972); Vemon W. Gras (cd.), European Literary Theory
and Pratica: From Existentia! Phenomenology lo Structuralism (New York, 1973); Richard Macksey c Eugênio Donato
(eds.), The Languages of Criticism and lhe Sciences of Man; The Structuralist Controversy (Baltimore, 1970); Richard
Macksey (ed.), Veloci/iex of Ckange: Criticai Essuys from MLN (Baltimore, 1974); Gregory T. Polietta (ed.), Issues in
Contemporary Literary Criticism (Boston, 1973); John K. Simon (ed.), Modern French Criticism: From Proust and Valéry
to Structuralism (Chicago, 1972).
0 MOMENTO
literária numa sociedade ABSURDISTA NA TEORIA
pós-industrial. EleLITERÁRIA
refleteCONTEMPORÂNEA 289
uma falta de confiança generalizada
em nossa capacidade de localizar a realidade ou os centros de poder na sociedade pós-
industrial e de compreendê-los quando são localizados. Numa sociedade em que são
indetermináveis tanto as estruturas quanto os processos, todas as atividades se tornam
questionáveis, mesmo a crítica, mesmo a leitura. Mas, porque essas atividades continuam
a ser praticadas, continuam a reivindicar uma autoridade sem fundamentos teóricos
adequados para tanto, torna-se imperativo determinar quem é responsável por elas e por
que deveriam ser praticadas. A leitura torna-se tão problemática quanto a escrita, a
política ou o comércio e, como eles, converte-se na prerrogativa de uns poucos
privilegiados.
Evidentemente, a leitura sempre fora considerada um precioso dote humano, um
artigo de luxo, o sinal e a base da civilização, e a prerrogativa de uns poucos. Mas era
também tradicionalmente considerada um talento que em princípio todos os homens
possuíam, era vista como uma atividade humana comum cuja conquista exigia apenas
talentos humanos normais. Mas, sob o imperativo de mistificar o texto, ele próprio uma
função de um imperativo anterior de mistificar a linguagem, a leitura se reveste de quali-
dades mágicas, é vista como um privilégio de algumas inteligências excepcionais. Não
admira, portanto, que alguns dos críticos modernos mais Absurdistas vejam na leitura,
assim como na escrita, atividades “perigosas”, que só devem ser encetadas sob condições
cuidadosamente reguladas ou sob a direção daqueles leitores profissionais que compõem
a elite da comunidade crítica.
Dessa maneira, por exemplo, Heidegger define a linguagem como a mais perigosa
posse do homem (“Hõlderlin and the Essence of Poetry”, em Gras, p. 31), enquanto Jean
Paulhan concebe a linguagem como “traição” (Alvin Eustis, “The Paradoxes of
Language: Jean Paulhan”, em Simon, p. 110). Segundo Beaujour, Bataille vê na literatura
o paradigma da “transgressão” (“Eros and Nonsense: Georges Bataille”, em Simon, p.
149), enquanto Maurice Blanchot, como nos diz de Man, concebe o “processo de leitura”
situado “antes ou além do ato de entendimento” (“Maurice Blanchot”, em Simon, p. 257).
E Said escreve que Derrida acredita que a escrita “participa constantemente da violência
de cada traço que faz” (“Abecedarium Cul- turaé'’, em Simon, p. 385). A mistificação
do texto resulta no fetichismo da escrita e no narcisismo do leitor. O leitor privilegiado
olha em derredor e só encontra textos e, nos textos, apenas a si próprio.
Essa não é de modo nenhum uma atitude encontrada apenas nos críticos
Absurdistas, que Eustis chama de “Terroristas” (“The Paradoxes of Language”, em
Simon, pp. 111-112). Ela estava desde o início potencialmente presente na própria
atividade da crítica. Tomemos um exemplo menos extremado. Georges Poulet
dificilmente pode ser considerado um Terrorista. Em sua prática crítica, ele se acha muito
mais próximo das escolas críticas convencionais, como as representadas pelos Novos
Críticos da América, pe~ los críticos práticos da Grã-Bretanha e pela tradição da história-
das-ideias representada pelo falecido A. O. Lovejoy, ou da tradição filológica de Spitzer
- a velha guarda da crítica contemporânea. Entretanto, numa notável celebração da sua
própria experiência de leitura como um paradigma da prática crítica, Poulet, no famoso
ensaio “A Fenomenologia da Leitura”, termina dizendo: “Parece então que a crítica, a
fim de acompanhar a mente na sua tentativa de desprender-se de si mesma, precisa
aniquilar, ou pelo menos esquecer momentaneamente, os elementos objetivos da obra e
elevar-se à apreensão de uma subjetividade sem objetividade” (em Polletta, p. 118).
