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S urpreendida pela G raça

Amber Terrell

Tradução de Carla Sherman

SilentHeart Press

Ojai, California

É HORA DE DIZER A VERDADE

Este livro é protegido pelas leis de direitos autorais. Por


favor não faça cópias. Se você achar que ele pode ser útil a seus
amigos, encorage-os a comprar um também. Todos os recursos
arrecadados através da venda deste livro vão para o satsang.
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Amber Terrell

TRADUÇÃO EM PORTUGUÊS

CARLA SHERMAN

SILENTHEART PRESS

Ojai, California

SURPREENDIDA PELA GRAÇA


© 2006 The River Ganga Foundation. Todos os direitos reservados.

Traduzido a partir da 1a edição americana, publicada em 1997 pela True Light Pub­
lishing. Esta tradução é publicada e vendida com permissão da True Light Publishing,
detentora de todos os direitos de publicação e venda da obra original. Nenhuma parte
deste livro pode ser reproduzida ou usada sob qualquer forma ou meio, sem consentimen­
to por escrito por parte do Editor.

Título original: SURPRISED BY GRACE, A Journey Beyond Personal Enlightenment


Tradução em português: Carla Sherman
Projeto e Diagramação: Carla Sherman
Capa: Michelle Lundquist
Editora Responsável: Carla Sherman

SilentHeart Press
PO Box 1566
Ojai, California 93024
Estados Unidos da América
Tel. +1 (805) 646-0994
http://www.riverganga.org http://www.silentheart.net
info@riverganga.org

Impresso nos Estados Unidos da América


ISBN 978-0-9718246-3-8
Para
Gangaji,

Rio

de

Graça

Minha mais profunda gratidão a todos que leram o manus­


crito, fizeram comentários e me deram sugestões, apoio e estímu­
lo, especialmente John Small, Shivaya Ma Ruane, Silvine e Stewart
Farnell, Shanti Einolander, Ramananda e Moksha Bartek e Achala
Gebhardt. Um agradecimento especial a todos que contribuíram
para a publicação deste livro: Toby Terrell, Michele Lundquist, Fred
Kries, Maitri Robbins e todo o pessoal da Satsang Foundation &
Press. E, acima de tudo, Gangaji.
SUMÁRIO

Prólogo: A busca 1

1 Encontre o buscador 6

2 O cajado do iogue 18

3 A peça que faltava 29

4 Romance da alma 48

5 Nua, exposta e disposta a morrer 74

6 Afogando-me no rio Ganga 90

7 Quem sou eu? 102

8 O que você quer realmente? 110

9 O mito da iluminação 123

10 As rosas 137

11 A espada 161

12 Sem buscar nem fugir 181

13 Apego ao mestre 202

14 Aprofundamento 232

15 O filhote de águia 247

16 Não se acomodar em lugar algum da mente 256

17 Anseio divino 268

18 Para além dos pares de opostos 284

Epílogo: O fim de uma buscadora 319

Notas e referências 324

Sobre a autora 335

Sobre a tradutora 336

PRÓLOGO: A BUSCA

Quando iniciei seriamente a busca espiritual, no fim dos anos


60, eu era estudante universitária e tinha certas imagens em minha
mente acerca de como seria a iluminação. Como um ser ilumina­
do, imaginava que continuaria sendo “eu”, porém todos os aspectos
indesejáveis da minha personalidade seriam corrigidos. Ao ter aces-
so à ilimitada inteligência do universo, eu seria brilhante, é claro.
O melhor de tudo é que minha vida seria transformada em uma
existência de bem-aventurança, um paraíso na terra, com saúde e
circunstâncias perfeitas, totalmente isolada e protegida do mundo
desgostoso, violento e egoísta que percebia ao meu redor.
Depois de ter passado mais de um quarto de século na intensa
prática de meditação, ioga, jejuns, estudos, longos retiros em terras
estranhas e anos de serviço a um mestre indiano, começara a me
perguntar por que a iluminação ainda não tinha acontecido. Por
que minha personalidade não tinha sido corrigida? Por que, a essa
altura, minha vida não era o que imaginara que seria?
No final de 1994, um grande desânimo tinha tomado conta
de mim. Embora muitas experiências tivessem ocorrido de vez em
quando, experiências belas até mesmo espetaculares; embora tivesse
aprendido como aquietar a mente e a respiração e até experimen­
tado alguns shiddhis*, a iluminação permanecera um sonho, um
conceito, existindo apenas na mente. Tornou-se óbvio que, apesar
de anos de esforço sincero, nenhum progresso real fora feito. Estava
claro que faltava uma peça no meu acervo espiritual. Mas qual? Eu
praticara com tanta dedicação, por tanto tempo!
1
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Na hora mais frustrada e obscura da minha busca espiritual, re­


cebi uma transmissão de Graça tão poderosa que a mente foi para­
lisada, o sonho foi despedaçado pela Realidade, todos os conceitos
de iluminação foram rapidamente transformados em cinzas e, uma
após outra, camadas de falsa identificação com a mente foram im­
placavelmente eliminadas. Esta transmissão tomou a forma de uma
mestra chamada Gangaji, e emanou pura e diretamente da linha­
gem de um dos sábios mais respeitados deste século, Sri Ramana
Maharshi.
Gangaji apareceu em minha vida na primavera de 1995, trazen­
do uma guirlanda de rosas em uma mão e uma espada na outra.
Com as rosas ela me deu as boas-vindas, colocando-as em torno do
meu pescoço em um abraço amoroso; com a espada, cortou minha
cabeça. Este corte só foi extremamente doloroso enquanto tentei
me apegar à minha cabeça, à “mente”, como se fosse uma coisa real,
como se fosse quem eu era. Conforme esta ilusão foi se enfraque­
cendo, através da Graça mais inimaginável, vi que tanto a espada
quanto as rosas eram a mesma coisa: simplesmente aspectos de seu
infinito Amor.
Gradualmente, ela revelou que este Amor é o meu próprio Amor,
meu próprio Ser*. Não o ser individual, tal como é percebido pela
mente, mas o verdadeiro Ser, para além da mente, que algumas
pessoas chamam de Ser de Cristo ou Ser Universal: o Bem-Amado
sempre presente.
Todo ser humano, seja consciente ou inconscientemente, busca
este Ser Bem-Amado em mil direções, mentais, emocionais e sen­
soriais. Esta caçada prossegue incessantemente nas esferas material
e espiritual do mundo até que, finalmente, muitas vezes através do
encontro com um poderoso reflexo do Ser em alguém ou alguma
2

PRÓLOGO: A BUSCA

coisa, a pessoa é parada (derrubada, achatada, subjugada) e, na quie­


tude do Ser, vê o que não fora percebido; vê o que esteve sempre
presente; vê, finalmente, que tudo que sempre desejara é, na realida­
de, quem ela sempre foi. E, ao ver isto, ela desperta de um sonho.
Muitas pessoas especulam sobre se um mestre humano é neces­
sário para este despertar e, nos últimos anos, esta questão tornou-se
tópico de um debate acirrado. Algumas pessoas argumentam que
a relação íntima entre mestre e aluno, tão estimada e honrada nas
tradições místicas do passado, é desnecessária ou inapropriada nesta
nova era de vida consciente. Afinal de contas, a verdade não está
dentro de nós?
Em teoria, é claro que um mestre externo não precisa existir. O
que cada um de nós está buscando está mais próximo que a respira­
ção, mais próximo que uma batida do coração. Mas a determinação
e a implacabilidade necessárias para romper o hábito da identifi­
cação com a mente são raras. As maneiras com que o ego evita o
aniquilamento, cuidadosamente servindo a si mesmo, até sob o dis-
farce de “prática espiritual”, são muito sutis.
Na famosa história de Arthur C. Clark, 2001, Uma Odisséia no
Espaço, o computador HAL 9000 pode ser visto como uma metáfo­
ra perfeita do ego humano. Na história, HAL é projetado para exe­
cutar todos os procedimentos da nave espacial, inclusive os sistemas
de manutenção da vida. Quando a tripulação percebe que HAL
começou a cometer erros, erros que não está disposto a admitir,
ela se dá conta de que o computador terá de ser desconectado, e a
nave terá que ser pilotada através de sinais de rádio enviados pelo
computador gêmeo de HAL, que está na Terra. Mas HAL não é
tão facilmente desconectável. Sua própria preservação torna-se mais
importante do que o serviço à humanidade para o qual fora criado.

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Ele começa a manipular e destruir qualquer coisa ou pessoa que


ameace a sua existência; qualquer coisa que possa expor a mentira
de sua traição.
O ego humano opera de maneira muito semelhante. Ele tam­
bém não é facilmente desconectado. Ego é pura ilusão, criada pela
identificação equivocada com a mente e suas projeções (mental,
emocional, física e circunstancial) como quem se é. Como HAL,
ele criará uma poderosa defesa para proteger esta ilusão. A maioria
das pessoas não consegue ver através desta ilusão, ou desta defesa,
tempo suficiente para romper o hábito da identificação mental. É
como confiar em HAL para interromper seus próprios circuitos de­
sorientados.
Tradicionalmente, esta ruptura é o papel do guru, que significa
literalmente “aquele que dissipa a escuridão”. O guru não é apenas
alguém que atravessou a ilusão; ele é alguém que reflete tão pu­
ramente esta realidade ilimitada que todos nós somos, que nosso
próprio Ser infinito pode ser visto refletido nele. Quando alguém
encontra seu verdadeiro mestre, pode ver o Ser no mestre, como em
um espelho sem mácula.
Esta visão é misteriosa. Não pode ser merecida. Não pode
ser comprada. Não pode ser explicada nem compreendida pela
mente. A única palavra que chega perto de descrevê-la é Graça.
É um mistério como a Graça pode surgir na vida de uma pes­
soa e penetrar o sonho da separação. A partir do momento em que
olhei nos olhos de Gangaji pela primeira vez, a Graça inundou to-
dos os aspectos da minha vida, como um rio caudaloso inunda o
campo, afogando tudo por onde passa, sem deixar qualquer estru­
tura feita pelo homem intacta, sem deixar nada como era antes. No
início, este afogamento provocou o surgimento de muito medo e

PRÓLOGO: A BUSCA

luta. Quando tudo com que uma pessoa se identificava como “si
mesma” está sendo dissolvido, uma espécie de morte é vivenciada.
Esta morte não tem nada a ver com a morte física. É a morte do
“pessoal”, a morte da separação. É a morte espiritual de que falam
todas as tradições místicas do mundo, de São João da Cruz aos hi-
nos védicos da Índia e à poesia extática dos sufis. É uma verdadeira
morte, uma morte definitiva: a morte da identificação com tudo
que nasce e tudo que morre. É um despertar para a eternidade.
Que choque foi para mim descobrir que a iluminação não tem
nada a ver com auto-aperfeiçoamento, nada a ver com a realização
de uma lista de desejos pessoais. A iluminação não é absolutamente
pessoal. Ironicamente, é a preocupação com o pessoal, o apego à
mente e à personalidade como sendo quem somos, que obscurecem a
Verdade inacreditável: a iluminação já está aqui; ela já é quem somos!
A todos aqueles que estão exaustos desta busca, que sentem
um anseio que queima no fundo de seus corações; um anseio
que jamais poderá ser satisfeito através dos habituais caminhos
da carreira, do relacionamento ou da aquisição; aos que conti­
nuam insatisfeitos, após anos de estudos e práticas espirituais,
ofereço esta história sobre um encontro com a Graça, a dissolu­
ção da identificação com a mente, o fim da busca e da buscadora.

ENCONTRE O BUSCADOR

C
“ omo uma lamparina que não tremula, em um lugar sem ven­
to.”* Assim o Bhagavad Gita descreve a mente de um ser iluminado.
Liberada das angústias da raiva, do medo e da inveja, esta alma
permanece em paz em meio ao mundo, indiferente às intermináveis
polaridades dos “pares de opostos”*, tais como prazer/dor, ganho/
perda, arrogância/falta de valor, aceitação/rejeição, felicidade/triste­
za e assim por diante.
Toda esta filosofia, eu entendia muito bem. Mas, finalmente,
havia compreendido que a filosfia e o entendimento não podiam
me dar a liberdade.
Sentei-me no salão da Igreja Unitária de Boulder, no Colorado,
em meio a centenas de pessoas, esperando que o “satsang” come­
çasse, perguntando-me por que tinha vindo. Com certeza, quando
uma amiga me telefonara para me convidar, naquela manhã, eu ti­
nha hesitado. “Satsang significa ‘associação com a Verdade’”, minha
amiga explicara.
Senti resistência. Parecia indiano. Tinha desistido da sabedoria
da Índia. Por mais bela que parecesse em teoria, eu tinha deixado
de acreditar que suas mensagens e práticas pudessem trazer um real
benefício para a vida de uma buscadora no Ocidente, no final do
século XX.
Minha amiga prosseguiu, dizendo que satsang estava sendo ofe­
recido por uma mulher chamada “Gangaji”. Aquele nome também
parecia indiano. Mais resistência. Ela depois explicou que Gangaji é

ENCONTRE O BUSCADOR

discípula de um mestre indiano chamado H.W.L. Poonja, a quem


ela chama de Papaji. Ela tinha me falado sobre Papaji antes e me
oferecera algumas fitas e livros, mas eu nunca tinha me interessado.
Acontece que aquela noite era 26 de abril de 1995, véspera do
vigésimo sexto aniversário do início consciente da minha busca es­
piritual e da minha iniciação nas práticas sagradas do Oriente. Eu
estava profundamente desanimada. A data me lembrava de como
havia desperdiçado minha juventude, minha vida, na busca ilusó­
ria da iluminação. Estava desanimada o bastante para abrir mão de
idéias preconcebidas e julgamentos, e me deixar levar, pelo menos
por uma noite. Concordei em ir ao satsang e convenci meu marido,
Toby, a ir comigo.
Quando chegamos à igreja, o salão de reuniões estava quase re­
pleto. A maioria das pessoas estava sentada no chão, ao estilo in­
diano, com almofadas ou bancos de meditação. Algumas cadeiras
haviam sido colocadas no fundo da sala, mas já estavam ocupadas.
Ao encontrar um espaço vazio no chão, mais para o fundo da sala,
sentei-me, com os braços em torno dos joelhos, espremida entre um
homem grande e um banco encostado na parede, cheio de gente.
“Estou ficando velha demais para esta coisa indiana”, resmunguei.
Na parte frontal do salão havia um pequeno sofá sobre uma pla­
taforma levemente elevada, ladeada por um modesto arranjo de flo­
res e duas grandes fotografias de homens indianos. Deduzi que estes
deveriam ser os mestres de Gangaji, pois tinha visto as mesmas fotos
penduradas na parede da casa da minha amiga. Um destes rostos
sempre havia atraído a minha atenção. Os olhos eram impressio­
nantemente belos, banhados em compaixão e amor, e de uma pro­
fundidade assombrosa. Mais tarde, descobri que era uma foto de Sri
Ramana Maharshi, o mestre de Papaji.

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SURPREENDIDA PELA GRAÇA

A câmera de vídeo e equipamento de áudio estavam montados


no centro do salão. Lâmpadas brilhantes para a gravação em vídeo
estavam focalizadas no sofá sobre a plataforma, onde Gangaji apa­
rentemente se sentaria. O resto do salão estava levemente iluminado.
Olhei ao redor, para os rostos dos buscadores presentes, que eram
muitos. Alguns pareciam cansados e esgotados, talvez pelo esforço e
a frustração de anos de busca e prática. Outros pareciam radiantes e
abertos, com a alegria inocente da esperança e da expectativa, como
eu, vinte e seis anos antes.
Naquela noite, não havia expectativa em meu coração, pelo me-
nos não conscientemente. Novamente, um pensamento atravessou
minha mente: por que eu tinha vindo? Para agradar à minha amiga,
talvez? Embora os aspectos “mundanos”, exteriores, de minha vida
tivessem sido relativamente confortáveis nos últimos anos, com um
marido amoroso, um lindo cavalo árabe, trabalho que me agradava
e muitos amigos maravilhosos, uma profunda inquietação ainda me
incomodava. Era um anseio por me libertar dos “pares de opostos”,
por ser como a “lamparina em um lugar sem vento”, por viver cada
momento em conexão com o Infinito. Era um anseio que podia
me acordar às quatro horas da madrugada e me fazer gritar para o
universo: “EU NÃO ENTENDO! Fiz tudo que podia fazer e, ainda
assim, NÃO ENTENDO!”
Algumas semanas antes, um grito desesperado havia eclodido do
meu coração, clamando por algum tipo de ajuda. Pedi a todos os
guias e mestres que já tinham ouvido minhas preces algum dia por
um mestre de carne e osso, um exemplo vivo desta liberdade pela
qual ansiava. A esta altura, tinha feito pesquisas, leituras e práticas
suficientes para ser bastante específica sobre o que queria: não uma
pessoa em um livro, um monge, um indiano, ou um mestre desen­

ENCONTRE O BUSCADOR

carnado e ascensionado; não algum mestre remoto em um conti­


nente distante. Por mais grata que estivesse a todos os ensinamentos
e mestres que tinham me guiado até aquele ponto, sabia que o que
precisava agora era um ocidental de carne e osso, alguém que esti­
vesse vivendo o infinito e que estivesse por perto; alguém que fosse
simplesmente como eu.
Quando Gangaji entrou no salão aquela noite, alguma coisa pa­
rou dentro de mim, com uma espécie de choque suave. Pri-meiro,
ela era ocidental, com cabelos louros, e mais ou menos da minha
idade. Minha amiga não tinha me dito que esta mestra com um
nome indiano era, na verdade, americana.
Enquanto Gangaji atravessava a estreita passagem que havia sido
cuidadosamente demarcada no chão com fita adesiva, por entre as
almofadas e bancos de meditação, eu a observava com intensidade e
interesse incomuns. Quando se sentou de pernas cruzadas no sofá,
o tempo pareceu se distorcer por um momento, e o salão entrou em
um movimento lento. Alguma coisa nela parecia familiar, como se
a tivesse conhecido há muito, muito tempo. Não, era mais do que
isto: curiosamente, ela me lembrava de mim mesma.
Gangaji fechou os olhos, assim como os demais, portanto supus
que a noite começaria com uma meditação. Fechei meus olhos tam­
bém, mas não consegui sossegar. Minha mente estava por todo lado,
e meu coração batia disparado. Estranhamente, sentia a presença
dela no fundo da minha alma, como se ela estivesse observando
meus fracassados esforços para meditar. Isto me irritou, me emba­
raçou ou, talvez mais exatamente, me humilhou, porque meditação
era uma das coisas que acreditava que podia fazer realmente bem.
Afinal de contas, vinha fazendo isto há vinte e seis anos, completa­
dos naquele dia!

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SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Após quinze ou vinte minutos, Gangaji abriu os olhos. Juntando


as palmas das mãos, disse suavemente: “Bem-vindos ao satsang.”
Então, pediu que aqueles que nunca a tinham visto antes erguessem
a mão, para poder cumprimentá-los. Ergui minha mão levemente.
Havia um monte de pessoas novas e os olhos dela pareceram varrer
o salão rapidamente. Pensando que ela não tinha me visto, percebi
que estava erguendo a mão um pouco mais alto. Não sei por que
era importante que ela me visse. Não pensei realmente nisto. Foi
apenas um impulso.
Para minha surpresa, ela olhou em minha direção novamente e
riu suavemente: “Sim, eu vejo você.” Fez isto com o mesmo tom e
sentimento que uma mãe atarefada usaria com uma criança ansiosa
que exigisse ruidosamente a sua atenção. Embaraçada, deixei cair
minha mão rapidamente e percebi uma estranha sensação de quei­
mação, que atravessou repentinamente o meu corpo.
Gangaji começou a falar ao grupo de aproximadamente quatro­
centas pessoas, incluindo a multidão excedente que estava em uma
sala adjacente, diante de um monitor de vídeo. Ela falava muito
claramente, e com um leve sotaque sulista.

Você é mais do que bem-vindo ao satsang. No satsang,


muito simplesmente, você pelo menos ouve que já é com­
pletamente, totalmente perfeito. Não estou falando de seu
corpo, sua mente, suas emoções ou as circunstâncias de
sua vida. Estes são inerentemente imperfeitos e permane­
cerão imperfeitos, perfeitamente imperfeitos.

Minha mente se rebelou por um momento. “Espere um minuto!


Não é assim que a iluminação deve ser! Todos os problemas devem

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ENCONTRE O BUSCADOR

desaparecer. Você fica com uma saúde perfeita, não? Todo o mau
karma é dissolvido. O que ela quer dizer com ‘já somos perfeitos’?
Como podemos ser perfeitos quando tantos aspectos de nossas vi­
das permanecem imperfeitos?” Mas estas vozes interiores logo que­
daram silenciosas. Naqueles últimos anos do meu desânimo, tinha
começado a me questionar se realmente entendia o que a ilumina­
ção significava. Sendo assim, escutei.

Você vestiu um manto chamado corpo, circunstâncias,


pensamentos, emoções. Nenhum problema nisso. Qual pode
ser o problema com um manto? Um conjunto de roupas?
Inerentemente, nenhum problema. Só se você se iden­
tifica como sendo estas coisas é que você começa a sofrer.
Porque, como vê, estes mantos, estas roupas, começam a se
desintegrar muito rapidamente. E, se você identificar a si
mesmo como alguma coisa que obviamente se desintegra,
existe um grande medo, um sofrimento desnecessário e
uma busca por aquilo que é permanente.

Minha mente era inerentemente muito analítica. Na faculdade,


tinha me diplomado em filosofia e estudos religiosos e, depois da
graduação, viajara pelo mundo, estudando as tradições místicas do
Oriente e do Ocidente, tanto intelectual quanto experimentalmen­
te. Sentia que sabia muito a respeito da verdade e a maioria dos
meus amigos respeitava meus pontos de vista filosóficos. Não ficava
facilmente impressionada com aqueles que professavam saber alguma
coisa sobre espiritualidade e, geralmente, ficava entediada e me tor­
nava crítica após alguns minutos. Por esta razão, nos últimos anos,
raramente havia comparecido a palestras e reuniões deste tipo.

11

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Mas, conforme escutava as palavras de Gangaji, elas me trans­


mitiam uma autoridade tranqüila e um tom de verdade que pren­
diam minha atenção, como ninguém mais havia conseguido em
muitos anos. O componente analítico do meu cérebro parecia estar
diminuído. Na verdade, logo percebi que o que estava acontecendo
“dentro” não era estritamente por causa das palavras dela. Alguma
coisa mais profunda estava sendo transmitida, penetrando bem
além da minha mente.

Isto é muito bom. Estou feliz por você ter buscado isto.
E agora, PARE! [risadas] Encontre o buscador. Você verá
que esta é apenas uma imagem, apenas uma idéia, base­
ada em outra idéia equivocada, a de que você não é Isso
que já é inteiro, completo, perfeito e ilimitado.

O que significa isto? Encontre o buscador. Nunca tinha pensado


nisso. Novamente, percebi que ela me lembrava de mim mesma.
O que seria? O modo como espremia os lábios um contra o outro,
alguns de seus gestos? Eu não conseguia definir.

Este é o último satsang público aqui em Boulder, du­


rante algum tempo. Depois, estarei de volta durante qua-
se todo o verão. Mas há bastante tempo. Temos uma hora,
uma hora e quinze minutos. Tempo bastante. Você levou
milhões de anos para chegar até este momento, para ouvir
e receber a Verdade. Esperemos que este seja um tempo
bem utilizado.* [mais risadas]

Ela parecia estar falando diretamente comigo. Naquele momen­

12

ENCONTRE O BUSCADOR

to, misteriosamente, senti a carga daqueles milhões de anos pesando


sobre os meus ombros. Senti uma excitação, também, alguma coisa
elétrica no ar, como se algo importante estivesse acontecendo, mas
não tinha idéia do quê.
Gangaji pegou uma carta e pediu que o autor erguesse a mão,
para que pudesse ver onde estava sentado. Na carta, a pessoa contava
um monte de problemas pessoais. Gangaji rapidamente foi direto
ao cerne do problema, indicando que este ser que estava consciente
dos problemas não havia sido tocado por eles e, de fato, permane­
cia inalterado, quer as circunstâncias apresentassem problemas ou
alegria. Fiquei admirada com esta resposta e reconheci sua verdade.
Nunca tinha ouvido ninguém falar de maneira tão direta e verda­
deira.
Após ler mais algumas cartas, Gangaji começou a responder per­
guntas da platéia. Conforme observava suas conversas com as pes­
soas, tornou-se óbvio que, como eu, elas estavam recebendo algo
mais do que simplesmente suas palavras. Isto se tornou ainda mais
aparente quando um homem perguntou sobre sua própria mente
agitada. Gangaji nem respondeu, apenas olhou em seus olhos in­
tensamente, durante algum tempo. Finalmente, o homem sorriu e
pude ver todo o seu rosto mudar, todo o seu ser relaxar. Gangaji re­
conheceu a mudança silenciosa, dizendo simplesmente: “Sim, assim
é melhor.”
Estava claro que alguma espécie de transmissão não-falada ema­
nava dela, e podia ser recebida por corações e mentes abertos. Sua
mensagem central parecia ser: “Pare. Fique quieto.” Mas não foi
como se eu tivesse ouvido e então “feito” isto. A partir do momento
em que ela entrou no salão, parece que uma profunda quietude to­
mou conta de mim, de surpresa.

13
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Às vezes, a resposta de Gangaji a uma pergunta parecia gentil e


amorosa; outras vezes, ela respondia mais rispidamente. Cada res­
posta parecia perfeita para a pessoa que perguntava, interrompendo
suas queixas ou sua intelectualização, desviando-a da pergunta e di­
recionando-a para quem fazia a pergunta.
A absoluta retidão de seu estilo revelou uma disposição implacá­
vel e nada sentimental, que eu achava levemente inquietante. Mas,
enquanto observava a sua interação com as pessoas, tive a estranha
sensação de que estava vendo a Liberdade pela qual tanto ansiara.
Alguma coisa na quietude e na confiança com as quais ela falava
transmitia isto. Ela sabia o que estava dizendo. Podia-se sentir isto
nas suas palavras. Ela sabia, a partir da experiência direta, e não por
alguma coisa que tivesse memorizado, lido ou ouvido.
Mais ou menos pela metade da reunião, percebi que estava per­
guntando a mim mesma se esta poderia ser a mestra pela qual ha-
via implorado. O universo realmente atende às preces, assim tão
rapidamente? Ficava espantada só de considerar esta possibilidade.
Conforme o satsang avançava, dei-me conta de que estava sentindo
um intenso e assombroso amor por ela e, ainda assim, definitiva­
mente, também um grande medo. Pois em seus olhos percebia uma
vastidão que poderia destruir tudo que pensava compreender, tudo
que pensava ser.
Em pouco tempo, a reunião terminou. Gangaji juntou as pal-
mas das mãos novamente e disse Om Shanti, que eu entendi como
“Paz para todos.”
Enquanto ela deixava o salão, meus olhos e meu coração a segui­
ram. Um profundo senso de gratidão tomou conta de mim, e um
anseio que minha mente não compreendia. Pediram ao grupo que
ficasse sentado em silêncio durante cinco minutos, até que Gangaji

14

ENCONTRE O BUSCADOR

e as pessoas que estavam ajudando nas mesas de informação do lado


de fora tivessem oportunidade de sair do salão.
Depois de alguns minutos, as pessoas começaram a sair lenta­
mente do salão, enfileiradas. Quando meu marido me ajudou a me
levantar, eu estava em uma espécie de torpor. Alguma coisa não
estava funcionando direito no meu cérebro. Embora houvesse uma
grande comoção ocorrendo ao meu redor naquele salão lotado, tudo
parecia estranhamente quieto e imóvel.
Quando cheguei à porta, pedi a Toby que colocasse uma doa­
ção substancial na cesta. Nossa amiga viu a nota que Toby estava
segurando e comentou: “Só uns dois dólares está bom. Ninguém
deixa tanto assim.” Mas uma gratidão profunda e inexplicável tinha
tomado conta de mim e percebi que estava arrancando a nota da
mão do meu marido, garantindo a mim mesma que ela alcançaria
seu destino na cesta.
Depois do satsang, nossa amiga nos convidou para tomar chá
em sua casa. Achala era alemã e, já que Toby estava estudando ale­
mão, eles conversavam facilmente um com o outro. Sentamos à
mesa de jantar, bebericando chá. Enquanto ela e Toby tagarelavam
sobre todo tipo de coisas, fiquei sentada em silêncio, incapaz de
falar. Não que estivesse pensando sobre alguma coisa que Gangaji
tivesse dito. Eu não estava pensando em nada. Havia apenas essa
quietude imóvel e gigantesca me engolindo. Sabia que alguma coisa
dentro de mim fora alterada radicalmente, mas não tinha idéia do
quê nem como.

Naquela noite, deitada na cama, meu corpo ainda queimava em


um fogo estranho. Sentia um intenso anseio por estar na presença
daquela mulher sobre quem nada sabia. Ela dissera que aquela seria

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SURPREENDIDA PELA GRAÇA

sua última aparição em Boulder durante algum tempo. Para onde


iria? Eu precisava saber.
Peguei o material impresso que Achala me dera, com a progra­
mação de Gangaji, e descobri que ela começaria um retiro de uma
semana daqui a alguns dias, em Estes Park, uma estância na monta­
nha, a noroeste de Boulder. Imediatamente, eu quis ir.
Na manhã seguinte, logo cedo, um telefonema para a Satsang
Foundation & Press*, a organização que apóia as atividades de
Gangaji, revelou que o retiro estava lotado há semanas e que a lis­
ta de espera tinha mais de cem pessoas! Decepcionada, desliguei o
telefone. Examinando os folhetos novamente, descobri que haveria
outro retiro no sul do Colorado, no fim de agosto. Um pensamen­
to atravessou a minha mente: “Assim é ainda melhor; isto me dará
mais tempo para investigar esta mestra e seus ensinamentos, antes
de assumir o compromisso de um retiro de uma semana com ela.”
Mas uma voz forte, que parecia vir do fundo da minha alma, retor­
quiu: “Então será tarde demais.”
A força daquela voz me tomou de surpresa, e passei a manhã
lutando, discutindo, argumentando com ela. Mas, quando che­
gou a tarde, vi-me pegando o telefone novamente e ligando para a
Fundação; desta vez pedi que meu nome fosse adicionado à longa
lista de espera para Estes Park.
Em algum lugar dentro de mim, sabia que iria. Havia uma sen­
sação de destino em relação àquilo, como se estivesse sendo “chama­
da”; uma sensação de que toda a minha vida até aquele ponto havia
sido uma espera, uma preparação, um anseio por este encontro.

Nos dois dias que se seguiram, peguei alguns vídeos de satsang


emprestados com Achala e vi um após o outro. Comecei a anali­

16

ENCONTRE O BUSCADOR

sar as palavras de Gangaji, a compará-las com outros ensinamentos


que havia estudado, e a compará-la com outros mestres com quem
estivera, a maioria deles indianos. Uma atitude crítica apareceu.
Comecei a identificar algumas coisas que ela estava dizendo como
vindas de uma perspectiva budista, e percebi que estava oscilando,
um minuto não querendo ir ao retiro, feliz por não ter conseguido
entrar e, no momento seguinte, estando consciente de uma atração
inexplicável, um desejo de estar perto de Gangaji novamente. Isto
não fazia sentido algum. Nos dias que se seguiram, comecei a fazer
um esforço consciente para esquecer o retiro, Gangaji, a coisa toda,
e me ocupar de outras atividades.
No sábado, tinha empurrado o retiro para o pano de fundo da
minha atenção. Então, naquela noite, a noite anterior ao início do
retiro, me telefonaram da Fundação com notícias: devido a um can­
celamento de última hora, tão de última hora que ninguém acima
de mim na lista de espera poderia modificar seus planos, eu fora
aceita no retiro.

17

O CAJADO DO IOGUE

No domingo de manhã, Toby colocou minha mala e meu edre­


dom em nossa caminhonete, e partimos para Estes Park, pela rodo­
via 36, em direção ao norte. Já que só tínhamos um carro naquela
época, e Toby precisaria dele enquanto eu estivesse fora, o plano
era que ele me deixaria no retiro e voltaria para me pegar oito dias
depois.
Serpenteando por um cânion arborizado, a estrada nos conduzia
através de algumas das mais belas paisagens do Colorado. Mas eu
mal as percebia. Uma estranha mistura de alegria e pressentimen­
to predominava em minhas emoções. A coisa toda começou a me
parecer um pouco maluca. Estava sendo levada para uma semana
inteira com um monte de pessoas sobre as quais nada sabia, com
uma mestra que acabara de conhecer. Isto não fazia sentido algum.
Mesmo assim, havia também uma inexplicável excitação no fundo
da minha alma e um misterioso “conhecimento” de que aquilo que
aconteceria nos próximos dias alteraria minha vida para sempre.
Toby também percebeu alguma coisa estranha. “Sinto que você
não vai voltar de lá”, ele disse. “Não a mesma, em todo caso.”
Chegamos ao nosso destino no início da tarde. Situado em um
vale na alta montanha, a uns 65 quilômetros de Boulder, Estes Park
é uma bela estância de montanha, famosa por seus picos imponen­
tes e por ser a porta de entrada do Parque Nacional das Montanhas
Rochosas. Após a inscrição e a confirmação de presença, Toby en­
controu o meu quarto, seguindo as instruções recebidas na recepção.
18

O CAJADO DO IOGUE

Ficava no alojamento principal, bem ao lado do salão do satsang.


Não havia outra bagagem no quarto, portanto deduzi que minha
companheira de quarto ainda não tinha chegado. Era um quarto
grande, com banheiro, e uma bela vista das montanhas. Havia ape­
nas uma cama beliche perto da porta, e uma cama de casal perto da
janela. Os beliches não pareciam muito confortáveis, e eu preferia
ficar perto da janela, onde poderia respirar ar fresco, portanto pedi
a Toby que colocasse minha mala e o edredom na cama de casal.
Depois de ver que estava confortavelmente instalada, ele me disse
que tinha que estudar em casa e precisava voltar imediatamente.
Nós nos despedimos, e ele foi embora.
Senti-me muito estranha por ter sido deixada ali assim. Nos nove
anos em que estivéramos casados, nunca tínhamos nos separado
por tanto tempo. Entretanto, eu tinha uma imagem de mim mes­
ma como muito independente, e ignorei os sentimentos de solidão.
Examinando o cronograma do retiro, descobri que faltavam mais
de duas horas para o jantar; tempo suficiente para completar minha
rotina noturna habitual de ioga e meditação. Tomei um banho de
chuveiro e, quando me preparava para fazer algumas posturas de
ioga no chão, minha colega de quarto chegou.
Deu para ver que ela ficou perturbada ao perceber a situação das
camas. Finalmente, ela disse que não poderia dormir no beliche de
baixo, porque tinha claustrofobia, e que estava preocupada porque
o beliche de cima não agüentaria o seu peso, já que era bem avantaja­
da. Parecia que eu não tinha escolha, a não ser dar-lhe a cama de casal.
Naquela noite, Gangaji nos recebeu com um satsang curto. Havia
aproximadamente cento e cinqüenta pessoas, a maioria sentada no

19

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

chão. Escolhi um lugar perto da porta lateral, encostada na parede,


entre uma cadeira e uma mesa sobre a qual estava uma planta enor­
me. Sentia-me insegura. Nas últimas horas, depois que Toby tinha
me deixado ali, minha apreensão em relação a estar naquele lugar,
com todos aqueles estranhos, havia aumentado.

Não me lembro muito do que Gangaji disse naquela noite, exceto isto:

Para perceber a Verdade do seu Ser, você precisa estar


nu, exposto e disposto a morrer.

Aquilo me pareceu uma coisa extravagante e ofensiva. Eu odiava


ficar nua, evitava cuidadosamente todo tipo de exposição, e não
tinha idéia do que ela queria dizer com “disposto a morrer”. Esta
pessoa, tão tímida e reservada, não tinha intenção de fazer qualquer
mudança neste sentido.
Enquanto a escutava dar as boas-vindas ao grupo, senti resistên­
cia surgindo no mesmo instante: resistência a ela, a estar ali, a esse
grupo de estranhos. O que eu estava fazendo ali, experimentando
“mais uma coisa espiritual”?
Julgamentos começaram a surgir: estas pessoas provavelmente
não vêm praticando há tanto tempo quanto eu; provavelmente são
iniciantes, para os quais um retiro silencioso como este pode trazer
algum sentimento de paz. Eu tinha passado anos em retiros silen­
ciosos na Ásia e na Europa, muitos deles de quatro a cinco meses de
duração. Não apenas sabia como silenciar a mente com minha prá­
tica de meditação, como tinha sido treinada para ensiná-la e fizera
isto durante anos. Até tivera a experiência de alguns poderes sobre­
20

O CAJADO DO IOGUE

naturais. O que eu estava fazendo em um retiro para iniciantes? O


que realmente precisava era de alguma coisa mais avançada. O que
realmente precisava era encontrar a peça que estava faltando.
Enquanto isso, Gangaji estava sugerindo que este tempo no re­
tiro era um tempo para “ver o que não foi visto”, para reconhecer o
que você está tentando obter e do que está tentando se esquivar. E,
então, PARAR: parar todo movimento em direção a algo ou para se
afastar de algo. “Retiro é um tempo para parar”.
Eu não entendi aquilo. Havia muitas coisas das quais me es­
quivava; eu tinha que me esquivar delas. Era uma pessoa reserva­
da, muito comigo mesma. Pois sentia que havia uma pureza bem
dentro de mim, e o mundo exterior constantemente apresentava
inúmeras possibilidades de poluição.
Pouco mais de vinte minutos tinham se passado, após Gangaji
nos ter dado as boas-vindas naquela noite, quando ela se despediu
de todos, para que pudéssemos descansar, já que muitos tinham
feito uma longa viagem para participar deste retiro.
Voltei para o meu quarto, sentindo tudo menos disposição para
descansar. Um redemoinho se agitava dentro de mim. Enquanto
subia a escadinha do beliche, senti-me com oito anos novamente.
Minha irmã e eu tínhamos dividido um beliche muito tempo atrás,
e eu sempre ficava com a cama de cima, porque ela era sonâmbula.
Deitei na cama, tentando ficar confortável, e percebi que aquela
estranha queimação tinha surgido no meu corpo novamente. Pensei:
“Talvez esteja ficando doente. Certamente estou com febre.” Minha
colega de quarto estava dormindo e roncando. Sentia-me descon­
fortável por dividir o quarto com uma pessoa que não conhecia. Em

21

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

casa, estava acostumada a ter o meu próprio quarto, e meu marido


tinha o dele. Uma natureza profundamente solitária estava cravada
bem fundo nesta personalidade, e precisava de uma enorme quan­
tidade de espaço.
Depois de passada uma hora sem sono à vista, comecei a chorar.
Inicialmente, estava preocupada porque poderia perturbar minha
colega de quarto, e tentei chorar baixinho, sufocando as lágrimas.
Mas seu ronco pesado permanecia inalterado, apesar dos meus so­
luços. Aliviada de minha preocupação, deixei as lágrimas correrem
livremente, soluçando até o início da manhã. Não tinha idéia de
por que estava chorando. Só me sentia terrível, encurralada, solitá­
ria, como jamais tinha me sentido antes.
Mais ou menos no meio da noite, um plano de escapada for­
mou-se em minha mente. Telefonaria para o meu marido de ma­
nhã, pedindo para ele vir me buscar. Provavelmente, não haveria
reembolso da taxa do retiro e ele ficaria furioso, mas valeria a pena.
Eu me sentia profundamente desconfortável e infeliz; talvez estives­
se doente, e tinha que dar o fora dali.
Mas quando a luz da manhã começou a brilhar mais, senti-me
mais leve, o que não fazia absolutamente sentido. Depois de soluçar
uma noite inteira, deveria estar exausta, um zumbi, um desastre
emocional. Em vez disso, sentia-me limpa, profundamente lavada e
muito mais leve. Decidi adiar o telefonema para meu marido.

No salão do satsang, naquela manhã, encontrei o mesmo lugar


da noite anterior disponível e, mais uma vez, agachei-me debaixo da
planta encostada na parede lateral, entre a mesinha e a cadeira. O

22

O CAJADO DO IOGUE

homem sentado na cadeira sorriu para mim amistosamente, mas a


sensação de ser uma forasteira ainda estava nítida. Estava acostuma­
da a participar de retiros com pessoas com quem convivia há anos,
com as quais tinha crescido, que eram como a minha família. Tinha
a sensação de estar perdida, de solidão, de não saber o que estava
acontecendo.
Alguém anunciou, antes do satsang, que o salão estaria disponí­
vel vinte e quatro horas por dia, para “sentar”, mas não se poderia
fazer ioga, nem ler ou cochilar nele. Eu me perguntava o que era
este “sentar”. Sempre tinha usado um mantra nas minhas medi­
tações. Mas, a esta altura, já descobrira que Gangaji não ensinava
qualquer técnica, não dava mantras, e não encorajava práticas de
espécie alguma. Eu me perguntava: “Então o que todas estas pes­
soas estão fazendo sentadas tão silenciosamente? Não estão fazen­
do nada?” Não havia oportunidade de perguntar a ninguém sobre
isto, porque o retiro estava sendo feito em “silêncio de conversação”.
Ninguém deveria falar desnecessariamente, fora do satsang. E eu
não faria perguntas no satsang; pelo menos ainda não.
Quando Gangaji chegou, a neve tinha começado a cair do lado
de fora das grandes janelas panorâmicas. As montanhas pareciam
etéreas, envolvidas em uma névoa branca. Muitas pessoas falaram
sobre como estavam emocionadas por sentarem em satsang com
Gangaji, em um lugar tão belo. Eu, porém, estava sentada ali, me
sentindo como se tivesse sido atirada dentro da família de outra
pessoa, na época do Natal, vendo todos os outros abrirem os seus
presentes.

23
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Gangaji começou a manhã assim:

Então, como vamos passar este tempo? Existe um gran­


de benefício em ser removido da rotina normal do dia­
a-dia. Mas não estou falando disto. Estou falando sobre
internamente. Como você passa o seu tempo? Em que
você está pensando? Está pensando em conseguir alguma
coisa, perder, conservar ou evitar alguma coisa? Se está,
isto é um desperdício de energia.

Era exatamente o que eu estava pensando: me manter distante;


distante de todas estas pessoas que não conhecia; distante de todo
este jargão espiritual que parecia tão estranho, se comparado à lin­
guagem com a qual estava acostumada; distante desta mestra que fa-
lava tão severamente sobre estar “nu, exposto e disposto a morrer”.
Gangaji continuou:

Isto é o habitual, é claro. Qualquer que seja o foco, seja


obter a próxima refeição, ou a próxima experiência, isto
é o habitual.
Portanto, a oportunidade do retiro, de um retiro silen­
cioso, é, antes de tudo, ver como você está passando o seu
tempo, e então parar. Assim mesmo, sem mais discussão.

Ela começou a ler uma carta.

Amada mestra: Ontem à noite eu estava estourando de rai­


va, medo, desespero. Vi vício por toda parte. Vi toda a minha vida
como nada mais do que vários padrões de vício.
24
O CAJADO DO IOGUE

Ela parou de ler, olhou diante de si, fixou os olhos no autor da


carta, e olhou para ele com um olhar duro. Pegou uma bolinha de
espuma que estava no sofá e atirou-a nele. Todo mundo riu.

Este é o vício, bem aqui. Fazer esta afirmação: “Vi


toda a minha vida como nada mais do que vários padrões
de vício.” Desista deste vício. Realmente, isto merece ser
apagado, terminado.

Para meu espanto, Gangaji rasgou um pedaço da carta, amassou­


o em uma das mãos e jogou-o atrás de si, enquanto todo mundo ria.
A pobre pessoa devia estar morrendo. Era isto que ela queria dizer
com “disposto a morrer”? Eu sabia que não poderia suportar isto e,
imediatamente, decidi que não escreveria nenhuma carta para ela.
Então Gangaji contou uma história de seu mestre.

Vocês conhecem esta história que Papaji conta? Ele


estava caminhando em Rishikesh e encontrou um iogue
muito velho, que tinha um magnífico cajado no qual se
apoiava. Então eles se sentaram, conversaram, e fizeram
uma ótima refeição juntos.
Finalmente, o iogue disse: “Sabe, meu mestre me pas-
sou muitíssimos poderes, muitos siddhis. O mais poderoso
de todos é o poder da imortalidade. Este cajado me dá o
poder da imortalidade. Mas havia um poder que ele não
podia me passar, porque ele mesmo não o tinha alcança­
do: o poder da liberdade, a verdade da liberdade”.
E o iogue disse a Papaji: “Vejo em seus olhos que você

25
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

o conhece. Você tem este poder. Pode passá-lo para mim?


Eu espero há tanto tempo.”

De repente, fui atraída por esta história. Eu também estava es­


perando e praticando há tanto tempo. Eu também tinha alcançado
poderes extra-sensoriais, mas não a liberdade.

Papaji disse: “Sim, com muito prazer.” Então pegou


o cajado do homem, quebrou-o e atirou-o no Ganga. E
disse: “Agora você vai morrer como todos os homens e,
assim, vai perceber quem morre.”

Isto realmente me chocou e parou alguma coisa bem fundo den­


tro de mim. Eu tinha entendido a iluminação como sinônimo de
perfeição relativa, como a posse de poderes. Um mestre anterior
com quem havia estudado enfatizava a necessidade de se alcançar
a perfeição da fisiologia como veículo da consciência, da possibili­
dade de controlar o karma e as forças da natureza, e de desenvolver
poderes sobrenaturais. Estes poderes eram, de fato, a prova do nível
de consciência de uma pessoa. Se eu o tinha entendido correta­
mente ou não, agora é irrelevante. Mas esta idéia de desenvolver
alguma coisa, de me aperfeiçoar de alguma maneira, estava profun­
damente enraizada em mim. Eu tinha trabalhado para isto durante
anos. Agora, esta história de Papaji e do iogue sugeria que poderes
e perfeição relativa não significavam nada. Uma pessoa podia ter os
maiores poderes, até o da imortalidade do corpo, e ainda não ter a
liberdade. Alguma coisa nesta história calou fundo em minha alma.
Escutei com mais atenção, enquanto Gangaji prosseguia.
26
O CAJADO DO IOGUE

É muito útil saber como acalmar a mente. Mas, se isto


se transforma em algum tipo de poder para manter algo
afastado, ou evitar algo, então é inútil. E você o quebra.
Você o atira fora.
Você entende? Se você então transformar ter uma men­
te silenciosa no seu objetivo, quebre-o. Atire-o fora. É só
mais um objetivo. Você irá alcançar a mente silenciosa, e
ainda estará buscando a verdadeira liberdade.

Engoli em seco. A arrogância da noite anterior escorria de mim.


Ela estava falando sobre mim. Eu era o velho iogue. Havia aprendi­
do como silenciar a mente, a respiração, o corpo. Estudara poderes
sobrenaturais. E ainda estava procurando a verdadeira liberdade.

Desde o início disse a vocês, não estou lhes ensinando


poderes sobrenaturais. Existem lugares aonde vocês podem
ir, para adquirir poderes sobrenaturais. E não há nada de
errado nisso.
Eu não estou lhes ensinando nada. Vim para convidá­
los a penetrar na profundeza do seu ser. Isto não pode ser
ensinado, e não é um poder sobrenatural. É a disposição
para desistir de todos os poderes. O poder de sofrer e o
poder de ser feliz. É a disposição para deixar isto ser que­
brado e jogado de lado.

Apesar da dor desta revelação, apesar de uma espécie de desespe­


rança que isto trazia; apesar de toda a resistência na mente, havia um
profundo e inegável “conhecimento” de que o que ela estava falando
era a Verdade. A disposição de que ela falava era a disposição para
27

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

despertar do sonho, em vez de continuamente tentar aperfeiçoar o


sonho. Era um rude despertar. Era a disposição para deixar de lado
todas as tentativas de realização pessoal.

Senti uma “fresta” se abrir em algum lugar bem dentro de mim,


quando tomei consciência desta disposição. Alguma coisa se afrou­
xou, algo que antes havia sido mantido bem apertado. Era como se,
naquele momento, Gangaji quebrasse o meu cajado de iogue. Suas
palavras seguintes atingiram o alvo como a flecha de um exímio
atirador. Lenta e deliberadamente, como se diretamente para mim,
ela disse:

Você pensou que estava no topo; agora você é simples-


mente igual a todos os outros. Agora, nós começamos.
Agora, você pode conhecer a liberdade.*

28

A PEÇA QUE FALTAVA

Naquela tarde, sentei no tapete de meditação em meu quarto,


lendo um livro que encontrara no armário da minha colega de quar­
to. O livro fora escrito pelo mestre de Gangaji, H. W. L. Poonja,
afetuosamente conhecido como Papaji. Escrito no formato de per­
guntas e respostas, ele continha as respostas de Papaji às perguntas
de buscadores durante os satsangs. Abri na primeira parte, intitula­
da “O que é iluminação?”

Tradicionalmente, há dois caminhos que são indicados. Um


deles é a investigação, que é adequada para muito poucas pes­
soas, aquelas que têm aptidão para ela; o outro é ioga. Ioga é
concentração, meditação e prática.
Para a investigação, você precisa ser capaz de discernir o que
é real do que é irreal.
Estudos, peregrinações e banhos em águas sagradas não vão
ajudá-lo. Repetir todos os sutras e o conhecimento sagrado
como um papagaio não adianta nada. Presentes, austeridade ou
caridade também não ajudarão.
O requisito mais importante é o ardente desejo de liberda­
de. Este desejo sozinho é o bastante. Se você tiver um ardente
desejo de liberdade, o satsang aparecerá.*

Por alguma razão indiscernível, estas palavras fizeram com que


eu rompesse em lágrimas. Minha colega de quarto chegou naquele
instante e me encontrou chorando. Ela quebrou o silêncio e per­
guntou se podia ajudar. Agradeci e respondi “não” com minha ca­
29

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

beça. Simplesmente não havia maneira de explicar o desemaranhar


de vinte e seis anos, talvez de vinte e seis milhões de anos.

Desde o satsang da manhã, o nível da minha frustração vinha


aumentando. Frustração comigo mesma, com o meu caminho, com
tudo que pensei que sabia, tudo que pensei que havia alcançado.
Minha colega de quarto perguntou se eu tinha comido alguma
coisa. Mais uma vez, sacudi a cabeça em um não. Eu via que ela
estava genuinamente preocupada comigo e isto tocou meu coração.
Olhando nos olhos dela, vi uma pessoa meiga, dedicada e, de repen­
te, senti-me com muita sorte por ter esta linda alma como minha
colega de quarto. Mais tarde, descobri que era ela quem arranjava as
flores no salão do satsang, e também as flores no chalé de Gangaji.
Depois que ela deixou o quarto, deitei-me no beliche e tentei
dormir. Embora me sentisse física e mentalmente exausta por não
ter dormido na noite anterior, o sono não veio. Nosso quarto ficava
bem ao lado do salão do satsang e, enquanto estava deitada, comecei
a perceber um poderoso silêncio vindo do outro lado da parede.
Depois de um tempo, decidi fazer algumas posturas de ioga,
pensando que isto me relaxaria. Quando desenrolei meu tapete no
chão e comecei os exercícios, o silêncio vindo do salão do satsang
tornou-se insuportavelmente intenso, como se estivesse me puxando.
Já tinha sentido a força do silêncio coletivo antes. Vivera muitos
anos em uma comunidade na qual mais de mil pessoas meditavam
juntas todos os dias, em um grande salão. Quando as pessoas come­
çavam a se reunir de manhã para meditar, podia-se realmente sentir
esta atração . Mas jamais tinha sentido uma força como esta, um tal

30

A PEÇA QUE FALTAVA

silêncio. Era ensurdecedor.


Olhei para o relógio: ainda faltava mais de uma hora para come­
çar o satsang da tarde. Não queria entrar no salão tão cedo. Queria
terminar meus exercícios de ioga e meditação na privacidade do
quarto. Mas logo o silêncio tornou-se irresistível e não tive escolha.
As posturas de ioga foram esquecidas. Fui atraída porta a fora, como
se estivesse sendo puxada pela força de uma gigantesca sucção, para
dentro do salão do satsang.
No salão, encontrei apenas cinqüenta ou sessenta pessoas “senta­
das”. Todas absolutamente imóveis, como as pessoas fazem, às vezes,
quando meditam. Talvez houvesse algo mais neste “sentar” do que
eu pensava.
Encontrei meu esconderijo habitual, debaixo da planta, e me
sentei, à espera do meu quarto satsang.
Quando Gangaji entrou, primeiro leu várias cartas lindas, que
tinham sido colocadas no sofá. Eram como poesia, ou escrituras.
Fiquei impressionada com a profundidade da compreensão, a matu­
ridade espiritual e a honestidade que expressavam. Comecei a sentir
como se todo mundo fosse iluminado, exceto eu. Da arrogância da
noite anterior, o pêndulo havia oscilado para o outro extremo, a com­
pleta falta de valor. Eu ainda estava presa entre pares de opostos.

Revirei-me na cama a maior parte da segunda noite, mais uma


vez sem sono, enquanto minha colega de quarto roncava em to­
tal bem-aventurança. O pequeno beliche que me servia de cama
não era muito confortável. Fiquei deitada, considerando há quanto
tempo estava neste retiro. Meu lar e meu marido pareciam estar

31

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

a anos-luz, a eras de distância. Era surpreendente lembrar que só


havia se passado um dia e meio! Isto parecia impossível. Não podia
ser. Alguma coisa devia acontecer perto de Gangaji. O tempo era
alterado, esticado, ou, quem sabe, desaparecia por completo.
Finalmente, decidi ir ao salão do satsang para meditar um pou­
co. Quando entrei, pisando em ovos, vi que a iluminação no salão
estava mais fraca, preparada para a noite. Duas pessoas estavam sen­
tadas silenciosamente à meia-luz, uma no chão diante da fotografia
de Papaji, a outra em um sofá no fundo do salão. Sentei-me em
um dos sofás na lateral, e tentei meditar. Sentia meu corpo ligado,
zumbindo, como se tivesse tomado café, o que raramente faço. O
que havia de errado comigo? Novamente, considerei a possibilidade
de estar doente.
A certa altura, senti a presença de Gangaji, tão forte que abri
meus olhos, meio que esperando vê-la ali de pé, na minha frente.
Mas o salão estava vazio, à exceção das duas outras pessoas sentadas
em silêncio, imóveis na penumbra.
De manhã bem cedo, ainda sem dormir, voltei para o meu quar­
to para tomar um banho demorado, esperando que isso me relaxas­
se. Minha colega de quarto já tinha saído para o café. Novamente,
não tinha vontade de comer.
Finalmente, cheguei ao salão do satsang, mais tarde do que o
habitual, e encontrei meu lugar protegido debaixo da planta já ocu­
pado. Uma irritação surpreendentemente intensa surgiu em mim.
Senti-me pessoalmente invadida. Gostava daquele lugar debaixo da
planta. Como é que alguém tinha ousado ocupá-lo?! Os espaços
que restavam no chão lotado eram apertados e a perspectiva de me

32

A PEÇA QUE FALTAVA

espremer com todas aquelas pessoas que não conhecia me deixava


tensa. Decidi me sentar em uma das cadeiras no fundo, que de­
viam estar reservadas para as pessoas que as haviam requisitado an­
tes do retiro. Já haviam pedido duas vezes para não usarmos essas
cadeiras, a menos que tivéssemos reservado uma com antecedência.
Mas, em minha irritação, eu não estava ligando para regras. Queria
uma cadeira. De qualquer maneira, forçar pessoas da minha idade
a se amontoar no chão, como crianças de jardim de infância, era
uma indignidade. Quando sentei no fundo da sala, esperando que
Gangaji chegasse, meus olhos se encheram de lágrimas novamen­
te. Não podia acreditar na manteiga derretida em que havia me
transformado. Chorar não era uma coisa que fizesse com facilidade
ou freqüência. Mas havia uma sensação de desespero, de não saber
mais o que fazer, de estar irremediavelmente perdida. Sem querer
chorar em público, tentei reprimir as lágrimas, o que me deixou
ainda mais tensa.
Quando Gangaji chegou, estava me sentindo quase hostil. Não
em relação a ela, ou a ninguém em especial, mas em relação a mim
mesma; ao modo como tinha arruinado a minha busca espiritual.
Fiquei sentada ali, apenas tentando manter tudo no lugar, até que
pudesse voltar para o meu quarto; sentia-me separada de tudo, nem
mesmo escutava o satsang, até que alguém fez uma pergunta sobre
“ser visto”.
Fiquei curiosa, porque me lembrei de como quisera ser vista por
Gangaji naquela primeira noite de satsang em Boulder. Era um de­
sejo forte e inexplicável. A pessoa perguntou: “O que é ‘ser visto’?
Isto parece ser tão importante para todo mundo.”

33
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Tem razão. Por que é tão importante? É a mesma coisa


que ser encontrado, não é? E ser encontrado deve eva­
porar o ato de se esconder ou então não é realmente ser
encontrado. Portanto, chega um momento na evolução
de um protoplasma em particular, através dos estágios de
uma célula única até a identificação multicelular, em que
surge este forte desejo de ser encontrado, que é o desejo de
ser visto. Então, começa a busca por aquilo que possa me
encontrar, por aquilo que possa verdadeiramente me ver.
É claro que, nesta busca, existem muitos “quase-ver” e
“quase-encontrar”. Mas, se algum destes “ver” ou “encon­
trar” estiver amarrado a algum outro motivo que não seja
apenas ver, segue-se um grande sofrimento.
Por exemplo, muitas pessoas dirão: “Eu vejo você, você
é linda. Amo você, quero você. Você quer ser minha?”
Inicialmente, é muito bom sentir-se vista: “Ah, eu estou
sendo vista.” Mas, depois de um certo tempo, reconhece-se
que o que foi visto foi um certo traço exterior específico ou
um padrão energético que se desejava capturar, para que
a pessoa que via pudesse continuar a sua busca por ser
vista. Está acompanhando este ciclo de samsara? *

Eu acompanhava muito bem. Conhecera pessoas que tinham


desenvolvido grandes poderes de “visão”, grandes poderes mágicos,
poderes que lhes permitiam penetrar fundo na mente de outras pes­
soas. Mas, muitas vezes, tinha visto estes poderes serem utilizados
com propósitos egoístas, manipulativos e egotistas. Para mim, era
profundamente assustador quando via o poder espiritual ser utiliza­
do desta maneira. Esta era uma das coisas das quais tinha o cuidado
34

A PEÇA QUE FALTAVA

de me manter distante. Gangaji continuou:

Mas chega um momento em que você é visto apenas


por ser visto, e nada é desejado. Neste instante, você vê.
Você vê isso pelo qual ansiava, você vê quem você é, você
vê o que é. Você é encontrado.
Simplesmente “ver” tem uma energia que é tão forte,
que ela evapora, dissolve, queima, remove qualquer pos­
sibilidade de se esconder.

Ela olhou ao redor da sala lentamente.

Portanto, estou muito feliz em ver você. E eu vejo você,


realmente. Se você está feliz por ser visto, isto é da sua
conta.

Em meu esconderijo no fundo da sala, eu me contorcia de cons­


trangimento. Tinha evitado os olhos dela o tempo todo. Ainda as­
sim, queria ser vista, queria ser encontrada. Por que estava lutando
contra ela, me escondendo como uma criança amedrontada no pri­
meiro dia do jardim de infância?

Um homem relatou um sonho que tivera na noite anterior, no


qual fora atacado por um tigre, e como dera um murro na cara do
tigre e o repelira. Gangaji disse que esse tigre era uma reminiscência
do tigre espiritual que devora tudo que é irreal. Esse tigre é o pró­
prio Ser. Ela sugeriu que o homem sonhasse o sonho novamente:

35

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

... e quando ele vier com as presas à mostra, abra o seu


peito para ele. E diga “Vá fundo. Pode me devorar. Estou
disposto a morrer”.
Porque todo mundo pode se identificar com este soco de
que você está falando. Ele é o instinto animal de manter
o perigo extremo à distância.
Estamos falando, é claro, de todo o condicionamento,
do protoplasma para cima. Desta defesa. Mas, neste reco­
nhecimento, nesta descoberta real, existe um desamparo.
E, assim, você é devorado por si mesmo, como guru, como
tigre, como montanha, como Vida. Devorado. Termina­
do. Uma vítima indefesa.
Sim, somos treinados para ser poderosos, para nos de­
fender. E é claro que isto tem seu lugar na evolução das
formas de vida. Mas isso de que nós estamos falando aqui
é o poder da ausência de defesa. O poder de render-se a
esta força maior, que viu você e está vindo para pegá-lo,
e pode parecer desaparecer por um momento na força de
sua defesa. Mas eu posso garantir, ela só está dando voltas.
Da próxima vez, quem sabe, ela virá por trás! [risadas]

Foi durante esta discussão sobre o tigre que alguma coisa veio à
superfície. Eu vi o que não tinha visto antes. Em todos os meus anos
de prática espiritual, nunca tinha estado realmente disposta a me
entregar, a abrir mão da “pessoa” que estava praticando. Tinha gasto
a minha vida, até mesmo a minha busca espiritual, defendendo,
protegendo, aperfeiçoando cuidadosamente esta entidade chamada
“eu”. Tinha medo de ser devorada, medo de abrir mão do pessoal.
Medo de ser vista pelo tigre que me devoraria. Isto me atingiu como
36

A PEÇA QUE FALTAVA

um raio: é isto que ela quer dizer com “disposto a morrer”. Esta é a
peça que faltava!
Experiências de meditações sublimes inundaram a minha me­
mória, nas quais uma expansão vasta, ilimitada, havia se aberto
diante de mim e, mesmo assim, eu havia recuado, todas as vezes,
do mesmo modo como estava evitando olhar nos olhos de Gangaji
agora. O caminho que havia percorrido durante tantos anos tinha
muitas vezes me levado às portas de Brahma*, mas eu não fora capaz
de atravessá-las. Nesse momento, um profundo medo aflorou, um
medo que tinha me mantido empoleirada na soleira do Infinito du­
rante mais de um quarto de século. Era o medo do aniquilamento
pessoal. Era uma falta de disposição para morrer. A emoção tomou
conta de mim e senti-me à beira das lágrimas novamente.
Uma mulher chamada Barbara fez uma pergunta sobre devo­
ção e Gangaji passou muito tempo conversando com ela. Barbara
chorou quase o tempo todo, e ela estava sentada bem lá na frente.
Fiquei impressionada e senti-me encorajada pelo modo como aque­
la mulher conseguia se abrir na frente de cento e sessenta pessoas,
na frente de Gangaji.
O tempo todo em que Gangaji estava falando com ela, pensei
em fazer uma pergunta sobre este medo de ser devorado. Porém,
até mesmo pensar em erguer a minha mão fazia o meu coração
disparar incontrolavelmente. Talvez escrever uma carta fosse mais
fácil; quem sabe depois do retiro, assim ela não seria lida durante o
satsang.
Quando ela terminou de responder a Barbara, houve uma cal­
maria no salão, um momento de intenso silêncio. Ninguém levan­

37

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

tou a mão. O salão entrou em uma espécie de câmera lenta, como


naquela primeira noite de satsang em Boulder. Foi como se um
momento atemporal tivesse se aberto, penetrando no tempo. Havia
uma estranha sensação de que ele tinha se aberto para mim.
Do meu lugar no fundo da sala, percebi que estava erguendo
minha mão. Gangaji viu imediatamente e fez um sinal positivo com
a cabeça. Enquanto o microfone sem fio estava sendo passado para
mim, amaldiçoei a mim mesma por considerar a hipótese de fazer
uma pergunta em tal estado. Certamente romperia em lágrimas no
meio da pergunta.
O microfone foi empurrado na minha mão. Respirei fundo e me
levantei. Não sei porque me levantei. Ninguém se levantava quan­
do fazia uma pergunta. Mas foi assim que aconteceu. Enunciando
cuidadosamente as palavras, tentando esconder a emoção na minha
voz, perguntei a Gangaji: “Como você se livra do medo de ser de­
vorado e de ser visto?” As palavras mal haviam saído da minha boca
quando Gangaji acenou para mim e disse:

Venha cá. Vou lhe mostrar.

Isto não era absolutamente o que eu esperava, e me chocou com­


pletamente. Devia estar com uma cara assustada, porque todo mun­
do riu do meu espanto, inclusive Gangaji. Mas, de algum modo,
não me importei com as risadas. Um profundo e inexplicável alívio
havia tomado conta de mim. Muito do meu tumulto emocional
esvaziara-se miraculosamente, instantaneamente.

38

A PEÇA QUE FALTAVA

Fiquei ali de pé, hesitante, sem ter certeza de que Gangaji real-
mente queria que eu fosse até a frente (talvez ela estivesse só brin­
cando), até que ela novamente acenou para eu ir. Ainda agarrando
o microfone sem fio, comecei a abrir caminho por entre as pessoas
sentadas bem perto umas das outras no chão acarpetado, e que me
separavam do sofá onde Gangaji estava sentada. Algumas pessoas
ainda estavam rindo, enquanto eu passava aos tropeços por entre
elas. Quando estava na metade do caminho, Gangaji disse:

Pode largar o microfone.

Parei e olhei para ela, tentando entender o que significava aqui­


lo. Será que ela não me pediria para falar quando chegasse na frente?
Entreguei obedientemente o microfone a alguém perto de mim,
e continuei abrindo caminho em direção a ela. Novamente senti
uma estranha sensação de alívio e leveza, como se tivesse deixado
para trás mais do que só o microfone. Na verdade, a cada passo que
dava em direção a ela, era como se largasse uma carga que estivesse
carregando.
Quando cheguei à frente, fiquei de pé, nervosa, ao lado da plata­
forma, com meu coração batendo forte. Ela sorriu para mim, e deu
umas palmadas no sofá ao lado dela, com bastante força. Acho que
meu queixo caiu. Nunca tinha visto ela fazer isto antes. Não tinha
idéia de que iria me pedir para chegar tão perto. Um momento de
resistência me fez resmungar: “Ah, não.”
Ela riu:

Ah, sim! Ah, sim!


39
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Vendo que provavelmente não havia como sair dessa, respirei


fundo novamente, para me acalmar, e subi na plataforma. Quando
comecei a me sentar em uma ponta do sofá, o mais longe possível
dela, ela segurou meu braço em pleno movimento.

Não, vá até o fim.

