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CLAUDIA SANTOS DA SILVA

HERANÇAS SECRETAS:
AS MEMÓRIAS AFRICANAS NO COTIDIANO DAS REZADEIRAS
DE POJUCA.

Dissertação submetida como


requisito para obtenção de título de
Mestre em Cultura, Memória e
Desenvolvimento Regional, do
programa de Pós-Graduação em
Cultura, Memória e Desenvolvimento
Regional.
Orientadora: Profª. Drª Marise de
Santana

Santo Antonio de Jesus - Bahia


2010
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2

S586 Silva, Cláudia Santos da.


Heranças Secretas: as memórias africanas no cotidiano das
rezadeiras de Pojuca. / Cláudia Santos da Silva - 2010.
162 f.: il

Orientador: Prof. Dra. Marise de Santana.

Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa


de pós-graduação em Cultura Memória e Desenvolvimento Regional, 2010.

1.Curandeiras. 2. Medicina mágica, mística e espagírica 3. Pojuca –


Bahia. 4. Medicina Popular. I. Santana, Marise. II. Universidade do Estado
da Bahia, programa de pós-graduação em Cultura Memória e
Desenvolvimento Regional.

CDD:
398.353

Elaboração: Biblioteca Campus V/ UNEB


Bibliotecária: Juliana Braga – CRB-5/1396.
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CLAUDIA SANTOS DA SILVA

HERANÇAS SECRETAS:
AS MEMÓRIAS AFRICANAS NO COTIDIANO DAS REZADEIRAS
DE POJUCA.

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB


PROGRAMA DE MESTRADO MULTIDISCIPLINAR EM CULTURA,
MEMÓRIA E DESENVOLVIMENTO REGIONAL

Dissertação de Mestrado defendida e aprovada em em: ____/_____/2010

BANCA EXAMINADORA:

________________________________________________
Profª. Drª. Marise de Santana
Universidade do Sudoeste da Bahia

_________________________________________________
Profª Drª
Universidade

_________________________________________________
Prof. Dr.
Universidade

Santo Antonio de Jesus – Bahia


2010
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À todas as pessoas que acreditam na vida


para além das normas e exigências de um
pequeno grupo privilegiado;
Aos que não impõem suas verdades, mas
têm disposição para ouvir e boa vontade
para compreender o outro;
Aos que lutam e à luta incondicional por
liberdade, justiça e dignidade da pessoa
humana, integralmente, com respeito às
suas diferenças, peculiaridades e
compreensão de mundo.
À todos e todas que direta ou indiretamente,
contribuíram com o processo dessa
pesquisa;
À todas as pessoas que acreditam na força
da fé, das folhas e na terra, pois o simples
fato de existirem já anima, a presença
entusiasma e o companheirismo nos
fortalece na caminhada sempre adiante.
5

Seja calma como a luz do sol rasgando a negra noite dor de março.
Seja fruto do suor tão santo que envolve o trabalho flor de maio.
Será justiça para com as mãos cobertas de tanto calor flor de outubro.
Será beleza como a chegada do colorido das primaveras.
Seja forte como a união dos nossos corações trabalho e dor.
Seja firme como as águas lentamente tomando as tantas terras.
Será o fogo que arde em cada peito nas fogueiras das paixões.
E violento como o amor o corpo exige, grita, toma e berra.
Que seja um parto dolorido e farto de vida e alegria trabalho e festa.
Que seja novo como a emoção de um cego vendo a luz de um dia.
Será justiça para com as mãos cobertas de tantos calos flor de
outubro.
Seja fruto do suor tão santo que envolve o trabalho flor de maio.

Gonzaguinha
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AGRADECIMENTOS

Os sonhos se consolidam gradativamente, e a cada dia que vivemos,


introduzimos a eles novos elementos; pois também o sonho é sonhado
gradativamente. Aos poucos vamos dando formas e quando pensamos que já o
temos realizado, percebemos que ainda falta muito, cumprimos apenas uma
etapa da interminável tarefa dar sentido à nossa vida.
Para isso é que servem os sonhos, as aspirações de nós humanos.
Necessitamos sonhar para dar sentido às nossas vidas, do contrário, seríamos
apenas executores de tarefas, reprodutores de ações, que não passariam de
repetições mecânicas como comer, dormir, acordar, trabalhar... Os sonhos fazem
as mais simples ações tornarem-se importantes, necessárias e desejáveis para
nos mantermos vivos e com expectativas.
Os mais variados sonhos nos põem vivos e nos fazem caminhar sempre
para frente em busca da realização desses. Mas não sonhamos sozinhos, como
já dizia Raul Seixas, “Sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só,
mas sonho que se sonha junto é realidade”.
Como não sonhei e não sonho sozinha, muita gente sonhou e até sofreu
comigo nessa empreitada, para transformar o que outrora fora um sonho, numa
entusiasmada realidade. A todas essas pessoas minha terna gratidão.
Agradeço com o que tenho de melhor, meu sorriso e minha lealdade.
Em primeiro lugar, agradeço ao Deus-Pai-Mãe-Natureza, que cria, cuida e
orienta; o início e o fim; o que nos lança no mundo e depois de cumprida nossa
missão nos acolhe ternamente, Aquele que me presenteou com dois grandes
tesouros: minha família e meus amigos.
Agradeço a todas as rezadeiras que me colaboraram diretamente com
essa pesquisa, sem elas não teria essa pesquisa, especialmente dona Dida,
dona Djão, dona Laura, dona Senhora e dona Zilda.
Agradeço a toda minha família, meu ninho. Minha mãe e meu pai, que são
os responsáveis pela minha existência e pela mulher que sou; que também me
ofereceram importantes informações; me ajudaram a elucidar algumas dúvidas
referentes a essa pesquisa.
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Agradeço aos meus irmãos e irmãs: Kel, Tonho, Del, Eto, Jó e Ito
(relacionados por ordem cronológica, para evitar ciúmes) com os quais aprendi
partilhar, respeitar, amar, fazer festa e também brigar pela justiça. Onde, ainda
que sem noção, aprendi a importância da história de vida na nossa vida.
Agradeço aos meus amigos, especialmente Anilton, Dirceu, Jailton,
Jarbas, Lene, Nice e Noélia, (também relacionados em ordem alfabética, para
não despertar ciúmes) pessoas tão presentes na minha vida, tão dispostas a
ajudar e a caminhar comigo, verdadeiros irmãos e irmãs.
Agradeço a Karlinha, amiga que me recebeu em sua casa em Santo
Antonio de Jesus e além da acolhida, me presenteou com a oportunidade de
conviver com sua sabedoria, espiritualidade, carinho e sensatez.
Agradeço a Zé Carlos e Marcos, queridos que me ajudaram a pegar livros
nos seus cadastros em outras universidades.
Agradeço a minha orientadora, professora doutora Marise de Santana,
pelas longas conversas, que me provocavam e proporcionaram descobertas e
decisão. Em nenhum momento se impôs, sempre refletiu comigo os caminhos
dessa pesquisa com humildade e senso democrático.
Agradeço também aos colegas do mestrado, especialmente, Anderson,
pelo carinho, caronas e incentivo.
Agradeço com muita ternura a todas as rezadeiras que me receberam em
suas casas, seus quintais, que me presentearam com seu tempo, suas rezas,
saberes e histórias.
Que toda Força de Bondade e Resistência que firma esse mundo faça
seus caminhos permanecerem sempre abertos.
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Lista de siglas

