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Psicologia: Teoria e Pesquisa

Abr-Jun 2007, Vol. 23 n. 2, pp. 149-158

Experimentação Política da Amizade: Alteridade e Solidariedade


nas Classes Populares1
Lívia Godinho Nery Gomes2
Nelson da Silva Júnior
Universidade de São Paulo

RESUMO – Pensar na possibilidade da amizade como espaço de experimentação capaz de irromper formas fixas de
subjetividade e sociabilidade constituindo uma forma de resistência política representa um convite à alteridade numa
relação experimental designada pelo compromisso irreversível com o outro. Este trabalho pretende descrever e discutir
alguns resultados de uma pesquisa de mestrado que investigou as semânticas da amizade e a possibilidade da amizade se
configurar como espaço de experimentação política. Buscando compreender como os laços de amizade podem constituir
relações privilegiadas de experimentação de outras formas de relacionamento incompatíveis com os modelos individualistas
e excludentes do capitalismo, entrevistou-se trabalhadores de cooperativas populares sobre as suas histórias de amizade.
Os resultados dessa pesquisa destacam que os laços solidários que florescem entre amigos nas classes populares escapam
aos imperativos neoliberais e resistem à situação de opressão, revelando modos criativos e astuciosos de enfrentamento de
condições espoliantes, contribuindo para reverter situações de penúria.

Palavras-chave: amizade; alteridade; experimentação; solidariedade; resistência.

Political Experimenting of Friendship: Otherness and Solidarity in


the Lower Class Population
ABSTRACT – To think about the experience of friendship as a space of experimentation which may bring about fixed forms
of subjectivity and sociability, thus constituting a form of political resistance, represents an invitation to a state of otherness
in an experimental relationship designated by the irreversible commitment with the other. This paper intends to describe and
discuss some results of a research elaborated in a Master’s Dissertation project which investigated the semantics of friendship
and the possibility of friendship turning into a space of political experimentation. Trying to understand how friendship ties may
constitute privileged forms of experimentation of other forms of relationship, incompatible with the individualist and exclud-
ing models of capitalism, the authors conducted several interviews with workers of popular cooperatives (an autonomous and
non-hierarchical form of work-group organization) about their friendship histories. The results of this survey highlight that the
solidarity ties that flourish among friends of the lower class working groups do not coincide with the neoliberal imperatives
but rather resist against oppressive situation, revealing creative ways of facing unfair working conditions, thus contributing
to revert them.

Key words: friendship; otherness; experimentation; solidarity; resistance.

A experiência intersubjetiva encontra-se no centro da do outro que sempre requer esforço e trabalho, produzindo
compreensão contemporânea dos processos de constituição dor e sofrimento num processo de abertura e acolhimento
de subjetividade, configurando uma ética de imprescindi- do outro em sua alteridade; essa experiência traumática do
bilidade do outro para a produção do si mesmo, na qual o outro implica processos de transformações, deslocamento e
outro aparece como irredutível, na sua alteridade absoluta. reconstituição das partes implicadas.
Figueiredo e Coelho Jr. (2003) apontam que é no trabalho A relação intersubjetiva para Lévinas (1993, 2005) é,
de Lévinas (1993, 2005) que o outro é pensado de fato como portanto, sempre traumática, porque implica transformações
uma radical alteridade, a qual sempre me precede e me ex- e transformações implicam trabalho e dor; o contato com o
cede numa relação de intersubjetividade traumática: a sub- outro sofre o inevitável impacto de adaptação incompleta,
jetividade nasce nessa dimensão intersubjetiva do encontro da impossibilidade de um perfeito ajustamento, sendo trau-
mático porque causa fraturas e requer trabalho em processos
de inadaptação entre singularidades.
O presente artigo pretende, portanto, descrever e discutir
1 O presente artigo refere-se a uma parte da Dissertação de Mestrado da alguns resultados de uma pesquisa de Mestrado que investi-
primeira autora sob orientação do segundo autor, intitulada Semânticas
da amizade e suas implicações políticas. Familialismo e alteridade entre
gou a qualidade política da amizade, iluminada por Arendt
amigos nas classes populares. Esta pesquisa foi realizada com apoio (1993), Derrida (1997), Ortega (1999, 2000), entre outros,
da bolsa do CNPq. como relação na qual sujeitos em suas alteridades encontram-
2 Endereço: Alameda Ministro Rocha Azevedo, 373, apt. 71 B, São Paulo, se desestruturando-se, num espaço “agonístico” que favorece
SP, Brasil 01410-001. E-mail: liviagng@ig.com.br questionamentos de pontos de vista fixos, permitindo des-

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locamentos e a experimentação do surpreendente, de onde A dimensão intersubjetiva, como acontecimento ético,


