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Resumo:
Neste artigo, retomo o exame de um aspecto quase desconhecido da obra de
Marcel Mauss: as teses deste autor sobre a nação. Além da importância
intrínseca do tema, esta análise pode contribuir para renovar a discussão
sobre o percurso de um autor que continua nos oferecendo surpresas.
Enfim, espero que a recuperação de um debate realizado nos anos 70
estimule o estudo de um período de intensas controvérsias teórico-
metodológicas.
Abstract
In this article, I take up the examination of an almost unknown aspect of
Marcel Mauss's work: this author's thesis about the nation. Beyond the
intrinsic importance of the theme, analysis contributes to renewing the
discussion about a researcher that continues to offer surprises. I hope that
the recuperation of the debate from the 1970s about Mauss's work can
stimulate the study of a period marked by intense theoretical and
methodological controversies.
∗
Departamento de Política e Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da
PUC-SP; coordenador do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais (NEILS) e da revista
Lutas Sociais. Autor de Uma ilusão de desenvolvimento: nacionalimo e dominação burguesa no
Brasil. Florianópolis: EDUFSC, 2006.
ponto-e-vírgula, 1: 38-57, 2007.
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Quando esbocei estas mal traçadas pela primeira vez, o objetivo era
ampliar meu leque de leituras sobre as nações e os nacionalismos, com vistas à
elaboração de minha tese de doutorado. A opção pelo estudo de Mauss foi
reforçada pelo acesso, graças ao Prof. Roberto Cardoso de Oliveira, a um
número da revista L’Arc, todo dedicado ao autor francês. Se este artigo
incentivar a consulta a esta peça arqueológica, plena de significados sobre uma
época intelectual, já terá cumprido seu objetivo. Isto explica, ao menos em
parte, o caráter fortemente datado de meu texto, que preferi manter, pois é
parte de minha trajetória intelectual. Continuo às turras com o tema e ainda
espero, em outras aventuras teóricas, inserir novos autores e efetuar nova
atualização de minha abordagem que, no fundamental, não mudou.
Mais do que as provocações apresentadas no final do artigo, são aqueles
três aspectos mencionados acima que, a meu ver, justificam que alguém
desprovido de formação antropológica perpetre, mesmo pisando em ovos, esta
tentativa de um diálogo pluridisciplinar. Com esse objetivo recorro, inclusive, à
leitura de alguns textos que expressam a multiplicidade das leituras teórico-
metodológicas da obra de Marcel Mauss.
Analisarei fragmentos dessas leituras no que se referem a algumas
questões centrais que, articuladas, permitam um primeiro cotejo (como se verá,
indireto) de teses maussianas com algumas de Marx acerca dos fenômenos
nacionais. Tais questões referem-se principalmente às categorias de
concreto/abstrato e totalidade e ao conceito de econômico. O esboço de
discussão que empreenderei estará menos voltado diretamente para os
aspectos epistemológicos do que para os efeitos de certos usos dessas
categorias na construção teórica de um objeto específico, que é, como se viu, a
nação.
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1Observe-se, por exemplo, as diferentes leituras da obra de Mauss feitas por Gurvitch e Lévi-
Strauss. A este respeito, Oliveira (1979) e Karady (1968)
2 Essai sur le Don... foi publicado originalmente em 1925. Os quatro textos de Mauss sobre a
nação publicados no volume 3, Cohésion sociale et divisions de la Sociologie, da coletânea
organizada por Victor Karady (MAUSS, 1969:573-639) datam de 1919-20 (provavelmente),
1920, 1924 e 1932. Os dois primeiros, aos quais me referirei diretamente, são os mais
importantes: “La nation” (p. 573-625), constituído de manuscritos organizados por Lévy-
Bruhl) e “La nation et l'internationalisme” (p. 626-634), originalmente uma comunicação
apresentada no colóquio The Problem of Nationality. O últimos reproduzem intervenções de
Mauss em dois debates: um sobre rentabilidade econômica do socialismo (p. 634-638) e outro
sobre a Liga das Nações (p. 638-639). O segundo volume da coletânea, Représentations
collectives et diversité des civilisations, também é de 1969; e o primeiro, Les fonctions sociales
du sacré, saiu no ano anterior.
3 Estou consciente de que desloco a discussão sobre Mauss para um terreno que lhe é
desfavorável, uma vez que as contribuições mais importantes deste autor, se bem que
inseridas em um projeto de constituição de uma ciência unitária do social, voltam-se mais
diretamente para o estudo das sociedades "primitivas". É, aliás, o contrário do ocorrido com
Marx, que, com um projeto idêntico, abordou mais diretamente as sociedades capitalistas.