ACAP – Associação do Culto Afro de Pojuca


CEB’S – Comunidades Eclesiais de Bases
HP – Hermenêutica Profunda
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
PJE – Pastoral da Juventude Estudantil
PJMP – Pastoral da Juventude do Meio Popular
PT – Partido dos Trabalhadores
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Lista de Tabelas

Texto:
Tabela I - Engenhos matriculados pela Junta da Real Fazenda e pelo governo
provincial, Bahia 1807 – 1874 -------------------------------------------------------------------------
--- 93
Tabela II - Nação dos escravos africanos em Salvador, 1802 – 35 -----------------103
Tabela III - Escravos crioulos e africanos em nove engenhos baianos, 1739----- 105

Anexos:
Tabela I - Relação das rezadeiras de Pojuca – entrevistadas -----------------------------
142
Tabela II – Outras rezadeiras de Pojuca ----------------------------------------------------- 143
Tabela III - Outras pessoas entrevistadas --------------------------------------------------- 143
Tabela IV – Espaços e práticas de conteúdo do legado africano em Pojuca ------- 144
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Lista de fotos e gravuras

Gravura I – Mapa da Bahia – localização de Pojuca ------------------------ 88


Gravura II – Fazenda São José do Caboclo ----------------------------------- 97
Gravura III– Placa da base da torre da fazenda S. José do Caboclo ----- 98
Gravura IV – Mapa do Recôncavo Baiano -----------------------------------107
11

RESUMO

Em geral, a história oficial tem omitido a participação das mulheres na vivência


social; contrariando a sabedoria da natureza, que dotou as mulheres da nobre
capacidade de gerar a vida. A terra é feminina, a água, a fauna e a flora também são
femininas. Todas férteis, com a capacidade de gerar e perpetuar a vida. Por isso,
apesar da discriminação, as mulheres assumem papel fundamental em qualquer
sociedade. Além de portadoras do poder de gerar a vida, em sua maioria, são elas
as guardiãs da memória de seu povo; nas palavras e nos gestos repetidos
cotidianamente, elas transmitem aos mais novos experiências e saberes, que ao
serem repetidos serão divulgados e conservados por muito tempo nas comunidades.
As rezadeiras, por exemplo, senhoras de saberes e crenças continuam
desempenhando seu papel nas comunidades, contrariando as imposições da
“sociedade terrorista”, que, pela sutileza do “jogo de opressões”, dissemina os
discursos da negação da cultura, negação do pertencimento e da emancipação.
Ainda hoje são procuradas para o benzimento de pessoas com diversas doenças do
corpo e também da alma, repetindo o que aprenderam por gerações, utilizando-se
de ritos, folhas, orações e fé. Elas guardam segredos e memórias de tempos idos e
revelam nos seus fazeres receitas e experiências ensinadas por africanos na direta
relação entre o corpo e o espírito, entre a terra e o divino, entre o sagrado e o
profano. É embrenhando na vivência cotidiana das rezadeiras de Pojuca, com base
na metodologia da Hermenêutica Profunda – HP, numa perspectiva interdisciplinar,
que investigamos como a memória africana tem sido preservada nessa cidade, a
partir dos saberes e fazeres das mulheres rezadeiras de Pojuca, cidade do estado
da Bahia, que entra para a história oficial a partir do século XVII, quando é
inaugurado o cultivo da cana-de-açúcar, às margens do rio que a batiza. Pojuca:
yapô yuca, que em tupi guarani quer dizer pântano podre; o que nos permite
identificá-la como morada de Nanã, africana que é a senhora da lama, da fertilidade,
o início e o fim, e juntamente com Ossâim, senhor das folhas, guardam o segredo de
Pojuca. Assim, o seu nome, carregado de sentido e significado, preserva as
contribuições africanas na sua constituição, marcas que o discurso oficial cristão
tentou camuflar.

Palavras-chave: rezadeiras, cotidiano, memória, Pojuca.


12

ABSTRACT

In general, societies, throughout history, women have been denied effective


participation in social life, behavior that goes against the wisdom of nature, which has
given women the ability to generate a noble life. Thus, while they are discriminated
against, women play a fundamental role in any society. Besides bearing par
excellence, the power to generate life, they are the guardians of the memory of
certain people, since, in words and gestures repeated daily, not always aware of their
importance, they convey to younger ones, experience and knowledge, which when
repeated will be disseminated and preserved for a long time in the communities.
Some women, however, are harder this membership; example of the mourners.
Ladies of knowledge and beliefs, these women continue to play a role in the
communities, countering the charges of "terrorist society" which, by the subtlety of
the "game of oppression," disseminates the speeches of the negation of culture,
belonging and empowerment. Even today these women are sought for the blessings
of people with various diseases of the body and soul, the wisdom to realize that by
repeating what they have learned for generations, using the rites, leaves a lot of
prayers and faith. These women keep secrets and memories of bygone days and
reveal in their doings experiences taught by Indians and Africans in the direct
relationship between body and spirit, between earth and the divine, between the
sacred and the profane. It penetrated the daily lives of the mourners Pojuca, based
on the methodology of hermeneutics Deep - HP, an interdisciplinary perspective to
investigate how the African and indigenous memory has been preserved in this town,
from the knowledge and actions of women mourners Pojuca, city the state of Bahia,
which enters the official story from the seventeenth century, when it inaugurates the
cultivation of sugar cane, the river that baptized. Located 70 km from the capital, with
an estimated population of 30 thousand inhabitants, has a history that can not be
denied that, like many other Brazilian cities formed during this period, brings in its
constitution the contributions African and Indian, camouflaged by the official
discourse Christian.

Keywords: mourners, everyday life, memory, Pojuca.


13

SUMÁRIO

LISTA DE TABELAS ........................................................................................... vii


LISTA DE SIGLAS ...............................................................................................viii
LISTA DE FOTOS E GRAVURAS ....................................................................... ix
RESUMO .............................................................................................................. x
ABSTRACT .......................................................................................................... xi
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 14
2 CAPÍTULO I – O CAMINHO TEÓRICO-METODOLÓGICO ............................ 26
2.1 Identidade Cultural: tecendo significados ....................................................... 40
2.2 Memória: sentimento de pertencimento.......................................................... 62
2.3 Cotidiano: o lugar dos sentidos e das representações ................................... 79
3 CAPÍTULO II – A HISTÓRIA DE POJUCA NAS MEMÓRIAS GUARDADAS
PELAS REZADEIRAS ................................................................................... 92
4 CAPÍTULO III – REZADEIRAS: GUARDIÃS DA MEMÓRIA E DA FÉ ........... 122
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Os mitos resistem: novas indagações para o tema…………. ............................ ..147

REFERÊNCIAS .................................................................................................... 152


ANEXOS ............................................................................................................... 156
14

Introdução

E que a atitude de recomeçar é todo dia toda hora


É se respeitar na sua força e fé
E se olhar bem fundo até o dedão do pé

Essa dissertação representa o resultado, parcial, de um sonho em curso.