Ela me puxou para perto de si. Senti-me como uma idiota, como
uma criança amedrontada. Cento e sessenta pessoas estavam olhan­
do para mim, rindo, gargalhando. Meu corpo estava tremendo.
Minha boca estava seca. Ela deslizou seu braço suavemente sob o
meu e segurou minha mão úmida de suor.

Está vendo, erguer a sua mão e perguntar: “Como você


se livra do medo?” Isto já é uma prece, não é?

Um silêncio profundo começou a tomar conta de mim. Não


conseguia falar.

E a resposta pode ser algo inesperado. [risadas] Mas se


você realmente não tivesse querido se livrar do medo, ou
não tivesse realmente desejado enfrentar o medo, jamais
teria erguido a sua mão. Você teria continuado a permitir
que o medo controle esta experiência de vida.

Ela tinha razão. Medo, permanecer segura, manter coisas e pes­


soas indesejáveis à distância, haviam sido a estratégia dominante em
minha vida, mais do que gostaria de admitir naquele momento.
40

A PEÇA QUE FALTAVA

Ou você teria deixado este retiro e escrito uma carta


para mim, perguntando: “Como você se livra do medo?”

Fiquei impressionada com o modo como ela me desvendava, e


admiti calmamente: “Eu pensei nisto.” Todo mundo riu de novo.

Sim, estou certa de que você pensou nisto. E você pro­


vavelmente fez isto muitas vezes, de uma maneira ou de
outra. Mas aqui, você ergueu a sua mão. Você disse: “Eu
tenho medo de ser vista. Porém, mais do que o medo de
ser vista, eu estou disposta a ser vista.” Então, deixe-se ser
vista.

Não estava certa de que queria ser vista, conhecida tão profun­
damente. Sentia-me nua. Mas era tarde demais. Ela já estava me
vendo, já estava me conhecendo. Estava fora do meu controle. E,
estranhamente, havia um certo alívio nisto.
Estava com os olhos baixos, olhando para os meus joelhos. Ela se
inclinou na minha direção e me observou atentamente.

De olhos abertos? Olhando para a frente?

Ela levantou o meu queixo, me obrigando a olhar para as pes­


soas. Meus cabelos cobriam levemente o meu rosto. Com três ou
quatro movimentos suaves da mão, ela puxou meus cabelos para
trás de minhas orelhas, para eu não me esconder atrás deles, do
mesmo modo que minha mãe fazia, quando eu era adolescente.
Novamente, senti-me nua, como se estivesse sendo desmascarada.
41

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Sim, simplesmente fique aqui e você verá. Isto cuida


de si mesmo. Você não precisa fazer nada para se livrar do
medo. O medo é perpetuado ao se “fazer” alguma coisa.

Várias vezes, Gangaji se inclinou para olhar para mim, tentando


ver dentro dos meus olhos, mas continuei virando o rosto. Era in­
tenso demais, e eu me sentia demasiadamente tímida. Isto também
fez todo mundo rir, o que era ainda mais embaraçoso. Finalmente,
parecia que eu não tinha escolha. Tinha que olhar nos olhos dela.
Era para isso que eu tinha vindo.
Quando finalmente me virei e olhei em seus olhos diretamente,
a apenas alguns centímetros de distância, um reconhecimento anti-
go, incompreensível se revelou. Surgiu o pensamento: “Eu conheço
esta pessoa. Profundamente.”
“Sim”, ela disse, diante da minha pergunta inaudível. E, com
seus olhos, ela me acolheu em um abraço profundo e invisível.
Depois do que pareceram muitos minutos, ela desviou os olhos
em direção ao grupo e disse:

Então, o coração pode bater, a boca pode ficar seca, o


corpo pode tremer... E daí? E daí?

A sensação de que estava totalmente nua na frente dela me atra­


vessou novamente. Era como se ela pudesse ver tudo que eu era.
Ainda assim, sentia novamente um estranho alívio, talvez o alívio
de não ter mais que me esconder. Sacudi os ombros e pensei: Sim.
E daí? É só o corpo, este estúpido corpo. Então, percebi que estava
completamente quieta por dentro. O tremor tinha parado. Senti a
42

A PEÇA QUE FALTAVA

paz invadindo o meu ser, uma paz que raramente havia sentido em
minha vida.
Quando me virei para agradecer, ela capturou meus olhos nova-
mente, e não pude desviar o olhar durante o que me pareceu uma
eternidade. Desta vez, quando olhei em seus olhos, alguma coisa
deu uma virada. Eu vi por trás dos olhos dela, e uma imensa vasti­
dão se descortinou. Era espantoso, e indescritível com palavras. No
mesmo instante em que isto aconteceu, Gangaji disse:

Sim. Está vendo? Acontece esta virada. Você é vista


e, então, acontece esta virada, e você está vendo. Você se
deixa ser vista. E o ato de ver está por toda parte. Quem
pode dizer como esta visão vai se irradiar? Veremos. Nós
veremos.

Não tinha idéia do que ela queria dizer com isso; nenhuma idéia
do que tinha visto. Estava apenas consciente desta vastidão, e de
que estava completamente calma e quieta na frente de todas aquelas
pessoas. Isto, por si só, era suficiente para me espantar e me deixar
admirada.
Ela permaneceu quieta por um tempo, olhando para o grupo.
Quando estava começando a me perguntar se já tinha terminado,
ela falou novamente:

Sim, nós sentimos que ansiamos por nos esconder. Mas


chega um ponto em que este anseio por ser visto e por ver é
mais forte do que o medo. Este é um ponto muito bom.

43
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Ela deu três palmadinhas no meu joelho enquanto dizia: “pon­


to muito bom”, acentuando cada palavra com uma palmada.

Esta é a escapada da prisão.

Uma intensa onda de gratidão surgiu dentro de mim. Senti uma


liberdade e uma paz profundas. Sim, era como se tivesse sido expul­
sa da prisão. Como poderia agradecer a ela?

Então ela me pediu para olhar para as pessoas novamente. Desta


vez, não tive tanto medo de olhar nos olhos delas. No rosto de cada
um, eu via algo divino e cheio de luz. “São todos lindos”, eu disse.

Sim. Isto que você está vendo é a Beleza. A Beleza


está vendo a Beleza. É irresistível. Você está vendo o seu
próprio coração. Não abstenha o seu Ser do seu Ser por
mais tempo. Isto é desnecessário.

Tornou-se claro, repentinamente, que isto era o que eu havia fei­


to a minha vida inteira, abstendo-me do meu Ser. Agradeci, retirei
minha mão da mão dela e inclinei a cabeça em um namastê*. Ela
também juntou as palmas das mãos, e inclinou a cabeça para mim.
Então deixei o sofá. Mas não voltei para o meu lugar no fundo da
sala. Sentei no chão perto dela, o único espaço disponível, no corre­
dor por onde ela passaria ao sair.
Imediatamente, ela pegou uma carta, examinou-a rapidamente,
olhou para a frente e disse:

44
A PEÇA QUE FALTAVA

Onde está Hal?

Um homem de meia-idade sentado perto da frente ergueu a mão.

Hal!

Ela atirou a carta no ar, e esta caiu atrás dela, no encosto do sofá.
Todo mundo riu.

Ela é irrelevante, não é? Depois desta manhã? Irrele­


vante, sim. Uma espécie de prece, também. Mas, agora,
uma prece irrelevante. Você está aqui. Apenas deixe-se
ficar aqui. Esqueça todos os conceitos de iluminação e de
não-iluminação. O conceito de iluminação trouxe você
até aqui. Agora deixe-o de lado, e reconheça o que é livre
de conceitos.
Fique quieto. Deixe o tigre vir até você. Você não pode
sair caçando o tigre. Ele é um tigre muito grande e muito
sábio. Ele espera por VOCÊ. Ele gosta de capturar, de
surpresa.*

Enquanto ela falava do tigre, eu sabia, em um nível profundo e


intuitivo, que estava falando da vastidão que vira em seus olhos, da
imensidão da qual tinha fugido a vida inteira. Este homem a tinha
caçado; eu tinha resistido a ela. Nenhuma destas duas táticas fun­
cionava. Apenas ficar quieto.
Durante o resto do satsang, esta metáfora do tigre me assom­
brou de uma maneira estranha e profunda. Tinha a sensação de que

45

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

fora capturada por este tigre, de que fora capturada de surpresa. E,


ainda assim, em um nível consciente, nem mesmo estava certa do
que isto significava.

Naquela tarde, depois do almoço, senti o impulso de sair para


caminhar, o que ainda não tinha feito. Quando saí do alojamento
e segui por uma trilha de pedras, senti um amor suave e envolvente
em torno de mim. Era como se fosse uma criança pequena nos bra­
ços de minha mãe. Era o amor de Gangaji? Não poderia dizer, pois
era algo abstrato, não exatamente pessoal.
Depois de algum tempo, parei em um prado coberto de neve.
As montanhas assomavam imensas e imóveis acima de mim. Então,
uma coisa se revelou. Percebi que minha consciência abarcava aque­
las montanhas. As montanhas estavam EM mim! E as árvores, as
pedras e toda a terra. Era um sentimento surpreendente, espantoso,
embora familiar, como se tivesse sentido isto antes; como se tivesse
conhecido isto antes. Mas não havia uma memória mental, apenas
esta familiaridade.
Um esquilo esticou a cabeça para fora de um buraco no chão, e
olhou para mim durante um bom tempo. Brilhando nos olhos dele,
vi, novamente, esta familiaridade, como se estivesse olhando para
mim mesma. Eu era imensa!
O que havia acontecido? O que era esta imensidão? Esta uni­
dade? Nunca havia visto o mundo desta maneira. Mas como podia
não ter visto? Naquele momento, isto era obviamente a Verdade.
Uma antiga expressão dos Upanishads* surgiu espontaneamente em
minha consciência: “Eu sou Aquilo, tu és Aquilo, e tudo isto é nada

46

A PEÇA QUE FALTAVA

mais do que Aquilo.”


Siderada, percebi que era isto que estava vivenciando. Sou as
montanhas, as árvores, o mundo. Não existe separação em lugar
algum. Eu estava maravilhada, perplexa. E, soube então, para além
de qualquer dúvida, que a mestra pela qual havia rezado, pela qual
havia implorado ao universo, era Gangaji.

47

ROMANCE DA ALMA

Naquela tarde, enquanto meditava sentada no chão do meu


quarto, uma visão revelou-se em minha consciência interior. Eu
estava sentada, de pernas cruzadas, em um amplo sofá, absorta em
profunda meditação. O sofá era lindo, revestido de veludo, mar­
chetado de ouro e ricamente bordado com um desenho simétrico,
como uma mandala. Eu estava sentada ao lado de Gangaji, também
absorta em si mesma. Sentadas juntas, uma estranha proximidade
revelou-se, como se ela fosse minha mãe, minha irmã ou uma amiga
muito antiga.
Então, algo se revelou. Não posso dizer como isto aconteceu,
eu apenas soube, de repente, que o resto de minha vida seria dedi­
cado a esta Verdade que Gangaji transmite e vive. Não que tenha
decidido que “eu” serviria a este “ensinamento”, que agora tinha
concluído que era uma boa coisa, etc. Não foi nada disso. Eu nem
sabia o que ela estava ensinando. Na verdade, ela dissera no dia an­
terior: “Eu não estou lhes ensinando nada.” Mas havia apenas este
“conhecimento” revelado, de que minha vida se destinava, de algum
modo, a isto. Havia uma profunda alegria, embora mentalmente
não estivesse ainda certa do que pensava sobre isto, nem do que
significava realmente.

No satsang daquela tarde, sentei-me mais à frente. Não sentia


mais necessidade de me esconder no fundo da sala. Eu fora vista.

48

Fora encontrada. Não me sentia mais como uma forasteira, sentia­


me acolhida dentro desta família de satsang. Curiosamente, todos
pareciam familiares agora, como o esquilo.
Após o silêncio inicial, Gangaji juntou as palmas das mãos e dis-
se: Bem-vindos ao satsang. Então olhou em minha direção. Quando
meus olhos encontraram os dela, minhas mãos espontaneamente se
juntaram em um namastê e, sem qualquer volição aparente, minha
cabeça inclinou-se em uma saudação a ela. Mas foi mais do que um
espontâneo gesto de respeito. Alguma coisa profunda aconteceu na­
quela saudação. Senti algo se abrir no topo da minha cabeça e um
peso, uma resistência, desapareceram. Foi como se ela os retirasse de
mim com aquela saudação. Foi como se, naquele momento, a sepa­
ração entre nós tivesse sido momentaneamente eliminada. A sensa­
ção depois disso foi de estar mais livre, mais leve, e abençoada.
Durante o satsang, senti uma tremenda alegria só por estar ali,
na presença de Gangaji, vendo-a desmontar as concepções errôneas
de todos os que falavam com ela. Em dado momento, ela olhou
para alguém que estava algumas fileiras à minha frente, escrevendo
em um bloco de papel.

Vejo que está tomando notas. Vi você tomando notas


antes. O que você vai fazer com estas notas?

A pessoa permaneceu em silêncio. Na verdade, todo o salão fi­


cou muito quieto. Gangaji continuou:

Poupe seu tempo. Eu era excelente em tomar notas.

49
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Freqüentei muitos cursos, e tornei-me perita em tomar


notas. Mas veja, quando você faz anotações, a atenção
fica dividida. E você também é trapaceada pela noção
de “captar tudo” mais tarde. Você pode ler suas anotações
mais tarde, e ser inspirada por elas, mas você tem a opor­
tunidade de captar tudo agora. E, quando você captar a
coisa agora, verá que ela não está em qualquer palavra
ou frase. Não está em qualquer recomendação de fazer
isto ou não fazer aquilo.
Portanto, tente não fazer anotações durante um dia
e, se você não ficar satisfeita com isto, comece a fazê-las
novamente.
Esta é uma espécie de nudez; nenhuma possibilidade
de se lembrar onde estão os seus disfarces. As pessoas pen­
sam: “Tenho de me lembrar disto.” Desista desta ilusão.
Para lembrar de si mesma, primeiro você precisa memo­
rizar uma idéia de si mesma. Você já tentou fazer isto.
Satsang é abrir caminho através da memória, é atraves­
sar a memória.
Sim, nua. Nenhuma possibilidade de se lembrar.
Nenhuma possibilidade de conceitualização.
Papaji diz com freqüência: “O verdadeiro ensinamen­
to não deixa rastros. Nada que possa ser seguido.” É isto
que estes rabiscos são, rastros que irão estimular alguma
conceitualização que, você espera, revelará a Verdade.
Mas a Verdade está aqui, agora, como você.

Isto foi lindamente implacável, perfeitamente claro. Cada pala­


vra soou verdadeira, e calou fundo em minha alma. Cada palavra
50

ROMANCE DA ALMA

era tão familiar como se eu mesma a tivesse dito, como se já a co­


nhecesse. Era uma fala implacável, mas de uma implacabilidade da
maior bondade, dissipando as ilusões da mente e guiando, apontan­
do constantemente de volta para Aquilo que a pessoa é.
A pessoa com quem ela falava calmamente pôs de lado suas ano­
tações, e não a vi trazê-las para o salão durante o resto do retiro.

Naquela noite, deitei-me no beliche, com a esperança de final­


mente conseguir dormir, após duas noites sem sono. Mas estava
mais acordada do que nunca. Meu corpo estava eletrizado, pegan­
do fogo. A imensa fotografia de Papaji no salão do satsang estava
pendurada exatamente no outro lado da parede, em frente à minha
cama. Estranhamente, eu estava consciente dele e sentia-o me pu­
xando, me chamando. Seria ele a causa da ausência de sono?
Depois de ficar deitada durante mais ou menos uma hora, desisti
de dormir, e resolvi ir até o salão do satsang para meditar. Mais uma
vez, encontrei o salão na penumbra. Entrei delicadamente, toman­
do cuidado para não perturbar as três pessoas que estavam sentadas,
imóveis, também incapazes de dormir. Pelo menos foi o que pensei.
Uma suave excitação me atravessou. Estava começando a gostar
destas vigílias no salão do satsang. Sentei-me no chão, em frente à
imensa fotografia de Ramana pendurada na parede, à esquerda do
sofá de Gangaji. Até aquele ponto do retiro, vinha meditando com
um mantra, que fora a minha prática diária durante muitos anos.
Mas, naquela noite, algo diferente aconteceu. Quando meus olhos
se fecharam, surgiu a pergunta: “E se eu apenas me ‘sentar’, sem
usar qualquer mantra desta vez?” Imediatamente, surgiram alguns

51

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

julgamentos com relação à meditação. Por que havia praticado durante


tanto tempo? Fora uma perda de tempo? Eu não deveria mais meditar?
Dentro da minha cabeça, ouvi a voz de Gangaji: Abra mão disso.
Perguntei-me como podia ouvir a voz dela dentro da minha ca­
beça daquele jeito. Novamente ela falou: Abra mão DISSO. Senti
medo e, ao mesmo tempo, estava lutando para abrir mão da resis­
tência. Abra mão DISSO.
Enquanto este diálogo interior continuava, minha mente come­
çou a relaxar cada vez mais. A atenção consciente se expandiu, apro­
fundando-se cada vez mais. Toda vez que surgia um pensamento, a
voz de Gangaji aparecia: Abra mão disso. Até que, finalmente, nada
havia. Coisa alguma. Apenas a consciência da consciência.
Era um silêncio delicioso, suave. Totalmente desprovido de
qualquer programação. Misteriosamente, mais uma vez, senti-me
envolvida por um abraço sutil e amoroso.
Fiquei lá a noite toda, abrindo mão, abrindo mão, abrindo mão.
De vez em quando, uma ou outra pessoa entrava e, depois de algum
tempo, ia embora. Mas a maior parte do tempo eu estava sozinha
com Ramana, com Gangaji. Era a própria Paz. Sentia a presença
de Ramana em minha consciência interior. Ela se confundia com a
presença de Gangaji. Eu não via qualquer diferença. Era imensa, es­
pantosa, intocável com palavras. Eu não conseguia capturá-la. Não
havia rastros nem imagens. Nenhuma mente. Nebulosa, não-locali­
zável, indefinível, são as únicas palavras que surgem, mas nenhuma
delas chega perto.
Em um momento a presença parecia masculina, depois era fe­
minina. Algumas vezes parecia que era todo o universo. Às vezes era

52

ROMANCE DA ALMA

o próprio Shiva*. Reconheci a presença de Shiva porque fizera um


jejum especial dedicado a ele, na Índia, alguns anos antes, e durante
o jejum fora abençoada com uma visão dele. Algo nisto que eu es­
tava vivenciando agora me lembrava daquela assombrosa presença
que associara a Shiva.
Estava maravilhada. Quem era essa mestra?

De manhã bem cedo, voltei ao meu quarto para tomar um ba­


nho. Quando terminei, minha colega de quarto já tinha ido tomar
café. Sentei-me sozinha no tapete que usava para meditação e ioga,
sem meditar, sem fazer ioga, apenas sentada, olhando para as mon­
tanhas pela janela, explodindo de gratidão e amor por esta mestra
que havia tocado minha alma tão profundamente, sem deixar rastro
ou pegada. Quando tentava me lembrar qual era a aparência de
Gangaji, não conseguia evocar qualquer imagem!
Mais tarde, esperei no salão do satsang pela chegada de Gangaji.
Quando ela entrou, meu coração deu pulos, de amor e também de
surpresa. “Meu Deus, é uma mulher!”, algo ecoou dentro de mim.
A noite toda ela estivera comigo internamente. A unidade de sua
consciência tinha preenchido minha caminhada nas montanhas no
dia anterior. Porém, aquela presença que eu estava vivenciando em
um nível interno era tão imensa, tão intensa, e geralmente de apa­
rência masculina, que alguma coisa em mim não conseguia acredi­
tar que tudo aquilo pudesse estar contido ou ser explicado por esta
esguia e bela forma de mulher.
Percebia que estava vivendo em mais de uma dimensão ao mes­
mo tempo. O que parecia estar acontecendo (esta situação de todos

53

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

nós estarmos em um retiro nas montanhas) era uma ilusão, e o que


estava realmente acontecendo ocorria em um nível mais profundo
da Realidade, desconhecido dos sentidos. Estava vendo Gangaji em
formas tão vastas e sutis, tão celestiais e divinas, que até meus senti-
dos não acreditaram quando ela apareceu na minha frente, na forma
de um ser humano feminino, com cabelos louros e aquele leve e
encantador sotaque sulista.
No satsang daquela manhã, alguém perguntou sobre um gran­
de medo que estava tendo em relação à entrega. Gangaji respondeu:

É muito bom que este medo seja exposto. Você pensa


que é o medo da aniquilação; você pensa que é o medo do
sofrimento, da danação. Este é o medo da liberdade.

O homem ponderou: “Eu diria que é o medo da aniquilação.”

Sim, porque, em sua mente, você tem uma idéia do


que significa aniquilação, você tem um conceito de ani­
quilação. E este, então, é acompanhado de um conceito
de liberdade. Porque estes são pólos opostos na mente, não
são?
Mas estou lhe dizendo: sente-se em satsang e este medo
profundo, talvez desconhecido antes, aparecerá. Este é o
medo da liberdade, o divino medo da liberdade. Deixe-o
morder você!

O homem disse: “É isso que estou pedindo, simplesmente para


ser visto e ouvido.”

54
ROMANCE DA ALMA

Deixe-o vir. Isto que você descreve é o ato de ver este


grande medo quando ele aparece. Isto é tremendo. Não se
trata apenas de sentir-se melhor um dia, ou ter um bom
dia. Isto é muito mais profundo do que querer corrigir al-
gum aspecto físico, mental, emocional ou circunstancial.
Isto vem da raiz do Ser.

Eu me identifiquei muito com esta pergunta. Parecia que ele


estava falando do mesmo medo sobre o qual eu tinha falado com
Gangaji no dia anterior. Mas ela estava lidando com ele de uma
maneira diferente.

Você conhece aqueles lindos tankas tibetanos, que mos­


tram todos os aspectos do Ser? Tem um que eu gosto mui­
to, e que se chama “Mahakala”. Você conhece Mahakala?
Com um colar de crânios, feroz e obscura, a grande Kali*
vem para absorvê-lo. Boa parte do tempo é usada evocan­
do Mahakala, a Grande Mãe, a Mãe aterrorizante, a
Mãe destruidora.
Que bom que Mahakala bateu à sua porta. Sim! Seria
absurdo abrir a porta displicentemente. [risos]

Eu conhecia esta porta tão bem. Ela não é nada fortuita! É a por­
ta que eu temi a minha vida inteira. Aos oito anos, tivera uma expe­
riência que, agora compreendo, me atirara de volta para o meu ver­
dadeiro Ser. Acontecera a partir de uma pequena meditação que eu
tinha inventado. Eu me sentava em meu quarto e olhava fixamente
para duas maçanetas pretas, que se destacavam contra um fundo

55

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

branco, e elas começavam a pulsar. Então, de repente, a consciência


dava um salto e eu via a “realidade” do meu Ser, reconhecendo: “Ah,
sim. Isso é quem eu sou. Isso sou eu. Eu estou aqui, agora.” E o
mundo se dissolvia e, por alguns momentos, parecia um sonho.
Mas, por volta dos meus dez anos, esta experiência de meditação
tinha produzido a consciência de uma “imensidão” que começa­
ra a me amedrontar. Imaginava que ela ia me matar, me engolir.
Comecei a ficar acordada à noite o quanto pudesse, com medo de
dormir, com medo de que um imenso e informe “nada” viria me
devorar. Então me retraí e parei de praticar a meditação.
O mesmo medo veio à tona novamente aos vinte e dois anos,
quando comecei conscientemente minha busca espiritual, e aprendi
uma técnica de meditação profunda, que reintroduziu esta imensi­
dão em minha consciência. Aqui também, eu recuava toda vez que
a experiência aparecia com demasiada intensidade.
Agora, a pergunta daquele homem me lembrara disso e pensei
na minha pergunta a Gangaji no dia anterior. “Como você se livra
do medo de ser devorado e de ser visto?” Parece que ela tinha res­
pondido à parte sobre “ser visto”, me fazendo ir até à frente, me
vendo, e então me ajudando a ver a beleza nos rostos de todas as
pessoas. Agora eu me perguntava sobre a outra parte da pergunta, a
parte sobre ser devorado. Será que ela tinha esquecido?
Às vezes parecia que ela era a devoradora. Isto ainda me aterrori­
zava, em um nível quase inconsciente. Não me surpreendeu que ela
apreciasse a terrível imagem de Kali. De fato, havia alguma coisa nela
que evocava esta imagem: a Mãe implacável, devoradora, inexoravel­
mente comprometida com a Verdade, com a exposição da mentira.

56

ROMANCE DA ALMA

O homem que, no dia anterior, tinha contado o sonho sobre o


tigre, e me instigara a fazer uma pergunta, agora estava erguendo a
mão novamente.
“Tenho um relato bem curto”, ele disse. “Ontem à tarde, tirei
uma soneca e o sonho do tigre foi retomado. Você é uma mulher
muito poderosa. Você provocou este sonho.”
Gangaji encolheu os ombros, brincalhona:

Tenho bons contatos.

Todo o salão explodiu em gargalhadas. Quando elas silenciaram,


o homem continuou: “De qualquer modo, eu apenas sorri para o
tigre e dei o bote. Foi uma refeição deliciosa!”

Sim, é uma refeição deliciosa. Isso mesmo! Bom, bom.


Deixe-se ser comido e você percebe que está comendo. Ex­
celente.

No sonho, o homem havia se identificado com o tigre e devorara


a si mesmo. Percebi que isso ainda me amedrontava; não conseguia
me entregar tanto assim. Pensei em perguntar a Gangaji novamente
sobre o meu medo de ser devorada, mas pareceu inapropriado e
desrespeitoso fazer a mesma pergunta duas vezes.
As visões continuaram o dia inteiro e pela noite adentro. Já ti-
vera visões antes, mas elas ocorriam com intervalos de anos. Nunca
tantas visões tinham vindo ao mesmo tempo, em um período tão
curto. Novamente, revelou-se que minha vida estava destinada a
servir a esta Verdade, que Ramana tinha me chamado para isso e
57

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

que minha vida seria muito próxima à de Gangaji.


Minha mente tentou inventar todo tipo de quadros e cenários
fabulosos sobre como tudo isto aconteceria. Então, tentou duvidar
da própria verdade do que fora revelado. “Isto é a sua imaginação,
isto não pode ser real; como pode, tonta como você é, imaginar uma
vida perto dela?” Mais uma vez, estava presa entre pares de opostos,
arrogância e ausência de valor: os dois lados da mesma moeda.
Esse tempo todo, meu amor por Gangaji continuava aumentan­
do descontroladamente. Inicialmente, sua intensidade e força me
alarmaram. Não era igual a nenhum amor que já tivesse sentido.
Era uma explosão no fundo da minha alma, que tinha um efeito
profundo em todos os níveis do meu ser (emocional, físico, mental
e para além deles). Nunca tinha me apaixonado assim, nem por
meu marido, nem por nenhum namorado ou mestre. Este amor
aniquilava qualquer idéia de amor que já tivera. Mesmo assim, de
alguma maneira, eu reconhecia este amor. Tinha ansiado por ele,
tinha composto canções para ele e, de uma maneira estranha, tinha
esperado por ele, permanecendo, ao longo de toda a minha vida,
fria em relação a todos os tipos de amor oferecidos pelo mundo, de
uma maneira nada natural.
Outra coisa que percebi durante este tempo foi uma voz dentro
de minha cabeça. Durante boa parte da minha vida, tivera uma
voz interior de sabedoria que me guiava, que eu chamava de “meu
ser superior”. Este ser tinha me dito o seu nome: “Gayatri”. Mas
Gayatri geralmente era uma voz muito fraca, que eu podia ouvir
quando quisesse e ignorar quando fosse conveniente. Agora, esta
voz interior tornara-se bastante alta, autoritária, era impossível ig­

58

ROMANCE DA ALMA

norá-la; misteriosamente, ela tinha desenvolvido um leve sotaque


sulista! De fato, parecia que Gayatri tinha se fundido com Gangaji.
Então, lembrei-me que uma parte da prece ao universo que tinha
feito pouco antes de conhecer Gangaji era para que esta voz interior,
Gayatri, se tornasse mais clara em sua orientação. Até pedira para
ela se manifestar fisicamente diante de mim, para que pudesse vê-la
e falar com ela. Agora estava me ocorrendo que isto era exatamente
o que tinha acontecido, mas de uma maneira totalmente diferente
do que eu havia imaginado.

Gangaji começou o satsang da tarde lendo duas “cartas de amor”


que tinha recebido. Uma delas era assim:

Amada, Bem-Amada, a mais Amada, muitíssimo Amada,

O Rio flui impetuoso, mas ainda assim se mantém em silên­


cio em sua essência. Ele explode, em perpétuo aprofundamento,
no oceano sem fundo, no oceano da paz. Ele se expande inter­
minavelmente, tornando-se Nada, tornando-se Tudo. Como é
irônico este paradoxo chamado Realidade! Como é primoroso!
O que parece perda é a porta de abertura para receber Tudo. O
que é Tudo é Nada. Aceitação, permissão e não-resistência con­
duzem à liberdade, ao eterno reconhecimento do Ser. A mente
deve ficar quieta, pois ela jamais poderia inventar ou entender
este mistério incognoscível. O mais doce néctar escoa da flor
da quietude e da entrega. Este Ser prostra-se diante da Verdade
inimaginável.*

Meu coração ficou comovido e admirado com esta bela expres­


são de Verdade e Amor. Eu tinha me mantido em silêncio sobre o

59

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

amor que estava me envolvendo cada vez mais profundamente, e


sobre as visões. O amor me fazia sentir tímida e ainda eu não confiava
o bastante nas visões para expressá-las abertamente. Mas esta carta ti­
nha expressado tudo isso por mim. Eu estava profundamente grata.

Novamente, naquela noite, não tive sono e o salão do satsang


virou o meu santuário noturno. A presença de Gangaji estava comi­
go, orientando a minha experiência interior, da maneira mais sutil
e profunda. Meu corpo ainda estava queimando com um fogo que
se intensificava cada vez mais. Comecei a suspeitar que era este fogo
que me impedia de dormir. Mas o que era? De onde vinha? Por que
estava acontecendo?
Ao amanhecer, senti um impulso poderoso para dizer alguma
coisa, qualquer coisa, para esta mestra dos meus sonhos. Antes de ir
ao satsang naquela manhã, sentei à mesa em meu quarto, olhando
para as montanhas cobertas de neve, e escrevi uma carta que, pelo
que consigo me lembrar, dizia mais ou menos isso:

4 de maio de 1995
Querida Gangaji:

Conheço-a há uma semana, e parece que são muitas vidas.


Gostaria de contar-lhe a minha história. Não se preocupe, ela é
curta. Segui o caminho da meditação e ioga durante 26 anos. E
não sou livre. Não culpo este caminho, pois ele me trouxe até
à porta de Brahma* muitas vezes. Mas não pude atravessar a
porta, de tanto medo que tinha da aniquilação.
Durante algum tempo, pensei que podia ganhar a ilumi­
nação sem atravessar esta porta. E minha mente é muito inte­
ligente para racionalizar e justificar porque eu não deveria, ou
60
ROMANCE DA ALMA

não preciso atravessá-la.


Recentemente, rezei por um mestre que pudesse me condu­
zir através desta porta. Semana passada, uma amiga me levou
ao satsang em Boulder. Quando a ouvi falar, tudo ficou quieto.
Suas palavras foram como um refrescante bálsamo de verdade
e um fogo devastador. Instantaneamente, eu a amei e morri de
medo de você, pois em seus olhos, vi a grande devoradora.
Inicialmente, não tinha certeza se podia ousar ter esperança
de que minha prece tivesse sido atendida tão rápida e perfeita­
mente (eu pedira, especificamente, um mestre ocidental).
Embora houvesse uma longa lista de espera para este retiro,
de algum modo, fui admitida. Passei, no início, por períodos
de muito medo e dúvida, mas espero que muito disso já tenha
ficado para trás.
Ao ver a maneira como me fez ver a mim mesma, o modo
como faz todo mundo olhar para si mesmo, percebi que você é
a mestra das minhas preces, aquela que poderia me conduzir a
encarar a grande devoradora sem medo.
Sinto uma tremenda gratidão por esta graça que finalmente
me trouxe até seus pés, e estou realmente cansada de ser uma
buscadora.

Com gratidão,
Amber Terrell

Entrei no salão do satsang mais cedo que o habitual, para poder


colocar minha carta no sofá de Gangaji, sem ter de fazer isso na fren­
te de todo o grupo. Quando subi para enfiar minha carta debaixo
da pilha que já tinha se acumulado, um homem que estava sentado
bem em frente ao sofá levantou-se e me ofereceu o seu lugar.
Eu recusei. Queria me sentar mais perto naquele dia, mas ainda
não estava pronta para chegar tão perto. Embora estivesse cons­
61

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

ciente de que estava perdendo uma oportunidade, não tinha como


aproveitá-la naquele momento. Um dos subprodutos deste intenso
amor que sentia por Gangaji era que ele fazia toda a dolorosa timi­
dez da minha infância sair rastejando do seu esconderijo. Pensava
que tinha superado tudo aquilo ao “crescer”. Mas percebia agora
que não tinha me livrado dela. Simplesmente, tinha aprendido
a evitar situações que provocassem o surgimento da timidez. Nas
garras deste intenso amor, todas as minhas estratégias de evitação
estavam sendo expostas, todos os meus disfarces estavam sendo ar­
rancados de mim. Era uma espécie de nudez, nada confortável para
esta pessoa tão hábil em se esconder.
Peguei um lugar no chão, mais ou menos na sexta fila. Era o
mais próximo que podia suportar. Quando o satsang começou, per­
cebi que estava esperando, desesperadamente, que houvesse muitas
perguntas, o que não deixaria Gangaji ler sua “correspondência”,
pois começava a me sentir cada vez mais tímida por causa da car­
ta. Pedira para ela ser minha mestra. Será que isso era apropriado?
Ouvira-a dizer que não era uma mestra, e que não possuía qualquer
ensinamento. Talvez ficasse ofendida com a carta. E se ela lesse a
minha carta e a rasgasse? Já a tinha visto fazer isso com duas outras
cartas. Pensamentos como estes me deixaram ansiosa durante todo
o satsang.
Miraculosamente, houve um monte de perguntas e a pilha de
cartas não chegou a ser lida. Fiquei agradecida.
Naquele dia, depois do almoço, fui até uma mesa no refeitó­
rio, na qual se podia escrever bilhetes para a equipe organizadora.
Minha intenção era perguntar a alguém sobre a minha estranha

62

ROMANCE DA ALMA

falta de sono, porque já tinha passado quatro noites sem dormir.


Estava espantada de ainda conseguir andar.
A lista no quadro de avisos indicava que “Maitri” era a pessoa
que recebia perguntas desta natureza. Sabia quem ela era, porque
ela tinha se apresentado no início do retiro, e fizera anúncios várias
vezes antes dos satsangs. Gostava muito dela. Ela era radiante e na­
tural, sempre dando um jeito de fazer seus anúncios ou outras coisas
de uma maneira graciosa e amorosa, que não perturbava o silêncio.
Sobre a mesa, descobri que todo o papel para os bilhetes tinha
sido usado. Olhei em torno no refeitório. Estava quase vazio. A hora
do almoço já tinha acabado e a maioria das pessoas tinha ido em-
bora; exceto Maitri, que estava almoçando mais tarde e tendo uma
espécie de reunião com um homem, que depois descobri ser seu
marido. Hesitei em interrompê-la e quebrar o silêncio, mas queria
realmente perguntar-lhe sobre o problema do sono. Ele estava co­
meçando a me preocupar.
Toquei o ombro dela. Ela se virou e sorriu para mim.
Sussurrei: “Não há mais papel para bilhetes e preciso muito per­
guntar uma coisa a você.”
Ela pensou um minuto, então pegou um guardanapo branco.
“Tome, escreva aqui.”
Então escrevi no guardanapo algo assim:

Cara Maitri,
Nunca estive em um destes retiros antes. Conheço Gangaji
há apenas alguns dias. Não consigo dormir há quatro noites, e
estou ficando preocupada. Alguma sugestão?

Amber Terrell, quarto nº __


63
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Coloquei o guardanapo-bilhete na caixa de Maitri, na mesa da


equipe, então saí para mais uma caminhada. Era incomum para
mim andar tanto assim. Geralmente não gostava muito de cami­
nhar. Preferia cavalgar e deixar minha égua caminhar por mim. Meu
corpo não era algo em que prestasse muita atenção. Mas sentia um
“apelo” definitivo para caminhar, talvez originado em minha nova
voz interior. De qualquer maneira, rendi-me a ela, sentindo que
o ar frio poderia ser bom para a queimação que estava sentindo e,
quem sabe, a caminhada poderia me cansar e isto me tornaria mais
propensa a dormir à noite.
Novamente, quando comecei a caminhar, senti o mesmo abraço
amoroso em torno de mim, e uma felicidade profunda. Tanto a
felicidade quanto o amor, eu agora reconhecia, possuíam uma qua­
lidade que, definitivamente, tinha o sabor da presença de Gangaji.
Minha colega de quarto também estava saindo para uma cami­
nhada, portanto andamos juntas pela estrada, passando pelos chalés
onde muitos dos participantes do retiro estavam hospedados. Ela
apontou para um deles. “O chalé de Gangaji”, sussurrou. Quando
olhei para o chalé, vi Gangaji sentada em uma cadeira no terraço,
lendo, com os pés apoiados na grade. Novamente, senti a estranha
dicotomia da vasta presença interior que estava vivenciando, em
contraste com o que os sentidos percebiam: esta pessoa muito nor­
mal, natural, relaxando descontraída em seu terraço. Sacudi minha
cabeça, como para me desembaraçar de algo irreal. Isto não fazia
qualquer sentido para a minha mente.
Imaginava se ela teria lido a minha carta. Quando pensava nisto,
a dolorosa timidez tomava conta de mim novamente. Tinha colo­

64

ROMANCE DA ALMA

cado meu coração e minha alma naquela carta, tinha-os deitado aos
pés dela. De repente, senti-me como uma criança pequena, desajei­
tada, insegura e mortalmente vulnerável. Pensei: “Talvez não deves­
se ter escrito aquela carta; talvez tenha sido estúpido pedir-lhe para
ser minha mestra daquele jeito, e contar-lhe sobre minhas preces
secretas.”
Voltando para o meu quarto naquela tarde, sentei para meditar
antes do jantar. Conforme a consciência se aprofundou e a respi­
ração tornou-se mais suave, senti a bem-aventurança do samadhi*
começando a aparecer. Conforme o meu hábito, percebi que estava
tentando “alcançá-lo”. Eu o desejava. Queria conservá-lo de algum
modo, pois sabia como podia ser fugaz. Sempre fora fugaz.
Então ouvi a voz de Gangaji, como um nítido sino na minha
cabeça. Não tente alcançá-lo. Deixe ele tomar conta de você.
Nunca tinha pensado nisso. Deixar ELE tomar conta de MIM.
Alguma coisa pareceu se abrir no meu cérebro e tornei-me cons­
ciente de um repentino relaxamento e uma profunda entrega. E,
para meu espanto, a bem-aventurança tomou conta de mim. Assim
mesmo. Senti-me tão estúpida; todos aqueles anos tentando “alcan­
çar” a bem-aventurança. Agora, de repente ficava claro que, com
este impulso para alcançá-la, eu a estava repelindo.
Um intenso tremor de energia de kundalini* na coluna me ti­
rou daquele estado profundo. Como sempre, minha consciência foi
atraída para aquela forte sensação. Eu tivera estas sensações durante
muitos anos. Elas sempre atraíam a minha atenção, e me afastavam
da consciência, trazendo-me de volta ao corpo. Sempre tivera a im­
pressão de que primeiro tinha que lidar com a sensação, para poder

65

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

voltar às profundezas do silêncio.


Novamente, ouvi a voz de Gangaji: O corpo não tem nada a ver
com quem você é. Você não precisa prestar atenção nele. Ele cuida de si
mesmo.
Estas palavras me pareceram verdadeiras. Sabia que isto era cor­
reto. Então, tornei-me consciente de que tinha me apegado às sen­
sações porque elas eram interessantes, fascinantes de certo modo, e
também porque eu usava estas sensações de kundalini* para con­
firmar o meu progresso espiritual. “Devo estar evoluindo, porque
tenho estas sensações”, pensava.
Agora eu estava escutando Gangaji e esquecendo as sensações.
Naquele momento, desliguei-me do corpo e percebi, mais uma vez,
que um profundo estado de consciência se revelava. E as sensações
cuidavam de si mesmas. Durante quantos anos tinha desperdiçado
minhas meditações prestando demasiada atenção nelas!
Gangaji tinha alcançado as profundezas da minha meditação e
corrigido dois erros persistentes em minha prática. A gratidão e o
amor por esta inegável, onipresente mestra de minhas preces cresce­
ram ainda mais em meu coração.
Naquela tarde, enquanto esperava sentada pelo satsang, alguém
deu um leve tapinha em meu ombro. Abri meus olhos, e a pessoa
apontou para Maitri, que estava de pé junto à porta, acenando para
eu me aproximar. Levantei-me e segui-a até o saguão.
Sozinha no saguão, Maitri perguntou: “Você é a Amber?”
Respondi que sim com a cabeça.
“Gangaji recebeu o seu bilhete sobre o sono,” ela disse calmamente.
Isto me perturbou por um momento, pois não esperava que o

66

ROMANCE DA ALMA

bilhete chegasse a Gangaji. Eu o tinha rabiscado em um guardanapo!


“Vou lhe contar o que Gangaji disse sobre o sono em um minu­
to,” disse Maitri, “mas primeiro quero lhe dizer outra coisa.”
Eu estava me sentindo muito excitada e ligada, pela falta de sono
e também por estar comendo pouco. Não tinha mencionado a co­
mida em meu bilhete. Ainda não chegara a um ponto que me pre­
ocupasse; tinha jejuado o bastante em minha vida para saber que o
corpo não precisa de toda a comida que a maioria das pessoas supõe.
Maitri deve ter percebido a minha hiperexcitação, porque afa­
gou meu braço suavemente, para me acalmar, enquanto falava:
“Quando entrei no quarto de Gangaji esta tarde, para entregar-lhe
o seu bilhete sobre o sono, ela olhou para mim e perguntou: ‘Quem
é Amber?’ Eu disse: ‘Trouxe um bilhete de Amber para você.’ Então
contei a ela que era você que tinha sentado no sofá naquele dia.”
Por um momento, perguntei-me como Maitri sabia o meu nome.
Este era um retiro de silêncio. Eu não tinha falado nem me apresen­
tado a ninguém, exceto à pessoa que fizera a minha inscrição. Então
me lembrei do guardanapo-bilhete. Porque não havia mais papel
para bilhetes naquela manhã, Maitri tinha sido capaz de ligar o meu
rosto à nota nada convencional assinada por “Amber”. Tomei cons­
ciência de uma sutil orquestração de eventos que era maior do que
qualquer habilidade humana de compreender e controlar. Ela tinha
a mesma assinatura misteriosa que a sutil orquestração de eventos
que me fizera ser aceita neste retiro, embora fosse o número 102 na
lista de espera.
Maitri continuou: “Gangaji estava com a sua carta diante dela,
na mesa. Várias vezes, enquanto conversávamos, comentou sobre

67

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

como ela era linda, e como estava contente por você tê-la escrito.”
Um alívio indescritível me inundou. Gangaji tinha gostado da
carta! Achei que isso significava que ela me aceitava como aluna. E
isso confirmou outra coisa que eu sentira duas horas antes, e que
fora tão incomum, tão monumental, que não ousara interpretar
nem pensar sobre ela.
Pouco antes do jantar, estava fazendo algumas posturas de ioga
no chão do quarto. De repente, senti uma intensa onda de amor
vindo de Gangaji, ou pode ter sido por ela, ou ambos; era difícil
perceber a diferença. Então senti toda a minha alma entrar no que
eu só posso descrever como “entrega”. Minha vida estava aos pés
dela. Assim mesmo, sem tomar uma decisão sobre isto nem mesmo
saber que isto tinha acontecido. “Meu Deus!” lembro que pensei,
“Ela é o meu guru!” Senti uma conexão muito profunda com ela,
uma conexão como jamais sentira com outro ser humano. Eu sabia
o que era isto, porque o mestre indiano que seguira durante muitos
anos tinha falado algumas vezes de sua relação com seu mestre. Não
existe outra relação na terra que se compare a esta em intensidade,
intimidade, profundidade, implacabilidade e amor. Sempre que ele
falava sobre este relacionamento, eu ansiava por ele mais do que
qualquer outra coisa na terra, mas sabia que isto de que falava não
era exatamente o que eu vivia com ele. Agora eu reconhecia que
tudo sobre o que ele falara era exatamente o que eu estava vivendo
com Gangaji e, mais ainda, de que não dava para falar. O espantoso
é que esta entrega tinha me tomado completamente de surpresa.
Eu não tinha decidido me entregar, nem decidido que ela era o
meu guru. Tinha simplesmente acontecido. Em um piscar de olhos.

68

ROMANCE DA ALMA

Como um ladrão no meio da noite.


Por um instante, lembrei-me de meu mestre anterior, com certa
nostalgia. Imediatamente, ouvi a voz de Gangaji: Ninguém está mais
feliz do que ele com esta união. E, instantaneamente, percebi: sim, é
claro. Ninguém poderia apreciar mais profundamente a preciosida­
de e o caráter auspicioso desta divina parceria, do que alguém cuja
vida também fora abençoada por uma tal aliança.
“Em relação ao sono, Gangaji pediu-me para lhe dizer que está
‘acordada com você à noite’”disse Maitri.
Meu coração explodiu ainda mais com esta confirmação, que
destruiu toda a dúvida. A presença e a voz dela, que eu sentia e
ouvia com tanta força a noite toda, o tempo todo, na verdade, não
eram apenas imaginação minha.
Maitri continuou: “Ela também disse para você não ficar preo­
cupada com a falta de sono. Isso é um trabalho que precisa ser feito. Ele
precisa continuar por algum tempo, mas não vai durar para sempre.”
Achei isso sinistro. Perguntei-me o que significava exatamente
“não vai durar para sempre”. Mais alguns dias? Uma semana? Um
ano? Senti, intuitivamente, com um tremor de pavor, que poderia
ser mais longo do que curto. Por um momento, fiquei pensando se
o meu corpo sobreviveria. Já não estava conseguindo manter minha
mão firme diante de mim.
Maitri acrescentou: “Gangaji também pediu para lhe dizer que se o
corpo precisar de sono, ele vai dormir. Portanto, simplesmente relaxe.”
Eu estava ali, de pé, em uma espécie de atordoamento e espanto.
“Eu já estive com mestres iluminados, mas isso nunca aconteceu
comigo antes.”

69
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Ela sorriu. “Talvez esta seja a conexão profunda” ela disse, jun­
tando as palmas das mãos para simbolizar “conexão”. E me contou
que, nos primeiros tempos com Gangaji, ela não conseguia dormir
sempre que Gangaji estava para vir à cidade. Então sugeriu que eu
bebesse um chá de ervas antes de ir para a cama. E perguntou se eu
estava bebendo café ou algo assim.
Eu disse: “Não. Cafeína e eu não nos misturamos.”
Ela riu: “É, você não parece ser o tipo cafeína.”
Agradeci e voltei para o salão do satsang. Naquela tarde, não ía­
mos ter satsang. Um filme documentário sobre Gangaji fora concluído
recentemente e assistiríamos a uma prévia, em vez do satsang habitual.
Enquanto estava sentada, esperando que Gangaji chegasse, con­
templando a importância do que estava acontecendo, percebi que
estava aliviada por não haver satsang formal naquela tarde. Não sa­
bia se poderia agüentar a intensidade do satsang naquele momento.
Estava tremendo por dentro; um estremecimento extático, que me
lembrava dos poemas de Rumi ou de São João da Cruz, sobre o
intimidante poder do Amor Divino que a alma vivencia quando é
reunida a seu Bem-Amado; poemas sobre o Ser como a noiva espi­
ritual na noite de núpcias.
Como poderia ter imaginado uma mestra tão perfeita? Alguém
que fica “acordada comigo à noite”. Alguém que tão amorosamente
vigia as minhas meditações, corrigindo quaisquer erros, orientando­
me a todo momento. De alguma maneira misteriosa, Gangaji tinha
me encontrado, a partir da prece que eu lançara ao universo. Ela era
a pessoa que eu tinha pedido, por quem ansiara, por quem espera­
ra, durante séculos. Eu estava aterrorizada, derrubada, paralisada, e

70

ROMANCE DA ALMA

desesperadamente apaixonada.
Quando Gangaji entrou no salão, meu coração deu pulos. Ela esta­
va radiante, linda, gigantesca. Era como se as visões sutis e a experiência
que tinha dela através dos sentidos estivessem finalmente se fundindo.
Fechamos os olhos durante vinte minutos de silêncio. Era um
puro êxtase divino apenas sentar com ela em silêncio daquela ma­
neira. Depois do silêncio, Gangaji apresentou Harp, o homem que
tinha produzido o filme que iríamos ver. Harp contou algumas his­
tórias sobre a viagem com Gangaji pela Índia, onde a maior parte
das seqüências foram filmadas, e sobre como ele tinha tido dúvidas
durante a produção sobre se poderia mesmo realizar o filme, se era
mesmo a pessoa certa para produzi-lo. Ele tinha enviado um fax
para Gangaji em um dado momento, dizendo-lhe tudo isso, e ela
mandara um fax de volta: “Ora, talvez você não seja a pessoa certa.”
Ele admitiu que esta não era exatamente a resposta que esperava ou
desejava, e contou como ela o tinha sacudido de sua dúvida para
que pudesse completar o filme.
Surpreendentemente, senti uma ponta de ciúmes porque ele es­
tava sentado no sofá, perto de Gangaji, e parte do tempo ela mante­
ve seu braço em torno dele. Imediatamente, senti-me estúpida por
sentir uma emoção tão infantil. Mesmo assim, a emoção estava ali,
aparecendo em mim.

71

Cortesia de Shivaya Ma Ruane

72
Gangaji
ROMANCE DA ALMA

As luzes diminuíram e assistimos a River of Freedom (Rio de


Liberdade). O filme fora lindamente realizado, e a música se fundia
perfeitamente com as primorosas paisagens. Havia alguns trechos
dos primeiros encontros de Gangaji com Papaji, e imagens dos pri­
meiros satsangs que ela dera na Índia, em muitos lugares sagrados.
Papaji pedira-lhe para dar satsang em Bodhgaya, onde Buda sen­
tara-se sob a árvore da sabedoria*, e em outros lugares sagrados às
margens do rio Ganga*. Os primeiros satsangs nos Estados Unidos
também eram mostrados, assim como fotos de Gangaji quando
criança e adolescente, e como a jovem mãe de uma menina de seis
anos. E descobri que ela tinha recebido o nome “Gangaji” de seu
mestre, com a instrução: “É tempo do Ganga fluir no Ocidente.”
Logo depois do filme, Gangaji deixou o salão. Enquanto a ob­
servava saindo pela porta lateral, uma profunda onda de amor en­
cheu meu coração, com um anseio por estar perto dela para sempre.
Ela era tudo que eu sempre amara, que sempre tinha esperado amar,
e sempre temera amar. Ela era o próprio Amor.

Voltei para o meu quarto e vesti roupas mais confortáveis. Eu


não ia tentar dormir naquela noite, nem ia me deitar. Sabia que se-
ria impossível, pois o fogo dentro de mim era devastador. Mas não
sentia mais qualquer resistência a ele, não tinha mais medo de estar
doente. Acolhi-o como o Amor de minha mestra.
Retornei o salão do satsang logo que ficou vazio, sentei-me no
chão diante de Ramana, e deixei a quietude fazer seu trabalho.

73

NUA, EXPOSTA E DISPOSTA A MORRER

Na manhã seguinte, sentei-me em silêncio no salão do satsang


durante mais de duas horas, esperando a chegada de Gangaji. O
amor em meu coração aumentara em uma proporção insuportável,
de tal modo que estava preocupada que ele pudesse realmente ex­
plodir quando ela entrasse no salão.
Sentada de olhos fechados, ouvi a porta do salão se abrindo, os
pés descalços de Gangaji pisando com firmeza no carpete, indo em
direção ao sofá. Inacreditavelmente, estes passos silenciosos reverbe­
raram em minha alma como as pegadas da morte!
Meu coração começou a bater forte, mas não de amor. De medo.
Havia uma sensação aterrorizante de que algo estava “atrás de mim”,
de que alguma coisa ia me “pegar”. O que havia de errado comigo?
O que era este terror? Não tinha como controlá-lo.
Gangaji sentou-se no sofá e fechou os olhos, como sempre.
Fechei meus olhos também, mas não consegui ficar quieta. Todo
o meu corpo, todo o meu ser, pulsavam com o terror mais intenso
que já tinha sentido. Não havia dúvida em minha mente: esta mestra
vai me matar!
Quando Gangaji abriu os olhos, pegou uma carta para ler. Um
tremor de medo extremo me atravessou, podia ser a minha carta.
Meu Deus! Não agüentaria isso, além de todo aquele medo. Mas
não era a minha carta. Era de alguém sentado bem atrás de mim,
o que acabou sendo tão desastroso quanto. Quando os olhos de
74

NUA, EXPOSTA E DISPOSTA A MORRER

Gangaji pousaram sobre a pessoa atrás de mim, e seu olhar deslizou


sobre o topo da minha cabeça, fechei meus olhos em pânico. Senti-
me totalmente nua, exposta até o miolo, absolutamente vulnerável.
E sabia que ela estava vendo isto. Portanto, além do medo, também
surgiu um embaraço agonizante.
Fiquei de olhos fechados, com a testa encostada nos joelhos, en­
quanto ela falava com a garota atrás de mim. Por que tinha de ser
uma carta de alguém sentado bem atrás de mim? Sentia-me estúpida,
patética, mas não conseguia bloquear estes sentimentos. Minha mente e
minhas emoções estavam completamente fora do meu controle.
Logo me dei conta de que Gangaji tinha parado de falar com
a garota, e agora estava em silêncio. Meus olhos ainda estavam fe­
chados, mas podia sentir sua atenção em mim. Ela queimava como
mil sóis; como se toda a queimação que tinha sentido tivesse sido
aumentada um milhão de vezes. A transpiração começou a molhar
minha testa e minha blusa. Será que ela não podia virar os olhos
para outro lugar? Será que não podia responder a outra pergunta?
Ela não fez nada disso. Não se moveu nem falou, durante o
que pareceram séculos. Por trás de meus olhos fechados, ela apare­
cia como a devoradora Kali, com os crânios e tudo mais, o sangue
escorrendo da boca, cobras serpenteando em seus cabelos. Era ab­
solutamente aterrorizante. Tudo aquilo que identificava como sen­
do “eu mesma” sentiu-se mortalmente ameaçado por ela. Senti-me
estraçalhada, dilacerada, cortada em pedaços. Durante este tempo,
a exposição e o medo tornaram-se tão intensos que quase perdi a
consciência. Na verdade, cheguei muito perto de desmaiar bem no
meio do satsang. Estava aterrorizada.

75
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Finalmente, Gangaji disse:

É assim mesmo. Isso derruba você, você volta, verifica


novamente; ainda aqui. Ainda aqui.
Você fecha os olhos e verifica. Abre os olhos e verifica.

Nem cogitei se estava dizendo aquilo para mim ou para a garota


atrás de mim. Sabia que tinha de abrir meus olhos. Sabia que tinha
de olhar em seus olhos naquele momento. Esta foi a coisa mais di­
fícil que já fiz. Praticamente tive de forçar meus olhos a se abrirem.
Mas a ordem para fazer isto vinha de um nível profundo e miste­
rioso de minha alma. Finalmente, consegui abrir os olhos um pou­
quinho e olhar para Gangaji. Ela estava sentada ali, absolutamente
imóvel, com os olhos meio fechados e uma expressão severa. Ainda
assim, através de tudo aquilo, senti o seu amor. Não um amor su­
ave, sentimental, maternal. Um amor imenso, intenso, implacável,
como nenhum amor que já tivesse sentido. Um amor que podia
engolir todo o universo conhecido.
Finalmente, misericordiosamente, ela olhou em outra direção e
pegou outra carta, perguntando onde estava o autor. Ainda bem que
esta pessoa estava sentada do outro lado do salão. Gradualmente,
minha ansiedade relaxou um pouco, mas ainda me sentia confusa
e abalada pelo que tinha acabado de vivenciar. De onde viera todo
aquele medo? O que acontecera com o amor e a entrega que tinham
me dominado no dia anterior?
Uma jovem chamada Tanya levantou a mão, e disse a Gangaji
que queria casar-se com a verdade, sem qualquer possibilidade de
divórcio; queria dedicar sua vida à entrega, prostrar-se aos pés de
76

NUA, EXPOSTA E DISPOSTA A MORRER

Gangaji. Fiquei com inveja. Como ansiava poder dizer-lhe algo as­
sim naquele momento. Mas não conseguia.

Gangaji respondeu:

Isso de que você está falando é, na verdade, aceitação.


A Verdade ofereceu-se a você em casamento, e você está
dizendo: “Eu aceito. Deixo o mundo conhecido para trás.
Deixo o pai que conhecia para trás, a mãe que conhecia
para trás, a vida que conhecia para trás.” Isto é um casa­
mento. “Eu me entrego ao casamento com a Verdade.”
Então a morte não pode separá-la dela. A doença não
pode separá-la dela. A saúde não pode separá-la dela.
A glória não pode separá-la dela. A desgraça não pode
separá-la da Verdade.

Havia um sentimento de afundamento em meu coração, de que


falhara em aceitar o casamento e desapontara Gangaji, porque es­
tava me fechando, recuando de medo, em vez de me abrir para este
presente que me fora oferecido.

Sabe, quando você aceita um casamento como este,


pode contar que todos os seus velhos amantes vão sair ras­
tejando do seu esconderijo... [risadas] Com grandes pro­
messas, eles vão dançar ao seu redor. Amantes demoníacos
e amantes divinos.
Quando você disser: “Estou casada com o nada, que
não é coisa nenhuma”, todas as “coisas” entram em pâni­

77
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

co e vêm reclamá-la como sua propriedade. Mas, se você


estiver verdadeiramente casada com este nada, você é este
nada. E as coisas não conseguirão encontrá-la.

Parecia que meus velhos amantes, (o medo, a resistência, man­


ter-me escondida, proteger-me da exposição e da vulnerabilidade),
tinham me encontrado. Não me ocorreu, a não ser muito mais tar­
de, que não era “eu” que estava entrando em pânico, mas as “coisas”,
os velhos amantes, a personalidade com quem havia me identifica­
do durante tanto tempo. Em Gangaji, eles tinham reconhecido sua
assassina. E estavam aterrorizadas. Naquele ponto, entretanto, ain­
da pensava que era aquela personalidade, aquela mente e, portanto,
não conseguia ver isto claramente.
Fiz um esforço consciente para relaxar, enquanto Gangaji falava
sobre o esforço espiritual.

Sabe, as pessoas adoram dar grandes créditos ao seu


esforço. E isso está bem. “Foi o meu esforço que me trouxe
até aqui.” “Foi pelo meu esforço, trabalhando em mim
mesma, que pude ouvir você.” Mas, melhor do que isto,
dê o crédito a todos aqueles que vieram antes de você. Dê
o crédito a eles. Dê o crédito a Cristo, a Buda, a Ramana,
a todos os santos conhecidos e desconhecidos. Dê o crédito
ao esforço deles. Eles fizeram isto por você. Este é o grande
privilégio destes tempos. Muitas pessoas já passaram antes
de você, para que você possa simplesmente ser carregado
pelo que é revelado.

78
NUA, EXPOSTA E DISPOSTA A MORRER

Suas palavras eram lindas, radiantes com a sabedoria mais vital.


Não a sabedoria morta, intelectual, nascida da interpretação de an­
tigas escrituras ou sutras, mas a sabedoria fresca, imediata e viva,
de seu próprio despertar. Tive a sensação de “ser carregada”, de que
nada disso era por causa de qualquer coisa que tivesse feito. Mesmo
assim, fiquei sentada ali, extremamente desconfortável, desejando
que ela não olhasse em minha direção. Querendo fugir, sair corren­
do, dar o fora. E querendo não querer isso. Desejando que isto não
estivesse acontecendo assim. Desejando ser capaz de dizer, como
Tanya dissera: “Eu me entrego a você com amor.”

Então, com perfeição, Gangaji falou do desconforto, relacionan­


do-o com a ausência de esforço.

Não estou falando de ausência de desconforto. Have­


rá experiências de desconforto. Mas é possível vivenciá-lo
sem esforço. Para negá-lo, para reprimi-lo, é preciso um
certo esforço, com um objetivo na mente: “Eu não devia
me sentir desconfortável. Vou me esforçar para encontrar
conforto novamente.”
Enquanto houver este aparato sensorial, haverá a ex­
periência da polaridade da mente. Ela não é um pro­
blema, enquanto você reconhecer e perceber de onde ela
surge: do Ser, que é permanente, eterno e sem esforço. Da
Vida. Nem pessoal nem impessoal. Tanto pessoal quanto
impessoal.

Não entendi o que ela queria dizer com aquilo: nem pessoal nem

79

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

impessoal. Definitivamente, não estava vivenciando o medo sem


esforço. Eu o odiava, queria que fosse embora. Só quando olho para
trás é que entendo porque era tão terrivelmente doloroso. Ela estava
me dizendo: “O surgimento do medo não é um problema. Ele surge
DENTRO do que você é, ele surge em satsang para ser liberado.”
Mas eu estava lutando com ele. Queria que o amor estivesse pre­
sente, não este medo. Então fiquei sentada ali, “frigindo” na minha
própria resistência àquilo que estava acontecendo, desejando deses­
peradamente que o satsang terminasse.

Está bem, é o bastante para esta manhã.

Nunca a ouvi terminar um satsang daquela maneira, nem an­


tes nem depois. Mas para mim, naquele momento, era exatamente
apropriado. Não teria agüentado mais três minutos. Todo o meu
corpo exalou um grande suspiro de alívio quando Gangaji deixou
o salão.
Voltei rapidamente para o meu quarto, em agonia extrema, e
chorei muito. Tinha-lhe dito que ela era a mestra de minhas preces,
que queria ser sua aluna, que a amava; e então, esta manhã, no sat-
sang, havia recuado com um medo incontrolável. Sentia-me desgra­
çada, confusa, apavorada, e imaginava a raiva dela e seu desagrado
com o meu comportamento.
Após o almoço, sentei no refeitório, encostada na grande lareira
de pedra, bebericando uma xícara de chá, que era o máximo que po­
dia ingerir, enquanto tentava analisar aquele medo. Pensei que, com
certeza, Gangaji devia ter acreditado que a minha carta não era sin-
cera. Mas logo que este pensamento apareceu, imediatamente ouvi
80

NUA, EXPOSTA E DISPOSTA A MORRER


MORRER

a sua voz, tão clara como se ela estivesse sentada ao meu lado: Teria
pensado que você não estava sendo sincera se não tivesse sentido medo.
Isso não fazia qualquer sentido para mim, mentalmente, mas
tinha o tom de verdade que suas palavras sempre evocavam. Tentei
pensar nisto, analisar, mas minha mente não estava muito clara e,
em pouco tempo, desisti.

Naquela tarde, não houve satsang. Os funcionários da Satsang


Foundation & Press iam fazer uma reunião conosco, na qual se
apresentariam e descreveriam como a fundação havia começado,
no porão da casa de Maitri, e conversariam sobre as oportunidades
para voluntários. Durante toda a reunião, fiquei sentada, em estado
de terrível depressão, totalmente desinteressada de tudo que estava
sendo dito.
Após a reunião, fui para o quarto e preparei-me para dormir.
Sabia que não poderia me sentar no salão do satsang naquela noi­
te. Sentia-me perturbada, vulnerável demais, nua, louca demais.
Precisava ficar sozinha no quarto. Por sorte, minha colega ficou fora
até tarde e demorou para voltar. Quando me preparava para subir
para minha cama, atrás da foto de Papaji, ouvi a voz de Gangaji:
Você precisa estar nua, exposta e disposta a morrer.
Nua. Exposta. Estas palavras me fizeram estremecer. De repente,
percebi as incontáveis máscaras que construíra para mim mesma,
atrás das quais tinha me habituado a me esconder. Máscaras que
até pareciam esforço espiritual e sinceridade mas que, na realida­
de, eram apenas maneiras engenhosas de me ocultar. Era terrivel­
mente doloroso vê-las arrancadas de mim desta maneira. Diante de

81

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Gangaji, naquela manhã, todas elas tinham sido expostas. Sim, eu


fora totalmente desnudada. E entrara em pânico.
Ao escrever-lhe aquela carta de entrega, havia declarado (a ela,
ao universo, ao meu Ser) que estava pronta para morrer para todas
estas máscaras, para tudo que era falso. E a declaração estava sendo
testada. Todos os antigos amantes, o medo, a resistência e a oculta­
ção, estavam surgindo para defender seu território ameaçado. Podia
senti-los, quase tangíveis, dentro do quarto.
Enquanto estava de pé, diante da escadinha do beliche, uma bre­
ve luta se desenrolou entre esta entrega que me chamava e as “coi­
sas” que estavam batalhando por sua existência. Finalmente, foi este
intenso amor por Gangaji, por esta Verdade que me estava sendo
revelada, que venceu. Senti que preferiria morrer a perder Gangaji
como mestra. Havia um sentimento de desesperança naquele mo­
mento, como se já tivesse falhado em um primeiro e importante
teste. Novamente sua voz veio até mim: nua, exposta e disposta a
morrer.
Ainda de pé, diante da escada, dei um profundo e trêmulo sus­
piro. “Está bem”, sussurrei, “então é a morte.”
Naquela noite, subi até a minha cama desejando morrer, que­
rendo deixar cair todas as máscaras, e abrir mão de todas as estraté­
gias. Fiquei deitada no escuro por algum tempo, ardendo no fogo
mais quente até então, consciente de uma disposição para desistir
de tudo, mas ainda sem saber como abrir mão de todos os meus
hábitos de proteção.
Então, o que só posso descrever como um milagre, a Graça mais
inimaginável, ocorreu. Vi a forma física de Gangaji pairando sobre
mim. Antes que tivesse tempo para ficar surpresa ou ter medo, ela

82

NUA, EXPOSTA E DISPOSTA A MORRER

estendeu a mão e raspou meu corpo, como se fosse um ancinho.


