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EMANUELE COCCIA O BEM NAS COISAS: A PUBLICDADE COMO DISCURSO MORAL

ESTÉTICA I FBAUP 21/22

resenha

Emanuele Coccia
O Bem nas Coisas
A Publicidade como Discurso Moral

DAVID DA CRUZ UP201504930


DAVID DA CRUZ ESTÉTICA I FBAUP 21/22
EMANUELE COCCIA O BEM NAS COISAS: A PUBLICDADE COMO DISCURSO MORAL

introdução
O pensador da atualidade, Emanuele Coccia, traz-nos neste discurso um olhar sobre a
relação entre as pessoas e as coisas, as mercadorias, de uma perspetiva moral, mais do que
económica. Não obstante a evidente crítica ao capitalismo avançado, o autor pretende
desnudar o preconceito sobre a sociedade de consumo, transportando a mercadoria para o
domínio da ética. O autor apela ao deciframento e à compreensão da natureza do sonho
coletivo projetado nas mais diversas estruturas publicitárias.

* O texto é acompanhado por imagens de obras do projeto PublicAdCampaign, de Jordan Seiler,


um artista do espaço público que, ao expor as suas pinturas nos lugares destinados à publicidade,
cria uma espécie de subvertising abstrato.

“Estão por todo o lado, e mal nos apercebemos disso. Abrimos os olhos e
o espaço entre o nosso corpo e o horizonte é uma única, infinita, extensão
de mercadorias. Enchem os quartos e os nossos apartamentos. Cobrem os
nossos corpos, decidem a forma e a identidade de todos os homens. São
tudo o que comemos. São o que mais frequentemente desejamos. São
aquilo junto de que vivemos. Só nos movemos graças a elas e habitamos
no seu interior. Frequentemente, comunicamos graças a elas.” (p.15)

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O livro parte em busca da justificação da razão pela qual o Ocidente considera as mercadorias “O
último nome do bem” (pp.15-21), descrevendo-as, não segundo as suas qualidades reais, mas como
intensidades morais. No discurso publicitário existe sempre uma conotação moral na forma como é
retratada a mercadoria. É nesse discurso que duas esferas que muitas vezes consideramos realidades
opostas, a moral e a economia, coincidem quotidianamente e de forma ininterrupta. Assim, “só
olhando os muros conseguiremos resolver o mistério da mercadoria.” (p.17). Os anúncios ofere-
cem-nos diariamente uma mirada sobre uma vida paralela, fundamentada num objeto de desejo.

Na demanda por uma hegemonia ideológica, a publicidade funciona como um laboratório da


imaginação moral coletiva das sociedades atuais que nos ensina que as inquietações morais mais
imediatas não estão vinculadas a mitologias e sabedorias profundas do nosso inconsciente, mas sim
aos objetos de uso quotidiano. Na moral publicitária predomina uma obsessão, o amor pelas coisas,
que, ao contrário do amor romântico, onde se consagra um juramento eterno, é imperativamente
efémero. “Esforçando-se por amar sempre novos objetos, a sociedade que vive de acordo com esta
nova moral força-se a reconstruir periodicamente o mundo das coisas de que se rodeia, obriga-se, a
cada nova Estação, a dar uma nova forma à matéria em que encarna, a imaginar de novo os objetos
por meio dos quais constrói a sua própria identidade.” (p.20)

Apesar das discordantes posturas em relação às mercadorias, tanto a de as consumir na busca pela
felicidade, como a de as acusar de serem a maior razão da hipocrisia da contemporaneidade, a do
apelo pela salvação urgente do meio ambiente ou a de representar uma hipótese de vida a partir da
nossa relação com os objetos, todas as encaram de uma ótica moral, nunca deixando, ainda assim,
de falar da própria matéria.

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“As mais antigas coisas humanas das quais nos ficou um testemunho são pedras” (p.29). O autor
fala-nos dos “Muros” (pp.29-37). Aludindo a uma mineralogia do espírito, remonta aos tempos em
que os primeiros seres humanos gravaram a sua inteligência nas pedras, que são “o veículo mais
antigo do espírito humano, a primeira forma de cultura”, tanto por servirem de suporte como de
ferramenta para criar novas coisas.