ações políticas inéditas podem se perfazer. que Lévinas (1993, 2005) destaca requer dor e esforço no
encontro com o outro que é sempre indiscernível e que me
O chamado do rosto: encontros traumáticos e interpela, exigindo solicitude em sair-de-si-para-o-outro,
alteridade condição em que o eu é convocado para a seriedade do
existir-para-outrem na qual a aventura existencial do pró-
Lévinas (1993) pensa o encontro com o outro como ximo importa antes que a sua própria – o que me intima
uma relação traumática na qual a presença desse outro responsabilidade por esse outro e até mesmo o sacrifício de
impele, comanda, a partir do seu rosto, uma resposta – en- morrer por ele.
tendida como responsabilidade pelo outro. O caráter ético Esse amor comandado pelo rosto de outro solicita uma
do conceito levinasiano de rosto funda-se na compreensão resposta, uma atenção cuidadosa, um apelo irresistível de
de que seres humanos são vulneráveis uns aos outros, ao não deixá-lo só, em outras palavras, no encontro com o
apelo do rosto do outro. A experiência de estar exposto a outro, o eu torna-se questionado e investido pela alteridade
outrem implica já generosidade; o ser visitado por outro irredutível do outro, responsável por este numa condição de
me traumatiza e me afeta, sendo impossível rescindir a não indiferença diante de sua morte e sofrimento.
responsabilidade por esse outro. A leitura levinasiana da Então, na leitura de Lévinas (1993, 2005), a subjetivi-
relação intersubjetiva pressupõe que o encontro com o outro dade humana surge, constitui-se no encontro ético de aco-
implica reverência; “(...) o rosto impõe-se a mim sem que eu lhimento do outro como rosto, na sua absoluta estranheza,
possa permanecer surdo a seu apelo, ou esquecê-lo, quero nesse sentido, a alteridade é constitutiva da subjetividade.
dizer, sem que eu possa cessar de ser responsável por sua A sociabilidade na relação faca-a-face constitui uma cha-
miséria. A consciência perde sua prioridade.” (Lévinas, mada, um apelo irresistível, pois me obriga e exige de mim
1993, p. 60). uma resposta; a percepção do “absolutamente outro” nessa
Nesse sentido, para Lévinas (1993), a relação com relação é inesgotável, insaciável, pois configura um encon-
o outro é traumática, pois é essencialmente um espaço tro que me põe em fome crescente; a percepção de alguém
intersubjetivo no qual alteridades são questionadas e se alimenta aumentando a fome, o outro que me visita é como
desestabilizam num movimento de não-incorporação, no uma espécie de pão que se dá a comer sem desaparecer,
qual o outro nunca é englobável, assimilável. sem diminuir. “O desejável não preenche meu Desejo, mas
Portanto, de acordo com Lévinas (1993), a dimensão aprofunda-o, alimentando-me, de alguma forma, de novas
ética da visitação é anunciada pela presença do rosto como fomes”. (Lévinas, 1993, p. 56).
uma ordem irrecusável – “a nudez do rosto é indigência e já Essa imprescindibilidade do outro para a produção do si
súplica na retidão que me visa” (Lévinas, 1993, p. 60), um que é central no pensamento de Lévinas (1993, 2005), con-
mandamento que possibilita o questionamento da consciên- cebendo a relação intersubjetiva como espaço essencialmente
cia num movimento no qual, diante da exigência do outro, de afetividade, de acolhimento do outro em sua alteridade
“o Eu” tem a sua soberana coincidência consigo diluída, no qual há afetações e transformações de subjetividade,
expulsando-se do repouso – identificação em que a consci- encontra-se presente na discussão derridiana e foucaultiana
ência retorna triunfante a si mesma para repousar sobre si. O de amizade como espaço de experimentação aberto ao ou-
“eu”, ao perceber o rosto como outro alguém, questiona-se tro – que não é idêntico a mim, possibilitando uma relação
e se desestabiliza, esvaziando seu imperialismo e egoísmo, agonística de produção de subjetividades e de irrupção do
confirmando sua unicidade na medida em que ninguém pode imprevisto.
responder a esse rosto (ao outro) em seu lugar. Nesse sentido, a subjetividade e a sociabilidade possuem
Portanto, de acordo com Lévinas (1993, 2005), é na um caráter ético no encontro com o outro. A relação inter-
dimensão inter-humana, no encontro com o outro em sua subjetiva tem um caráter “agonístico”, o outro é indispen-
radical alteridade numa relação assimétrica, sem preocupa- sável para a produção do si mesmo pois, no encontro com
ção com reciprocidade, que o eu é interpelado, despertado um outro, na situação face-a-face, os sujeitos envolvidos
da sua “embriaguez de si mesmo”, sendo arrancado de sua incitam-se mutuamente possibilitando uma desestruturação
primordialidade tornando-se responsável, antes de tudo, que geram possíveis questionamentos e transformações de
por esse outro que me convoca. suas subjetividades.
Esse despertar por outrem, o ser capturado, tornando-se Segundo Ortega (1999), a amizade entendida na concep-
refém desse outro que me comanda uma resposta, consiste ção foucaultiana como uma “estética da existência”, como
no encontro ético levinasiano, no qual o eu é interpelado espaço de intersubjetividade “agonística”, ressaltando a
pelo outro numa condição de não indiferença por esse ou- heterogeneidade no encontro com o outro que não deve ser su-
tro que me ordena, sem escravidão ou subjugação, pois é primida na busca de uniformidade, representa a possibilidade
nessa convocação pelo outro que me diz respeito que o eu de experimentar e reinventar formas de existência, recusando
se descobre e se desperta. modos de subjetividade e sociabilidade dominantes.
Segundo Lévinas (1993, 2005), o encontro com outrem É na trama das relações cotidianas que a amizade pode
é já minha responsabilidade por ele; o seu chamamento, sua compor relações de experimentação “agonística” nas quais
súplica que me exige uma resposta, questiona-me, faz apelo os sujeitos podem desestruturar-se, tendo suas subjetividades
à minha responsabilidade por sua morte, como um apelo modificadas, cuja força concerne à dimensão da produção
irresistível a não deixá-lo sozinho ou morrer só – aquilo de subjetividade, pois aponta para a emergência de novos
que é próprio do “amor sem concupiscência”. sujeitos sociais que juntos podem perfazer ações políticas ino-

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vadoras. Sader (1988) destaca essa dimensão de resistência (...) strogonof, bicho! Eu não conhecia. Maça de sobremesa,
política que pode ser travada coletivamente no âmbito das Chambourcy de sobremesa, uma maravilha! Duas misturas,
relações diárias ao ressaltar a irrupção de novos sujeitos, duas saladas (uma cozida, uma crua). Ficou uns seis meses
novos, pois organizaram-se coletivamente em suas lutas mais ou menos assim. Depois começou a piorar, aí é outra
cotidianas favorecendo a formação de movimentos sociais história. Agora, o fruto disso aqui, nós formalizamos um
populares da região de São Paulo entre 1970 e 1980, os quais grupinho que depois levou várias lutas lá... (...) (Depoimento
ampliaram as redes de sociabilidade e ação, configurando cedido a Sader, 1988, p. 247, grifos meus).
novos padrões de ação coletiva, abrindo novos espaços
políticos – o cotidiano das classes operárias. É nesse sentido que as relações de amizade podem
Os movimentos sociais dos trabalhadores que compõem compor uma comunidade coletivamente organizada - da
o “novo sindicalismo” nos anos 1970, como nos mostra qual emergem novos sujeitos -, impelidos pela realização
Sader (1988), revelaram uma nova configuração das classes de ações inovadoras, que Derrida (1997) e Foucault (1981)
operárias, as quais passaram a se apoiar em outras estra- falam da amizade como espaço de experimentação política.
tégias discursivas, pautadas na contestação, politizando É nesse sentido, indicado por Sader (1988), de que as lutas
espaços antes silenciados, constituindo novas formas de do dia-a-dia compõem um aprendizado de cidadania nas
expressão a partir da ação direta dos trabalhadores que quais as privações são pensadas enquanto injustiças podem
repensaram o cotidiano das classes populares denunciando ser revertidas se houver união e luta por seus direitos, que os
a condição de opressão. laços de amizade configuram-se como uma relação favorável
Esse outro discurso da condição operária, elucidado por à mobilização dos sujeitos para modificar e transformar o
Sader (1988), reivindica direitos, fala das injustiças a que cotidiano, compondo relações experimentais de resistência
são submetidos e que podem ser vencidas quando os traba- e enfrentamento da condição de aviltamento e dominação,
lhadores se unem e lutam. Os movimentos sociais revigoram das quais podem irromper ações políticas inéditas – como
a cidadania no cotidiano das classes trabalhadoras por meio apontam Arendt (1993), Derrida (1997) e outros.
das lutas em que os operários organizam-se criativamente
de diversas formas, em experiências de resistência travadas Experiência discursiva da amizade e a experimentação
no interior das fábricas, dos sindicatos, reveladas pelas gre- política
ves e relações solidárias entre os operários que buscavam
transformações e melhorias das condições de trabalho. Para Arendt (1993), a mais importante das virtudes
Mobilizações coletivas que se estenderam aos moradores políticas é a amizade. A relação de amizade se configura
de periferia nas reivindicações de transportes, creches, como espaço privilegiado do agir e do falar – experiências
escolas, que passaram a se organizar em associações de eminentemente políticas e inter-humanas. Agir, no sentido
bairros, clube de mães. arendtiano do termo, é, antes de tudo iniciar, começar o que
Em seu belíssimo livro, Sader (1988) ressalta como a não é previsto, o que ainda não existe entre nós, no mundo.
dinâmica dessas “pequenas lutas” cotidianas, antes conside- Com a sua teoria performativa da ação, Arendt (2001)
radas “lutas por migalhas”, liberam energia e criatividade no aponta uma ação política como acontecimento e começo,
cotidiano das classes operárias em movimentos politicamen- como interrupção de processos automáticos. As ações
te organizados cuja potência aponta para a emergência de humanas se caracterizam pela ausência de limites e pela
novos sujeitos sociais que se experimentam e se descobrem imprevisibilidade das conseqüências. O agir constitui uma
aptos a conquistarem e realizarem ações significativas que história cujo desenlace é desconhecido. Em outras palavras,
resistem às condições opressivas, produzindo transforma- na esfera da ação política é precisamente o inesperado que
ções relevantes em suas vidas. acontece.
Ao falar da grandeza desse “trabalho miúdo” que estava Portanto, agir entendido como experiência política impli-
sendo realizado nos bairros, fábricas e sindicatos, Sader ca a parceria, a companhia dos outros. A ação, nesse sentido
(1988) destaca inúmeras experiências travadas nas lutas arendtiano, possui caráter não-violento e não-coercitivo na
diárias dos trabalhadores por grandes causas, nas quais a medida em que ela necessita dessa parceria, alcançada pela
mobilização coletiva dos operários irrompeu transformações persuasão, por meio de conversas e não pela violência, para
e ganhos significativos; o autor destaca uma determinada desempenhar um ciclo completo de experiência inaugural, de
fábrica onde houve a mobilização para exigir que o café experiência inovadora. É nesse sentido, de espaço de expe-
fosse servido de modo a permitir a livre movimentação rimentação e diálogo, que a amizade é, por excelência, uma
dos operários os quais foram atendidos; em uma outra, os atividade política que potencializa o agir. Em outras palavras,
operários se negaram a fazer horas extras enquanto não a amizade instaura o agir, possibilitando iniciar, perfazer com
obtivessem aumento do salário e foram vitoriosos; na Arno, os outros a iniciativa, conquistando a adesão destes mediante
contra o preço e a má qualidade das refeições, os operários a palavra e não mediante a coerção ou mando.
fizeram um boicote ao restaurante da empresa até obter o Portanto, a amizade na concepção arendtiana do termo é
congelamento dos preços e melhoria na refeição, sobre esse respeito e interesse pela opinião dos outros, não depende de
evento o autor aponta que: “(...) Ao se sentirem que haviam intimidade, consiste no gosto pela opinião do outro, confi-
conseguido agir coletivamente, enfrentando a chefia, fica- gurando uma relação desconcertante, “agonística”, na qual
ram eufóricos. Os efeitos se fizeram sentir: os preços que é possível viver o deslocamento/questionamento do familiar,
iriam aumentar ficaram um ano e meio congelados e a deslocando-se para o lugar dos outros. A amizade concebida
qualidade os surpreendeu” (Sader, 1988, p. 247): na acepção política arendtiana possibilita experimentar a