O leitor ingênuo perguntará: O que pode significar isso? Em que poderia consistir
uma “subjetividade sem objetividade”? Poulet continua acreditando na realidade da obra
literária e considerando-a o produto de uma atividade humana reconhecível. “Há”,
escreve ele, “na obra [literária] uma atividade mental profundamente comprometida com
formas objetivas”. Ao mesmo tempo, porém, ele postula “um outro nível” da obra onde,
“abandonando
290 todas as formas, umTRÓPICOS
assunto [...] se revela a si mesmo (e a mim) na sua
DO DISCURSO
transcendência sobre tudo o que se reflete nele”. Quando o leitor, ou antes Poulet (pois
ele é um leitor solitário), atinge esse ponto, “nenhum objeto pode mais exprimi-lo,
nenhuma estrutura pode mais defini-lo; ele está exposto na sua inefabilidade e na sua
indeterminação fundamental” (ibid.).
Assim caracterizado, o texto literário tem todos os atributos da divindade, do
espírito ou do nume; é um efeito que é a sua própria causa, e uma causa que é o seu
próprio efeito. Tal é, precisamente, o ponto de vista do Terrorista Blanchot, que insiste,
juntamente com Mallarmé, em que o livro “vem a ser por si próprio; é feito, e existe, por
si mesmo” (De Man, em Simon, p. 263). Mas, diferentemente de Blanchot, que insiste
em dizer que nem mesmo o autor é capaz de ler sua obra (ibid., p. 260), Poulet sugere
que a obra lê-se a si própria por meio dele. Como ele diz:
Não devo hesitar crn reconhecer qus, enquanto é animada por essa inspiração vital sugerida pelo ato de
leitura, uma obra literária se toma (às custas do leitor cuja própria vida ela suspende) uma espécie de ser humano;
que ela é uma mente consciente de si própria e se constitui em mim como o sujeito dos seus próprios objetos.
A obra vive sua própria vida dentro de mim; em certo sentido, ela se pensa, e mesmo confere a si mesma
um sentido em mim (“Phenomenology of Reading”, em Polletta, p. 109).
O que poderia ser mais órfico! Não se trata de tomar esse trecho como uma aproximação
figurativa do que Poulet literalmente experimenta no ato de leitura. Quando falamos
teoricamente, somos tão responsáveis pelas figuras de linguagem que utilizamos para
ilustrar um problema quanto pelas palavras que escolhemos para denotar o seu conteúdo.
Aqui a obra é personificada no modo do espírito; o ato de leitura se torna constitutivo de
sentido; e a troca entre obra e leitor é construída à maneira de uma invasão da consciência
por uma presença fantasmagórica (embora sempre benigna). Não é de surpreender que
Poulet use a linguagem da análise esquizofrênica para glosar essa ideia:
Ocorre uma defasagem, uma espécie de distinção esquizóide entre o que sinto e o que o outro sente; uma
percepção confusa de dilação, de modo que a obra parece primeiramente pensar por si própria, e, depois,
informar-me o que ela pensou. Assim, tenho às vezes a impressão, enquanto leio, de simplesmente testemunhar
uma ação que ao mesmo tempo concerne e no entanto não concerne a mim. Isso provoca em mim um certo
sentimento de espanto. Sou uma consciência atônita com uma existência que não é minha, mas que experimento
como se fosse minha.
Essa consciência atônita é, com efeito, a consciência do crítico {ibid., p. 110).
A arte e a literatura, na avaliação Absurdista, não apenas podem curar como ferir,
não apenas unir como dividir, não apenas elevar como rebaixar - e, com efeito, é o que
fazem ininterruptamente no interesse dos que detêm o poder e os privilégios das classes
dominantes em todas as sociedades conhecidas da história. É por isso que o marquês de
Sade é a presença predominante da crítica que se desenvolve sob o aspecto de ataques
Absurdistas à literatura, à arte, à civilização e à própria humanidade. Sade, Marx,
Nietzsche e Freud são os quatro luminares dessa tradição crítica porque ensinaram, de
uma forma ou de outra, o que Dostoiévski exprimiu em palavras que se tornaram o clichê
sancionador de tantos movimentos culturais modernos: se Deus está morto, tudo é
permitido. Descobrir quais são os limites da liberdade que esse clichê autoriza é o
principal objetivo da crítica Absurdista.
A crítica Absurdista é, pois, programaticamente “anormal”. Ela questiona os
próprios conceitos de normal e de normativo na sociedade moderna. E o faz insistindo
na anormalidade daqueles valores que a crítica Normal admite. Esta procura ignorar ou
desprezar a acusação de anormal que se lança contra ela; mas não pode fazê-lo de modo
consistente, primeiro porque a crítica Absurdista continua a se desenvolver entre os
críticos mais jovens, ainda fascinados pelo arrojo dos seus postulados de capacitação; em
segundo lugar, e ainda mais importante, porque a crítica Absurdista é simplesmente uma
extensão lógica dos princípios predominantes, mas não reconhecidos, que têm habitado
o cerne da própria crítica Normal desde a sua cristalização no período anterior e posterior
à Segunda Guerra Mundial.