Enquanto fazia isso, sua mão foi ficando maior, quase como a gar­
ra de um urso, cavando profundamente em minha alma, como se
estivesse retirando algo com uma concha. Era terrivelmente do­
loroso, mas não fisicamente. Era semelhante à dor de arrancar
um curativo que ficou colado tempo demais, muito depois do
ferimento ter cicatrizado.
Depois, senti-me estranhamente aliviada, mais leve, mais à von­
tade, como se um enorme depósito de resistência tivesse sido re­
movido com aquela raspagem. Ela apareceu assim várias vezes na­
quela noite. Cada vez, mais resistência era raspada de mim. Sentia
de modo tangível a raspagem, a escavação; às vezes, era como se
estivesse dilacerando a minha carne. Mas a dor era sentida como se
estivesse à distância.
A presença e a forma de Gangaji ficaram por perto a noite toda.
No satsang da manhã, sentia-me mais calma. O medo diminuíra.
Ainda não conseguia olhar nos olhos dela, e sentei-me no fundo da
sala. Mas o medo insano dela tinha desaparecido.
A primeira pessoa que falou, disse: “Estou sendo dilacerada e
quero ser livre.”

Gangaji disse:

O que está sendo dilacerado?

Através das lágrimas, a pessoa respondeu: “Pensamentos...”

Descubra o que está sendo dilacerado.

83
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

“Sei que são pensamentos.”

Ah, bom! Então estas são lágrimas de alegria.

“Sim.”

Descubra o que pode ser dilacerado. Descubra tudo


que pode ser dilacerado, e deixe que seja dilacerado. Deixe
tudo isto ser dilacerado. Até a experiência de “este corpo
está sendo dilacerado.” Sim, deixe-o relaxar, solte-se. Esta
sensação de estar segurando o corpo, segurando os pensa­
mentos, mantendo o “Eu” imaginário inteiro; deixe-o ser
dilacerado.*

Estas palavras pareciam dirigidas a mim e atingiram o meu


desconforto profundamente. Esta era a luta, o desconforto: tentar
manter a ilusão desta “pessoa”. Abra mão disso.
Era estranho como cada pergunta parecia ser minha, cada res­
posta parecia ser para mim. De novo, estava sutilmente consciente
de uma imensa presença orquestrando tudo, para seu próprio des­
pertar para Si mesma.
Anunciaram que, naquela tarde, o satsang seria musical. Gangaji
estaria presente, mas não falaria. Seria o último satsang do retiro,
pois não haveria encontro na manhã seguinte, apenas o café da ma­
nhã, antes de irmos para casa. Fiquei desapontada com este aviso,
embora geralmente adorasse música. Nestas últimas e preciosas ho­
ras do retiro, era Gangaji que eu queria ouvir, não outras pessoas
cantando suas músicas. Portanto, aquela possibilidade era comple­
84

NUA, EXPOSTA E DISPOSTA A MORRER

tamente desinteressante.
Naquela tarde, enquanto escutava os músicos oferecendo suas
lindas canções e cânticos, senti um efeito reconfortante em meu
corpo, mente e emoções sitiados. A música sempre tivera este má­
gico efeito transformador sobre mim. Tinha sido uma compositora
amadora desde os dez anos, quando começara a pegar os hinos da
igreja e reescrevê-los com outras palavras, mais significativas para
mim. Naquela tarde, entretanto, embora estivesse consciente de seu
efeito reconfortante, fiquei sentada sentindo-me estranhamente en­
torpecida diante daquelas lindas melodias. Não estava pronta para
o fim do retiro. Eu não tinha terminado. Ainda estava me esqui­
vando dos olhos de Gangaji quando ela olhava em minha direção.
Ainda estava vacilando em relação a se todas as coisas maravilhosas
e terríveis que vivenciara no retiro eram reais ou imaginárias; estava
questionando o que tudo aquilo significaria em minha vida.
Perto do fim do satsang, um grupo, incluindo Gangaji, cantou
Amazing Grace (Graça Extraordinária). Esta é uma das minhas mú­
sicas favoritas. Quando comecei a cantar, e me abrir para a beleza
desta canção, percebi como a Graça inundara a minha vida, surpre­
endente e poderosamente, neste encontro com Gangaji. Percebi,
enquanto cantava, que tudo que acontecera durante o retiro, por
mais terrivelmente doloroso que tivesse sido, por mais inacreditável,
era apenas isso: Graça.

Na manhã seguinte, acordei com o sol penetrando pela minha


janela e senti alívio, porque finalmente tinha conseguido dormir
algumas horas. Mas, logo depois que acordei, uma onda de depres­

85

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

são e medo tomou conta de mim. O retiro terminara. Estava sendo


atirada de volta à minha vida, um completo desastre físico e emo­
cional. Como Gangaji podia fazer isto comigo? Como podia me
deixar assim? Não poderia encarar meu marido, meus amigos e meu
trabalho neste estado deplorável.
Deitada na cama, sem querer saudar a manhã, sem me animar
a fazer a mala e ir para casa, um medo insidioso tomou conta da
minha mente. Medo de que nunca voltaria ao “normal”, de que
todas as lindas experiências e visões que tivera eram ilusões, de que
estava perdendo o senso da realidade. Era como se todos os medos
que já tivera alimentado em minha vida de repente estivessem me
caçando, todos ao mesmo tempo.
Em meio a tudo aquilo, enquanto me sentia sugada cada vez mais
fundo em um vórtice de medo incontrolável, pensei: “A insanidade
deve ser assim.” Então ouvi a voz de Gangaji, forte e clara, com uma
autoridade que não podia ser ignorada: Você é livre. Você é Luz. Este
medo não tem nada a ver com você. Ele é apenas pensamento.
Sentei-me na cama. Instantaneamente, minha mente clareou.
Senti-me banhada mais uma vez no amor e na paz que passara a as­
sociar à presença de Gangaji. Estava surpreendida e espantada mais
uma vez. Para onde tinha ido todo o medo? Agora parecia não ser
nada. Um fantasma. Senti a presença de Gangaji tangivelmente pró­
xima. Não era como se sua presença tivesse afastado os pensamentos
loucos. Agora eu via que os pensamentos não eram nada, que nunca
tinham sido nada.
Ocorreu-me que talvez Gangaji não estivesse me deixando.
Talvez ela estivesse bem aqui. Talvez o retiro não fosse terminar.

86

NUA, EXPOSTA E DISPOSTA A MORRER

Fui tomar café sentindo-me muito estranha. Meu corpo ain­


da estava ardendo, tremendo, eletrizado. Os pensamentos loucos,
o medo e a depressão continuavam aparecendo e desaparecendo;
parecia que estavam lutando com aquela presença amorosa que aca­
bara de me salvar da insanidade.
Não tinha comido direito durante muitos dias e agora, final­
mente, senti fome. Mas, quando me sentei à mesa e tentei levar uma
colher de mingau de aveia à boca, minha mão tremia tanto que mal
pude fazê-lo sem que o mingau caísse da colher. Algumas pessoas
sentadas do outro lado da mesa ficaram me olhando, observando
meus inúteis esforços para comer. Sentindo-me embaraçada e auto­
consciente, e acabei desistindo do mingau. Fui até o bufê, peguei
uma maçã na cesta de frutas, e sentei-me em outro lugar, sozinha,
para descobrir um jeito de comer sem parecer estúpida.
Uma jovem veio até mim, e me disse que gostara muito de mi­
nha presença no retiro, que tinha adorado quando sentei no sofá; o
que, agora, parecia ter acontecido há muito tempo. Já que o silêncio
não era mais obrigatório, conversamos e nos apresentamos. Caroline
era da Suíça, e estava com Gangaji há mais de um ano, depois de
conhecê-la na Índia, e tê-la seguido pelo mundo (da Índia ao Novo
México, da Califórnia ao Havaí e, agora, no Colorado). Ela me con­
tou algumas de suas experiências com Gangaji, o intenso amor que
sentia, e como tinha a sensação de que Gangaji estava dentro dela,
falando com ela internamente, o tempo todo.
Fiquei aliviada, muito mais do que posso descrever. Mais alguém
estava passando por isso. “Quer dizer que não estou louca?” perguntei.
“Ah, sim, somos todos loucos”, ela riu, com espontaneidade.

87
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Comecei a descascar minha maçã, enquanto Caroline falava.


“Às vezes, Gangaji me ignora”, ela disse, “mas isso é bom, sabe,
porque tenho um ego do qual não consigo me livrar, e ela está tra­
balhando nisto.”
Perguntei a Caroline como era ficar longe de Gangaji e disse-lhe
que estava apavorada por causa do fim do retiro.
Ela disse: “Às vezes é bom ficar longe dela, porque então você vê
que ela está sempre aqui.” Ela colocou a mão sobre seu coração. “O
mestre está dentro de você. Gangaji é seu próprio Ser.”
Enquanto conversávamos, senti-me cada vez mais à vontade.
Até o tremor tinha diminuído. Conversamos durante algum tem­
po, e Caroline me contou mais algumas de suas experiências com
Gangaji. Eu estava bebendo tudo aquilo. Era um néctar curativo
para a minha alma. Quanto mais ela falava, mais o amor assumia a
dianteira em minha consciência, e mais o medo desaparecia.
Perguntei a Caroline quantos anos tinha. “Vinte e seis”, ela res­
pondeu. Eu repliquei: “Que lindo, uma pessoa tão jovem ter encon­
trado uma mestra como Gangaji, aos vinte e seis anos!” Disse-lhe
que este era o mesmo tempo em que estivera buscando.
Caroline me deu um satsang muito importante naquela manhã.
E tive novamente a sensação de que meu encontro com ela havia sido
“arranjado” de forma misteriosa, por esta incrível Presença que esti­
vera orquestrando tudo desde aquele primeiro satsang em Boulder,
há menos de duas semanas. Comecei a ver também que satsang não
era apenas o satsang “formal”, com a presença física de Gangaji, mas
podia acontecer em qualquer lugar, a qualquer momento. Pois, na­
quela manhã, senti nitidamente, para além de qualquer dúvida, que

88

NUA, EXPOSTA E DISPOSTA A MORRER

Gangaji estava falando comigo, como o Ser, através de Caroline.


Conseguira uma carona de volta a Boulder com uma mulher
chamada Kara, portanto liguei para meu marido e disse-lhe que
não precisaria subir a montanha só para me pegar. Ele parecia a mil
quilômetros de distância. Falar com ele não parecia uma coisa real;
era como se estivéssemos em uma peça, desempenhando os papéis
de marido e mulher. Não conseguia imaginar como seria voltar para
Boulder. Senti como se tivesse estado em outro planeta, e que pelo
menos um ano tinha se passado desde que saíra de casa.
Enquanto era conduzida montanha abaixo por Kara, conver­
samos sobre o retiro, sobre Gangaji, sobre a verdade. Falei quase
o tempo todo, enquanto Kara ria. Finalmente, perguntei-lhe por
que estava rindo tanto, de tudo que eu dizia. Rindo mais ainda, ela
replicou: “Porque tudo que você está dizendo é tão bonito. O que
você está dizendo é satsang.”

89

AFOGANDO-ME NO RIO GANGA

Meu marido recebeu-me calorosamente à porta de casa.


Ainda me sentia um pouco estranha. O contato com ele e o fato
de estar em nossa casa novamente, tudo parecia um sonho; como
se nunca tivesse visto nada daquilo. Ainda estava passando por es­
tados de humor alternados, de um intenso amor por Gangaji a uma
profunda depressão, temendo jamais voltar ao normal, achando que
nunca deveria ter ido ao retiro. Isso não fazia absolutamente senti-
do. E o fato de não fazer sentido alertou-me para a possibilidade das
flutuações não serem reais. Porém, elas estavam sendo vividamente
vivenciadas.
Não queria que Toby suspeitasse o que, às vezes, eu suspeita­
va: que eu não estava equilibrada, mental ou emocionalmente.
Portanto, enquanto passava por uma das alternâncias nas quais era
invadida pelo amor e pela gratidão, rapidamente mandei-o sentar
no sofá e contei-lhe o máximo que pude sobre o que acontecera em
Estes Park.
Ele ficou surpreso, espantado e feliz por mim. Uma parte dele
conhecia o significado profundo do que acontecera, pois nós dois
estávamos no caminho espiritual há muito tempo, e tínhamos ser­
vido ao mesmo mestre indiano durante muitos anos. Mas outra
parte dele ainda não havia captado a profundidade e a extensão das
mudanças que eu estava vivendo.
Depois de terminar minha história, Toby começou a me contar
sobre seus planos para o verão. Queria reservar passagens de avião
90

AFOGANDO-ME NO RIO GANGA

para Cape Cod, em meados de junho, para irmos visitar sua família.
Fiquei olhando para ele com uma expressão de surpresa. Cape Cod e
a viagem que ele propunha pareciam ainda mais irreais do que tudo
mais. Não tinha qualquer desejo de ir. Não conseguia me imaginar
tendo que me relacionar com a família dele na minha condição atu­
al. Além disso, acabara de conhecer a mestra de minhas preces. Ela
iria a Santa Fé dentro de alguns dias, e depois voltaria a Boulder em
meados de junho, para oferecer satsangs públicos quatro vezes por
semana, durante quase todo o verão. Eu não tinha qualquer inten­
ção de estar em outro lugar, a não ser a seus pés.
Toby ficou chocado, desapontado e zangado. Sempre fora com
ele nestas visitas de verão à sua família, e eles estariam me esperan­
do. Mas sabia, dentro do meu coração, que nada poderia me arras-
tar para longe de Boulder naquele verão. Esperara por esta mestra
durante um tempo incontável e não perderia esta oportunidade.
Embora sentisse seu desapontamento e tristeza, não havia nada que
pudesse fazer. Eu não poderia ir.
Esta recusa em viajar com ele para Cape Cod foi o começo de
um teste para nosso relacionamento, o qual se intensificou durante
o verão. Ele via que eu tinha “desaparecido”, que não estava dispo­
nível para ele. Algumas vezes dizia: “Quero minha mulher de vol­
ta.” Mas eu não podia trazê-la de volta. Nem mesmo me lembrava
como ela era! Havia tantos cataclismos ocorrrendo dentro de mim
que, durante algum tempo, não podia lidar com as expectativas e
necessidades de mais ninguém.
Naquela noite, subi para meu quarto, acima da sala de estar, e
deitei no futon. Uma foto de Ramana Maharshi aos dezesseis ou de­

91

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

zessete anos de idade estava em minha mesinha de cabeceira. Achala


me dera a foto pouco antes do retiro. Quando olhei nos olhos da­
quele jovem iluminado, um intenso medo de ser devorada surgiu
novamente. De repente, tudo que a vida daquele rapaz representava
era aterrorizante: Advaita Vedanta, não-dualismo inqualificado, a
absorção de tudo que é conhecido no desconhecido. O que eu esta­
va fazendo, retornando a essa coisa indiana?
Fiquei deitada, sentindo a queimação dentro de mim, como
um vulcão. Então, meia hora depois, senti um intenso amor por
Gangaji e gratidão pela tremenda Graça que havia inundado a mi­
nha vida. Em minha mesinha de cabeceira havia também uma foto
de Gangaji, que comprara durante o retiro. Quando olhei em seus
olhos, o amor explodiu em meu coração. Era tão intenso que me
alarmou. Senti mesmo como se meu coração estivesse explodindo
fisicamente, vazando de meu peito. Agora percebo que provavel­
mente era o coração espiritual, mas as sensações eram tão tangíveis,
tão concretas, que pareciam muito físicas. O amor era de uma tal
magnitude, como o que sentiria ao reconhecer um amante antigo
e profundamente adorado, que voltasse finalmente para me bus-
car, após muitos séculos de separação. Devo admitir que esta mente
muito direta e conservadora não tinha como se relacionar com esta
experiência de uma maneira lógica e confortável. Mas não havia
nada que pudesse fazer em relação a isto. Estava simplesmente acon­
tecendo, tudo por conta própria, fora do meu controle.
Quando desviava os olhos das fotografias de Ramana e Gangaji,
o medo surgia novamente. E depois o amor. Para frente e para trás.
Não conseguia impedir as flutuações. Fiquei deitada a noite toda,

92

AFOGANDO-ME NO RIO GANGA

queimando, sentindo medo, sentindo amor. Era exaustivo e confuso.


Isto prosseguiu por mais dois dias. Sem dormir, sem comer.
Medo, amor, terror, depressão; meu marido sentindo-se cada vez
mais alienado. Olhando para aquela época, acredito que o maior
medo era de que eu nunca mais poderia recuperar a profunda eu­
foria que sentira no retiro, na primeira explosão de Auto-reconhe­
cimento e, especialmente, a alegria extática e o amor que sentira
quando a entrega acontecera pela primeira vez.
Finalmente, desesperada, liguei para a Satsang Foundation &
Press e pedi para falar com Maitri. Essa foi a única coisa em que
pensei. Ela não estava disponível e a secretária eletrônica atendeu.
Deixei um recado choroso, dizendo que ainda não estava conse­
guindo dormir nem comer, e que não sabia quanto tempo mais
conseguiria viver assim.
Depois que desliguei, meus olhos pousaram, misteriosa e mira­
culosamente, em algumas palavras de Gangaji. Um jornal publicado
pela Fundação, chamado “Satsang com Gangaji”, estava aberto no
chão do meu quarto. Fazia parte do material impresso que Achala
me dera, na noite daquele primeiro satsang em Boulder. O texto era
uma entrevista com Gangaji.
O entrevistador perguntava: “Você não sente medo de ter per-
dido seu Ser quando a bem-aventurança se dissipa durante algum
tempo, e você entra em um espaço mais comum?”
Sim, pensei. Era isto. O medo de voltar ao “comum”, depois do
lugar sagrado do retiro, após as revelações de bem-aventurança que
tinham ocorrido.
Gangaji respondeu:

93
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Não. Quando conheci Papaji e deixei-o pela primeira


vez, este medo definitivamente apareceu. “Ah, não! Per­
di tudo!” Mas a grande beleza deste ensinamento, desta
auto-investigação, é perguntar: “Quem perdeu?” Assim, a
mente é atirada imediatamente de volta à sua fonte; não
existe ninguém que possa ter ganho ou perdido qualquer
coisa. Existe somente a consciência presente.

Ao ler estas palavras, uma coisa deu um clique e minha consci­


ência sofreu uma virada profunda. Senti a presença de Gangaji em
meu quarto. Continuei lendo.

A sensação de que “Eu perdi” então serve de veículo


para a revelação de que você não pode perder quem você
é. Você pode perder estados que aparecem, pode perder
formas e idéias que aparecem; e tudo isto será perdido.
Eu lhe digo para perder tudo isto agora, e ver o que não
pode ser perdido! *

A simples leitura destas palavras atirou minha consciência de


volta para o Auto-reconhecimento, de maneira profunda. De re­
pente, senti outra vez a paz, a clareza e a vastidão que sentira, senta­
da ao lado de Gangaji no sofá. Então o telefone tocou. Era Achala.
Perguntou como me sentia e eu disse a verdade: maravilhosa e hor­
rível. Conversamos durante algum tempo, e ela me contou sobre
quando esteve com Papaji e o profundo despertar que tinha vivido
lá; falou sobre como esta presença é seu próprio Ser e não uma outra
pessoa. Depois que desligamos, senti-me muito melhor.

94
AFOGANDO-ME NO RIO GANGA

Lembrando-me da mensagem que deixara na secretária eletrôni­


ca de Maitri, senti-me embaraçada por tê-la incomodado com meus
problemas, e decidi ligar novamente, dizendo: “Estou bem, descul­
pe por tê-la incomodado. Por favor, desconsidere minha mensagem
anterior. Estou bem.”

Naquela tarde, deitei no futon e tentei cochilar. O sono não


veio mas, finalmente, minha consciência acomodou-se em um es­
tado profundo, meio acordado, meio dormindo. Então uma visão
revelou-se. Gangaji apareceu, pairando sobre mim novamente, em
uma forma visível e tangível, muito mais real do que daquela vez no
retiro. Sua forma chegou mais perto de mim, como se fosse se fun­
dir comigo. Recuei, sacudi-me, tentando afastar a visão, e sentei-me
rapidamente: “O que foi isso,” pensei, “o que está acontecendo?”
Meu coração estava disparado.
Decidi que devia ter sido um sonho e deitei-me novamente.
Pouco depois, novamente deslizei para um estado de semivigília.
Gangaji apareceu novamente. Desta vez, antes que soubesse o que
estava acontecendo, sua forma e presença fundiram-se dentro de
mim! Não há como descrever isto com palavras adequadas. Senti
seu amor, sua consciência, sua quietude como sendo o mesmo que
eu. Estava consciente de alguma coisa indescritivelmente imensa
querendo me engolir. Mas não havia medo. Todo o medo havia de­
saparecido. Sutilmente, ouvia Gangaji pedindo-me para me deixar
penetrar por essa imensidão. E, em um instante da mais inimaginá­
vel confiança e Graça, eu me entreguei. Abri mão de “mim”.
Uma imensa expansão do que só posso descrever como o univer­

95

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

so inteiro, o que os Vedas descrevem como Brahma, abriu-se den­


tro de mim, ao redor de mim, abarcando tudo, engolindo todas as
coisas. Seguiu-se uma explosão extática de consciência. Nesta fusão
com a sua consciência, via claramente que esta vastidão infinita que
eu temera, em cuja soleira hesitara durante tanto tempo, e que ima­
ginara poder me aniquilar, era o meu próprio Ser, era o Ser dela, sem
diferença: todo amor, todo abraço, todo beleza. O ser de Gangaji e
o meu haviam-se tornado um. Eu me afogara no Rio Ganga.
Ao ver isso, na verdade lembro-me que me senti um pouco ridí­
cula. Como podia ter tido tanto medo disto que, na realidade, era
meu próprio Ser? Ouvi a resposta, claramente, em sua voz: Falsa
identificação com a mente como quem se é. E, então, soube que era o
meu próprio Ser Infinito que estava vendo em Gangaji, meu próprio
Ser que estava amando. Era por isto que ela tão misteriosamente me
lembrara de mim mesma naquele primeiro satsang.
Ela não esquecera a outra parte da minha pergunta: “Como você
se livra do medo de ser devorada?” Mas não me respondera com
palavras. Ela havia me mostrado, ao me permitir afogar-me nela; ao
me permitir fundir-me com sua própria consciência tempo bastante
para eu ver que aquilo que temera ser capaz de me devorar era, e é
minha verdadeira essência.
Eu estava fascinada pela poesia e a admirável metáfora do que
ocorrera: ela é o Rio, o sagrado Rio Ganga, e eu me afogara nela.
Sentei-me na beira da cama, peguei meu violão e esta música fluiu
sem qualquer esforço.

Há um Rio Sagrado no coração da Índia


Os sábios dizem que suas águas
Apagam o fogo do samsara
E dizem que ele flui com Graça
96
AFOGANDO-ME NO RIO GANGA

Em um fluxo interminável

E dizem que aqueles que nele se banham

Despertam de um sonho

Ah, Rio Ganga

Fluindo para o mar

Deixe esta alma afogar-se em ti

E ser livre para sempre.

Ah, Rio Ganga

Fluindo para o mar

Deixe esta alma afogar-se em ti

E ser livre para sempre.

Uma vez este Rio Sagrado atravessou o mar

Sabendo que o mundo ocidental

Ansiava por libertar-se

Embora ainda seja misterioso

De que forma isto aconteceu

Eu vi o Ganges fluindo aqui

De um oceano ao outro.

Ah, Rio Ganga

Leve-nos para o mar

Deixe que nos afoguemos em ti

Para sermos sempre livres

Ah, Rio Ganga

Leve-nos para o mar

Deixe que nos afoguemos em ti

Para sermos sempre livres.

Quando Toby voltou para casa naquela noite, tentei contar-lhe


o que havia acontecido. Disse-lhe como ficara apavorada de perder
o que fora descoberto no retiro, e como Gangaji me mostrara que
não há separação, que ela está sempre comigo, e que a realização
97

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

continua se aprofundando. Não sabia se tinha me expressado muito


bem, portanto toquei a música que havia intitulado “Rio Ganga”.
Ele ficou profundamente comovido e disse que era a música mais
bonita que eu já tinha composto.

Naquela noite, fiquei deitada na cama, ainda diluída no Ganga.


Meu corpo estava estranhamente amortecido. Quando tentava mo­
ver um braço ou uma perna, nada acontecia. Levei algum tempo
para perceber o que era aquilo; meu corpo estava adormecido, en­
quanto minha consciência permanecia bem acordada. Era algo que
já tinha sentido algumas vezes em minha vida, mas nunca de ma­
neira tão vívida.
Sentia a presença e o amor de Gangaji intensamente. Em algum
ponto no meio da noite, senti outra presença. Então vi Ramana, de
pé, observando. Ouvi a voz de Gangaji; ela disse para eu me sentar.
Levei algum tempo para fazer meu corpo obedecer a sua ordem.
Finalmente, consegui sentar-me reta e recolhi minhas pernas, na
posição de meio-lótus*.
Parecia que, de alguma maneira, Ramana estava me aprovando.
Então, à minha frente, fiquei consciente de outro homem indiano
que não reconheci. Ele estava fazendo uma espécie de cerimônia,
que parecia uma iniciação. Mais tarde, dei-me conta de que este
homem devia ser Papaji.
Gangaji estava ali comigo, era uma parte de mim, como se es­
tivesse dentro de mim. Havia momentos, durante esta “iniciação”,
em que sentia aparecer o medo, talvez porque tudo parecesse tão
imenso, estranho e do outro mundo. Nestes momentos, chamava

98

AFOGANDO-ME NO RIO GANGA

por Gangaji e ela me assegurava que estava bem ali. Em certo pon­
to, perguntei-lhe se já tinha sido devorada por Brahma. Ela riu.
Devorada? Você está sendo digerida!
Então eu também ri; ri deste humor maravilhoso que estava co­
meçando a reconhecer como seu. Gangaji então falou com Ramana
sobre mim. Disse a ele que podia conectar-se comigo profunda-
mente, por causa de alguma ressonância entre nossas formas. Eu
não conseguia distinguir o que estavam dizendo mas, em determi­
nado ponto, parecia que Ramana estava confirmando que eu fora
aceita. Eu poderia servir a esta linhagem.
Estava impressionada. Mal podia acreditar no que estava aconte­
cendo. Lembro que surgiu o pensamento: “Isto deve ser uma ‘ego­
trip’ gigantesca ou algo assim.”
A voz de Gangaji soou com força: Você consegue achar algum ego
aqui?
Procurei um “ego” e não encontrei. De fato, não conseguia en­
contrar nada do que costumava chamar de “eu”. Tudo estava tão ex­
pandido e imenso, afogado no Rio Ganga. E o Ganga parecia maior
que o universo inteiro; era aquilo em que o universo aparece.
Depois de completada a iniciação, Gangaji disse que começaria a
me treinar. Perguntei: “Quando?” Ela disse: Começaremos amanhã.
Então a visão desapareceu, e permaneci algum tempo em um
silêncio atordoado e agradecido. Finalmente, deitei e dormi longa e
profundamente, pela primeira vez em quase dez dias.

O dia seguinte era 9 de maio. Lembro da data porque acordei


uma pessoa muito diferente naquela manhã. A imensa, bem-aven­

99

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

turada presença que associava a Gangaji era sentida em cada célula


de meu corpo. Minha consciência era interminável, não localizada
apenas em minha forma física. Tudo que fazia parecia estar ocorren­
do em um imenso todo que era eu, que era Gangaji, que era tudo.
E, pela primeira vez em minha vida, senti, para além de qualquer
dúvida: não sou mais uma buscadora.
Mais tarde naquela manhã, fui ao mercado fazer compras para a
casa. Todos os rostos pareciam lindos. Cada ação parecia sem esfor­
ço, plena de bem-aventurança, perfeita.
À tarde, liguei para a Satsang Foundation & Press para pergun­
tar se Gangaji já partira para Santa Fé, e descobri que ela viajaria na
manhã seguinte. Fiquei desapontada, porque queria gravar a música
que escrevera para ela, e dar-lhe a fita antes de sua partida, mas sabia
que não conseguiria gravá-la tão rápido. Não tinha um gravador
adequado e teria que pedir emprestado a alguém. A pessoa com
quem falei na Fundação disse que iria para Santa Fé um dia depois
de Gangaji e, se eu conseguisse arranjar tudo antes disso, ela poderia
entregar-lhe a fita.
Naquela noite, fui à casa de Achala e peguei emprestado o seu
gravador. De manhã, gravei a música para Gangaji e, antes de levá­
la à Fundação, incluí uma breve carta, relatando que o medo tinha
desaparecido e que meu coração estava repleto de amor, especial-
mente por ela. Depois percebi que o modo como escrevera era in­
correto. O amor não tinha preenchido meu coração porque o medo
desaparecera. Na dissolução da separação, o medo cessara de existir
e o Amor, que sempre estivera presente, agora se destacava, natural-
mente.

100
AFOGANDO-ME NO RIO GANGA

Entretanto, este intenso amor ainda causava muita timidez e eu


não sabia como explicar a Gangaji as visões e a fusão. Não sabia se
deveria tentar explicar, nem o que tudo aquilo significava realmen­
te. Portanto, deixei esta parte de lado, e confiei que a música falaria
por mim.

101

QUEM SOU EU?

Logo depois de ter enviado a fita e a carta para Santa Fé, mi­
nha amiga Moksha ligou da Flórida. Ficara sabendo que eu tinha
entrado em contato com a linhagem de Ramana Maharshi e, como
recentemente havia descoberto um vídeo sobre a vida e os ensina­
mentos de Ramana, chamado The Sage of Arunachala (O Sábio de
Arunachala), iria enviá-lo para mim. Pensou que eu gostaria dele,
porque sabia como adoro animais, e Ramana, como São Francisco
de Assis, tinha uma misteriosa relação com eles. Ele até fora capaz
de conduzir sua vaca de estimação a um estado de total liberação
durante os últimos momentos de sua vida. Isto me interessava mui­
tíssimo, porque muitas vezes me questionara sobre a possibilidade
de um animal alcançar a liberação espiritual. Durante toda a minha
vida, tivera relações muito próximas com animais e, algumas vezes,
sentira que os animais estavam muito mais em contato com a pre­
sença universal do que os humanos.
O vídeo chegou em poucos dias e, sem perda de tempo, comecei
a vê-lo. O narrador começava com a história de Ramana quando
ainda menino. Ele não era o melhor dos alunos, pois tinha pouco
interesse por livros e pelo estudo. Adorava nadar no rio, visitar
templos e ler histórias sobre santos. Aos dezesseis anos, ele tomou
consciência de um poderoso medo da morte. Pela descrição dada,
parecia muito com o que eu experimentara aos dez anos: um gigan­
tesco nada, ameaçando me devorar. Mas, ao contrário de mim, que
tinha resistido e tentado evitá-lo, Ramana simplesmente se deitara no
102
Cortesia de Sri Ramanashramam, Tiruvanamalai, Índia

103
Bhagavan Sri Ramana Maharshi
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

chão e conhecera-o, vivenciara-o, mergulhando diretamente nele,


sem pedir ajuda, sem correr para um médico. E, neste encontro di­
reto, descobrira o que não pode ser tocado pela morte; o que não
pode ser devorado, porque é em si mesmo o devorador supremo: a
infinita consciência de cada um.
Instantaneamente, amei este ser e senti que o conhecia, que esta
linhagem era a minha verdadeira família espiritual, o verdadeiro en­
sinamento pelo qual ansiara a vida inteira. Seu ensinamento, se é
que se pode chamá-lo assim, pode ser distilado em uma pergunta:
“Quem sou eu?” Eu me fizera esta pergunta a maior parte da minha
vida, desde que consigo me lembrar. Ela surgiu quando ainda era
criança, e percebera que, perto de pessoas diferentes, eu me sentia
e agia de maneiras diferentes: meus pais, irmãos, amigos, mestres.
Perguntava-me como minha personalidade podia ter todas aquelas
facetas, e sentia que devia haver algo imutável na base de tudo isto,
que constituía o “eu” real. E, então, a pergunta “Quem sou eu?” sur­
gia natural e constantemente. Até escrevera uma musiquinha para
esta pergunta, que era mais ou menos assim:

Quem sou eu

Quando sou realmente eu?

Quem sou eu

Bem dentro de mim?

Quem sou eu

Quando não tento

Absolutamente nada?

O vídeo continuava explicando que esta pergunta conduz a cons­


ciência do buscador de volta para si mesma, revelando o pergunta­
104

QUEM SOU EU?

dor, o buscador, o verdadeiro Ser. Muito depois, escutaria Gangaji


dizer que, embora a pergunta “Quem sou eu?” tenha sido, durante
muito tempo, um axioma filosófico estático dentro do conjunto
da erudição indiana, agora ela tinha sido preenchida, através do
dom da vida de Ramana, por uma poderosa transmissão de Graça e
Silêncio, que permite que o buscador “fique quieto”, de modo a que
a resposta, a Verdade do próprio Ser, possa ser revelada.
Eu vivenciara esta transmissão diretamente. Quando estive na
presença de Gangaji pela primeira vez, naquele satsang em Boulder,
tudo parou na minha mente, no momento em que ela entrou no
salão. Agora está claro para mim que, quando olhei em seus olhos
durante o retiro, a vastidão que vira por trás deles era o meu próprio
e verdadeiro Ser, refletindo-se de volta para mim. É por isso que,
logo em seguida, pude perceber as montanhas como o meu Ser,
assim como as árvores, os animais e todo o universo. Era como se a
pergunta já tivesse sido feita o suficiente, e só esperasse esta trans­
missão de quietude e Graça, para que a resposta fosse revelada.
O vídeo prosseguia, descrevendo a vida de Ramana após o seu
despertar. Ele tinha apenas dezesseis anos, e achava o trabalho esco­
lar ainda mais entediante do que antes, por isso decidiu embarcar
em uma peregrinação secreta até uma montanha sagrada chama­
da Arunachala. Embora isto não fosse mencionado no vídeo, mais
tarde descobri que Ramana nascera com o som “Arunachala” re­
verberando em sua cabeça. Só quando já tinha uns doze anos foi
que Ramana descobriu, através de um parente, que este som era,
na verdade, um lugar aonde se podia ir; que existia uma montanha
sagrada no sul da Índia com aquele nome.

105
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Após roubar algum dinheiro do irmão, para pagar a viagem,


Ramana calmamente abandonou o mundo no qual crescera, dei­
xando um bilhete para sua família, no qual dizia que estava indo
“em busca de seu pai”; que seguia em uma missão nobre e pedia­
lhes que não desperdiçassem tempo e dinheiro procurando por ele.
Arunachala ficava perto de Tiruvannamalai, ao norte da cidade
em que ele morava com o tio. Uma viagem de três dias finalmente
levou o jovem Ramana ao templo na base da montanha sagrada,
que dizem ser a incarnação de Shiva. Estava imaginando se era a
ele que ele se referia como “seu pai”, e lembrei como a presença de
Shiva estava viva nos primeiros dias com Gangaji em Estes Park.
Ramana passou a residir no templo principal em Arunachala,
sentando-se imóvel durante semanas e meses seguidos, absorto na
bem-aventurança da União Divina. Às vezes, as pessoas ofereciam­
lhe comida, mas ele não estava interessado em comer. Mesmo quan­
do alguém colocava comida dentro de sua boca, quando esta pessoa
voltava no dia seguinte, encontrava a comida onde a deixara, pois
não fora mastigada nem engolida, tão absorto no Infinito estava o
jovem sábio.
Estudantes que vinham visitar o templo, ao verem um menino
da sua idade sentado sem se mexer, como um renunciante, muitas
vezes provocavam Ramana atirando pedras ou tentavam perturbá­
lo de outras maneiras. Mas ele permanecia imóvel. Às vezes, inse­
tos picavam suas pernas (as cicatrizes permaneceram por toda a sua
vida), mas mesmo assim ele não se movia.

106

Cortesia de Sri Ramanashramam, Tiruvanamalai, Índia

Ramana, aos dezessete anos.

Notícias sobre o menino-sábio logo atravessaram a Índia, e bus­


cadores da verdade começaram a se reunir em torno dele, para re­
ceber o seu darshan (transmissão através do olhar). Mas durante
muitos anos, ele não pareceu interessado em ter estudantes ou em
ser um mestre. Não se interessava por fenômenos externos de espé­
cie alguma. Raramente falava ou se movia. Mesmo assim, aspirantes
continuavam chegando de longe, até mesmo do ocidente, para sen­
tar em silêncio a seus pés. No vídeo, são contadas muitas histórias
relacionadas a grandes despertares que aconteceram simplesmente
com as pessoas sentando-se diante de Ramana, em silêncio. Seu en­

107

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

sinamento era transmitido de coração para coração, não com pala­


vras, mas em silêncio.
O vídeo teve um efeito poderoso sobre mim. Uma tomada de
Ramana, em especial, me deixou arrepiada de susto, porque nela ele
se parecia muito com o homem que viera até mim em uma visão,
algumas noites antes. Também fiquei muito impressionada com o
fato de que ele não tivera um mestre exterior. Seu guru fora a mon­
tanha Arunachala. Ele a amava. Durante toda a sua vida, percorrera
cada centímetro dela e compusera belos hinos devocionais em sua
homenagem. Mais tarde, soube através de Gangaji que ela pergun­
tara a Papaji uma vez: “O que significa ‘Ramana’?” Papaji responde­
ra: “Ramana é aquilo que reside no coração de todo Ser.”
Depois de assistir ao vídeo duas vezes, subi as escadas para o
meu quarto, e sentei-me durante muitas horas, consciente apenas
do profundo silêncio e da Graça.
Naquela noite, peguei um livrinho que Achala me dera, intitulado
Who Am I? The Teachings of Bhagavan Sri Ramana Maharshi (Quem
sou eu? Os Ensinamentos de Bhagavan Sri Ramana Maharshi). A
introdução afirmava que, apesar de seu tamanho, ele era apreciado
como a mais clara e concisa exposição da essência dos ensinamentos
de Ramana. O livro era escrito na forma de um diálogo, começando
com a pergunta: “Quem sou eu?” Ramana responde:

O corpo bruto, que é composto de cinco humores, não sou


eu; os cinco órgãos sensoriais cognitivos... não sou eu; os cinco
ares vitais... [sopro, etc.] não sou eu; até a mente que pensa,
não sou eu; a necedade [sono profundo] também, que é dotada
apenas das impressões residuais de objetos, e na qual não há
objetos nem funcionamento, não sou eu.
108
QUEM SOU EU?

A pessoa pergunta: “Se eu não sou nada disso, então quem sou
eu?” Ramana responde:

Depois de negar tudo que foi acima mencionado como “isso


não”, “isso não”, aquela Consciência que, só ela, permanece:
aquilo sou Eu.

A pessoa pergunta: “Quando será alcançada a realização do


Ser?” Ramana responde:

Quando o mundo que é o-que-é-visto tiver sido removido,


haverá a realização do Ser, que é aquele que vê.*

Fechei o livro. Minha mente estava cansada e sentia-me inca­


paz de captar qualquer coisa. Enquanto estava deitada, tentando
dormir, Ramana preencheu minha consciência com sua quietude e
imensidão.
Eu só tinha quatro anos de idade quando Ramana deixou o cor­
po, em um país estranho muito distante do meu, após ter vivido
quase toda a sua vida em silêncio. Mesmo assim, sua vida e seu
silêncio estavam aqui, tocando a minha vida tão profunda, tangível
e perfeitamente, através desta mestra inacreditável, que recebeu o
nome do Sagrado Rio Ganga de seu próprio mestre.

109

O QUE VOCÊ QUER REALMENTE?

Até aquele momento, eu não tinha qualquer intenção de via-


jar para Santa Fé. Simplesmente não me ocorrera que esta fosse uma
opção. Nem sabia qual era a distância até lá, já que estava morando
naquela parte do país há apenas nove meses. Além disso, sabia que,
dentro de apenas quatro semanas, Gangaji voltaria a Boulder para
ficar o resto do verão e haveria satsangs públicos quatro vezes por se­
mana, na mesma Igreja Unitária onde a vira pela primeira vez. Mas,
alguns dias depois de enviar a música “River Ganga” para Santa Fé,
e depois de ver o vídeo sobre Ramana, o impulso de ver Gangaji
tornou-se irresistível. Eu tinha que ir. Era como se estivesse sendo
“chamada”.
Inicialmente, Toby recusou-se a considerar a idéia. Ele estava fa­
zendo uma tradução do latim para a sua tese de doutorado, que exi­
gia muita concentração, e uma viagem naquele momento era a úl­
tima coisa que tinha em mente. “Gangaji ficará aqui todo o verão,”
ele disse, “Para que tanta pressa em viajar até Santa Fé agora?”
É, isto não fazia sentido. Mas, desde que conhecera Gangaji,
muitas coisas não faziam sentido. Definitivamente, o impulso de
ir a Santa Fé não vinha de uma mente lógica e prática. Mesmo
assim, tinha uma estranha sensação de urgência em vê-la, como se
só aquele momento importasse. O verão poderia não acontecer. O
mundo poderia acabar na semana seguinte. E se Gangaji mudasse
seus planos e decidisse não voltar a Boulder? Qualquer coisa pode­
ria acontecer. Este chamado não podia esperar. Não podia perder a
110

O QUE VOCÊ QUER REALMENTE?

oportunidade de estar em sua presença.


Miraculosamente, conforme se aproximava o fim de semana,
Toby mudou de idéia. Alguma coisa dentro dele, desconectada de
sua parte racional, também sentiu o impulso de ver Gangaji nova-
mente.
Era uma viagem de sete horas de carro, atravessando o belíssimo
deserto de altitude do sul do Colorado e norte do Novo México.
Toby estudava, enquanto eu dirigia e escutava fitas de satsangs com
Gangaji, algumas delas minhas e outras emprestadas.
Os coordenadores em Santa Fé tinham fornecido nomes de pes­
soas ligadas ao satsang, que ofereciam quartos em suas casas para os
que vinham de fora da cidade. Tínhamos combinado de nos hospe­
dar na casa de uma artista/curadora que morava em uma rua silen­
ciosa, na periferia da cidade.
Os satsangs estavam acontecendo em um pequeno teatro no
campus da Faculdade para Surdos do Novo México. Chegamos no
final da tarde, mais de uma hora antes do início do satsang, pois
nossa anfitriã nos dissera que o espaço enchia rápido nessas reuniões
públicas. Como previsto, uma fila de quinze metros já estava for­
mada diante das portas, que só seriam abertas meia hora antes do
satsang.
Enquanto esperávamos sob o sol forte, Toby começou a ficar
incomodado com o calor e foi procurar uma sombra para poder
estudar. Mas o calor não me perturbou. Havia uma profunda sen­
sação de que ali era exatamente onde eu deveria estar, e nada nas
circunstâncias exteriores tinha importância.
Um homem chamado Govind estava circulando pela multidão,

111

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

com uma lista, perguntando quem gostaria de ver Gangaji em um


pequeno grupo, depois que o satsang grande terminasse. Toby me
encorajou a me inscrever mas, por alguma razão, não consegui. Uma
timidez insana ainda tomava conta de mim.
Finalmente, dentro do teatro, conseguimos nos sentar no meio
do salão, cujo palco estava decorado com um sofá, flores e fotos de
Ramana e Papaji. Aproximadamente quatrocentas pessoas começa­
ram a encher o auditório. Sentamos em silêncio por algum tempo,
esperando. Quando Gangaji entrou, meu coração sentiu uma ex­
citação e uma profunda paz. Ela estava ainda mais radiante e mais
bela do que eu me lembrava. Como alguém podia ser tão lindo?
Embora a tivesse escutado falar sobre isso e tivesse tido a experiên­
cia, continuava esquecendo que o que estava vendo era a beleza da
Realidade Infinita, a beleza do meu próprio Ser, refletida nela.
Após vinte minutos sentada em silêncio, Gangaji abriu os olhos
e, juntando as palmas das mãos, disse:

Bem-vindos ao satsang.

Ela olhou ao redor do salão por um momento, banhando a to-


dos com seu sorriso radiante, e então começou:

Tenho uma pergunta para vocês. É uma pergun­


ta muito importante. Ela pode revelar maturidade ou
imaturidade. Quando a imaturidade é revelada, então a
maturidade é possível.
A pergunta é: O que você quer realmente? O que é que
você quer, finalmente?
112
O QUE VOCÊ QUER REALMENTE?

Se responder: “Bem, quero um bom amante, uma boa


casa, um bom emprego”, isto é um reflexo de imaturida­
de. Porque nisto há uma crença de que um bom amante,
uma boa casa ou um bom emprego lhe darão paz, reali­
zação e felicidade duradoura. É claro que, em tudo isto,
há felicidade e prazer temporários, passageiros.
Se você consegue ver que o que pensava que queria não
lhe deu o que realmente deseja, isto é muito bom. Isto é a
maturidade se revelando.
Não estou falando de maturidade em termos de idade,
educação ou prática espiritual. Estou falando de uma in­
teligência implacável e de dizer a verdade. A verdade de
que, a despeito do quanto você aproveitou e gostou de sua
casa, seu amante ou seu emprego, estas coisas ainda não
lhe deram aquilo que é duradouro e eterno.
Este reconhecimento é uma espécie de rude despertar
chamado desilusão, e ele é muito importante. Até ocorrer
a desilusão, há uma espécie de estado de transe, no qual
você vagueia pela vida (esta vida de agora, sua vida de
adolescente, sua vida de criança, sua vida de pessoa mais
velha, sua próxima vida) e tenta se agarrar às coisas que
quer e rejeita as coisas que não quer, na esperança de
receber aquilo que realmente deseja.
Com esta desilusão, neste rude despertar, neste impla­
cável dizer a verdade, você tem a oportunidade de re­
almente descobrir e declarar dentro de si mesmo o que
realmente quer.

Naquele momento, só conseguia pensar que tudo que desejava

113
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

era ela. Nem sabia o que isso significava. Só sabia que queria o que
via na minha frente, nela, como ela, através dela, vindo dela. A pre­
sença que ela irradiava era o que eu queria, mais do que qualquer
coisa que já tivesse querido.

Se, por acaso, o que você quer realmente é a verdade


eterna, então você tem muita sorte. Então eu lhe digo:
pare de procurar por ela em qualquer lugar. Tenha a co­
ragem de parar de procurar a verdade eterna em qual­
quer “coisa”. Seja ela uma coisa mundana, filosófica ou
espiritual. Simplesmente pare de procurar. Neste instante
de parada, você saberá onde procurar Aquilo.
Leva menos de um instante.

Toby olhou para mim; parecia preocupado. Este era o seu segun­
do satsang e eu queria saber como estava se sentindo. Mas teríamos
que conversar mais tarde. Cada palavra que Gangaji dizia era como
um néctar, como um sutra* perfeito, e eu não queria perder nenhu­
ma delas.

Se você não tiver sorte, e descobrir que o que realmente


quer é segurança, conforto, conhecimento e poder pesso­
al, então continuará sua busca. Continuará a acumular
conhecimento, poder pessoal e uma aparência de segu­
rança.
Isto está bem. O satsang apareceu em sua consciência e,
portanto, pelo menos você ouviu estas palavras. Seja qual
for a profundidade com que você ouve estas palavras, elas

114
O QUE VOCÊ QUER REALMENTE?

foram ouvidas. Elas levam dentro delas aquilo que não


pode ser ouvido, mas pode ser percebido, no instante em
que você pára de procurar a verdade, a felicidade e a
eternidade. Quando você pára de procurar, descobre onde
procurar.
Não estou sugerindo que eu posso lhe dar a verdade, a
eternidade, ou o que quer que você deseje. Estou apenas
confirmando que o que você quer é quem você já é.
Pare todas as suas conceitualizações sobre quem você é.
Pare de procurar ser alguma coisa, e pare de procurar não
ser nada. Neste instante, quem você é se revela, e isto é
o que você vem procurando através dos tempos. Você tem
procurado o seu próprio Ser, e procurou em toda parte,
exceto onde você está!
Não estou lhe pedindo para aceitar isto como verdade.
Estou lhe pedindo para ver por si mesmo; ver a Si mesmo,
para Si mesmo, por Si mesmo, através de Si mesmo.
Eu sou este mesmo Ser. É assim que sei com quem estou
falando.

Houve uma silenciosa ondulação de risadas. Estas palavras ti­


veram um efeito poderoso sobre mim: Eu sou este mesmo Ser. Não
pensei realmente sobre elas; mas elas penetraram muito profunda-
mente.

Estou lhe pedindo, ao meu próprio Ser, que veja por


si mesmo e então se ocupe de espalhar as novas para Si
mesmo em toda parte. Que seja usado pela Verdade de Si
mesmo, espalhando-a para todos os aspectos de Si mesmo,
115
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

para todas as faces de Si mesmo, através de todos os tem­


pos, passado, presente e futuro.
Estas são minhas boas-vindas ao satsang.*

Alguma coisa naquilo me parecia familiar: “Espalhar para todos


os aspectos de si mesmo, através de todos os tempos.” Muitos anos
antes, o mestre indiano, com quem eu estivera durante tanto tem­
po, escrevera em uma carta para mim: “Você levará toda a sabedoria
da vida, para iluminar todas as esquinas do tempo.” Naquela época,
perguntei-me, e ainda me pergunto agora, como é possível levar
a sabedoria ao passado e ao futuro. Parecia uma fantasia de ficção
científica. Novamente, a mente colapsou, resignada. Como tantas
coisas que Gangaji dizia, eu não conseguia decifrar aquilo com a
minha mente.
Depois do satsang, voltamos de carro para a casa onde estávamos
hospedados. Toby estava muito quieto. Ansiosa para ele receber esta
verdade, perguntei o que achara do satsang.
Ele disse: “Estou em choque.”
“Por que? O que aconteceu?”
“Percebi uma coisa”, ele disse.
Eu estava extasiada.
“Não fique excitada”, ele me avisou. “Não é bom. Estive pensan­
do sobre o que ela disse hoje. ‘O que você quer realmente?’ Quando
me faço esta pergunta, a resposta que me vem é ‘respeito’. O que eu
pensei que queria acima de tudo era a iluminação, mas isto e todas
as outras coisas que quis (dinheiro, sucesso, um doutorado) agora
percebo que são apenas maneiras que acho que me darão respeito.
Eu estava emocionada. “É lindo que você tenha percebido isto.”
116
O QUE VOCÊ QUER REALMENTE?

“Mas o que vou fazer agora? A iluminação não é realmente o


meu principal desejo. Eu a quero, é claro, mas, primeiro, preciso de
respeito. Isto é devastador. Isto não é maturidade.”
“Mas é ótimo que isto tenha sido revelado. Gangaji hoje disse
que a imaturidade precisa ser revelada, senão há este transe e você
continua fingindo. Esta é uma oportunidade de maturidade.” Mas
ele ainda não percebeu a beleza daquilo. Encorajei-o a fazer uma
pergunta a Gangaji no satsang do dia seguinte.
No dia seguinte, houve muitas perguntas no satsang e, embora
Toby erguesse a mão duas vezes, não foi chamado. Imaginei que
aquela não devia ser a melhor hora para a pergunta.
Inicialmente, tínhamos planejado voltar para Boulder depois do
satsang de domingo, mas, em vez disso, decidimos ficar mais uma
noite, para podermos ir ao satsang na manhã do dia seguinte. De
manhã, chegamos à faculdade quase duas horas antes do satsang,
que era o suficiente para garantir um lugar próximo ao início da fila.
Eu desejava sentar mais perto naquele dia. Mas, embora estivésse­
mos em quinto lugar na fila, houve uma tal correria quando as por­
tas se abriram, que acabamos nos sentando na quinta ou sexta fila.
Enquanto esperávamos o início do satsang, estava pensando que,
durante todo o fim de semana, Gangaji não parecera reparar em
mim nem me reconhecer, apesar de ter percorrido todo o salão com
os olhos várias vezes. As visões e as profundas experiências que tivera
nas duas últimas semanas haviam me tentado a pensar que eu era
de alguma maneira especial para ela. Ouvia a voz dela em minha ca­
beça, falando comigo o tempo todo. E, na visão dela com Ramana,
ela dissera que começaria a me treinar. Mas, definitivamente, ela
não dava qualquer indicação exterior de que se lembrava de mim.
117

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Comecei a duvidar que as visões fossem verdadeiras, e perguntei­


me se não era tudo imaginação minha, uma grande “ego trip” afinal
de contas; perguntava-me se não seria melhor desistir da memória
daquelas visões como um todo.
Perto do final do satsang, um homem sentado atrás de mim co­
meçou a falar com Gangaji. “Eu só queria exprimir a minha mais
profunda gratidão pela sua presença,” ele disse.
Ela lhe deu um sorriso radiante.

Ah, obrigada.

Ele continuou: “Em sua presença, sinto apenas um silêncio e


uma bem-aventurança inacreditáveis.”

Muito bom.

Ele acrescentou: “E a verdadeira boa nova é que parece que nun­


ca estou longe de sua presença.”

Isso mesmo! O que será que isso significa? Como isto é


possível? Está claro que ele não está falando desta forma.
Não passamos nenhum tempo em presença física, a não
ser nesta experiência de satsang. Por isso sabemos que ele
não está falando da forma.

O homem continuou: “Pedi-lhe que me empurrasse e senti-me


completamente imerso no rio Ganga.” Ela riu.

Sim, isto leva tudo e deixa-o nu. E, nesta nudez (sem


118
O QUE VOCÊ QUER REALMENTE?

nome, sem forma, sem história, sem relacionamentos, sem


trabalho anterior, nem trabalho futuro), você reconhece:
“Eu sou esta presença. Ela nunca me abandona.”
Uma presença. Infinitas manifestações de uma única
presença.

Enquanto ela falava, comecei a sentir que, talvez, não fosse tão
especial afinal de contas. Parecia que aquele homem também tinha
se afogado no rio Ganga. Isto foi confirmado em seguida, quando
ele disse: “Ouço a sua voz aonde quer que eu vá.”
Gangaji riu.

É a sua voz. É por isso que você pode ouvi-la aonde


quer que vá. É a mesma voz, talvez usando tonalidades
diferentes, que você associa a algum aspecto de si mesmo
que veio até você, em um determinado momento, e disse:
“Agora!” [risos]
Sim. Peça para ser empurrado. Peça para ser puxado.
Peça para ser rendido. Peça para ser encontrado. Peça
para ser salvo. E perceba: eu sou Aquilo.
Então você percebe que está empurrando a si mesmo
(na realização, cada vez mais profundamente), quer você
se chame Gangaji, Papaji, Ramana, Dan, Sue, Bob,
Hare Krishna; o nome não importa. Igualmente, se pe­
dir mais objetos, você atenderá ao seu próprio pedido com
mais objetos.
Você é infinitamente generoso e compassivo. Portanto,
você sabe como pedir “nada” e nada, “coisa alguma” é
revelada. Isto é o que significa “parar”, “ser empurrado”:
empurrado para dentro do silêncio, afogado no silêncio.
119
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Mais uma vez, ela respondera perfeitamente à minha pergunta.


A voz dentro de minha cabeça, que parecia ser a dela, era o meu
próprio Ser que, de alguma maneira, misteriosamente, assumira os
atributos e as qualidades de Gangaji.
Tive a súbita percepção de que fora castigada pela minha ar­
rogância, e isto provocou a sensação de queimação novamente.
Comecei a perceber que todas as pessoas com quem Gangaji falava
eram igualmente especiais, igualmente o seu próprio Ser, igualmen­
te convidadas a se afogar no rio Ganga. Ela amava cada uma delas,
incondicional, íntima e totalmente. Não era pessoal e não era im­
pessoal. Era tanto pessoal quanto impessoal.
A fala do homem sobre afogar-se no rio Ganga lembrou-me da
música que escrevera para Gangaji. Durante todo o fim de sema­
na perguntara-me se Gangaji recebera a fita, e se gostara da músi­
ca. Agora estava resignada com a possibilidade de que talvez nunca
viesse a saber.
Ela respondeu mais algumas perguntas e então juntou as palmas
das mãos, dizendo: Om Shanti. O satsang estava terminado. Ela le­
vantou-se, reuniu sua “correspondência”, sorriu calorosamente para
várias pessoas sentadas na primeira fila e saiu do auditório por uma
porta lateral, à direita do palco. Enquanto a observava saindo do
salão, senti uma forte pontada de saudade em meu coração, como se
estivesse sendo separada de alguma coisa preciosa, profundamente
amada. Um intenso e íntimo apego a ela se formara no fundo da
minha alma, porém não houvera qualquer reconhecimento por par­
te dela, pelo menos abertamente, de que ao menos se lembrava de
mim. Novamente, lembrei-me de que este era um relacionamento

120

O QUE VOCÊ QUER REALMENTE?

bastante incomum, que não podia ser decifrado pela mente.


Depois que Gangaji saiu, Govind anunciou que as pessoas que
iriam ao pequeno satsang deveriam se levantar primeiro, e ir para
trás do palco. O resto de nós deveria ficar sentado quieto por mais
alguns minutos. De repente, senti uma grande frustração comigo
mesma. Ansiava por ir à pequena reunião, mas o anseio e a timidez
estavam lutando entre si. E a timidez ainda estava vencendo.
Ficamos no saguão, olhando os livros, fitas e vídeos à venda nas
mesas. Comprei o vídeo de um satsang em Santa Fé, do ano ante­
rior, chamado “O Fim do Ego”. Enquanto isso, Toby tinha encon­
trado um amigo, alguém que vivera em uma grande comunidade
espiritual da qual fizéramos parte durante oito anos, e que havíamos
deixado quatro anos antes.
“Venha cá.” Toby agarrou o meu braço. “Quero que conheça
alguém. Este é John. Lembra dele?”
O homem parecia vagamente familiar, mas nunca tivera uma
boa memória para pessoas. John sorriu e me disse: “Lembro-me de
você.” Reconheci você em Estes Park, mas estávamos em silêncio,
por isso não disse nada. Foi tão bonito quando você se sentou no
sofá. Aquilo derreteu o coração de todos. Você estava com tanto
medo no começo. Depois, ficou óbvio que foi ficando cada vez mais
quieta.”
Toby e John conversaram um pouco sobre como cada um de
nós tinha descoberto Gangaji, e também quem mais daquele velho
grupo poderia ter sido atraído para o satsang. Minha atenção ficou
fora do ar por algum tempo, e eu não os estava escutando. Com o
canto do olho, vi Maitri de pé, perto da mesa de vendas. Ela olhou

121

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

para mim e sorriu. “Você veio para cá de Boulder?”


Disse que sim com a cabeça. “Só para o fim de semana.” Quando
voltei para a conversa com meu marido e John, ouvi Toby con-
tar a ele sobre a linda música “Rio Ganga” que eu escrevera para
Gangaji.
John disse: “Oh, Rio Ganga? Gangaji tocou uma fita com uma
música em um satsang para voluntários, na quarta-feira passada.”
Voltei-me para John, com agitação. “Ela a tocou em um satsang”?!
“Sim. Uma música sobre o rio Ganga.”
“Ela era assim...?” Cantei alguns compassos.
“Sim. Isto mesmo. Foi isto que ela tocou para nós.”
Meu coração explodiu de alegria.
Assim, por puro acaso, descobri, de maneira sub-reptícia, que
Gangaji gostara da música. Parecia o modo como, por coincidência,
descobrira que ela gostara da minha carta em Estes Park. Realmente,
havia algo insanamente secreto neste relacionamento; até me ocor­
reu a palavra “sedutor”, de uma maneira misteriosa e divina. Nos
meses que se seguiram, passaria a compreender que habilidoso se­
dutor é o Ser quando, ao ficar impaciente com os adiamentos da
mente e as indulgências da personalidade, incapaz de adiar mais, ele
finalmente aparece como um lindo tigre devorador, para reclamar
o que é seu.

122

O MITO DA ILUMINAÇÃO

Durante aquela semana, fomos convidados para dois eventos


sociais em Boulder: uma festa de departamento na Universidade e
um jantar com alguns amigos. Sentindo-me reclusa e introspectiva,
tentei escapar de ambos, mas Toby insistiu que eu fosse. Já que não
iria com ele para Cape Cod, o mínimo que podia fazer era acompa­
nhá-lo nestes eventos. A festa foi horrível. O fluxo de bebida alcoó­
lica era abundante e, depois de uma hora, todo mundo estava com
os olhos e o cérebro embaçados, o que impedia qualquer conversa
mais profunda.
Desistira de beber quando ainda era muito jovem. Uma vez,
quando tinha dezoito ou dezenove anos, bebi demais em uma festa
e, quando dirigia de volta para casa, bati com o carro em um pos­
te. O carro era um Chevy 1956, que acabara de comprar. Na ma­
nhã seguinte, enquanto verificava o amassado no pára-lama direito,
senti-me muito estúpida por ter danificado o carro em tão pouco
tempo. Não consertei o amassado, deixei-o no lugar, para lembrar­
me de nunca mais ser tão estúpida. Este foi o fim da minha breve
experiência com álcool.
O jantar com amigos na quinta-feira à noite foi interessante.
Silvine e Stewart eram amigos recentes, que tínhamos conhecido
depois de nos mudarmos para Boulder. Tom e Nancy também esta­
vam presentes, um casal que conhecíamos há apenas uma semana.
Silvine estava muito interessada em me ouvir contar sobre Gangaji
e minhas experiências em Estes Park. Até então, não tentara explicar
123

estas experiências a ninguém. Nem mesmo Toby ouvira a história


inteira.
De alguma maneira, no jantar daquela noite, a coisa toda saiu
aos borbotões. Em um dado momento, percebi que todo mundo
estava me olhando com espanto. Especialmente Silvine, que pare-
cia ter “parado”. A mente dela simplesmente se aquietou. Isto era
muito evidente para todos, porque Silvine é conhecida por ter uma
mente muito ativa. Ela é doutora em Literatura e, como professo­
ra universitária, vive uma vida intensamente “mental”. Mas ela viu
algo em meus olhos, sentiu alguma coisa em minha presença que,
pela sua descrição, deve ter sido semelhante ao que eu vivenciara
com Gangaji. Talvez a visão de Ramana dizendo a Gangaji que eu
podia servir a esta linhagem não tivesse sido imaginária, afinal de
contas. Talvez Gangaji estivesse me treinando quieta, secreta e inti­
mamente, de uma maneira que tornava muito difícil para a mente
se apegar a qualquer coisa.

A semana inteira, Toby estivera inflexível: de modo algum volta­


ríamos a Santa Fé naquele fim de semana. Mas, na sexta-feira, meu
anseio por ver Gangaji tornara-se insuportavelmente forte, mais
uma vez. Eu tinha que ir. Já que só tínhamos um carro, não podia
pegá-lo sem a permissão de Toby.
Com a aproximação da sexta-feira, Toby miraculosamente mu­
dou de idéia. Não posso realmente dizer que ele mudou de idéia,
pois a sua mente ainda estava resistindo (o caminho todo até Santa
Fé, para dizer a verdade), mas alguma coisa dentro dele, mais pro­
funda que a mente, sabia que tínhamos que ir; e ele estava começan­

124

O MITO DA ILUMINAÇÃO

do a ouvi-la e entregar-se cada vez mais a ela.


No sábado de manhã, chegamos à Faculdade para Surdos bas­
tante cedo. Govind estava circulando com a lista de pessoas para o
pequeno satsang. Ainda me sentia terrivelmente retraída, e tímida
demais para assinar a lista. Mas Toby decidira ir, porque queria per­
guntar a Gangaji sobre a questão do respeito que surgira para ele no
fim de semana anterior. Pensava que seria mais fácil ser chamado em
um grupo pequeno.
Quando as portas se abriram, o fluxo de pessoas que queriam
sentar na frente novamente nos pegou de surpresa. Apesar do fato
de estarmos quase no início da fila do lado de fora, acabamos sen­
tando na sexta fila novamente.
No satsang daquele dia, havia muitas perguntas sobre ilumina­
ção, tais como: “O que significa realmente? Como você sabe que
está ‘conseguindo’? Qual é a diferença entre realização e, simples-
mente, uma profunda “experiência” espiritual, etc.
Gangaji falou lindamente sobre este tema, do modo como falara
em Estes Park, na noite em que o meu “cajado do iogue” fora que­
brado. Mas, naquele dia, eu não estava escutando as suas palavras;
não tanto quanto a respiração entre elas, que parecia me atrair mais
profundamente para o silêncio, para além do que ela dizia.
Após o satsang, Toby foi à pequena reunião, e eu fiquei esperan­
do por ele no saguão, conversando com o nosso novo amigo, John.
Quando Toby finalmente saiu, estava com um casal, Dan e Jennifer.
Eles havim se mudado para Santa Fé, vindos do Meio Oeste, onde
tinham vivido na mesma comunidade espiritual em que Toby, John
e eu vivêramos. Quando Toby apresentou-os a nós, reconheci seus

125

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

nomes, pois tínhamos alguns amigos em comum, embora nunca


tivéssemos sido apresentados. Dan era a pessoa que tinha dito na
semana anterior que estava imerso no rio Ganga, e que ouvia a voz
de Gangaji dentro de sua cabeça. Jennifer fizera muitas das per­
guntas sobre iluminação naquele dia. Toby queria que eu contasse
a ela sobre minhas experiências em Estes Park. Então, Jennifer e eu
nos sentamos no sofá do saguão, e conversamos. Ela me perguntou
como era o caminho da auto-investigação, em comparação à medi­
tação com um mantra, que praticáramos durante tantos anos. Eu
disse que a meditação era muito bonita e tinha seu lugar mas, por
fim, a pessoa tinha que se fazer a pergunta: “Quem é o meditador?”
Ela me fez muitas perguntas e gostei de conversar com ela; parecia
satsang.