Ao mesmo tempo que as paredes são encarregues da inclusão e exclusão basilar de qualquer
comunidade política, “no próprio gesto pelo qual divide e dá forma ao espaço, cada muro abre
superfícies sobre as quais aquela mesma comunidade projeta e traça os contornos do seu próprio
retrato.” (p.30) As pedras definem, assim como representam até hoje o espaço público, é nelas que
a humanidade regista e preserva a sua sabedoria. Desde as pinturas rupestres, aos muros da antigui-
dade onde começaram a ser publicadas leis, às paredes onde o tempo se tornou mensurável, às
pedras onde foram conservados os nomes dos mortos e os retratos dos grandes líderes e deuses, aos
muros que deram voz aos humores e aos protestos dos povos, aos azulejos das instalações sanitárias
públicas, aos quartos dos adolescentes, aos frescos das catedrais, às telas das salas de cinema, as
paredes foram sempre “um espaço de projeção e de produção fantasmagórica” onde se inscrevem
tatuagens espirituais que refletem a sociedade de dada época. Eram elas que ensinavam a conduta
e os valores cívicos universais, era nelas que se formava “o olhar moral e político comum”. Os muros
são o elemento que torna a cidade concreta, assim como o órgão que lhes dá voz, e se dantes honrava
deuses e leis, agora expõe e glorifica coisas, objetos de uso quotidiano diversos. A publicidade é,
todavia, descendente dessa “moral sobre a pedra” que ordenava a vida da cidade, essa “ciência do
Bem e do Mal”, que nos demonstra o comportamento e o desejo ideal. A cidade é agora um corpo
onde são impressas narrativas que têm como centro o bem encarnado em mercadoria. “Sobre os
muros, as mercadorias transitam da condição de objetos de produção […] àquela de símbolo
publicamente percebido, melhor dizendo, à condição de um bem do qual todos podem tomar
consciência.” (p.37) O bem que as pessoas procuram são então os bens, as mercadorias.
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“The metropolis today is a classroom; the ads are its teachers.”


M. MCLUHAN, Counterblast (1954)

Coccia define a “Cidade” (pp.45- 52) não tanto como um vasto ajuntamento de pessoas, uma
sociedade, mas mais como um “espaço no qual as coisas existem no mesmo modo em que existem
os homens” (p.47). O autor fala-nos de como a publicidade está já encrostada no tecido da cidade,
criando uma ponte entre os luminosos dispositivos publicitários das ruas das grandes capitais
mundiais e as torres e pináculos de edifícios históricos que caracterizam e tornam peculiares certas
paisagens. Contudo, a publicidade não é entendida com um mero elemento acessório do espaço
público. Os edifícios falam desde já pela sua forma, assim como pela sua função, convertendo-se em
símbolos expressivos. Da arquitetura mimética, em que a forma do edifício remete para a sua própria
função e onde “escultura e arquitetura, função e símbolo, parecem tornar-se indistinguíveis” (p.46),
servem de exemplo as igrejas e catedrais cuja planta tem a forma da cruz, aos cânones da arquitetura
clássica em que o signo é mais relevante que a forma, serve de exemplo as fachadas das catedrais
góticas e barrocas, a arquitetura assume-se mais como um símbolo do que como uma forma no
espaço. Na cidade todas as coisas adquirem uma qualidade de símbolo, para além do seu valor de
uso. Na publicidade, o simbolismo urbano dá voz a todas as coisas, até às mais banais.
“Não se trata apenas dos deuses, dos heróis antigos, mas também os soutiens, os sapatos, os carros.
Tudo adquire uma voz.” (p.52)

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De seguida, debate-se “A banalidade do bem” (pp.59-75), proclama-se que “o simbolismo que é


específico de cada cidade, mesmo o publicitário, não é nunca um facto meramente estético” (p.59).
Conhecemos a cidade e nela nos orientamos graças a esse atlas simbólico primário dos sinais de
trânsito e dos letreiros das lojas e dos cafés. Esta “segunda pele” não é apenas uma decoração, “mas
antes o corpo de um verdadeiro e profundo saber público” (p.59), e para além da publicidade ser
um discurso sobre a felicidade, é também “uma espécie de antropologia indígena das metrópoles
contemporâneas” (p.60). A publicidade é transversal a todos os media, do mais íntimo ao mais
público, e enquanto um sinal de trânsito perde o seu sentido se for transferido da rua para o jornal
ou para a televisão, “a publicidade parece poder transitar de um medium para outro sem sofrer uma
redução de conteúdo ou uma perda do seu valor semântico” (p.61).