Cumpre indagar, portanto: O que é a crítica Normal? Negativamente, ela é
qualquer coisa que não é Absurdista; mas, positivamente, pode ser definida por certos
atributos reconhecíveis. Em primeiro lugar, a critica Normal toma forma contra o pano
de fundo das várias formas de critica praticadas nas universidades antes da Segunda
Guerra Mundial. Essas formas de crítica eram variadas, mas todas essencialmente
normativas na prática. E, embora exibissem vários graus de consciência teórica, não se
caracterizavam por um grau muito elevado de autoconsciência teórica. Isto é, conquanto
apresentassem diferentes teorias sobre o artefato literário, a fim de interpretá-lo, de re-
velar seus significados, de situá-lo nos seus diversos conteúdos históricos e assim por
diante, não julgavam a crítica em si um problema. Ao contrário, tendiam a ver na
existência da crítica literária um dado, um fato da vida, por assim dizer, e passavam
diretamente da pergunta “Por que fazer crítica?” para o problema teoricamente posterior
de “Como fazer crítica?”. A crítica que predominou nas universidades durante o período
entre as guerras pode ter sido inspirada por várias noções gerais das tarefas da crítica,
inspiradas por filósofos tão diferentes quanto Arnold, Croce, Taine ou Dilthey, mas essas
noções eram alimentadas “ingenuamente” na medida em que eram tidas como
justificativas para criticar, e não como razões para a consideração problemática da
natureza da crítica em geral.
Podemos chamar de Elementar esse modo de discurso crítico, no sentido de que
ele não questionava a possibilidade do serviço prestado pelo crítico à literatura, sua
habilidade em sondar as profundezas do sentido de um texto, de situar um texto nos seus
contextos históricos e de comunicar as características da estrutura do texto e do conteúdo
ao leitor comum. Concebida dessa forma, a literatura era “valiosa”, mas não era
misteriosa; julgava-se que servisse inequivocamente às causas de valores mais elevados,
como cultura, civilização, humanidade ou vida; o objetivo do crítico era distinguir a
literatura “boa” da “ruim” ou “imperfeita” e, depois, proceder à demonstração de como
a literatura “boa” fazia de maneira satisfatória o que a literatura “ruim” fazia
imperfeitamente.
Porém, contra esse modo Elementar da crítica levantou-se nos anos entre as guerras
um 294
modo alternativo cujo centro deTRÓPICOS
atividade estava fora da universidade (ou dentro dela,
DO DISCURSO
mas perifericamente). Esse outro modo constituía uma ameaça tanto ao conceito de
literatura quanto às noções das tarefas da crítica que o modo Elementar partilhava com
os seus progenitores do século XIX. O novo modo era representado pelo marxismo, pela
psicanálise e pelas várias formas de sociologia do conhecimento geradas pela era da
ideologia. Uma característica de todas essas escolas antiacadêmicas de crítica era desafiar
a “inocência” da cultura em geral, considerar a literatura como um epifenômeno de
impulsos e necessidades humanas ou sociais mais básicas e definir a tarefa da crítica
como o desmascaramento da subestrutura ideológica do texto e a descoberta dos meios
pelos quais não somente a literatura, mas todas as formas de arte sublimavam,
obscureciam ou reforçavam impulsos humanos mais ou menos “sociais” na natureza,
porém sempre especificamente pré-estéticos e pré-morais. Essas convenções críticas
eram, assim, Reducionistas, imaginando que o objetivo da crítica não era a união com a
obra de arte no modo da empatia, nacherleben, ou celebração, mas, antes, a efetivação
do distanciamento na obra de arte, a sua distorção e a revelação do seu conteúdo oculto,
mais essencial, e pré-literário.
Todavia, nenhum dos representantes dessas convenções — nem Lukács, Trótski,
Brecht, Hauser, Mannheim, Caudwell, Benjamin, Adorno, Freud, Reich, nem os outros
psicanalistas - era inimigo da literatura ou da crítica. Todos tinham uma fé comum na
possibilidade de um “método” que favorecesse a mediação entre o conteúdo humano da
obra de arte que analisavam e as necessidades humanas daqueles que as liam. Ademais,
todos compartilhavam a crença na possibilidade de comunicação com as diversas
comunidades de críticos e de traduções entre elas. Eles poderiam revelar como sendo o
verdadeiro conteúdo de uma determinada obra de arte as ações das relações sociais de
produção, da psique ou da ideologia que inspirava a consciência de seu criador,
“reduzindo” desse modo os aspectos especificamente estéticos da obra de arte à condição
de manifestação de impulsos, necessidades ou desejos mais fundamentais. Contudo,
encaravam esses impulsos, necessidades e desejos como produtos universalmente hu-
manos da condição social da humanidade, com base em cujo conhecimento poderiam
avaliar e classificar as obras de arte em progressistas ou retrógradas. E julgavam que a
função do crítico era fomentar a causa das forças progressistas na vida humana, mais ou
menos como fizera Arnold - mesmo que a sua concepção do que era culturalmente
“saudável” e do que não o era diferisse do toto caelo de Arnold.