Parcial, porém, fundamental, para que eu possa continuar sonhando. Desde o
momento em que entrei na faculdade de Licenciatura em História, decidi
enveredar pela vida acadêmica e iniciei a caminhada para a realização desse
sonho.
No entanto, muito antes de ingressar na faculdade, as minhas
experiências, os valores que aprendi e apreendi em casa e em todos os
ambientes de formação a que tive acesso, foram me sensibilizando na
preocupação com a realidade das pessoas ao meu redor; com os jeitos de viver e
de fazer dessas pessoas. Especialmente, me incomodava a aparente apatia
diante de tanta opressão e exploração a que eram submetidas, inclusive as
pessoas da minha família. A discriminação racial era uma das coisas que mais
me incomodava, percebia isso nas escolas onde estudei, na igreja, na cidade
como um todo; ainda que naquele período eu não tivesse clara compreensão do
que aquilo significava na vida do povo brasileiro.
Tanto na militância do movimento estudantil e do Partido dos
Trabalhadores (PT) como na faculdade, recebi formação predominantemente
marxista, porém, embora concordasse (e em muitos aspectos concordo até hoje),
algo me incomodava no marxismo, pois, nas modestas leituras que tive
oportunidade de fazer sobre o tema, não conseguia perceber a valorização da
subjetividade do proletariado, não via o elemento cultural, ser considerado como
importante no processo de transformação da sociedade.
Marx (1818 – 1883) e Engels (1820 – 1895), no Manifesto Comunista
afirmam que “A história de todas as sociedades que já existiram é a história da
luta de classes” (MARX & ENGELS, 1999: 9), mas em 1890 Engels edita notas
referentes à tal obra, nas quais informa que se referem à toda história escrita e
reconhece que antes dessa, havia uma outra forma de sociedade, onde os bens
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eram comuns a todos da sociedade, contudo, o autor determina que todas as


sociedades passam pelo mesmo estágio, numa perspectiva de linearidade
história, concepção que nega as peculiaridades de cada sociedade, e,
principalmente, as visões e crenças de mundo de cada povo.
“Operários do mundo uni-vos!”, A célebre máxima de Karl Marx (1999: 63)
dá a idéia de que bastava a condição social para determinar os responsáveis
pelo processo de derrubada da burguesia do topo da pirâmide social. Essa
constatação me angustiava, pois, por outro lado, nos processos de formação que
recebi na Pastoral da Juventude Estudantil (PJE) e, principalmente, na Pastoral
da Juventude do Meio Popular (PJMP) e nas Comunidades Eclesiais de Bases
(CEB’s), as manifestações culturais, como crença nos sonhos, receitas, festas,
jeitos de fazer determinadas coisas, dentre outros, o sentimento de identidade,
que hoje compreendo como pertencimento, sempre eram consideradas como
elementos fundamentais no processo de resistência e, conseqüentemente, de
libertação do povo oprimido.
Quando fiz a especialização em Metodologia do Ensino, da Pesquisa e
Extensão em Educação, na UNEB – Campus II, em Alagoinhas, no ano 2000,
optei por estudar sobre a valorização do cotidiano dos alunos nas escolas.
Questionei professores, alunos e direção da Escola Estadual Padre João Montez,
em Pojuca, se esses valorizavam o cotidiano dos alunos no processo de ensino-
aperndizagem, pois já me preocupava com a visível dicotomia entre escola e
vida, entre o discurso e a prática.
A pesquisa apontou para a confirmação das minhas hipóteses, pois, ainda
que nos seus discursos, professores e professoras entrevistadas afirmassem a
preocupação com a valorização do cotidiano, muitos tinham dificuldade em
explicar qual metodologia utilizavam para viabilizar tal aspecto, outros
declamavam exemplos que, de fato, não conduziam para a valorização do
cotidiano. Enquanto a quase totalidade dos alunos dessa referida escola eram
negros e empobrecidos, os livros estavam voltados para uma realidade sulista de
crianças brancas de classe média e nenhum dos profissionais entrevistados foi
capaz de apresentar exemplos de superação dessa situação. Assim, a tal
valorização não passava, quando muito, de mera ficção.
Essa especialização me proporcionou duas importantes contribuições para
a atual fase da minha vida: primeiro a confirmação de que a história da
16

população afro-brasileira só aparece na escola quando se refere ao período


colonial e pela passagem do 13 de maio, data da assinatura da Lei Áurea. O
outro momento em que o negro aparece como assunto nas escolas é o dia do
folclore, 22 de agosto. Assim, é atribuído ao negro brasileiro apenas o papel de
escravo, enquanto a sua história é reduzida ao folclore. Conclusão que me
angustiou.
Angústia que ganhou alívio com a exigência da Lei 10. 639 de 09 de
janeiro de 2003 e reforçada com a Lei 11.645 de 10 de março de 2008, que
obriga todas as escolas brasileiras do ensino fundamental e médio, públicas e
privadas, incluir nos seus currículos o ensino de história e cultura africana, afro-
brasileira e indígena; o que tem contribuído para desvelar o preconceito que há
por trás do falso mito da democracia racial cantado em verso e prosa no Brasil,
ao tempo em que expondo esse preconceito, provoca a população a refletir mais
séria e profundamente sobre os problemas sofridos pelos afro-brasileiros e
indígenas desse país, na possibilidade da construção de novas perspectivas
históricas e sociais para esses povos.
A outra contribuição que o estudo do cotidiano naquela monografia me
proporcionou, através de Henri Lefbvre (1991), na sua obra “A Vida Cotidiana no
Mundo Moderno” e Agnes Heller (1989) em “O Cotidiano e a História”, foi a
constatação de que é possível conjugar os estudos culturais com a perspectiva
marxista,
Algum tempo depois, quando li “Costumes em Comum” do marxista E. P.
Thompson (1998), a partir da sua afirmação de que a cultura do povo é uma
defesa contra as intrusões da elite, mais uma vez percebi que há a possibilidade
de conjugar o socialismo com estudos culturais. Essa possibilidade encheu-me
de expectativas quanto essa área do conhecimento, isentando-me do
desconforto por não seguir os estudos na linha do socialismo, numa perspectiva
meramente política.
A partir de então, assumi esse interesse sem sentir-me contraditória ou
equivocada. E tornei-me mais certa ainda da importância desse tema no contexto
dos conflitos sociais, quando iniciei a pesquisa bibliográfica e me dei conta de
que os teóricos a quem recorri inicialmente para fundamentar essa pesquisa,
eram, em sua maioria adeptos do marxismo ou críticos da estrutura social
moderna, como Heller (1989), Lefebvre (1991) e Certeau (1999), dentre outros.
17

No entanto, uma preocupação ainda era latente. Certa de que falar de


cultura é tema extremamente amplo e complexo, necessitava fazer um recorte
que delimitasse meu interesse. Então passei a me perguntar que aspecto da
cultura queria estudar.
Foi quando tive acesso ao resultado do I Censo Cultural da Bahia,
realizado entre 2000 e 2006, pela Secretaria de Cultura e Turismo do Estado,
que organizou um banco de dados culturais de todos os municípios da Bahia.
Nele, rezadeira era uma das modalidades apuradas e em Pojuca foram
apontadas apenas duas delas. Resultado que me causou espanto, pois naquele
momento eu já conhecia muito mais de três rezadeiras. Essa controvérsia
despertou em mim várias indagações: por que será que aparecem apenas duas
rezadeiras na pesquisa? Quem forneceu as informações? Será que as pessoas
temem se identificar enquanto rezadeiras ou abandonaram o ofício?
Numa noite, pensando sobre tudo isso, me dei conta de que havia
encontrado o tema da minha pesquisa e o achado já se manifestou com o título
completo! Vivência cotidiana e preservação da memória: as rezadeiras de Pojuca
em foco. Considerei que esse título evidenciava a minha preocupação com a
valorização das experiências culturais, com as questões étnicas, uma vez que
enxergava nas rezadeiras a presença da cultura afro-brasileira e indígena e que,
por conseguinte, essa pesquisa deveria colaborar com o desvelamento da
memória e da identidade do povo de Pojuca.
Assim, as rezadeiras de Pojuca apareceram como os sujeitos sociais da
minha pesquisa e a sua vivência do cotidiano como elemento fundamental para a
verificação da preservação da memória do referido município.
Pojuca é um pequeno município do Recôncavo da Bahia, que situa-se a
70 km de Salvador, com população estimada de 32.225 mil habitantes, segundo
contagem da população 2009 do IBGE. É a cidade onde nasci e cresci, mas, a
partir do momento que iniciei essa pesquisa, percebi que a conhecia muito
pouco. Pouco sabia sobre a sua história, sobre as memórias do seu povo, meu
povo. Conhecia apenas de informações soltas, que como peças de um quebra-
cabeça se constituíram nas primeiras pistas perseguidas para elaboração do
caminho histórico de Pojuca, processo fundamental para posterior verificação da
preservação ou não da memória africana e indígena do município através da
vivência cotidiana das rezadeiras.
18