O autor sugere a aproximação ao bem, à perfeição, pela ação, com e através das coisas. O bem das
mercadorias ordena o mundo, segundo uma “espécie de cosmologia em constante movimento” que
nos é mostrada num “atlas a céu aberto”, a publicidade. “As mercadorias são órgãos extra-corpóreos
através dos quais percebemos e respiramos o bem. Uma espécie de vida moral que existe fora de
nós” (p.67). Esse bem, que era antes impossível de descrever, está presente agora no nosso
quotidiano, não para além deles, mas nos próprios objetos mais banais. “O bem de que nos falam as
cidades já não tem traços divinos ou ultramundanos, […] O bem, a felicidade, está nas coisas. Em
todas as coisas. É este o sonho de cada cidade, a moral que ela aprende a partir dos seus muros: o
bem, no sentido mais próprio do termo, possui uma natureza muito mais universal do que aquilo
que havíamos imaginado, existe sob a forma de um paradoxo. […] as coisas, todas as coisas, é que
passam a ser o lugar e a forma do bem e da felicidade que procuramos. Daí que já não sejam apenas
a economia ou a semiótica a serem capazes de resolver o enigma desta variante moderna do
simbolismo urbano. […] Só somos felizes na cidade porque o bem se fez da mesma matéria que as
pedras” (pp.68-69). A publicidade é um discurso moral total, está em todo o lado e é um catálogo de
quase tudo o que experienciamos no mundo.
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“Visto no ecrã da imaginação publicitária, o homem é um ciborgue moral cuja existência só adquire
perfeição ética através do universo das coisas” (pp.71-72). Fazer coincidir o nome da mercadoria
com o nome do bem, é reconhecer que os limites da moral vão para além dos nossos corpos e das
consequências das nossas ações. A perfeição da nossa moralidade completa-se com as coisas, e são
a técnica e a arte que definem “as categorias próprias desta nova ordem moral” (p.72).

Ao haver esta transferência de valores morais entre as mercadorias e a consciência das pessoas, a
moralidade fica descabida de natureza humana, “tornando-se infinitamente plástica” (p.74). Isento
dos dogmas religiosos, o bem moderno e os seus valores morais adjacentes, são imensamente plurais
e heterogéneos. Desta ótica, o mal não é a ausência do bem, mas sim o excesso de bens. Coccia
acredita que a felicidade mais profunda é a que chega a nós do exterior, quando menos esperamos,
e que o sistema de mercadorias impulsiona este movimento, por fazer coincidir o bem com a matéria.
“Deste modo, o capitalismo não fez desaparecer nem diminuiu a moralidade, mas antes provocou a
sua extensão mais radical, levando-a aos próprios limites da existência e do real” (p.75).

O autor segue abordando o culto ao objeto como “Totem” (pp.83-96), afirmando que “A existência
de cada um de nós é, antes de mais, definida pelas coisas que usamos, imaginamos e desejamos”
(p.83). No entanto, surge um embaraço quando chega o momento de adorar, de amar as coisas, que
prevalece desde a antiguidade e que nos foi ensinado pela religião. É proibido e visto como fetichis-
mo o desejo pelas coisas. Tanto as coisas que servem para disfrutar, como as coisas úteis, fazem-nos
tender para a felicidade, e em ambos os casos, “a nossa relação com as coisas é sempre uma certa
forma de amor” (p.85). Coccia defende que o pensamento sobre a mercadoria passa por pensar o
bem nas e das coisas, ao mesmo temo que se pensa o bem como coisa.

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“Enquanto mercadorias, as coisas vêem-se reduzidas a meros «conceitos» humanos que existem
fora da mente […] À semelhança dos antigos tótemes, o conjunto das mercadorias seria apenas um
sistema, uma classificação por interposto objeto. Produzindo e trocando coisas, uma sociedade não
faria mais do que reproduzir-se a ela mesma simbolicamente […]” (p.89). Desta ótica, o amor pelas
coisas pode ser visto como “o narcisismo de uma sociedade que só sabe falar de si em cada gesto
seu” (p.90). No entanto, a antropologia da arte dá a mesma relevância aos objetos e às pessoas, e a
própria arte é um caso especial da relação com os objetos. “O culto de uma obra de arte coincide,
sem resto com o culto do artista e do seu espírito” (p.91), tornando o seu fetichismo, uma “virtude
cultural e moral” em detrimento de uma proibição ou de um embaraço. O design é um plano comum
à arte, à técnica e ao comércio, que tornou válido e aceitável o amor pelas coisas. “Aquilo que se dá
a ver na propensão para a riqueza – ou seja, aquilo em que se funda, definitivamente, o sistema de
produção, de circulação e de acumulação das coisas a que chamamos de economia – é um desejo de
estar melhor e de ser melhor, de superar a nossa realidade” (pp.95-96).