O modo Reducionista surgiu concomitantemente à franca politização da crítica,
que os regimes totalitários da Rússia, da Alemanha e da Itália promoveram durante os
anos entre as guerras. E os inimigos diretos dos praticantes liberais e radicais do
Reducionismo eram os intelectuais e os artistas “lacaios” desses regimes totalitários, e
não os acadêmicos que faziam crítica no modo Elementar. O que os Reducionistas
combatiam era sobretudo o “falso reducionismo” dos críticos, escritores e intelectuais
fascistas. Entretanto, devido ao fato de tenderem a encarar a crítica acadêmica como uma
aliada pelo menos tácita do fascismo, em virtude, para não dizer outra coisa, de sua
incapacidade de perceber as implicações ideológicas de uma crítica geralmente “ética”,
ou claramente “estética”, eles também combatiam a crítica acadêmica.
E à luz desse ataque, por parte dos Reducionistas, à crítica predominante na
academia que se pode compreender os movimentos teóricos da Crítica Nova, da crítica
prática e, em certa medida, do formalismo - as escolas que passaram à linha de frente da
crítica acadêmica durante a Segunda Guerra Mundial e depois dela. Essas escolas
buscavam fornecer uma base teórica para as práticas críticas da academia de um modo
que pudesse rebater a acusação dos Reducionistas de que tais práticas eram, se não
execráveis, pelo menos0 MOMENTOteoricamente
ABSURDISTA NA TEORIA LITERÁRIACada
ingênuas. CONTEMPORÂNEA 295
uma dessas escolas de crítica
procurava obter um distanciamento teórico da obra de arte de um modo semelhante ao
dos marxistas, psicanalistas e sociólogos do conhecimento, mas não para ameaçar o que
o pensamento humanista tradicional considerava ser o aspecto especificamente “estético”
da “obra de arte”.
A Crítica Nova, a crítica prática e o formalismo se concentravam, respectivamente,
no significado estético, moral e epistemológico da obra de arte literária, porém, no que
se afirmava ser um meio não-reducionista, isto é, de molde a deixar sem questionamento
a “literariedade” da literatura. Diferentemente da crítica acadêmica mais antiga,
representada por, digamos,
Spitzer e pela escola filológica, que procuravam colocar o crítico “no centro criativo do
artista [...] e recriar o organismo artístico”, os Críticos Novos, os críticos práticos e os
formalistas tentaram manter a obra de arte a certa distância do crítico (e do leitor) de
modo que pudesse tornar-se manifesta a sua integridade como arte. Mas a integridade da
obra como arte consistia, a despeito de todas essas convenções críticas, na extensão com
que a obra de arte se colocava ao lado da vida ou contra ela.
Críticos práticos como Trilling e Leavis poderiam achar que a tarefa do crítico era
“dar testemunho pessoal” aos valores estéticos e morais presentes nas obras estudadas;
no entanto, esses valores eram dignos de “testemunho” somente na medida em que
representavam uma transcendência dos valores da existência humana corriqueira, ou uma
alternativa a eles. Os Críticos Novos poderiam insistir em que a tarefa do crítico era
demonstrar o que “fazia” a obra, e não o que ela “significava”, mas isso devido ao fato
de as obras de arte fazerem coisas que nenhum outro artefato cultural (e pouquíssimos
seres humanos) seriam capazes de fazer. Os críticos formalis- tas poderiam incitar os seus
colegas a empreender a nova descrição da obra de arte de modo a mostrar as suas
similaridades genéricas com outras obras de arte de uma dada tradição, ou mesmo a
revelar as formas de arte populares ou folclóricas que lhes forneceram seus atributos
distintivos e seu poder de persuasão. Isso, contudo, sugeria que o mundo literário era
fechado e se gerava a si mesmo, que pairava acima de outros setores da cultura e tinha
pouca responsabilidade para com eles e que, finalmente, existia por si só - como uma
ideia platônica ou uma forma autotélica de Aristóteles. Assim, a crítica nesse modo pode
ser chamada de Inflacionária, diferindo do modo Elementar por sua autoconsciência
teórica, e do modo Reducionista pelo seu desejo de salvar a esfera da arte de um
embasamento teórico na “mera” vida.
No final da Segunda Guerra Mundial, pode-se dizer que o cenário crítico era
colonizado por representantes de três modos distintivos de crítica: o Elementar, o
Reducionista e o Inflacionário. Os três foram elaborados levando em conta os serviços
que o crítico poderia prestar à literatura e os benefícios que a literatura poderia trazer à
civilização. Mas o tipo de serviços que a crítica poderia prestar à literatura e os métodos
a serem utilizados nessa tarefa eram interpretados de modo diferente. Os representantes
do modo Elementar simplesmente reconheciam a existência da “literatura”, de- finiam-
na por sua diferença dos elementos cotidianos da cultura, e chegavam a admitir que esse
domínio literário poderia ser penetrado pelo crítico e, em última análise, embasado na
“história” da cultura da qual originalmente nascera.