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5Embora ambos - mais o primeiro do que o segundo - tendam a negligenciar a distinção entre
concreto e empírico.
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6 Esta questão, já por demais discutida, é desenvolvida, por exemplo, com perspectivas
distintas, por Goldmann (1966) e Hirst (1977).
7 Uso "empirista" no sentido que lhe é atribuído por Althusser (1973: 40 e ss.).
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momento em que os fatos só são conhecidos de fora, pode ser feita apenas a
partir de sinais exteriores". Dessa forma, se delimita o objeto de estudo,
marcam-se os seus contornos. Definir a prece consiste, portanto, em detectar
"os caracteres aparentes, suficientemente sensíveis que permitam reconhecer,
quase que à primeira vista, tudo o que é prece" (Mauss, 1979: 124).
Embora admita que essa definição seja arbitrária, Mauss insiste, por
outro lado, em que os caracteres que a constituem nem por isso sejam
subjetivos, pois, afinal,
não devemos confiar em nossas impressões" (Mauss, 1979:24). Sua
objetividade consiste em que, mesmo exteriores, eles devam ser solidários
para com as "propriedades mais essenciais, cuja descoberta se torna,
assim, mais fácil. É dessa maneira que a dilatação dos corpos pela qual
se define o calor corresponde aos movimentos moleculares que a
termodinâmica descobriu". (Mauss, 1979:125).
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Para Lévi-Strauss, o que mais importa na noção de fato social total não é
a totalidade, mas o modo muito específico de sua conceção por Mauss,
“folheada”, composta pela união de múltiplos planos (Dubar, 1974:25). O
conceito de fato social total indicaria a existência, nos mais distintos níveis da
realidade social, de sistemas de relações cujos modo de funcionamento,
baseado na troca, seria comum.
Uma vez mais, a linha de análise de Dubar tende a conferir ênfase à
abrangência da postura metodológica de Mauss, o qual teria colocado,
antecipadamente, "as questões metodológicas mais fundamentais da etnologia
moderna", em cujo debate se envolveriam as diversas tendências teóricas.
Entre os "herdeiros" de Mauss também se incluiria o materialismo histórico,
pois se o conceito maussiano de função é reapropriado de diferentes modos por
estruturalistas e funcionalistas, não se deve ignorar que, nas palavras do
próprio autor do Ensaio..., "atrás de todo fato social existe história" (Mauss,
1950: 288, apud Dubar, 1974: 25).
Todavia, Dubar parece não perceber que há um ponto comum às
apropriações estruturalista e funcionalista de Mauss que é incompatível com o
"paradigma" marxista, pelo menos em suas variantes mais fecundas: a
ausência da contradição como categoria constitutiva da totalidade. Suponho
que uma das condições teóricas da possibilidade daquela apropriação resida na
inexistência (ou, pelo menos, na lateralidade) daquela categoria no sistema
analítico de Mauss9.
8 Os grifos são de Lévi-Strauss. A passagem entre colchetes não está na citação feita por
Dubar, que também “poupa” o leitor da sequência do argumento levistraussiano em relação a
Malinowski: “Esta posição do problema anula todos os progressos anteriores, pois reintroduz
um a aparato de postulados sem valor cientifico” (Lévi-Strauss; 1950: 36). Dubar não poderia
ter recorrido à versão mais reduzida, também citada por ele, do texto de Lévi-Strauss
publicada no número 5 de Cahiers Internationaux de Sociologie, intitulada “L’OEuvre de Marcel
Mauss” (Lévi-Strauss, 1950b), pois aí a passagem simplesmente não existe.
. Isso pode ser observado pelo menos no que se refere às análises de Mauss sobre a ação.
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11Como se vê, foge aos objetivos deste artigo uma análise das relações entre as diferentes
concepções de totalidade nas distintas variantes do marxismo.
12 A este respeito, ver Holier, op. cit. e Terrail (1974).
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Bibliografia
DUBAR, Claude (1969). “La méthode de Marcel Mauss”. Révue Française de Sociologie, v. 10.
DURKHEIM, Émile. (1966). As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Companhia Editora
Nacional.
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KARADY, Victor. (1968). “Présentation à l'édition”. In: MAUSS, Marcel, Oeuvres. v. 1. Paris: Les
Éditions du Minuit.
__________. (1969a). “La nation”. In: Oeuvres. v. 3. Paris: Les Éditions du Minuit.
__________. (1979). “A prece”. In: OLIVEIRA, Roberto C. (org.). Mauss. São Paulo: Ática, 1979.
OLIVEIRA, Roberto C. “Introdução a uma leitura de Mauss”. In: (org.). Mauss, op. cit.
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