No capítulo “O mundo das coisas” (pp.103-115), Emanuele Coccia diz-nos que, mais do que uma
simples descrição, a publicidade pretende “causar a realidade de que fala. […] Tudo se passa como
se a publicidade permitisse aceder a um plano mais profundo do que aquele estudado pela economia,
ou pela sociologia do consumo: no discurso publicitário exprime-se a relação sonhada, não a prática
real do consumo. […] No centro do discurso publicitário já não está a moeda, o trabalho, a troca,
nem sequer o desejo de acumular lucro ou capital. No seu centro estão as coisas e a sua capacidade
para transformar moralmente a vida humana” (p.105). Todavia, é o ser humano, o consumidor, o
meio através do qual “a realidade estética, moral e social do objeto publicitário pode realizar-se”
(p.106). É a troca, e não o trabalho nelas investido, que concede o estatuto de bem às coisas, e “são
frequentemente os critérios culturais, e não os económicos, que permitem que alguma coisa possa
tornar-se objeto de troca” (p.108), contudo “continuamos a utilizar as coisas e a reconhecer-lhes um
valor que excede a sua simples utilidade, mesmo depois de as termos adquirido” (p.109).
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Edificamos a nossa identidade e o nosso mundo com mercadorias. Do micro ao macro, do indivíduo
à sociedade, realizamo-nos e refletimo-nos em algo exterior a nós, num produto nosso, seja ele uma
entidade pública ou mitológica ou uma coisa, um objeto. O pensamento que considera o bem as
coisas do mundo, é uma intersecção entre a moral e a cosmologia. Em detrimento da imutabilidade
do cosmos da antiguidade, temos hoje “a ordem móvel do mercado, da troca perpétua, considerada
como fonte última de toda a felicidade” (p.111) O universo das mercadorias é a prova viva que nunca
existiu nem existirá uma verdadeira comunidade humana vazia de coisas, “é nas coisas e através das
coisas que os homens se podem encontrar. A cidade inteira é uma coisa que só existe graças a outras
coisas. As cidades não são e não poderão nunca ser factos puramente humanos. Elas são uma forma
de mundo, uma coleção de coisas, que não apenas de homens. A própria Europa é uma realidade
política que nasceu de um acordo (o de Schengen) que consagra a equivalência da liberdade de
circulação das mercadorias e dos homens” (p.112). Coccia apela a uma reflexão sobre como as
mercadorias são um veículo de hegemonia diferente da dos Estados.

A cidade torna-se indistinguível do mundo por meio das coisas, que são o ponto de contacto entre a
cidade e o cosmos. “Foram as mercadorias, bem mais do que as pessoas, que atestaram sempre que
a cidade pertence a um mundo que a ultrapassa: são as mercadorias que veiculam elementos,
costumes, ideias, hábitos estranhos à cidade. […] foi a mercadoria, desde sempre, que impediu que
a cidade se fechasse sobre si mesma. Ela foi sempre o exterior, o outro da cidade.” (p.113). O autor
diz-nos que também podemos testemunhar, nesta capacidade de construir o mundo, a mercadoria
ser encarnação do bem, e que é a publicidade que discrimina o valor de cada coisa. “Devemos apren-
der a apropriar-nos da verdade que a publicidade alberga e que não cessa de no-la gritar. Nunca
deixamos de procurar e encontrar beleza nas coisas e através das coisas […] O bem está nas coisas
porque todas as coisas são o nosso ornamento. Elas são, à letra, o nosso mundo” (p.115).

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O autor faz uma apologia “Para um hiper-realismo moral” (pp.121-126), declarando que não é
irrelevante “o facto de, no espaço público constituído pelos muros de pedra e pelas suas transfor-
mações contemporâneas (TV, tablets, smartphones), o esforço da reflexividade estar sobre tudo
concentrado nas coisas e nas mercadorias” (p.121). Afirma ser justa a denúncia e a condenação dos
excessos e das ilusões alimentadas pela publicidade, que originam patologias. Não obstante, inclina-
se sob um estudo dos efeitos e transformações ético morais causada pela propaganda, que já não se
concentra na esfera divina, nem nas nossas relações inter e intrapessoais, mas antes nas coisas.
Admite, ainda, ser tanto ingénuo como injusto achar-se que a publicidade oferece “o único modelo
de ética pública do nosso tempo” (p.123), são infinitos e diversos os discursos morais da contempo-
raneidade, prevalecendo, na opinião de Coccia, uma atenção especial pelas coisas.