As parcas informações sobre a história de Pojuca se explicam porque na


escola só tive a oportunidade de ouvir falar sobre alguns aspectos bem pontuais
da sua história, como o significado do termo que a nomeia: uma corruptela de
yapô-yuca, palavra tupi, que quer dizer água podre, pântano, estagnado. Essa
informação era a única menção feita à presença indígena na história da cidade
nas escolas onde estudei.
Mas a significação desse termo diz muito mais do que parece; nos
aventuremos, então, em desconstruir a lógica ocidental e desvendar a lógica
indígena e africana que o termo podre pode ter. Pensemos no podre como o
fértil, o lugar que oferece a vida e também acolhe a morte, como um ciclo infindo.
Essa compreensão nos permite fazer alusão ao elemento africano, se
considerarmos que no panteão dos orixás do Candomblé encontramos dona
Nanã, a iabá que representa o inicio e o fim, por estar relacionada ao barro, à
lama, à mistura de terra e água, pois, assim como o mito fundador dos cristãos
atribui a origem do ser humano ao barro1, também na tradição iorubá, o barro é o
material original do qual o ser humano foi modelado e que no final da vida o ser
humano deve novamente ser devolvido à terra”. (BERKENBROCK, 2007: 243).
Outro aspecto da sua história, também repetido nas escolas refere-se à
origem do seu povoamento, ocorrido desde o início do século XVII, período
colonial do Brasil, sendo Pojuca parte de uma sesmaria, pertencente à Garcia
D’Ávila, que, só passou a ser povoada no final do referido século, com a
construção dos engenhos de cana-de-açúcar.
Depois de uma grande lacuna, por ocasião dos festejos emancipatórios
fala-se da emancipação do município no início do século XX, quando a cidade
deixou de ser um distrito do município de Catu, em 29 de julho de 1913.
Ainda no período em que estudava no ensino fundamental, era comum
ouvir em verso e prosa o chavão de que Pojuca era a “Princesinha do Petróleo”,
isso, por causa da extração petrolífera, que iniciou no município a partir de 1953,
quando a Petrobrás se instalou naquela região. Hoje já não se fala mais nisso,
pois, embora ainda tenha na extração de petróleo e de gás natural a sua maior
fonte de renda, Pojuca já perdeu esse título há alguns anos.

1
Então Javé Deus modelou o homem com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o homem
tornou-se um ser vivente. Gn, 2:7.
19

Esses últimos parágrafos refletem a escassa configuração da história


oficial da minha cidade, que só é lembrada quando da comemoração do seu
aniversário de emancipação política, e a cada ano, menos se fala dessa história;
enquanto as comemorações se limitam ao trio elétrico e às inaugurações de
praças reformadas.
Creio que essa lertagia histórica se reflete no comportamento dos
pojucanos em relação à cidade, quando dizem que “Pojuca não tem nada”, “não
tem cultura”. Durante muito tempo se ouviu dizer que “Pojuca é má mãe e boa
madrasta”, referindo-se ao fato de que “quem chega de outras cidades progride,
financeiramente, mais do que quem nasce lá”.
Apesar de ter ciência da complexidade que o termo cultura impõe, nessa
introdução, ouso-me dizer que ainda é notório o silêncio, a pouca compreensão
da identidade cultural do município. É comum ouvir comentários do tipo “Pojuca
não tem nada”, referindo-se à idéia de que não há nada que expresse a “cara” do
município, ou “Pojuca é a terra do já teve”, referindo-se ao fato de que hoje
existem menos coisas no município (como cinema, clubes, festas, organização
política...) que no passado. Também é evidente a indiferença ou a falta de
conhecimento dos poderes públicos quanto aos incentivos às manifestações
culturais; praticamente, não há nenhum estímulo à vivência cultural da população
pojucana, Os recursos destinados a esse tipo de manifestação, são empregado
em modismos, em “grandes” atrações em detrimento da preservação das
manifestações culturais da cidade.
Mas o tema ainda não estava pronto. Com ele ingressei nesse Mestrado,
porém, nos primeiros encontros com minha orientadora, fui questionada sobre
qual memória era essa que eu pretendia investigar se é preservada ou não entre
os pojucanos e pojucanas. Esse questionamento me provocou outra inquietação,
me fez perceber que aquela idéia de pesquisa ainda não estava pronta e, ao
formular a resposta ao questionamento feito por minha orientadora, tive a
oportunidade de delimitar melhor o tema da dissertação, assim, foi nesse
momento que defini que a memória que seria investigada era a africana e a
indígena. Decisão tomada a partir das conversas preliminares com as duas
primeiras rezadeiras que tive a oportunidade de entrevistar.
20

A partir de então considerei a hipótese de que no cotidiano das rezadeiras,


os seus fazeres, saberes e rituais são impregnados de rudimentos da sabedoria
africana e também indígena.
Nessa perspectiva, levantei a seguinte questão: como a memória africana
e indígena é preservada através das rezadeiras de Pojuca?
Para responder a esse problema precisei interpretar, primeiramente, as
falas e histórias contadas pelas rezadeiras de Pojuca, sujeitos sociais dessa
pesquisa, além me debruçar sobre dados da história do Recôncavo Baiano, onde
Pojuca está localizada, e nela identificar o que se fala dos negros que foram
levados na condição de escravos para os engenhos canavieiros implantados
naquela região desde o século XVI.
A princípio, parece-me evidente a invisibilidade da memória indígena em
Pojuca, pois, ainda que saibamos dessa existência por força da compreensão
histórica da colonização do Brasil e da localização geográfica do município em
questão e também da alusão feita ao significado do seu nome, sem um olhar
mais apurado e cauteloso, não é possível perceber as influências dessa memória
entre os pojucanos e pojucanas. Num olhar superficial, é praticamente total a
ausência desse referencial entre esses munícipes; também em relação aos
africanos, embora não tenha como negar a sua presença, pois essa é manifesta
nas crenças, em certos valores e nas características físicas predominantes da
grande maioria da sua população, essa, em geral, tenta negar tais evidências.
Diante dessas constatações, observar o cotidiano das rezadeiras de
Pojuca, para, a partir daí, investigar se a memória africana e indígena é
preservada no município, se revelou numa tarefa de singular importância e,
sobretudo, prazerosa, ainda que árdua, pois, tal tarefa significou um verdadeiro
mergulho nas minhas próprias raízes.
Pois, sou a quarta filha de uma família de sete irmãos, desses sete cinco
nasceram em casa, com o auxilio de mãe Lina, famosa parteira da cidade, já
falecida. Só os dois mais novos não nasceram com o seu auxílio, pois em Pojuca
já tinha maternidade e mãe Lina já se considerava muito velha para aquela
tarefa. Minha família não era a única a recorrer aos préstimos da mãe Lina. Boa
parte dos meus visinhos, com a mesma faixa de idade, nasceu por suas mãos.
Muitas das minhas vizinhas, já falecidas, eram rezadeiras, como dona
Xandu, mãe de uma das rezadeiras entrevistadas – dona Dida, dona Cecília,
21