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desestabilizadora condição de “vista embaçada” sentida ao do agir e falar possibilitam a irrupção do imprevisto – tal
enxergar o mundo através de “lentes outras”. Além dessa como apontado por Arendt (1993, 2001).
experiência de descolamento do familiar vivida por uma Os discursos contemporâneos de amizade ligam-se à
alteração de ponto de vista, a relação de amizade entendida complexa tessitura das relações contemporâneas imbricados
como experiência inter-humana do agir e do falar possibi- com toda a complexidade e ambigüidade que as caracterizam.
lita a experiência de ser visitado por outros, num contexto É sobre esses discursos que, a partir de agora, desdobraremos
desafiador de coragem e ousadia da aparição pois, segundo nossa atenção, mais precisamente, na inesgotável busca de
Arendt (2001), é somente pela ação e discurso que o agente apreendê-los.
aparece e pode revelar-se.
Encantamento da hospitalidade amiga
O elemento político, na amizade, reside no fato de que, no
verdadeiro diálogo, cada um dos amigos pode compreender a É sobre a amizade, na acepção arendtiana de escuta e
verdade inerente à opinião do outro. Mais do que o seu amigo acolhida respeitosa do outro em sua alteridade, na qual se
como pessoa, um amigo compreende como e em que articulação vive o que é próprio da solidariedade, da hospitalidade que
específica o mundo comum aparece para o outro que, como Pedro nos fala ao narrar uma história de amizade que ele
pessoa, será sempre desigual ou diferente. Esse tipo de com- considera muito marcante. Ao pedir para contar uma história
preensão – em que se vê o mundo (como se diz hoje um tanto de amizade foi esta que ele primeiro destacou:
trivialmente) do ponto de vista do outro – é o tipo de insight
político por excelência. (Arendt, 1993, p. 99). Nossa tem várias. Eu vou contar assim, tipo eu sou daqui, mas
também vou muito pro Rio, eu tenho família no Rio, e tipo uma
Além da experiência discursiva, a amizade como uma amizade que eu tive lá, que logo chegando no Rio com medo
relação política aberta à experimentação – da qual nos fala por ser uma cidade violenta e tal, aí que eu conheci uma pes-
Arendt (1993), Derrida (1997), Ortega (1999, 2000) – implica soa muito legal, conheci na praia, só que a gente morava no
a dimensão afetiva do acolhimento e respeito ao outro em mesmo local, no mesmo morro, eu estava de visita lá, então
sua alteridade, como um espaço intersubjetivo no qual os eu encontrei essa pessoa no morro, o nome dela é (Jasmim),
sujeitos estão em mesma condição de revelação/aparição e de aí tipo assim, foi a pessoa que tipo foi me explicando oh você
escuta acolhida e respeitosa – condição de igualdade política não pode ficar tal hora na rua, que acontece isso e isso, e eu
– podendo mostrar quem são e conhecer os outros. fui explicando as coisas daqui, que era diferente, não era tão
violento e tal, e tipo eu fui a primeira vez pro Rio eu tinha uns
Método treze anos eu conheci ela, tipo agora eu vou final de ano passar
as festas lá, é uma amizade assim que estamos até hoje mas,
Esta pesquisa foi desenvolvida com trabalhadores de foi uma coisa natural, sabe, tipo nos encontramos na praia e
cooperativas populares na Universidade de São Paulo. Os tipo voltamos a se encontrar no mesmo lugar de moradia, (...)
dados provêm da participação no cotidiano de três coope- porque eu tinha medo, tinha que ter um conhecido lá, que eu
rativas durante o período de um ano, registrada em diário só tenho uma prima lá, então eu ia pra casa da minha tia lá e
de campo, e da análise das sessões de entrevistas com os ficava, então não tinha quem muito conversar e através dessa
cooperados3. Todos os sujeitos entrevistados são adultos amizade de uma pessoa só da (Jasmim), aí eu fui conhecendo
com faixa etária maior que 20 anos e moram em bairros primos dela, irmãos tal, aí hoje no local que eu vou lá eu
periféricos de São Paulo. conheço bastante gente através de uma pessoa que tipo pra
Este trabalho utilizou a descrição etnográfica como me- mim foi solidária, chegou, conversou e se interessou, porque
todologia interpretativa das narrativas de amizades. eu era um rapaz de fora, e tipo fez com que eu conhecesse o
bairro, então foi uma amizade assim, é difícil hoje em dia você,
Resultados e Discussão eu acho, que é meio difícil você chegar num lugar e não saber
conversar com ninguém, não se interagir com a pessoa assim,
A compreensão da relação de amizade como abertura aí você tem que procurar uma pessoa que se interessa da sua
ao outro em sua alteridade implica um espaço intersubje- história assim e querer conhecer o lugar e essa amizade pra
tivo traumático que exige dor e esforço num contexto de mim foi importante por causa disso, hoje em dia eu agradeço
inadaptação próprio do contato com a alteridade, supondo a ela quando eu vou lá, quando eu estou lá na cidade, muitas
a qualidade daquilo que Silva Júnior (1999) aponta como a pessoas me conhecem através dela (...) agora eu vou deixar
passividade da incerteza e a adoção do abismo como fonte mais claro, porque assim, no dia que a gente está hoje, se você
do olhar. Arendt (1993), Derrida (1997) Ortega (1999, 2000) chega num local, e tipo tem um rapaz ou uma moça assim, pra
e outros destacam a relação de amizade em sua condição de se aproximar um do outro e ter a iniciativa de conversar, é
perhaps (talvez) como vínculo intersubjetivo que pressupõe muito difícil hoje em dia, então ela foi uma pessoa assim que
a reverência e acolhimento levinasianos, no contato com a eu conheci, eu estava nadando, pegando onda e bati a cabeça
alteridade, na qual as experiências eminentemente políticas na dela, aí ela falou você é de São Paulo, sou e tal, aí começou,
mas eu estou aqui não conheço ninguém vim pra praia com
minha prima, não conheço ninguém, aí do nada encontrei ela
3 Todas as entrevistas foram gravadas, com prévia autorização dos sujei- lá, você é da praia e tal não sei que, olha aqui é assim, não
tos, os quais também assinaram termo de consentimento livre informado pode ficar até tal horário que é perigoso, conheço fulano, quer
que garante a não-identificação pessoal dos sujeitos e da instituição. conhecer tal pessoa. (...) (grifos meus) (Pedro).