Depois que Dan e Jennifer foram embora, decidimos ir almoçar


e convidamos John para vir conosco. Sentamos em um restaurante
indiano recomendado por John, e ele nos contou como tinha um
ótimo emprego no leste, mas pedira demissão depois que uma ami­
ga próxima, Sandy, morrera em um acidente de automóvel. Eu a
conhecia bem. Nós guardamos nossos cavalos no mesmo estábulo
durante muitos anos, e cavalgamos juntas muitas vezes. John con­
tou que, quando Sandy morreu, tão repentina e inesperadamente,
no meio de sua vida, ele percebera que não se pode adiar o chamado
espiritual, imaginando que haverá um momento para “fazer isto
depois”. Pode não haver um depois. Quem sabe qual será a duração
desta vida? Portanto, ele largara o emprego bem-sucedido, e em­
barcara em uma peregrinação espiritual que culminara, finalmente,

126

O MITO DA ILUMINAÇÃO

após visitar vários santos e mestres, em um forte chamado para estar


com Gangaji. Ele estivera nos satsangs em Boulder naquela prima-
vera, comparecera ao retiro em Estes Park e então viera para Santa
Fé, onde agora era voluntário, ajudando a equipe de preparação e
conduzindo as pessoas aos seus lugares antes dos satsangs.
Ele disse que sentira um chamado para servir ao satsang, mas
não tinha qualquer idéia sobre como isto aconteceria. Sem realmen­
te mencionar as visões que tivera, disse a ele que também ouvira
o chamado, e que também não tinha qualquer idéia sobre como
acabaria servindo.
John riu. “Isso é fácil. Você vai compor músicas que expressam
o satsang e cantá-las.”
Sacudi minha cabeça, inflexível. “Posso compor uma música de
vez em quando, mas esta personalidade definitivamente não foi fei­
ta para se apresentar em público.”
Ele apenas sorriu e olhou para mim, como se não acreditasse em
uma palavra do que eu dizia. Isso me irritou um pouco, mas deixei
de lado, pensando: “Ele ainda não me conhece muito bem.”
Enquanto conversávamos, senti uma imensa e envolvente pre­
sença, vibrando em tudo; nós, o restaurante, Santa Fé, a Terra e daí
por diante. Tudo se movia n’Aquilo, era Aquilo, vinha d’Aquilo e
era perfeitamente orquestrado por Aquilo. Embora eu agora esti­
vesse consciente desta vastidão a maior parte do tempo, ainda havia
uma oscilação entre a identificação de mim mesma com Aquilo e a
identificação com a minha mente e minha personalidade.

127

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Na manhã seguinte, acordei bem cedo. Ao alvorecer, sentei-me


no pátio, entre os cactus, e abri mão de tudo, penetrando na expan­
são do infinito. A bem-aventurança do samadhi surgiu e preencheu
cada célula do meu corpo; não, cada célula do meu corpo estava
n’Aquilo. Fiquei sem fôlego, literalmente; a respiração foi sugada
para fora de mim. Esta repentina perda da respiração tinha acon­
tecido muitas vezes desde Estes Park. Às vezes, eu ficava alarmada e
começava a ofegar, tentando respirar, embora soubesse, intelectual­
mente, que no samadhi o corpo não precisa de respiração; ele fica
em um estado de suspensão. Achei que ficava ofegante porque, às
vezes, estava só parcialmente naquele estado de suspensão; a outra
metade se identificando com o corpo.
Depois de ficar sentada por algum tempo, decidi escrever uma
carta para Gangaji. Não me lembro de tudo que disse naquela carta,
mas foi algo mais ou menos assim:

Querida Gangaji,

Esta “vastidão” que agora sinto todos os dias costumava me


aterrorizar. Eu me esquivava dela, com medo, achando que ela
me aniquilaria. Como isto me parece ridículo agora! Você per­
mitiu que eu me conectasse com você tão profundamente, que
toda sensação de separação (a causa do medo) foi aniquilada,
tempo bastante para eu ver que este grande devorador que tan­
to temia não era ninguém além do meu próprio Ser.
Como posso agradecer-lhe por isto? Só espero poder ser
usada de alguma maneira para servir a esta Verdade. Com pro­
funda gratidão,

Amber Terrell

128
O MITO DA ILUMINAÇÃO

Toby não estava interessado em ir cedo para o auditório naquela


manhã já que, por mais cedo que chegássemos lá, nunca conseguí­
amos sentar na frente. Mas, quando chegamos, John nos informou
que iria se sentar na primeira fila naquela manhã, para ajudar as
pessoas, e que reservara lugares para nós na segunda fila, bem no
centro.
Quando Gangaji entrou, meu coração deu pulos de amor. Fiquei
extasiada e arrebatada com a proximidade dela. Era o mais próximo
que estivera dela fisicamente, desde Estes Park. Novamente, a timi­
dez e o nervosismo surgiram, juntamente com o amor. Era como se
este amor alcançasse tão profundamente em minha alma, que fazia
tudo surgir; tudo pelo que sempre ansiara e tudo que sempre supri­
mira. Mas ainda levaria muitas semanas para finalmente perceber
que este “surgimento” não era nada para me preocupar ou me deixar
ansiosa. Só era necessário deixar que tudo surgisse, sem resistir, sem
alimentar, e deixar a identificação ser queimada na Verdade do Ser.
Naquele fim de semana, Maitri e Govind, assim como John
e Toby, tinham me encorajado a cantar “Rio Ganga” no satsang.
Trouxera o meu violão para Santa Fé, no caso de desejar cantar
a música para Gangaji pessoalmente. Entretanto, pouco depois
de chegar a Santa Fé, no dia anterior, ficou claro para mim que
não estava pronta para cantar na frente de quatrocentas pessoas e
Gangaji.
Naquela manhã, Gangaji abriu o satsang com a mais poderosa
exposição sobre iluminação que jamais ouvira. Toby teve certeza de
que ela foi inspirada pelas perguntas do dia anterior.

Bem-vindos ao Satsang. Bem-vindos.


129
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Seu sorriso irradiava com o amor mais ilimitado, incomensu­


rável, incondicional. Ela olhou para o auditório em silêncio por
alguns momentos, e então começou:

Quero falar só algumas palavras sobre este conceito de


iluminação, porque vocês sabem...

Ela respirou fundo, olhando os rostos diante de si.

... isto é uma grande coisa, não é? [risadas] É uma


ironia que algo tão precioso, realizador e eterno, seja su­
tilmente transformado em uma “coisa” , um objeto da
mente. Assim, a preciosidade é arruinada. E a oportu­
nidade de se perceber aquilo que a iluminação indica é
negligenciada mais uma vez.
Este é um conceito importante; quando aparece pela
primeira vez, esta percepção, este insight de que “Meu
Deus, eu tenho vivido na ignorância... Quero sair dessa
ignorância.” Isto é tão importante, é um tal ponto de evo­
lução em um fluxo-de-vida... Então você passa o tempo
tendo uma consciência mais profunda da ignorância, e
sendo mais impulsionado para alcançar a iluminação.
Isto também é muito importante.
Surge a determinação e a coragem de dar as costas às
forças que apóiam a ignorância, e voltar-se em direção à
força que apóia a iluminação.
Então chega um momento no qual, em um instante,
por uma miraculosa, misteriosa Graça, algo faz você per-
der a fala, todas as palavras, os conceitos, toda a busca, a
130
O MITO DA ILUMINAÇÃO

luta, toda a identificação com uma entidade que é igno­


rante e não-iluminada, ou com uma entidade que é livre
e iluminada. E, neste momento, neste instante fora do
tempo, ocorre a percepção de que quem você é, realmente,
nunca foi tocado por qualquer conceito. Na verdade, é
isto que a “iluminação” indica, este instante de percep­
ção.

Meu encontro com ela era esta percepção, este instante fora do
tempo. A gratidão brotou e inundou meu coração. Neste momento,
Toby olhou para mim. Ela estava abordando questões sobre as quais
tínhamos conversado muito nos últimos dois anos, entre nós e com
outros amigos buscadores: “O que é iluminação? Por que, após to-
dos estes anos de prática, ninguém que conhecemos ganhou qual­
quer coisa remotamente parecida com iluminação ou liberdade?”
As palavras seguintes de Gangaji responderam a tudo.

Os hábitos da mente, é claro, são muito fortes e, possi­


velmente, irão reaparecer. “Ah, consegui, sou iluminado.”
Isto já é um hábito da mente. Isto pressupõe uma entida­
de separada da consciência, separada disto que é percebi­
do, revelado, naquele instante em que a mente pára. E a
esta frase, “Ah, consegui, sou iluminado,” certamente se
seguirá a frase “Perdi tudo. Não sou iluminado.”

Ela sorriu e olhou para o mar de rostos.

Certo? Você já deve ter passado por isto muitas vezes.

131
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Claro, são os lados da mesma moeda: pensamento. “Eu


sou alguma coisa.” “Eu sou ignorante; eu sou ilumina­
do.” Pensamento.
Então, ao se alimentar este pensamento como se fosse
realidade, mais uma vez reaparece a experiência do sofri­
mento desnecessário. Tanto em “Ah, consegui, sou ilumi­
nado. Agora o que eu posso fazer com isto? O que posso
fazer? Como eu posso, etc...”, quanto em “Perdi tudo, sou
ignorante, não sou iluminado.” Isto é sofrimento desne­
cessário. Tudo baseado em uma mentira.

Como era dolorosamente lúcida a sua descrição de minhas expe­


riências anteriores! Quantas vezes no passado tivera uma profunda
explosão de consciência e bem-aventurança, que fora seguida por
este tipo de pensamento: “Ah, agora consegui. É isto! Agora posso
ter tudo que quiser, fazer tudo que desejar.” Ao seguir estes pen­
samentos, imediatamente a identificação com a mente reaparecia
e a sublime consciência desaparecia. Então, a percepção de preci­
sar “voltar” para ela, descobri-la novamente, reaparecia. Até agora,
nunca entendera porque não conseguia “conservá-la”.

Quem você é não tem qualquer necessidade, desejo ou


medo da ignorância ou da iluminação. Você é livre destes
conceitos. A ignorância indica a não-percepção disto. E a
iluminação indica a percepção disto. Mas, no momento
em que você se agarra a qualquer conceito de ignorância
ou de iluminação como se fosse a realidade, você já está
na experiência da ignorância novamente.

132
O MITO DA ILUMINAÇÃO

Vê como é sutil o funcionamento da mente? Como é sutil?

A emanação do silêncio e da presença de Gangaji não somente


tinham me atraído profundamente para o Auto-reconhecimento,
mas, com o brilho e a clareza de sua fala, ela estava me alertando
sobre os truques sutis da mente, as maneiras sutis como uma pessoa
pode afastar-se da Verdade, mesmo depois dela ter sido revelada. Ela
estava expondo a tendência da mente a reivindicar a realização para
si mesma. No momento em que surge o pensamento “Eu realizei
Aquilo”, há novamente separação, o “Eu” e o “Aquilo”. Na verdadei­
ra realização, não resta mais ninguém para reivindicá-la. Não resta
mais ninguém para “conservá-la”. Não há qualquer sensação de se
ter conquistado alguma coisa, ou de se ter alcançado algo. A verda­
deira realização apenas é, e sempre foi.

O grande dom que Ramana lhe oferece, como o seu


próprio Ser, é ficar quieto. Não se voltar para a mente
como o ponto de referência de quem você é, pois a mente
é “pensamento”; pensamento mental, físico, emocional ou
circunstancial. Fique quieto. O que se pode dizer sobre o
que é revelado na quietude? Nada do que foi dito pode
tocar aquilo. Muito já foi dito que indica aquilo. Pa­
lavras como iluminação, realização, Ser, Verdade, Deus,
Graça; todas essas palavras indicam aquilo. No momento
em que elas são concebidas como alguma “coisa”, elas se
afastam daquilo. Então você começa esta prática ridícula
de se comparar às outras pessoas.

133
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Até aquele momento, o tom de voz de Gangaji fora razoavel­


mente sério. Mas agora ela riu, como se essa “comparação” fosse a
piada mais absurda.
Toby olhou para mim embaraçado, pois ele estivera fazendo
comparações recentemente, em relação a mim e o que eu estava
vivendo com Gangaji.

Tudo isto na esperança de alcançar alguma coisa ou


abandonar alguma coisa. Tudo baseado na idéia de que
você é alguma “coisa”.

Ela olhou para nós penetrantemente, com uma intensidade


brincalhona.

VOCÊ NÃO É ABSOLUTAMENTE “COISA” AL­


GUMA! Tudo que aparece, aparece em você, por causa da
vastidão do mistério de você. Quando você se identifica com
alguma “coisa” (alguma coisa mental, física, emocional ou
circunstancial) e acredita que esta identificação é real, deixa
de ver a realidade da vastidão de ser quem você é.
É tão completamente simples. Foi isto que o manteve
no mais profundo segredo.

Novamente, fiquei extasiada com a Verdade profunda e con­


centrada que suas palavras comunicavam, e com a transmissão de
quietude que sentia. Jamais ouvira alguém falar tão claramente,
tão brilhantemente, com tanto frescor, sobre esta armadilha da
identificação mental.

134
O MITO DA ILUMINAÇÃO

Todos os seus esforços, todas as suas práticas, todas as


suas comparações e anotações são percebidas como inúteis.
Neste momento de percepção da inutilidade de tudo isto,
existe a liberdade suprema. Se existe o mínimo apego a isto
como algo útil, como algo que vale alguma coisa, novamente
você é capturado pela identificação.
A oportunidade para o fluxo mental que você identi­
ficou como a si mesmo é de, no meio disto, perceber que
você é a força animadora que dá ao fluxo mental o seu
poder aparente. Isto pode ser percebido imediatamente,
simplesmente ficando quieto. Você nunca vai perceber isto
buscando no pensamento. Você pode ter compreensão in­
telectual, e eu diria que todos vocês têm esta compreensão
intelectual, mas você não está satisfeito com isto, porque
nunca ficará satisfeito, até abraçar a si mesmo, à verdade
de quem você é. Por sorte, você jamais ficará satisfeito.
Você não aceitará nada de menos. Por sorte.
Este é o maior dom; este é o dom de Ramana, através
de Papaji. Esta oportunidade de parar, no meio do ca­
minho, parar e reconhecer quem você é. Toda discussão,
antes e depois disto, é inútil, é um jogo da mente. Talvez
seja belo, quem sabe horrível, porém inútil.

Uma quietude intensa tomou conta do salão. Por alguns mo­


mentos, todos permaneceram absolutamente silenciosos. Parecia
que ninguém podia nem mesmo respirar. Seus olhos percorreram os
rostos silenciosos por mais um momento, e então ela acrescentou:

Você não pode fazer quietude. Você é quietude. Seja


135
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

quem você é. Fique quieto, absolutamente, completa­


mente quieto, e veja Aquilo que é anterior a qualquer
pensamento, a qualquer conceito, a qualquer imagem de
quem, o quê, quando, como ou por quê.*

A voz dela, seus olhos, sua linguagem corporal, revelavam uma


intensa paixão, um intenso desejo de que todos naquele salão escu­
tassem profundamente. Mesmo assim, paradoxalmente, havia em
seus modos uma perfeita ausência de paixão, um desapego nada
sentimental, uma liberdade admirável; se nós entendíamos ou não
era totalmente da nossa conta.
Ela começou a ouvir perguntas e a ler algumas das cartas que ha­
viam sido colocadas no sofá. Cada palavra que falava era embebida
no mais puro e vibrante silêncio. Era o Ser infinito falando consigo
mesmo. Depois de algum tempo, juntou a palmas das mãos, inclinou
a cabeça para nós, e disse: Om Shanti. E assim terminou o satsang.
Quando saiu do salão naquele dia, mais uma vez senti uma pan­
cada em meu coração, e um anseio intenso. Eu não me apegava pro­
fundamente às pessoas. Fora cuidadosa em não me apegar profun­
damente a ninguém, após ter visto, em uma idade bastante precoce,
que apegar-se às pessoas causa sofrimento. Minha vida seguira cui­
dadosamente o curso de uma feroz independência, até mesmo com
amigos íntimos e com meu marido. Mesmo assim, aqui estava este
intenso amor e este apego a Gangaji. Eu não tinha qualquer contro­
le. Isto só vinha me lembrar novamente que havia algo misterioso,
alguma coisa nesta relação que não era o que parecia: que não era
nem pessoal nem impessoal; e era tanto pessoal quanto impessoal.
Isto não podia ser capturado pela mente.
136
AS ROSAS

No sábado seguinte, fizemos a viagem até Santa Fé pela tercei­


ra semana seguida. Desta vez, os satsangs estavam sendo realizados
em uma escola secundária do outro lado da cidade, mas nós a en­
contramos sem dificuldade. Imediatamente, vimos John. Toby e ele
logo começaram uma campanha para me convencer a cantar “River
Ganga” no fim de semana. Disse para eles me deixarem em paz. Eu
não estava pronta para isso.
Uma noite, depois do satsang, Toby teve uma bela experiência
de quietude. Estávamos em nosso quarto, sentados na cama, Toby
apoiado na cabeceira, e eu sentada na beira da cama com meu violão.
De repente, calmamente, ocorreu uma virada em sua consciência.
Ele tornou-se pura consciência. Foi diferente de suas experiências
anteriores de transcendência porque, de repente, ele descobriu que
era Aquilo, muito clara e simplesmente. Não que estivesse tendo
uma experiência d’Aquilo. Após algum tempo, fiz-lhe uma pergun­
ta e, enquanto tentava respondê-la, ele percebeu que estava retor­
nando à mente. Quando me descreveu a experiência, ele perguntou:
“Por que não posso conservar isso? Para onde isso vai?”
Eu disse: “Isso não pode ir a parte alguma. Isso é quem você é.”
Mas isto não serviu de consolo. Ele lamentou a perda daque­
la experiência durante várias semanas até que, finalmente, quando
Gangaji voltou a Boulder, decidiu perguntar diretamente a ela.
Naquela noite, escrevi outra carta a Gangaji. Queria expressar
quão profundamente esta conexão com ela havia me afetado. A ex­
137

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

periência de sua presença contínua no fundo de minha alma servira


para me conectar com a imensa infinitude do meu próprio Ser. Esta
é a primeira carta que posso citar palavra por palavra, porque ela a
leu em um satsang e, portanto, pude transcrevê-la de uma fita:

3 de junho de 1995
Querida Gangaji,

Quando nos conhecemos, há pouco mais de um mês, ocor­


reu uma conexão entre nós, uma conexão “fora do tempo”. E
desenvolveu-se uma relação que, também fora do tempo, co­
meçou a animar esta imensa, infinita presença em minha cons­
ciência, porque era nela que a relação existia.
A mente ficou perturbada com isto, e começou a afirmar
coisas como: “Isto não é real, isto não pode estar acontecendo,
é imaginação sua”, ou então tentou compreender, situar isto
no tempo, ou transformar isto em alguma “coisa”. Finalmen­
te, ela se calou porque, recentemente, esta presença atempo­
ral tornou-se tão vívida que começou a ofuscar a realidade do
espaço/tempo, às vezes fazendo-a recuar, distante, como num
sonho. Há tanta plenitude no presente quando isto acontece,
que todos os desejos são realizados. A mente ainda pensa coisas
como “Ei, espere aí, a plenitude não pode ser tão simples.” ou
“E os seus planos?” Mas estas vozes, embora não tenham de­
saparecido totalmente, tornam-se opacas e perdem seu poder.
Pois nesta consciência (que é como um rio de Graça), a Leela*
do espaço/tempo, em certo sentido, parece perfeita, e há menos
tendência de “planejá-la” ou “tocá-la” de alguma maneira. Ela
apenas se desenrola e, enquanto permaneço quieta nesta Graça,
não há muito o que “fazer”, exceto usufruir o desenrolar.
E tudo isto por causa deste “encontro” fora do tempo. Se
esta é uma metáfora para o casamento, então este foi um casa­
mento arranjado, porque eu não “fiz” nada. Não “decidi” me
138
AS ROSAS

entregar. Isto apenas “aconteceu” e, então, continuou aconte­


cendo, como se a entrega fosse infinita. É isso que você quer
dizer quando fala que o “descobrir” da Autodescoberta é sem
fim?
Há tanta plenitude nesta realização; o Ser se revelando a Si
mesmo. Certo? Nesta atemporalidade, sei que somos um, por­
que vivenciei esta fusão muito concretamente. Mas, na Leela
do espaço/tempo, há esta deliciosa separação, na qual estou a
seus pés e em total deslumbramento. Obrigada por ser minha
porta para o Infinito.

Com toda gratidão,


Amber Terrell

P.S. Sei que enviei três cartas em três semanas, e espero que
não seja demais. Tanta coisa é revelada a cada dia, a cada mo­
mento, e escrever-lhe me ajuda a verificar.

Coloquei a carta no sofá, no nosso último dia em Santa Fé, ten­


do o cuidado de escondê-la debaixo da pilha de cartas que já havia
se acumulado. Naquele fim de semana, havia tantas cartas que ela
não lera todas no satsang em dia nenhum. Ela as levava para casa e,
às vezes, trazia uma ou duas de volta no satsang seguinte, para lê-las
para o grupo. Parecia coisa certa que ela não chegaria à minha carta
naquele dia e, portanto, a leria depois. Isto era um alívio porque,
naquela altura, ainda sentia que, provavelmente, morreria de vergo­
nha se ela lesse uma de minhas cartas no satsang.
Fiquei agradecida por ela não descobrir minha carta naquele dia
e, quando finalmente a leu, no fim de semana seguinte, não havia
mais ninguém para ficar envergonhada.
Na semana seguinte, Toby viajou para Cape Cod. Aquele fim
139
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

de semana seria o último de Gangaji em Santa Fé, mas decidi não


dirigir até lá sozinha, embora nossos novos amigos, Steven e Tanya,
tivessem me convidado para ficar com eles se eu resolvesse ir. Em
breve, Gangaji estaria de volta a Boulder, e eu sentia que a viagem
de sete horas de carro sozinha seria cansativa demais. Mas, confor­
me o fim de semana se aproximava, não pude mais ficar longe dela,
assim como não podia parar de respirar.
Não lembro como tudo realmente aconteceu mas, de algum
modo, as pessoas na Satsang Foundation & Press tinham me con­
tatado antes, e haviam me pedido para levar algumas coisas para
Santa Fé, já que ninguém da equipe de Boulder iria naquele fim de
semana. Os itens eram o equipamento de vídeo, para um homem
chamado Rob, e a bagagem de um outro homem chamado Lee.
Na sexta de manhã, antes de deixar a cidade, fui até a Fundação
para pegar as coisas. Enquanto estava lá, alguém me disse que Maitri
queria me ver. Fui conduzida à sala dela, no andar de baixo. Ela me
recebeu calorosamente, e perguntou quando eu cantaria minha mú­
sica para Gangaji. Eu respondi: “Não sou cantora.”
Ela olhou para mim, com o mesmo ar de dúvida que John tivera
na semana anterior, sem acreditar em uma palavra. “Gangaji gos­
tou muito, muito mesmo, daquela música”, ela me garantiu. Então
me perguntou se eu poderia levar um pacote para Gangaji, e me
entregou um grande envelope de cânhamo. “A correspondência de
Gangaji”, ela disse. Senti-me profundamente honrada e emociona­
da por levar a correspondência de Gangaji. Mas, quando peguei
o pacote, perguntei: “Como vou entregar isto a ela? Quer dizer, a
quem devo entregar?”

140
AS ROSAS

Maitri disse: “Entregue a Gangaji! Pode dar a ela no satsang pe­


queno.”
“Nunca fui a um satsang pequeno” disse. “Sou tímida demais.”
Maitri riu, sem acreditar. “Ah, que lindo!”, ela disse. Não estava
certa de porquê ela achou aquilo lindo. A timidez era a minha mal­
dição, era o modo como esta personalidade havia nascido. Então ela
acrescentou: “Pode dá-lo a Govind, se quiser. Mas, se fosse você, eu
o entregaria pessoalmente a Gangaji.”

Cheguei a Santa Fé pouco antes do anoitecer, mas tive dificulda­


des para achar a casa de Steven e Tanya. Devo ter virado na rua erra­
da em algum ponto, e fiquei totalmente perdida por algum tempo.
Eram quase dez horas da noite quando a encontrei e estava cansada,
frustrada e quase em lágrimas, em parte por causa da frustração
de me perder, e em parte por causa do “pé-atrás” que ainda estava
sentindo em relação a Gangaji. Aquilo estava me deixando maluca,
mas, mesmo assim, não parecia haver nada que eu pudesse fazer.
Quando Tanya veio me receber na rua, e me ajudar a tirar minhas
coisas do carro, ela viu meu violão (que trouxera comigo, no caso
de sentir vontade de tocar, sozinha comigo mesma). “Ah, você vai
cantar?” perguntou. Eu já ia respondendo: “Não, eu não canto em
público”, mas antes que pudesse dizê-lo, ela acrescentou: “Perfeito,
porque o aniversário de Gangaji é no domingo.”
“O aniversário dela!” disse ofegante. E, naquele momento, sou-
be que iria cantar.

141

Cortesia da Avadhuta Foundation

142
H.H.L. Poonja (Papaji)
AS ROSAS

Naquela noite, estava deitada na cama, sem conseguir dormir,


quando senti pela primeira vez a inconfundível presença de Papaji.
Não era exatamente uma visão, mas era definitivamente ele: sua
Presença e Graça preenchiam o quarto, preenchiam o meu ser,
preenchiam tudo. Então me lembrei que tinha escrito uma carta
para ele, três semanas antes, agradecendo-lhe por ter enviado o Rio
Ganga para fluir no ocidente. Uma carta leva aproximadamente três
semanas para chegar à Índia e ser entregue, portanto deduzi que ele
devia ter acabado de recebê-la. Em silêncio, agradeci-lhe mais uma
vez, por minha mestra e pela Graça transmitida através dela, e pedi
sua benção para poder me abrir mais a ela, e conseguir cantar para
ela no domingo.

Na manhã seguinte, fui bem cedo à escola secundária onde se­


riam realizados os satsangs, para entregar as coisas que trouxera da
Fundação, e também para procurar Govind e dar-lhe o envelope
para Gangaji. Ainda não havia ninguém na fila, e só os voluntários
que ajudavam na preparação estavam correndo de um lado para o
outro, ocupados com suas tarefas. Uma das primeiras pessoas que
encontrei foi o nosso amigo John. Disse-lhe que trouxera um equi­
pamento de som para alguém chamado Rob, a bagagem de alguém
chamado Lee e um pacote para Gangaji.
Ele me disse para entrar, pois me levaria até Rob. Entrei na esco­
la seguindo John, passando pelos monitores da porta, que só deixa­
vam os voluntários entrar. Ele me conduziu até um grande ginásio,
onde os voluntários estavam ocupados, prepararando o salão para
o satsang. Vi minha colega de quarto de Estes Park arranjando as

143

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

flores perto do sofá de Gangaji, e minha amiga Caroline, da Suíça,


ajudando a equipe de preparação.

Quando fui apresentada a Rob, vi que ele era o cameraman que


havia gravado todos os satsangs em Estes Park. Era um australiano
louro de aparência atlética (seu sotaque era evidente) e, em minha
opinião, tinha o melhor emprego do mundo.
Depois de entregar o equipamento a Rob, uma mulher chamada
Margo, que descobri ser uma das organizadoras locais, veio me per­
guntar se eu era a Amber que compusera “River Ganga”. Quando
respondi que sim, ela contou que estavam planejando uma come­
moração discreta para o aniversário de Gangaji no dia seguinte, e
perguntou se eu gostaria de cantar a música. Não houve hesitação;
imediatamente respondi: “Sim, gostaria muito.”
Mais tarde vi John novamente, e disse a ele que, finalmente, iria
cantar. Ele apenas sorriu, com um ar de quem já sabia. (Depois des­
cobri que fora ele quem o sugerira a Margo). Perguntei a John onde
poderia encontrar Lee, para entregar-lhe suas coisas. John disse que
Lee não chegaria antes de Gangaji, já que era ele quem dirigia o
carro, trazendo-a e depois levando-a embora. “Bem, vamos ter que
entregar estas coisas a ele depois”, ele disse.
“E Govind?” perguntei, ansiosa para entregar o resto da minha
importante carga nas mãos certas.
“Não o vi por aqui”, disse John. “Alguém disse que ele está do­
ente, e talvez não venha hoje. Por que você não entrega a corres­
pondência a Gangaji pessoalmente? Pode ficar do lado de fora, e
entregá-la quando ela chegar. Também estarei lá hoje, porque estou

144

AS ROSAS

encarregado da porta lateral.”


“Não, você entrega a ela”, eu disse, tentando passar o pacote para ele.
Ele franziu a testa e recusou-se a pegá-lo. “Por que você não
pensa um pouco? Venho lhe perguntar depois.”
Sentei-me na fila, que agora estava começando a se formar, com
o pacote no colo, enquanto me perguntava: “Está bem. Do que
você tem medo? Esta é a mestra de suas preces. Você a ama. Ela
a ama como o seu próprio Ser. Qual é o problema?” Eu não sabia
como responder. Apenas senti uma contração extrema quando pen-
sei em ficar de pé do lado de fora do ginásio, e entregar o pacote a
ela. Suspeitei que isto tinha alguma coisa a ver com um certo em­
baraço que ainda sentia por causa deste amor intenso e louco e este
apego a ela, que não faziam sentido algum, e contrariavam a minha
auto-imagem de uma pessoa confiável, conservadora, controlada e
independente.
Mas, enquanto estava sentada à sombra, sob o toldo que pro­
tegia a entrada do ginásio, alguma coisa cedeu bem no fundo de
mim. Novamente, da mesma maneira como me senti naquela ma­
nhã em Estes Park, quando o salão ficou quieto e eu soube que era
o momento de fazer uma pergunta, soube então que aquele era o
momento de entregar o pacote a ela.
Quando John saiu novamente do ginásio, meia hora depois, dis-
se-lhe que mudara de idéia. Eu iria entregar o pacote a Gangaji pes­
soalmente. Ele não pareceu nada surpreso. “Que bom”, disse, “virei
buscá-la quando chegar a hora e lhe mostrarei onde ficar.”
Algum tempo depois, quando todos já tinham entrado e esta­
vam sentados em silêncio, aguardando a chegada de Gangaji, John

145

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

apareceu silenciosamente no corredor da frente, perto de onde eu


estava sentada, e pediu-me para acompanhá-lo. Segui-o e nós atra­
vessamos o ginásio, saímos pela porta lateral, passando por um pe­
queno saguão, até alcançarmos um terraço. Do lado de fora, fiquei
no alto de um pequeno lance de escada, aguardando em silêncio,
sentindo tremores na barriga. John estava de pé, ao lado da porta,
relaxado e firme, como uma sentinela real.
Depois de um certo tempo, uma mulher muito bonita saiu do
ginásio e ficou de pé ao meu lado. Instantaneamente gostei dela. Ela
era linda e natural, e sua presença era muito suave e amorosa. Além
de tudo isto, o nome dela era o que meu ser interior um dia me dera.*
“Ouvi dizer que você vai cantar amanhã,” disse Gayatri. Respondi
que sim com a cabeça, ainda me perguntando como conseguiria
fazê-lo sem desmoronar. Gayatri acrescentou: “Gangaji não quer
nenhum exagero. Mas contei a ela que vamos fazer alguma coisa,
e assim ela poderá escolher. Decidimos cantar algumas canções, e
depois teremos chá com biscoitos.”
Agradeci a Gayatri por me dizer tudo aquilo. Então ela me con­
vidou para o satsang pequeno naquele dia. Aceitei alegremente, es­
pantada pelo medo ter desaparecido de repente. Gayatri olhou no
relógio, e então desceu os degraus para esperar mais embaixo, na
pista. Estava se aproximando a hora do início de satsang, e eu já
sabia que Gangaji era notoriamente pontual. Então vi Gayatri jun­
tar as mãos em um namastê, enquanto um Toyota sedan parava em
frente aos degraus, na hora certa.
Não tinha qualquer expectativa de que Gangaji diria alguma coi­
sa, nem mesmo de que me reconheceria. Minha missão era apenas

146

AS ROSAS

entregar-lhe o pacote. Mas, quando ela saiu do carro e se virou, ao


me ver ali de pé, disse: “Ah, Amber! Estou tão feliz que você esteja
aqui! Trouxe a sua carta,” ela disse calmamente, com a carta na mão,
“e vou lê-la hoje.”
Eu engasguei. Ler a minha carta!
Dois homens saíram do carro depois dela, e mais tarde John me
disse que eram Lee (o motorista) e Eli (o marido de Gangaji), mas,
naquele momento, não vi nenhum dos dois. Meus olhos estavam
totalmente fixos em Gangaji, enquanto ela subia os degraus em mi­
nha direção. Aquela estranha sensação de câmera lenta e ausência de
tempo recomeçara. Quando ela chegou perto o bastante, estendi o
pacote em sua direção. “De Maitri”, disse em voz baixa.
“Que bom!” Ela sorriu, e pegou o pacote despreocupadamente.
Ele mal tocou suas mãos, e foi transferido para um dos homens que
estavam atrás dela.
“Vamos deixar isto no carro por enquanto,” disse ela para o ho­
mem que pegou o pacote.
Quando Gangaji passou por mim, deu-me um sorriso radiante
e pousou sua mão em meu rosto, dando-me palmadinhas suaves.
“Estou tão feliz em ver você aqui,” ela disse. Então desapareceu den­
tro do camarim que fora preparado para ela em uma pequena ante­
sala perto da entrada do ginásio. Enquanto me conduzia de volta ao
ginásio, passando pelo corredor, John perguntou, caçoando: “Posso
tocar você?”
Eu estava em meio a um entorpecimento extático. “Eu não sabia
nem mesmo se ela se lembraria do meu nome,” gaguejei em um
sussurro.

147
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

De volta ao ginásio, corri até o meu lugar, para estar sentada


quando Gangaji entrasse. Mal havia me sentado quando ela subiu
na plataforma, sentou-se de pernas cruzadas no sofá, e fechou os
olhos.
Sentamos em silêncio durante uns vinte minutos. Sentia-me es­
tranha, como se não estivesse ali, ou como se estivesse em toda par­
te. Na verdade, não parecia haver qualquer diferença.
Depois do silêncio, Gangaji cumprimentou a todos:

Bem-vindos ao satsang. Bem-vindos.


Tenho duas cartas que quero ler, pois realmente indi­
cam, em seus modos particulares, aquilo que é universal e
que, realmente, não pode nem mesmo ser indicado.

Ela começou a ler:

Querida Gangaji:

Como não sei se vou erguer minha mão para lhe fazer um
relato, gostaria de escrevê-lo. Sou muito grata por você estar
aqui em Santa Fé, e por nosso tempo, todo o nosso tempo
juntas. Estou aprendendo tanto, mas não é um aprendizado
com a cabeça. Parte do que estou aprendendo é envolvimento.
No início, quando vinha aos satsangs, eu só aparecia se fosse
conveniente, e ficava na periferia. Que analogia com a minha
vida!
Conforme cresceu meu compromisso em estar aqui, tam­
bém cresceu meu compromisso com o ser, esta doce e admi­
rável vastidão que eu sou. E também se trata de uma entrega
contínua, não é?

148
AS ROSAS

Ela ergueu os olhos e disse:

Sim. Está certo. Geralmente, há uma tendência a dizer


“Ah, eu me entreguei àquilo. Ah, sim, eu fiz isto, dez anos
atrás, ano passado...” [risos] “Ah, sim. Eu vi a verdade e
me entreguei a ela.”
Mas isso, a Verdade, é uma entrega contínua. Este é o
desafio desta experiência de encarnação. Esta é a alegria,
a vitória. Vitória na entrega.

Ela continuou lendo:

Percebi que até mesmo os pontos de referência do ser devem


ser entregues. Então, há exaltação e deslumbramento.

Ergueu a carta e disse:

Excelente!

Então pegou outra carta. Era a minha. Quando começou a ler,


esperei que surgisse um sentimento de vergonha, embaraço, medo
ou qualquer outra coisa. Mas não havia nada. Apenas vastidão e
paz. Quando chegou ao P.S. no final, onde perguntava se estava
escrevendo cartas demais, ela olhou para mim e disse, da maneira
mais amorosa e suave:

Não. Demais não. Demais não. A medida certa.

Então, ela leu outra carta com um conteúdo semelhante, sobre


149

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

entrega, intenso amor e apego a ela. O autor tinha percebido que


isto também devia ser entregue.
Sentia que poderia ter escrito todas as três cartas, ou que poderia
não ter escrito nenhuma delas. Não sentia diferença entre quando
ela lia a “minha” carta ou quando lia as cartas dos outros. Não havia
sentido de propriedade, nenhuma sensação de um “eu”, apenas a
vastidão que incluía tudo. Percebi que alguma coisa profunda tinha
acontecido quando ela deu palmadinhas no meu rosto, pouco antes
do satsang. O único modo como posso descrevê-lo é que a iden­
tificação com a mente e a personalidade haviam tombado. Assim
mesmo. Desapareceram.
Naquele dia, no final do satsang, depois que Gangaji havia dei­
xado o salão, anunciaram que o satsang pequeno tinha sido cance­
lado por Gangaji. Senti um certo desapontamento, mas também
havia o humor em reconhecer a ironia desta peça divina. Quando
finalmente havia me entregue, ao ponto de ir ao satsang pequeno,
ela o havia cancelado.
Depois do satsang, esperei John terminar suas tarefas, porque ele
se oferecera para me levar ao local onde Lee estava hospedado, para
que eu pudesse entregar-lhe sua bagagem. Acabei descobrindo que
era a casa de Govind e Gayatri.
Quando chegamos, um homem com um sotaque inglês, chama­
do David, saiu da casa e ajudou John a tirar as coisas de Lee da mala
do carro. Enquanto os dois carregavam a bagagem para a casa, fechei
a mala e percebi um homem com cabelos grisalhos de pé ao lado
do carro, me observando. Não soube imediatamente que aquele era
Lee. Embora ele estivesse dirigindo o carro de Gangaji naquele dia

150

AS ROSAS

e devesse ter passado por mim do lado de fora do ginásio, eu não o


vira. Não vira nada além de Gangaji.
Agora eu estava olhando para ele, ali de pé, com uma presença
muito quieta. Ele perguntou se eu era a Amber que tinha trazido
as coisas dele. Quando confirmei com a cabeça, ele me agradeceu
e ficou ali um momento, completamente sem expressão, olhando
fundo nos meus olhos. Naquele momento, vi o seu “ser”: uma alma
bela e amorosa, mas que estava um pouco perturbada naquele mo­
mento. Então, uma outra coisa incomum aconteceu. Ouvi alguns
de seus pensamentos, tão claramente como se os dissesse para mim,
embora seus lábios não tivessem se mexido. Era uma experiência
estranha e eu não tinha qualquer idéia do que significava. Desviei o
olhar dele, porque seus olhos eram intensos demais.
John e David voltaram, e ficamos diante da casa de Govind, con­
versando sobre satsang e sobre Gangaji. Logo em seguida, percebi
que Lee desaparecera, tão silenciosamente quanto havia aparecido.
Pensei: “Que pessoa estranha.” Mesmo assim gostei dele, reconheci­
o e senti que era um amigo, talvez de muito tempo atrás.
John estava conversando com David sobre uma reunião que al-
guns voluntários estavam organizando na casa de alguém. Ele per­
guntou se eu poderia ir e cantar “River Ganga” para eles. Sugeriu
que eu lhes ensinasse o refrão, e então eles poderiam me ajudar a
cantar no dia seguinte, no satsang. Geralmente não sou chegada a
festas, mas estava me sentindo tão ilimitada, que não tinha impor­
tância o que fizesse ou não fizesse. Tudo estava imóvel e pleno de bem­
aventurança, tudo me lembrava de Gangaji. Também gostei da idéia de
ter ajuda para cantar no dia seguinte, portanto fui com eles à festa.

151

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Quando chegamos, o homem que tinha sonhado com o tigre em


Estes Park nos recebeu à porta. Ele e sua esposa tinham vindo do
sul do Colorado. Durante a noite, tive a oportunidade de dizer a ele
como seu sonho fora importante para mim, e como a resposta de
Gangaji tinha me levado a fazer uma pergunta muito importante:
a pergunta mais importante de minha vida. Depois de um pouco
de socialização, cantei “River Ganga” e ensinei o refrão a todos. Eles
prometeram me ajudar a cantar no satsang do dia seguinte.

Na tarde seguinte, logo depois que Gangaji abriu o satsang,


Gayatri foi a primeira a erguer a mão. Gangaji, com um ar de sus­
peita, perguntou:

Sim, Gayatri?

Em vez de fazer uma pergunta, Gayatri levantou-se e aproxi­


mou-se do sofá, levando uma linda guirlanda de rosas nas mãos.
Respeitosamente, colocou as rosas no pescoço de Gangaji.
Gangaji riu:

Ah, ah... Lá vamos nós...

Gangaji suportou a atenção com paciência e graça, embora es­


tivesse claro que ela não queria que o dia do seu aniversário fosse
tratado de modo especial. Depois que a guirlanda estava conforta­
velmente pendurada em seu pescoço, ela agradeceu a Gayatri e a
todos e tirou um tempo para admirar as rosas.

152
AS ROSAS

Lindas rosas de Santa Fé.

Então, como sempre, aproveitou a ocasião para dizer as mais


belas palavras de Verdade.

Se esta é a sua primeira vez aqui, você pode estar se


perguntando o por quê de toda essa confusão. [risos] Isto
tem a ver com ver e ser visto, e o amor que naturalmente
se revela no verdadeiro ato de ver e de ser visto.
Uma vez uma pessoa me perguntou se eu me importa­
va com todas estas pessoas devotadas a mim. E eu tive que
responder com a verdade: “Mas elas não são devotadas
a mim. Elas são devotadas àquilo que vêem em mim e
àquilo que vê através do “eu”; aquilo que vê através destes
“eus” em particular. Que vê o ato de ver.” Este é o meu
próprio Ser. Finalmente, posso dizer que, na verdade, fico
muito feliz por amar meu próprio Ser, em todo lugar
onde pareço ir, em todo lugar onde apareço.
Fico feliz em descobrir o meu Ser aqui em Santa Fé.
Em ver o meu Ser aqui. Em acolher o meu Ser e convi­
dá-lo a penetrar mais profundamente na realização do
Ser único: o Ser único que existe além da unidade e da
multiplicidade, e inclui tanto a unidade quanto a multi­
plicidade. Eu mesma sou devotada Àquilo.
Portanto, mais uma vez, se esta é a sua primeira vez
aqui, só para que não haja nenhum mal-entendido,
quando digo meu “Ser”, não estou falando de pensamen­
tos, não estou falando de emoções, não estou falando de
sensações físicas, não estou falando de circunstâncias. Es­
153
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

tou falando daquilo no qual tudo isto surge, aquilo pelo


qual tudo existe e ao qual tudo retorna.
E é isso que vejo em você. Isso é o que amo em você.
Qualquer que seja o seu nome, esta é a verdade de você.
Qualquer que seja a história de vida em particular de
que você se lembra, esta é a verdade de quem você é. E eu
vejo isto alegre, jubilosa e devotadamente.
E não vou aceitar quaisquer desculpas de sua parte, de
que você não consegue ver isso. [risos] Você é isso, portanto
é claro que não pode vê-lo. E, quando vir com clareza,
você verá o Amor. Não o amor da maneira como você
pensa sobre o amor. Mas o Amor como ele é. O Amor
implacável, universal, brincalhão e sério.
Nesta altura, você tem a oportunidade de ser devotado
Àquilo que vê. E viver Aquilo e dar Aquilo. Em outras
palavras, você tem a oportunidade de ser o próprio Amor.
Aquilo pelo qual você procurou, clamou, barganhou, se
vendeu: isso é quem você é. É diante d’Isso que eu me
inclino.

Então ela inclinou a cabeça diante de todos nós, e ouvi todo o


ginásio respirar com reverência.
Minha amiga e anfitriã, Tanya, estava sentada perto de mim,
pois ela e John haviam combinado de se sentar ao meu lado naquele
dia, um de cada lado, e segurar os microfones enquanto eu cantasse.
Tanya ergueu a mão, pedindo para falar, e Gangaji aquiesceu.

Tanya começou: “Oi, Gangaji.”

154
AS ROSAS

Oi.

“Espero conseguir falar com você sem chorar desta vez.”

Ah, por favor, chore. É lindo chorar enquanto se fala,


assim como rir.

“Não podia deixar você ir embora de Santa Fé sem...” sua voz


começou a falhar por causa da emoção, “... sem expressar esta gra­
tidão eterna. Desde o retiro de Estes Park, quando me comprometi
em me casar com a Verdade, houve um profundo desemaranhar.
Todas as inverdades nas quais eu acreditava se revelaram com muita
força, em voz alta. E sinto que, pela primeira vez, tenho esperança;
sinto que você me indicou o caminho da verdadeira sanidade, e...
você sabe que eu fiz terapia, e todas estas coisas de auto-ajuda, etc, e
pensava que tinha encarado a minha raiva e a minha vergonha; mas
na verdade só as tinha tocado de leve, ainda as estava mantendo à
distância. E uma coisa que você disse penetrou muito profunda-
mente em mim. Você disse: ‘sem negar nem descarregar’.”

Gangaji ficou extasiada:

Finalmente, fui ouvida! [risos] Eu disse isto milhões de


vezes! Nunca ouvi isto de volta! Excelente!

“Penetrei em um espaço profundo.”

Sim, deve ter penetrado.


155
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

“E percebi que, mesmo na terapia e outras coisas, ainda estava


tentando tirar aquilo de mim. Como se tivesse que por para fora
toda aquela raiva. ‘Um dia terei socado travesseiros o bastante, e
então finalmente pararei de odiar a minha mãe’.”

Sim, “E ENTÃO tudo estará bem.” Sim! Sim!

“E em vez disso... Escrevi-lhe uma carta esta semana, contando


sobre este novo compromisso que estou assumindo, de realmente
encarar a vergonha e a raiva. E ontem tive uma experiência, como
em milhões de outras vezes na minha vida: uma coisa banal acon­
teceu e provocou o surgimento de raiva e vergonha. E, em minha
mente, em vez de dizer para a pessoa com quem eu estava: ‘Está
bem, você é responsável por isto; agora conserte,’ ou ‘Conserte a
mim’, ou seja o que for, eu apenas disse: ‘Todos estes sentimentos
estão surgindo e eu sei que você não é responsável,’ e fiquei sozinha
para lidar com eles. É a coisa mais espantosa; esta é a sua promessa!
Esta é a sua PROMESSA! A raiva e a vergonha se dissolveram no
nada. E, depois disto, há apenas esta nova clareza e amor, e há o ver
com estes olhos. E eu simplesmente sou livre.”

Sim! Sim! Aleluia! Aleluia! É isto. Esta é a promessa.


Esta é a garantia.

“E este grande dom da sua presença aqui, refletindo... não, você


sendo meu próprio Ser... estou vendo meu próprio Ser em toda
parte, e esta infinitude...”

156
AS ROSAS

Isso mesmo!

“Obrigada por esta benção eterna, esta eterna Graça. Que gran­
de sorte, estar nesta vida e ter isto: ter satsang com você. Você tem
toda a minha gratidão.”

Sim. Que grande sorte! Reconhecer isto. Sim. Esta é a


gratidão ao meu mestre. Foi isto que eu disse a ele. E ele
me falou sobre a gratidão a Ramana. E Ramana é Aquilo
que reside no coração de todo ser. Aquilo que está em seu
coração, no coração dos corações, no âmago do seu ser.
A Verdade pura, pristina, revelando a si mesma no seio
da raiva, no âmago da vergonha, da bem-aventurança,
no âmago do orgulho, quando estes são vivenciados di­
retamente. E sendo encoberta quando estes são negados,
ignorados, explicados, justificados.
Sim, sim. Esta gratidão. Assim como não há limite
para este envolvimento pelo Ser, esta gratidão não tem
fim. Esta gratidão é samadhi. Ela é um samadhi des­
perto, no estado regular. E, quando todo o sofrimento de
todo o passado encontra esta gratidão, ele se prostra, e
revela a si mesmo como também sendo gratidão.
Que sorte. Que existência de sorte. Tudo conduzindo a
isto, apoiando isto. Tudo apoiando isto. Não tudo aquilo
que lhe aconteceu, exceto as coisas ruins. Elas também
apóiam isto. Esta é a implacabilidade da Verdade. A ab­
soluta não-sentimentalidade da Verdade.
Sem fim. Esta é a promessa. Sem fim. E você também
vê, sem começo; sempre foi assim. E deste modo, esta iden­
157
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

tificação com “eu sou isto que nasce”, portanto “eu sou isto
que está sujeito à morte” é cortada. Naturalmente. Não
porque você pega um facão psíquico e a corta fora. Ela é
cortada porque é apenas um pensamento. E um pensa­
mento não é nada. É ilusão. Claro que este pensamento
pode causar uma enorme experiência de sofrimento. Mas,
quando esta experiência de sofrimento é vivenciada, o
próprio sofrimento também revela não ser nada. Nada!
Esta é a natureza da investigação direta, da “Auto­
investigação”. Isto é Auto-investigação: ver a si mesmo
em toda parte, em todas as formas, em todos os estados,
em todos os graus. E este mistério da revelação naquilo
que é eternamente revelado é a dança da vida. Esta é a
promessa, o potencial desta experiência de encarnação. E
é isso que nós celebramos. Que mistério! Que casamento!
Esta experiência de encarnação casada com aquilo que
nunca nasce. Verdadeiro casamento. Verdadeiro Amor.
Verdadeiro Ser.
Que relato! Isto é satsang! Quando você fala assim, está
declarando a Verdade. Você não se satisfaz em declarar
repetidamente a mentira, a esperança da verdade ou a
crença na verdade. Você simplesmente pára de dizer a
mentira.
Então a Verdade é dita. Você nem precisa falar. Você
apenas fica quieta. A Verdade vai usar suas cordas vocais,
vai usar as suas experiências, o seu intelecto, a sua forma,
a sua mão; ela vai usar a sua caneta e a sua vida para
dizer a Si mesma.

158
AS ROSAS

Após mais algumas perguntas e relatos, os organizadores da festa


fizeram um sinal a Gangaji, indicando que estavam prontos para
começar. Ela perguntou alegremente:

Ah, Amber vai cantar agora?

Aparentemente, tinham dito a ela que eu iria cantar, e ela parecia


muito feliz com isto. Então, cantei primeiro. Havia quase quinhen­
tas pessoas presentes. E posso dizer que, de verdade, nunca, em toda
a minha vida, me senti tão relaxada ao cantar. Todo o medo ao qual
estava acostumada a ceder, de repente não tinha mais poder. Eu o
vi meramente como um hábito mental, como uma velha fita que
continuou tocando porque alguém esqueceu de desligá-la ou uma
galinha cuja cabeça foi cortada, mas que continua correndo em cír­
culos pelo quintal. Percebi que a sua “realidade” vinha se desvane­
cendo desde o momento em que olhara nos olhos de Gangaji pela
primeira vez.
Quando cheguei ao último verso da música, percebi que nin­
guém estava cantando comigo. Todas as pessoas a quem tinha en­
sinado a música deveriam estar me ajudando, pelo menos durante
o refrão; mas o salão estava em silêncio, exceto pela minha voz e o
violão. Perguntei a uma delas mais tarde o que acontecera, e ela me
disse que todos tinham ficado tão comovidos com a música que
estavam em lágrimas e não conseguiam cantar. Quando terminei
a música, olhei para Gangaji. Seus olhos ainda estavam fechados.
Quando ela finalmente os abriu, olhou para mim com um sorriso.

Muito bom, muito bom, muito bom.


159
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Juntei as palmas das mãos em um namastê e inclinei a cabeça


para ela. Naquela reverência, mais uma vez, percebi que não havia
separação entre ela e mim; não havia uma pessoa se inclinando e
outra pessoa a quem se inclinar. Era apenas o Ser. Era tudo Um. Na
verdade, todo o salão era Um, tudo era o meu Ser. Foi por isso que
não pude ficar nervosa ou ter medo. Como se pode ter medo dentro
de Si mesmo?
Mais duas pessoas cantaram, e Gangaji agradeceu a cada uma
abundantemente. Então, ela juntou as palmas das mãos e disse: Om
Shanti, convidando todos a ficarem para o chá e biscoitos depois.
Isto encerrou a série de satsangs em Santa Fé em 1995.
De olhos fechados, sentei-me em silêncio, com meu violão no
colo, enquanto Gangaji e os voluntários do satsang deixavam o gi­
násio. Meus olhos ainda estavam fechados quando, de repente, senti
o cheiro forte e maravilhoso de rosas perto de mim. Abri os olhos e
vi Kathy, uma das voluntárias, colocando as rosas em torno do meu
pescoço.
“Gangaji quer que você fique com elas,” Kathy cochichou. Meu
queixo caiu de admiração e surpresa, e meu coração se escancarou
de amor. Eram as rosas que tinham sido penduradas no pescoço de
Gangaji durante o satsang.

160

A ESPADA

Na viagem de volta para Boulder naquela noite, as rosas segui­


ram sobre a tampa de uma pasta grande que ocupava a maior parte
da parte traseira da minha caminhonete. Dentro da pasta estavam
os quadros com fotos de Ramana e Papaji, que adornaram o salão
do satsang durante todo aquele mês em Santa Fé. Eles tinham me
pedido para levar as fotos de volta para Boulder, já que eu tinha
uma caminhonete e a pasta com os quadros não cabia em um car­
ro comum. De vez em quando, eu olhava para as rosas, secando
ao vento quente enquanto eu dirigia. Eu as guardaria para sempre.
O fim de semana tinha sido perfeito. Tudo que acontecera fora
absolutamente perfeito: Gangaji, os novos amigos, os satsangs. Não
tinha ocorrido nenhuma identificação com a mente, nenhuma perso­
nalidade, nenhuma idéia preconcebida sobre mim mesma para atra­
palhar. Apenas o silêncio e a vastidão do Ser, expressando-se sem qual­
quer esforço em todas as minhas ações, em minha fala e circunstâncias.
Eu refletia comigo mesma: a Vida podia ser assim, o tempo todo.
Também tomei consciência de uma apreensão sutil, de
que talvez não fosse capaz de conservar aquilo; de que es-
tar na presença física de Gangaji era muito importante para
que este estado de ausência da mente pudesse ser mantido.
Enquanto seguia pela Interestadual 25, rumo ao norte, senti
um arrepio em meu coração, sabendo que agora Gangaji voltaria
para Boulder, onde ficaria todo o verão. Haveria satsangs quatro

161

vezes por semana. Alguma coisa dentro de mim disse: “Espera aí!
Isso não é o bastante! Quatro vezes por semana não é suficiente.”
Meu desejo de estar perto dela não podia ser satisfeito sentando
em satsang apenas quatro vezes por semana. Queria estar perto
dela a cada momento que fosse possível. A decisão de tentar ar­
ranjar um emprego como sua faxineira, jardineira ou qualquer
outra coisa, começou a se formar em minha mente. Já havia dito
às pessoas da Fundação que estava disposta a fazer qualquer coisa.
Olhei para as minhas rosas. Elas enchiam o carro com seu aro­
ma celestial. A meio caminho de Boulder, uma coisa incomum em
relação às rosas começou a se revelar para mim. De repente, parecia
que elas não eram exatamente o que o meu ser pessoal queria que
fossem. Tinha a sensação de que o que parecia estar acontecendo no
presentear das rosas não era realmente o que estava acontecendo.
Em um nível, as rosas significavam que Gangaji havia me atraído
mais para perto de si e que eu havia me aberto mais profundamen­
te. Sentia-me abraçada por ela novamente, envolvida pelo Ser mais
uma vez, como me sentira em Estes Park. Entretanto, a tendência
da mente era tentar aprisionar tudo aquilo na memória e projetar
um significado pessoal. Mas estava claro que havia algo que não
podia ser capturado daquela maneira, alguma coisa não localizá­
vel, inimaginável, incompreensível. Um assustador “saber” dentro
de mim, um presságio, alertava-me de que algo mais estava aconte­
cendo, algo que eu ainda não percebera. As rosas significavam mais
do que um abraço e um beijo da mestra. Significavam algo imenso
e vasto, calculado para me aniquilar ainda mais completamente.
Quando cheguei em casa, nossos dois gatos ficaram felizes em

162

A ESPADA

me ver. Achala viera visitá-los algumas vezes durante a minha au­


sência, mas eles tinham ficado a maior parte do tempo sozinhos.
Um recado de Toby na secretária eletrônica pedia-me para ligar
para ele em Massachussetts. Quando consegui encontrá-lo, ele
me informou que decidira ficar mais uma semana em Cape Cod.
A mãe dele ia ficar na casa de praia durante o verão e precisava
de sua ajuda para a mudança. Disse a ele que estava tudo bem.
Eu precisava ficar o maior tempo possível sozinha naqueles dias.
Grande parte do tempo eu passava sentada; sem meditar, ape­
nas sentada em silêncio. Na verdade, mesmo quando tentava me­
ditar, o mantra vinha apenas por alguns momentos, e então de­
saparecia na vastidão silenciosa. Inicialmente, isto me aborreceu
e eu tinha medo de que não seria mais capaz de meditar como
antes. Afinal de contas, tinha dedicado três a quatro horas por
dia a esta meditação, durante mais de um quarto de século. Era
chocante ver que ela havia desaparecido assim de repente. Mas
não havia nada que eu pudesse fazer. O mantra simplesmente
não aparecia; ou, se surgia, permanecia apenas alguns instantes.
Mais tarde, descobri que esta mesma experiência acontecera com
Papaji, pouco depois de encontrar seu próprio mestre, Sri Ramana
Maharshi. Ele havia dedicado japa (repetição dos nomes do Senhor)
a Krishna durante vinte e cinco anos; mais ou menos o mesmo tem­
po em que eu havia meditado. Ele fazia japa todas as manhãs, de
2:30 às 9:30, quando sua mulher vinha chamá-lo para ir trabalhar.
Entretanto, pouco depois de conhecer Ramana, ele pecebeu que o japa
não aparecia mais. Quando se sentava para meditar, só havia silêncio.
Papaji estava morando em Madras naquela época e pergun­

163

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

tou a vários professores da região sobre esta estranha ocorrência,


mas não obteve nenhuma resposta satisfatória. Todos eles queriam
que Papaji viesse aos seus satsangs e seguisse suas práticas e ensina­
mentos, como uma cura para esta repentina inabilidade para me­
ditar. Mas Papaji suspeitou que esta não era a resposta verdadei­
ra. Finalmente, viajou até Tiruvannamalai para ver Ramana e, na
primeira oportunidade, perguntou ao Mestre sobre a sua incapa­
cidade de meditar. Ramana pemaneceu em silêncio durante algum
tempo e, finalmente, perguntou a Papaji: “Como você veio aqui
para o ashram?” Papaji respondeu: “De trem.” Ramana pergun­
tou: “Onde está o trem agora?” Papaji disse: “Na estação, é claro.”
Então Ramana perguntou a Papaji como ele viera da estação até o
ashram. Papaji disse: “Aluguei um carro de boi.” Mais uma vez, Ramana
perguntou: “Onde está o carro de boi agora?” Papaji estava ficando ir­
ritado e respondeu com impaciência: “Eu o mandei de volta à cidade.”
Ramana então sugeriu que, quando chega ao seu destino, a pes­
soa não precisa mais do veículo. Papaji finalmente entendeu: japa
era o veículo que naturalmente é deixado para trás quando se alcan­
ça o destino. Ao ver o reconhecimento de Papaji, Ramana acrescen­
tou estas palavras confirmadoras: “Você chegou.”*

Após meu retorno de Santa Fé, a mente continuou completa­


mente “desaparecida” durante mais alguns dias. A atividade ocorria
sem esforço, plena de alegria, movendo-se em um silêncio e um
amor imóveis. Eu ajudava na Satsang Foundation & Press e me
concentrava em duas tarefas pessoais que precisavam de minha
atenção. A voz interior, que se tornara tão familiar e agora soava

164

A ESPADA

como Gangaji, tinha me dado duas firmes instruções depois do reti­


ro de Estes Park. Nenhuma delas eu desejava cumprir. Mas elas não
podiam mais ser ignoradas. A voz tinha uma autoridade constran­
gedora. Uma das instruções era que eu devia fazer um tratamento
dentário, que vinha adiando, e a outra era vender o meu cavalo.
Eu criara Starlight (Luz Estelar) desde que ela era recém-nascida
e apegara-me a ela antes mesmo do seu nascimento. Enquanto seu
corpo crescia e amadurecia durante os onze meses no útero de mi­
nha égua, sentia sua alma descendo, vindo até nós das estrelas. Mas
a voz do Ser era mais forte do que o apego a ela. Cavalgar agora é pe­
rigoso demais para você. Esta forma não é sua para fazê-la correr riscos.
Havia uma resistência a esta instrução, à autoridade dela. Mas, fi­
nalmente, me lembrei: “Esta é a minha própria voz falando.” E cedi.
Embora Starlight e eu tivéssemos uma linda relação de confian­
ça, ela era realmente jovem e um pouco brava. Embora eu adiasse
seguir a instrução para vendê-la e a contestasse de vez em quan­
do, só havia montado duas vezes desde Estes Park, em momen­
tos nos quais estava dominada por um sentimento de rebeldia.
Agora eu havia me esforçado para encontrar um novo lar para
ela, o que inicialmente parecera uma tarefa monumental. Não po­
dia confiar meu bebê a qualquer pessoa. E o preço que estávamos
pedindo não era compatível com o orçamento do comprador de
cavalos habitual. Starlight tinha sangue de campeã e queríamos que
fosse para alguém que saberia apreciar a sua linhagem e que se in­
teressaria em cruzá-la com um garanhão puro sangue no futuro.
Inicialmente, contratara a treinadora que trabalhara com Starlight
para procurar um comprador perfeito. Achei que ela teria mais con­

165

SURPRENDIDA PELA GRAÇA

tatos com criadores de cavalos do Colorado do que eu. Mas, depois


de várias semanas, ela não tinha conseguido nada e eu tinha a sen­
sação de que não estava realmente se esforçando. Percebi que eu
mesma teria que fazê-lo. Assim que dediquei toda a minha atenção
à tarefa, a compradora perfeita apareceu, rápida e miraculosamente.
Alice e seu marido possuíam um hotel fazenda em uma pequena co­
munidade na montanha, acima de Boulder, que incluía um estábulo
e um restaurante. Eles possuíam trinta cavalos, que eram alugados
para passeios nos fins de semana. Mas Alice estava procurando um
cavalo para si mesma, um cavalo só para ela, com o qual pudesse
ter uma conexão. Ela e Starlight se deram maravilhosamente desde
o início, e o preço que pedimos não era problema para ela. Além
disso, eu teria o privilégio de visitas irrestritas a Starlight, toda vez
que quisesse. O arranjo não poderia ter sido mais perfeito.
Em seguida, tomei providências para fazer o tratamento den­
tário. Eu odiava ir ao dentista e, na verdade, não havia nada de
errado com os meus dentes. Mas um dos meus incisivos era muito
torto desde minha adolescência e, por causa disso, deixara de sorrir
a maior parte da minha vida. Ao longo dos anos, pensara em con­
sertá-lo várias vezes, mas, por causa de minha ansiedade em relação
a tratamentos dentários em geral, sempre acabava decidindo que
não era tão importante assim.
Agora, minha voz interior me garantia que era importante e que
estava na hora de mostrar o meu sorriso. Na verdade, isso não fazia
sentido algum. Quem se importa se eu sorrio ou não? Mas a voz era
forte. Era a voz de Gangaji, era a minha voz, e não havia jeito de
escapar. Portanto, marquei a primeira consulta e o tratamento levou

166

A ESPADA

mais sete ou oito consultas, durante todo o verão, para ser termina­
do. Fiquei surpresa ao ver que não havia mais a ansiedade habitual na
cadeira do dentista. Pois isso também, só existe na mente. Embora
a forte experiência de “ausência da mente” só tivesse durado alguns
dias depois da volta a Boulder, uma vez que a mente havia sido mes­
mo parada, ela nunca mais teria o mesmo poder. Mais tarde, ouvi al­
guém perguntar a Gangaji se o “eu” ainda surgia nela. Ela respondeu:

Uma vez que o Mestre cortou a identificação com este


“eu” que surge, talvez o “eu” nunca mais reapareça e,
talvez ele reapareça; mas, se reaparecer, nunca mais se
acreditará nele totalmente.*

Pouco antes de Gangaji voltar a Boulder, recebi um te­


lefonema de uma mulher chamada Shivaya Ma. Lembrava­
me dela no retiro de Estes Park, porque ela fizera um co­
municado um dia; ela parecia tão constrangida ao fazê-lo,
quanto eu teria ficado. Parecia uma pessoa muito tímida e reser­
vada, e gostei dela imediatamente; senti uma afinidade entre nós.
Shivaya Ma disse que estava me ligando porque precisava de aju­
da para preparar a casa para Gangaji, e na Fundação haviam dito
que eu me oferecera para este tipo de serviço. Ela explicou que ou­
tra casa havia sido alugada para Gangaji em Boulder, mas ela não
estaria pronta antes de mais algumas semanas, e Gangaji chegaria
em dois dias. Então, enquanto isso, a casa de Shivaya Ma seria usa­
da, pois Gangaji já se hospedara nela antes e sentira-se confortável.
Enquanto conversávamos, tive a impressão de que Shivaya Ma
tinha dúvidas de que a casa pudesse ficar pronta a tempo. Ela aca­
167

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

bara de voltar de uma viagem ao Oriente, para o casamento de sua


filha, e ainda nem tinha desfeito as malas. Eu disse que ficaria feliz
em ajudar, e ela me pediu para estar lá no dia seguinte, às nove da
manhã.
Quando me apresentei para o serviço na manhã seguinte, desco­
bri que o projeto era não apenas limpar a casa e trazer as coisas de
Gangaji, mas também transportar as coisas de Shivaya Ma e de sua
família para um depósito. Comecei a trabalhar alegremente, sem
me preocupar com a quantidade de trabalho à minha frente. Nem
mesmo pensava que aquilo era algum tipo de trabalho; havia apenas
esta alegria atemporal, a cada momento, de servir à minha mestra.
Primeiro Shivaya Ma me mandou lavar um dos banheiros. Limpei
aquele banheiro como jamais havia limpado qualquer banheiro.
Mais de uma vez, o pensamento do quão incomum era oferecer-me
para este tipo de trabalho cruzou minha mente. Como meu marido
rapidamente confirmaria, esta personalidade não apreciava trabalho
doméstico. Mas a personalidade estava se rendendo.
Duas outras pessoas vieram ajudar naquele dia, Ray e Shanti.
Assim como Shivaya Ma, a devoção à Verdade e a Gangaji irradiava
claramente destas pessoas e gostei de conhecê-las e trabalhar com
elas. Trabalhamos diligentemente toda a manhã, limpando, esfre­
gando e arrumando, e então paramos para almoçar ao meio-dia.
Shivaya Ma fez sanduíches para nós e nos sentamos na varanda,
comendo e conversando.
Elas também tinham estado em Estes Park, e se lembravam de
mim; elas comentaram sobre a profunda abertura que obviamente
havia ocorrido quando subi para falar com Gangaji naquele dia.