dona Eremita, essas duas últimas mãe e filha, respectivamente. Todas sabiam
algum tipo de reza, de cura. Minha mãe também sempre nos rezava, quando
estávamos adoentados e ela dizia que não era doença de médico ou, ainda que
fosse sempre recorria também aos chás, banhos e benzeções.
Fui educada em meio a muitas crenças. Muitas histórias povoaram e ainda
povoam meu imaginário. Kel, minha irmã mais velha, nasceu no dia treze de
junho, dia de Santo Antonio, por isso minha mãe rezou durante muitos anos as
treze noites em homenagem ao Santo. Para mim aquilo era mágico. Durante o
mês de junho, praticamente todos os dias tinha festa na minha casa, pois eram
muitas as pessoas que iam rezar para o Santo, fazer pedidos e pagar
promessas. Tinha os puxadores do ofício, um altar muito bonito, cada dia
decorado com cores e flores diferentes; ofício cantado, incenso, palmas, doces...
Assim, eu também me tornei uma devota de Santo Antonio.
Quando fui me dando conta de todas essas questões, inundando-me das
lembranças da minha infância, entendi porque o resultado daquele censo cultural
tanto me incomodou. Percebi que existe uma perfeita simbiose entre eu (a
pesquisadora) e os sujeitos sociais da minha pesquisa (as rezadeiras). Digo isso
sem nenhum receio, pois, longe do discurso da neutralidade científica, posso
dizer que foi o tema que me escolheu e não eu que escolhi o tema, assim, como
ouvi alguém dizer recentemente num terreiro: “O candomblé é uma religião muito
exigente. É ele que escolhe as pessoas e não as pessoas que escolhem o
candomblé”.
Mergulhei no universo das rezadeiras em busca da memória africana na
cultura de Pojuca. Apesar de trabalhoso, não muito difícil, pois essas mulheres,
embora nos primeiros contatos se apresentassem um tanto tímidas e dessem
respostas muito diretas e pouco profundas, gostam de falar. Então, quando
consegui conquistar a confiança, essas mulheres, tornaram-se faladeiras,
passaram a narrar sobre as importantes curas que conseguiram realizar ao longo
dos anos do ofício de rezadeiras. Bastam algumas perguntas para termos
importantes e curiosos relatos, que fluem juntamente com curiosas maneiras de
ver o mundo e de fazer as coisas.
Na perspectiva de responder o problema provocador dessa pesquisa,
busquei traçar as respostas a essa pergunta com o objetivo de investigar e
analisar o papel das rezadeiras de Pojuca no processo de preservação da
22

memória indígena e africana do município. Para tanto, escolhi como referencial


metodológico a Hermenêutica Profunda (HP) ou metodologia da interpretação,
sugerida por Thompson (1995), que se desenvolve em três momentos distintos
que se completam e constroem o todo da pesquisa: análise sócio-histórica
(etnografia), através do qual entrevistei e observei os cotidianos das rezadeiras,
identificando esses e suas peculiaridades e semelhanças e descrevendo-o;
análise formal ou discursiva, na qual fiz análise do discurso das rezadeiras,
observei as construções simbólicas do universo das rezadeiras e a interpretação/
re-interpretação, quando analisei, interpretei e reinterpretei a vivência, os
sistemas simbólicos das rezadeiras no contexto do seu cotidiano, a partir também
do estudo da história de Pojuca. Para a qual investi também na pesquisa
documental.
Assim, procurei informações em alguns livros; também pretendi pesquisar
no arquivo público do município de Pojuca, para o qual não tive permissão de
acesso e na Paróquia de Pojuca. Porém, só recorri a tais fontes a partir das
necessidades provocadas pelos encontros com as rezadeiras.
A pesquisa bibliográfica, fundamental para situar as reflexões em torno
dos meus sujeitos sociais – as rezadeiras, se constituiu na primeira investida da
pesquisa, necessária para construir o arcabouço teórico dessa dissertação,
então, a discussão em torno da identidade cultural foi embasada pelas
abordagens de Sodré (2005), Geertz (1989), Burk (2004), Santana (2004), Laraia
(2008) e Eliade (2002); para refletir sobre memória referi-me as idéias de
Halbwachs (1990): memória coletiva, Nora (1993): lugares da memória e,
principalmente Pollak (1992), quando refere-se à memória subterrânea.
Já para abordar sobre cotidiano, optei pelas idéias de autores como Heller
(1989), Lefevbre (1991) e Certeau (1996). Enquanto que para discutir a categoria
rezadeiras apoiei-me nas idéias de Cascudo (1999), Oliveira (1985) e Santos
(2005).
No entanto, no processo de aprofundamento sobre as rezadeiras, outras
discussões como: dupla pertença e mito nos exigiram outras leituras. Depois de
sofrer mais uma metamorfose, o título dessa pesquisa assim ficou: A cruz, o ewé
e o xamã: estudo sobre a preservação da memória africana e indígena de Pojuca
através da vida cotidiana das rezadeiras.
23

Porém, quando cheguei ao processo de exame de qualificação, etapa


proposta pelo programa de mestrado ao qual estou vinculada, embora já tivesse
apresentado certo volume de pesquisa, com os questionamentos e comentários
feitos pela banca examinadora, percebi que não teria tempo suficiente para
abordar a memória indígena e africana, por isso, devido à maior dificuldade de
acessar as informações referentes à temática indígena, de acordo com o perfil da
realidade pojucana, resolvi debruçar-me com mais profundidade sobre a memória
africana, adiando pesquisa a cerca da memória indígena para ser aprofundada
numa próxima oportunidade.
Assim, o título mais uma vez sofreria alteração e nasceu de uma situação
inusitada. Certo dia, no momento em que já me despedia de dona Dida (70 anos)
uma das rezadeiras, quando o gravador já estava desligado, ela resolveu falar de
algo que nunca havia comentado durante todas as visitas que lhe fiz ao longo
dessa pesquisa. Revelou-me o costume da sua mãe de fazer caruru, pois havia
tido trigêmeos, então, voltei, liguei o gravador e pedi que ela repetisse a
informação com mais detalhes.
Cheguei em casa me perguntando porquê só naquele momento ela havia
revelado tal informação, dei-me conta, então que negar ou omitir algumas
informações, ainda que apenas nas palavras, não era característica apenas do
seu comportamento, mas das outras rezadeiras também. Dona Senhora (80
anos), por exemplo, só me revelou a sua devoção por Santa Bárbara, alguns
encontros depois e não foi no mesmo dia que revelou que essa Santa Bárbara
era “a do Candomblé”, ou seja Iansã.
Assim, as reflexões provocadas por essa constatação renderam o título
dessa pesquisa, que assim se consolidou: Heranças Secretas: as memórias
africanas no cotidiano das rezadeiras de Pojuca. Com o título definido, percebi a
necessidade de ajustar o problema; que então ficou assim: como as rezadeiras
de Pojuca preservam as memórias africanas no seu cotidiano? Com título e
problema definidos segui na pesquisa, confirmando a hipótese: no cotidiano das
rezadeiras, os seus fazeres, saberes e rituais são impregnados de rudimentos da
sabedoria africana, apenas aboli (por enquanto) o elemento indígena.
A primeira boa constatação que essa pesquisa me deu foi a negação do
resultado do I Censo Cultural da Bahia, que apresenta apenas duas rezadeiras.
Ressalto inclusive, que uma rezadeira “Joana Elisa” é citada duas vezes, assim o
24