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Experimentação Política da Amizade e Solidariedade

De uma inusitada colisão entre as cabeças na praia, Pedro A amizade entendida como espaço intersubjetivo ago-
viveu a inquietante emoção do mal-estar sentido quando nístico traumático, no qual o outro em sua alteridade afeta e
entramos num lugar desconhecido. Esse desamparo ou sus- desestabiliza, implica transformações e, portanto, dor – como
to vivido por Pedro, que Derrida e Dufourmantelle (2003) apontado por Lévinas (1993, 2005) numa relação em que os
nos falam como a comoção sentida quando se está em lugar sujeitos são mutuamente implicados e capturados. Derrida
não conhecido, aos poucos vai se esvaindo pelo gesto de (1993) destaca que esse movimento de mútua afetação no
hospitalidade de Jasmim. Pedro fala sobre o medo sentido qual o estrangeiro questiona a realidade local do hóspede
por estar num lugar desconhecido e considerado violento, e este também questiona esse, essas substituições em que
medo esse que passa diante do acolhimento no encontro o “hospedeiro torna-se hóspede do hóspede” e “o hóspede
com Jasmim. Esse gesto de hospitalidade de Jasmim – que torna-se hospedeiro do hospedeiro” são as leis incondicio-
Derrida e Dufourmantelle (2003) destacam ao ressaltarem nais da hospitalidade, fazendo cada um, refém do outro.
a questão do político como sendo dada, significada a partir Nesse sentido, não é só Pedro que sai diferente, mas Jasmim
do outro, o estrangeiro – interrompe o mal-estar sentido por também sai modificada, como naquela estranha lógica, mas
Pedro, fazendo-o sentir aquela emoção de quem recebeu tão esclarecedora, que Derrida (1993) aponta do “senhor
flores inesperadas. impaciente que espera seu hóspede como um libertador, seu
A postura cuidadosa de Jasmim com Pedro, seu aco- emancipador” (p. 107). O gesto de hospitalidade de Jasmim,
lhimento e escuta atenciosa, informam amizade que não de escuta e acolhida atenciosa, ilumina aquilo que Derrida
depende de intimidade, relação na qual o gosto pela opinião (1993) chama de hospitalidade incondicional:
do outro, a escuta e acolhida desse outro que me desestabi-
liza, possibilita a irrupção do imprevisto – tal como apontam Em outros termos, a hospitalidade absoluta exige que eu abra
Arendt (1993), Derrida (1997, 2003), Ortega (1999, 2000) minha casa e não apenas ofereça ao estrangeiro (provido de
e outros. Não é à toa que Pedro destaca essa amizade como um nome de família, de um estatuto social de estrangeiro, etc.),
especial, ele fala dessa escuta e acolhimento respeitosos, mas ao outro absoluto, desconhecido, anônimo, que eu lhe ceda
afirmando que Jasmim foi uma pessoa solidária, ele era um lugar, que eu o deixe vir, que o deixe chegar, e ter um lugar no
rapaz de fora e ela chegou, conversou, interessou-se por lugar que ofereço a ele, sem exigir dele nem reciprocidade (a
sua história, apresentou-lhe o bairro, suas peculiaridades, entrada num pacto), nem mesmo seu nome. A lei da hospitali-
as pessoas do local. Ou seja, a amiga Jasmim, ao mostrar a dade absoluta manda romper com a hospitalidade de direito,
sua comunidade para Pedro, elucida a qualidade da amizade com a lei ou a justiça como direito. (Derrida, 1993, p. 25).
de igualdade política, aquela condição de igualação política
da amizade que Arendt (1993) diz alcançar, justamente, A humanidade da conversa entre amigos e a
a comunidade. Essa amizade de abertura para o outro em possibilidade de alargar-se; ou o “fala que eu te escuto”
sua alteridade, na qual se é visitado e devolvido pelo outro, de Pedro
permitindo o questionamento e deslocamento do familiar,
possibilita a irrupção do imprevisto, aquilo que ainda é sem De acordo com Arendt (1993, 2001), o mundo torna-se
lugar entre nós. Desse encontro de Pedro com Jasmim é o humanizado quando é transformado em discurso e somente
surpreendente, o imprevisto, que irrompe. É como se essa com o outro que se pode pôr em palavras como o mundo apa-
amizade abrisse porta pra infinitas possibilidades. No míni- rece. Essa condição de “abertura aos outros” que possibilita
mo, a relação de Pedro com o Rio de Janeiro não será mais ver o mundo a partir de um deslocamento de posição, em que
a mesma, ele mesmo conta que, quando chega lá, já sabe se ver o mundo no lugar do outro é a qualidade essencialmente
localizar, sabe os horários que deve chegar e sair, já conhece política da amizade. O aspecto político do diálogo entre
outras pessoas; sem falar do que pode surgir dessas novas amigos do qual Arendt (1993) fala supõe uma relação de
relações estabelecidas com outras pessoas, relações estas que amizade entendida como espaço intersubjetivo traumático
foram desdobramentos de sua amizade com Jasmim. – do qual nos fala Lévinas (1993), em que o contato tenso
Dufourmantelle (2003) afirma que “o futuro está dado com o outro em sua alteridade, exige transformações que
como sendo o que nos vem do outro, disso que é absoluta- implicam dor e esforço num movimento de mudança de
mente surpreendente” (p. 72); essa autora faz um questio- posicionamento, possibilitando um espaço de compartilha-
namento por meio de uma analogia comentando que, em mento no qual se vê o mundo a partir do lugar do outro, o
hebraico, “fabricar tempo” é equivalente a “convidar”, ela que permite o deslocamento de posição para alcançar um
enfatiza, portanto, a “estranha inteligência da língua que pensamento mais abrangente, mais complexo, conforme
pressupõe que, para se produzir tempo, é preciso ser dois, apontado por Margarida:
ou antes, que é preciso que exista o outro” (p. 72). Arendt
(1993) também ressalta que a qualidade daquilo que surge, (...) que nem eu falava, nesse compartilhar você acaba
daquilo que se produz depende da companhia de um outro. compartilhando idéias e pensamentos da forma que você se
As ações políticas precisam da adesão e companhia dos coloca diante do mundo e diante das pessoas e às vezes você
outros, da luz pública advinda do testemunho do outro para tem respostas pra n coisas, mas exatamente por causa dessas
atingir o ciclo de experiência inaugural, inovadora. É nesse diferenças, assim, você pensa de tal jeito diante desse assunto,
sentido que o inesperado, o surpreendente, como qualidades entendeu, eu Margarida penso de outro, de repente a minha
da concepção política arendtiana, conferem à amizade um maneira que estou vendo, que eu estou enxergando as coisas
espaço privilegiado do agir e do falar, iminente de irrupção é diferente da sua, e da maneira que eu estou vendo está me
de experiências inéditas. causando problema e eu não estou sabendo olhar, o seu olhar