168

A ESPADA

Conversamos sobre Gangaji e sobre como ela irradiava a Verdade


com tanta pureza. Shanti percebeu o meu intenso apego a Gangaji e
disse: “O que você vê nela é o seu próprio Ser. Isto é a Verdade apa­
recendo como Gangaji.” Ray acrescentou: “É a Verdade que você
ama, não a pessoa.”
Entendi que elas estavam me informando delicadamente que
Gangaji não encoraja apego a ela como pessoa. Eu disse: “Eu enten­
do. Mas, vejam só, embora tenha estado com seres iluminados antes
e lido belas expressões da Verdade nos Upanishads e no Bhagavad
Gita, só “peguei a coisa”, só ouvi realmente, quando a Verdade
veio até mim, brilhando nesta personalidade, na forma de Gangaji.
Portanto eu sou apegada, total e completamente apegada. E não há
nada que possa fazer em relação a isso.”
Elas se sentaram em silêncio por um momento depois deste dis­
curso, feito com certa intensidade, e olharam-se entre si, suprimin­
do sorrisos. Shivaya Ma olhou para mim com uma compreensão
amorosa e admitiu: “Nós também somos apegadas a ela.”
Lá pelas quatro horas, a limpeza estava terminada. Ray e Shanti
tinham que ir embora. Mas a mudança “para fora” e a mudança
“para dentro” estavam longe de estar terminadas. Não podia deixar
Shivaya Ma fazer todo o resto sozinha. Ela tentou me convencer
de que ficaria bem, mas eu disse que meu marido estava viajando
e garanti a ela que não havia nada mais que quisesse fazer, além de
ajudá-la. Além disso, Gangaji chegaria no dia seguinte!
Trabalhamos a noite toda, parando de vez em quando para con­
versar ou comer alguma coisa. Estar com Shivaya Ma era como es-
tar com Gangaji, e eu sentia sua Presença intensamente. Toda vez

169

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

que nos sentíamos um pouco cansadas, sentávamos um momento,


e Shivaya Ma me contava uma bela história do tempo que pas-
sou com Gangaji na Índia, ou em Boulder, quando se conheceram.
Instantaneamente, o cansaço se transformava em bem-aventuran­
ça. Já passava das nove quando começamos a transferir as coisas
de Gangaji para o armário no quarto onde ela dormiria. Quando
Shivaya Ma e eu cruzamos uma com a outra no corredor, ela car­
regando suas próprias roupas e eu com uma pilha de roupas de
Gangaji, ela me perguntou como eu estava agüentando. Eu sorri
feliz: “Isto é puro satsang.” Shivaya Ma parecia aliviada. Sabia que
encontrara alguém tão loucamente apaixonada quanto ela.
Trabalhamos até dez e meia naquela noite, e deixamos tudo
pronto. Desde aquele dia, nos tornamos grandes amigas.

Na quinta-feira à noite,
dia 22 de junho, começa­
ram os satsangs públicos em
Boulder. Cheguei cedo e
consegui um lugar na frente.
Trouxera comigo uma carta
para Gangaji, escrita naque­
le dia, na qual contava-lhe
sobre a experiência de can-
tar em Santa Fé, como não
houvera esforço algum e
também sobre a experiência
de “ausência da mente” que
Amber, Toby e Starlight
170
A ESPADA

ocorrera durante e depois daquele fim de semana. Mas, no último


instante, cedi a um pressentimento e decidi não entregá-la. De al­
guma maneira, captei o estado de espírito de Gangaji naquela noite,
antes mesmo dela chegar. O que captei foi uma intensidade feroz e
implacável. E estava certa.
Ela iniciou os satsangs de verão em Boulder assim:

Bem-vindos ao satsang.

Seus olhos percorreram o salão por um momento. A intensi­


dade daquele olhar era suficiente para queimar todo o estado do
Colorado.

Outro dia alguém estava me dizendo há quanto tem­


po estes satsangs com Gangaji vinham acontecendo em
Boulder e eu disse que fazia muito tempo. E ela disse:
Não, na verdade faz apenas três anos.

Neste ponto, Gangaji riu, achando engraçado que aquela pessoa


pensasse que três anos não era muito tempo. Obviamente, Gangaji
achava que era tempo bastante!

Tivemos cinco séries de satsangs em Boulder. E o valor


de se ter satsang formal em um mesmo lugar durante um
certo período de tempo é incomensurável.

Podia dizer de imediato que ela estava falando com este grupo
de maneira diferente do modo como falara em Santa Fé. Naquela

171

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

cidade, era como se estivesse se dirigindo ao “público em geral”.


Geralmente havia pessoas novas, que nunca tinham estado em um
satsang, e Gangaji se apresentava e recebia estas pessoas de maneira
cordial e amistosa. Aqui, ela falava como se fossemos a sua famí­
lia, pessoas com as quais vinha falando há muito tempo, e com
as quais as apresentações, formalidades e afagos tinham terminado.

Portanto, o padrão habitual dos fenômenos é que este


satsang formal aparece na consciência de alguém, e então
surge dúvida ou resistência, ou há um reconhecimento
imediato. Talvez a dúvida ou a resistência transformem­
se em reconhecimento e, então, há um reconhecimento
mais profundo.
Então, geralmente [sorrindo levemente], quando a
lua-de-mel...

O salão explodiu em gargalhadas. Aparentemente, todos já ti­


nham passado pela a lua de mel. Mas eu pensei: “Ela não pode estar
falando comigo. Acabo de conhecê-la. Minha lua-de-mel não pode
ter acabado ainda.” Mas estava encerrada.

...quando os fenômenos, a adrenalina, o êxtase, o es­


panto de perceber que aquilo que sempre esteve presente
dentro de si mesmo é o que sempre se procurou; o absoluto
choque e o espanto podem começar a ser substituídos por
uma leve displicência, por uma idéia de que são uma
coisa líquida e certa, ou por uma sensação de que “Foi tão
fácil no começo; agora está ficando difícil.”

172
A ESPADA

É aqui que o verdadeiro casamento com a Verdade


entra em cena. E vou continuar dizendo que é fácil. É
fácil, se você for fiel à Verdade. Não é fácil, se você for fiel
a fenômenos em particular, não é fácil se você for fiel à
adrenalina ou a certas explosões bioquímicas.
Se for fiel a isto, você continuará seguindo pelo cami­
nho que a existência condicionada tem seguido através
dos tempos. Isto eu prometo. Mas você não tem nem mes­
mo que aceitar a minha promessa como sendo a verdade.
Diga a verdade sobre as suas experiências ao longo do
tempo e verá que é assim.
É uma verdade dura. Porque há uma espécie de idea­
lização infantil sobre como as coisas deveriam ser, apenas
borbulhantes e cintilantes; este é um erro de adolescente.

Engoli em seco. Não me sentia como uma adolescente. Sentia­


me mais como uma criança de seis anos. Queria sentar em seu colo,
ser sua cantora favorita, dormir na soleira de sua porta, alimentar
este sentimento de “estar apaixonada”. De repente, implacavelmen­
te, vi tudo aquilo como simplesmente “fenômenos”.

Mas esta verdade dura, se for encarada com a deter­


minação de ser absolutamente verdadeiro, não é nada.
Ela é fácil. Sem esforço. O esforço, a luta, a queda, vêem
da tentativa de se apegar a algum tipo de fenômeno, ou
de “captar” aquilo novamente, ou em outro lugar. Estes
fenômenos podem ser poder pessoal, excitação sexual, ilu­
minação, poder espiritual; mas é tudo uma armadilha
da mente.
173

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Não há nada de errado com fenômenos. Alguns fenô­


menos são bastante agradáveis, outros são horríveis. Mas
todos os fenômenos são simplesmente fenômenos. E se você
se agarrar a qualquer um deles, se tentar alcançar ou
correr atrás deles, estará seguindo o caminho habitual,
que tem sido percorrido ao longo do tempo. Você estará
seguindo a mente, sutil ou grosseiramente.
Portanto, o valor do surgimento do satsang em sua
consciência, várias vezes seguidas, por um longo período
de tempo, é o de indicar isto. Posso lhe dizer que todos os
livros, todos os mestres, sempre disseram que isto é muito
raro, que um ser desperto é muito raro.
Isto foi verdade no passado: no seu passado e no pas­
sado coletivo. Se isto é verdade no presente e no futuro,
só depende de você, agora. Isto exige uma determinação
que é desconhecida. Ela é tão total que é desconhecida.
E, quando a determinação é tão total, ela é fácil. Você
entende? Bom. Bom.

Novamente, fui tentada a pensar: “Ela não pode estar falando


comigo. Ela sabe que eu quero a verdade. Escrevi-lhe sobre minhas
experiências, minha determinação. Ela gostou das minhas cartas.
Até leu uma delas em um satsang.” Mas ela estava falando comigo.

Você sabe, muitas vezes tenho a oportunidade de ler as


mais preciosas cartas de abertura, de realização profun­
da; e algumas destas cartas são muito profundas... Elas
inspiraram você, inspiraram a mim, a quem quer que as
tenha ouvido em vídeo. Mas, em última instância, estas
174
A ESPADA

cartas não significam nada. Nada. Porque também posso


lhes dizer que algumas das pessoas que escreveram as mais
profundas cartas, na verdade, quando a coisa aperta, ce­
dem à tentação de algum fenômeno.
As cartas exibem a verdade. Mas a sua vida, o modo
como você vive a sua vida é que diz a verdade sobre o
que você realmente deseja. Se o que você deseja realmente
é a Verdade, então viva em total entrega a ela e não a
alguma manifestação fenomenal.
Você pode apreciar as manifestações fenomenais ou pode
odiá-las, mas renda-se à verdade que nenhum fenômeno
jamais tocou e você é livre; sua própria vida é livre, e
ela se torna uma tocha de liberdade. A liberdade não tem
nada a ver com conforto ou desconforto, gostos ou aversões,
excitação ou embotamento. A verdadeira liberdade.
Esta é a oportunidade para todos aqui neste salão.
Porque a verdade de quem você é é esta liberdade. E es­
tas manifestações fenomenais são simplesmente máscaras,
roupas, nuvens passageiras, momentos eletroquímicos.

Este era um discurso implacável, nada sentimental. E descobri


que tanto a minha determinação quanto o meu amor por ela esta­
vam se aprofundando enquanto ela falava.

Portanto, o mais comum é deslizar de volta para o


transe. O mais comum é o que foi atirado fora voltar
de uma maneira diferente, por uma outra porta, prome­
tendo mais glória, mais beleza, mais emoções. O mais
comum é dizer: “Sim. Esperei a vida toda por isto. Volto
175

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

para a verdade mais tarde.” Isto é o habitual.


Desde o meu primeiro satsang em Boulder, venho di­
zendo que isto não é fortuito, que não é trivial. Esta é, na
verdade, a possibilidade mais especial, mais extraordiná­
ria, mais rara, mais incomum da sua vida.
E, nesta possibilidade de abraçar e se render ao poten­
cial mais raro, mais incomum, mais especial, mais extra­
ordinário, você tem o apoio de todos os seres despertos de
todos os tempos, antes do tempo e depois do tempo, em
todas as esferas; e, ainda assim, tudo depende completa­
mente de VOCÊ.
Você é apoiado, estimulado, sacudido, adulado e, ain­
da assim, só depende de você.
Portanto, vou dizer novamente: isto não é acidental.
A verdadeira entrega à Verdade é o ato mais implacável
de uma vida. Ela é a disposição para morrer para todo
o prazer, todo o prazer. É a disposição para morrer para
tudo isso. E então ver o que se recebe. Você não pode mor­
rer para o prazer, com o objetivo de ter mais prazer. Você
já tentou fazer isto. E o que se obtém é mais sofrimento,
com algum prazer.
Alguém me contou sobre uma ocorrência de tentação e
disse: “Oh, mas é tão lindo, é tão... É tão profundo e tão
vasto...” E eu disse: “Você esperava que parecesse um rolo
compressor se preparando para esmagar você?” [risos]
Você deve esperar as exibições mais profundas, vastas
e emocionantes de tentação fenomenal. Você deve esperar
aquilo pelo qual ansiou, nos recessos mais latentes de sua
mente, como se aquilo fosse dar-lhe o que você é.

176
A ESPADA

Quão dolorosamente precisa era a sua leitura dos desejos mais


profundos e secretos de meu coração! Eu mal estava consciente de­
les. A música. Escrevera músicas toda a minha vida e nunca pensara
que haveria qualquer possibilidade de poder cantá-las ou comparti­
lhá-las, por causa de minha timidez. Agora, com esta experiência de
abandono da mente, eu me libertara da prisão do meu nervosismo
e vira que todo o medo era apenas uma ilusão. Finalmente, estava
surgindo a possibilidade de compartilhar as músicas, de ter o meu
talento como compositora finalmente reconhecido, de ter sucesso
afinal. O que poderia haver de errado nisso?
Ela dissera claramente o que poderia estar errado: como se aquilo
pudesse dar-lhe o que você é. Esta é a armadilha. Qualquer coisa en­
carada desta maneira, como se fosse dar-lhe quem você é, torna-se
uma distração, afastando-o da entrega à Verdade do seu Ser.
Naquele momento, abri mão daquele desejo secreto. Não me
importava se nunca mais cantasse ou compusesse novamente. Eu
queria a Verdade do meu Ser.

Seja uma exibição de poder pessoal, como voar ou


levitar, a aparição da alma-gêmea tão ansiada, talvez
ganhar a loteria (você entende?), o reconhecimento ou,
finalmente, algum controle. Todas as tendências latentes,
subconscientes, irão se apresentar, porque elas estão à es­
pera.
Isto não é uma coisa trivial. O que torna isto difícil é
o apego a alguma idéia de gratificação pessoal. Isto em si
é o inferno. Isto é o inferno.
Quando você está disposto... Não digo disposto a ser
177

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

um mártir, para poder ir para o céu; não é disso que


estou falando. Isto não pode ser um martírio. Quando
você está disposto a encarar qualquer tentação, horrível
ou extraordinária, total e completamente, você morre
para todas as fantasias de gratificação pessoal ou de falta
de gratificação pessoal. E descobre a própria gratificação
como sendo QUEM VOCÊ É.

Suas palavras pareciam estar arrancando algo de mim. Era uma


desilusão profunda. Este sentido do pessoal está tão entranhado que
até mesmo com um lampejo de iluminação pode haver a tendência
de capturá-la para o ser pessoal, possuí-la, vangloriar-se, externa ou
internamente, e usá-la como uma realização pessoal. Então, mais
uma vez, ocorre um mergulho no inferno, o inferno da identifica­
ção com a mente.
Uma espécie de morte estava ocorrendo dentro de mim. Eu a
sentia concretamente. Camadas de apego à realização pessoal esta­
vam sendo descascadas; era como se eu estivesse me descamando,
como um lagarto.

Sim. Este é o convite que é feito em satsang. Este é o


convite de Ramana e Papaji. E você pode esperar por isto,
pois será puxado e empurrado, sacudido, atacado pelos
lados e por trás. Receberá presentes de flores e doces. Será
golpeado. Isto se chama Leela. Leela joga pesado.

Tudo estava ficando claro agora: as flores, os doces sorrisos, as


palmadinhas no rosto. Tudo é parte do jogo, tudo é parte da Leela.
178

A ESPADA

Não é o que parece. Haverá testes, para verificar o que realmente se


quer. Ela estava me avisando que iria jogar pesado comigo. Isto não
é trivial. Isto não é fortuito. Entregar-se à Verdade do próprio Ser é
o ato mais implacável de uma vida.

Se você está entregue à Verdade, este jogo só vai empur­


rá-lo mais para dentro d’Aquilo. Se, na verdade, você se
entregou a alguma experiência fenomenal, você será pu­
xado para fora da experiência de seu próprio Ser como a
própria gratificação, e será empurrado na busca do mais,
do diferente, do melhor. Este é o nome do inferno.
Está bem?*

Ela pareceu mais aliviada depois disso e ouviu algumas per­


guntas. Eu até fiz uma pergunta sobre a experiência da ausência
da mente e sua reaparição. Mas a parte mais implacável do satsang
foi quando ela fechou os olhos no final. Nunca a vira fazer isto an­
tes. Geralmente, ela apenas juntava as palmas das mãos e dizia Om
Shanti para encerrar o satsang. Mas, naquela noite, ela fechou os
olhos e, durante um bom tempo, ficou simplesmente sentada em
silêncio conosco.
Eu estava sentada bem na frente dela, apenas algumas filas atrás.
Naquele silêncio, senti-a penetrar em meu coração e rasgá-lo em
pedaços. Juro que senti meu coração sendo realmente despedaçado.
Foi uma dor muito profunda e dilacerante. Comecei a chorar e não
conseguia parar. Chorei todo o caminho de volta para casa e quase
a noite toda.
Quando me arrastei até minha cama, ao amanhecer, estava exaus­
179

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

ta, morta, sacudida até as entranhas, com a coroa de rosas secando


na minha mesinha de cabeceira. Meu coração sempre se sentira ma­
ravilhado ao olhar para elas, pois eu imaginava que simbolizavam
o amor de Gangaji por mim. Agora elas começavam a parecer mais
como rosas de funeral, do meu funeral, e significavam uma morte
mais profunda do ser egóico. Comecei a me perguntar quantas ve­
zes ele teria que morrer.

180

SEM BUSCAR NEM FUGIR

Quando acordei naquela manhã, senti como se meu coração ti­


vesse sido atropelado por um caminhão. Minha mente estava cheia
de pensamentos, tais como: “No que foi que eu me meti? Não sei se
posso lidar com isto. Sou uma pessoa muito delicada. Talvez precise
de uma mestra que seja mais gentil e amorosa comigo. Não acho
que isso vai dar certo.”
Naquela manhã, eu deveria ir até a casa de Shivaya Ma, para aju­
dá-la com a faxina semanal de Gangaji, mas senti que havia resistên­
cia em mim. Sentia-me horrível. Esbofeteada. Dilacerada. Ela estava
sendo mais cruel comigo do que achava que poderia suportar. Surgiu
um pensamento: “Afaste-se desta mestra; ela está magoando você.”
Então, de alguma maneira, comecei a ver que a resistência era
apenas pensamento. O impulso egóico de buscar sobrevivência e
conforto é tremendo. O organismo humano é condicionado a fu­
gir da dor e buscar o prazer. Portanto, quando a situação torna-se
dolorosa aos pés do guru, o condicionamento é de se afastar, es­
conder-se dentro da mente novamente, voltar-se para alguma coisa
confortável, algo conhecido. Naquela manhã em particular, todo o
condicionamento de milhões de anos contido em minhas células
estava gritando: CORRA!
Por uma misteriosa intervenção da Graça, a Graça de Gangaji,
a Graça desta linhagem, a Graça de todo ser desperto, eu não corri.
Estava cansada de correr. Tinha corrido durante milhões de anos.
Fui à casa de Shivaya Ma e fiz a faxina com Shanti e Ray. Shanti
181
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

me perguntou se eu estava me sentindo bem; provavelmente perce­


bera meus olhos inchados. Eu disse: “Estou bem. O satsang de on-
tem à noite foi muito forte.” Ela concordou. Mas eu imaginei que
ela estava em condições de lidar com aquilo melhor do que eu. Ela
estava com Gangaji há dois anos, até tinha morado com ela por um
tempo e, provavelmente, estava acostumada com esta experiência de
“morte por guru”.
Nos dias que se seguiram, conforme a dor do “assassinato” ia
perdendo a sua agudeza, a coisa mais impressionante aconteceu.
Senti uma liberdade, um relaxamento em relação a qualquer esfor­
ço, uma expansão de consciência, para além de qualquer coisa que
tivesse vivido antes. Eu “parei” mais uma vez, e esta nova profundi­
dade da “parada” trouxe um aprofundamento do reconhecimento
do Ser. Eu também me senti incrivelmente mais próxima desta mes­
tra implacável que obviamente havia facilitado este aprofundamen­
to. Reconheci o que ela tinha feito: ela provocara o afloramento das
tendências latentes da mente, velhos padrões de pensamento egói­
co, na pureza e intensidade do satsang, para que eles pudessem ser
queimados na Verdade do meu próprio Ser. Assim, o amor e a grati­
dão também se aprofundaram. Escrevi um bilhete para Gangaji, re­
latando este aprofundamento e agradecendo a ela. Ela leu o bilhete
no satsang do dia 25 de junho.
Naquele dia, coloquei meu bilhete debaixo da pilha de cartas no
sofá, na esperança de que ele não seria lido durante o satsang. Mas
ela foi direto à base da pilha e pegou a minha carta, como se estives­
se procurando por ela. Quando viu a minha assinatura, ela olhou
para o grupo e perguntou:

182
SEM BUSCAR NEM FUGIR

Onde está Amber?

Ergui minha mão. Ela olhou para mim com uma espressão zan­
gada, de brincadeira, examinou-me por um instante e disse: Muito
bem. E então começou a ler meu bilhete.

Querida Gangaji,

Na quinta-feira à noite, pensei que você estava sendo cruel


demais.

Ela olhou para mim e explodiu em uma gargalhada. Todo o gru­


po riu. Senti-me embaraçada e exposta, mas, de alguma maneira,
não me importei. A atenção dela era preciosa para mim, não impor­
ta a forma em que aparecia. Ainda rindo, ela disse:

Recebi um monte de cartas sobre quinta-feira à noite.

Ela continuou lendo:

Meu coração pareceu que ia se despedaçar. Agora vejo como


era necessário e como isto trouxe uma nova profundidade de
realização e entrega.
Seu aspecto Kali costumava me aterrorizar, mas estou come­
çando a amá-lo também. Obrigada pela sua crueldade, e pelas
rosas também.
Com amor e confiança cada vez mais profundos,
Amber

183

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Ela colocou minha carta no sofá, sorrindo para si mesma, como


se lembrasse de uma coisa divertida.

Sim. Já contei esta história muitas vezes, sobre quando


estive com Papaji pela primeira vez. Eu era o bichinho de
estimação dele, sua queridinha. Ele dizia: “Venha mais
cedo do que os outros.” “Deixe-os ir embora, você fica.”
Então, você sabe, é como se...

Ela fez um gesto como se enfiasse os polegares sob suspensórios


imaginários, inchada de orgulho, e todo mundo riu.

Quem não adora isto? Isto é adorável. É um abraço de


boas-vindas. É como dizer: “Sim, você é a escolhida! Isso
mesmo.”
Então, fiquei longe dele por um tempo, alguns meses,
dois ou três... E quando voltei para vê-lo ...

Ela estendeu os braços, como se estivesse pronta para mais um


abraço. Todo mundo riu.

Ele nem mesmo me convidou para o chá. “O que você


está fazendo de volta aqui tão cedo?” foi o que ele disse.
“Ora, eu voltei para mais, é claro.”
Então senti a bofetada. O que você chama de aspecto
Kali. Que bela bofetada. Que belo aspecto...

Ela olhou para mim.

184

SEM BUSCAR NEM FUGIR

... no caso de alguém pensar que “ser o escolhido” é um


modo especial. Que isto tem uma aparência em particu­
lar. O abraço de boas-vindas é lindo.
Recentemente, em Santa Fé, um entrevistador me per­
guntou: “Quando Papaji viu você, ele a recebeu como “a
escolhida”? Eu disse: “Sim. E cada pessoa que ele recebia
era acolhida da mesma maneira.”
Você verá que, como disse, toda a vida traz “uma nova
profundidade de realização e entrega.” Toda a vida. As
boas-vindas, o beijo, a rejeição, a bofetada. Então você
é livre. Livre para uma realização e uma entrega mais
profundas, mais amplas, maiores, mais altas, menores,
mais sutis, mais sublimes.
Muito bem, Amber.*

Eu podia ver que ela estava satisfeita comigo naquele dia. Eu


tinha recebido um golpe da espada do guru e não tinha corrido.
Mas eu não tinha qualquer ilusão de que permaneceria assim por
muito tempo. Eu via que ela iria me empurrar rápido e com for­
ça, sem perder tempo comigo. Estava grata por isso e, ao mesmo
tempo, ainda abrigava um medo subjacente de que não agüentaria.
Naquela altura, já ouvira histórias sobre a ferocidade de Papaji para
com ela e não me considerava tão forte quanto ela, ou tão capaz de
suportar o mesmo tratamento.
Poucos dias depois, senti a força de sua bofetada novamente.
Uma manhã, sentada do lado de fora do salão do satsang, fiz ami­
zade com Terry, que era a cozinheira de Gangaji. Ela estava procu­
rando alguém para cozinhar nos seus dias de folga e me encorajou a

185

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

experimentar. Inicialmente, eu nem quis considerar a possibilidade.


Eu cozinhava comida vegetariana há 27 anos, mas minha comida
era muito simples e, na opinião do meu marido, mais para insípi­
da. Quando mencionei minhas dúvidas a Terry, ela disse: “Isso é
ótimo! Gangaji adora comida insípida!” Então conversamos sobre
isso durante algum tempo e acabei concordando em deixar Terry
experimentar alguns de meus pratos.
Nós estávamos sentadas bem próximo ao início da fila naquele
dia. Terry disse que estava determinada a sentar-se na primeira fila.
Eu disse a ela que nunca tinha me sentado na primeira fila. Era
preciso uma certa agressividade para conseguir um lugar tão perto
de Gangaji e isto não era típico de minha natureza. Além disso, sen­
tar tão perto de Gangaji provavelmente me faria sentir-me exposta
demais. Terry disse que não tinha nenhum problema com isto e,
quando as portas se abriram, ela conseguiu um lugar bem na frente,
no tapete bem em frente aos pés de Gangaji, e eu acabei sentando
umas duas fileiras mais atrás.
Mas eu devia estar destinada a me sentar na frente naquele dia,
porque Terry, um homem chamado Steve e outro chamado Hal,
que estavam sentados no tapete naquele dia, mudaram suas posi­
ções de modo a arranjar um lugar para mim, bem na frente e no
centro. Hesitei em aceitá-lo, porque era perto demais, bem aos pés
dela, e já podia sentir o surgimento da timidez e dos sentimentos de
exposição. Mas havia tanta pressão sobre mim para que me sentasse
naquele lugar, que acabei cedendo.
Naquele dia, éramos umas cinco ou seis pessoas, sentadas no
tapete, em semi-círculo aos pés de Gangaji. Durante o satsang,

186

SEM BUSCAR NEM FUGIR

Gangaji fez questão de dar um grande sorriso para cada uma das
pessoas sentadas no semicírculo, exceto para mim. Na verdade, ela
nem mesmo olhou para mim. Seus olhos passavam por mim sem
me ver, todas as vezes. Um sentimento de rejeição começou a surgir
dentro de mim. Então, o impulso tão familiar de evitar a rejeição
surgiu rapidamente, para contrabalançar. “Eu não ligo. Não preciso
que ela olhe para mim.” Este era um padrão de minha personalida­
de que se manifestara durante toda a minha vida, em todos os meus
relacionamentos. “Se machucar, dê o fora. Você não precisa disso.”
A primeira vez que lembro na qual este padrão apareceu foi com
minha mãe, quando tinha cinco anos. Acidentalmente, quebrei uma
garrafa de leite no alpendre de nossa casa. Ela ficou muito zangada e
gritou comigo. É a primeira vez que me lembro dela ter ficado real-
mente furiosa comigo. Contendo minhas lágrimas, fui para o meu
quarto. Sentimentos de rejeição estavam surgindo, e eu não estava
disposta a senti-los. Então surgiu a defesa: “Eu não preciso disso.
Vou dar o fora daqui.” Coloquei meu pijama e um urso de pelúcia
em minha malinha e saí de casa silenciosamente.
Andei uns quatro quilômetros, atravessando um campo aberto
e um bosque, até a casa de minha avó, onde passei a noite. Só mais
tarde percebi que mamãe tinha mandado meu irmão mais velho me
seguir, para ver se eu chegava lá a salvo, e minha avó também tinha
ligado em segredo para meus pais, dizendo que eu estava bem e que
podia passar a noite com ela. O incidente foi esquecido no dia se­
guinte, quando vovó me levou para casa, mas aquele padrão perma­
neceu durante toda a minha vida: fugir de sentimentos desconfortá­
veis, de pessoas desarmoniosas ou de circunstâncias desagradáveis.

187

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Sentada em frente a Gangaji naquele dia, sentindo a rejeição, o


impulso de fugir surgiu. Senti meu coração encolhendo, recuando;
era tão automático. Disse para mim mesma mesma: “Eu não me
importo. Não preciso disso.” Disse a mim mesma que, provavel­
mente, era tudo imaginação minha, que ela não estava me igno­
rando. Mas, depois do satsang, Terry comentou, em sua maneira
impassivelmente direta: “Mas que impressionante! Gangaji olhou
para todo mundo na primeira fila, exceto para você!”
O comentário de Terry foi perfeito; era como se a última rota
de fuga tivesse sido bloqueada. Não havia como fugir, o sentimento
tinha de ser encarado. Eu estava morrendo por dentro. Dentro de
mim, sabia que encontrara em Gangaji alguém de quem não pode­
ria fugir. Finalmente encontrara alguém que podia me parar; parar
este movimento para dentro da mente. Ela podia me parar porque
ela mesma tinha parado.
Fui para casa e chorei até me acabar. A noite toda, deixei a emo­
ção surgir, permiti que tudo fosse sentido, tudo de que sempre fugi­
ra, tudo que evitara encarar a minha vida inteira. Percebi que tinha
um certo orgulho desta habilidade de dar o fora sempre que qui­
sesse. Quando era adolescente e, mais tarde, quando era estudante
universitária, vi muitas amigas entrarem em relacionamentos dolo­
rosos e permanecerem neles por causa da ilusão de que precisavam
da “relação” para serem felizes. Eu sabia que não precisava de nada
e sentia que saber isto era liberdade. Meu lema, desde os dezenove
anos, tinha sido: “Quando você não precisa de nada, sempre tem
tudo de que precisa.”
Agora, uma nova perspectiva sobre tudo isto estava se revelando.

188

SEM BUSCAR NEM FUGIR

Esta “liberdade” de que tanto me orgulhava fora criada em minha


mente. Ela não era real. Era preciso usar estratégias constantemente,
para evitar o que não queria e atrair para mim o que pensava desejar.
Gangaji estava expondo este jogo da mente como aquilo que ele
realmente era: ilusão.
Escutei-a falar algumas vezes em satsang sobre “acolher” o que
quer que apareça. Inicialmente, não entendi o que significava.
Parecia budista. E, sempre que ela mencionava isto, pensava comi­
go mesma: “Bem, não preciso fazer isto.” Ou “Isto é por causa do
passado budista dela.”
Agora eu estava vendo a verdade deste “acolher”. Significa “per­
manecer imóvel.” É um implacável “não se mover”. Significa se re­
fugiar na Verdade do próprio Ser, em vez de se refugiar nos fenô­
menos, na ilusão fenomenal de algum conforto temporário ou uma
sensação de “escapar” criada pela mente.
Estava começando a ver que tudo surge em satsang, inclusive
tudo que nunca se quis ver. Então há a oportunidade de não se mo­
ver. A oportunidade de entregar o que surge na mente e deixar que
tudo seja queimado no fogo do auto-reconhecimento.
Uns dois dias depois, mais uma oportunidade de “não me me­
xer” apresentou-se. Estava sentada perto da frente durante o sat-
sang. Gangaji estava especialmente linda e radiante. De repente,
virou-se e sorriu para uma jovem sentada um pouco mais para o
lado, à minha frente.
Gangaji disse para a garota:

Já nos conhecemos?

189

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

A garota sacudiu a cabeça. Gangaji olhou para ela amorosamen­


te por um momento e então disse:

Acho que você é um anjo. Você sabia disso?

Tímida, a garota sacudiu a cabeça afirmativamente, mas não dis-


se nada. Eu sentia o intenso amor que Gangaji transmitia para esta
garota. E, então, para minha surpresa e embaraço, o ciúme mais tor­
turante apareceu. Isto me chocou, porque ciúme não é uma emoção
que tenha sentido muitas vezes em minha vida. Mas ele estava ali,
bem no meio do satsang, bem na frente de Gangaji.
Surgiram pensamentos como: “Ei, espere aí! Eu quero ser o seu
anjo. Eu quero o amor que você está dando a esta garota.” Senti-me
mortificada por pensamentos e emoções tão infantis estarem sur­
gindo. Lutei com eles, tentei suprimi-los, mas não adiantou nada.
Estava sentada perto demais dela!
Durante toda aquela tarde, Gangaji continuou olhando de vez
em quando para aquela garota, dando a ela os olhares mais amo­
rosos e adoradores. Cada vez que fazia isso, o ciúme reaparecia.
Inicialmente, tentei derrotá-lo. “Ciúme ruim! Sai daqui! Vai em-
bora!” Mas, finalmente, alguma coisa relaxou dentro de mim. Por
alguma Graça, vi que este ciúme precisava ser acolhido, recebido
em satsang. Quando relaxei, parei de lutar, uma verdadeira “visão”
começou a emergir. Vi que aquele ciúme era apenas pensamento,
tendências latentes da mente aparecendo em satsang. Vi a mente
como um mágico que cria a ilusão de separação, a ilusão de “meu”
e “mim” como algo separado de “outro” e “eles”. Vi como o ensina­

190

SEM BUSCAR NEM FUGIR

mento de Cristo de “amar ao próximo como a si mesmo” jamais po­


deria ser vivenciado, enquanto a vida fosse vivida através da mente,
através dos olhos da separação. Ele pode ser imitado, fingido, ten­
tado, mas não pode ser vivenciado antes que se veja que o vizinho é
você mesmo; antes que toda separação seja vista como ilusão.
Gangaji continuou olhando para a garota e os sentimentos con­
tinuaram aparecendo. Em certo ponto, ri de mim mesma e desta
peça a que estava assistindo. Finalmente, vi que este amor indo para
a garota estava vindo para mim também. Não era apenas o amor
dela vindo para mim, mas era o meu amor que estava indo para a
garota. Era o Ser amando a si mesmo!
Algo profundo deve ter mudado na minha consciência porque,
no resto daquela tarde, todo mundo com quem Gangaji falava me
parecia meu próprio Ser falando consigo mesmo. E percebi que,
quando Gangaji deixou o salão, pela primeira vez não senti um
aperto de saudade em meu coração, como sempre acontecia quando
ela ia embora. Eu sabia, profunda e inegavelmente, que aquilo pelo
que ansiava não estava indo embora, não estava indo a lugar algum.
Era o meu próprio Ser, bem aqui, sempre.
Então, vi quão perfeita tinha sido a presença daquela garota no
satsang, sentada tão perto de mim. Misteriosamente, nunca mais a
vi. Talvez ela fosse mesmo um anjo, surgindo para ajudar a me reve­
lar esta verdade da “ausência de separação”.
Depois disso, pareceu-me mais fácil acolher tudo que surgia, tan­
to em satsangs formais quanto em meus contatos com Toby, com
amigos e estranhos. Neste acolher, uma nova profundidade de “pa­
rada” foi revelada. Escrevi uma carta para Gangaji logo em seguida,

191

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

relatando tudo isto e ela a leu em satsang, no dia 6 de julho.


Meu coração estava palpitando quando ela abriu a carta. Um
fogo de ansiedade torturante ainda que surgia dentro de mim, sem­
pre que ela segurava uma de minhas cartas em suas mãos; como
se minha cabeça estivesse sobre uma tábua de açougueiro; como
se tudo estivesse exposto. Desta vez, ela olhou para mim de modo
tranqüilizador e sorriu, antes de começar a ler:

Querida Gangaji,

Nos conhecemos há dez semanas e, neste período, houve


tantas belas realizações e tanta Graça. Porém, sentia que havia
algo que não estava “captando”, alguma coisa que continuava
me arrastando de volta para a separação. Finalmente, acredito
que a causa disto veio à tona.
Quando você fala em “acolher” tudo completamente, to­
talmente, percebo como isto é ausente em minha vida e como
tinha resistido sutilmente à idéia, sempre que você a menciona­
va em satsang. Meu hábito sempre foi o de manter à distância
tudo que fosse desagradável, desarmônico ou desconfortável.

Ela riu, olhou para mim e perguntou, em tom de brincadeira:

Você teve algum sucesso?

Eu disse: “Muito. Tive muitos sucessos.” Mas acho que ela não
me ouviu, porque houve uma explosão de gargalhadas no salão na­
quele momento.

Se você tiver sucesso nisto, vou dizer: “Que bom.” Não


192
SEM BUSCAR NEM FUGIR

sou contra isto, se você tiver tido algum sucesso.


Mas eu diria que o seu hábito foi o de tentar manter
à distância tudo que fosse desagradável, desarmônico ou
desconfortável e tentar, tentar e tentar novamente.

Era verdade. Por mais que gostasse de me vangloriar sobre a


grande artista da fuga que eu era, quando examinava com cuidado,
tinha de admitir: manter tudo à distância dá um bocado de traba­
lho. Havia sempre a esperança de que, se conseguisse manter uma
quantidade suficiente de impurezas do mundo e de outras pessoas
longe de mim, eu seria livre. Mas este projeto exigia esforço. Havia
uma constante necessidade de me retirar, de me proteger, de fugir.
Ela continuou lendo:

Isto provavelmente não é incomum.

Ela olhou para mim e sorriu.

Isso mesmo.

Mas o que é incomum é que fui razoavelmente bem-suce­


dida, principalmente porque não preciso de nada deste mundo
em especial (gente, situações ou coisas); não o bastante para
insistir quando as coisas não me agradam. Possuo uma habili­
dade implacável de ir embora, fugir e tomei esta habilidade por
liberdade.

Ela estava muito satisfeita com esta percepção e olhou para


mim novamente.
193

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Isso é muito bom. Este é um poder que você tem; você


está falando de um siddhi. Poderes são belos fenômenos,
mas confundi-los com liberdade é um grande erro. Você
tem muita sorte por este erro estar sendo corrigido.

Este padrão de fuga se manifestou algumas vezes como o


impulso de fugir de você. Mas agora vejo que a liberdade que
este padrão de fuga alimentou é falsa. Porque sei que o que
vejo em você é a verdadeira liberdade, e a liberdade, beleza e
Verdade que vejo em você são o meu próprio Ser.

Isso mesmo! Isto é enxergar. Isto é escutar.

Vejo agora que, fugindo, sem perceber criava “coisas” sepa­


radas de mim mesma e dava realidade a elas, perpetuando assim
a mentira da separação. Agora vi que, como você prometeu, ao
acolher os fenômenos completamente, disposta a morrer, eles
revelam não ser nada...

Isto se chama o “fim” dos fenômenos. Não porque se


foge deles, não porque eles são dramatizados, não porque
são ignorados, não porque são negados, mas porque, em
um verdadeiro encontro, apenas o que é permanece. Este
é o significado secreto da palavra “acolher”.

... eles revelam não ser nada, revelam-se como o Ser e a men­
tira pára. Portanto, eu estou decidida a parar. Parar de fugir.
(Toda vez que penso que parei, um novo “nível” de parada é
revelado).

Isso mesmo! E ISSO é interminável. Isso não pode ser


194
SEM BUSCAR NEM FUGIR

parado, se você parar a sua mente.


Tudo isto está dentro da mente: fugir, correr, pode­
res, confortável, inconveniente, desconfortável. Está tudo
dentro da mente. Este é o mundo, tal como foi conhecido
através da mediação de conceitos do passado, quer estes te­
nham sido internalizados ou quer você tenha se rebelado
contra eles. Isto se chama “atividade da mente”. Também
é chamado de “viver a vida indiretamente”, talvez com
uma “sensação” de poder pessoal, de liberdade, até que,
em um encontro auspicioso, você reconhece que “o que eu
pensava que era liberdade era uma ‘coisa’, era uma ‘capa­
cidade’, uma ‘força’, uma coisa relativa a outra coisa.”
Neste momento, você pode parar, pode escutar e ver
o que é revelado neste “acolher”. Acolher não tem nada
a ver com buscar algo ou fugir de algo. Tem a ver com
permanecer absolutamente (não relativamente) quieto.
Você pode estar relativamente em movimento ou não, e
estar absolutamente quieto. O movimento relativo, ou a
ausência de movimento ocorrem em quietude absoluta
que, já que é absoluta, está sempre quieta.
Você não precisa obter a quietude, ou encontrá-la, ou
fazer sua mente ficar quieta. Simplesmente reconheça a
quietude absoluta que está presente em cada momento,
em cada retirada, em cada avanço. Ao reconhecer isso,
a mente, tal como era conhecida, é parada, prostrada,
terminada.

Ela continuou lendo:

195
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Esta determinação vai ser um desafio, por causa de um há­


bito muito antigo de não acolher as coisas de frente; um hábito
que é muito sutil e, às vezes, quase inconsciente.

Isso mesmo. Isso mesmo. É um desafio. Se você não


quer um desafio, vá embora agora. Fuja do desafio. Tente
evitar o desafio. Tente fugir do desafio.
Sim. Boa sorte. Se você conseguir, ótimo. Então terá
encontrado o mestre apropriado para você.

Dentro de mim, reagi com violência: Não! O mundo foi meu


mestre por tempo demais! Estou pronta para o meu verdadeiro mes­
tre. Encontrei a minha verdadeira mestra. Vou ficar aqui, aos seus
pés, e acolher cada desafio que surgir.

Mas se você reconhece o “desafio”, o real DESAFIO,


então você pode ouvir este “parar” como entrega: entrega
à quietude, entrega à Verdade de quem você é.
Então veja o que é desafiador. Sim, então o desafio
vai se reagrupar. Os desafios vão surgir das partes mais
profundas do subconsciente. Agora você talvez até aceite
os desafios do seu vizinho, do seu país, da sua espécie, do
seu planeta. Que jogo é este então! Você deixou para trás
o melodrama do desconforto pessoal, da inconveniência e
do poder pessoal, para aceitar totalmente, completamen­
te, sem se mover, este desafio apresentado pela Leela. Leela
significa “jogo, teatro de Deus, teatro do Ser.”
Sim, você será desafiada a se mover. Você será incitada
a se mover. Você será ameaçada se não se mover. Será se­

196
SEM BUSCAR NEM FUGIR

duzida a se mover. Que desafio! Que deleite! Então pode­


rá perguntar com certeza: “Por que os sentidos?” “Por que
este corpo?” “Por que esta vida?” “Por que estas circuns­
tâncias?” ”Por que este passado?” “Por que este presente?”
Você está me acompanhando? Muito bem!

Eu não acompanhei a última parte. Mas ela não percebeu meu


olhar confuso. Estava olhando para o resto do grupo naquele mo­
mento. Então, ela olhou para a minha carta novamente. Percebi que
estava omitindo certas frases, editando a carta conforme ia lendo.

Mas, nesta última semana, conforme me entregava mais a


esta parada, parecia que toda situação que se apresentava, toda
pessoa com quem eu falava tornavam-se auto-investigação...

ISSO está correto. Esta é a Verdade.

...atirando a consciência de volta para si mesma. Embora este


reconhecimento ainda não seja imediato, estou começando...

De repente, ela parou de ler e espetou o indicador na folha várias


vezes.

Não! Isto não é verdade. Isto não é verdade.

Ela olhou para mim com severidade.

Isso é sempre imediato. Tire esta frase daqui e veja.


Então esta frase não tem nenhum poder. É só não seguir
197

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

esta frase. “Ah, não acabei ainda, ainda não... Ainda não
estou totalmente...”
Li um artigo interessante outro dia, sobre esta questão
da iluminação, e sobre ser “plenamente” iluminado. A
pessoa entrevistada disse uma coisa muito bonita: dizer
“plenamente” iluminado é, na verdade, mentir, porque
ninguém ainda indicou, mencionou ou revelou um fim
para isso que é iluminado.
Esta plenitude não tem fim. Não existe um receptáculo
que possa contê-la e que, então, se possa considerar cheio.
Você entende? Isso é interminável.
Nós ouvimos a expressão “plenamente iluminado” com
uma idéia de alguma coisa “terminada”. O que termina é
a idéia de alguma coisa terminada. [risos] E, quando esta
idéia termina, há a revelação do que é permanentemente,
absolutamente, mais e mais pleno. Mais e MAIS.
Você só precisa parar de imaginar que poderá acumular
uma certa quantidade e que, então, poderá dizer: “Está
bem, tenho o bastante para passar” ou “Tenho o bastante
para tirar nota 10”. Você já é Aquilo, imediatamente e
sempre. E aquilo que você é é interminável. Não há nada
que possa contê-lo. É pleno, para além de toda medida. E
é MAIS E MAIS pleno.
Portanto, desista desta idéia de uma medida finita ou
de um medidor finito, e seja plenamente AQUILO que
você é, PLENAMENTE! Você é PLENAMENTE Aqui­
lo! Mais e mais plenamente! PLENAMENTE!

Estas palavras estavam me atingindo como balas de revólver, com

198
SEM BUSCAR NEM FUGIR

uma força que me empurrava contra o encosto da minha cadeira a


cada pontuação.

Até que, finalmente, você simplesmente para de tentar


falar sobre isso.

Novamente, ela continuou lendo:

Estou começando a ver como é possível que todos os fe­


nômenos, se acolhidos plenamente, verdadeiramente, sirvam à
Verdade, em vez de serem uma distração.

Aleluia! Este é um entendimento correto. Então não


há NECESSIDADE de se mover: nenhuma necessidade
de evitar, nenhuma necessidade de buscar, quando este
entendimento é revelado.

Agora tudo que acontece pode ser um ensinamento...

Eu não diria PODE ser um ensinamento, É ...

... um ensinamento do Satguru.

É o ensinamento. Tudo que acontece é um ensinamento


do Satguru. Como a sua mente se relaciona com este ensi­
namento? Se sua mente é abatida, se ela se prostra diante
do Satguru, então tudo serve ÀQUILO. O Satguru, o
guru da Verdade, o guru que está sempre vivo dentro de
você e que sempre esteve presente, jamais a abandonou;

199

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

ele se apresentou a você em muitas imagens ou formas de


mestre, guru, mas o verdadeiro, o eterno guru apresenta
tudo como um ensinamento, todo instante, toda emoção,
todo pensamento, toda circunstância, todo conforto, todo
desconforto, toda medida, toda negação, toda afirmação.
Você reconhece isso e então não se trata mais de um
desafio. É pura bem-aventurança, entrega eterna a esta
prostração da mente diante do Ser. O Verdadeiro Ser.
Não a uma imagem do Ser, não a um pensamento sobre
o Ser. O verdadeiro Ser. Aquilo que não pode ser imagi­
nado nem pensado.

Sinto-me cada vez mais grata pela Graça que me trouxe até
você e que flui de você em um rio interminável. Obrigada por
me acolher plenamente, implacavelmente, mais e mais profun­
damente.
Ouvindo cada vez com mais atenção,
Amber

Muito bem dito. Muito bem. Isto é a Verdade; é real-


mente reconhecer um aliado, um amigo.

Ela relatou uma história que Papaji conta sobre um violento sa­
murai que encontra seu mestre e sente resistência, a ponto de querer
matá-lo; então, finalmente, percebe que ele era o seu maior amigo e
aliado, e prostra-se a seus pés, totalmente entregue. Quando termi­
nou a história, ela olhou para mim mais uma vez:

Estou feliz por saber que você parou. Isto é tudo que
é preciso. Nenhuma credencial. Apenas a disposição para
200
SEM BUSCAR NEM FUGIR

parar e, assim, investigar por si mesma. Então você vê,


por si mesma.*

Todas as vezes em que a escutara falar em “parar”, acredito que


jamais entendera, até então, o que realmente queria dizer. Vi isto tão
claramente naquele satsang. Era parar a mente. Era parar de seguir a
mente, parar de se recolher na mente, de abandonar-se à mente. Era
ficar absolutamente quieto no Ser, em quem se é, não importa o que
surja, não importam as tentações, horríveis ou divinas, que venham
desafiá-lo a se mover.
Depois disso, comecei a perceber quando estava me movendo e
quando não estava. E, embora visse que, às vezes, ainda me movia,
no simples ato de perceber isto, parecia haver um enfraquecimento
do poder ilusório da mente, o que facilitava a destruição das ten­
dências da mente que causavam o movimento. Assim, finalmente,
comecei a ver que era verdade o que a escutara dizer tantas vezes: é
absolutamente simples.

201

APEGO AO MESTRE

Durante todo aquele verão, o silêncio, o amor, o “não se mo­


ver”, a consciência do Ser continuaram desabrochando. Desde o
começo, em Estes Park, Gangaji havia prometido que este aprofun­
damento era interminável. Mas eu não acreditei inicialmente. O
despertar explosivo que vivenciara ao conhecê-la fora tão intenso,
tão vasto e profundo, que não conseguia imaginar como o limite
poderia continuar recuando. Mas continuava; e ainda continua.
Olhando para trás, vejo que o aprofundamento foi facilitado pelo
amor e o apego sempre crescentes que sentia por Gangaji. Eu era
aniquilada continuamente neste amor. Em sua presença, sentia-me
como uma criança ou, às vezes, como uma adolescente apaixonada,
apesar de, nesta vida, ser apenas quatro anos mais nova que ela. Às
vezes, eu questionava este apego, lutava com ele, perguntava-me se
era saudável ou apropriado. Nada do que estava acontecendo fazia
sentido algum; nada era controlável. Não havia nada que tivesse
feito para provocar aquilo e nada que pudesse fazer para pará-lo.
Em um certo ponto, percebi que todos os meus desejos não sa­
tisfeitos tinham sido transferidos para ela. Todo o amor pelo qual
sempre ansiara, todo o reconhecimento que sempre buscara, toda
a paixão que sempre suprimira, todos os desejos mais secretos do
meu coração estavam a seus pés. Ela tornou-se, de fato, o objeto de
todo desejo não-realizado. Quando, pela primeira vez, isto se tor­
nou aparente para mim, pensei que era estupidez, que era loucura

202

APEGO AO MESTRE

transferir tudo aquilo para ela. Mas, além do fato de não ter escolha,
já que tudo acontecera espontaneamente, mais tarde vi como isto
era perfeito. Gangaji aparecera em minha consciência como o fogo
da Verdade, como o meu próprio e puro Ser. Que perfeição que
todos os desejos insatisfeitos fossem atirados neste fogo!
Meu marido via tudo isto e sentia-se deixado de lado. Ele via a
entrega com que eu, em minha independência característica, nunca
me havia dado a ele, ir toda para Gangaji. Isto trazia à tona todas
as suas questões relacionadas a insegurança e respeito. E houve pe­
ríodos em que falamos em nos separar. Eu não tinha nenhum de­
sejo de me separar, nem tinha qualquer desejo de permanecermos
juntos. No meio do verão, tinha uma profunda sensação de reali­
zação pessoal que não se relacionava com coisa alguma em minhas
circunstâncias exteriores. Sabia que agora pertencia a esta Verdade,
que minha vida fora de algum modo dedicada a ela. Minha vida não
era mais minha e não pertencia a Toby. Disse a ele que, se estivesse
sentindo-se desconfortável demais, estava disposta a deixá-lo ir, por
amor. Eu queria a sua felicidade. As circunstâncias exteriores de mi­
nha vida não me pareciam muito importantes.
Apesar do desconforto, Toby persistiu durante todo o verão e
foi a todos os satsangs. Gradualmente, ele começou a ver, a abrir
mão de seu apego à imagem que tinha de nossa relação, e a per­
ceber a beleza e o mistério de tudo que estava acontecendo. Foi
realmente impressionante. Isso revela a verdadeira profundidade de
seu compromisso com a Verdade, pois não deve ter sido fácil viver
comigo durante aquele período. Meu corpo ainda estava passando
por mudanças tremendas. Muitas vezes, eu chorava a noite toda; a

203

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

maior parte do tempo, não conseguia comer nem dormir. Quando


não estava em satsang formal com Gangaji, passava a maior parte
do tempo na Satsang Foundation & Press, ajudando no salão do
satsang ou cozinhando e fazendo a limpeza para Gangaji.
No outono, escrevi a ela sobre esta época:

Sentia como se todo o meu corpo, físico e sutil, tivesse sido


transformado, renascido, no fogo deste trabalho. Era bastante
intenso e muitas vezes exaustivo, física e emocionalmente, e,
às vezes, tinha vontade de fugir; mas, com a sua Graça, não
segui este impulso. Às vezes, tinha vontade de me queixar a
você, de dizer que não agüentava esta intensidade, mas não o
fiz porque, na verdade, não estou interessada em desperdiçar o
meu tempo.

Muitas vezes, tinha consciência de um tremendo fluxo de amor


vindo de Gangaji e, apesar disso, sentia-me frustrada comigo mes­
ma, porque via que não estava totalmente aberta a ele. A timidez
ainda surgia e eu percebia como este padrão de ocultação, de per­
manecer indiferente e manter uma distância segura estava profun­
damente enraizado em mim. Ele produzira uma personalidade com
uma grande quantidade de repressão, inibição e resistência a qual­
quer tipo de intimidade.
Toda esta resistência veio à tona no relacionamento com Gangaji.
Interiormente, de maneira sutil, via que esta resistência era, na ver­
dade, eu me escondendo do meu próprio Ser. Mas, quando se entra
em um relacionamento com o próprio Ser como o verdadeiro mes­
tre, todas as barreiras precisam desmoronar. Ocorre um implacável
corte em todos os níveis de ocultação.
204
APEGO AO MESTRE

Sobre isto, Gangaji disse:

O relacionamento especial e secreto entre guru e discí­


pulo não é para covardes! Qualquer idéia sobre o que é
esta relação é antiquada e sempre fantasiosa.
A essência do relacionamento está no significado da
palavra guru: aquele que revela a luz (VERDADE). Na
revelação da VERDADE, o ego do discípulo é reconhecido
como o único obstáculo. O ego é a falsa identificação com
pensamentos, imagens e experiências como sendo QUEM
SE É. A falsa identificação tem que ser destruída. Esta
destruição é o presente do guru, e não importa se o guru
aparece em forma humana ou se é uma presença sem for­
ma.
O verdadeiro guru deseja apenas a Auto-realização do
discípulo. O discípulo maduro reconhece que o relacio­
namento com o guru reflete o seu relacionamento com a
Vida. Quando se resiste à Vida ou se foge dela, ou do guru,
porque eles não se conformam com ideais preconcebidos,
a Vida retém o seu segredo. Quando se acolhe a Vida, ou
o guru, abertamente, em total entrega, o tesouro secreto
da VERDADE é revelado. Este tesouro naturalmente dis­
solve todas as aparentes limitações, tanto do guru quanto
do discípulo.*

No passado, eu não amei a vida. A vida era cheia de coisas que me


desgostavam: violência, egoísmo, abusos de todos os tipos. Como
podia acolher isto? Por isso mantive a vida separada de mim mesma.
A maior parte da vida era algo que tinha de ser mantido à distância,
205

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

para que eu não fosse poluída. Esta percepção de separação, esta


crença na separação, ironicamente, perpetuava a ilusão. Ela perpe­
tuava a identificação com a mente que, em si mesma, é a essência da
violência, do egoísmo e do abuso de todos os tipos.
Eu havia aperfeiçoado a habilidade de me esconder e a vida me
ocultara seu segredo. Quando conheci Gangaji, ela começou a des­
truir esta ilusão sistematicamente. Meu amor e apego a ela eram
cruciais, pois ela tornara-se a única realidade da qual não podia fu­
gir, da qual não podia me esconder, mesmo nos momentos mais
decisivos.
Uma maneira pela qual ela me empurrava era me pedindo para
cantar em satsang. Ela começou a fazer isso em meados de julho,
depois que escrevi outra música para ela, chamada “Amigo Eterno”.
Esta é uma ode ao Ser. Eu tinha escrito a música alguns anos antes,
mas nunca fora capaz de encontrar a letra certa. Agora, com Gangaji
como inspiração, ela saiu de minha boca já perfeita.

Meu Amigo
Que não existe no tempo
Você sempre me vê
Com olhos divinos
E você
Revela a alegria
Que faz vibrar minha alma
E reside para além do que os sentidos conhecem.

Pois você

É a luz mais profunda

Dentro da minha alma

Por trás da minha visão

206
APEGO AO MESTRE

E você
É a porta para além
Do sol ardente
Onde as danças das sombras jamais aparecem.
Meu amigo
Que nunca dorme
Nas noites de tempestade
Sua vigília permanece
Ah, é por você
Que o coração se expande
E entrega esta vida
Em suas mãos atemporais.

Meu amigo

Estou a seus pés

Você enche meu coração

Meu dia, meu sono

Ah! Conforme vejo

Que você é eu

A revelação continua

Sempre sem fim

A revelação continua

Sempre sem fim.

Queria cantar esta música para ela no satsang mas, toda vez que
pensava nisso, sentia uma timidez insuportável e me sentia tão ex­
posta, que todo o meu corpo ficava tenso e quente, e meu coração
começava a bater como louco. Eu sentia que esta era a música mais
íntima que jamais escrevera, uma música de amor ao Verdadeiro Ser,
a Gangaji, e isto fazia a minha resistência à intimidade vir à tona.
Mesmo assim, um dia levei meu violão para o satsang, incentiva­
da por Toby. Ele disse: “Se você levar o violão, talvez sinta vontade
207

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

de cantar.” Na dúvida, coloquei o violão no carro. Mas, quando o


satsang estava na metade, soube que não conseguiria cantar e come­
cei a chorar. Sentia-me totalmente frustrada e desanimada comigo
mesma. “Como Gangaji pode me tolerar como aluna?” soluçava.
“Eu nem mesmo consigo cantar a música que escrevi para ela.”
Toby me repreendeu por ser tão tola e dramática. Mas, parte de
minha frustração era que sentia que estava regredindo. Em Santa
Fé, quando a mente havia parado tão completamente, tinha sido
tão fácil cantar. Agora, raciocinava, com certeza devo ter retornado
à minha mente.
Enquanto estávamos de pé em frente à igreja, esperando pelo
início do satsang, nosso amigo John apareceu e me perguntou o que
havia de errado. Quando estava tentando explicar a ele o meu dilema
e desânimo, Maitri aproximou-se de nós e pediu para falar comigo
em particular. Resmungando, acompanhei-a através do gramado,
para longe da multidão, esperando que ela não me pedisse para fazer
nada que exigisse qualquer tipo de clareza. Quando ficamos a sós,
ela remexeu na pilha de cadernos e papéis que carregava e me entre­
gou um lindo lenço. “Gangaji quer que você fique com ele”, disse
Maitri, e acrescentou: “Ela disse: ‘Vai ficar lindo na Amber.’”
Instantaneamente, a frustração e a dor desapareceram, como se
um bálsamo refrescante tivesse sido aplicado na ferida aberta do
meu coração. Eu fora derrubada. Achatada. Não apenas por causa
do lindo presente, mas por causa do momento perfeito em que ele
me fora entregue. Naquele momento de imensa frustração, Gangaji
aparecera como um farol de amor daquela maneira tão linda. Não
consegui dizer nada. Fiquei ali de pé, muda, apertando o lenço con­

208

APEGO AO MESTRE

tra o meu coração. Mas Maitri não precisava que eu dissesse nada.
Ela sabia. De repente, percebi que não importava se eu cantasse
a música ou não. Todo este julgamento sobre mim mesma estava
apenas na mente. O presente de Gangaji tinha derrubado a mente,
mais uma vez, para que eu pudesse ver isto. A personalidade pros­
trara-se diante do Ser e da perfeição com que o Ser estava se mani­
festando em minha vida.
Outro exemplo desta inacreditável perfeição ocorreu na primei­
ra vez em que levei comida para Gangaji. Na verdade, eu não prepa­
rara a refeição. Terry havia cozinhado naquele dia e, como tinha que
levar seu namorado ao aeroporto naquela tarde, decidiu me deixar
entregar a comida. Desta maneira, disse ela, eu me acostumaria a
levar comida para Gangaji e a arrumá-la na cozinha.
Eu conhecia bem a casa, porque vinha fazendo a limpeza toda
semana. Já tinha visto Terry arrumar a comida, quando ela vinha
entregá-la enquanto estávamos fazendo a faxina. Terry me instruiu
em como arrumar tudo: o que devia ser colocado na panela, o que
ia para a geladeira e o que ficava na pia. Mas, porque eu ainda me
sentia tímida perto de Gangaji, perguntei nervosa: “E se Gangaji
estiver lá?”
“Não preste atenção a ela,” disse Terry, que então acrescentou:
“Ela provavelmente não estará em casa. E, se estiver, estará em outra
parte da casa. Estou lhe dizendo, quase nunca a vejo, e levo comida
para ela todos os dias.”
Gangaji ainda estava na casa de Shivaya Ma naquela época e,
portanto, perto das cinco e meia da tarde, levei a comida que ti­
nha pego com Terry. Quando desci os degraus em direção à casa,

209

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Gangaji estava de pé na porta, pronta para sair com Shivaya Ma.


Gangaji me cumprimentou calorosamente, abriu a porta para mim
e me perguntou se eu preparara a comida.
Fui tomada pelo mais terrível nervosismo. Meus joelhos come­
çaram a tremer incontrolavelmente. Consegui explicar a ela que
Terry tinha cozinhado e que eu estava apenas entregando a comida,
mas mal pude atravessar a porta. Não sei como consegui colocar a
comida na cozinha sem derrubar nada, pois me sentia uma perfeita
idiota.
No dia seguinte, quando vi Shivaya Ma, ela me disse: “Você fi­
cou surpresa ao vê-la, não foi?”
Eu disse: “Terry disse que ela não estaria lá.”
Ela riu: “Bem, Gangaji ficou feliz em ver você.”
“Por que sou tão insuportavelmente tímida com ela?” perguntei.
Shivaya Ma sorriu: “Quem não é tímido diante d’Aquilo?”
“Sim, mas preciso ser capaz de levar comida para ela sem me
transformar em uma completa idiota. Logo vou começar a cozinhar.”
Shivaya Ma foi muito carinhosa comigo e me acalmou. Ela dis-
se: “Você se saiu bem. Gangaji não percebe estas coisas. Ela vê o seu
coração.”
Olhei nos olhos de minha amiga e neles vi Gangaji. Para aqueles
olhos, eu disse: “A última prece desta vida é a de ficar calma em sua
presença.”
Miraculosamente, aquela prece foi ouvida. Duas horas depois de
fazê-la, parei no mercado natural para fazer compras. Ao virar em
um dos corredores da loja, quase esbarrei em alguém. Olhei para
cima e vi que era Gangaji!

210
APEGO AO MESTRE

Ela sorriu e disse: “Olá, Amber.” Então, segurou o meu pulso


e... não posso descrever o que aconteceu depois disso, porque não
restou nenhum traço na memória. A Verdade não deixa rastros. Só
sei que ficamos ali de pé durante algum tempo. Eu olhando em seus
olhos e ela segurando o meu pulso. Estava completa e totalmente
calma. Então ela soltou meu pulso e seguiu seu caminho.
Foi como um interlúdio divino, atemporal, bem ali, no meio do
mercado natural. Minha prece desesperada deve ter sido atendida,
não apenas naquele momento, mas para sempre, pois nunca mais
me senti tão nervosa e idiota em sua presença; o que acabou sendo
muito útil, porque comecei a cozinhar uma vez por semana depois
disso e, ao contrário do que Terry dissera, quase sempre via Gangaji
quando entregava a comida.
Pouco depois disso, tomei coragem para gravar “Eterno Amigo”
e entregar a fita a Gangaji em um satsang. Aquele satsang foi espe­
cialmente bonito porque muita gente estava expressando seu amor e
gratidão, e Gangaji falou muito sobre a importância de um coração
aberto. Quando ela abriu o envelope com a minha fita, olhou para
mim e perguntou se eu tinha trazido meu violão. Sacudi a cabe­
ça em um não. Então ela perguntou se eu podia cantar a capella.
Novamente, disse não com a cabeça.
Ela perguntou a outro músico presente se ele tinha trazido seu
violão. Ele disse que não. Ela franziu a testa e disse algo como:
Hmmm, os violões estão se escondendo hoje...
Quando o satsang terminou, Maitri me disse para ir ao satsang
pequeno. Era o meu primeiro satsang pequeno. Entrei e sentei no
chão, em frente a Gangaji, que já estava sentada em uma cadeira.

211

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Ela sorriu para mim e perguntou se eu cantaria em um grupo pe­


queno. Novamente, recusei e disse que não podia cantar sem meu
violão. Podia ver que ela não estava contente com a minha teimosia,
mas simplesmente não conseguiria cantar.
Finalmente, ela disse: De agora em diante, coloque o violão no
carro e tenha-o sempre à mão. Então ela disse a todos que eu tinha
uma voz etérea, acrescentando: Não é deste mundo.
Naquele momento, senti meu coração se abrir, cheio de amor.
Calmamente, agradeci-lhe pelo cumprimento. Por dentro, lembro
que pensei: “Mas Deus se esqueceu de me dar uma personalidade
de cantora.”
Aquele satsang foi o mais curto em que já estive. Acho que du­
rou uns seis minutos. Mas também foi um dos mais fortes. O tem­
po todo em que estive lá, meu coração continuou explodindo cada
vez mais com um amor intenso, que não podia ser contido. Outras
pessoas estavam sentindo a mesma coisa. Muitas expressavam seu
amor profundo e sua gratidão, algumas verbalmente, outras em si­
lêncio. Gangaji geralmente não é afetada pelas expressões de amor e
devoção a ela, do mesmo modo que não se deixa afetar por raiva ou
animosidade a ela dirigidas. Mas parecia que estava muito comovi­
da com as ondas de amor naquela saleta e, em um certo momento,
ela se recostou e colocou a mão no coração, dizendo: Quanto vocês
acham que eu consigo agüentar? Esta leve mostra de vulnerabilidade
fez meu coração se derreter ainda mais.
Pouco depois disso, ela juntou as palmas das mãos e disse Om
Shanti. Quando se levantou, mudei de lugar no chão, para abrir ca­
minho para ela. Ela passou por mim e nossos olhos se encontraram.

212

APEGO AO MESTRE

Todo o amor em meu coração estava se derramando para ela, sem


restrição, sem vergonha e senti que estava aberta e que recebia o seu
amor mais totalmente. Ela colocou uma mão no coração, sorriu
para mim e, naquele sorriso, havia o brilho de mil sóis.

No satsang seguinte, levei o meu violão, obedientemente.


Escondi-o no fundo do salão, esperando secretamente que Gangaji
não se lembrasse. Quando o satsang começou, ela leu duas cartas e
então respondeu a algumas perguntas. Na metade do satsang, uma
mulher do Arizona falou sobre uma experiência que tivera em uma
viagem de navio com seu marido, e como ele a fizera encarar o
medo do mar. “Meu marido traz à tona todas as minhas tendên­
cias latentes,” disse ela. O salão explodiu em gargalhadas. Gangaji
comentou como era bonito reconhecer que as tendências latentes
estão se manifestando para serem queimadas, e não porque haja
alguma coisa errada na relação.
Quando esta mulher terminou de falar, de repente os olhos de
Gangaji se fixaram em mim. Eu estava sentada no chão, mais ou
menos na oitava fila.