Contra a naiveté do modo Elementar, os críticos Reducionistas lançaram um
ataque, não apenas contra a tradicional distinção humanista entre “literatura” e “vida”,
mas também contra a concepção do estudo humanista em que estava baseada a crítica
Elementar. Os Reducionistas fundamentavam a literatura na vida com grande fúria. Para
eles a literatura não era a antítese da vida, mas uma sublimação de forças mais essenciais,
forças que conferiam à vida humana as suas várias formas. A tarefa do crítico, do modo
como a viam os Reducionistas, era analisar as obras literárias “cientificamente” e
determinar
296 o conteúdo libertador TRÓPICOS
(progressista)
DO DISCURSOou repressor (reacionário) de obras
específicas.
Para os críticos Elementares, esse modo Reducionista constituía uma ameaça à
literatura tão perigosa quanto o tipo de crítica promovido pelos regimes totalitários
contra o qual os Reducionistas haviam lançado o seu desafio. Mas a crítica Elementar
não poderia defender-se dos Reducionistas, porque era inerentemente suspeita de todas
as formas de especulação metateórica. Restava aos críticos Inflacionários -
representados pelos teóricos Novos, práticos e formalistas - defender a “literatura”
contra o reducionismo em todas as suas formas.
Os críticos Inflacionários partilhavam um desejo comum de assentar o estudo e
a crítica literária numa base “objetiva”. Em vez dos métodos impressionistas vigentes
no modo Elementar e dos métodos pseudocientíficos utilizados no modo Reducionista,
os métodos dos críticos Inflacionários deviam ser “objetivos”. Entretanto, ser objetivo
significava tratar a obra de arte como uma coisa-em-si, um artefato especificamente
estético, ligado, de inúmeras formas diferentes, aos seus diversos contextos históricos,
mas, em última análise, regido pelos seus próprios princípios autotélicos. A manifes-
tação extrema da atitude Inflacionária foi a que tomou forma na tentativa dos Críticos
Novos de defender suas reivindicações de autotelismo para a obra de arte. Pouco a
pouco eles cortaram, por interpretativãmente triviais, as relações que o artefato
literário mantinha com o seu contexto histórico, o seu autor e o(s) seu(s) público(s),
fazendo com que se pensasse que a situação crítica ideal era aquela em que um único
leitor sensível, geralmente um Crítico Novo, estudava uma única obra literária na
tentativa de determinar a dinâmica interna da ironia intrínseca dessa obra.
O formalismo situava a obra individual numa dada tradição genérica, mas
insistia - como Northrop Frye o faria posteriormente no seu Anatomy of Criticism, o
locus classicus da crítica arquetípica - em que toda literatura versava sobre outra
literatura ou sobre os mitos religiosos que historicamente antecederam e inspiraram
cada tradição literária discernível. Poder-se-ia argumentar que a crítica prática era mais
responsável historicamente, no sentido de que pelo menos contrapunha a moral ao
impulso puramente estético como origem de toda arte culturalmente significativa.
Porém, na medida em que tendia a identificar a “arte significativa” como a “Grande
Tradição” da prática literária da Europa Ocidental, a crítica prática continuava sujeita
ao ataque ao seu elitismo e provincianismo que o marxismo, a psicanálise e a
sociologia de conhecimento haviam lançado contra a crítica convencional dos seus
predecessores acadêmicos.
O modo Inflacionário da critica era uma extensão de muitos dos princípios que
haviam inspirado o modo Elementar, mas foi mais longe na tentativa de separar a
literatura da vida e a arte do processo histórico de que se originou. A ultrapassada crítica
filológica pelo menos relacionava a literatura à linguagem e às formas culturais, e
imaginava um vínculo entre a obra de arte e o ambiente em que a obra literária era escrita
e posteriormente lida. Já a crítica Inflacionária insistia em isolar a esfera da literatura (se
não da vida) pelo menos na tradição da alta cultura que pairava acima da vida das
civilizações e, em última análise, lhe dava sentido.
Não se pode dizer, sem reservas, que o modo Inflacionário fetichizava a obra de
arte e transformava a crítica num serviço sacerdotal ao objeto assim fetichizado. Mas,
para os críticos que trabalhavam nesse modo, a base de semelhante fetichismo estava
potencialmente presente. Sua tendência a situar a literatura num domínio do ser cultural
que pairava acima da “existência humana comum” e lhe dava sentido, mas que era regido
pelos seus próprios princípios autotélicos, tendia a fazer da literatura um mistério que
somente os iniciados maisABSURDISTA
0 MOMENTO sensíveis na “tradição”
NA TEORIA que fornecia o seu contexto eram
LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA 297
BIBLIOTECA ~ TODíaS*
GAMPtfiB DJS BAIJBÂ'
lúveis. Contradições desse tipo foram esmiuçadas por Jacques Derrida, o mago atual do
cenário intelectual parisiense, que define como seu objetivo querer postar-se “num ponto
em que eu não saiba mais para onde vou” (“Structure, Sign and Play in the Discourse of
Human Sciences”, em Macksey
the 300 e Donato,
TRÓPICOS p. 267). Mas esse “eu” que já não sabe
DO DISCURSO
para onde “ele” está indo é um importante indicador do lugar aonde esse modo de crítica
tenciona ir. Sinaliza a hipostatização do “eu” crítico, a dissociação do crítico de todo
empreendimento coletivo, a elevação da crítica à condição de super- ciência que é ao
mesmo tempo puramente subjetiva e propensa a reivindicar a significação universal. Não
é por acaso que Nietzsche é invocado como o paradigma desse programa crítico; ele é o
arquétipo da postura crítica que celebra o sol i ps is mo como atitude e a vontade de poder
como método.