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de repente é a solução para o meu problema, e aí nesse com- de abertura ao outro, do gosto pela opinião dos outros. O par-
partilhar, conversando, dialogando, falando eu aprendo e tilhar de opiniões que a experiência do ouvir e falar possibilita
há transformação, entendeu, transformou a minha linha de na conversa entre amigos configura a relação de amizade como
pensamento, transformou a maneira que eu vejo e que eu olho espaço, ao mesmo tempo, confortante e inquietante de trocas
as coisas aí com o que você me traz com o que você me fala eu de idéias, informações, vivências, etc. permitindo, por meio
começo olhar a mesma coisa mas com outro olhar, com outra desse ato de escuta acolhida e compartilhamento, que a vida
visão mais aberta, entendeu, e acaba aprendendo, aí é onde se torne mais “leve”, como nos conta Gabriel:
surge a transformação. (grifos meus) (Margarida).
(...) e quando você encontra uma pessoa que te ouve e tem uma
A relação de amizade configura esse espaço discursivo no resposta amiga, até mesmo um conselho pra te dar, eu acho que
qual é possível, a partir do outro, ver o mundo com outro olhar, isso se torna um tanto quanto, um tanto importante na vida de
com uma visão mais aberta, conforme nos falam Margarida e alguém, porque todos precisamos de alguém pra desabafar, se
Arendt (1993). Essa qualidade discursiva da amizade, na qual você não tem, a sua vida fica um pouco pesada, o clima fica
a conversa entre amigos, a troca de opiniões que possibilita muito pesado, e quando você encontra alguém que faz o que você
essa abertura de visão, revela a dependência do outro para faz com as outras pessoas é um alívio, porque as outras pessoas
alcançar o aprimoramento e ampliação do pensamento, como que você ouve não te dão ouvido, só quer falar, falar, falar e você
nos fala Pedro: ali parado ouvindo, mas quando você encontra assim realmente
uma pessoa pra te ouvir também é muito bom, aí é uma troca,
(...) o amigo ele já conhece a expressão do outro assim, quando você ouve, e depois eu faço a mesma coisa, então, nós vamos
está preocupado, quando está feliz, então, o fala que eu te escuto trocando informações ali até chegar em determinado ponto que
é isso assim, eu já resolvi muitos problemas assim, porque às dependendo da situação, dependendo do que está acontecendo
vezes a cabecinha da gente não pensa, não pensa, precisa de acaba se resolvendo de maneira mais simples e fácil, porque
duas e duas seria o que, um amigo que escuta você (...), esse conversando fica tudo mais fácil pra você resolver alguma coisa.
é o fala que eu te escuto como também já fiz com outros amigos (grifos meus) (Gabriel).
também, outros problemas também, briguinhas, rixas ali, com
outras pessoas, falar oh, pela experiência que eu tenho não vale Essa dimensão de alívio da conversa, afirmada por Gabriel,
nem a pena, não faz isso e deixa, não sei que, eu acho que é também aparece nos discursos dos demais sujeitos entrevista-
isso assim, resolver problema juntos assim, (...) (grifos meus) dos que destacam a relação de amizade como espaço privilegia-
(Pedro). do de escuta atenciosa, de acolhimento e trocas de experiências,
no qual é possível viver a beleza do compartilhamento de
A experiência discursiva da amizade na qual existe uma alegrias, tristezas e do prazer de uma boa conversa:
relação de igualdade política e os amigos como agentes e
falantes compartilham perspectivas de como se põe na vida, Então, o que eu estou te falando assim, contar com um amigo
torna o mundo humanizado. “Esse humanitarismo a que se que você tem um problema, tem uma alegria, quando você tem
chega no discurso da amizade era chamado pelos gregos de alegria você quer compartilhar com todos, especificamente você
filantropia, o ‘amor do homem’, já que se manifesta na presteza chega no amigo e fala ah, eu estou muito alegre por causa disso
em compartilhar o mundo com outros homens”. (Arendt citada que está acontecendo comigo e tal, beleza, aí quando tu tem
por Bauman, 2004, p. 177). um amigo mesmo aí você tem uma decepção na vida ou está
A qualidade discursiva da amizade implica uma relação com um problema aí você chega no amigo também e fala oh,
de abertura ao outro em que a troca de opiniões no diálogo preciso contar meu problema pra alguém, aí, ele é atencioso,
possibilita a experimentação do deslocamento de perspecti- ele te escuta, ele vai, coloca opiniões, oh, você pode encontrar
vas e uma relativização das idéias e pensamento diante dos esse caminho, que eu também já passei por essa experiência,
incalculáveis posicionamentos sobre o que é próprio desse também, então, não é por aí, você está se desesperando, você
mundo. Segundo Bauman (2004), o grande mérito de Lessing, não pode agir assim, então, esses assim que eu falo que, é esses
na opinião de Arendt, foi ficar satisfeito com essa infinidade que fala que eu te escuto, (...) (grifos meus) (Pedro).
de opiniões que surgem nas discussões humanas dos assuntos
desse mundo: (...) a gente fica brava e fica uns dias sem se ver, aí sente neces-
sidade de uma conversar com a outra pra falar das coisas que
(...) A grandeza de Lessing não consiste meramente no insight aconteceram, é pra contar o que aconteceu, pra contar o que
teórico de que não pode haver uma única verdade no mundo está acontecendo, ou se está chateada no trabalho, ou se brigou
humano, mas em sua alegria pelo fato de que ela não existe com alguém ou se discutiu com alguém ou se está muito bem,
e que, portanto, o infindável discurso entre os homens jamais de repente quer compartilhar felicidade, assim, é um monte de
terminará enquanto estes existirem. (Arendt citada por Bau- coisa, é muita coisa porque é muito tempo juntas assim, mas
man, 2004, p. 177). a gente sempre está se auto aprendendo (...) ( grifos meus)
(Margarida)
A desconcertante e acolhedora conversa entre amigos:
convite a devanear-se em horizontes outros (...) nós duas, a gente sentava, conversava, quando a gente
terminava todo o serviço, a gente sentava na área e a gente
O vínculo discursivo da amizade em que os amigos agem e ficava conversando bastante tempo, sentada ali, eu gostava
falam em condição de igualdade política implica uma relação muito disso quando eu estava com ela, de a gente conversar.