Ouvi dizer que você vai cantar hoje.

Levei um susto. Quem tinha dito a ela? Logo suspeitei de Gayatri.


Quando estava vindo para o satsang, encontrara Gayatri e Govind,
que tinham vindo de Santa Fé para Boulder, onde ficariam alguns
dias. Gayatri me perguntara: “Quando você vai trazer seu violão
para o satsang?” Eu disse que agora teria que trazê-lo sempre, por­

213

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

que Gangaji tinha me pedido; mas não disse que iria cantar.
“Quer que eu cante agora?” Perguntei a Gangaji, quando me
recuperei do choque desta atenção inesperada.
Ela disse:

Em um minuto. Mas pode começar a ficar nervosa


desde já, para acabar logo com isso.

O salão mais uma vez explodiu em gargalhadas. Uma onda de


vergonha e a sensação de estar nua e exposta atravessaram o meu
corpo. Gangaji acrescentou:

Eu trago à tona todas as tendências latentes dela.

Mais uma vez, gargalhadas. Por um momento, fiquei irritada


com Gangaji por me expor tão cruelmente diante do grupo. Mas,
imediatamente, também senti o bálsamo refrescante de seu amor
e houve a realização do quão profundamente ela me vê, acompa­
nhada de uma sensação de alívio, de que não havia absolutamente
qualquer possibilidade de me esconder em sua presença.

Eu as faço vir à tona em satsang. Este é o lugar das


tendências latentes, para que venham à tona em satsang.
Então elas podem ser liberadas. Então se pode perceber
que elas não são nada além de tendências, que têm a ver
com o corpo, as emoções ou o intelecto. Elas não têm nada
a ver com quem se é.

214
APEGO AO MESTRE

Enquanto ela dizia estas palavras, soube que eram verdade.


Aquele nervosismo, as tendências latentes de timidez e o medo de
ser exposta não eram eu. Ela estava me mostrando isso ao fazê-las
vir à tona em satsang. A mortificação cedeu lugar à gratidão. Ainda
me sentia nervosa em relação a cantar, mas não me odiava por isso.
Deixei tudo vir à tona. Vir à tona em satsang, para que pudesse ver
que não tinham nada a ver com quem eu sou.
Gangaji ouviu mais algumas perguntas e me deixou pegando
fogo durante algum tempo. Depois de uns quinze minutos mais ou
menos, seus olhos pousaram em mim mais uma vez.

Está bem. Quer cantar agora?

Respondi que sim com a cabeça. Então ela me perguntou se can­


taria a música que mandara na fita, pois ainda não tivera oportuni­
dade de escutá-la. Ela estava se referindo à música “Eterno Amigo”.
Mas eu ainda não estava pronta para cantar aquela música em pú­
blico. Era íntima demais. Portanto, disse a ela que cantaria “Rio
Ganga” e ela pareceu concordar. Quando estava indo pegar meu
violão ela disse:

Sim, nós todos pronunciamos sutras de maneiras di­


ferentes e vivemos sutras de modos diversos. Deste belo
modo do Arizona, de Amber ou de Mercê. Simplesmente
para nos entregarmos e deixar que sejam cantados como
queiram, através de cada forma em particular. Este é o
segredo.*

215

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Cantei a música e, como algumas pessoas a conheciam de quan­


do a cantara em Santa Fé, elas se juntaram a mim no refrão. Achei
que não tinha me saído muito bem e que não tinha feito o que ela
me pedira: simplesmente me entregar e deixar que seja cantada como
queira. Eu não me sentia entregue. Sentia-me exposta. Nervosa.
Muito mais nervosa do que em Santa Fé.
Gangaji estava me pedindo para me entregar e deixar o canto
acontecer, mas eu não conseguia. Mas o que ela tinha dito sobre
as tendências latentes invocadas em satsang começou a penetrar.
Daquele dia em diante, comecei a “captar” que não estava regredin­
do. Que, ao parar, na quietude, na pureza do satsang, níveis cada
vez mais profundos de ocultação estavam sendo dragados; dragados
em satsang, para serem liberados.
Portanto, continuei a trazer meu violão para o satsang, todos os
dias. Eu sentava ali me contorcendo, nervosa, porque ela poderia
me pedir para cantar. Às vezes, pensamentos de resistência surgiam,
tais como: “Meu violão, lá no fundo do salão, e o espectro pairan­
do sobre mim de que talvez tenha que cantar estão estragando o
satsang para mim.” Ou “Ela não sabe quem é esta pessoa; eu não
sou cantora.” Ou “Em Santa Fé, só consegui porque ela estava me
ajudando. Não consigo fazer isto sozinha.” Mas comecei a ver que
eram apenas pensamentos e que, em última instância, não significa­
vam nada. Portanto, eu simplesmente os deixava vir à tona, queimar
e desaparecer.
Enquanto isso, eu continuava cozinhando e fazendo a limpeza
para Gangaji. Periodicamente, recebia mensagens através de Maitri
ou Shivaya Ma, sobre o quanto Gangaji gostava da minha comida.

216

APEGO AO MESTRE

Estas mensagens sempre derretiam o meu coração. Inicialmente,


surpreendeu-me que ela gostasse tanto da minha comida, porque
eu não achava que meus talentos culinários fossem nada de especial.
Mas colocava todo o meu amor na comida enquanto a preparava e
sempre cuidava para que nada interferisse na preparação: nenhuma
conversa, nenhum telefonema, nem mesmo pensamentos; apenas o
meu amor por ela.
Servindo-a deste modo ou limpando a casa para ela, sempre ti­
nha a sensação de “não estar fazendo nada”; a ação acontecia, mas
“eu” não estava fazendo nada. Havia uma ausência de esforço nestas
ações, uma bem-aventurança e liberdade que raramente sentira em
minha vida. Embora sentisse que este tipo de serviço doméstico pro­
vavelmente não era a maneira como a Verdade iria me utilizar, pois
eu certamente não era uma rainha do lar, senti-me irresistivelmen­
te atraída a servi-la desta maneira durante todo o verão. Olhando
para trás, está claro que esta atividade devocional estava ajudando a
derreter a resistência e a timidez, o que, por sua vez, abriu-me mais
e mais para o seu amor e para a Verdade e a Graça que emanavam
desta linhagem tão puramente através dela.
Nesta época, fiz um novo amigo, chamado Jim, que estava apai­
xonado por Gangaji e não tinha qualquer inibição em compartilhar
suas experiências devocionais, assim como suas exageradas cartas
de amor para ela. Ele me mostrou duas cartas que recebera dela,
porque sentia que elas também tinham sido escritas para mim. E
contou-me que ela uma vez lhe dissera: “A razão pela qual você se
sente desta maneira é porque não tem qualquer resistência ao meu
amor por você.” Estas palavras me afetaram profundamente, por­

217

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

que expuseram o fato de que eu ainda resistia. Às vezes, quase sentia


uma intensa, incontrolável torrente de amor sendo derramada so­
bre mim, mas também havia a sensação de que não podia recebê-la
completamente. Ainda havia resistências sutis que mantinham uma
parte de mim fechada. Pensando naquele verão, vejo que Papaji de­
sempenhou um papel vital na remoção destas resistências e em me
manter aberta para Gangaji. Além do período em Santa Fé, quando
sua presença preenchera meu quarto, na noite em que cantei para
ela pela primeira vez, houve um outro sonho/visão importante com
Papaji naquele verão.
No sonho, eu estava sentada no chão, ao lado de Gangaji. Papaji
estava sentado em uma cadeira, à nossa frente. Eu não conseguia vê­
lo muito bem, só os seus pés, porque estava atentamente concentra­
da em Gangaji, e ela em mim. Depois de algum tempo, ela se virou
e me abraçou. Senti surgirem a resistência e o embaraço. Então, de
repente, me entreguei àquele abraço, completamente. E, naquela
entrega, a gigantesca onda de resistência desapareceu.
Quando acordei na manhã seguinte, meu coração estava expan­
dido como jamais estivera antes. Sentia-o aberto; fisicamente aberto
e livre. Sentada em silêncio, parecia que meu coração explodia como
uma supernova, cheio de amor por todo o universo. Durante vários
dias depois disto, descobri que estava apaixonada por tudo que via:
as árvores, os esquilos, as montanhas, tudo. Contei a Gangaji sobre
o sonho, em um satsang pequeno logo depois, e ela confirmou que
este era um sonho verdadeiro. Quando agradeci a ela pelo sonho, ela
me disse para agradecer a Papaji. Esta é a Graça dele, ela disse. Então
escrevi uma carta a ele, contando sobre o sonho e agradecendo por

218

APEGO AO MESTRE

ele me manter aberta ao Amor e à Graça de minha mestra. Pois eu


agora podia ver que este era o papel que ele estava desempenhando
nesta Leela e que continua a desempenhar.
Mais de uma semana se passou, sem que Gangaji me pedisse para
cantar novamente. Então, no início de agosto, houve um satsang es­
pecial ao ar livre, na montanha de Flagstaff, em Boulder. Gangaji
estava sentada à nossa frente, em uma cadeira sobre uma antiga laje
de pedra, contra o lindo céu azul do Colorado e a serra recortada
ao redor de nós. A noite estava morna e clara, com uma leve brisa
fresca soprando através dos pinheiros. Naquela noite, havia apenas
duas cartas na cadeira. A minha foi a segunda que ela pegou para ler.
Eu não assinara a carta, apenas escrevera “Absolutamente ninguém”.
Já que escrevera a carta em meu computador, tinha certeza de que
permaneceria anônima.
Na carta, relatava o que vinha descobrindo recentemente. Disse
que me tornara consciente de uma realização, bem dentro de mim,
que agora parecia ter estado sempre presente:

... e que as chamadas necessidades e desejos pessoais que ha­


viam estruturado a minha vida durante um bom tempo tinham
sido “inventadas”; elas não eram absolutamente reais.
Há uma espécie de vazio nisso, mas não é um vazio des­
confortável. É uma paz profunda, uma expansão e a sensação
de estar muito relaxada. Neste relaxamento, sinto “coisas” (que
tinham sido aprisionadas no corpo e na mente) vindo à tona
confusamente, mas isto não encobre a realização e a paz; em-
bora, às vezes, sejam bastante fortes. Eu simplesmente observo
tudo surgir, queimar e desvanecer.
E parece que deveria surgir a pergunta: “Bem, minha vida
está apenas na metade, o que vai estruturá-la agora?”
219
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Ela olhou para cima e deu um profundo suspiro de contenta­


mento e alegria.

Ah, sim. Sim, que vida de sorte, aquela na qual, em


algum momento (na metade da vida ou até mesmo no
último suspiro, antes que a forma de vida se acabe) em
ALGUM ponto, esta declaração de realização pode ser
enunciada. E, então, em seguida: “E agora, o que faço
com esta vida?” Que beleza. Percebe-se que a falta de
realização pessoal foi “inventada”. E, com esta percepção,
a realização transborda.
E agora, o que será desta vida?

Conforme continuava lendo, eu ainda tinha certeza de que ela


não tinha idéia de quem a escrevera. Mas não me importava mais
com isso. Um certo nervosismo em relação a isso estava desapare­
cendo enquanto a observava, tão incrivelmente bela, contra o céu
noturno.

Mas eu não tenho realmente uma pergunta. Pelo menos não


agora. Há algumas semanas, você falou sobre a “vigilância” que
é necessária em um certo ponto no despertar de uma pessoa;
uma vigilância em relação ao surgimento do desejo; e a entrega,
a cada momento, de todos os desejos, até mesmo do desejo
de que os desejos não apareçam. Simplesmente esta vigilância
de se permanecer totalmente imóvel n’Aquilo que se é. Então,
você disse que todos os fenômenos, todos os desejos, toda a
Leela, surgem para desafiar esta imobilidade e, se acolhidos
completamente, servem para aprofundar a realização. Quando
você falou sobre isso, eu não estava pronta para ouvir comple­

220
APEGO AO MESTRE

tamente. Agora vejo como isto é profundo. E como este é o


desafio agora.
Desde Estes Park, soube que o resto de minha vida estará
a serviço desta Verdade. Houve um tempo em que eu estava
impaciente para saber como esta Verdade iria me utilizar. Agora
percebo que nunca saberei como ela vai me utilizar.

Ela olhou para mim e disse:

Isso mesmo! Você precisa olhar para trás, para ver como.

Percebi então que ela sabia quem era o “ninguém” que escrevera
aquela carta.

A cada momento, eu nunca vou saber. Há apenas esta con­


tínua entrega Àquilo que é desconhecido, incomensurável, in­
capturável pelo tempo e por um “plano”. A mente acha isto
um pouco assustador. Mas agora me parece claro que o que vai
acontecer com a minha vida não é escolha minha, nem mesmo
escolha da Verdade, mas escolha deste Teatro Divino. E o desa­
fio é permanecer imóvel nesta encenação. Estou certa?

Ela ergueu os olhos e olhou para as montanhas, hesitando du­


rante uma fração de segundo, e então disse:

O que acontece, em termos das circunstâncias desta


vida, é de algum modo pré-determinado, por desejos pas­
sados, desejos presentes, pela genética, pelo que acontece
na Terra, pelo que acontece com a pessoa sentada perto de
você. Mas como você acolhe o que acontece, é nisto que

221

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

reside a escolha. E se você acolher o que quer que aconteça


entregando-se à Verdade, a realização só revela ser mais e
mais profunda. Então, percebe-se que este Teatro Divino
não está separado da Verdade; a despeito das circunstân­
cias. A despeito da fama e da fortuna, da falta de fama
e de fortuna, a despeito de tudo. Esta é a vitória. Este é o
domínio: não da vida. Mas como a Vida. Onde nenhu­
ma circunstância perturba Aquilo.

Ela continuou lendo:

Eu costumava me perguntar como você pode responder a


todas as perguntas no satsang com tanta perfeição. Agora en-
tendo: é porque você não se move. Você absolutamente não se
move. E, quando vi este seu aspecto imóvel, eu adorei. Ele é tão
bonito. E tornei-me determinada a ser tão imóvel quanto você;
a realizar isto em meu Ser.

Ela parou um momento e pensei que estava contente com a mi­


nha determinação. Mas, também fiquei consciente, com um leve
tremor de apreensão, de que, mais uma vez, tinha feito uma de­
claração a ela e ao universo e que ela certamente seria testada. Ela
continuou lendo:

Já faz três meses que nos conhecemos e a graça, o amor e a


gratidão continuam sempre se aprofundando. Estar em satsang
com você é o dom mais precioso desta vida, de qualquer vida.
Senti a mão de Ramana neste dom, muitas vezes vi o rosto dele
em meditação ou sua forma inteira em visões, como um amigo
antigo me chamando de volta ao lar. Acredito agora que foi
ele que atendeu à minha prece ao universo para encontrar um
222
APEGO AO MESTRE

mestre. Eu pedi especificamente um ocidental...

Ela se desmanchou em risadas e então olhou para mim e, ainda


rindo, apontou um dedo acusador para mim:

Então VOCÊ é a razão pela qual tenho que usar este


corpo e estas roupas ocidentais.

Ela continuou lendo a carta...

... que estivesse vivendo o infinito e que estivesse perto.

Ela olhou para mim e disse:

Sim. Muito perto.

Estas foram as palavras mais belas que ela já dirigira a mim até
então. Barreiras que ainda estavam espreitando ao redor do meu
coração se despedaçaram, quando ela me abraçou com o olhar mais
amoroso. Naquele momento, mais uma vez, não senti qualquer se­
paração. Ela continuou lendo:

Estes foram os meus três pedidos. Não demorou muito para


eu ver que você era aquela mestra, ainda mais perfeitamente
manifesta do que jamais poderia ter imaginado ou esperado.
Agradeço a Ramana todos os dias por este presente. Há algu­
mas semanas, escrevi a Papaji agradecendo a ele também, por
ter enviado o Ganges para fluir na América.
Nunca sei como lhe agradecer. Qualquer coisa que digo,

223

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

escrevo, canto ou faço sempre parece tão inadequada. Existe


um lindo verso em sânscrito que diz...

Ela parou, riu novamente e olhou para mim com um ar de brin­


cadeira.
Ah, você sabe que eu não sei pronunciar estas palavras
em sânscrito. Eu sou uma “ocidental”.

Ela me perguntou se eu sabia pronunciá-las. Eu disse que sim. Ela


me perguntou se poderia cantá-las. Sem hesitação, respondi que sim.

Que bom. Vamos dar o microfone a este “absoluta­


mente ninguém” que usa o nome de “Amber”.

Cantei o verso a capella, sem violão, depois de ter dito a ela duas
semanas antes que jamais poderia fazê-lo. Eu não estava nervosa.
Tinha a sensação de que tudo era imenso e uno, sem separação. Eu
estava, mais uma vez, me afogando no Rio Ganga. Ela me fez cantar
o verso três vezes. Na terceira vez, olhei diretamente em seus olhos
enquanto cantava, algo que jamais fora capaz de fazer. Então, ela leu
em voz alta a tradução:

O único presente que posso dar, meu Senhor, é esta en­


trega.

Ela sorriu e pareceu contente, então disse:

Este é o único requisito. A única coisa que se pede.

224
APEGO AO MESTRE

O sol tinha se posto àquela altura e um crepúsculo profundo e


azul brilhava com magnificência no céu, atrás dela e nas montanhas.
Ela parecia extática naquela noite e muito contente com o esplen­
dor que via em cada rosto. Em certo ponto, disse:

Que lindo momento do dia. Você sabe por que gostamos


desta hora do dia? Porque podemos ver que as distinções
começam a desaparecer. E, assim, as distinções são lin­
das, quando estão desaparecendo. Quando as distinções
desaparecem, esta Luz brilha ainda mais. Confie nesta
Luz. Ela existe no âmago de todo Ser. Reconheça esta
Luz como sendo o seu próprio Ser. Este é o mesmo Ser que
existe no âmago de todo Ser. Nos galhos dos pinheiros, nos
insetos, nos animais, seres humanos, planetas, no sol: no
âmago de tudo é a mesma Luz. É a Luz da paz.
Primeiro reconheça isso. Então você pode se deleitar
até com as distinções. No mundo, nós reconhecemos dis­
tinções e ignoramos isso. E você sabe qual é o resultado.
Você pode descobrir o resultado disto cem vezes em seu
dia. Primeiro, esta Luz, aquilo que não faz nenhuma
distinção. Então, celebre as distinções, como originadas
n’Aquilo.*

Um músico chamado Stephen ergueu a mão e disse que tinha es­


crito uma música nova que tinha muito a ver com o que ela dissera
naquela noite. Ela disse:

Bom. Você vai cantá-la? Trouxe seu violão?

225

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Stephen disse: “Não, mas Amber trouxe o dela.” Antes do sat-


sang, ele havia me perguntado se poderia usar o meu violão, no caso
de ter vontade de cantar, e eu dissera que sim.
Gangaji disse:

Muito bem, porque eu queria que Amber cantasse


uma música também.

Depois que Stephen cantou, Gangaji respondeu a mais pergun­


tas e então me pediu para cantar “Eterno Amigo”. Disse que ainda
não ouvira a fita que lhe enviara e, por isso, queria que eu cantasse
aquela música em especial. Sem qualquer nervosismo, sem qualquer
hesitação, cantei a música que antes considerava íntima demais para
ser cantada em público. Todos os meus antigos problemas em rela­
ção a isso desapareceram, dissolvidos na imensidão e no amor que
envolviam a mim, a Gangaji e a tudo. A entrega era Àquilo, a ela,
não à mente que me dizia que eu não conseguiria. A questão da inti­
midade em relação à música dissolveu-se na proximidade que sentia
naquela noite, na absoluta ausência de qualquer separação.
Ela havia me atraído mais profundamente, para dentro do seu
coração. Pelo menos era como eu sentia. No entanto, sentia que
esta não era toda a verdade. Gangaji tinha me recebido completa­
mente em seu coração em nosso primeiro encontro. Foi só a minha
resistência e as barreiras criadas pela mente que me impediram de
me abrir totalmente: minha timidez, meu medo de ficar vulnerável,
meu hábito de me esconder, meu desejo de ter controle. Mas agora
estava claro: como pode haver qualquer medo de intimidade com o
próprio Ser? Isto é absurdo.
226
APEGO AO MESTRE

Deitada na minha cama, bem-aventurança e amor extáticos pul­


savam em todo o meu ser. A noite toda, a consciência era imensa
demais para ser dominada pelo sono. Perto da meia-noite, Gangaji
apareceu em uma visão. (Chamo-a de visão, em vez de sonho, por­
que não estava realmente dormindo, mas a consciência era mais
profunda do que a consciência desperta.) Esta foi uma das experiên­
cias mais doces e íntimas que tive com ela. Peço desculpas por não
poder descrevê-la com palavras. Mas posso dizer que estava claro
para mim que ela estava removendo resistências muito específicas e
bloqueios que eu ainda devia estar alimentando. Parte desta remo­
ção doía fisicamente, mas o amor e o carinho com que ela o fazia
me encheram de admiração e gratidão, aniquilando-me ainda mais
completamente neste Amor incomensurável.
Estas visões, nas quais ela aparecia vividamente em uma forma
física sutil para remover resistências, aconteceram periodicamente
durante todo o verão. Às vezes, ela até curava algum problema físi­
co. Por exemplo, uma vez tive uma reação alérgica na pele, causada
por uma picada de inseto. A irritação começou a se espalhar, talvez
por causa do calor do verão e, finalmente, acabou piorando ainda
mais. Tentei usar ervas medicinais, remédios alopáticos mais fortes,
mas nada parecia ajudar. Ela se espalhou, piorou e tornou-se tão
desconfortável que pensei que teria que consultar um médico, o que
para mim é sempre o último recurso. Então, uma noite, Gangaji
apareceu em uma visão. Esta foi uma visão de ensinamento, mas,
no momento em que se dissolvia no éter, ela estendeu a mão e tocou
levemente a área afetada; e este foi o fim da irritação de pele.
Esta não foi a cura mais miraculosa que aconteceu. Mas os deta­

227

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

lhes destas experiências não são tão importantes. A importância das


visões está em que elas foram usadas pelo Ser para eliminar quaisquer
obstáculos a este aprofundamento, para suavizar o caminho para o
Seu próprio desenrolar e para me conectar ainda mais intimamente
com minha mestra. A forma que a visão dela tomava (como guru,
como curadora, amiga, mãe, amante, ou até mesmo, uma vez, como
o jovem Buda) era sempre perfeita para a resistência específica que
estava sendo abordada no momento.
Eu também sabia que as visões eram o meu próprio Ser aparecen­
do como Gangaji. Às vezes, a visão da forma de Gangaji dissolvia-se
em uma forma semelhante à minha própria. Entretanto, ficou claro
que não existe diferença: Gangaji e meu próprio Ser são um só.
Eu me surpreendia continuamente e ficava maravilhada com o
mistério e a magnitude do que estava acontecendo. Minha resistên­
cia estava sendo incinerada por este relacionamento intenso, “mais
próximo que a própria respiração,” com meu próprio Ser como
Gangaji. Porém, foi preciso tempo, meses, antes que pudesse contar
tudo isso a ela. Finalmente, em dezembro, escrevi-lhe uma carta
descrevendo, pela primeira vez, algumas das visões que vinha tendo
e expressando minha admiração e gratidão desta maneira:

Que mistério e beleza que um ser humano possa fazer isto


por outro: aparecer como o seu próprio Ser infinito, dando
forma e personalidade ao que, de outra maneira, seria abstrato
demais para a pessoa reconhecer.

Em relação ao aspecto curativo das visões, escrevi:

228
APEGO AO MESTRE

Eu nunca teria lhe pedido nada disso. Não depois do que


você me deu. Mesmo assim, você sempre esteve ao meu lado,
de muitas maneiras.

Assim, embora inicialmente tivesse lutado e me perguntado se


este intenso apego a Gangaji era apropriado, gradualmente tornou­
se claro que ele era muito importante. Ele estava sendo usado pelo
Ser, das maneiras mais sutis e íntimas, para revelar-se a Si mesmo,
para Si mesmo, como o próprio Ser, cada vez mais profundamente.
O apego ao mestre geralmente é mal compreendido, especial-
mente no Ocidente. Ele pode ser considerado uma coisa pessoal e,
como tudo, tomado pela mente como uma “coisa”. No início, co­
meti este erro constantemente. Mas um verdadeiro mestre não deixa
você permanecer neste erro; ele não deixa você descansar em parte
alguma da mente. Em um dos seus primeiros satsangs, gravado na
Índia, Gangaji oferece uma bela descrição deste apego ao mestre e
esclarece certos mal-entendidos que podem surgir em relação a ele.
Durante o satsang, que aconteceu na casa de Papaji, em Lucknow,
um homem perguntou: “O que você faz com seu apego à forma
física [do guru]? Ele pode ser uma armadilha.”
Gangaji respondeu:

Não me parece haver uma armadilha no apego à forma


física de Papaji, a menos que você espere que esta forma se
comporte de uma certa maneira, como “não morrer” ou
“olhar para você neste exato momento”. Porque então há
um problema. Mas o apego à forma é fonte de bem-aven­
turança. Só quando há apego a algum tipo de controle

229

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

desta forma é que surge um problema.


Se você puder apenas ser apegado a esta forma, em
total entrega, o que pode estar errado?
As pessoas me perguntam muito isto, em relação a
Papaji ou em relação a outros gurus que tiveram. Elas
dizem: “Ah, eu sou tão apegado ao guru...” ou “Eu sou
apegado ao Buda... preciso matar o Buda.” E um grande
mal-entendido surge a partir disso. É claro que entendo
o conceito de que “Se você encontrar o Buda na estrada,
mate-o.” Isto significa que, se você encontrar um conceito
do Buda, mate-o. Se você encontrar o Buda, prostre-se
diante dele e deixe o Buda matar você! [risos]
Portanto, este apego à forma não é um problema. O
apego à sua idéia do quê ou como esta forma deveria ser é
o mesmo velho problema, não é? Um problema que você
trouxe para este encontro com a verdade.
Não sei se isso é verdade para os asiáticos ou os india­
nos, mas, na minha experiência, parece que os ocidentais
têm um certo conflito em relação à independência e à
dependência; têm medo da dependência e buscam a in­
dependência, somente por causa de um mal-entendido
sobre a verdade de si mesmo na solidão.
Portanto, se é uma dependência emocional, ainda
existe uma busca de controle. Controle do apego. Algum
tipo de relacionamento; “se eu for suficientemente depen­
dente, terei controle.” E a independência é uma espécie de
“Agora não preciso de nada. Agora consegui.” Ambas são
apenas armadilhas da mente.
Mas este apego sem qualquer possibilidade de rompi­

230

APEGO AO MESTRE

mento não tem nada a ver com dependência nem com


independência. Nada a ver com eu sou dependente, eu
sou independente ou eu preciso ser independente.
Seja apegado. Seja totalmente apegado. Seja apegado
de modo a que não haja qualquer possibilidade de sepa­
ração. Veja Sri Ramana, ele era totalmente apegado a
Arunachala. Foi para lá e nunca mais saiu. Isto é apego.
Poonjaji deixou seu mestre alguma vez? Nunca. Isto é
apego.
Sou muito apegada à forma dele. Sou felizmente ape­
gada à sua forma. Portanto, tenho que reconhecer a sua
forma em toda parte. E reconhecer a sua forma em sua
forma física é dupla, tripla bem-aventurança!*

O apego ao mestre não pode ser captado pela mente. Se a mente


tenta captá-lo, ele surge com as habituais polaridades; neste caso,
dependência e independência. Ou haverá um medo de se perder
o poder, de perder o controle. Há um certo terror, uma frustra­
ção enlouquecedora e uma vulnerabilidade absoluta que devem ser
encarados na impossibilidade de se controlar o guru, o verdadeiro
mestre. As pessoas que resistem ostensivamente e até difamam este
apego ao mestre geralmente são aquelas que se apegam a alguma
imagem que possam controlar, algum “mestre” que possam contro­
lar. Ironicamente, com suas vidas repletas de apego, elas resistem ao
único apego que põe fim a todos os apegos.

231

APROFUNDAMENTO

Conforme a série de satsangs em Boulder naquele verão ia


chegando ao fim, e o outono se aproximava, me dei conta de que
Gangaji em breve deixaria Boulder e só retornaria dentro de sete
meses. Esta perspectiva era aterrorizante. Desde que a conhecera,
no fim de abril, nunca tinha estado fisicamente separada dela mais
do que alguns dias de cada vez. Meu marido ainda estava na pós­
graduação e nós estávamos em uma situação financeira apertada;
portanto, era improvável que ele me deixasse ir para a Califórnia, e
ainda menos provável que me mandasse para o Havaí, onde Gangaji
estaria dando uma série de satsangs no inverno. Em vista disso, co­
mecei a me endurecer, me preparando para o choque da separação.

Depois que os satsangs formais terminaram no final de agosto,


fui a outro retiro com Gangaji em Crestone, no Colorado, que foi
emocionalmente muito turbulento para mim. Todo o meu apego à
proximidade de Gangaji em forma física, todo o meu medo de ser
separada dela continuaram surgindo. Intelectualmente, sabia que o
apego ao qual estava me agarrando era irreal. Dizia a mim mesma
que estava me agarrando ao fenômeno chamado Gangaji, especial-
mente à sua forma e à minha proximidade em relação a ela. Estava
claro que este era o mesmo velho apego aos fenômenos, aos aspec­
tos mutáveis da experiência. Todas as formas vêm e vão e, um dia,
desaparecerão completamente. Era a mesma coisa que estar apegada

232

APROFUNDAMENTO

a um carro, um amante ou uma quantia em dinheiro. Agarrar-se a


qualquer fenômeno é ser prisioneiro.
Deste modo, passei boa parte do retiro tentando “acolher” com­
pletamente este desejo de estar perto dela; muitas lágrimas rolaram.
Um belo riacho percorria o complexo onde estávamos hospedados e
eu tinha encontrado um lugar secreto à sua margem, escondido em
um bosque de sempre-verdes, onde podia me sentar durante horas,
entregando tudo ao riacho. Quase não estava dormindo e, à noite,
ficava sentada sozinha, durante longas horas, na sala de estar da casa
que dividia com Shivaya Ma, Jeanne e mais duas pessoas. Trouxera
meu violão para o retiro mas, por causa do meu estado de espírito
sombrio, não sentia vontade de cantar e, portanto, não o estava
levando para o satsang. Achei que, como era um retiro silencioso,
Gangaji provavelmente não me pediria para cantar. Mas, uma noite,
lembrei-me de uma música que escrevera há muito tempo e que não
mostrara a quase ninguém. Era uma meditação particular, um sutra
secreto que, em minha opinião, poucas pessoas poderiam apreciar.
Sempre tivera a sensação de que a escrevera para alguém especial,
que ainda não tinha conhecido. Agora estava claro que a escrevera
para Gangaji.
Naquela noite, sentei-me à beira do riacho, escrevi a música de
memória em um pedaço de papel, e acrescentei um bilhete. Na ma­
nhã seguinte, no satsang, deixei o envelope na poltrona de Gangaji,
tomando cuidado de colocá-lo debaixo da pilha de cartas, para di­
minuir a chance dele ser aberto na frente de todo o grupo.
Quando Gangaji entrou no salão naquele dia, estava usando uma
roupa que jamais vira antes. Era um conjunto de túnica e calças de

233

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

seda azul. Percebi que estava admirando a roupa, e muito. Isto era
incomum, pois normalmente não penso muito sobre roupas , sejam
as minhas, as dela ou de qualquer outra pessoa. Na realidade, fiquei
levemente irritada comigo mesma, porque não conseguia parar de
pensar naquele belo conjunto.
No início do satsang, Gangaji pegou minha carta debaixo de todas
as outras na pilha (para isso serviu a minha tática) e começou a ler:

Querida Amada Perfeita Mestra do meu Coração:

Estou enviando uma música escrita para você. Ela surgiu


por causa da pergunta: “Por que o Ser, que é uno, joga consigo
mesmo desta maneira, através da aparência da diversidade?”
Não sei se tudo isto está correto, portanto sinta-se livre para
editá-la.

Gangaji riu e disse:

Ela conhece meus hábitos.

Gostaria de cantá-la um desses dias, se for apropriado du­


rante um retiro silencioso (talvez no final), se você...

Ela parou e olhou para o grupo.

Ora, por que não agora? Onde está você, Amber?

Ergui minha mão e engoli em seco, porque não tinha trazido


meu violão. Ela então me perguntou se eu o tinha comigo. Disse

234

APROFUNDAMENTO

que o deixara em meu quarto. Ela me perguntou se poderia cantá­


la assim mesmo. Surpreendentemente, disse que sim, sem qualquer
hesitação. Portanto, cantei a música toda a capella; cometi alguns
erros, mas não me importei, porque sentia que ela estava gostando
da música, que é assim:

Quieto permanece o oceano da ilimitada Pura Consciência


Brilhando, permanecendo em silencioso repouso
Extasiado com o júbilo de sua infinita unicidade
Um oceano imóvel inteiramente só
Mas como pode o Um ver
Sua própria infinitude,
Se quem vê e o que é visto são dois?

Ouça! Um som suavemente se agita no silêncio


Ah, não há doçura mais doce que este som
A centelha, a semente e a fonte de tudo que é criado
Com inteireza em movimento a criação é encontrada
Movido pelo anseio de conhecer seu próprio saber
Nascem o sabido e aquele que sabe

Agora ele aguarda uma voz


Desperta para a sua atemporalidade
Que faça vibrar e preencha a quietude com som
E anseia por um coração
Que possa mover-se em sua ternura
E derreter-se e espalhar doçura ao seu redor
À espreita de um olho que perceba seu puro ouro
E um ouvido que possa ouvir o silêncio cantar

Este som que começou agora se tornou uma sinfonia


Oscilando e soando em ritmo Divino
Ao compasso das rimas de sua radiante melodia
235

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

A criação se desenrola na seqüência do tempo

Porém, apoiada no coração de sua infinita diversidade,

A Pura Consciência permanece sempre UNA.

Ela ficou sentada de olhos fechados durante um bom tempo,


depois que terminei de cantar. Quando finalmente abriu os olhos,
imediatamente juntou as palmas das mãos e disse Om Shanti, encer­
rando o satsang mais cedo. Quando estava se levantando para sair,
olhou para mim. Estendi-lhe o papel com a letra da canção, pergun­
tando silenciosamente se ela o queria de volta. Ela me estendeu a
mão, indicando que sim; entreguei-o a ela, e ela foi embora.
Naquela noite, encontrei uns vinte bilhetes endereçados a mim
no quadro de avisos, agradecendo pela linda música e me pergun­
tando se eu tinha uma fita ou um CD com minhas músicas. Foi
pouco depois disto que surgiu a idéia de juntar algumas de minhas
músicas em uma fita, e doar o dinheiro apurado com a venda para
a Fundação. Tive esta idéia quando a possibilidade de comprar um
centro para retiros em Crestone estava sendo discutida. Eles tinham
encontrado um terreno que agradara a Gangaji, e alguns de nós
tínhamos sido convidados a ir vê-lo uma manhã. Todos nós está­
vamos pensando em como poderíamos ajudar a comprá-lo, e achei
que um álbum musical seria a minha contribuição.
Mencionei a idéia a Shivaya Ma. Dois dias depois, ela me disse
que, inadvertidamente, a mencionara a Gangaji e que ela gostara da
idéia. Encorajada pela reação de Gangaji, decidi começar a trabalhar
no álbum logo que voltasse para Boulder.
Perto do fim do retiro, Gangaji leu uma carta de um homem
chamado Foster, que evocou uma resposta profunda:
236
APROFUNDAMENTO
APROFUNDAMENTO

Querida Gangaji,

Não sei quem eu sou, o que estou fazendo, nem aonde es­
tou indo. A maior parte do tempo penso que sei todo tipo de
coisas. E que sou capaz de fazer muitos tipos de coisas. Mas,
na verdade, não sei nada. Não posso nem mesmo fazer a coisa
mais simples, que é ficar em silêncio, ficar quieto. Às vezes,
anseio por me desnudar, abrir mão completamente de todas as
ilusões às quais me agarro e ser livre finalmente. É possível fazer
isso quando não tenho cem por cento de disposição?

Gangaji olhou para nós com uma seriedade que abalou algo bem
no fundo de mim mesma.

Não, não é possível. Sem cem por cento de disposição,


não há possibilidade de reconhecer, cem por cento, quem
você é. É claro que, com noventa por cento de disposição,
você terá explosões de bem-aventurança e verdade. Mas
ainda haverá uma fragmentação, que será uma negação
daquela explosão, uma tentativa de se agarrar à auto­
negação.
Fico feliz em desiludi-lo desta idéia de que se pode des­
pertar para quem se é e ser livre pela metade. A onda de
condicionamento é muito grande, não se deixe enganar.
Ela está codificada na estrutura genética de seu corpo. Ela
informa cada instinto, cada impulso, cada pensamento,
cada emoção. Ela é tremenda.
Entretanto, ela não se compara a cem por cento de
disposição para despertar. Toda a inércia se nivela nisto.
Cem por cento é fácil. Qualquer coisa menos que isto, e

237
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

há dificuldade: dez por cento, cinqüenta por cento, cem


por cento de dificuldade.
Pode parecer uma verdade rude. Esta é uma verdade
gloriosa. Finalmente, você reconhece que, se abrir mão, eu
abro mão. E, assim, a mente se aquieta, naturalmente.
É melhor perceber ou sentir que você não está cem por
cento disposto a despertar para a verdade de quem você é,
do que negar isto e andar por aí dizendo: “Ah, eu estou
disposto; estou porque tenho que estar.” Porque alguém
disse que você deveria estar cem por cento disposto.
É crucial ver onde você impede que a simples disposi­
ção exista. Quando você pode afirmar que não está cem
por cento determinado, então pode perguntar: “A que es­
tou me agarrando? E o que imagino que isto vai me dar,
já me deu ou poderá me dar?”

Muitas vezes, nas semanas seguintes, faria estas perguntas a mim


mesma. Estas eram palavras de Auto-investigação, palavras que po­
diam parar a mente e atirar a consciência de volta para Si mesma,
mais profundamente na quietude de meu próprio Ser, que não pre­
cisa de nada.
Gangaji continuou falando sobre o implacável “abrir mão” que é
necessário para se despertar cem por cento.

Perca tudo cem por cento e então veja: o que foi per-
dido? Você nunca pode ver isto, nunca pode saber isto, de
verdade, com convicção, até que tenha perdido tudo; até
que tenha, conscientemente, perdido tudo. É claro que
você perde tudo todas as noites, quando cai em um sono
238
APROFUNDAMENTO

profundo. Mas estamos falando do estado desperto. Você


sabe que não consegue dormir, a menos que abra mão de
tudo, cem por cento.
As pessoas iniciam a busca espiritual a partir de uma
idéia egóica do que vão obter, isso é óbvio. É assim que
começa. Este é o aspecto positivo do ego. “Estou cansada
de sofrer. Quero ser feliz. Ouvi dizer que existe felicidade
no campo espiritual.” [risos] “Vou pegar um pouco para
mim. Talvez consiga um bocado.” Isto está bem. Este é
o aspecto positivo do ego. Trata-se, na verdade, de um
ego bastante desenvolvido, um ego que funciona, um ego
integrado: “Quero ser feliz.”
Mas que surpresa ao se perceber que para ser feliz, você
abre mão de tudo! Você não leva nada. Que surpresa!
Para receber a verdadeira felicidade, você pára de tentar
OBTER qualquer coisa.
Bem, é claro que, inicialmente, isto é inacreditável,
por isso você continua tentando obter algo. “Sim, sim, eu
sei que é isso que eles dizem, mas... eu sei, é...” [risos] Você
conhece este tipo de trato, não?

Havia um sentimento no salão de total reconhecimento. Todo


mundo tinha começado a busca espiritual pensando que iria obter
alguma coisa. Eu procurei dentro de mim: “O que ainda estou ten­
tando obter?”

A tentativa de obter algo assume inúmeras formas.


“Bem, vou conseguir alguma coisa me vestindo como
Buda”, ou “Vou conseguir algo me vestindo toda de bran­
239
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

co,” ou “Vou ganhar algo sorrindo, olhando nos olhos das


pessoas ou servindo.” Mas você sempre empaca em beco
sem saída: “Por que não consegui? Eu tenho sido boa. Fiz
a coisa certa. Fiz doações.” [risos] “Por que não alcancei
a felicidade?” Não se alcança a felicidade ao obter al­
guma coisa. Obviamente, obtém-se momentos de prazer.
Certamente pode-se ter a experiência de felicidade tem­
porária. Mas, para reconhecer que VOCÊ É ISSO QUE
É FELICIDADE, é preciso abrir mão de tudo. Cem por
cento. Não estou falando de abrir mão do seu carro ou
de seu cabelo. [riso] Do seu emprego, da sua esposa ou do
seu marido. Isto não é nada. Estou falando de abrir mão
de TUDO.

Ela ficou quieta por um momento, olhando para os rostos imó­


veis ao redor do salão, enquanto a verdade de suas palavras penetra­
va neles.

Sabe quanto tempo isso leva?

Um silêncio intenso ocorreu, e durou alguns minutos. Então ela


disse, calmamente:

Menos do que um instante.

Suas palavras reverberaram no silêncio. Algumas pessoas à minha


volta pareceram dar um suspiro de alívio, profundo e inimaginável.

Não estou falando de uma luta prolongada, na qual


240
APROFUNDAMENTO

você desiste de mais alguma coisa a cada dia. Nesta luta


prolongada, cada dia em que desiste de mais uma coisa,
você também pega outra. Não, estou dizendo que leva
menos do que um instante. Não adotar outra idéia, tal
como: “Ah, sim, isto parece bom, talvez experimente al-
gum dia.” Assim, você simplesmente adotou outra coisa.
Até ao dizer para si mesmo “Gangaji diz que eu devia
fazer isto. Vou pensar...” você está adotando outra idéia.
Desista de Gangaji, abra mão destas palavras, desista de
toda interpretação.

Novamente, houve um longo silêncio no salão. Senti antigos


impulsos de me agarrar a algo sendo deslocados, expostos.

Menos do que um instante. Reconheça a sua verdadei­


ra face, cem por cento, e mais. Então fica claro quando
você começa a “pegar mais coisas”. Então fica bastante
óbvio como é simples desistir e como é difícil, complica­
do e prolongado adotar mais coisas. Isto é óbvio. Não é
nada que você precise aprender, nada de que tenha que
se lembrar, nada que tenha que afirmar. É simplesmente
óbvio.
Nós podemos optar entre escolher a verdade ou negá­
la. Infelizmente, negamos a verdade durante muito tem­
po. E, portanto, sentimos que não temos escolha. Dizemos
que “simplesmente acontece”. Mas eu não aceito isto. Sei
que é mentira. A negação não acontece simplesmente.
Ela pode surgir por causa de negações anteriores, mas, no
momento em que se reconhece a opção de “desistir disso”,
241

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

há opção. Escolha verdadeira. A opção de se entregar e a


opção de não se entregar. A opção de tentar controlar, re­
jeitando ou tentando alcançar algo, ou a opção de desistir
de tudo.
Mesmo que você esteja tentando alcançar uma mente
quieta, ainda é o mesmo velho “tentar obter”. Finalmen­
te, você reconhece que isto simplesmente não funciona.
A mente fica ainda mais agitada quando está tentando
ficar quieta.
Quietude é a Presença do Ser. Você É a Presença do
Ser. Receba o seu Ser. Beba o seu Ser. Seja alimentado
pelo seu Ser; quer você o encontre em uma sensação de
centro ou fora dele, nas montanhas, no céu, nas nuvens,
na grama. Seja alimentado por Aquilo. E, então, comece
a sua exploração d’Aquilo. Explore o seu Ser.
Não estou sugerindo que você explore os seus pensamen­
tos. Eles o levaram o mais longe que podem. E ainda é o
mesmo círculo, a mesma roda. Não explore suas emoções,
seus sentimentos, suas sensações, nem suas circunstâncias.
Explore o seu SER. Aquilo que existe antes, durante e
depois de todos os objetos da consciência, todos os fenôme­
nos, todas as emoções, todas as circunstâncias. AQUILO.
Aquilo é a Presença do Ser.
Algumas pessoas se referiram a isso como o vazio. Mas,
se você imaginar o vazio, não é isso. Algumas pessoas se
referiram a isso como plenitude. Se você acha que sabe
o que é plenitude, não é isso. Algumas pessoas andaram
por aí dizendo: “Não é isso, não é aquilo, não é isso, não
é aquilo.” Também não é isso. [risos]. Se você acha que

242

APROFUNDAMENTO

isso é uma filosofia que precisa ser seguida, não é. Se acha


que é uma filosofia que não deve ser seguida, não é. Está
muito mais perto. Se você acha que é pessoal, não é. Mais
perto. Se acha que é impessoal, não é. Muito mais além.
Portanto, sim, isso exige cem por cento. Exige tudo que
você acumulou. Exige tudo que você tem.
Isso toma tudo, de qualquer maneira. Você entende?
Toma tudo de qualquer maneira! Mas você tem a opor­
tunidade de entregar tudo conscientemente, agora, antes
que o corpo retorne à terra. Este é o segredo.*

Durante este satsang, ocorreu uma desilusão importante, que


é difícil descrever com palavras. Essencialmente, foi um profundo
reconhecimento de que nada pode lhe dar o que você já é. Nada!

Gangaji ficou todo o mês de setembro em Boulder. Houve dois


satsangs pequenos para os voluntários, mas ela descansou a maior
parte do tempo. Cozinhei para ela algumas vezes, e fiz a limpeza uma
vez por semana. Porém, a expectativa do dia em que iria embora de
Boulder pesava em meu coração. Não tinha idéia de como seria.
Queria ser madura em relação a isso, e não agir como uma criança
sendo arrancada dos braços de sua mãe; mas, conforme se aproxima­
va o dia de sua partida, era exatamente assim que me sentia.
Estava chegando a hora do último satsang, e a dor no meu cora­
ção tornara-se insuportável. Este fora o verão mais lindo e profundo
de toda a minha vida, e não conseguia imaginar como seria a vida
em Boulder sem Gangaji. Com certeza, tudo se tornaria comum,
sem sentido, mundano e absurdo. Em um certo nível, acredito que
243

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

temia a perda de tudo que tinha acontecido: o corte da identifica­


ção com a mente, a expansão da consciência, a bem-aventurança de
servi-la, de sentar-me em satsang com ela, as visões, tudo.
Meus amigos, vendo meu estado depressivo, tentaram me ani-
mar convidando-me para ir ao cinema, para uma caminhada ou
para almoçar fora. Mas eu estava inconsolável. Por mais que apre­
ciasse estas tentativas de ajuda, sentia que havia algo importante
que precisava ser acolhido diretamente, sem tentar desviar a minha
atenção através de uma distração agradável. Não tentei explicar isso
a ninguém, exceto a Shivaya Ma. Sabia que ela era a única amiga
que entenderia totalmente este anseio. Ela estava com Gangaji há
quatro anos, tinha morado e viajado com ela, e me contara as his­
tórias de suas próprias lutas com a separação física de sua amada
mestra. Portanto, uma noite, durante a pior fase desta dor, dei uma
longa caminhada com Shivaya Ma. Ela confirmou o que eu intuiti­
vamente sabia ser verdade: que aquilo não era algo a ser evitado. O
desafio era não tentar me “sentir melhor”, mas mergulhar no âmago
da dor e deixá-la “me tomar por inteiro”.
Sentei-me sozinha com aquilo a noite toda, e deixei que me to-
masse por inteiro. Parecia que eu ia morrer. Estava disposta a mor­
rer. Mas a dor e o medo não cediam. Quando finalmente adormeci,
exausta e desesperada, Gangaji veio até mim em um sonho vívido
que, mais uma vez, inundou minha consciência com a Verdade de
que não há qualquer possibilidade de separação. Escrevi a ela sobre
este sonho, e entreguei-lhe a carta durante o último satsang antes
de sua partida, que foi uma pequena reunião na Fundação, para as
pessoas que tinham ajudado a organizar os satsangs em Boulder na­

244

APROFUNDAMENTO

quele verão. A carta começava descrevendo o intenso anseio e como


ele tinha começado em um pequeno satsang na semana anterior,
tornando-se então insuportável:

No dia seguinte, esta dor tornara-se muito intensa; fisica­


mente intensa, como uma estaca cravada em meu coração.
Sentia que ia morrer se tivesse que ser separada de você desta
maneira.
Cinco amigos me ligaram naquele dia, tentando me animar,
querendo me levar para almoçar, para uma caminhada, etc. So-
mente uma amiga me deu um conselho que eu segui. Ela disse:
“Abra seus braços como na cruz e deixe-se crucificar.”

Gangaji olhou para cima e sorriu:

Esta é uma verdadeira amiga. Uma amiga implacável.

Pensei: Sim, Shivaya Ma é definitivamente isto: uma verdadeira


amiga, uma amiga implacável. Ela uma vez me disse: “Eu não falo
assim com todo mundo. Mas, de alguma maneira, vejo-me sendo
tão implacável com você quanto sou comigo mesma.”

Portando, sentei-me com aquilo o dia inteiro, e metade da


noite, disposta a morrer, desejando morrer e ser crucificada e,
ainda assim, doía terrivelmente.
Então, quando finalmente adormeci, você veio a mim em
um sonho. Você estava tão amorosa, como uma mãe com sua
filha pequena, e eu era uma menininha, sendo acalentada e
confortada. Esta imagem de você como mãe é incomum para
mim, porque quase sempre a vi como Guru, como Kali, geral­
mente implacável e sempre intensa. Mas, até mesmo no sonho,
245

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

vi que esta imagem de você como uma mãe amorosa era, na


verdade, meu próprio Ser aparecendo desta maneira.
O sonho foi cheio de Graça, como se eu estivesse banhada
nela. Então, quando acordei, ainda sentia a Graça ao redor de
mim e o amor; e a intensa dor em meu coração foi aliviada.
Senti-me mais próxima de você do que jamais me sentira,
como se um grande nó de separação tivesse sido desfeito na
Graça daquele sonho. E soube, mais claramente do que nunca,
que você é meu próprio Ser, me conduzindo de volta ao lar,
das maneiras mais implacáveis e amorosas, para que eu possa
ouvi-lo.
Obrigada, Querida, Amada Gangaji, por me lembrar de que
você está sempre presente, sempre, sempre bem aqui.

Gangaji olhou para mim, com um olhar amoroso que penetrou


fundo em minha alma. Então ergueu a carta para o grupo e disse:

Esta é a realidade. O resto é o sonho.

Com um movimento de mão, ela se referiu ao salão e a toda


a existência fenomenal, lembrando-nos que, na verdade, estamos
sempre nos braços do Ser Bem-Amado.
Alguns dias depois, na véspera do meu aniversário, Gangaji me
deu o conjunto de túnica e calças de seda azul que tanto admirara
durante o retiro. Nunca havia dito a ela, nem a ninguém, que gos­
tava daquele conjunto. Mas, de alguma maneira, ela sabia. Como
poderia não saber? Ela é o meu próprio Ser.

246

O FILHOTE DE ÁGUIA

Gangaji ia ficar mais uma semana em Boulder, mas não ha­


veria mais satsangs. Seu marido, Eli Jaxon-Bear, estava dando um
workshop sobre o Eneagrama naquela semana. Depois do workshop,
Gangaji e ele pegariam um avião e voltariam para Marin County, na
Califórnia, onde ela iniciaria a próxima série de satsangs.
Inicialmente, não tinha qualquer intenção de participar do
workshop. Não gosto de workshops, especialmente os que abordam
temas psicológicos e emocionais. Mas estava curiosa o bastante para
assistir a uma palestra introdutória na noite de quarta-feira, véspera
do início do workshop. Eu não sabia nada sobre o Eneagrama, mas
ouvira pessoas que freqüentam os satsangs discutindo as diversas
fixações de caráter, da mesma maneira que se discute os signos astro­
lógicos. “Ah, eu acho que ele é um 4.” “Não, ele é definitivamente
um 9.” Tudo que eu conseguira compreender destas conversas é que
havia nove tipos de caráter, chamados fixações e que era importante
descobrir qual é a sua. Meu amigo Jim me contara que, quando
estava tentando dividir uma casa com outras pessoas no verão ante­
rior, tivera que ler um livro sobre o Eneagrama e descobrir qual era
o seu número, antes que o deixassem se mudar.
Estava levemente familiarizada com a astrologia ocidental, a as­
trologia oriental e diferentes versões de numerologia, e não conse­
guia entender por que um outro sistema de categorização de per­
sonalidades acrescentaria uma contribuição significante à busca da

247

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

verdade. Com isto em mente, perguntei a Eli durante a palestra


introdutória: “O que aprender qual é o seu número tem a ver com
despertar para a verdade do seu ser?”
Ele respondeu explicando que a fixação de caráter é mais pro­
funda que a personalidade e, na verdade, é um substrato de estra­
tégias sutis sobre o qual a personalidade é construída. Até mesmo
após um despertar significante, a fixação de caráter pode continuar
a surgir, arrastando a pessoa de volta à mente e colorindo a expres­
são de uma vida, e até mesmo o relacionamento com o guru, com
as necessidades imaginárias da fixação. Ele deu um exemplo que,
estranhamente, descrevia a carência e o apego que estava vivencian­
do com Gangaji. Nem mesmo me lembro qual foi. Tudo que me
lembro é que ele me decifrou com tanta exatidão, que comecei a rir
incontrolavelmente.
Vendo minha abertura, Eli riu alegremente e disse: “Peguei você,
não foi?” Continuei rindo, outras pessoas começaram a rir tam­
bém, e eu não conseguia parar. Alguma coisa muito profunda, à
qual vinha me apegando, foi liberada naquela gargalhada. Nem sei
como descrever o que foi. Só senti que estava abrindo mão de uma
coisa profunda à qual estivera apegada firmemente até então. Esta
experiência me impressionou o suficiente para eu me inscrever no
workshop de cinco dias.
A maioria dos participantes eram rostos conhecidos, pessoas que
tinham comparecido aos satsangs durante todo o verão, e come­
çávamos cada sessão sentados em silêncio, como nos satsangs. Eli
começou o workshop com uma breve história do Eneagrama. Suas
origens exatas são desconhecidas, mas alguns adeptos dizem que

248

O FILHOTE DE ÁGUIA

começou na Irmandade Naqshbandi dos Sufis e, antes disso, na ir­


mandade Sarmoun*, na Mesopotâmia.
Embora o Eneagrama seja com freqüência usado superficial­
mente, simplesmente para determinar tipos de caráter, do mesmo
modo que a astrologia ocidental é utilizada para determinar tipos
de personalidades, a palestra de Eli apresentou-o em um nível mui­
to mais profundo: como uma maneira de ajudar o despertar para
a Verdade. Sob este ponto de vista, as nove fixações de caráter são
vistas como estratégias básicas que uma alma usa para esconder-se
de si mesma, movendo-se em direção a algo, afastando-se de algo
ou movendo-se contra algo. Cada uma destas três estratégias básicas
tem três versões subsidiárias: interna, externa e central; isto resulta
em nove fixações. Sentando em satsang com Gangaji durante os
cinco meses anteriores, já tinha visto o significado de “não se mo­
ver”. Agora estava entendendo o Eneagrama como um sistema que
delineia as três maneiras básicas em que este “se mover” acontece.
Não precisei de muito tempo para ver que “afastar-se de algo” era a
estratégia característica que eu usava. E parecia que eu era bastante
“interna” em relação a isso, o que podia ser traduzido como fixação
“cinco” no Eneagrama.
Durante o workshop, Eli explicou todas as nove fixações e colo­
cou-as em um gráfico com nove pontos. A estratégia de “mover-se
contra algo” é chamada de ponto-raiva; as pessoas neste ponto vêem
os problemas como algo que existe “lá fora”, no mundo ou nos ou­
tros, e têm uma tendência a tentar consertar as coisas. A estratégia
de “afastar-se” é chamada de ponto-medo. As pessoas neste ponto
são caracteristicamente mentais, e gastam muita energia manten­

249

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

do-se a salvo de todo tipo de perigos imaginários. Sua estratégia é a


“proteção” e, em sua manifestação mais interna, até mesmo o isola­
mento. A estratégia de “mover-se em direção a algo” é chamada de
ponto-imagem; as pessoas neste ponto são caracteristicamente emo­
cionais e têm uma necessidade insaciável de amor. Sua estratégia de
vida envolve a busca constante de maneiras de obter amor, manter
o amor ou lamentar a sua perda.
Conforme Eli falava sobre as nove fixações, eu via como cada
uma podia ser usada para desviar a alma de seu verdadeiro Ser: man-
tendo a pessoa absorta na ilusão de que a realização é possível, se
ela conseguir “resolver uma quantidade suficiente de problemas,”
“manter afastada a maior parte das coisas desagradáveis” ou “con­
seguir amor suficiente”. Achei tudo isso interessante e revelador e
gostei de escutar Eli falar. Ele tinha uma forte presença silenciosa
e permanecia muito quieto, seja o que for que as pessoas atirassem
para ele durante a sessão. Depois de uma sessão, disse a ele: “Gosto
de observar o modo como você não se move.”
Ao contrário de Gangaji, que raramente deixa as pessoas pros­
seguirem em longas discussões sobre seus problemas, Eli paciente­
mente deixava cada um falar o quanto quisesse, não apenas sobre
seus próprios problemas, mas os problemas da mãe da ex-namorada
e daí em diante. Esta era a última coisa no mundo que me interessa­
va e, quando a emocionalidade aumentou no segundo dia, comecei
a me desligar, desejando ter seguido o meu hábito de evitar este
tipo de workshop. Sentia-me prisioneira, ouvindo todas estas pes­
soas revelarem os detalhes mais terríveis de seus problemas pessoais.
Minha fixação estava se manifestando: queria dar o fora, me isolar,

250

O FILHOTE DE ÁGUIA

me proteger do lixo emocional das outras pessoas; este tinha sido o


hábito de toda esta vida.
Queixei-me a Eli após uma das sessões: “Eu detesto isso,” disse a ele.
Ele disse: “Detesta o quê?”
Eu disse: “Todas estas pessoas e seus problemas estúpidos.”
Ele ficou quieto por um momento e só olhou profundamente
em meus olhos. Finalmente, perguntou: “Quão digna de amor é
você?”
Era a última coisa que esperava que ele dissesse, e isso me parou
por um momento. Finalmente, sacudi os ombros: “Bastante digna
de amor, eu acho.”
Ele disse: “Sim. Você é o próprio amor. Amanhã, veja se conse­
gue descobrir este amor nos olhos de cada pessoa que estiver falando.”
De algum modo, esta instrução mudou o foco da minha aten­
ção. No dia seguinte, quando as pessoas estavam falando, eu não
estava mais fixada no problema insípido que estavam relatando. Por
trás dele, mais profundo que ele, vi um amor profundo brilhando
nos olhos de cada uma delas. Permitir que minha atenção se focali­
zasse no amor, em vez das histórias que estavam contando, tornou
os dias seguintes do workshop suportáveis.
Mas estes eram os últimos dias antes de Gangaji ir embora e,
conforme eles passavam, a possibilidade de ser separada dela pesava
sobre meu coração como um machado, e isto me tornava chorosa,
emocionalmente volátil e geralmente desinteressada de tudo. Mas
Eli estava sendo muito paciente comigo; ele simplesmente sorria e
dava tapinhas no meu ombro, sempre que eu começava a me quei­
xar de alguma coisa.

251

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Em um certo ponto, Eli nos mandou fechar os olhos e começou


a nos guiar em uma meditação. Ele nos pediu para imaginar o topo
de uma montanha muito alta, com um ninho de águia na ponta de
um rochedo. Lá embaixo, um vale profundo. No ninho, moravam
a mamãe águia e seu filhote. Todos os dias, a mamãe águia saía em
busca de comida e, em pouco tempo, voltava ao ninho para alimen­
tar seu filhote.
Um dia, a mãe não voltou. Conforme passavam as horas, sozi­
nho e faminto, o filhote começou a ficar ansioso. E a mamãe águia
não voltava. A ansiedade do filhote se transformou em medo. “Por
que ela não voltou? Vou morrer de fome aqui sozinho. Será que ela
me esqueceu?”
Quando o filhote estava ficando aterrorizado, a mãe finalmente
voltou, com um rato no bico. Mas ela não pousou no ninho, nem
colocou a comida na boca do filhote, como sempre fazia. Em vez
disso, empoleirou-se na beira do ninho, longe do alcance do filhote.
O rato pendurado em seu bico era convidativo. Os olhos famintos
do filhote fixavam-se nele. Com suas perninhas cambaleantes, ele se
arremeteu para frente. A mamãe águia alçou vôo repentinamente,
fora do alcance do filhote. O filhote se viu de pé na beira do ninho,
enquanto a mãe voava ao seu redor.
O filhote começou a grasnar e reclamar, confuso e zangado por
sua mãe estar sendo tão cruel. Ela não sabia como ele estava famin­
to? A mãe voou para perto do filhote, e ele se arremeteu novamente
em direção ao ratinho pendurado em seu bico. Novamente, no úl­
timo momento, ela voou para longe.
Desta vez, o movimento do filhote fez com que ele caísse do

252

O FILHOTE DE ÁGUIA

ninho; ele estava caindo em direção ao vale, grasnando, chorando,


lutando. Ele estava chocado por sua mãe deixá-lo cair daquela ma­
neira. Ela tinha tomado conta dele tão bem durante todas aquelas
semanas no ninho.
A mamãe águia estava sobrevoando o ninho, mas não interfe­
riu na queda do filhote. Ele caía mais e mais, dando cambalhotas,
gritando para a mãe. O fundo do vale estava ficando cada vez mais
próximo. O filhote ficou mais zangado com sua mãe. Como ela
podia fazer isso com ele?
Finalmente, a raiva transformou-se em terror, quando o filhote
percebeu que provavelmente morreria. Ele olhou para o fundo do
vale que se aproximava. Não havia nada a fazer, exceto ceder ao
destino. No último momento, ele colocou a cabeça para baixo e se
entregou. Quando fez isso, suas asas relaxaram e espontaneamente
se abriram. Miraculosamente, ele começou a deslizar. Ele estava vo­
ando! Ele estava livre!
A mãe então voou para perto dele. Juntos, eles voaram cada vez
mais alto, bem acima do fundo do vale. Então, ela começou a ensi­
nar-lhe como voar nas correntes de ar e subir ainda mais alto.*

Eli nos pediu para abrir os olhos e então perguntou qual fora
a nossa experiência. Imediatamente, comecei a rir. Ele olhou para
mim e pediu-me para relatar a minha experiência. Eu disse: “Eu era
o filhote de águia. Gangaji era a mamãe águia.” Com uma expressão
amuada no rosto, acrescentei: “Ela vai voltar para a Califórnia, e
está me atirando para fora do ninho!”
A sala toda explodiu em gargalhadas. Provavelmente, todos pen­

253

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

saram que eu era estúpida e apegada. Mas não me importei com o


que as pessoas pensavam. Além disso, era verdade. Sentia-me como
o filhote de águia.
Depois que Eli parou de rir, contou a história de quando ele e
Gangaji conheceram Papaji. Nesta ocasião específica, eles estavam
tentando convencer Papaji a voltar com eles para Maui, para viver e
dar satsang na ilha. Eles disseram a Papaji que seria muito mais con­
fortável em Maui e, já que a ilha se situava bem no meio do oceano
Pacífico, ele seria igualmente acessível a seus discípulos americanos
e asiáticos.
Eli virou-se para mim e disse: “A resposta de Papaji foi a seguin­
te: ‘A árvore nova não consegue crescer plenamente à sombra da
árvore grande.’”
Pensei nisso por um momento, e percebi que devia ter sido ne­
cessário para Gangaji afastar-se de Papaji e cercar-se de seus pró­
prios discípulos, para que pudesse florescer e tornar-se a mestra que
era. Mas não conseguia entender por que Eli estava dizendo isto
para mim. Eu era apenas uma pequena mudinha. Mudinhas novas
precisam da proteção da sombra da árvore grande. De outro modo,
elas podem ser queimadas pelo sol ou comidas pelos insetos.
De alguma maneira, este diálogo fez-me perder ainda mais as es­
peranças de que Gangaji fosse me permitir realizar o desejo de viver
perto dela. Quando penso naquela época, vejo que tinha sempre
certas imagens em minha mente sobre como seria “estar com seu
mestre”, como seria “ser totalmente aceita pelo seu mestre.” Seria
assim: eu viveria aos seus pés dia e noite, meditaria a seu lado, dor­
miria em sua varanda, estaria disponível para servi-la a qualquer

254

O FILHOTE DE ÁGUIA

momento, moraria com ela, viajaria com ela, etc.


Eu era extremamente apegada a estas imagens românticas. Toda
vez que minha relação exterior com Gangaji não parecia coincidir
com estas imagens, tinha tendência a sentir que não estava sendo
aceita, que estava fazendo alguma coisa errada, que ela não estava
satisfeita comigo ou que eu não progredia rápido o bastante. Agora
vejo que toda esta ansiedade era causada pelo meu apego às imagens
em minha mente. Um verdadeiro mestre não cede às suas imagens
mentais. Um verdadeiro mestre queima todas as imagens até elas
virarem cinzas: as imagens sublimes e as imagens horrendas. Foi
exatamente isto que Gangaji fez.
Algum tempo depois, ouvi-a dizer em um vídeo:

Se tem uma palavra, se tem uma imagem, se tem uma


sensação, vá mais fundo.*

Assim, enquanto Gangaji se preparava para voltar para a


Califórnia, deixei-me cair de cabeça, e fui mais fundo.

255

NÃO SE ACOMODAR EM LUGAR ALGUM DA MENTE

No início de outubro, passei pela experiência de estar separa­


da de Gangaji e dos satsangs formais pela primeira vez. Apesar do
medo que tivera de sua ausência física, fiquei impressionada com o
quão próxima dela eu me sentia, a cada momento, e com a intensi­
dade com que o aprofundamento continuava se desenrolando. Uma
semana após a partida de Gangaji para a Califórnia, escrevi-lhe uma
carta que continha o seguinte relato:

Vejo que você não foi a parte alguma. Você está bem aqui,
mais presente do que nunca, mais próxima do que nunca. Sua
presença é tão forte que, às vezes, durante a noite, embora meu
corpo esteja adormecido, minha consciência permanece des­
perta; desperta nesta Presença de você. Que ridículo que eu
tenha podido duvidar disto, considerando-se as experiências
dos últimos cinco meses. Acho que estava apenas apavorada
porque, desde que a conheci, nunca estive fisicamente separada
de você por mais de alguns dias de cada vez. Obrigada por
me permitir passar por aquela terrível saudade enquanto você
ainda estava presente fisicamente. Na terça-feira, quando sua
forma partiu de Boulder, não senti qualquer separação.