Censo afirma a existência de três, mas cita apenas duas. No entanto nas
investidas dessa pesquisa, consegui identificar 27 (vinte e sete) rezadeiras entre
as que acompanhei e as outras que foram indicadas durante o processo da
pesquisa; dentre elas, dois homens, no entanto, ao lado dessa constatação
animadora, veio uma angustiante: a maioria dessas mulheres não são de Pojuca,
menos da metade são nascidas nessa cidade, as demais já vieram para Pojuca
em idade adulta, confirmando a idéia de que há um excessivo fluxo migratório
naquela cidade.
Diante dessa realidade, resolvi entrevistar todas as mulheres com idade
superior a sessenta anos e as informações que contribuíssem para a elaboração
de uma conceituação de rezadeiras seriam consideradas nessa pesquisa, no
entanto, para efeito da memória africana de Pojuca através das rezadeiras,
limitei-me a interpretar as informações das cinco rezadeiras que nasceram em
Pojuca, com idade a partir de setenta anos e tiveram sua formação dentro da
realidade do município. A saber: dona Dida (70 anos), dona Djão (74 anos), dona
Laura (81 anos), dona Senhora (80 anos) e dona Zilda (72 anos).
E assim, depois de todas essas investidas e de acordo com os referenciais
teóricos e metodológicos citados acima, essa dissertação foi elaborada,
organizada em quatro capítulos assim apresentados:
Capítulo I, O caminho teórico-metodológico, no qual discorro sobre as
categorias de análise que serviram para embasar as reflexões e interpretações
dos dados coletados e informo quais linhas metodológicas utilizei e como as
utilizei para realização da pesquisa, considerando, principalmente, o referencial
da Hermenêutica profunda - HP.
Capítulo II, A História de Pojuca nas memórias guardadas pelas
rezadeiras, no qual me encarrego de fazer a reconstituição da história de Pojuca,
tendo como referência informações fornecidas pelas rezadeiras, bem como
informações fornecidas por outras pessoas mais antigas da cidade, as quais
meus pais também contribuíram, além de dados oficiais e de outros
pesquisadores. Nesse capítulo tento identificar indícios da presença africana na
constituição histórico-cultural de Pojuca.
Capítulo III, Rezadeiras: guardiãs da memória, o maior dos capítulos, pois
é nele que realizo a discussão central dessa pesquisa, onde procuro responder
ao problema apresentado por ela, conjugando as reflexões dos dados coletados
25

com as perspectivas teóricas definidas em seu curso, através da interpretação-


reinterpretação desses.
Por último, no IV capítulo, apresento as considerações finais, que prefiro
chamar de novas indagações para o tema, deixando evidente a necessidade e
pretensão de continuidade da presente pesquisa, pois, todas as interpretações
que fiz no decorrer dessa me deram mais sede, vontade de voltar à fonte e
lançar-me ainda mais na sua profundidade. Além do mais, insisto em investigar a
memória indígena. Afinal, pesquisar é uma atividade dialética, a certeza de hoje é
a dúvida de amanhã e a própria história de vida de cada pesquisador e
pesquisadora que o/a lança para o abismo da pesquisa.
Foi assim nesse processo de construção da dissertação. Inevitavelmente,
fui transportada, através da memória, para a minha infância: as brincadeiras no
quintal de casa ou da casa da minha avó, onde com irmãos, primos e colegas
brincávamos por entre as plantas que nos forneciam sombra, frutas e também as
folhas usadas nas comidinhas de boneca, mas que eram também as folhas da
cura, usadas para os chás, banhos e para rezar as pessoas. Lembro-me que
quando alguém em casa estava desanimado, febril, sem apetite e ou sonolento,
logo se tinha um diagnóstico: é olhado, olho grosso! E o remédio era
providenciado pela minha própria mãe ou por alguma vizinha: três galhos de
vassourinha, uma reza murmurada com as folhas passando pelo corpo; ritual
repetido por três dias consecutivos. Era infalível!
Embora essa dissertação refira-se à memória de Pojuca, ela pretende ir
além de um lugar determinado, se amplia em direção para onde há ou existiu
experiências, vivências de rezadeiras. Ela pretende-se fustigante e despertar
outras memórias, suscitar outras indagações. É um convite ao mergulho nas
entrelinhas da memória. Adentrem por essas páginas, inundem-se das memórias
de vossas infâncias e se deliciem das possibilidades de encontros consigo
mesmo e com seu espaço, seu lócus e sua memória.
26

Capítulo I
1 O caminho teórico-metodológico
1.1 O caminho percorrido

E é como se eu despertasse de um sonho


Que não me deixou viver
E a vida explodisse em meu peito
Com as cores que eu não sonhei
E é como se eu descobrisse que a força
Esteve o tempo todo em mim
E é como se então de repente eu chegasse
Ao fundo do fim
De volta ao começo
Ao fundo do fim
De volta ao começo

Segundo Boas (2004) as experiências do indivíduo são “amplamente


determinadas pela cultura na qual ele vive2”. Ainda segundo o mesmo autor, “as
condições casuais das ocorrências culturais repousam sempre na interação entre
indivíduo e sociedade3”. De acordo com essas afirmações, compreendemos que
tal interação se apresenta cada vez mais complexa, uma vez que, as pessoas da
modernidade ou pós-modernidade, emersas num turbilhão de acontecimentos,
símbolos e informações, que permeiam vossas vidas, ao mesmo tempo em que
desejam conectar-se ao mundo, sentem a necessidade de afirmação da sua
identidade, por isso, buscam encontrar suas raízes ou se espelham em
determinados referenciais.

2
BOAS, F. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, 96.
3
Ibid., p. 107;
27

A incansável busca pelo conceito de cultura engendrada pela moderna


antropologia, a partir do século XIX, apesar do seu caráter etnocêntrico inicial,
evidencia essa necessidade de afirmação da identidade. Nessa perspectiva
compreendemos que a preocupação com o estudo sobre as rezadeiras de
Pojuca, enquanto procedimento que nos conduz à compreensão do
comportamento e da identidade de determinada sociedade, condiz efetivamente
com a importância atribuída aos estudos culturais.
Compreendemos que os estudos culturais nos exigem traçar um caminho
metodológico que nos permita abordar esse tema, considerando a complexidade
contida nele, bem como ter a capacidade de captar a subjetividade que é uma
das suas principais características, como o é toda e qualquer concepção cultural,
em qualquer parte do mundo.
A graduação em licenciatura nos proporcionou o contato com as idéias de
Paulo Freire (1982) e, a escolha da nossa conduta pedagógica foi profundamente
marcada por essas idéias, especialmente quando ele afirma que

A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que


a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade
da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem
dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por
sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o
texto e o contexto.4