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Experimentação Política da Amizade e Solidariedade

Ela conversava, contava da terra dela eu contava de Londrina, uma diferença, aí ele fala assim, você é bom em português,
porque a minha terra é Londrina, nasci no interior de São Paulo também sou, aí eu te ajudo em matemática e tal, tem uma prova
mas fui pra lá pequena, não lembro muito bem, mas eu lembro meio difícil, eu te passo até uma cola, você ver até cola ele
de Londrina, onde eu morei, e ela contava muito da terra dela passava, é errado, mas é amigo. Aí, me ajudava assim, então
e era muito gostoso ver a história que ela tinha pra contar, a essas amizades a gente preza, conheço até hoje, ele também
gente tem a mesma idade, mas a história de vida dela é assim, trabalha aqui na USP, às vezes, no trabalho a gente se suja,
sabe, foi bastante complicada também, e tinha que pescar, o cara trabalha bonitão, todo arrumado, então por onde ele
pegar caranguejo, até sabe, eu viajava nos causo dela, então, me ver, oh (Pedro), pega na minha mão, e uma coisa que eu
foi muito bom na época, e eu tenho saudade dela, (...) (grifos fico bem admirado assim, que eu falo esse cara é meu amigo
meus) (Miosótis) mesmo, eu sinto firmeza, fico até emocionado, é quando esteja
você onde estiver, tipo fazendo o que você faz, o cara é seu
A dimensão política da conversa entre amigos, destacada amigo desde lá de baixo, se ele te ver, ele está passeando de
por Arendt (1993), é iluminada pela possibilidade de alçar carro, está passando bem vestido, ele te cumprimentar, não
vôos, de viajar em universos outros, como Miosótis afirma tem preço isso daí, não tem preço, (...) Mas o que eu prezo é
(“eu viajava nos causo dela”). O espaço discursivo da amizade muito isso, então esse rapaz que eu estou falando agora, ele
permite a extraordinária experiência de se transportar nas mora numa casa bem melhor que a minha, tem um conforto
histórias do outro, numa relação de escuta acolhida e compar- melhor, o irmão dele tem carro, o pai dele e a mãe dele tem
tilhamento de amores, desafetos, alegrias, tristezas – aquilo um cargo bom, e ele tinha todo esse benefício, de ter bóia,
que é próprio da existência humana. Essa solicitude em ouvir, ter pago um curso de natação, então ele me ensinou e na
esse interesse pela história do outro, próprios das relações escola ele também me ensinou e hoje depois da gente adulto
entre amigos como mostram os discursos acima, em que se eu vejo ele aqui, onde me ver para, conversa, então é uma
vive a responsabilidade pelo drama do outro compartilhando das amizades também que eu posso falar, sem palavras, (...)
tristezas e felicidades, compõem um sair-se de si para o outro (grifos meus) (Pedro)
como espaço aberto inerente de desprendimentos e desloca-
mentos que apontam para o alcance de um alargamento de A solidariedade dessa relação informa a condição de
idéias e opiniões, fazendo variar pontos de vista e registros abertura ao outro em sua alteridade, o vínculo de amizade
de sensibilidade – o que qualifica o laço de amizade como que não pressupõe intimidade mas sim o gosto pelo outro,
um devaneio em que se avistam novos horizontes. possibilitando que o imprevisto irrompa, configurando um
vínculo de afetações e transformações mútuas. É o surpre-
Laços solidários que resistem e engrandecem: o endente que surge dessa amizade em que o amigo de Pedro,
amigo que permite experimentar o surpreendente e que já tinha tido a oportunidade de fazer curso de natação,
potencializa habilidades ensina-o a nadar, potencializando seu gosto por esportes e
possibilitando a Pedro fazer o que mais gosta – vínculo que
extrapola a barreira econômica que impossibilitaria Pedro
Pedro é fascinado por esportes, praticar alguma ativida- de aprender a nadar. É no sentido de que Pedro sai afetado,
de esportiva é o que ele diz gostar mais de fazer nas horas potencializado desse vínculo, que essa amizade configura-se
livres. A beleza dessa relação de amizade em que o amigo como um espaço privilegiado de experimentação política
dá a mão para Pedro aprender a nadar destaca a fascinante que permite um movimento de deslocamento, de transfor-
experiência de irrupção do surpreendente que o contato com mações, numa relação de mútuas afetações na qual o amigo
a alteridade implica, como nos falam Arendt (2001), Derrida de Pedro possibilita que ele cresça. A imprevisibilidade é a
(1997), Ortega (1999, 2000) e outros, configurando uma marca dessa relação de amizade de que nos falam Arendt
relação que informa a abertura de infinitas possibilidades: (1993), Derrida (1997), Ortega (1999, 2000) e outros, em
que a abertura ao outro é condição de deslocamentos e
(...) tem amigo que ajuda que fala assim vou te ajudar, ensina transformações, informando a necessidade da companhia do
e ajuda mesmo, tem vários, tipo, pra nadar, natação, no BNH outro para que haja crescimento, para que as ações políticas,
também eu não sabia nadar, primeira vez que eu fui pular no sentido arendtiano, potencializem-se.
na água, eu quase me afoguei, aí chegou um rapaz assim, O atributo da amizade de romper com uma ordem
ele mora até perto de casa, também, só que atrás do colégio estabelecida pode ser observado em duas outras histórias
onde a gente estudou, aí ele falou, oh, você não sabe nadar, eu em que as relações de amizade possibilitam a irrupção do
falei não sei nadar, eu quase morro e tal, tinha uns 11 anos, imprevisto, possibilitando a Pedro, que adora esportes,
aí ele falou assim é o seguinte eu sei nadar, quer que eu te realizar seu sonho de trabalhar com esportes treinando
ensine, aí eu falei ah, eu quero; aí tal, foi pegando na minha um time de futebol. O sonho de Pedro é ser professor de
mão, que na época não tinha bóia, mas só tipo, como é que educação física e mesmo não tendo condições financeiras
eu posso falar, só, os meninos que tinham dinheiro mesmo, atualmente para freqüentar uma academia, ele fala que
a gente pegava aqueles pedaço de isopor, assim, colocava aprendeu vários exercícios físicos com a ajuda de amigos,
em baixo da barriga pra, que é apoio para o nado, aí ele me mostrando o encantamento de experimentar com o amigo a
ensinou a nadar, a gente criou amizade assim, começou me realização de um sonho, de divertir-se, de ter seu momento
ensinando a nadar, depois jogava futebol junto, estudamos de lazer e aprender as atividades físicas, que é o que mais
junto também, aí tipo tinha um dever assim, tinha matemática, gosta de fazer, rompendo com a dificuldade do impedimento
sempre fui péssimo em matemática, e ele sempre foi bom, é econômico – o que aponta a beleza da relação de amizade

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L. G. N. Gomes e N. S. Júnior