Nesta carta também lhe contei, pela primeira vez, sobre algu­
mas visões que haviam ocorrido durante o retiro em Estes Park, e
desde então. Não sei porque não conseguira contar-lhe antes. Acho
que ainda estava tentando manter uma certa distância, uma certa
privacidade. Mas agora vejo que não há espaço para me esconder
256

NÃO SE ACOMODAR EM LUGAR ALGUM DA MENTE

nesta relação. Com a mestra que apareceu como o seu próprio Ser, a
intimidade é absolutamente desconhecida em sua profundidade. É
uma proximidade que se aprofunda sempre, que não pode ser com­
preendida por nenhum conceito mental, pessoal ou humano. Esta é
a revelação de Ser para Ser.
Portanto, disse-lhe tudo naquela carta. Como parte dos eventos
já foram descritos nas páginas precedentes, não reproduzirei aqui a
carta inteira. Os últimos parágrafos eram assim:

Duas vezes você me mostrou o universo dissolvendo-se


diante de meus olhos. Pelo menos foi assim que me pareceu. A
primeira vez em que isto aconteceu foi em junho, e eu resisti e
me fechei. Porém, duas noites atrás, isto aconteceu novamente
e, desta vez, consegui dizer: “Está bem, deixe que dissolva.”
Então surgiu o reconhecimento de que “eu não sou isto que
se dissolve, eu sou a consciência na qual tudo se dissolve.” Foi
como uma imagem de caleidoscópio partindo-se em pedaços,
junto com a sensação de que tudo se dissolvia. Minha consci­
ência era imensa, estava em toda parte, era una com esta vasta
Presença que é você.
Ainda assim, sinto saudades. Não é um anseio propriamen­
te, mas uma doce saudade. Que mistério, esta relação na qual
não existem realmente dois que se relacionam. A mente pára
quando tenta pensar sobre isso: esta Graça surpreendente, este
Amor. Agora vejo que você me deu tudo, tudo. E esse tudo con­
tinua se revelando, e se aprofundando. A única coisa que posso
fazer é dar isso a todos que encontro; com palavras ou não, quer
eles possam receber ou não, isso é dado, espontaneamente dado.
Gangaji, precioso Ser, estou a seus pés. Não, isto é longe
demais. Eu sou seus pés; e suas mãos, sua voz e seus olhos.
Interminavelmente sua,
Amber

257
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Alguns dias depois de enviar esta carta, apesar de minha suposi­


ção inicial de que uma viagem até a Califórnia estava fora de ques­
tão, várias circunstâncias conspiraram para tornar a viagem possível.
Uma de minhas irmãs, que mora na área da baía de São Francisco,
me convidou para passar um tempo com ela; as passagens de Denver
para São Francisco estavam mais baratas do que nunca; Toby con­
cordou que, se quisesse uma chance de ver Gangaji antes dela se
retirar para Maui durante o resto do inverno, eu deveria ir logo.
A viagem foi sem esforço e perfeita. Percebi que minha mente
permanecia muito quieta, até mesmo em meio ao tráfego da Área
da Baía, que se tornara infinitamente pior desde a época em que eu
ali vivera, vinte anos antes. Desde os meus doze anos, minha famí­
lia morara em uma pequena cidade de subúrbio chamada Orinda,
encravada nas colinas, a uns vinte quilômetros de Berkeley. Dos
seis irmãos, só Susan ainda morava naquela região, com sua própria
família.
A escolinha onde os satsangs seriam realizados ficava do outro
lado da baía, em San Rafael. A viagem diária era um pesadelo de
auto-estradas, pontes e túneis entrelaçados. Mas nada disso me afe­
tava enquanto eu dirigia, atravessando a baía todos os dias. Dentro
de mim, não sentia qualquer movimento.
Como tinha morado na Área da Baía, naturalmente encontrei
alguns velhos amigos no satsang, alguns dos quais faziam parte do
grupo espiritual que freqüentara anteriormente. Apesar de não ser
geralmente um ser social, percebi que estava comparecendo a vá­
rios encontros com estes velhos conhecidos, sem qualquer esforço.
Durante estes encontros, geralmente discutia-se, questionava-se e

258

NÃO SE ACOMODAR EM LUGAR ALGUM DA MENTE

comparava-se o satsang com outros tipos de ensinamentos espiri­


tuais. Muitas vezes, eu acabava falando com uma confiança e uma
autoridade que surpreendiam as pessoas que tinham me conhecido
anteriormente como uma pessoa quieta e tímida. Isto surpreendia a
mim também.
Em um almoço, alguns velhos amigos estavam discutindo os en­
sinamentos de um mestre com o qual tinham estudado. A discussão
rapidamente tornou-se esotérica, e surgiram questões relacionadas
a vários níveis de existência nos reinos astrais: para que nível vai
uma pessoa se morrer antes da iluminação; para que nível ela vai se
alcançar a iluminação antes da morte física, e daí por diante. Escutei
tudo isso sem muito interesse, até que um homem voltou-se para
mim e perguntou o que Gangaji tinha a dizer sobre para onde se vai
após a morte.
Sem nem mesmo pensar sobre isso, eu disse: Aonde você vai após
a morte? Este é o tipo de pergunta que nos conduz para dentro da
mente. Porém, a pergunta “Quem morre?” é o tipo de pergunta que
pára a mente. Este é o tipo de pergunta que interessa a Gangaji.”
Todos ficaram me encarando por um momento. Não sei se isto pa­
rou suas mentes, mas certamente interrompeu a conversa.
Deste modo, comecei a perceber que satsang estava saindo de
minha boca espontaneamente, e que também estava sendo coloca­
da em situações nas quais perguntas deste tipo me eram dirigidas.
Havia uma ausência de esforço e uma entrega a cada momento, que pa­
reciam me conduzir miraculosamente ao lugar certo no momento certo.
Durante minha estadia em Marin County (Condado de Marin),
na Califórnia, tentei exprimir a Gangaji esta nova relação com a

259

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

ação através de uma carta, que ela leu em um satsang na Faculdade


Dominicana em 1 de novembro de 1995.

Amada Gangaji, Precioso Ser:

Nos últimos dez dias tem acontecido uma coisa que é difícil
de descrever com palavras. Trata-se de uma espécie de virada
na consciência. A ação não parece vir mais do mesmo lugar.
Não há mais a mesma necessidade de compreender as coisas;
ao invés dela, há a profunda confiança de que o próximo mo­
mento revelará o passo seguinte. É como caminhar sobre um
caminho de pedras que nem mesmo existem, antes que seja dado
o passo seguinte. E há menos necessidade de tomar decisões com
a mente.
Cada momento é acolhido com frescor, livremente, sem
nenhuma “programação” originada na mente. Isto dá a cada
momento uma qualidade de ausência de esforço e de precio­
sidade.
Às vezes, há uma sensação de ausência de movimento, em-
bora o corpo esteja se movendo, e também há a sensação de não
estar tão fortemente identificada com esta forma em particular;
é como se minha consciência não estivesse localizada apenas
nesta forma.
Às vezes, surgem pensamentos ansiosos, tais como: “Como
posso conservar isso?” ou “Será que isso vai durar?”

Gangaji olhou para o grupo neste momento e disse:

Isto parece familiar? Todos podem se identificar com


isso, não é?

Ela continuou lendo:


260
NÃO SE ACOMODAR EM LUGAR ALGUM DA MENTE

Mas eles são vistos como sendo apenas pensamentos e, as­


sim, são queimados.

Sim! Isto é ver!

Constantemente, centenas de vezes ao dia, a consciência é


atirada de volta a Si mesma, rendendo-se a esta presença que
me ama, que é Amor e que é você. Sinto-me tão totalmente
imersa em seu amor, a cada segundo. E o seu amor não mais
existe separado do meu amor. Portanto, não é preciso esfor­
ço para ser verdadeira em relação Àquilo, para estar servindo
Àquilo. Agora sinto que “Aquilo” (você) está usando “isso” (eu)
o tempo todo.
Isto que estou vivenciando agora é a cessação da identifica­
ção com a mente?

Ela apenas riu suavemente, e não respondeu à pergunta.


Inicialmente, fiquei ofendida porque ela pulou a minha pergunta.
Queria uma confirmação da parte dela. Mas então, lembrei-me que
no satsang do dia anterior ela dissera:

A resposta vem primeiro. A pergunta surge ao se duvi­


dar da resposta.

Vi então que isto era verdade em relação àquela pergunta.


Enquanto escrevia aquela carta, e me perguntava o que estas experi­
ências estavam indicando, recebi a resposta: “A cessação da identifi­
cação com a mente.” Porém, pareceu-me tão fantástico, tão profun­
do, que uma coisa assim estivesse acontecendo comigo que, em vez
de escrever isto como uma descoberta, escrevi como se fosse uma
261

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

pergunta! Ela não estava disposta a dar nenhuma credibilidade a


esta dúvida, nem mesmo a reconhecê-la, por isso continuou lendo:

Você tem o meu coração, queridíssima Gangaji, e a minha cabe­


ça e a minha voz e os meus olhos: tudo. Eu é completamente seu.

Ela olhou para mim e perguntou se eu podia cantar. Eu disse que


sim, e levantei-me para pegar o meu violão, que estava no fundo do
salão. Estava sentada bem na frente naquele dia, portanto tive que
me levantar na frente de todo mundo, e atravessar o salão até o fun-
do, para poder pegar meu violão. Normalmente, esta circunstância
teria causado enorme ansiedade e desconforto em mim, especial-
mente porque Gangaji continuou falando sobre mim enquanto eu
caminhava.

Vejam se vocês conseguem escutar isto na voz dela...

Mas não senti nada daquilo. De fato, enquanto caminhava para


pegar meu violão, senti-me imensa, como se minha consciência pre­
enchesse todo o salão, e senti que não estava me movendo; ou talvez
possa dizer que “eu estava me movendo dentro de mim mesma” e,
portanto, não sentia qualquer movimento. Não havia mais qual­
quer identificação de mim comigo mesma, mas com um Ser maior,
que incluía todo mundo no salão.
Ela me fez cantar três músicas naquele dia. Não achei que toquei
muito bem, porque não consegui afinar meu violão corretamente;
ele estava reagindo à umidade do ar em San Rafael. Mas parece que
isto não teve importância. Teve gente que chorou, outros riram,
262

NÃO SE ACOMODAR EM LUGAR ALGUM DA MENTE

todos ficaram muito comovidos. Após o satsang, muitas pessoas me


perguntaram se eu tinha uma fita cassete ou um CD com a minha
música. Respondi que estava trabalhando nisso e que, se me dessem
seus nomes, entraria em contato com elas quando a fita estivesse à
venda.
Nesta mesma época, uma de minhas irmãs, que mora no Oregon,
decidiu pegar um avião para São Francisco, porque queria conhecer
Gangaji. Elaine é minha irmã mais nova, a mais próxima de mim
em idade, e sempre se interessou por todos os meus esforços espiri­
tuais, que eram encarados pela maioria da família como desnecessá­
rios, loucos e totalmente não-cristãos. Algum tempo antes, enviara
para ela o vídeo River of Freedom (Rio de Liberdade) e mais outros
vídeos e fitas cassete de satsangs; eles a haviam tocado. Portanto,
ela veio passar um fim de semana prolongado comigo, e sentamos
juntas em vários satsangs. Ela estava muito quieta e eu me pergun­
tava como estaria recebendo tudo aquilo, mas não quis pressioná-la.
Finalmente, quando estava de partida para Portland, ela me surpre­
endeu ao dizer: “Estou feliz por ter conhecido Gangaji. Ela é tão
linda. Mas sinto que você é a minha mestra.”
Inicialmente, pensei que esta era uma escolha infeliz, já que não
conseguia imaginar que um dia chegaria perto de ser a mestra per­
feita que é Gangaji. Mas lembrei-me de amigos de Boulder que são
discípulos de Papaji, e que não conseguem entender porque todas as
pessoas não são tão apaixonadas por Papaji quanto eles. É um misté­
rio quem aparece em sua vida como o seu próprio Ser e reflete-o tão
puramente. Este ser não é sempre o mesmo para todas as pessoas,
e isto não pode ser compreendido ou previsto. De toda maneira,

263

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

tudo isto é uma dança do Ser. Todas as coisas, todos os seres são
um reflexo do nosso próprio Ser. Mas, a primeira vez em que se vê
isso tão poderosamente, o primeiro reflexo completo de si mesmo
em outro ser é honrado como o mestre. Assim como um patinho
ao nascer, o que quer que ele veja primeiro, quer seja um ser huma­
no, um cachorro ou a mamãe pata, aquela imagem fica gravada e é
aquilo que o patinho segue daí em diante. Para mim, uma espécie
de marca, misteriosa e divina, ocorrera em meu primeiro encontro
com Gangaji. Uma vez escrevi a ela:

Descobri que este oceano transcendente e indiferenciado do


Ser assumiu um certo “sabor”, que é você. Isto não faz qualquer
sentido, eu sei, porque “Aquilo” não deve ter atributos, mas
agora vivencio “Aquilo” como tendo as suas cores, as cores de
Gangaji; porque você foi a minha porta para o infinito.

Talvez para uns seja uma montanha, para outros uma visão ou
um sonho. Para mim, tinha que ser uma ocidental, alguém que es­
tivesse vivendo o infinito e que fosse igual a mim. Quem pode dizer
como isso acontece para outra pessoa?
Antes que minha irmã voltasse para Portland, disse-lhe que me
sentia honrada com a sua escolha, e garanti-lhe que sempre estaria à
sua disposição, como o seu próprio Ser.
Um dia depois do satsang, fiquei surpresa ao ver meus amigos de
Santa Fé, Steven e Tanya. Eles tinham acabado de voltar de uma via-
gem à Índia, aonde tinham ido visitar Papaji, em Lucknow, e estavam
de passagem por São Francisco, a caminho de casa. Entusiasmada,
perguntei-lhes: “Como foi a Índia?” Enquanto respondiam, podia

264

NÃO SE ACOMODAR EM LUGAR ALGUM DA MENTE

ver que seus rostos estavam cansados, e tudo dentro deles parecia
despedaçado. Eles me informaram que não tinham gostado nem
um pouco da Índia, e que a viagem inteira fora um puro inferno.
Papaji e Lucknow não tinham sido nem remotamente o que eles
esperavam ou desejavam. Papaji passou quase o tempo todo lendo
um livro em voz alta, enquanto eles estavam lá. Ele estava lendo
sobre pecados e os níveis do inferno. Alguns dos devotos de Papaji
disseram coisas desrespeitosas a respeito de Gangaji.
Enquanto conversava com eles e ouvia os detalhes macabros de
sua viagem, uma coisa estranha aconteceu. Parte do inferno que eles
viveram foi transmitido a mim. Eu podia sentir vividamente o que
eles tinham passado. Senti a raiva surgindo dentro de mim, o medo,
a confusão, a desesperança e o julgamento; como se cada coisa hor­
rível que ainda estava pairando na profundeza de minha consciência
estivesse sendo escavada durante a conversa com eles. Então, uma
coisa totalmente inesperada aconteceu. Foi como se todo esse in­
ferno que estava sendo vivenciado não tivesse nenhum lugar onde
se instalar. As palavras de meus amigos penetraram fundo em meu
cérebro, fizeram todas essas coisas da mente surgirem, e então co­
meçaram a despedaçar tudo. Senti um calor intenso, que queimava
terrivelmente; não apenas fisicamente, mas também mentalmente,
como se estivesse incinerando hábitos sutis da mente armazenados
nas próprias células do meu cérebro e do meu corpo. Vi surgir a
tendência habitual de tentar me refugiar na mente, analisar, avaliar
esta informação, e compará-la com outras coisas que tinha ouvido
antes, outras opiniões, etc. Mas não havia nada a que pudesse se
apegar. Nenhum lugar onde pudesse pousar. Tudo que surgia na

265

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

mente era queimado instantaneamente; tudo que surgia era perce­


bido como sendo apenas pensamento: sombras sem sentido lutando
consigo mesmas, impressões vazias, imagens sem qualquer valor. E,
pela primeira vez, compreendi diretamente o que Papaji quer dizer
com as palavras “Não se acomodar em lugar algum da mente.”
Esta queimação intensa e o despedaçamento da mente duraram
vários dias. Quando já estava em Boulder, escrevi a Gangaji sobre o
modo incomum como aquela experiência específica de aniquilação
da mente havia ocorrido:

... Você sabe aquele tipo de veneno de barata que gruda nas
patas delas, e elas o levam de volta para o ninho, matando assim
todas as outras baratas? Foi isso que aconteceu com aquelas
palavras vindas de Lucknow. Elas simplesmente penetraram
em minha mente e a despedaçaram; cada camada de realidade
foi despedaçada. Percebi que o medo e a confusão surgiram
inicialmente. Em seguida, assisti à incineração dos mesmos, e
um profundo relaxamento aconteceu; então, houve uma de­
sintegração da mente ainda mais profunda do que antes. Em
seguida, não havia lugar algum no qual me acomodar, lugar
algum.
As pessoas que me trouxeram estas palavras de Lucknow não
tinham idéia alguma do efeito que estavam tendo em mim.
(Elas nem mesmo gostaram de Lucknow, e foram embora de­
pois de dois dias). Então vi como você, como Satguru, tinha
tomado a circunstância destas palavras ditas em uma conversa
breve, e as havia utilizado para me conduzir a um nível mais
profundo, para despedaçar algumas camadas de identificação
que ainda restavam, e às quais minha mente ainda estava se
apegando inconscientemente. Ao ver isso, a entrega e a con­
fiança se aprofundaram novamente.
Portanto, eu me curvo diante destas pessoas que me trouxe­
266
NÃO SE ACOMODAR EM LUGAR ALGUM DA MENTE

ram estas palavras; diante de Papaji, por sua crueldade; e diante


de você, por me empurrar mais profundamente, vindo de todas
as direções. Costumava me apegar a uma esperança sutil de que
você não seria tão cruel comigo quanto Papaji foi com você,
porque não me considerava tão forte quanto você. Mas, após
esta experiência, de alguma maneira, abandonei a esperança de
facilidade e a percepção de fraqueza. Pois vejo a minha relação
com você como não sendo diferente da sua relação com ele. É
a mesma relação: de Ser para Ser, de Guru para discípulo, de
amante para Bem-Amado. Esta é a relação mais preciosa, mais
especial, mais íntima da criação, e a maior bênção que uma
vida pode esperar. Está muito além da esperança; na verdade,
ela está para além do mérito: ela é pura Graça Divina.

O que havia ocorrido era absolutamente inimaginável. Parecia


um teste de algum tipo, porque este inferno que me fora transmi­
tido era o tipo de coisa na qual minha mente poderia ficar presa
tentando analisar, se agitando em torno dela, seis meses antes. Mas,
de alguma maneira, não conseguia fazer isto. Não podia mais con­
fiar nisto. A confiança havia se transferido para uma realidade mais
profunda, para além do mundo criado pela mente. Esta virada da
confiança afetou a minha vida de maneiras difíceis de descrever.
Tornou-se claro que o que parecia estar acontecendo não era o que
realmente estava acontecendo. O que parecia estar acontecendo es­
tava apenas na mente. E, quando a gente não se acomoda na mente,
uma realidade mais profunda se revela, aquela na qual surge todo o
mundo da aparência.
Mas se isto era um teste, estava claro que “eu” não tinha passado.
Eu não tinha feito nada. Eu fora simplesmente, misteriosamente,
capturada em uma torrente, um rio de Graça devastador.
267

ANSEIO DIVINO

Pouco depois de voltar para casa, vinda da Califórnia, percebi


que estava sendo exortada a falar em satsang cada vez mais. Amigos
de muitos anos, que estavam buscando desesperadamente, ansiando
pela Verdade, praticando para alcançar a Verdade, ouviram que eu
tinha “parado” e começaram a vir me fazer perguntas sobre o que
tinha acontecido comigo, pelo telefone ou pessoalmente.
Com freqüência, as pessoas começavam dizendo: “Ouvi dizer
que você tem um novo mestre.” Inicialmente, não sabia bem como
responder a esta pergunta. Era minha experiência que só existe um
mestre: o Ser. E este Ser aparece com formas variadas, em épocas
diferentes na vida de uma pessoa, conforme a sua capacidade de
abrir-se para ele. Superficialmente, pode parecer que eu estava “com
uma nova mestra”, mas eu sabia que esta aparência ocorria apenas
na mente. Sabia que estava aos pés do Verdadeiro Mestre, o Satguru,
para além de todas as formas, da mente, de todas as aparências.
Embora tivesse tido o grande privilégio e a bênção de sentar-me aos
pés de vários seres despertos durante a minha vida, seres que eram
obviamente exemplos vivos da Verdade; e embora o desejo de me
render, de entregar minha vida completamente Àquilo tivesse sem­
pre sido forte, de algum modo, a verdadeira entrega jamais ocorrera
até conhecer Gangaji. A conexão profunda que ocorreu então, que
parou a mente e detonou uma explosão de Auto-reconhecimento,
não aconteceu por vontade própria ou por escolha. Ela foi uma sur­

268

ANSEIO DIVINO

presa. Foi a Graça.


A forma que o Ser assume como o mestre final, como aquele
que finalmente pára a busca, aquele que corta a identificação com
a mente, é naturalmente honrada, acima de todas as outras for-
mas que o Ser assumiu. Como mencionei anteriormente, o Infinito
pode realmente assumir o “sabor” da personalidade que nos ajuda
a atravessar a porta, de tal maneira que não se consegue perceber
qualquer diferença entre o Mestre e Aquilo*. Portanto, sim, estou
aos pés de Gangaji. Como poderia ser diferente? Para mim, ela é a
corporificação e a totalidade da Verdade. O Satguru.
Seja esta forma humana, divina ou, como no caso de Ramana,
uma montanha sagrada, o coração naturalmente explode de grati­
dão à forma que o Satguru misteriosamente escolheu. Esta gratidão
é exprimida nos hinos extáticos de devoção, eternizados na literatu­
ra mística de todas as épocas e tradições, no mundo inteiro.
A mente vai lutar e resistir intensamente à entrega de si mesma
ao Ser. Este é o objetivo do relacionamento entre guru e discípulo:
a rendição da mente ao Ser, o despedaçamento da ilusão diante da
Verdade. Não se trata de pessoas que “abrem mão de seu poder pes­
soal” e o entregam a outras pessoas. Trata-se da entrega de tudo que
é pessoal Àquilo que existe antes da pessoa, depois da pessoa e para
além da pessoa. Durante o workshop do Eneagrama, Eli dissera uma
coisa que me parecera muito verdadeira a esse respeito: “Se você vê o
guru como um ser separado, como algo além do Ser, você não viu o
guru. Você viu um pensamento, uma imagem na mente.”
Gangaji esclarece isto de maneira muito bela, na passagem a se­
guir, retirada de seu livro You Are That! (Você é Aquilo!) Alguém lhe

269

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

pergunta: “Você é um guru para nós?” Ela responde:

Eu sou o seu próprio Ser. Sou percebida como aquilo


que você projeta sobre mim. Você pode me ver como irmã,
mãe, amiga ou guru. Uma pessoa uma vez me disse que
eu era como um grande caminhão cheio de comida. Em
uma carta, no satsang de ontem, alguém me chamou de
assassina em massa do falso ser. E também há, é claro,
aqueles que me vêem como o inimigo.
O que quer que seja projetado sobre mim, sei que é
apenas uma projeção. Estou firme no conhecimento pre­
sente de que sou o seu próprio Ser.
Projete o que quiser, contanto que você escute o que
estou dizendo. Se você precisa me chamar de guru para
escutar o que estou dizendo, tudo bem. O guru diz: “Eu
sou o seu próprio Ser. Eu não existo em separado.” *

Vendo que muitos de meus amigos ainda estavam presos aos


conceitos mentais de “guru” como sendo uma pessoa em separado
e de “iluminação” como algo a ser alcançado, com freqüência sen­
tia-me frustrada, sem saber como expressar o que tinha descoberto.
Durante um certo tempo, senti-me pressionada. O que deveria dizer
a eles? Como poderia transmitir aquilo? Como é possível descrever
o que aconteceu? É indizível. Mas, conforme ocorriam mais encon­
tros em satsang deste tipo, percebia que não havia necessidade de
descobrir a maneira “certa” de falar. Não havia necessidade de dizer
nada. Estar presente, vazia e presente, sem qualquer pensamento,
era suficiente. Se as palavras me viessem assim, então tudo bem.

270

ANSEIO DIVINO

Aquelas eram as palavras perfeitas. Mas desisti da idéia de que tinha


que ter uma certa aparência, ou ser dito de uma maneira específica.
Satsang não se parece com nada. Satsang não é absolutamente nada.
Satsang é parar: parar de seguir a mente, e descansar na Verdade do
próprio Ser.
Em dezembro, finalmente escrevi a Gangaji sobre uma destas
experiências de satsang.

Sábado passado, fui fazer uma entrevista para um emprego


(porque meu marido me disse que teria que arranjar um em­
prego se quisesse ir para Maui). A pessoa é uma acupunturista
em Boulder, que também dá aulas sobre “como assumir o con­
trole de sua vida”. Ela precisava de uma secretária. Quando nos
sentamos juntas, percebi que ela estava estressada e tensa. Eu
pensei: “Este é um tipo de pessoa muito desagradável, e acho
que não vou gostar de trabalhar para ela.” Ela me perguntou o
que eu sabia fazer. Disse que tinha sido uma escritora freelance
nos últimos doze anos.
Depois de algumas perguntas relacionadas ao trabalho, ela
me perguntou: “O que você faz realmente?” Pensei que ela que-
ria uma resposta mais profunda para esta pergunta, por isso
respondi: “Gosto de falar sobre a Verdade.” Ela disse que preci­
sava de um pouco de Verdade em sua vida naquele momento, e
me perguntou quem era o meu mestre. Eu disse “Gangaji”. Ela
tinha ouvido falar de você, e também tinha visto um vídeo de
Papaji recentemente. Eu disse a ela como você tinha me parado
e me despertado para quem eu sou. Assim que disse isso, ela
começou a chorar. Ela me disse que sua vida era um desastre.
Ela não sabia mais se queria ser acupunturista. Ela não queria
fazer nada. Tudo em sua vida era uma mentira: o que tinha
tentado ser, fazer, ter.
Deixei-a chorar e falar. Não sabia o que dizer. Ela continuou

271

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

dizendo como tudo era horrível, como tinha sido má ultima-


mente, com todo mundo. Pensara em suicídio (era o que seu
pai tinha feito).
Comecei a sentir que aquilo estava acima de minhas capaci­
dades. Ela precisava de ajuda. Ela precisava de satsang, mas não
me sentia qualificada. Surgiu um pensamento: “Eu não estou
com Gangaji há tempo suficiente.” Mas, imediatamente, ouvi
sua voz: “Você sempre esteve comigo.”
Finalmente, ela disse: “Eu não sou ninguém, este é o pro­
blema. Eu sei que não há ninguém aqui, e isto é tão doloroso.
Tentei fingir que há alguém aqui dentro.”
Ela estava falando Satsang. Vi-me dizendo a ela: “Isto é lin­
do. Isto é a Graça. Você não consegue mais procurar quem você
é nestas coisas.” Ela disse: “Mas é tão vazio. Eu me sinto um
nada.” Por um momento, vi o meu próprio Ser nela, recoberto
por todas estas coisas, lutando para se libertar, e senti amor por
ela. Percebi também que a sala estava cheia da sua Graça: esta
forma estava cheia da sua Graça.
Passei mais de uma hora com ela, conduzindo-a para dentro
do nada, encorajando-a a abrir mão da história. Ela continuou
tentando retornar à história mas, quando finalmente pareceu
aquietar-se, perguntei-lhe o que havia ali. Ela disse: “É Deus. É
simplemente o Espírito.” Perguntei-lhe então se havia qualquer
separação entre ela e o Espírito. Ela não conseguiu encontrar
nenhuma separação. Então vi que ela estava mais radiante.
Todo o seu rosto e sua presença tinham se modificado.
Então ela me disse que tinha rezado o dia inteiro por algum
tipo de ajuda, e que não podia acreditar que esta tivesse vin­
do assim tão rápida e inesperadamente. Ela disse que era um
milagre. Disse também: “Não sei quem você é, nem de onde
veio, mas sinto-me muito grata. Ninguém jamais me deu um
presente como este.”
Disse a ela que alguém tinha me dado um presente como
este, e que simplesmente o estava passando adiante. Imaginan­

272

ANSEIO DIVINO

do que a entrevista estava terminada, dei-lhe uma de suas fitas


e fui embora.
Ela me ligou à noite, para me dizer que sua vida inteira
tinha sido transformada, que ela ia fechar o seu consultório
por algum tempo, e que iria a Maui em janeiro para ver você.
Alguns dias depois, ela me ligou para dizer que tinha se recon­
ciliado com seu noivo, e que ambos tinham se comprometido
com esta Verdade. Seu filho de dezesseis anos também tinha
sido contagiado por este fogo. Dois dias atrás, passei lá para
entregar-lhes alguns de seus vídeos, e eles estavam realmente
radiantes, transformados. É tão lindo.
Senti-me transformada também. Na verdade, fiquei estar­
recida e sem palavras, porque vi como o Ser vai em busca de si
mesmo, e atrai a si em direção a si mesmo no momento certo.
Foi isto que aconteceu quando a conheci; no momento exato, o
Ser penetrou o tempo, e despedaçou a ilusão para sempre.
Satsang é todo o Ser. O Ser caçando a si mesmo, descobrin­
do a si mesmo, e convidando a si mesmo a voltar para casa. E
fico feliz de viver esta vida entregue Àquilo, apaixonada por
Aquilo, feliz por ser um de seus agentes.
Com amor e reverência cada vez profundos,
Amber

A viagem a Maui foi tranqüila e sem esforço. Embora Toby não


pudesse comparecer, por causa de seus compromissos acadêmicos,
nosso amigo John poderia, portanto fizemos reservas nos mesmos
vôos e alugamos uma casa com três quartos em Haiku, com mais
uma pessoa, e dividimos um carro de aluguel.
A viagem toda duraria três semanas e meia. Quando John e eu
marcamos as datas de nossa partida e de nossa volta, tomamos cui-
dado para fazê-lo de modo a que pudéssemos comparecer ao maior
número de satsangs possível. Entretanto, apesar de todo o nosso
273

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

planejamento, descobrimos pouco antes da viagem que os três pri­


meiros satsangs em Maui tinham sido cancelados. O pai de Gangaji
falecera, e ela tinha voado para o Mississipi para estar com sua fa­
mília durante o funeral. Era tarde demais para mudar nossos pla­
nos. Portanto, chegamos a Maui em uma sexta-feira, sabendo que
Gangaji não deveria voltar à ilha antes de segunda ou terça-feira.
Eu nunca tinha estado no Havaí, com exceção de duas escalas
em Honolulu a caminho da Tailândia e das Filipinas, muitos anos
antes. Maui era maravilhosamente mais rural do que eu imaginara,
e suas belas praias e montanhas majestosas lembravam-me a beleza
da costa do Oregon, onde passara os verões em minha infância.
Pouco depois de chegarmos, John e eu descobrimos que havia
uma reunião planejada para o sábado, no salão do satsang, para
celebrar o aniversário de Ramana. Apesar da ausência de Gangaji, a
celebração ocorreria como planejado. Assim sendo, no dia seguinte
à tarde, fomos até a Igreja de São João em Kula, onde seriam reali­
zados os satsangs. Eu trouxera o meu violão comigo, porque tinham
me dito que a celebração seria quase que totalmente musical, e não
me sentia mais tão tímida em relação a cantar minhas músicas.
Quando chegamos à igreja, alguns músicos já estavam lá, afi­
nando seus instrumentos, e partituras estavam sendo entregues às
pessoas, para que elas pudessem acompanhar cantando. Shivaya Ma
tinha me ensinado uma das músicas no verão anterior. Tinha um
verso sobre Ramana, e um verso sobre Papaji. A música era como
um cântico, cada verso era repetido muitas vezes, portanto fácil de
ser seguido pelo grupo. Certa vez, Shivaya Ma me dissera que vá­
rios compositores tinham tentado acrescentar um verso dedicado a

274

ANSEIO DIVINO

Gangaji mas, pelo que ela sabia, ninguém tinha conseguido ainda.
Durante o retiro em Crestone no verão anterior, eu tinha brincado
um pouco com a melodia, e as seguintes palavras tinham surgido.
Elas pareciam se encaixar perfeitamente com os outros versos da
música:

Gangaji, Rio de Luz,

O silêncio de Ramana

Irradia de seu olhar

Sobre mim,

Deixando-me ver

Que eu sou livre.

Senti que o verso seria um acréscimo apropriado à celebração,


porque incluía Gangaji na música, e também trazia a música de vol­
ta a Ramana de uma maneira adequada à ocasião. Aproximei-me do
homem que parecia estar encarregado da parte musical, e pergun­
tei-lhe se poderiam acrescentar este verso. Mas ele não estava muito
interessado em acrescentar nenhum verso à música, assim de última
hora. Encolhi os ombros e desisti da idéia. Também tinha escrito
uma outra música sobre o despertar de Ramana, aos dezesseis anos,
e sobre sua vida em silêncio na montanha sagrada Arunachala. Ela
teria sido perfeita para a ocasião; mas, novamente, havia um forte
sentimento de que o programa já estava fechado, e que não havia
abertura para quaisquer mudanças, nem para se acrescentar novos
músicos ao grupo.
Contentei-me com o papel de expectadora, e decidi usufruir
da música e da celebração, refletindo sobre como era irônico que,
quando finalmente tinha superado o medo de cantar em público,
275

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

eu me visse diante de uma situação na qual a minha contribuição


não era bem-vinda. A mente desiste de descobrir qual é o melhor
modo de ação. Esta era exatamente a lição que Maui tinha reservado
para mim.
Depois de terminadas as festividades, John e eu fizemos contato
com os voluntários que estavam encarregados da montagem dos sat­
sangs, e perguntamos se podíamos ajudar. Alguns deles sabiam que
eu tinha cozinhado para Gangaji e, embora ela não precisasse de
cozinheira naquele momento, precisavam de alguém para preparar
as refeições que eram fornecidas aos voluntários após cada satsang.
Inicialmente resisti à idéia de aceitar o trabalho, porque nunca tinha
cozinhado para uma quantidade tão grande de pessoas (umas trinta)
e também porque não tinha trazido comigo nenhuma de minhas
receitas ou utensílios de cozinha. Além disso, o lugar onde John e
eu estávamos hospedados tinha uma cozinha muito pequena, e o
equipamento culinário era muito limitado. Finalmente, concordei
em trazer salada todos os dias.
Durante os nossos contatos com os voluntários de Maui naquele
primeiro dia, nós dois captamos um sinal sutil de que não éramos
bem-vindos. Isto nos desconcertou inicialmente, e decidimos ig­
norá-lo. Mais tarde, ficamos sabendo que havia, já há alguns anos,
uma sutil rivalidade entre o grupo de Boulder e o grupo de Maui,
algo que tinha a ver com o fato de Maui ter sido o primeiro lugar
onde Gangaji dera satsangs, em sua sala de estar, seis anos antes.
Porque a Satsang Foundation & Press, que agora organizava to­
das as atividades de Gangaji, estava situada em Boulder, havia a
percepção de uma certa competição com o grupo daquela cidade.

276

ANSEIO DIVINO

Entretanto, esta circunstância em particular acabou tornando-se o


pano-de-fundo perfeito para a incineração da identificação com a
mente que eu vivenciaria em Maui.

Os dias seguintes passaram-se lentamente. Os satsangs formais


só começariam na quarta-feira. Passei meu tempo tocando violão,
visitando as lojas, e lendo o livro de Gangaji, You are THAT! (Você
é AQUILO!). No domingo, juntei-me à equipe de limpeza na casa
de Gangaji, para prepará-la para o seu retorno. Já fazia dois meses
que vira Gangaji pela última vez, e jamais tinha ficado longe dela
fisicamente por tanto tempo. Estava ansiosa pelo seu retorno, com
uma alegria semelhante à de um amante que ficou por muito tempo
separado de sua bem-amada. Antes de sair da casa naquele dia, dei­
xei um poema sobre sua mesa, para lhe dar as boas-vindas:

Amado Satguru:

Eu costumava caçar suas borboletas

Encurralar seus sapos e libélulas

Tal fascinação era inexplicável

Porém eu os perseguia sem cessar

Através dos campos, sob céus de verão

Busquei-o em seu radiante disfarce

Ah, se ao menos eu soubesse então

A música dos grilos era realmente a sua

Você era a inocência nos rostos dos animais

Você, o silêncio nos meus lugares secretos

No calor da família e no cuidado materno

Eu não o vi oculto ali

277

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Você é o amante, o amor e o amar


Você é o objeto de todos os anseios
Se, ao menos uma vez, o coração vê o seu Amor
Ele se torna cego a qualquer outro amor
E empenha sua alma em uma jornada sublime
Que se encerra no oceano do Amor Divino
Ah, se ao menos eu soubesse então
Sua voz sempre esteve me chamando de volta ao lar.

No dia seguinte, soubemos que Gangaji já tinha voltado a Maui,


e ela tiraria alguns dias para descansar, antes de retomar os satsangs
em Kula. Os satsangs foram cancelados até sábado. Minha primeira
reação diante desta notícia surgiu de um senso de proteção de mi­
nha mestra: fiquei feliz e aliviada por ela estar cuidando de si mes­
ma desta maneira, e tirando algum tempo para descansar. Minha
segunda reação, que ocorreu uns quinze minutos depois, foi um
anseio devastador. Eu só tinha três semanas e meia para passar com
ela, antes de mais um longo período de três meses de separação, já
que ela não deveria voltar a Boulder antes do final de abril. Agora,
uma destas preciosas semanas teria que ser passada longe dela.
As lágrimas queimavam em meus olhos. Um calor ardente quei­
mava minhas entranhas. Parecia que eu estava sendo atirada contra
uma parede, e estava absolutamente inconsolável. John tentou me
encorajar a ver alguns lugares interessantes, a me exercitar e relaxar.
Mas eu não estava interessada em nada. Não tinha vindo aqui para
mais nada, a não ser me sentar aos pés de minha Mestra. Mesmo em
meio a esta dor, percebi a ironia de tudo aquilo: a maioria das pes­
soas provavelmente vêm a este lindo lugar para aproveitar o mundo;
porém, para mim, parecia que tinha vindo aqui para o fim do mun­
278

ANSEIO DIVINO

do. E Gangaji estava favorecendo isso, ao me atirar no vulcão mais


quente de Maui: o seu próprio fogo.
Sentei-me em meu quarto durante vários dias, incapaz de comer,
incapaz de dormir, sem conseguir fazer nada além de acolher esta
torrente de anseio que parecia querer me esmagar. Houve momen­
tos durante este período em que pensei: “Como é possível ela me
amar e ser tão cruel assim?” Porém, lembrei-me das palavras que
tinha escrito para ela em uma carta algumas semanas antes:

Precioso Ser, você é um amante cruel e divino. E eu aceito


este caso de amor divino, com tudo que ele implica: o êxtase e o
anseio, o beijo e o tapa, as muitas mortes que é preciso morrer.
Eu aceito tudo. Acolho tudo como sendo a sua Graça.

Sabia por experiência própria, desde a primeira carta que escre­


vera a Gangaji em Estes Park, que toda vez que eu declarava uma
percepção a ela, esta descoberta era testada, muitas vezes severa­
mente, pouco tempo depois. Isto acontecia com uma regularidade
tão previsível que eu me perguntava por que, a esta altura, ainda
não tinha aprendido a manter minha boca fechada. Muitas vezes,
sentada em satsang, observando ansiosamente enquanto ela abria
uma de minhas cartas, pensei: “Por que continuo fazendo isso co­
migo mesma?” Esta pergunta surgira agora mais uma vez. Mas a
resposta estava clara. Esta é a razão pela qual estou a seus pés; esta é
a razão pela qual nasci nesta vida; este é exatamente o objetivo deste
relacionamento com ela: expor-me completamente, arrancar pela
raiz quaisquer idéias de separação; empurrar-me sem cessar mais
profundamente na Verdade do meu Ser.

279

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Buscando alguma orientação, abri o livro de Gangaji, You are


THAT! (Você é AQUILO!) e meus olhos pousaram sobre um trecho
no qual ela fala sobre seu mestre, Papaji:

Ele é absolutamente amoroso. Sempre sem querer nada


de você, ele buscará o último cantinho de identificação
oculta com o ego e irá arrancá-lo fora pelo coração.
Isto é o que eu chamo de um mestre. Qualquer ou­
tra coisa não passa de brincadeira de criança… Uma
brincadeira de iluminação, enquanto se continua sempre
tentando manter o controle.*

Sim. Era isto que eu estava fazendo, ao dizer: “Estou disposta a


aceitar qualquer coisa, a acolher qualquer coisa como sendo a sua
Graça.” Porém, ao mesmo tempo, havia um objetivo oculto, este
desejo de manter o controle: “Eu estou aqui em Maui, portanto
deveria poder ver você!”
Mas não havia como controlá-la. Tínhamos ouvido histórias so­
bre o ano anterior em Maui, quando Gangaji cancelara todos os
satsangs por causa de problemas de organização. Percebi que ela
poderia facilmente fazer isto de novo.
O poderoso impulso habitual surgiu novamente; eu queria fugir,
afastar-me deste apego que me causava tanta dor. A tendência de vol­
tar as costas a este anseio, de livrar-me dele, era muito forte. Tenho
certeza de que, para certas pessoas, esta fuga deve assumir a forma
de uma tentativa de encontrar outro objeto de desejo que seja mais
controlável, mais alcançável. Em um lugar tão lindo como Maui,
havia muitas oportunidades para se fazer isso. Mas, para mim, a es­
280

ANSEIO DIVINO

tratégia era a mesma que eu empregava desde os cinco anos de ida­


de: fugir, tentar me convencer de que não preciso de nada. “Porque
continuo amando-a tanto assim? Eu não preciso disto. Seria muito
mais feliz se pudesse ir embora.” Como esta tendência de escapar
estava profundamente gravada em minha psiquê!
Mas o laço com Gangaji já estava profundamente atado. Isto
estava fora de questão: eu não podia fugir. A compreensão que já
havia surgido era profunda e clara demais para permitir tal indul­
gência. Este hábito de fugir tinha sido visto, realmente, como sendo
uma ilusão; a ilusão da separação que perpetuava a si mesma isolan­
do-se em mais separação! Mais uma vez, havia uma oportunidade
de permanecer quieta. De não me mover. De acolher este anseio.
Permitir que toda separação fosse arrancada fora pelo coração.
Portanto, desisti da idéia de fugir. Desisti da idéia de controle
e rendi-me completamente ao anseio, acolhi-o totalmente. Tenho
certeza de que, visto de fora, aquilo parecia uma birra colossal de
uma criança de seis anos. Para algumas pessoas, deve ter parecido
uma exibição excessivamente dramática, não justificável pela sim­
ples circunstância de ter que suportar mais alguns dias sem ver a
minha mestra. Mas aquilo significava mais do que esta simples cir­
cunstância. A circunstância havia detonado o acolhimento de mais
uma experiência de morte. E, dentro de mim, eu estava acolhendo
esta morte, este anseio inimaginável, esmagador, encarando-o face a
face, a cada momento.
Um trecho de You are THAT! (Você é AQUILO!) trouxe-me,
mais uma vez, compreensão e confirmação:

281

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

O anseio pelo verdadeiro Bem-Amado não se contenta


nem mesmo com a mais recente descoberta. O abraço do
Bem-Amado deve ser sempre fresco, sempre vivo, sempre
novo.
Sempre que o anseio surge, ele pode acionar respostas
habituais, como a tentativa de satisfazê-lo com algum
objeto, alguma experiência ou alguma outra coisa além
de si mesmo. Estas respostas são tendências latentes da
mente. Estas tendências refletem o modo como fomos en­
sinados a lidar com este anseio.
O anseio divino é por uma realização mais profunda
da plenitude do Ser. Ele é muito útil. Não o ponha de
lado. Não se mova em uma agitação mental em torno
dele. Ele expõe até a mais leve identificação equivocada de
você mesmo como sendo algo separado do Bem-Amado.
Este anseio é um grande presente. Ele é o presente de
Deus. É o anseio da alma, e continuará até que, sem
qualquer sombra de dúvida, você tenha sido submergido
no Bem-Amado.*

Nos meses que se seguiram, eu sentiria este anseio muitas vezes,


em níveis cada vez mais profundos; mas, neste momento, confor­
me me entreguei profunda e completamente, uma Graça irrompeu.
Experimentei este anseio como sendo o meu prórpio Ser, na forma
de Gangaji, atraindo-me mais para perto. Comecei a percebê-la tan­
givelmente presente em meu quarto. Finalmente, ela me apareceu
em uma visão amorosa e próxima, derretendo assim, pelo menos
por algum tempo, toda a experiência de separação.

282
ANSEIO DIVINO

No final daquela semana, o anseio e a separação tinham sido


queimados. E vi a verdade de suas palavras: que bênção é este anseio!
Quando não lhe damos as costas, quando acolhido total e comple­
tamente, ele é visto como aquilo que é: o Ser chamando a si mesmo
de volta ao lar.
Vi a perfeição de tudo, e a Graça de tudo, e senti-me mais pró­
xima de Gangaji do que antes; aceitando completamente não poder
vê-la de modo algum durante esta viagem a Maui, se era isto que
estava para acontecer.

283

PARA ALÉM DOS PARES DE OPOSTOS

Finalmente, chegou o sábado. Fiquei sentada, em silêncio, no


salão do satsang, na sexta ou sétima fila. Gangaji entrou no salão
e caminhou, graciosa como uma rainha, até o sofá. Era como o
Silêncio em movimento. Meu coração se encheu de alegria ao vê-la,
mas havia também uma calma que se originava da profunda convic­
ção de que jamais estivéramos separadas.
A primeira carta que Gangaji leu naquele dia foi escrita pela acu­
punturista que havia despertado de forma dramática durante minha
entrevista “mal-sucedida” para um emprego em seu consultório, em
Boulder. Sua carta descrevia a nossa conversa, seu estado de espíri­
to desesperado, a maneira como eu a conduzira incansavelmente
mais para dentro de si mesma, e o seu subseqüente despertar para a
Verdade. Sua descrição do incidente era levemente diferente do que
eu me lembrava, mas era linda e agradou muito a Gangaji. Naquela
carta, a mulher me dirigia o cumprimento mais precioso que al­
guém jamais poderia receber. Ela escreveu:

[Amber] tinha uma maneira de falar, um tom de voz e uma


maneira de simplificar tudo com uma quantidade mínima de
palavras, que me tocaram fundo, no âmago do meu Ser. Só
quando escutei a sua fita, algumas horas depois, e seus vídeos,
alguns dias depois, percebi que, seja o que for que fala através
de você, isso também falava através dela naquele dia.

284
PARA ALÉM DOS PARES DE OPOSTOS

Uma profunda satisfação permeava minha alma. Isto era tudo


que eu queria neste mundo: dizer a Verdade que Gangaji diz. A
leitura daquela carta no satsang, naquele dia, serviu como uma pro­
funda confirmação de que a Verdade desta linhagem poderia ser
transmitida através desta vida. Eu já sabia que isto era verdade, mas
esta confirmação em satsang removeu qualquer possibilidade de negação.
Depois que Gangaji terminou de ler a carta, ela mostrou-a ao
grupo e disse:

Esta é a resposta de Deus à pergunta: “Você é o guarda­


dor do seu irmão?” Não estou dizendo que você deva ime­
diatamente falar com todo mundo de uma determinada
maneira. Através dos tempos, tentou-se ensinar como ser
o guardador do seu irmão. Estou dizendo para você ser
quem é. Assim, você é “o guardador” de tudo que surge
em quem você é. Você é o guardador, você é o liberador,
você é o libertador.
Como você sabe, no início da busca espiritual, parece
que o que se deseja, aquilo pelo que se anseia, é alegria
pessoal, libertação pessoal, iluminação pessoal. Mas a ilu­
minação pessoal é um mito. Iluminação, na verdade, é
a descoberta de que não existe uma pessoa separada de
qualquer outra pessoa, exceto na aparência. A insepara­
bilidade de cada pessoa em relação a todas as outras pes­
soas é permanente e imutável. Ser o “guardador” significa
ser fiel a isto.*

Lembrava-me muito bem do início de minha própria busca e da


satisfação pessoal que imaginava que ela me daria: felicidade, poder,
285

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

uma mente afiada, liberdade em relação às vulgaridades do mundo.


Até finalmente conhecer Gangaji e ver o verdadeiro Ser impessoal
refletido em seus olhos, ainda havia uma tendência a tentar tornar
aquilo algo pessoal: meu guru pessoal, minha realização pessoal, mi­
nha bem-amada. Mesmo depois de ter visto esta armadilha da men­
te muitas vezes, camadas mais profundas de ilusão continuavam a
vir à tona. É a identificação com o “eu” que é o problema, ela precisa
ser abandonada. Nas duas semanas que se seguiram, esta identifica­
ção seria exposta e queimada.
No dia seguinte, comecei a me sentir extremamente quente,
como se estivesse com febre. Não queria ficar doente. Tinha tomado
cuidado para não beber água da torneira, como sempre faço quan­
do estou viajando, devido à minha fisiologia muito delicada. Mas,
naquele dia, quando o satsang começou, o calor aumentou. Em
um certo momento, quando sentia que poderia desmaiar, Gangaji
olhou para mim e perguntou se eu tinha trazido o violão. Sacudi a
cabeça em um não. Ela então me pediu para trazê-lo no satsang de
quarta-feira. Eu disse que sim com a cabeça, agradecida por ela não
me fazer cantar naquele momento.
Eu tinha me inscrito para o satsang pequeno naquele dia.
Portanto, depois do satsang, esperei nos degraus do lado de fora
da capela, onde ele seria realizado. Gangaji estava tendo uma reu­
nião com alguns membros da equipe da Fundação, portanto nós
aguardamos em silêncio a hora de subir. Shanti estava sentada nos
degraus, perto de mim, e percebi que ela me observava atentamen­
te. Ela me perguntou se eu me sentia bem. Respondi que me sentia
muito quente. “Talvez esteja doente,” disse. Ela sorriu e disse: “Você

286

PARA ALÉM DOS PARES DE OPOSTOS

não está doente, Amber. Ramana pegou você.” Mais tarde, ela me
deu uns pacotinhos de eletrólitos, para serem dissolvidos em água
antes de beber. E me disse que isso tinha ajudado muito quando
ela estava viajando com Gangaji na Índia, e passando pela mesma
experiência de queimação.
Quando eles finalmente nos deixaram entrar na sala do pequeno
satsang, acabei sentando bem na frente, perto de Gangaji. Ela sorriu
para mim, e me disse como estava feliz com os relatos que vinha re­
cebendo. Sentada ali, olhando dentro de seus olhos radiantes, tudo
que pude dizer foi: “Estou me sentindo tão quente.”
Ela olhou para mim seriamente durante um momento e disse:
“Bom.” Então, começou a dizer que tinha recebido mais uma carta
relatando o despertar de outra pessoa com quem eu falara. Tentei
imaginar de quem poderia ser, mas Gangaji não se lembrava de seu
nome. Enquanto as outras pessoas enchiam a sala, Gangaji disse que
gostaria de conversar comigo sobre outra coisa, mas que faria isso
depois.
Após o satsang, quando Gangaji se levantou e partiu, uma breve
luta se desenrolou dentro de mim sobre se deveria segui-la ou não.
Todos nós tínhamos sido instruídos, como sempre, a ficar sentados
em silêncio até que ela tivesse saído da sala. Mas ela tinha dito que
queria falar comigo. Portanto, apesar do regulamento, finalmente
me levantei e segui-a até o estacionamento. Ela se voltou quando
viu que eu a estava seguindo e, segurando minha mão com firmeza,
caminhou comigo até o carro, onde seu marido a aguardava.
Disse-me que gostara do poema que eu havia deixado em sua es­
crivaninha, e também da nova música que tinha enviado de Boulder,

287

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

intitulada “Tudo começou na escola dominical”. Ela tinha me es­


crito na época do Natal, dizendo que Eli gostara muito daquela
música, mas não dissera nada sobre se ela mesma gostara, por isso
fiquei feliz ao ouvir isto. Então, ela me disse para lhe preparar uma
refeição enquanto estivesse na cidade. Disse que faria isso com pra­
zer. Ela acrescentou: “É só me avisar quando você quiser cozinhar.”
Ela então largou a minha mão, e me deixou ali, diante da igreja,
em êxtase. John se aproximou de mim e disse, brincando: “Estão
andando de mãos dadas agora, é?” Encolhi os ombros, sorri timi­
damente, e fui correndo para dentro da igreja, para coordenar a
preparação da refeição para os voluntários.
Inicialmente, tinha concordado em trazer uma salada todos os
dias, mas acabei assumindo a responsabilidade de supervisionar as
refeições: a preparação, a arrumação das mesas e a limpeza depois.
No começo, parecera muito trabalho, mas, quando me entreguei a
esta tarefa, descobri que não estava “fazendo” nada, a não ser estar
presente.
No satsang seguinte, na quarta-feira, a queimação intensa tinha
cedido um pouco e eu estava me sentindo muito melhor. Trouxe
meu violão, pronta para cantar, mas totalmente consciente de que
Gangaji poderia não se lembrar de me pedir para cantar. Àquela al­
tura, sentia-me perfeitamente à vontade cantando em satsang, mas
ainda não o suficiente para pedir para cantar. Quando estava senta­
da em satsang com Gangaji, sua transmissão de Silêncio geralmente
me cativava tão completamente que o pensamento de cantar uma
música nem aparecia.
Entretanto, naquele dia, aconteceu uma coisa diferente. Ainda

288

PARA ALÉM DOS PARES DE OPOSTOS

no começo do satsang, Gangaji olhou para mim e perguntou:

Você trouxe o violão?

Quando respondi que sim com a cabeça, ela disse:

Que bom. Mais tarde escutaremos uma música.

Durante o satsang, comecei a pensar em qual música deveria


cantar, qual delas se encaixaria melhor naquele satsang. Comecei a
pensar: “Posso ajudá-la com o satsang, ao cantar a música perfeita.”
Ou então: “Sim, esta música seria perfeita, ou talvez aquela outra.”
Desta maneira, minha mente tornou-se muito ativa, girando em
torno de qual música seria mais perfeita e da contribuição que eu
faria ao satsang, tocando uma que se ajustasse aos tipos de perguntas
que estavam sendo feitas.
O satsang continuava. Gangaji ainda não tinha me pedido para
cantar e comecei a me perguntar: “Quando será que ela vai me pedir
para cantar?” Ou então pensava: “Agora seria perfeito.” Mas o sat-
sang continuou, e ela nem olhou para mim novamente. Pensei que
talvez quisesse que a lembrasse. Talvez tivesse esquecido.
Gangaji respondeu uma pergunta atrás da outra, de maneira per­
feita e bela. Finalmente, ela juntou as palmas das mãos e disse Om
Shanti. O satsang tinha terminado. Quando ela se levantou, pensei:
“Ela esqueceu. Devia tê-la lembrado.” Porém, quando estava quase
descendo da plataforma, ela me dirigiu um olhar severo. Tanta coisa
foi transmitida naquele olhar. Ela não tinha esquecido. Não queria
que eu cantasse. Foi só então que percebi o que tinha acontecido:
289

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

eu tinha me voltado para a minha mente. Nos últimos satsangs em


Boulder e em Marin County, tinha cantado com um vazio de ego e
de mente. Mas, hoje, minha mente tinha surgido ostensivamente.
Foi por isso que ela não quis que eu cantasse.
Sentia-me horrível, como se tivesse falhado, como se a tivesse
desapontado. O fogo disto arrasou meu corpo e minha alma, como
um inferno. Fui para a sala nos fundos do salão, onde o pequeno
satsang estava acontecendo e tentei entrar, mas a mulher encarre­
gada da porta devia ter tido um dia ruim, e não se mostrou nada
acolhedora comigo. Saí de lá aos prantos.
Sentindo-me anestesiada, fui para a cozinha para ver como esta­
va indo a preparação da comida, mas não conseguia me concentrar.
Sentia-me irresistivelmente atraída para a sala onde estava aconte­
cendo o pequeno satsang. Quando me aproximei da sala novamente,
vi que a porta tinha sido fechada. O satsang já tinha começado, por
isso aguardei do lado de fora, com Shanti e mais algumas pessoas.
O satsang pequeno durou muito tempo, mas, finalmente,
Gangaji saiu da sala. Quando viu tantas pessoas esperando do lado
de fora, ao longo do corredor, ela perguntou: “O que é isso? A ca­
marilha?” Senti-me envergonhada por estar ali de pé, porque estava
claro que ela não gostava disso. Na verdade, estava tão embaraçada,
que quando ela passou por mim sem parecer me notar, senti-me
aliviada. Entretanto, no último momento, ela se virou e segurou o
lenço que eu estava usando ao redor do pescoço. “Ele ficou perfeito
em você, Amber”, disse ela casualmente. Era o lenço que ela tinha
me dado no verão anterior. Antes de continuar, ela olhou em meus
olhos brevemente e disse: “Então, você vai cantar amanhã.”

290
PARA ALÉM DOS PARES DE OPOSTOS

Sacudi a cabeça em um sim.

Durante o resto daquele dia, a memória do meu erro me manteve


em sofrimento. Queria ficar em meu quarto e chorar até me acabar.
Mas John sugeriu que poderia ser útil fazer um pouco de exercício
para variar. Portanto, após cumprir minhas obrigações relacionadas
ao satsang, fomos de carro até uma ampla praia perto de Haiku, que
tinha mais de um quilômetro e meio de comprimento. John diz que
naquele dia, caminhamos em uma praia linda, mas eu não me lem­
bro de quase nada. Sentia como se estivesse sendo consumida por
um fogo borbulhante. Fomos e voltamos pela longa faixa de areia,
enquanto eu soluçava e John brincava com os pés na água e atirava
pedras no mar. Ele era o perfeito companheiro de satsang. Minha
infelicidade não o afetava nem o enganava nem um pouco. Ele sabia
o que era isto e não facilitava com palavras consoladoras, nem tenta­
va negar, dizendo para eu me animar e calar a boca. Ele me deixava
chorar, sem se perturbar. Sobre aquele dia, John escreveu:

A temperatura estava perfeita, o céu de um azul profundo.


Havia a quantidade certa de nuvens brancas no céu e as on­
das eram grandes e abundantes. Era o fim da tarde, quando a
maioria dos surfistas já tinha parado de surfar, portanto não
havia muita atividade na praia. Não podia ter sido melhor, com
exceção de uma coisa: Amber; embora presente em forma, ela
estava perdida atrás de uma incessante torrente de lágrimas.
Considerava uma grande sorte ter me tornado amigo de
Amber e de Toby e, ao longo dos meses, tinha me acostumado a
estar com Amber enquanto ela queimava tão intensamente que
as lágrimas não paravam de rolar. Esta era uma daquelas épocas
e, muito possivelmente, a mais intensa de todas as épocas que
291

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

eu tinha visto. Caminhamos durante muito tempo. Sempre


que eu parava durante mais de alguns segundos, Amber achava
um lugar para se sentar e as lágrimas corriam ainda mais abun­
dantes.
Ela não falou muito durante aquele passeio, e estava claro
que esta forma chamada Amber estava bastante perturbada.
Mas, apesar deste aparente sofrimento, não podia deixar de
perceber o grande silêncio e o amor que emanavam dela. Ela
estava profundamente apaixonada por sua Bem-Amada e sen­
tia-me abençoado só por estar em sua presença.

Quando voltamos para casa, fechei-me em meu quarto e conti­


nuei chorando, durante toda a noite. Perto da meia-noite, a outra
pessoa com quem dividíamos a casa, Ariel, voltou para casa e co­
meçou uma conversa ao telefone, agitada e barulhenta, com seu
marido, que estava na Califórnia. Seu quarto ficava colado ao meu e
as paredes eram muito finas. Eu ouvia todas as suas palavras. Hesitei
em dizer alguma coisa, porque já tinha me queixado de suas ba­
rulhentas cabriolas noturnas duas noites antes, quando ela tinha
trazido um amigo para dormir na casa. Ariel era jovem e selvagem,
e tanto eu quanto John não tínhamos tido qualquer sucesso ao en­
corajá-la a ir aos satsangs. Ela sempre dizia que “queria” ir, mas que
havia tantas outras coisas acontecendo: uma oficina de tantra, seus
novos amigos, as paisagens e a agitação de Maui. Mas eu sentia um
profundo anseio espiritual nela.
Finalmente, o barulho se tornou intolerável. Fui ao seu quarto
e pedi para ela ir conversar em outro lugar. Ela me pediu desculpas
por perturbar o meu sono. Confessei que não estava dormindo, mas
que não me agradava ouvir cada palavra de sua conversa. “Além dis­

292

PARA ALÉM DOS PARES DE OPOSTOS

so”, disse, “você deveria ter mais privacidade para conversar com seu
marido.” Ela se queixou de que, se fosse para a sala para conversar,
perturbaria John, cujo quarto ficava bem ao lado da sala. Mas o te­
lefone era sem fio, por isso sugeri que ela fosse falar na varanda.
“Eu já estou quase acabando”, ela respondeu. “Não estou conse­
guindo nada com ele, de qualquer maneira.”
Voltei para o meu quarto. Ela continuou a discutir com o marido
durante pelo menos mais uns cinco minutos. Quando finalmente
desligou, ouvi batidas à minha porta. Era Ariel. Ela entrou no meu
quarto e sentou-se na beira do meu futon. Tinha me visto chorando
e queria se desculpar novamente por ter me perturbado. Contou­
me sobre a situação com seu marido, e como ele não estava aberto à
busca espiritual que estava se revelando para ela. Conversamos du­
rante algum tempo, e demos satsang uma à outra. Durante aquela
conversa, algo que Ariel disse me deu um estalo, e percebi que toda
aquela coisa mental que surgira no satsang daquele dia não era um
erro. Era um presente. O presente do satsang.

Este é o lugar das tendências latentes, o satsang, para


que se possa ver que elas não têm nada a ver com QUEM
SE É.

De repente, vi que o que tinha surgido no satsang daquele dia


tinha sido proposital, para ser queimado, para ser liberado. O sur­
gimento e a queimação eram necessários; a minha autopunição não
era necessária. Este era o “sofrimento desnecessário”. Um profundo
relaxamento aconteceu então. Agradeci à minha jovem amiga pelo
seu satsang e dormi em paz o resto da noite.
293

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

No dia seguinte, no satsang, sentei bem na frente. Toda a tra­


lha mental que tinha vindo à tona em relação ao incidente do dia
anterior já tinha sido queimada. Sentia-me vazia e mais uma vez
a consciência se expandia para além desta forma individual. Não
estava preocupada se iria cantar ou não. Em um certo momento do
satsang, alguém ergueu a mão e disse: “Estou feliz por estar aqui.”
Gangaji respondeu:

Ah, que lindo. Feliz por estar aqui.

Então ela olhou para mim e disse:

Deveríamos ter uma música chamada “Feliz por


estar aqui.”

Vi que estava desejando ter uma música assim para cantar para
ela, mas não tinha. Ela então me pediu para cantar alguma coisa,
portanto cantei a música sobre Ramana aos dezesseis anos, que es­
crevera para a celebração do seu aniversário. Gangaji nunca a tinha
escutado. Ela pareceu satisfeita e muitas pessoas ficaram com lágri­
mas nos olhos.
Depois do satsang, durante a refeição dos voluntários daque­
la noite, sentei-me com Lee, o homem que fora o motorista de
Gangaji em Santa Fé, cuja bagagem eu trouxera de Boulder. Lee
disse que eu parecia diferente, mais aberta. Disse-lhe que ele parecia
diferente também; seu rosto estava radiante e alegre, sem a energia
perturbada que eu captara em Santa Fé. Ele me disse que estava la­
vando o carro de Gangaji outro dia, e que encontrara uma fita com
294

PARA ALÉM DOS PARES DE OPOSTOS

as minhas músicas no toca-fitas. Agradeci-lhe por me dizer isso.


Ele sorriu e disse: “Achei que você gostaria de saber.” Conversamos
sobre Gangaji, sobre como era intenso estar com ela. Ele me deu o
seguinte conselho: “Você tem que pedir o que quer. Diga a ela.”
“Eu disse. Disse-lhe que quero ser tão imóvel quanto ela,” res­
pondi. Quando me ouvi dizendo isso a Lee, percebi que isto era
uma coisa espantosa para se dizer a ela. Meu Deus, não me admira
que eu estivesse queimando assim. Para ser tão imóvel quanto ela,
cada tendência de se refugiar na mente, cada impulso de seguir o
pensamento como se fosse realidade (pensamento mental, emocio­
nal, físico ou circunstancial) tinha que ser consumido.

Nos dias que se seguiram, trabalhei em uma música sobre “feliz


por estar aqui”. Inicialmente, não sabia se conseguiria compô-la. As
músicas geralmente vinham até mim espontaneamente e raramente
escrevera uma música “de encomenda” como aquela. Mas a letra e a
melodia vieram naturalmente e, quando terminei, escrevi-a em uma
folha de papel e levei-a para o satsang.
Coloquei a música no sofá, junto com as outras cartas do dia,
sentindo um certo orgulho por ter escrito uma música a pedido de
Gangaji. Era um presente especial para ela. O que não percebi na­
quele momento é que havia uma certa sensação de realização pesso­
al e de apego, uma sensação de que “eu” tinha feito aquilo. Como a
mente é tenaz e sutil! Mas o verdadeiro Ser não perde nada. Quando
Gangaji pegou a minha folha de papel com a música, ela olhou para
mim como quem não quer nada e disse:

295

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

É uma música nova?

Respondi afirmativamente com a cabeça, vendo que ela não


parecia se lembrar que era a música que me pedira para escrever.
Perguntou-me se eu gostaria de cantar. Quando me levantei para
pegar o meu violão, ela disse:

Enquanto Amber está se preparando, aceito mais


uma pergunta.