Essas palavras de Freire (1982) nos fazem crer que a vivência das
diversas experiências é a mais significativa lição para qualquer ser humano. As
palavras ganham sentido real, na medida em que, traduzem sentimentos,
sensações, desejos, compreensões de uma experiência vivida.
Também, ao ler as palavras de Lênin presentes no texto de Minayo
“pensar a metodologia como a articulação entre conteúdos, pensamentos e a
existência5”, imediatamente nos remetem à mesma compreensão que a idéia
freiriana. Tal concepção nos faz crer que as nossas experiências e compreensão
de mundo, bem como dos nossos sujeitos sociais, são fundamentais no processo
de construção do conhecimento.
4
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três textos que se completam. 3. ed. São Paulo: Autores
Associados: Cortez, 1982. (Coleção Polêmicas do nosso tempo), p. 11.
5
MINAYO, Maria Cecília de Souza et al. (Org.) Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 2. ed. Rio de
Janeiro: Vozes, 1994, p. 16.
28

Consideramos que os modos de fazer, ver e de viver, memória, imaginário,


espaço, paisagens, história, identidade, crença... Enfim, tudo isso é muito
subjetivo e, dessa maneira, muito rico de signos e significados. Sem conceitos
unívocos, essas idéias, presentes e efetivadas de diferentes formas nas
sociedades e, conseqüentemente, no cotidiano das pessoas, nos intrigam e
desafiam ao esforço de interpretar coerentemente o que investigamos.
De acordo com Goldemberg (1999), “como a realidade social só aparece
sob a forma de como os indivíduos vêm este mundo, o meio mais adequado para
captar a realidade é aquele que propicia ao pesquisador ver o mundo através dos
olhos dos pesquisados”6. Essa afirmativa nos ajuda a compreender que o papel
do pesquisador pode perder sua importância e revelar-se estéril se não se
pautar, a priori, pelo olhar dos sujeitos sociais na base das suas observações e
conclusões. Isso nos faz crer que uma pesquisa social de qualidade só se revela
eficaz a partir do contato direto do pesquisador com os sujeitos sociais,
circunstância só possível se a pesquisa for realizada in loco.
Contudo, temos ciência de que nunca enxergaremos tais quais os sujeitos
sociais investigados, afinal, a subjetividade também nos envolve e todo o olhar
que lançamos sobre nossos sujeitos sociais já está previamente “contaminado”
por nossa concepção de mundo.
Segundo essa premissa, para realização da nossa pesquisa, avaliamos
como necessária uma metodologia que nos permita compreender o universo das
rezadeiras de Pojuca a partir do seu próprio olhar, dos significados que elas
atribuem ao que vêm, sentem, acreditam, criam e reproduzem. Ler para além do
que suas palavras dizem e assim, compreender, por exemplo, o que está por trás
de discursos como esse, de dona Laura (81 anos), quando questionada sobre o
motivo do uso das folhas no processo do benzimento. Em janeiro de 2010 ela
respondeu assim:

Não sei, mas você vê, a gente usa; você vê; qualquer
coisa que Jesus fez de cura, qualquer coisas que Jesus fez de
cura, ele curou o cego, ele usou remédio, não? Que quando
Jesus curou o cego, ele mandou ele cuspir no chão. Jesus
cuspiu no chão, fez a lama e passou na vista. Não foi um
remédio?7

6
GOLDEMBERG, Míriam. A Arte de Pesquisar. Rio de Janeiro, Record, 1999, p. 27.
7
Conversa realizada com dona Laura, 81 anos, em 22/01/2010.
29

Porém, em junho do mesmo ano, ela respondeu com as seguintes palavras:

Porque as folhas é que dá o sinal; que diz se as


pessoas estão doentes ou não. Se não tiver, agente pára, não
reza. Pelas folhas agente conhece se tem alguma doença, pela
oração. Todas as folhas, para tirar tem que pedir licença
(pausa). Todas as plantas tem um dono, para tirar tem que
pedir licença. Agente pede assim: Senhor, me dê licença para
tirar essas folhas aqui para cura dessa doença. Agente sabe
que tudo quanto é folha Jesus está presente.8

Percebemos na primeira resposta a preocupação em atribuir a Jesus o motivo


do uso das folhas, já a segunda resposta está dividida em duas partes, antes e
depois da pausa. Num primeiro momento ela fala do poder das plantas e dos seus
donos, parece falar de “outros” donos, porém depois de uma considerável pausa,
completou que é Jesus quem está presente nas folhas, retornando o curso do seu
discurso para a mesma perspectiva da primeira resposta. Nesse caso, o silêncio
presente na pausa da sua fala soa mais que as palavras ditas, pois provoca
inúmeras indagações.
John B. Thompson (1995) considera a que:

(...) na investigação social o objeto de nossas


investigações é, ele mesmo, um território pré-interpretado. O
mundo sócio-histórico não é apenas um campo-objeto que está
ali para ser observado; ele é também um campo-sujeito que é
construído, em parte, por sujeitos que, no curso rotineiro de
suas vidas quotidianas, estão constantemente preocupados em
compreender a si mesmos e aos outros, e em interpretar as
ações, falas e acontecimentos que se dão ao seu redor.9

Baseados nessa afirmação, nos damos conta de que o discurso da


hierarquia intelectual, no qual quem estuda detém o conhecimento e ocupa
posição superior aos demais, cai por terra; pois, quem enche os pesquisadores
de novidades, que afirmam ou negam suas hipóteses e antigas certezas são os
sujeitos sociais; no nosso caso as rezadeiras de Pojuca.
O perfil da presente pesquisa é determinado por essas concepções.
Assim, ao referimo-nos às rezadeiras de Pojuca a denominação dada a elas,
8
Conversa realizada com dona Laura, 81 anos, em 02/06/2010
9
THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna: Teoria social critica na era dos meios de comunicação de
massa. Rio de Janeiro: Vozes, 1995, p. 358.
30

diferente de objeto de pesquisa; depoentes ou informantes será sujeitos sociais,


uma vez que, na lógica da História Oral essas mulheres e suas histórias não
foram manipuladas nem postas à prova e sim consultadas, observadas,
entrevistadas e interpretadas; colaboradoras, agentes de um processo de
interpretação e construção de determinado conhecimento, afinal, ao serem
entrevistadas e observadas, essas mulheres também se colocaram a pensar
sobre suas vidas e seu ofício, como talvez não tivessem feito antes.
Já nas últimas visitas, dona Djão (74 anos) declarou-se decidida a
procurar alguém para ensinar como rezar; ela se deu conta da necessidade de
continuação desse saber.
A complexidade da temática abordada nessa pesquisa nos exigiu a
escolha de um caminho metodológico capaz de abarcá-la, sendo assim, optamos
pela Hermenêutica Profunda – HP, pois esta envolve tanto a abordagem
qualitativa, quanto a quantitativa, assim, de acordo com Minayo (1994): “O
conjunto dos dados quantitativos e qualitativos, porém, não se opõem. Ao
contrário, se complementam, pois a realidade abrangida por eles interage
dinamicamente, excluindo qualquer dicotomia”10.
Dessa forma, definimos o caminho metodológico começando pela revisão
bibliográfica, exigência primordial para qualquer tipo de pesquisa, com o
propósito de atender as abordagens das categorias de análise, a saber:
cotidiano, memória, identidade cultural e rezadeiras. É bem verdade que com o
andamento dos estudos, novas leituras se mostram necessária e outros autores
figuram no processo, assim como alguns dos já analisados são suprimidos da
discussão.
Em especial, para investigarmos o cotidiano das rezadeiras de Pojuca,
optamos pelo método da História Oral, com o processo interpretativo com base
na HP – Hermenêutica Profunda, referencial metodológico sugerido por
Thompson (1995). Esse enfoque é desenvolvido em três momentos distintos que
se completam:
A) Análise sócio-histórica (história oral), a qual o autor considera como
momento preliminar e indispensável da pesquisa, que tem como ponto de partida