como espaço privilegiado de experimentação política, ad- ensinar, aí nas horas vagas e quando a FAU estava de férias,
vertida por Arendt (1993), Derrida (1997), Ortega (1999, que os alunos daqui entram em férias em julho, e dezembro,
2000) e outros: nossa ele me ensinou a dirigir aqui no estacionamento, aqui,
que era uma loucura, mas eu consegui, entendeu, ele que me
(...) mas sempre fui fascinado por esporte assim, e sempre ensinou, (risos) ele que me ensinou, um barato, (...) (grifos
tive ajuda de amigos no futebol, em natação, aí a partir do meus) (Girassol)
momento eu pensei ah, eu quero me envolver no esporte pra
sempre assim, fazer uma faculdade, prestar concurso pra Esse laço de amizade que possibilitou Girassol aprender
esporte ou coisa parecida, (...) mas foi uma experiência boa a dirigir, além de garantir-lhe autonomia, também a modifica
e eu quero estar sempre envolvido, tem a turma que eu corro enquanto sujeito, é Girassol enquanto singularidade que sai
aqui dia de domingo, eu quando tiver oportunidade de fazer transformada desse vínculo. A amizade entendida por Arendt
academia eu vou fazer, que tipo eu gosto de movimentar o (1993), Derrida (1997) e Ortega (1999, 2000) como espaço
corpo, está fazendo esporte, e sem contar que nesse lugar de abertura ao outro, privilegiado de experimentação política,
você também encontra muito amigos, têm vários exercícios, possibilita esse sentimento de transformação que se asseme-
têm vários alongamentos, ginástica, que você vai sempre lha à emoção de sair modificado do encontro espectador/obra,
aprendendo, aí, é onde está envolvido os amigos também, olha em que o olhar a própria realidade sensível da obra como sig-
vai ter uma corrida aqui, no vila lobos, vai ter um circuito e nificado instaura-se numa hermenêutica aberta, uma relação
tal, vem correr aí, sexta feira eu saí daqui, estava cansado, aí de construção de sentidos. Esse sentimento de transformação,
chegou um amigo meu lá em casa e falou assim, um amigo esse campo reflexivo que solicita uma abertura para o novo,
que eu não via faz tempo, trabalha pra caramba também, aí para a alteridade – instaurado no processo de interpretação
falou assim, (Pedro) vai ter um futebolzinho de seis e meia, como uma percepção participativa e interessada na qual o
você está fazendo alguma coisa, a gente vai jogar até umas olhar reconstrói a realidade viva da obra, construindo campos
nove horas, aí eu pensei nossa mas eu estou quebrado, aí eu de sentidos – são suscitados na relação de amizade em que
tomei um banho, relaxei eu falei, ah, pode vim aí, aí foi lá, Gabriel aprende a tocar bateria com um amigo.
pra você ver como uma coisa puxa outra, eu conhecia só ele,
os carinhas eram parceiro de serviço dele, lá, aí, me envolvi Pra mim foi ótimo, né, que era um a coisa que eu sempre quis
com o pessoal, joguei futebol, o pessoal gostou do meu jogo, e fazer, desde quando eu tinha oito anos eu queria aprender
falou oh pode vir toda sexta aí jogar que a firma paga a quadra tocar bateria e quando houve oportunidade, um ajudando o
aqui, pode vir aí cara, pra você ver, a gente já, através de um outro e nós fomos em frente, aprendi, e toquei durante cinco
amigo já vai conhecendo outras pessoas e já vai fazendo o que anos, se tiver que tocar hoje, eu toco também e assim foi,
mais gosta, que o que eu mais gosto é de fazer isso nas horas e através disso nossa amizade cresceu, e somos amigos até
vagas, (...) (grifos meus) (Pedro). hoje,(...) (grifos meus) (Gabriel)

O aspecto subversivo da amizade como espaço de experi- A relação de Gabriel com a música que essa amizade
mentação, de circulação horizontal de trocas de idéias, conhe- instaura, pode causar um processo de percepção e sensibili-
cimentos, experiências entre amigos em que o surpreendente dade inteiramente novo. Nesse vínculo de amizade permeado
irrompe podendo possibilitar rupturas na ordem econômica pela música, no qual ambos são mutuamente afetados, não
dominante, também é informado na história de Girassol que somente Gabriel e seu amigo modificam-se, mas as suas vidas
aprende a dirigir com um amigo, extrapolando o impedimento podem mudar completamente tomando rumos inesperados.
econômico que a impossibilitaria realizar esse sonho: É no registro da subjetividade que Gabriel é transformado,
torna-se outro pela relação musical com seu amigo. A possi-
(...) ele me ajudou muito, ele, coitado, ele comprou até um bilidade de tocar um instrumento musical realizado pelo laço
carro na época pra ajudar, na (cooperativa), ele colocou a de amizade pode mudar completamente o sentido da vida de
disposição da (cooperativa) esse carro ele existe que aquele Gabriel, permite uma nova relação com seu potencial criativo,
fiat uno que você já viu eu dirigindo, e pra fazer compra, né, e além de potencializá-lo como sujeito desejante. Guattari e
quando precisa de alguma coisa a gente liga pra ele, pô Toninho Rolnik (1986) afirmam que a ordem capitalística fabrica a
queimou isso, precisa disso, aí ele corre, sabe, faz, Toninho é o relação do homem com o mundo e consigo mesmo. Segundo
cara, ele é um grande amigo nosso, não só meu, como de toda eles, as modificações da subjetividade não funcionam apenas
cooperativa, todos aqui gostam dele. (Girassol) no registro das ideologias, mas no próprio coração dos indi-
víduos em sua maneira de perceber o mundo, de se organizar
(...) eu sempre sonhei em dirigir, eu tinha loucura pra apre- no tecido urbano. Eles atentam que todo movimento de recusa
nder a dirigir, mas achava que nunca ia conseguir porque e resistência aos modelos pré-codificados pela ordem capi-
assim, eu vim de uma família muito pobre, muito carente talista econômica dominante diz respeito também à questão
mesmo, então eu achava que nunca ia conseguir, mas aí teve da produção da subjetividade, o que deverá ser levado em
esse lance do Toninho, essa coisa de amizade que eu falei conta pelos movimentos de emancipação.
pra você, que é o Toninho aqui da FAU, ele falou assim, ah, É no âmbito da subjetividade que Pedro, Girassol, Gabriel
meu, agora que tem a cooperativa meu, sabe alguém tem que e os demais modificam-se a partir do espaço discursivo e de
aprender a dirigir lá (Girassol), e essa pessoa tem que ser você, experimentação dos seus laços de amizades, o Pedro, que
entendeu, não você, mas tem as outras pessoas, mas quem se adora esporte, não é mais o mesmo depois que aprendeu a
interessava mais era eu entendeu, aí ele falou, não, vou te nadar com seu amigo; Girassol, que realiza seu sonho de

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Experimentação Política da Amizade e Solidariedade