Um homem idoso no fundo do salão ergueu a mão e perguntou


se poderia olhar em seus olhos. Ela fez um sinal para que ele viesse
até à frente. Enquanto ele se aproximava do sofá, para se sentar ao
seu lado, Gangaji me disse para começar a cantar. Ela disse:

Você pode ser o trovador. Cante-nos uma serenata.

Eu não queria cantar enquanto ela estivesse falando com aquele


homem, mas não tive escolha. Era isso que ela me pedira para fazer.
Portanto, comecei a cantar:

Eu costumava vagar sem cessar

Procurando pela verdade

Esperando encontrar um futuro

Quando toda a luz penetraria

Agora estou feliz por estar aqui

Feliz por estar aqui agora

Feliz por estar bem aqui

Assim, parada no tempo

296
PARA ALÉM DOS PARES DE OPOSTOS

Enquanto eu cantava, Gangaji começou a conversar com o ho­


mem, olhando dentro de seus olhos, rindo com ele, interagindo
com ele. Parecia que estava ignorando totalmente a música de que
tanto me orgulhava. Cantei o resto com menos orgulho.

Em tudo que rejeitei

Em tudo que quis junto a mim

Não sabia que o que buscava

Todo aquele tempo estava aqui

Agora estou feliz por estar bem aqui

Feliz por estar aqui agora

Feliz por estar bem aqui

Assim, parada no tempo

Quando terminei de cantar, o homem e Gangaji estavam aca­


bando também. Ela lhe disse mais algumas palavras, e então o man­
dou voltar ao seu lugar. Imediatamente, Gangaji acolheu mais uma
pergunta. Nada foi dito a respeito da música que eu cantara. Ela
não olhou para mim nem sorriu, do modo como geralmente faz
quando canto. Foi como se eu nem tivesse cantado. Foi como se eu
nem mesmo existisse.
Fiquei sentada, chocada, com meu violão no colo, profunda-
mente chocada por ela me tratar assim. Quando finalmente supe­
rara meu medo de cantar na frente das pessoas, quando tinha final­
mente me aberto a ela com tanta confiança, ela me esbofeteara com
mais força do que nunca. Sentimentos profundos de rejeição e falta
de valor começaram a surgir, mais extremados do que jamais senti­
ra. Surgiram pensamentos como: “Eu não deveria ter dado a letra
da música para ela. Não deveria ter cantado aquela música. Não
297

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

deveria nem mesmo ter escrito a música. É uma música estúpida


de qualquer maneira. Não deveria cantar nunca mais!” Pior ainda:
“Afaste-se desta mestra; ela está magoando você.”
Senti um breve impulso de fugir, senti meu coração começando
a se retirar do dela. Então, miraculosamente, tudo aquilo se desinte­
grou. Todos aqueles pensamentos e sentimentos simplesmente de­
sapareceram, derreteram no Ser. A mente rendeu-se, foi esmagada,
prostrada diante da Verdade. Assim, tive a vívida percepção de que
todos aqueles pensamentos e emoções não eram nada, que se base­
avam no passado, em memórias de rejeição e de falta de valor. Eles
não tinham nada a ver com este momento. Não tinham nada a ver
com quem eu sou. Eles não significavam absolutamente nada.
Depois do satsang, levantei-me para guardar o meu violão, ainda
me sentindo um pouco aturdida e estranha. Meu corpo e meu cére­
bro pareciam estar pegando fogo, ou foi assim que interpretei a coi­
sa no momento, por causa do incrível esmagamento que acabara de
sofrer. Não tinha vontade de ir à cozinha supervisionar a preparação
da refeição. Meu impulso era de ficar sozinha, de sentar-me em
uma pedra no meio da floresta. Então percebi que estava sozinha,
sozinha comigo mesma. Apesar da aparência que me rodeava, com
pessoas correndo de um lado para o outro, desmontando o palco
e trabalhando nas mesas da livraria, havia a sensação de que nada
estava acontecendo, de que não havia ninguém com quem aquilo
tudo estivesse acontecendo. Apesar de estar sentindo vividamente a
dor do tapa de Gangaji, conforme a minha mente continuava tentan­
do avaliar e reagir aos eventos que tinham acabado de acontecer no
satsang, cada pensamento era imediatamente consumido pelo fogo.

298

PARA ALÉM DOS PARES DE OPOSTOS

Quando comecei a me dirigir à cozinha, que ficava nos fundos


do salão, Maitri aproximou-se de mim com um sorriso radiante e
disse: “Gangaji gostou muito, muito mesmo, das refeições que você
preparou para ela.” Estava curiosa para saber se Gangaji tinha gos­
tado das duas refeições que preparara para ela naquela semana. Eu
não tinha trazido minhas receitas para Maui, portanto tive que ser
criativa. Maitri aliviou-me de toda preocupação, ao informar-me o
que Gangaji dissera: “Aquelas duas refeições que Amber preparou
foram puro néctar.” Deslumbrei-me com esta bela dança do sat-
guru, fiquei maravilhada com o modo como a espada sempre era
compensada pelas rosas, o tapa sempre acompanhado de um beijo.
Foi só alguns dias mais tarde que reconheci completamente a
significação da dissolução dentro do Ser que ocorrera naquele dia.
Finalmente, escrevi a Gangaji, relatando o que tinha acontecido du­
rante e depois do satsang.

Observei a mente começando a interpretar aquilo, ao rea­


gir emocionalmente e construir uma história, tudo baseado no
passado. Então, em um instante de Graça, a mente entregou
tudo aquilo ao Ser; ela foi esmagada, achatada. E, nesta entrega,
todas as interpretações e reações que estavam sendo construídas
pela mente, e que pareciam tão reais um momento antes, sim­
plesmente desapareceram, como na Jornada nas Estrelas, quan­
do o Holodeck* é desligado e a cena desaparece, sem deixar nada
em seu lugar, exceto uma grade sem significado algum.
A partir desta entrega, uma queimação intensa surgiu no
corpo e durou dois dias. Compreendi que eram as tendências
latentes sendo consumidas pelo Ser. Que alívio ver esta mira­
gem, este jogo da mente, e entender esta queimação intensa,
que sempre sinto quando estou com você em forma. Sei que

299

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

lutei contra ela algumas vezes. Mas agora estou relaxada, depois
deste esmagamento.
Alguns dias depois desta percepção, acordei no meio da noi­
te (ou melhor, a consciência acordou, enquanto o corpo ainda
dormia) e surgiu uma clara visão de como o mundo inteiro
é esta mesma miragem, como ele não é nada além da mente,
em um interminável ciclo de polaridades: prazer/dor, arrogân­
cia/falta de valor, aceitação/rejeição, exposição/ocultação, su­
cesso/fracasso; e a quantidade de sofrimento imaginário que
isto causa. A imagem que me veio naquele momento foi a de
um “terreno baldio mental”. Foi uma rude percepção, de certa
maneira chocante. E veio um impulso inicial de não acreditar
nela, mas também havia um saber profundo de que esta é a
Verdade. E, ao me render a este saber, uma gargalhada surgiu
bem dentro de mim, e um profundo relaxamento que não pode
ser descrito com palavras.

Vi claramente como a mente cria interpretações da experiência,


tudo isto baseado em memórias do passado, e como estas interpre­
tações criam as “polaridades”, que são então utilizadas para encon­
trar significado nas circunstâncias e para avaliar a nós mesmos, seja
em termos de valor ou de falta de valor; e isto então nos mergulha
em sofrimento e escravidão. Estes pares de opostos são como os dois
lados de uma moeda: você pega uma moeda, ela vem com os dois la-
dos. Você pega “Oh, eu sou fabuloso!” O que vem amarrado a isto,
mais cedo ou mais tarde, é: “Oh, meu Deus! Eu não valho nada!”
Vidas inteiras são gastas tentando impedir que o lado da moeda
que diz “falta de valor” apareça, e tentando manter o lado que diz
“fabuloso” sempre à mostra.
Finalmente, compreendi diretamente uma das frases de Papaji:
“Se você tocar isto, será mordido.” É com a mente que as coisas são
300

PARA ALÉM DOS PARES DE OPOSTOS

“tocadas”. Somente a mente negocia com esta moeda de duas caras.


A liberdade se revela quando a moeda não é tocada em nenhum de
seus lados. Quando se pára a identificação com a mente como sen­
do quem se é, é-se então libertado do sofrimento destas polaridades
incessantes, este constante cabo-de-guerra, esta roda de samsara.*
Vi toda a busca para se encontrar “o sentido da vida” como ab­
surda. Não existe sentido na vida fenomenal. Não existe qualquer
conexão entre as circunstâncias e quem se é. Este elo aparente é ape­
nas uma ilusão criada pela mente. É como em uma peça de teatro,
quando dois homens estão lutando, e um deles esfaqueia e mata o
outro. O esfaqueamento tem um sentido dentro da peça mas, na
realidade, fora da peça, não tem qualquer significado, não tem qual­
quer relação com quem estas pessoas são realmente. Os dois homens
podem ser grandes amigos, podem sair para jantar juntos depois, e
dar boas gargalhadas a respeito de tudo isto.
Ao ver a falta de sentido dos acontecimentos e das circunstân­
cias, vivenciei diretamente como Maia torna-se Leela, como o so­
frimento desaparece e o mundo dos fenômenos é então visto como
um Teatro Divino, às vezes encantador, às vezes horrível, mas que
não tem nada a ver com quem se é.

Alguns dias depois, a fita com as músicas que gravara chegou de


Boulder. Toby enviara vinte cópias, porque Gangaji dissera que que-
ria que a fita fosse colocada à venda na livraria. A chegada daquela
fita provocou o surgimento de um novo nível de “exposição-medo”.
Sentada no chão da sala de estar, olhando para aquelas fitas com mi­
nha foto na capa, e sobre ela, o título “Despertada de um Sonho”,

301

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

senti uma constrição intensa e um calor no meu peito. Não gostava


do resultado final da capa. Ela fora criada rapidamente, pouco antes
de eu ir para Maui. Queria que a capa indicasse que a música era
acústica, e que não usava sintetizador, como a maior parte da músi­
ca da Nova Era hoje em dia. Não tivemos tempo nem dinheiro para
contratar um artista gráfico profissional, por isso Toby simplesmen­
te usara uma foto minha com o violão. Na época, imaginei que a
fita seria colocada nas prateleiras de livrarias tipo Nova Era e que
seria comprada principalmente por pessoas que não me conheciam.
Fiquei muito surpresa, até mesmo chocada, quando Gangaji disse
que queria a fita na mesa da livraria do satsang. Ela nunca tinha
permitido nenhuma fita de música nas mesas. Agora, minhas fitas
iam ser colocadas nas mesas, diante de todas estas pessoas que me
conheciam. Muitas delas não gostavam muito de mim, pelo menos
pelo que eu podia perceber, já que haviam iniciado um exame deci­
didamente crítico sobre a maneira como eu estava supervisionando
as refeições dos voluntários.
John estava entusiasmado com a idéia de levar as fitas para o sat-
sang naquela manhã, e entregá-las ao pessoal de vendas, pois prome­
tera a Toby que supervisionaria a promoção das fitas enquanto esti­
véssemos em Maui. Mas eu não estava pronta para aquilo. Precisava
de tempo para me acostumar. Tentei ganhar tempo, dizendo a John
que queria entregar uma cópia a Gangaji antes de deixar alguém ver
as fitas.
No dia seguinte, no satsang, coloquei uma cópia da fita em um
envelope, com um bilhete de agradecimento e deixei-o no sofá de
Gangaji, junto com sua correspondência. Novamente, senti orgu­

302

PARA ALÉM DOS PARES DE OPOSTOS

lho por ter completado a fita em benefício da Fundação, pois tinha


lhe dito alguns meses antes que era isso que faria.
De maneira perfeita, Gangaji nem abriu o envelope com a mi­
nha fita. De fato, quando foi embora, nem mesmo o levou consigo.
Nunca soube ao certo se ela conectou uma coisa à outra, nem mes­
mo se gostou da fita, pois ela nunca tocou neste assunto comigo.
No dia seguinte, John não conseguiu esperar mais. As fitas foram
para a mesa da livraria. Uma sensação de exposição extremamente
dolorosa aumentou ainda mais, porém, parecia estar acontecendo
à distância. Eu a estava definitivamente “vivenciando”, mas havia
também uma estranha sensação de que “eu” não estava sendo tocada
por nada daquilo.
Durante o satsang daquele dia, uma garota fez uma pergunta
sobre uma experiência de “estar desperta” que tinha tido durante o
retiro de Crestone no verão anterior. Ela afirmou que, desde então,
tinha “perdido a experiência” e que a queria de volta, acrescentando
que a parte dela que parecia desperta era muito “pequena”.
Gangaji respondeu:

Então, isso que vê partes, isso que vê partes despertas,


partes adormecidas, partes iluminadas, partes não-ilu­
minadas, partes boas, partes ruins, isso... Isso é pequeno?

A garota suspirou, sorriu levemente e disse: “Não.”

Então, porque se identificar com uma parte que você


vê? Por que não se identificar com o próprio ato de ver?
Por que não repousar na consciência, em vez de em al­
303

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

gum objeto que apareceu na consciência, e que é ava­


liado como estando “adormecido”? Em uma experiência
objetiva, sobre a qual você possa dizer: “Ah, isto é estar
adormecido,” “Ah, isto é teimosia.” “Adormecido” não é
um objeto concreto, mas ainda é um objeto na mente,
não é? Sim. Mas, você pode medir o ato de ver este objeto,
pode medir isso EM QUE o objeto surge?
De que lhe serve uma régua aqui? Um objeto, um
instrumento de medida pode medir aquilo que está cons­
ciente de toda a medição? Uma parte pode ser maior do
que o todo?

A garota disse: “Ela é o todo.”

Se você sabe isto, então a pergunta sobre desperto e


adormecido está respondida. Você está desperta. Se você
sabe isto, você sabe tudo. Por causa da identificação com
as partes, e porque se vê tantas partes, algumas boas, ou­
tras ruins, algumas que dão prazer, outras que causam
dor, por causa desta identificação e da conclusão subse­
qüente de que “Eu não quero aquelas partes, mas quero
estas partes aqui. Ah, não! Tenho algumas partes que não
quero; onde estão as partes que eu quero?” ocorre a iden­
tificação equivocada, em um ou outro grau. Às vezes, é
claro, há sofrimento extremo. Algumas vidas são perdidas
em sofrimento extremo. Mas, em sua vida, você diz que
teve um vislumbre de despertar. Isso que teve um vislum­
bre de despertar esteve algum dia adormecido?
Existe um ponto, em uma vida muito abençoada, no
304
PARA ALÉM DOS PARES DE OPOSTOS

qual o reflexo é vazio; no qual não há nada com o qual


se identificar; no qual você pode olhar no espelho, e ele é
transparente, claro, e não se pode ver nenhum objeto nele.
Neste instante, a Verdade é descoberta.
Então, talvez os objetos comecem a reaparecer. E sur­
ge a conceitualização da “ausência de objeto” como uma
pequena parte. Você fez alguma coisa para que isto ocor­
resse?

A garota respondeu: “Não.”

Certo. Este é o segredo. Pare de fazer qualquer coisa


para que aquilo aconteça de novo. Pare de fazer qualquer
coisa para lutar contra a experiência que está acontecen­
do neste momento. Então, você também verá o vazio des­
ta experiência. E, quando vir o vazio desta experiência,
você dirá: “Sim, a parte é o todo... O vazio é vazio. A
consciência está em toda parte.”
E as perguntas sobre desperto e adormecido então são
absolutamente absurdas.

Enquanto escutava esta conversa, surgiu em mim um medo de


que as pessoas pensassem que sou arrogante por ter intitulado a fita
“Despertada de um Sonho”. Quem é que desperta? Na verdade, não
existe ninguém para despertar. Comecei a desejar, mais uma vez,
não ter colocado minha fotografia na capa, e que Toby não tivesse
enviado as fitas para Maui. Mais sentimentos de exposição acom­
panharam estes pensamentos, como se toda a minha alma estivesse
nua e vulnerável, exposta nas mesas da livraria, na forma de uma
305

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

fita. Sentia surgir o desejo de sair correndo, mas também havia uma
sensação de que esta não era mais uma opção. Não havia maneira
de fugir.
Uma banda de rock estava tocando no parque naquele dia, do
lado de fora da igreja. Começaram a cantar uma música dos anos 70,
“Nenhum lugar para onde fugir, nenhum lugar onde se esconder...”
Que perfeição! Nenhum lugar para onde fugir. Não podia mais me
esconder. Eu estava na presença do Satguru. Esta exposição precisa­
va ser acolhida. Novamente, meu corpo se sentiu inflamado com a
queimação. Em um certo ponto, ergui minha mão com a idéia de
perguntar a Gangaji sobre este sentimento de estar sendo exposta,
para expor a exposição. Ela viu a minha mão, mas não me chamou.
Esperei por uma oportunidade de erguer minha mão mais uma vez,
mas depois de responder a mais algumas perguntas, Gangaji juntou
as palmas das mãos, disse Om Shanti e encerrou o satsang. A quei­
mação então se intensificou, por ter sido ignorada por ela.
Depois do satsang, saí caminhando pelo estacionamento, sen­
tindo-me entorpecida e muito quente. Um dos voluntários de Maui
aproximou-se de mim e perguntou, em um tom acusador: “Como
é que a sua fita está à venda? Temos grandes músicos aqui em Maui
e nenhum deles tem uma fita à venda na livraria.” Queria explicar a
ele que era apenas parte da Leela. Por ironia, eu era provavelmente
a única compositora presente que não queria ter uma fita à venda
na livraria naquele momento. Mas não disse nada e apenas encolhi
os ombros.
Vi Eli de pé no estacionamento, esperando que o pequeno sat-
sang terminasse para poder levar Gangaji para casa. Trouxera uma

306

PARA ALÉM DOS PARES DE OPOSTOS

fita para Eli naquele dia, porque alguns alunos dele tinham me
dito que ele havia tocado minhas músicas durante seus retiros e
workshops sobre o Eneagrama. A gravação que ele tinha era uma
versão anterior, feita antes da mixagem definitiva estar completa, e
eu queria que tivesse uma cópia boa. Enquanto ele conversava com
alguém, de pé com as mãos entrelaçadas atrás de si, aproximei-me
dele por trás e coloquei a fita em suas mãos. Quando a sentiu em
suas mãos, ele se virou, olhou para a fita por um instante, então me
deu um caloroso abraço de agradecimento. Confessei-lhe que me
sentia exposta pela fita estar à venda. Ele apenas sorriu e me abra­
çou mais apertado. Embora houvesse um sentimento de amizade
profunda com Eli, ele raramente me dizia qualquer coisa. Nossa
comunicação parecia ocorrer mais em silêncio.
Gangaji saiu do pequeno satsang e desceu a escada até o estacio­
namento. Eli me soltou e imediatamente colocou-se ao lado dela,
para guia-la até o carro, através do monte de gente que a cercava.
Sem querer, eu estava de pé bem no caminho entre ela e o carro.
Quando percebi que ela estava vindo em minha direção, juntei as
palmas das mãos em um namastê. Ela passou por mim, parecendo
não ter me visto. Esta era uma situação que, alguns dias antes, po­
deria ter causado o surgimento de um sentimento de rejeição. Mas
havia tanto fogo queimando dentro de mim que, se alguma coisa
mais surgiu, passou despercebida e provavelmente foi consumida de
imediato, junto com tudo mais. Então, a uns três metros de distân­
cia, Gangaji virou-se para trás e olhou para mim. Ela disse: “Você
queria falar no satsang?”
Ergui os ombros e disse: “Não era importante.”

307

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Ela deu alguns passos em minha direção e perguntou: “O que


foi?”
Respondi: “Eu me senti tão exposta... com a fita sendo colocada
à venda e tudo mais...”
Ela disse com firmeza: “Mantenha-se firme, bem no âmago disto
tudo. Não lute contra isto.” Dei uma conferida dentro de mim e dis-
se a verdade: “Acho que é o que estou fazendo. Não estou lutando.”
“Que bom,” disse. Ela falou com outra pessoa, e então olhou
novamente para mim, antes de entrar no carro. Uma onda de amor
intenso e universal precipitou-se sobre mim através daquele olhar.
Já tinha sentido este amor antes, após estar em contato próximo
com ela, mas geralmente confundira-o com amor pessoal, pois este
é o tipo de amor que a mente compreende. Agora percebia que o
que estava vivenciando não era pessoal e a “pessoa” ficou desapon­
tada por causa disso. Tinha ouvido Gangaji dizer muitas vezes que
“este amor não é pessoal e não é impessoal”. Embora pensasse ter
compreendido intelectualmente o que aquilo significava, não tinha
realmente “captado” o que era, até aquele momento.
Quando o carro se afastou, uma mulher veio até mim e começou
a me dizer o que tinha sentido quando me ouvira cantar uma mú­
sica alguns dias antes. Ela admitiu que, inicialmente, tinha ficado
com ciúmes, porque também compunha canções. Ao dizer isso, ela
começou a chorar e suas palavras saíram entrecortadas. Senti since­
ridade nela, e uma profunda onda de amor por ela surgiu em meu
coração. Passei um braço ao redor de seus ombros, e a encorajei a
continuar tentando me contar a sua experiência. Para mim, era in­
comum fazer isso, pois não sou muito de abraçar e tocar as pessoas,

308

PARA ALÉM DOS PARES DE OPOSTOS

mas aquele gesto surgiu espontaneamente. Ela continuou dizendo


como, enquanto eu cantava, tinha percebido que era o seu próprio
Ser cantando, e sua própria música que estava sendo cantada. Sorri­
lhe e disse: “Sim, a mesma canção, o mesmo Ser.” Estas pareciam
as palavras de Gangaji; o amor era como o amor de Gangaji. Pois
naquele sorriso, uma tremenda onda de amor fluiu para aquela pes­
soa. Porém, ele não era pessoal. Pode ter parecido pessoal, se al­
guém tivesse me visto lá, de pé, com um braço enlaçando os ombros
desta mulher, mas era completamente impessoal. Não precisei nem
mesmo saber seu nome ou vê-la novamente; havia apenas o amor
naquele momento, um amor por aquilo que estava se exprimindo
através dela, um amor por aquilo que é o meu próprio Ser, um amor
que não tem nada a ver com os fenômenos, um amor que é mais
próximo que o pessoal e maior que o impessoal. Finalmente conhe­
ci isso, não através de uma compreensão mental, mas vendo que este
é o amor de que Gangaji fala e que ela vive. É com este Amor que
ela me ama, que ela ama todo mundo.

Naquela noite, fiquei sentada na sala de estar, depois do jantar,


refletindo sobre este Amor que tinha visto, que não é pessoal nem
impessoal, e percebendo como é grande a tendência da mente de
tentar trazer este Amor para um contexto pessoal, compreensível
e apreensível. Esta tendência surgia com força, especialmente com
Gangaji, pois ainda me apegava a uma ligação profunda e pessoal
com ela. A mente não queria abrir mão deste amor pessoal, e havia
um sentimento de perda associado à percepção disto.
Fiquei sentada, acolhendo tudo aquilo, percebendo como ainda

309

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

estava me apegando a idéias românticas sobre a relação entre guru e


discípulo, do modo como queria que ela fosse.
Depois de um tempo, John entrou na sala e me perguntou se
eu queria que ele lesse um trecho de um livro que trouxera consigo,
intitulado I Am That (Eu sou Aquilo), de Nisargadatta. Eu também
ganhara esse livro de Natal, mas ainda não tinha tido chance de lê­
lo, por isso pedi a John que lesse para mim.
Ele escolheu uma página ao acaso e leu este trecho:

Nisargadatta: Você, como pessoa, imagina que o Guru está


interessado em você enquanto pessoa. De maneira alguma.
Para ele, você é um estorvo e um obstáculo do qual é preciso
se livrar. O objetivo do Guru, na verdade, é a sua eliminação
enquanto um fator na consciência.

Discípulo: Se eu for eliminado, o que restará?

Nisargadatta: Nada restará, tudo restará. O sentido de iden­


tidade permanecerá, mas sem a identificação com um corpo
em particular. O ser-consciência-amor brilhará em todo o seu
esplendor. A libertação não é jamais para a pessoa, mas sempre
da pessoa.*

Com que perfeição o Ser aparece a cada momento, com a instru­


ção exata. Ao ouvir estas palavras, senti a queimação característica
que começara a associar à rendição da mente ao Ser.

Gangaji continuou jogando comigo, utilizando-se da música,


dizendo-me que eu cantaria em um determinado dia, e não me pe­
dindo para cantar, ou então pedindo a uma outra pessoa para cantar

310

PARA ALÉM DOS PARES DE OPOSTOS

em meu lugar. A mente não conseguia entender aquilo. Ela queria


que eu cantasse, ou estava cansada de me ouvir? Finalmente, não
havia mais lugar algum onde a mente pudesse se acomodar, nenhu­
ma saliência à qual se agarrar, nenhuma maneira de “saber” o que
quer que seja. Assim, mais uma vez, pude sentir a mente simples-
mente desistindo.
Enquanto isso, ainda estava supervisionando as refeições dos vo­
luntários. Muitos voluntários animados estavam aparecendo todos
os dias para ajudar na cozinha, e todas estas mãos tornavam o tra­
balho mais leve. Às vezes, até tinha que recusar ajuda, já que tan­
tas pessoas estavam se oferecendo. Eu achava que tudo estava indo
muito bem, que tudo estava sendo feito sem esforço e com perfei­
ção. Mas esta não era a percepção das pessoas “encarregadas”. Elas
sempre faziam questão de me dizer, colocando a informação cuida­
dosamente aos meus pés, que a refeição fora servida cedo demais ou
tarde demais, que não havia salada suficiente ou que alguém tinha
queimado a sopa. A situação era tal que, em qualquer outra época
de minha vida, teria desaparecido de lá em um instante. Nunca
tinha permanecido voluntariamente em uma situação na qual esti­
vesse sendo fulminada de críticas daquela maneira. Nunca desejara
uma circunstância o suficiente para permanecer nela, quando ela se
tornava desagradável.
Mas havia aqui uma sensação de que o que parecia estar aconte­
cendo não estava realmente acontecendo, de que a consciência da cir­
cunstância era mais real do que a própria circunstância. Reconheci,
mais uma vez, uma oportunidade de permanecer quieta, de não me
mover. Ao reconhecê-lo, vi que as circunstâncias não eram reais.

311

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Somente a consciência é real. O que parecia ser um ataque destas


pessoas contra mim não tinha qualquer significado em relação a
quem eu sou e, neste sentido, era perfeito; era uma chance de aco­
lhê-lo sem hesitação, e assistir enquanto tudo era reduzido a cinzas.
Era uma oportunidade de ver que a tralha mental das pessoas é tão
desprovida de significado quanto a minha própria, e que é tudo a
mesma tralha mental! Seja tralha mental “fenomenal”, “circunstan­
cial” ou “interna”, é tudo a mesma coisa. Nada. Sem significado.
Sem a menor conexão com a Verdade do meu Ser.
Em última análise, mais uma vez, observei minha mente entre­
gando tudo aquilo ao Ser. Estava se tornando cada vez mais óbvio
que nada que surge na mente significa qualquer coisa. Não havia
mais nenhum lugar no qual me acomodar, a não ser no Ser. Não
havia nada a fazer, exceto entregar tudo, continuamente, a cada mo­
mento, vinte e quatro horas por dia.

No meu último dia de satsang em Maui, Gangaji perguntou:


“Este é o seu último satsang formal?” Respondi que sim com a ca­
beça. Ela disse: “Então você deveria cantar.” Novamente, sacudi a
cabeça, indicando que teria prazer em cantar. Mas, antes de receber
um sinal dela, dizendo que era hora de cantar, outro músico, que
estava sentado atrás de mim, ergueu a mão e perguntou se poderia
cantar. Sua música era tão bonita e expressava tão bem o que eu
estava sentindo naquele momento, que não teria conseguido cantar
depois dele. Assim dizia o refrão:

Olhei uma vez em seus olhos

Agora estou caindo eternamente

312
PARA ALÉM DOS PARES DE OPOSTOS

Dentro do silêncio interior.

Ainda bem que, quando ele terminou, Gangaji juntou as palmas


das mãos e terminou o satsang.
Percebi que tudo aquilo que tinha acontecido em Maui era uma
queimação profunda daquilo com que havia me identificado como
sendo eu. Vi como é frágil e falsa esta entidade chamada “eu”; como
ela é construída na mente e como nos identificamos falsamente com
ela, como se fosse quem somos. Com esta identificação, surge a
necessidade de defender e proteger este falso ser, através do desen­
volvimento de estratégias e da fabricação de histórias e máscaras
elaboradas. E tudo isso é simplesmente um castelo feito de cartas de
baralho. Como dizia a música daquele homem, um olhar do verda­
deiro mestre é o suficiente: o castelo de cartas começa a desmoronar.
Um olhar penetrante dos olhos do Ser e tudo de falso que foi fabri­
cado começa a ser reduzido a cinzas. Isto não acontece no tempo,
porém penetra o tempo. Escrevi a Gangaji sobre esta incineração:

Ontem, pareceu que tudo que acontecera tinha sido progra­


mado especificamente para atirar neste fogo o que restava de
minha ‘personalidade’. Foi muito estranho observar a extinção
da identificação com a individualidade; foi como assistir à mi­
nha própria pira funerária sendo acesa. Mas não houve qual­
quer tentativa de resistir. Apenas assisti, enquanto tudo virava
fumaça. Na verdade, não havia ninguém para resistir.
Depois desta morte mais recente, uma espécie de sentimen­
to ‘dissociado’ tem estado presente e, com ele, uma expansão e
uma liberdade. Acredito que isto é a liberdade de não ter mais
que se proteger. Que alívio! Aquilo dava tanto trabalho!
Nos últimos dias, tem havido uma profunda boa-vontade
313

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

para deixar tudo vir à tona, de uma maneira mais profunda do


que antes. Trata-se simplesmente de uma completa disposição
para ver tudo que não foi visto antes, e a percepção de como
esta boa-vontade é necessária para que esta entrega se aprofun­
de; porque a entrega, a parada, fazem a tralha vir à tona e, se
houver alguma relutância em ver isto, haverá uma sutil resistên­
cia a esta entrega. Agora vejo como a mais leve hesitação é como
uma corda que nos puxa de volta para a dança da mente.
Então vem mais parada, mais entrega, mais boa-vontade,
mais disposição. E uma inundação de tudo aquilo que mantive
trancado bem dentro de mim, correndo para ser acolhido, para
ser liberado. Esta é uma lavagem profunda.

Quando deixei Maui, os fortes hábitos da mente, que uma vez


tinham controlado a personalidade, haviam sido permanentemente
afrouxados. Comecei a ver claramente os pensamentos e as idéias
que a mantinham unida, que mantinham o “eu” unido, e também a
ver os pensamentos-chave dos quais todo o resto dependia, inclusive
o pensamento mais central de todos, o “pensamento-eu”. Quando
acordava de manhã, havia um momento no qual estava claro que o
“pensamento-eu” ainda não tinha surgido. Durante alguns momen­
tos, não havia qualquer identificação com a “pessoa” ou o “corpo”
como sendo eu, havia apenas a imensa e ditosa vastidão da Presença.
Então, assistia ao surgimento do “eu”. Esta aparição geralmente era
acompanhada de uma sensação de queimação no corpo. A cada ma­
nhã, esta experiência me permitia ver o efeito do surgimento deste
“pensamento-eu” e ter um vislumbre de como outros tipos de ati­
vidade mental, tais como julgamentos, emoções, medos e desejos,
são criados e como nos identificamos com eles, como eles se reúnem
em torno do “pensamento-eu” e dependem dele como os galhos e
314

PARA ALÉM DOS PARES DE OPOSTOS

folhas de uma árvore. Às vezes, podia ver como até mesmo o tempo
e o espaço são criados pela mente, e como nos identificamos com
eles. Finalmente, pude vivenciar diretamente a verdade das palavras
de Ramana, no livrinho intitulado Who Am I? (Quem sou eu?), que
não tinham feito nenhum sentido para mim alguns meses antes:

De todos os pensamentos que surgem na mente, o pensa­


mento do “eu” é o primeiro. É só depois do aparecimento do
“eu” que os outros pensamentos aparecem. É depois da apari­
ção do pronome pessoal da primeira pessoa do singular que os
pronomes da segunda e terceira pessoas aparecem; sem o pro­
nome da primeira pessoa, não haverá o pronome da segunda,
nem da terceira pessoas.
O pensamento “Quem sou eu?” destruirá todo e qualquer
outro pensamento e, como a vara utilizada para atiçar a pira
crematória, ele também será destruído no final. Então, surgirá
a Auto-realização.*

Não demorou muito para dias inteiros se passarem sem que o


“pensamento-eu” surgisse. Comecei a perceber uma falta de esforço
na ação, que parecia quase mágica; as coisas eram feitas, sem a sen­
sação de que “eu” estivesse fazendo qualquer coisa. Circunstâncias
que antes me teriam feito “reagir” de uma certa maneira habitual,
agora eram acolhidas com uma quietude e uma presença que me
permitiam simplesmente “responder” à situação. Já tinha ouvido
Gangaji se referir a uma “verdadeira responsabilidade” em relação a
esta habilidade de “responder”, mas realmente não tinha entendido
antes.

Você não pode responder, enquanto estiver carregando


315
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

o peso de alguma fórmula a respeito do que é a verdade.


Isto é impossível. Você pode apenas reagir.*
A habilidade de responder deve ser livre, espontânea e
totalmente intuitiva, ou estará carregando o peso de con­
ceitos do passado: como deveria ser a sua aparência, qual
deveria ser a sensação, como deveria ser recebida. Tudo
isto vem do passado. Isto não é responsabilidade. Isto é
uma imitação de responsabilidade, e é um peso.
A verdadeira responsabilidade não é absolutamente
um peso. Ela é uma alegria. É uma disponibilidade para
entregar-se, para ser quem você é, sem se ter nenhum con­
ceito sobre o que é isto.*

Quando as circunstâncias são acolhidas com uma agenda ba­


seada na bagagem emocional e mental, estes encontros assumem a
coloração desta bagagem, e a resposta é como que filtrada através de
lentes coloridas e escuras. Quando não há qualquer agenda, nenhu­
ma bagagem pessoal, a resposta a uma situação é livre, espontânea
e verdadeira.
A tendência de buscar na mente um ponto de referência do
ser estava se dissolvendo, e níveis cada vez mais profundos desta
tendência e de sua dissolução continuavam sendo revelados pelo
Satguru. Com esta dissolução, surgia uma sensação de liberdade,
que estava além do que se pode dizer com palavras, além dos “pares
de opostos”; além da arrogância e da falta de valor, da dependência
e da independência, do pessoal e do impessoal, até mesmo além da
iluminação e da ignorância. A verdadeira Liberdade, o verdadeiro
Ser, sem se acomodar em lugar algum da mente.
316
PARA ALÉM DOS PARES DE OPOSTOS

Gangaji não retornou a Boulder antes de 26 de abril, exatamente


um ano depois de nosso primeiro encontro. Na manhã do seu re­
torno, deixei um buquê de rosas em sua casa, com um bilhete lem­
brando-lhe que este era o aniversário de nosso encontro, e agrade­
cendo-lhe pelo ano mais precioso de minha vida. Mais tarde, ela me
escreveu um bilhete em resposta a alguns capítulos deste livro, que
tinha lhe enviado. No final do bilhete, que continha alguns trechos
das transcrições de satsangs corrigidos por ela, Gangaji escreveu:
Amado Ser, a profundidade deste encontro é interminável.
Que bela promessa! Em tudo que aconteceu, em tudo que foi
revelado, a Graça mais extraordinária de todas é esta incognoscível,
misteriosa perpetuidade. Nas palavras de Papaji:

A liberdade é o começo de algo

Que Ninguém conhece:

Satsang não tem fim,

É sempre nova, insondável bem-aventurança.

A firme convicção

De que se é Existência-Consciência-Bem-aventurança

É o final do Ensinamento.

Porém existe um Segredo sagrado até mesmo além disto.

Este segredo sagrado deve ser solicitado em Segredo

E seguido sagradamente.*

Gangaji jamais reivindicará como ação sua qualquer coisa que


tenha sido revelada a mim ou a qualquer pessoa que desperta em sua
presença. “Eu não fiz nada” ela sempre diz. “Você já é, sempre, com­
pletamente, totalmente AQUILO.” Esta é a verdade da minha ex­
periência mas, mesmo assim, misteriosamente, foi este “encontro”,
este encontro com o Satguru, com a Graça na forma de Gangaji, que
317

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

revelou a Verdade sempre-presente, que revelou o que é tão simples,


tão completamente simples, que passa despercebido. Que delicade­
za que sua própria simplicidade a tenha mantido como o segredo
mais profundo.

318

O FIM DE UMA BUSCADORA

O que escrevi nestes capítulos é o relato do encontro com o


meu Satguru, em forma, e as experiências e revelações que ocorre­
ram durante o primeiro ano deste encontro. Embora tenha encer­
rado a história aqui, a revelação do Ser a Si mesmo não terminou.
Depois que voltei de Maui, a identificação com a mente continuou
a ser queimada em níveis cada vez mais sutis. A tendência de buscar
quem eu sou em qualquer coisa nas circunstâncias exteriores con­
tinuou a ser cortada. O amor, as visões, a bem-aventurança, a paz
de estar sendo “sustentada” a cada momento pelo Verdadeiro Ser
continuam a se aprofundar e a tornar-se mais vívidos. Entretanto,
estou achando cada vez mais difícil contar a sua “história”.
Quando conheci Gangaji, a explosão de amor, o fogo, a resistên­
cia, o medo, o doloroso “abrir mão”, tudo aquilo contribuiu para
a criação de uma história muito dramática. Agora, conforme a en­
trega continua se aprofundando, a resistência e o dramático arran­
car da identificação com a mente desfazem-se em uma entrega sem
esforço, não-dramática, bastante comum, da mente ao Ser, a cada
momento.
Quando digo comum, não quero dizer monótona ou desinteres­
sante, nem mesmo habitual. Nesta entrega de cada dia, momentos
comuns tornam-se sublimes e repletos da alegria da eterna Auto-
descoberta. Como Gangaji descreveu:

319

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

É simplesmente uma entrega ditosa e eterna, esta pros­


tração da mente diante do Ser. Do Verdadeiro Ser. Não
uma imagem do Ser, não um pensamento sobre o Ser. O
Verdadeiro Ser. Aquilo que não pode ser imaginado nem
pensado.*

Neste sentido, cada momento da vida tornou-se extraordinário.


Entretanto, não é “dramático” da maneira como a mente percebe o
drama dos acontecimentos. Percebo agora que este drama foi criado
pela sensação de um “eu” que estava abrindo mão, que estava mor­
rendo, que estava explodindo de amor. Agora, este “eu” não é mais
vivenciado da mesma maneira, pois a identificação não tem mais a
mesma força. Acho difícil, pelo menos a esta altura, colocar os me­
ses que se passaram desde Maui na forma de uma “história” ou até
mesmo em palavras.

Ao olhar para trás, teria que dizer que, quando me iniciei na bus­
ca espiritual, não estava realmente buscando a iluminação. Estava
buscando desenvolvimento pessoal, realização pessoal; queria aper­
feiçoar minha mente, minha personalidade, meu corpo, minhas
circunstâncias e cumprir o destino pessoal desta vida. Em minha
busca, fui conduzida a maneiras muito poderosas e profundas de se
fazer isto. Mas o verdadeiro anseio, o anseio pelo Ser eterno, o an­
seio pela liberdade real, permaneceram não realizados, até que este
“eu” que estava ansiando foi deixado para trás.
Esta é a ironia, a grande piada cósmica, o grande segredo da
“iluminação”. Somente quando a pessoa que busca a iluminação se
dissolve, o objeto da busca é revelado, após ter sido obscurecido o
320

O FIM DE UMA BUSCADORA

tempo todo pelo “eu” que o desejava.


A descoberta de que a “‘iluminação pessoal” é um mito pode ser
recebida como um grande choque. A partir de minha própria expe­
riência, posso confirmar que a mente e a personalidade não acolhem
alegremente esta descoberta quando ela é entrevista pela primeira
vez, pois isto faz a pessoa parecer um tanto ridícula. Toda a busca,
todas as práticas, todas as tentativas de “captar” isto, são vistas então
como inúteis, pois apenas perpetuaram a ilusão do “eu”, obscurecn­
do o que estava e está sempre aqui, aquilo EM QUE ocorrem todo
este esforço e prática: o próprio e ilimitado Ser.

Este convite, que lhe é feito por Ramana, que fala do


âmago do seu ser, com a simples frase “Fique quieto”, é o
convite da Verdade. Não à sua verdade. Ele é o convite à
Vida. Não à sua vida. Convite à Liberdade. Não à sua
liberdade. Isso não tem nada a ver com VOCÊ.*

Como é extraordinário que o Ser impessoal tenha tido que apa­


recer em minha vida na forma de uma “pessoa”, para que eu renun­
ciasse à identificação com a “pessoa”. Este é o grande mistério do
Satguru: que em algum ponto da jornada de um indivíduo, aquilo
que é sem-tempo penetre o tempo, aquilo que é desprovido de pes­
soa apareça em pessoa, o que não tem forma manifeste-se em uma
forma e revele o Ser a Si mesmo no tempo, em uma pessoa, em uma
forma. Este mistério não se distingue do Bem-Amado. Este mistério
é aquilo ao qual todos os grandes videntes de todas as tradições espi­
rituais dedicaram sua poesia extática e cantaram seus hinos divinos,
sem jamais terem encontrado palavras adequadas para descrevê-lo.
321

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Tanto do que foi revelado no encontro com Gangaji não foi


revelado através de palavras; e não pode ser revelado através de pa­
lavras. Quando se encontra o Satguru em forma, ocorre uma trans­
missão misteriosa de coração para coração, de Ser para Ser. Isto não
pode ser dito. As palavras às vezes podem indicá-lo, mas somente se
não nos apegarmos a elas, se não as armazenarmos na mente como
uma “coisa”.
Como você sabe que encontrou o Satguru? Você simplesmente
sabe. Isso é evidente. Isso é Graça.
Esta Graça é um Mistério Divino e Sagrado. Ela surge das manei­
ras mais misteriosas e inesperadas. Ela não pode ser merecida, não
pode ser comprada, não pode ser exigida, buscada, nem aguardada
com esperança. Ela está onde todo o mérito, o esforço e a esperança
terminam. Ela está onde termina o buscador:

Fique quieto. Deixe o tigre devorá-lo. Você não pode


sair à caça dele. Ele é um tigre muito grande e sábio. Ele
espera por VOCÊ. Ele gosta de capturar, de surpresa.*

Embora tudo que escrevi tenha sido a experiência desta vida em


particular, muitas pessoas que leram estes capítulos me disseram
que o que leram foi sua experiência também. Isto não surpreen­
de, pois a jornada do Ser despertando para Si mesmo é universal.
Tantas vezes escutei Gangaji dizer que o despertar do Buda é o seu
despertar, que o despertar de Cristo é o seu despertar, que o desper­
tar de Ramana não se distingue do seu despertar. Inicialmente, não
entendi isto. Agora, a verdade destas palavras tornou-se clara. Há
apenas um único Ser, despertando eternamente para Si mesmo, em
322

O FIM DE UMA BUSCADORA

diferentes formas.
Finalmente, ninguém se ilumina, ninguém desperta. Quem você
realmente é sempre esteve desperto. Aquele que busca é percebido
como sendo uma ilusão, criada pela identificação equivocada com
a mente, como sendo quem se é. Conforme a mente se rende à sua
Fonte, a ilusão da pessoa, a ilusão da jornada, a ilusão da separação,
se desintegram no Ser. Então a Autodescoberta revela-se intermi­
navelmente.
A porta para o Infinito que se abriu em meu encontro com
Gangaji continua se abrindo, se aprofundando, revelando aberturas
cada vez mais profundas e sutis. Ainda não descobri onde termina.
Gangaji diz que ainda não descobriu onde termina. Papaji diz que
também ainda não descobriu onde termina. A partir de minha pró­
pria experiência, tenho que dizer que este encontro com o Satguru
em forma é o encontro mais poderoso, mais sutil, mais implacável,
mais sagrado de uma vida. Ele é um segredo e um mistério. Eu me
curvo diante deste mistério. Eu sirvo este mistério, o mistério desta
graça, o mistério deste encontro, que não tem começo nem fim.

323

NOTAS E REFERÊNCIAS

Algumas das transcrições de satsangs contidas neste livro foram


editadas levemente, para manter a clareza na forma escrita.

Página 1:
Siddhis são poderes extrasensoriais, tais como são descritos
no capítulo 2 dos Yoga Sutras de Patanjali. Estes poderes são al­
cançados através de certas práticas. Eles incluem os poderes da
invisibilidade, levitação, clarividência, clariaudição, habilidade
de compreender todas as línguas, habilidade de aquietar a fome
e a sede, e outros. Muitos mestres espirituais os consideram
armadilhas, pois desviam o aspirante da verdadeira liberdade,
fazendo-o retornar à mente e ao ego. Os Yoga Sutras de Patan­
jali foram traduzidos em português de Swami Hariharananda
Aranya.

Página 2:
Ser é tradução do inglês Self, que por sua vez é a tradução
do sânscrito Atman. A palavra Self, traduzida geralmente em
português como Ser, se refere à fonte de toda existência, a eter­
na presença que é a origem de tudo. Neste contexto, a palavra
“Ser” se refere àquilo que existe antes, durante e depois de toda
manifestação. Isso que está mais perto de você que a sua pró­
pria respiração. Esta sensação comum de “si mesmo”, uma certa
experiência interior, simples e comum, que faz com que seja
impossível negar que “eu existo”. Por ser permanente, isso que
você é (a paz, a vasta e eterna Presença que é a fonte de tudo
que existe) geralmente passa despercebido.

Página 6:
Do capítulo VI, verso 19 do Bhagavad Gita: “Uma lâmpada
num lugar protegido pelo Ser, do vento dos desejos, não tremu­

324

NOTAS E REFERÊNCIAS

la. Semelhante a isto é usado para subjugar a mente num yogi


praticante da meditação no Ser.” Tradução em português de
Sriman Ojasvi Dasa Vyasa.

Pares de opostos são mencionados no Bhagavad Gita, capítulo


IV, verso 22: “Um Karmayogi, que está contente com qualquer
ganho advindo naturalmente da Sua vontade; que não se afeta
pelo par de opostos; que está livre da inveja; que é tranqüilo no
sucesso e no fracasso, não é atado pelo Karma.” Tradução em
português de Sriman Ojasvi Dasa Vyasa.

Página 12:
“Satsang com Gangaji”, fita cassete, (Gangaji Foundation),
Boulder, Colorado, 26 de abril de 1995.

Página 16:
Em 1997, A Satsang Foundation & Press mudou seu nome
para Gangaji Foundation. Em 1998, a fundação se mudou de
Boulder, no Colorado, para Novato, na Califórnia. Em 2005,
a Gangaji Foundation foi transferida para a cidade de Ashland,
no Oregon, onde se encontra atualmente.

Página 28:
“Satsang com Gangaji”, fita cassete, (Gangaji Foundation).
Retiro em Estes Park, 1 de maio de 1995, manhã.

Página 29:
H.L. Poonja, Wake Up and Roar (Desperte e ruja), volume 2
(Maui, Pacific Center Press, 1993), p.2 ISBN: 0-9632194-1-3

Página 34:
Samsara é um conceito usado no Hinduísmo, no Budis­
mo e no Jainismo, entre outras religiões. Refere-se às idéias de
reencarnação e renascimento das antigas tradições filosóficas
hindus. Samsara significa “Ciclo de Renascimentos”. É a per­
pétua repetição do nascimento e morte, desde o passado até o
325

presente e o futuro, através dos seis reinos ilusórios do inferno,


dos fantasmas famintos, dos animais, dos seres humanos, dos
semideuses e dos deuses. A menos que se adquira a perfeita
sabedoria, ou seja, a iluminação, não se poderá escapar desta
roda da transmigração. Aqueles que estão livres desta roda de
transmigração são considerados Budas.

Página 37:
Brahma é o primeiro Deus da Trimurti, a tríade hindu, jun­
tamente com Vishnu e Shiva. Brahma é considerado pelos hin­
dus a representação da força criadora ativa no universo.

Página 44:
Namastê é uma forma de saudação tradicional na Índia, na
qual se junta as palmas das mãos, inclinando-se a cabeça para
frente, e que significa: “O Deus em mim saúda o Deus em ti.”

Página 45:
“Love is all that matters” (Só o amor importa). Satsang
com Gangaji, fita cassete, (The Gangaji Foundation). Retiro
em Estes Park, 2 de maio de 1995, manhã.

Página 46:
Upanishads são parte das escrituras Shruti hindus, que dis­
cutem principalmente meditação e filosofia, e são consideradas
pela maioria das escolas do hinduísmo como instruções religio­
sas. Contêm também transcrições de vários debates espirituais.

Página 52:
Shiva, o Destruidor, é um Deus (Deva) hindu, participante
da Trimurti juntamente com Brahma, o Criador, e Vishnu, o
Preservador. Uma das duas principais linhas gerais do Hinduís­
mo é chamada de Shivaísmo, em referência a Shiva. As cobras
que Shiva usa como colares e braceletes simbolizam o seu triun­
fo sobre a morte, a sua imortalidade.

326
NOTAS E REFERÊNCIAS

O mestre de Sri Ramana Maharshi era Arunachala, a mon­


tanha sagrada, considerada uma das encarnações de Shiva.

Página 55:
Mahakali (Grande Kali) é uma das divindades mais impor­
tantes da Índia. Deusa da morte e da sexualidade, Kali, cujo
nome, em sânscrito, significa “negra”, é a parceira favorita de
Shiva para seus jogos eróticos. É representada como uma mu­
lher exuberante, de pele escura, que traz um colar de crânios
em volta do pescoço, expressando, assim, a implacabilidade da
morte. Mas Kali não é uma deusa do Mal; na verdade, seu pa-
pel de ceifadora de vidas é absolutamente indispensável para a
manutenção do mundo. Seus devotos são recompensados com
poderes paranormais e com uma morte sem sofrimentos.

Página 59:
“Satsang com Gangaji”, fita cassete (The Gangaji Founda­
tion) Retiro em Estes Park, 3 de maio de 1995, tarde.

Página 65:
Samadhi é um estado de profunda absorção interior na
bem-aventurança da pura consciência, sem pensamentos ou
qualquer outro objeto de percepção.

Página 66:
Kundalini é a energia sutil que percorre o centro da coluna
vertebral, de baixo para cima. Kundalini deriva de uma palavra
em sânscrito que significa, literalmente, “enroscar-se como uma
cobra”. As tradições orientais geralmente descrevem a kundali­
ni como uma serpente que permanece adormecida, enrolada na
base da coluna. Diz-se que a serpente é despertada pela prática
espiritual, e então percorre o canal nervoso sutil existente no
centro da coluna vertebral, de baixo para cima, estimulando os
sete centros espirituais (chakras), durante a sua ascensão.

327

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Página 73:
Árvore da Iluminação: Sidharta Gautama sentou-se na pos­
tura de lotus sob uma gigantesca figueira (a árvore Bodhi ou a
árvore da Iluminação) para meditar, com os votos de só sair dali
quando tivesse alcançado a suprema sabedoria. Após enfrentar
as filhas e os exércitos de Mara (o demônio da ilusão), ele al­
cançou a iluminação. A partir deste momento, passou a ser um
Buda, que é a denominação dada a um ser iluminado.

Ganga (Ganges) é o rio sagrado na Índia, que se origina no


Himalaia, flui em direção ao sul e ao leste, atravessa o norte da
Índia e desemboca na baía de Bengala. Diz a lenda que a deusa
Ganga desceu à Terra para ajudar a purificar a humanidade.
Entretanto, ela era tão selvagem e impetuosa que teve de ser cap­
turada nos cabelos de Shiva, para ser domesticada, e só então
pode escorrer pelas rochas do Himalaia em segurança e iniciar
sua jornada purificadora pelas montanhas e através da Índia.

Página 84:
“Satsang com Gangaji”, fita cassete, (The Gangaji Founda­
tion) Retiro em Estes Park, 6 de maio de 1995, manhã.

Página 94:
“Satsang with Gangaji”, (Satsang com Gangaji) jornal,
março de 1995 (The Gangaji Foundation), pp. 14-15.

Página 98:
Na postura de meio-lótus, a pessoa senta-se no chão, de per­
nas cruzadas, com um pé apoiado na coxa oposta e o outro no
chão. Na postura de lótus completa, os dois pés repousam sobre
as coxas opostas, respectivamente.

Página 109:
Who Am I? The Teachings of Bhagavan Sri Ramana Maharshi,
7ª ed. Tiruvannamalai, Índia: Sri Ramanasramam, 1995, p. 6.
Uma tradução deste livro em português foi publicada no Bra­
328

NOTAS E REFERÊNCIAS

sil pela editora Pensamento-Cultrix como Ramana Maharshi:


Ensinamentos Espirituais, com introdução de Carl Jung. ISBN:
85-316-0152-5

Página 114:
Sutra é uma expressão potente e sucinta da Verdade, um
aforismo. No Budismo, o termo “sutra” se refere de forma geral
às escrituras canônicas que são tratadas como registros dos en­
sinamentos orais de Gautama Buda.

Página 116:
“What Do You Really Want?” (O que você quer realmente?)
Satsang com Gangaji, fita cassete (The Gangaji Foundation),
Santa Fé, 20 de maio de 1995.

Página 136:
“The Myth of Enlightenment” (O Mito da Iluminação),
satsang com Gangaji, fita cassete, (The Gangaji Foundation).
Santa Fé, 28 de maio de 1995.

Página 138:
Leela é uma palavra em sânscrito que significa “teatro di­
vino”. Gangaji disse uma vez que, quando alguém está iden­
tificado com a mente, o mundo é vivido como Maya (palavra
em sânscrito que significa “ilusão e sofrimento”); quando esta
identificação é cortada, Maya torna-se Leela, uma encenação
plena de alegria.

Página 147:
A esta altura, começava a me perguntar de onde tinham vin­
do todos estes nomes indianos, pois não tinha qualquer desejo
de substituir “Amber” por algum epíteto em sânscrito. Pouco
depois, fiquei aliviada ao saber que Gangaji não dava nomes
indianos. Os nomes haviam sido dados às pessoas por Papaji,
geralmente a pedido delas, ou por algum outro mestre.

329
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Página 164:
Discussão sobre o desaparecimento do japa de Papaji, pa­
rafraseado a partir de Papaji: Interviews (Papaji: Entrevistas),
editado por David Godman (Avadhuta Foundation, Boulder,
Colorado, 1993), pp. 37-40. ISBN: 0-9638022-0-8

Página 167:
“At Her Master’s Feet” (Aos pés de seu Mestre), Satsang com
Gangaji, vídeo (The Gangaji Foundation) Lucknow, Índia, 31
de janeiro de 1993.

Página 179:
“A True Marriage with Truth” (Um verdadeiro casamento
com a Verdade) Satsang com Gangaji, fita cassete (The Gangaji
Foundation) Boulder, 22 de junho de 1995.

Página 185:
“Satsang com Gangaji”, fita cassete, (The Gangaji Founda­
tion), Boulder, 25 de junho de 1995

Página 201:
“Surrender to Stillness” (Renda-se à quietude). Satsang com
Gangaji, fita cassete. (The Gangaji Foundation). Boulder, 9 de
julho de 1995.

Página 205:
Esta foi a resposta de Gangaji a uma revista sueca que lhe
pediu para escrever sobre a relação entre guru e discípulo.

Página 215:
“Invitation to Truth” (Convite à verdade) Satsang com
Gangaji, fita cassete. (The Gangaji Foundation). Boulder, 23
de julho de 1995

Página 225:
“Let Yourself In” (Deixe-se entrar) Satsang com Gangaji, fita
330
NOTAS E REFERÊNCIAS

cassete. (The Gangaji Foundation). Boulder, 3 de agosto de


1995.

Página 231:
“At Her Master’s Feet” (Aos pés de seu Mestre). Satsang com
Gangaji, vídeo. (The Gangaji Foundation). Lucknow, Índia,
31 de janeiro de 1993.

Página 243:
“One Hundred Percent Willingness” (Cem por cento de
disposição), Satsang com Gangaji, fita cassete, (Gangaji Foun­
dation). Retiro em Crestone, setembro de 1995, tarde.

Página 249:
Eli Jaxon-Bear, Healing the Heart of Suffering: The Ennea­
gram and Spiritual Growth (Curando o cerne do sofrimento:
o Eneagrama e o crescimento espiritual), p. 14. Volume enca­
dernado em espiral à venda na Leela Foundation; publicado em
alemão com o título Die Neuen Zahlen des Lebens, (Munique:
Droemer Knauer, 1989).

Página 253:
“A História do Filhote de Águia” (parafraseada de memória),
tal como foi contada por Eli Jaxon-Bear, durante seu workshop
sobre o Eneagrama em Boulder, no Colorado, em setembro de
1995.

Página 255:
“Zen Daughter” (Filha Zen), Satsang com Gangaji, video,
(The Gangaji Foundation) San Diego, 8 de agosto de 1994

Página 269:
Quando descobri que o Infinito tinha realmente assumido
a personalidade de minha mestra, perguntei a Gangaji, em um
satsang pequeno: “O Infinito sempre será você para mim, in­
finitamente?” Ela respondeu que isso é profundo demais, que
331

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

não pode ser discutido. “Mas,” disse ela, apontando para mim,
“você pode conhecer isso. E você realmente conhece.”

Página 270:
Gangaji, You are THAT! (Você é AQUILO!) Volume 1. (The
Gangaji Foundation, 1995) p.13 ISBN: 0-9632194-3-X

Página 280:
Gangaji, You are THAT! (Você é AQUILO!) Volume 1. (The
Gangaji Foundation, 1995) p. 18. ISBN: 0-9632194-3-X

Página 282:
Gangaji, You are THAT! (Você é AQUILO!) Volume 1. (The
Gangaji Foundation, 1995) p. 87 ISBN: 0-9632194-3-X

Página 285:
“Are You Your Brother’s Keeper?” (Você é o guardador do
seu irmão?) Satsang com Gangaji, fita cassete (The Gangaji
Foundation) Maui, 13 de janeiro de 1996

Página 299:
Holodeck é a sala de jogos tridimensionais usada para treina­
mento e recreação, no seriado de televisão Jornada nas Estrelas.

Página 301:
Samsara (Ciclo de Renascimentos) é um conceito usado
no Hinduísmo, Budismo e Jainismo, entre outras religiões.
Refere-se às idéias de reencarnação e renascimento das antigas
tradições filosóficas hindus.

Página 310:
Sri Nisargadatta Maharaj, I Am That, Talks with Sri Nisar­
gadatta Maharaj (Eu sou Aquilo, Conversas com Sri Nisarga­
datta Maharaj) Traduzido para o inglês por Maurice Frydman.
Durham, NC: The Acorn Press, 9ª ed. 1996), p. 343. ISBN:
0-89385-022-0. Uma tradução em português deste livro foi
332

NOTAS E REFERÊNCIAS

publicada no Brasil pela editora Advaita, com o título Eu sou


aquilo: Conversações com Sri Nisargadatta Maharaj.

Página 315:
Sri Ramana Maharshi, Who Am I? The Teachings of Baghavan
Sri Ramana Maharshi (Quem sou eu? Os ensinamentos de Ba­
ghavan Sri Ramana Maharshi) 7ª ed. (Tiruvannamalai, Índia:
Sri Ramanasramam, 1995), pp. 7-8. Uma tradução deste livro
em português foi publicada no Brasil pela editora Pensamen­
to-Cultrix como Ramana Maharshi: Ensinamentos Espirituais,
com introdução de Carl Jung. ISBN: 85-316-0152-5

Página 316:
“Beyond Obedience and Rebellion” (Para além da obedi­
ência e da rebelião) Satsang com Gangaji, fita cassete, (The
Gangaji Foundation) Marin County, 4 de julho de 1994

“The Spin Into Hell” (O mergulho no inferno) Satsang com


Gangaji, vídeo cassete (The Gangaji Foundation) Santa Fé, 6
de outubro de 1994.

Página 317:
H.L. Poonja, The Truth Is (A Verdade é), (Satsangs em Lu­
cknow, editados por Yudhishtara, 1995), p. 498 Publicado por
Satsang Bhavan, Lucknow, Índia.

Página 320:
“Surrender to Stillness” (Renda-se à quietude) Satsang com
Gangaji, fita cassete (The Gangaji Foundation) Boulder, 9 de
julho de 1995.

Página 321:
“The Three Manisfestations of Mind” (As três manifesta­
ções da mente) Satsang com Gangaji, fita cassete (The Gangaji
Foundation) Boulder, 6 de setembro de 1996

333
SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Página 322:
“Love is All That Matters” (Só o amor importa), Satsang
com Gangaji, fita cassete, (The Gangaji Foundation) Retiro em
Estes Park, 2 de maio de 1995, manhã.

334

SOBRE A AUTORA

Amber Terrell se formou em Filosofia, com especialização em Estudos


Religiosos pela Universidade da Califórnia (CSU Chico), onde também
concluiu o Mestrado em Educação. Ela foi membro da diretoria da Gangaji
Foundation e da River Ganga Foundation.

Amber e seu marido, Toby Terrell, moram em Boulder, Colorado, nos


Estados Unidos, onde ela oferece satsang através de encontros com grupos
e sessões individuais. Toby e Amber têm uma pequena editora em Boulder
chamada True Light Publishing.

Seu livro, Surprised by Grace, foi lançado pela True Light Publishing em
1997 e já vendeu 6.000 exemplares. O livro também foi gravado em áudio pela
própria autora, e lançado como audiolivro em 2005. O audiolivro, que tem
o mesmo título do livro impresso, inclui gravações originais de satsangs com
Gangaji, assim como Amber cantando suas próprias músicas.

Além de escritora, Amber também é compositora. Ela lançou dois


CDs pela True Light Publishing: Awakened from a Dream e In the Heart of All
Being.

Mais informações sobre eventos com Amber, sua música e seu livro
podem ser encontradas em seu website:
http://www.truelightpub.com

335

SOBRE A TRADUTORA

Carla Sherman (née Vilela Baptista) nasceu no Rio de Janeiro, em


1961, onde se formou em Letras pela UFRJ. Em 1992, concluiu o Mestrado
em Línguas Neolatinas pela UFRJ. Trabalhou como tradutora e intérprete no
Rio de Janeiro durante 13 anos. Carla reside nos Estados Unidos desde 1999,
onde tem uma pequena empresa de traduções. Desde 2002, ela é Diretora
Executiva da River Ganga Foundation.

Em abril de 1997, Carla viu Gangaji pela primeira vez em um vídeo.


No dia seguinte, inscreveu-se em um retiro de uma semana com Gangaji nos
Estados Unidos e, em 26 de agosto de 1997, sentou-se em seu primeiro satsang.
Durante este primeiro retiro, ela teve uma experiência direta da sua verdadeira
identidade. Esta revelação explosiva mudou radicalmente a sua vida. Ela voltou
aos Estados Unidos em 1998 e em 1999, para estar junto a sua Mestra.

Durante aquele primeiro retiro em Crestone, Carla conheceu Amber


e, desde então, têm sido grandes amigas. Amber pediu a Carla que traduzisse o
seu livro para o português, para que buscadores de língua portuguesa em todo
o mundo pudessem conhecer a sua história e saber um pouco mais sobre esta
mestra maravilhosa.

Em 9 de junho de 1999, Carla se casou com John Sherman. Os dois


dedicam suas vidas à propagação da mensagem de Gangaji, oferecendo a todos
o simples convite à investigação direta sobre a sua verdadeira identidade.

Carla também traduziu o livro de Gangaji, É hora de dizer a verdade,


publicado como livro eletrônico pela SilentHeart Press, e legendou o vídeo
Liberdade na prisão, de Gangaji em português. Para mais informações sobre
estes títulos, visite o site da River Ganga Foundation:
http://www.riverganga.org

336

SURPREENDIDA PELA GRAÇA

Amber iniciou sua busca espiritual quando era uma jovem


estudante universitária, no fim da década de 60. Após um quarto
de século de meditação, ioga e uma intensa busca que a levou
a viajar pelo mundo, tornou-se óbvio para ela que a iluminação
permanecia um sonho, um conceito que existia apenas na mente.
No momento mais sombrio e frustrante de seu anseio espiritual,
surgiu uma transmissão de Graça poderosa que não apenas pôs
um fim em sua busca, mas também revelou que a buscadora era
uma ilusão. Esta transmissão tomou a forma de uma mestra ame­
ricana chamada Gangaji, na linhagem de um dos mais respeita­
dos sábios deste século, Sri Ramana Maharshi. Surpreendida pela
Graça não é a história de uma busca espiritual, mas a narrativa de
como esta busca finalmente chegou ao fim.
“Este livro está repleto da emoção da Verdade. Quando li os pri­
meiros capítulos do manuscrito, soube que Amber tinha encontrado a
continuidade do “apaixonar-se pelo Ser” . Ninguém se ilumina; em vez
disso, você descobre que é a própria iluminação. Michael J. Roads, autor
de A natureza e o despertar do seu mundo interior e outros livros.
“Surpreendida pela Graça é uma jornada clara, sincera e iluminadora
de autodescoberta. Através deste relato honesto e inspirador, os lei­
tores poderão se identificar com a aventura e descobrir uma verdade
que satisfaz à alma.” Alan Cohen, autor de Ouse ser você mesmo e outros
livros.
“Maravilhosamente inspirador. Você fez um ótimo trabalho ao cap­
turar a essência do Satsang com Gangaji. Eu sei, estive em satsang com
esta mestra divina. Sinto a sua presença diariamente.” Dr. Wayne Dyer,
autor de Seus pontos fracos, Para todo problema há uma solução e outros
livros.

Que choque foi para mim descobrir que a iluminação não tem nada a ver
com auto-aperfeiçoamento, nada a ver com a realização de uma lista de
desejos pessoais. A iluminação não é absolutamente
pessoal. Ironicamente, é a preocupação com o pessoal
e o apego à mente e à personalidade como sendo quem
somos que obscurecem a Verdade inacreditável: a ilu­
minação já está aqui; ela já é quem somos.

SilentHeart Press
PO Box 1566
Ojai, California EUA
ISBN 978-0-9718246-3-8

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