“A publicidade é a forma primordial da nossa linguagem moral, […] ela reconheceu o primado do
icónico sobre o verbal; […] a felicidade não é produzida por meio da atuação de um esquema prático,
mas graças à elevação do indivíduo a um plano de existência superior; ela [a publicidade]
compreendeu que não há mensagem moral sem uma narrativa ou sem um mito.” (pp.123-124) A
publicidade é, ao mesmo tempo emissora e recetora da nossa sensibilidade moral.
“Reconhecer que a publicidade tem o estatuto e a dignidade de um discurso moral público […]
comporta certamente uma forma de des-sublimação do universo moral” (p.125), e no entanto, o
autor adverte que os discursos morais públicos do passado tampouco detêm algo de nobre ou
sublime, e apela a um olhar mais atento sobre este novo diálogo moral, e termina por dizer que este
se guia pela mesma lógica que a dos antigos, e “que está mais perto da do bricoleur do que daquela
do filósofo” (p.126), ou seja, um discurso baseado na experiência quotidiana do consumidor.

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Nos momentos finais do livro (pp.135-149), o autor leva-nos a pensar a palavra, nomeadamente a
lei, como base da vida política, e a valorização desta teoria em detrimento da da imagem. Contudo,
em “Como fazer coisas por dentro das imagens” (pp.139-140) defende-se que as imagens são
intrinsecamente políticas, e que é graças a elas que podemos participar na vida política. De seguida,
fala-nos de “Quando a norma é uma imagem – a publicidade” (pp.141-147), este sistema normativo
onde o costume se torna moda, e que divide a cultura em subculturas. “Quando o ego é uma imagem:
a moda” (pp.147-148) passa a ser um instrumento de construção da moralidade. Conclui-se que o
excesso de palavras, e não a sua escassez, é a causa da crise da política, e sugere-se a reinvenção da
política, transitando-se para um novo fundamento, o das imagens. “A publicidade e a moda são
apenas as inevitáveis prefigurações, por vezes grotescas, da política por vir” (p.149).

conclusão
A teoria que Emanuele Coccia sugere, faz-me pensar na forma como encaramos a morte. Diversas
tradições religiosas primam pelo desapego do mundo material, no entanto, até os mais crentes,
temem a morte e temem ver as suas pessoas morrer. Por que motivo nos afastamos da felicidade
quando confrontados com a morte, se não por sabermos, no nosso íntimo, que o bem vive deveras
na matéria? A perfeição, a completude, é encontrada na vida que acontece fora de nós, e com a qual
nos é permitido contactar por meio da matéria.
Outra questão que esta leitura me levantou é a de vivermos no passado devido ao desfasamento de
tempo entre a conceção e a produção das mercadorias, o seu devido registo e lançamento publici-
tário, e a receção e consumo do público. As coleções de roupa e as tecnologias dos anos que se aproxi-
mam já existem num laboratório algures, no entanto ainda não existem na esfera pública, e as
mercadorias que consumimos atualmente, são artefactos, objetos inventados no passado.
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Apesar da publicidade incitar um bem aparente, os mecanismos que ela oculta são inegavelmente
causadores de um enorme sofrimento para o planeta e para todos os seres que nele habitam.
Contudo, ao invés de partirmos imediatamente para uma crítica condenatória, é precisamente
importante pensar a publicidade e a nossa relação com as mercadorias de uma perspetiva moral, se
quisermos resolver os males adjacentes a tal figura do bem. As cidades, assim como as pessoas, não
estão separadas do meio, os cercos às cidades eram uma tática de conquista que privava a cidade, as
pessoas e as mercadorias, de comunicar com o exterior, enfraquecendo-a e obrigando-a a ceder às
forças invasoras. Se desde o início as civilizações não existiam isoladas e trocavam entre si bens e
conhecimentos, hoje esse intercâmbio cria um novo tipo de nação cujos indivíduos se reconhecem
entre si, não pela geografia partilhada, mas pela iconografia publicitária.

Bibliografia
COCCIA, EMANUELE, O Bem nas Coisas: A Publicidade com Discurso Moral,
Edição de Jorge Leandro Rosa e Pedro A.H. Paixão, Tradução por Jorge Leandro Rosa,
Lisboa, Documenta, 2016

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