aprender a dirigir com seu amigo, mesmo sem ter condições tirou 500 reais dessa conta conjunta nem comunicou a esposa
financeiras para isso, também transformou a relação consigo e trouxe pra cá, então quer dizer é uma relação de amizade,
mesma e com a maneira de se articular na vida cotidiana; o né, é uma amizade, né, mas estamos aí, estamos junto. (grifos
contato de Gabriel com a música, ao aprender a tocar bateria meus) (Girassol)
com o amigo, pôde proporcionar uma outra percepção de
realidade e sensibilidade completamente novos possibilitando O gesto generoso de seu Francisco, que investe todo seu
uma redescoberta do seu potencial criativo. É nesse sentido dinheiro guardado em beneficio da cooperativa, ilumina a
de relação agonística na qual o contato com a alteridade fascinante dimensão de solidariedade entre amigos mobilizada
permite deslocamentos e transformações, levando a um não por interesse individual, mas sim pelo beneficiamento
reposicionamento no mundo que pode causar a ocorrência da coletividade. É buscando contribuir com a cooperativa
do inesperado, do surpreendente que a relação de amizade que seu Francisco doa seu dinheiro, acreditando nos amigos
vincula-se a esses “processos de singularização” como e na cooperativa, investindo num bem comum. Diante dos
vínculo que possibilita o surgimento de registros outros de impedimentos advindos de uma expropriação financeira, a
subjetividade, incompatíveis com os empreendimentos da relação solidária entre amigos é o que traz humanidade para o
produção de subjetividade capitalística os quais padronizam movimento de resistência. A mesma ousadia de Girassol, que
e serializam os sujeitos, individualizando-os. não se conforma em se ver deixada para trás diante da atitude
aviltante desonrosa de sua ex-patroa, revertendo o apuro do
Solidariedade e resistência que desabrocham nos desemprego, juntando forças, unindo amigos para formar a
canteiros de amizade cooperativa, resplandece na resistência teimosa do caboclo, do
trabalhador rural, como nos informa Candido (2001).
A dimensão de solidariedade inter-humana da amizade As formas de trabalho coletivo da sociedade caipira des-
proporciona a ajuda entre amigos estabelecendo vínculos velam relações solidárias que contribuem de forma essencial
comprometidos com o outro num movimento de recusa do para a sustentação da unidade estrutural e funcional do trabalho
individualismo e práticas excludentes, próprias do neolibera- agrícola. A cooperação vicinal, a união e apoio dos compadres
lismo, em que o partilhamento dá o tom de “união de forças”, no trabalho no campo compõem formas de solidariedade que
mencionando Arendt (1993) – que a amizade alcança justa- suprem o problema da mão-de-obra nos grupos de vizinhança
mente a comunidade. As relações solidárias entre amigos, além e contribuem para o enfrentamento das dificuldades e urgên-
de proporcionar aquela acolhida que instaura crescimento em cias próprias do cuidado com as plantações, como no caso de
Pedro, Gabriel, e outros, também podem acarretar vínculos de vizinhos que se juntam para malhar ou colher o feijão antes
maior união e engajamento, nos quais a força e apoio entre ami- que a chuva estrague, nos chamados mutirões – destacado por
gos permitem a formação de uma comunidade politicamente Candido (2001).
organizada, possibilitando transformações políticas. O cuidado As relações de ajuda entre as pessoas das classes populares
generoso nos laços de amizade que caracteriza uma relação de ressaltam a solidariedade nos laços de amizade, configurando
comprometimento com o outro e a mudança que a amizade vínculos de compromisso com a dignidade humana do outro,
possibilita instaurar, inspirada pela solidariedade entre amigos, no qual a mobilização das pessoas encontra-se articulada com
permitindo romper com a condição de espoliação econômica, a busca do bem-estar comum, como no caso dos cooperados
podem ser compreendidos nas histórias de Girassol, que teve que dividiam comida entre si e que doaram o primeiro paga-
ajuda dos amigos para montar sua casa, além de ter conseguido, mento da cooperativa para comprar um caixão para um irmão
com o apoio de amigos, contornar a situação de desemprego, falecido de uma cooperada.
formando a cooperativa. Girassol estava desempregada, pois a Os vínculos de solidariedade e ajuda que visam ao bem-
dona da lanchonete em que trabalhava fechou o estabelecimen- estar da comunidade dependem da capacidade de ajuda, do
to sem fazer o devido pagamento a ela e demais funcionários. cuidado pelos outros, do reconhecimento do outro como
Girassol chamou seus amigos e uniu forças para organizar alguém que tem rosto, num compromisso irresistível com a
uma lanchonete no mesmo local que funcionaria como coo- sorte e dignidade dos outros que implica criatividade e o risco
perativa. Girassol convidou alguns amigos que também eram assumido para romper automatismos cotidianos – tal como
da antiga lanchonete, esses, por sua vez, também chamaram adverte Bauman (2004, p. 94):
outros amigos e montaram a cooperativa.
Além de contar com o apoio de amigos para superar a A sobrevivência e o bem-estar da communitas (e também, indi-
situação de desemprego, foi com a ajuda de um amigo que retamente, da societas) dependem da imaginação, inventividade
Girassol e demais cooperados conseguiram contornar um e coragem humanas de quebrar a rotina e tentar caminhos não-
segundo momento de dificuldade de ordem econômica: foi o experimentados. Dependem, em outras palavras, da capacidade
amigo Francisco que, num gesto de solidariedade, tirou todo humana de viver com riscos e de aceitar a responsabilidade
dinheiro que tinha de sua conta corrente com a esposa e deu pelas conseqüências. São essas capacidades que constituem
para a cooperativa comprar seus equipamentos de trabalho, os esteios da “economia moral” – cuidado e auxílio mútuos,
permitindo que os cooperados, juntamente, começassem a dar viver para os outros, urdir o tecido dos compromissos humanos,
seus primeiros passos: estreitar e manter os vínculos inter-humanos, traduzir direitos
em obrigações, compartir a responsabilidade pela sorte e o
Se não fosse ele a gente talvez não tivesse nem os equipamentos bem-estar de todos – indispensável para tapar os buracos
que a gente tem hoje quando a gente iniciou, porque coitado escavados e conter os fluxos liberados pelo empreendimento,
o dinheiro era conta conjunta dele e da esposa dele, mas ele eternamente inconcluso, da estruturação.

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L. G. N. Gomes e N. S. Júnior

O auxílio que surge no vínculo entre amigos, como vimos, Derrida, J. (2003). Questão do estrangeiro: vinda do estrangeiro. Em
muitas vezes é impelido pelo intuito de buscar o resgate da J. Derrida & A. Dufourmantelle (Orgs.), Anne Dufourmantelle
cidadania num movimento de resistência da condição de convida Jaques Derrida a falar da Hospitalidade. (A. Romane,
impedimento econômico, por meio de práticas solidárias Trad., pp. 5-65, ímpares). São Paulo: Escuta.
que buscam contribuir para que o amigo conquiste uma certa Dufourmantelle, A. (2003). Convite. Em J. Derrida & A.
autonomia num contexto de dominação econômica sentido Dufourmantelle (Orgs.), Anne Dufourmantelle convida Jaques
como extremamente limitante. Derrida a falar da Hospitalidade. (A. Romane, Trad., pp. 4-134
Essa atitude de se compadecer, de partilhar, que o laço pares). São Paulo: Escuta.
de amizade inspira emana do gesto de solidariedade, como Figueiredo, C. L. & Coelho Jr., C. E. N. (2003). Patterns of
reconhecimento da situação do outro, na qual se “respira” Intersubjetivity in the Constituition of Subjetivity: Dimensions
a vida a partir do seu lugar, como relação que me põe em of Otherness. Culture and Psychology, 9(3), 193-208.
contato com o exercício político de comprometimento com Foucault, M. (1981). Da amizade como modo de vida (W. F.
a dignidade do outro – condição que afeta todo tecido social Nascimento, Trad.). Entrevista de Foucault a R. De Ceccaty, J.
diretamente. Danet e J. le Bitoux publicada no Jornal Gai Pied, no.25, abril de
Como demonstram os discursos, a amizade possibilita 1981 (pp. 38-39). Retirado em 4 de abril de 2004 de http://www.
esse espaço respeitoso e de experimentação política em que unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/amitie.html
os objetivos e interesses compartilhados mobilizam maior Guattari, F. & Rolnik, S. (1986). Micropolítica. Cartografias do
afinco e engajamento, informando o movimento de adesão Desejo (2a ed.). Petrópolis: Vozes.
e companhia dos outros necessários para que as ações polí- Lévinas, E. (1993). Humanismo do outro Homem (P. S. Pivatto,
ticas perfaçam-se. Não o interesse/objetivo particular, mas Trad.). Petrópolis: Vozes.
o de ordem coletiva mobiliza o apoio e força entre amigos, Lévinas, E. (2005). Entre Nós. Ensaios sobre a alteridade (2a ed.,
possibilitando maior união no movimento fundamentado P. S. Pivatto, Trad.). Petrópolis: Vozes.
pelo sentido de “lutar junto”. Esses vínculos de parceria Ortega, F. (1999). Amizade e estética da existência em Foucault.
pautados num espaço de diálogo, de união e apoio engajado, Rio de Janeiro: Edições Graal.
responsável entre amigos que possibilitam o surgimento do Ortega, F. (2000). Para uma política da amizade: Arendt, Derrida,
surpreendente esclarecem o poder da reunião não-violenta Foucault. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
dos homens advertido por Arendt (2001). Sader, E. (1988). Quando Novos Personagens Entraram em Cena:
experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São
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NORMAS DE PUBLICAÇÃO
São adaptadas de 3XEOLFDWLRQ 0DQXDO RI WKH $PHULFDQ
3V\FKRORJLFDO$VVRFLDWLRQ (APA, 5ª. Edição, 2001) e podem
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RQOLQH) ou no endereço: http://www.revistaptp.org.br

158 Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Abr-Jun 2007, Vol. 23 n. 2, pp. 149-158

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