E no contexto de ideias como essas que podemos compreender o significado
histórico do momento Absurdista na crítica literária contemporânea. O estruturalismo
“generaliza” o domínio dos textos literários, afirmando assim tacitamente o seu valor
compartilhado, mas situa esse valor no seu atributo mais obviamente compartilhado - a
sua condição de artefatos literários. Isso não significa uma redução nem uma inflação,
porque o texto literário é tomado exatamente como o que parece ser, isto é, um sistema
de signos. Com efeito, em vez de considerar o texto literário um epifenômeno ou uma
manifestação de algum nível mais básico da consciência ou processo humano, o
estruturalismo estende a noção do texto a todos os sistemas de signos, dos rituais
religiosos ao esporte, aos hábitos alimentares, à moda, às práticas inumatórias, ao
comportamento econômico e a tudo o mais. Todos os fenômenos culturais são exemplos
da capacidade humana para produzir, trocar e consumir os signos. Conseqüentemente, a
interpretação dos fenômenos culturais é considerada meramente um caso particular do
ato de ler no qual a manipulação e a permuta dos signos é levada a efeito de modo mais
consciente, o ato de ler textos literários.
Em vez de ver no texto literário um produto de processos culturais mais
fundamentais do que a escrita, a escrita é considerada o análogo básico de todos aqueles
atos de significação pelos quais se confere sentido a uma existência que de outro modo
não teria sentido, donde a aguda melancolia da atividade estruturalista; todos os seus
“tropiques” são “tristes” porque para ela todos os sistemas culturais são produtos da
imposição de um sentido puramente fictício a uma realidade que de outro modo careceria
de sentido. Todo sentido deriva do poder da linguagem de cativar a inteligência com a
promessa de um sentido que a análise sempre pode demonstrar ser arbitrário e, na
verdade, espúrio. Os livros sempre nos frustram, acreditam os estruturalistas, porque seu
caráter fictício ressalta diretamente para a inteligência crítica capaz de discernir a sua
condição de mero sistema de signos. E tudo o mais na cultura também nos frustra, à
medida que é analisado e revelado como um mero sistema de signos. De que modo pode
um determinado sistema de signos - como a literatura - reclamar algum valor particular
se todas as coisas, até mesmo a “natureza”, em última análise, não passam de um sistema
de signos? O estruturalismo não pode responder a essa pergunta porque sua resposta
também seria apenas um sistema de signos - portanto, tão arbitrária quanto a experiência
da cultura que inspirou a pergunta.
No cerne do estruturalismo, pois, reside uma percepção da natureza arbitrária do
empreendimento cultural total e, afortiori, do empreendimento crítico. A crítica
Absurdista, que surgiu originariamente no pensamento de Paulhan, Bataille, Blanchot e
Heidegger como uma doença até à morte com a linguagem, apodera-se dessa noção de
arbitrariedade e, no pensamento de Foucault, Barthes e Derrida, leva-a à sua conclusão
lógica. Esses pensadores fazem da arbitrariedade do signo uma regra e do “livre jogo” da
significação um ideal.
Ouçamos Derrida falar dos problemas fundamentais da história da metafísica:
O acontecimento 0 MOMENTO ABSURDISTA
que chamei NA TEORIA
de ruptura, o LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA
dilaceramento 301
a que aludi no começo desta preleção,
provavelmente se teria produzido quando a cstruturalidade da estrutura teve de começar a ser pensada, quer
dizer, repelida, e é por isso que eu disse que esse dilaceramento era repetição, em todos os sentidos da palavra. A
partir daí tornou-se necessário pensar a lei que comandava, por assim dizer, a aspiração ao centro na constituição
da estrutura e o processo de significação que prescreve os seus deslocamentos e as suas substituições por essa lei
da presença central - mas uma presença central que nunca foi ela mesma, que sempre foi deportada para fora de
si no seu substituto. O substituto não substitui coisa alguma que de certo modo lhe tenha preexistido. A partir daí,
foi provavelmente necessário começar a pensar que não havia centro, que o centro não podia ser pensado na
forma de um estar-presente, que o centro não tinha lugar natural, que não era um lugar fixo, mas uma função,
uma espécie de não-lugar no qual se fazia um numero infinito de substituições de signos. Foi nesse momento que
a linguagem invadiu a problemática universal; o momento em que, na ausência de um centro ou origem, tudo se
tornava discurso - desde que possamos chegar a um acordo sobre esta palavra isto é, todas as coisas se tornavam
um sistema em que o significado central, originário ou transcendental, nunca está absolutamente presente fora
de um sistema de diferenças. A ausência de significado transcendental amplia indefinidamente o domínio e o jogo
recíproco ou significação (“Structure, Sign and Play”, cm Macksey e Donato, p. 249).
[...] em primeiro lugar [...] encontramo-nos aqui numa região [...] em que a categoria da escolha parece
particularmente trivial; e, em segundo lugar, porque devemos primeiro tentar pensar o solo comum e a différence
dessa diferença irredutível. Existe aqui um tipo de questão, chamemo-la histórica, cuja concepção, formação,
gestação e trabalho hoje apenas entrevemos. Admito que emprego tais palavras com os olhos voltados para as
operações da procria- ção - mas também para aqueles que, numa companhia da qual não me excluo, desviam os
olhos em face do ainda inominável que se anuncia e que só pode fazê-lo, como se impõe toda vez que está iminente
um nascimento, sob a espécie da não-espécie, sob a forma informe, muda, infante e terrificante da
monstruosidade (ibid., p. 265).
realismo literário, 140; romântica, 82; e tropologia, 92- Mably, abbé de, sobre escrita histórica, 159.
94, 133-134,141-142, 144-145; Voltaire sobre a, Malraux, André, 49.
159-160. Mandelbaum, Maurice, sobre historicismo, 118 n. 1.
Hitler, Adolf, 50. Mannheim, KarI, sobre ideologia, 87-88, 121.
Homem Selvagem: Santo Agostinho sobre o, 182- 1S4; Marx, KarI: comparado com Vico, 220-221; O 18
ameaça às civilizações, 174; antítipo do homem Brtwiário de Luís Bonaparte, 29, 86-87; e Derrida,
social, 194; atributos do, 185-189; Bernheimer 305; sobre fetichismo do ouro, 205; Manifesto
sobre o mito do, 189, 194, 197-198; conceito grego Comunista, 29: como mecanicista, 84; sobre
de, 190-191; conceito de, interiorizado, 172-173; mercadoria, 206 n. 4; sobre primitivos, 202; sobre
descendente de Cam, 181; mito, 173, 176; proletariado, 215; sobre a Revolução Francesa, 77-
Montaigne sobre o, 198- 199; e motivo do Nobre 78; tropologia em, 18, 28-29.
Selvagem, 203-204; mudez do, 185; produto da Mecanicismo, 84-85.
corrupção da espécie, 181; Rousseau sobre o, 202; Mercadoria, Marx sobre, 206 n. 4.
Sachs sobre o, 193- 194; no século XX, 201; em Metáfora: Burke sobre, 92; emprego de, por Foucault,
Shakespeare, 195; Vico sobre o, 196. 275; como modo de consciência, 144; em narrativas
Hughes, H. Stuart, 55. históricas, 107-108, 132; Vico sobre, 227.
Huizinga, Johann, 281. Meta-história, 66-67; e história, 66 n. 2,90,98, 154.
Hume, David, ironia de, 165-167. Metonímia: Burke sobre, 92; emprego de, por
Foucault, 276; como modo dc consciência, 18- 19;
Ibsen, Hcnrik, e representação dos historiadores em em narrativas históricas, 145; Vico sobre, 228-229.
Heááa Gabler, 45-46. Michelet, Jules, 54, 77, 78 n. 26, 85; ideologia de, 88.
Ideologia; e historiografia, 87-90; Mannheini sobre, 87- Miller, J. Hillis, 288.
88; de Michelet, 88; e objetividade, 88; de Mimese, 17; Frye sobre, 98-99; em narrativas histó-
Tocqueville, 88. ricas, 105.
Iggers, Georg, sobre o historicismo, 119 n. 1. Mito: e estória, 77; e ficção, 140, 200; Frye sobre, 78 n.
Interpretação: Bloom sobre, 15; Collingwood sobre, 27, 98-99, 143; e historiografia, 143-144; Lévi-
76; Hartman sobre, 291-292; na história, 65-66, 89- Strauss sobre, 75.
90; e relativismo, 89; e tropologia, 94. Modo de consciência: ironia como, 19; metáfora como,
Ironia: cmBurckhardt, 80; Burke sobre, 93; emprega 18; metonímia como, 18-19; sinédoque como, 19.
de, cm Foucault, 278-279; em Derrida, 305; em Montaigne, Michel de, 198-199.
Hume, 165; como modo de consciência, 19; em Mulher Selvagem na Idade Média, 188.
narrativas históricas, 110; Taylor como exemplo
dc, 125-132; em Tocqueville, 146; Vico sobre, 229- Narração, 56, 70-71, 77, 144.
230. Narrativa: como explicação, 70 n. 12; e estilo, ll4;e
figuração, 121-123; e mimese, 105.
Jakobson, Roman: sobre distinção entre prosa e poesia, Nemrod: como Homem Selvagem, 182; Santo Agos-
112-113; teoria da linguagem dc, 119-122; sobre tinho sobre, 182,
tropos, 27-28. Nicolini, Fausto, 241-242.
Jó, 179-180. Nietzsche, Friedrich, 20, 23, 26, 34, 48, 60, 62, 63, 164;
João de Hollywood, 207. sobre bárbaros, 202; comparado com Foucault,
279-280; Foucault sobre, 268; sobre história, 44,
Kant, Immanuel, 166-167.
153-154; Nascimento da Tragédia, 44; sobre tipos de
Kantismo, 37.
historiografia, 68-69, 95; Uso e Abusa da História,
Kermode, Frank, 200.
44.
Klages, Ludwig, 48.
Nobre Selvagem: antítese do homem nobre, 213- 214;
Leibniz, G. W. von, conceito de história de, 155, Boas sobre o, 212; e le ban sauvage, 214 n. 17;
Lessing, Theodor, 281. Diderot sobre o, 213; ideia do, no século XVIIí,
Lévi-Strauss, Claude, 173; sobre a história como dis- 169; e o motivo do Homem Selvagem, 203-204;
ciplina, 119-121; sobre a narrativa na história, 35- Rousseau sobre o, 213.
Nova Crítica, 287-288.
36, 71-72, 107-108; relação de Foucault com, 282-
283; teoria da linguagem de, 120-121; Ortega y Gasset, José, 49.
Lineu, Carl, sobre tipos de humanidade, 209 n. 8.
Paulo, São, sobre heresia, 170.
Linguagem: e critica literária, 288; Foucault sobre,
Pedersen, Johannes, 178.
258-261, 293; e historiografia, 111-112, 143- 144;
Peirce, C. S., 105.
Vico sobre, 225,238.
Pepper, Stephen, 81; sobre hipóteses de mundo, 81 n.
Lovejoy, A. 0„ 290.
29.
Lõwíth, KarI: sobre Burckhardt, 80 n. 28; sobre Vico,
Piaget, Jean, 34; crítico de Foucault, 274; teoria da
224.
consciência, 19-26; tropologista, 24.
Lukács, Georg, 36, 221.
Pirronismo,310no pensamento histórico do século TRÓPICOS DO DISCURSO
Urdidura de enredo na escrita histórica; de
XV1I1, 159. Burckhardt, 85; de Marx, 86; de Michelet, 85; de
Popper, KarI R.: sobre historicismo, 117 n. 1, 118 n. Ranke, 85; de Tocqueville, 86.
3, 124, 134; sobre historiografia, 118.
Poulet, Georges, sobre leitura, 289-291. Valcry, Paul, sobre história, 49.
Primitivismo, e arcaísmo, 192-194. Vico, Giambattista, 26; Ciência Nova, 161 -163, 219;
Primitivos: Freud sobre, 202; Marx sobre, 202. comparado com Marx, 220-221; comparado com
Progresso, ideia de, 166. Piaget, 20; crítico do cartesianismo, 219; Croce
Proletariado, celebração dc, por Marx, 215. sobre, 241-248, 250-252; sobre fases da evolução
Providência, 235-236. cultural, 220-223, 230-232; filosofia da história de,
Psicoterapia, comparada com reconstrução histórica, 234-235; e Hegel, 221-224; sobre linguagem, 225,
103-104. 238; “lógica poética” de, 225-236; Lüwith sobre,
224; sobre o lugar dos hebreus na história, 223-
Ranke, Leopold von, 85; ideia de história em, 67, 78 n. 224; sobre natureza humana, 221; princípio do
26. verum ipsum factum, 219-220; sobre a Providência,
Realismo e história, 105-106, 140. 235-236; sobre o ricorso das civilizações, 236-237;
Relativismo em historiografia, 89. sobre o selvagem como poeta natural, 196; teoria
Romantismo em historiografia, S2. da consciência, 20; sobre tropos, 18, 92 n. 42, 111-
Rousseau, Jean-Jacqucs, 20; e motivo do Homem 112, 163,278.
Selvagem, 202; sobre o Nobre Selvagem, 213. Voltaire: antipatia à linguagem figurativa de, 160;
Filosofia da História, 157; História de Carlos XII,
Sachs, Hans, 193-194. 157; sobre historiografia, 159.
Sade, Marquês de, 294.
Walsh, W. H., sobre a coligação, 83 e n. 33.
Said, Edward W., 288, 289.
Weber, Max, 48, 56.
Sartre, Jean-Paul: como anti-historicista, 50-51; sobre
Windelband, Wilhelm, 48; sobre idiografia, 82-83.
literatura moderna, 299-300; A Náusea, 50- 51; As
Palavras, 51; O Ser e o Nada, 51.
Schopenhauer, Arthur, 56.
Selvagem, etimologia de, 170.
Shakespeare, William, 195.
Silogismo e tropos, 15.
Sinédoque: Burke sobre, 92; emprego de, por
Foucault, 275-279; como modo de consciência, 19;
Vico sobre, 229.
Spengler, Oswald, 49, 280.