10
MINAYO, Maria Cecília de Souza et al. (Org.) Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 2. ed. Rio de
Janeiro: Vozes, 1994, p. 22.
31

primordial a vida cotidiana dos sujeitos sociais, que ele chama de campo-sujeito-
objeto e tem como objetivo:

(...) reconstruir as condições sociais e históricas de


produção, circulação e recepção das formas simbólicas,
examinar as regras e convenções, as relações sociais e
instituições, e a distribuição de poder, recursos e oportunidades
em virtude das quais esses contextos constroem campos
diferenciados e socialmente estruturados.11

B) A análise formal ou discursiva, que se preocupa com a organização interna


das formas simbólicas, com suas características estruturais, seus padrões e
relações. Pode se desenvolver a partir da análise semiótica, a qual: “se centra nas
próprias formas simbólicas, e procura analisar suas características estruturais
internas, seus elementos constitutivos e inter-relações, integrando-os aos sistemas e
códigos dos quais eles fazem parte”12.
Pode se desenvolver também a partir da análise lingüística, que por sua vez,
apresenta diferentes formas de ser realizada, a partir da compreensão do sujeito
social ou campo-sujeito-objeto, conforme Thompson (1995), como análise da
conversação, análise sintática, análise argumentativa e ou análise da estrutura
narrativa, a qual escolhemos para desenvolvimento dessa etapa da presente
pesquisa, pois identificamos que os discursos das rezadeiras entrevistadas
apresentavam nuances bem diversas e em alguns aspectos até contrários diante de
um mesmo aspecto observado, especialmente ao que diz respeito a questão da
religiosidade.
Porém, ao aplicarmos a análise da estrutura narrativa no processo de análise
formal ou discursiva, segundo as orientações da HP, seguiremos a compreensão da
análise estrutural da narrativa, compreendida a partir das palavras de Todorov
(1996):

O objetivo de tal estudo nunca será a descrição de uma


obra concreta. A obra será sempre considerada como a
manifestação de uma estrutura abstrata, da qual ela é apenas
uma manifestação de uma estrutura abstrata, da qual ela é

11
THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna... Op. Cit. P. 369.
12
Ibid., p. 370;
32

apenas uma das realizações possíveis; o conhecimento dessa


estrutura será o verdadeiro objeto da análise estrutural.13

Segundo Todorov (1996), a análise estrutural da narrativa apresenta a


abordagem crítica, pois “terá sempre um caráter essencialmente teórico e não
descritivo”14. Nesse caso, compreendemos que para realização da análise
estrutural há a necessidade de um olhar interno às narrativas. Devemos observar
a narrativa a partir do que é dito e não a partir de conceituações externas. Assim,
“as obras literárias existentes aparecem como casos particulares realizados”, e
não imaginados ou pré-concebidos.
C) Por último a interpretação/ re-interpretação, que se desenvolve
baseada e a partir das duas primeiras. “Mas a interpretação implica um
movimento novo de pensamento, ela procede por síntese, por construção criativa
de possíveis significados15”.
Thompson (1995) ainda reforça:

O processo de interpretação, mediado pelos métodos


do enfoque da HP, é simultaneamente um processo de
reinterpretação. (...) as formas simbólicas que são o objeto de
interpretação são parte de um campo pré-interpretado, elas já
são interpretadas pelos sujeitos que constituem o mundo sócio-
histórico. Ao desenvolver uma interpretação que é medida
pelos métodos de enfoque da HP, estamos reinterpretando um
campo pré-interpretado; estamos projetando um significado
possível que pode divergir do significado construído pelos
sujeitos que constituem o mundo sócio-histórico.16

Por último, investimos na pesquisa documental, necessária para a coleta


de dados e informações sobre a história de Pojuca. Nessa fase fomos à busca de
documentos que nos ajudaram a conhecer e compor aspectos importantes da
história de Pojuca. Coletamos documentos da Paróquia de Pojuca, por
considerarmos que durante muitos séculos a Igreja Católica era a instituição que
tinha as maiores informações sobre a sociedade; além de alguns autores que
abordam a temática dos africanos no Recôncavo. Reconhecemos que essa
etapa poderia estar entre as primeiras atividades nesse processo da pesquisa,
13
TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. Tradução de Leila Perrone. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva.
1969, p. 80.
14
Id.
15
THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna... Op. Cit. p. 369
16
Ibid., 376.
33

porém, preferimos que as informações das rezadeiras conduzissem o caminho


para tais fontes.
Compreendido dessa forma, o caminho que percorremos para efetivação
da presente pesquisa é processual e se baseia na confluência dos métodos
apontados acima, com o propósito de imprimir fluência e qualidade ao estudo em
questão. Assim, a conjugação desses métodos determina e aparece nos
capítulos da dissertação, sem, necessariamente estarem dispostos na ordem
respectiva do estudo ou exclusivas na construção das idéias que aqui se
apresentam.
Como pode ser observado, esse primeiro capítulo O caminho teórico-
metodológico está dividido em duas partes: a primeira refere-se à escolha dos
métodos e da metodologia aplicada à essa pesquisa e a segunda parte refere-se
à construção das significações das categorias de análises bases para as
reflexões do tema em questão.
A segunda parte desse capítulo foi se desenhando a partir do momento em
que a idéia da pesquisa foi se configurando. É fruto da pesquisa bibliográfica, no
qual apresentamos reflexões em torno das categorias de análise que oferecem
as bases teóricas dessa dissertação, mas já traz nos seus discursos
compreensões advindas das entrevistas e observações.
Nessa segunda parte apresentamos discussões em torno da Identidade
Cultural, Memória e do Cotidiano. Nosso propósito não é perseguir conceitos e
sim discorrer a acerca das elaborações de significações das categorias de
análise, como identidade cultural, memória e cotidiano. Para tanto, apoiamo-nos
em teóricos como Hall (2005), Geertz (1989), Muniz Sodré (2005), Santana
(2004), Consorte (1999) e Eliade (2002) nas reflexões sobre cultura, na
perspectiva da concepção de Identidade Cultural; Maurice Halbwachs (1990),
Pollak (1992), Pierre Nora (1993), Thomson (1997) e Guarinello (1997), nas
discussões para a definição mais apropriada de Memória no contexto dessa
pesquisa e Lefebvre (1991), Agnes Heller (1992) e Michel Certeau (1999), no
processo de construção da significação de Cotidiano, dentre outros.
Sobre identidade cultural, o primeiro aspecto a ser considerado é que
partirmos da reflexão sobre a categoria cultura, a qual possui inúmeros conceitos,
por isso, partimos da idéia de cultura como uma “teia de significados” atestada
34

por Grretz (1989)17 e tendo como base o livro a Verdade seduzida: por um
conceito de cultura no Brasil, de Muniz Sodré (2005)18, mais a “A identidade
cultural na pós-modernidade” de Hall (2005)19 fomos cruzando com
conceituações feitas pelos outros autores já citados acima, o que nos permitiu
concluir a significação de Identidade Cultural enquanto um processo de
sentimento de pertencimento, como mais apropriada para a abordagem em
questão.
Por considerar a memória também como um elemento de resistência, a
construção da sua significação teve como pressuposto a memória conflitiva das
rezadeiras no processo de manutenção das suas crenças, seus saberes e
fazeres. Assim, optamos por teóricos que abordam a memória a partir dessa
compreensão, como Pollak (1989; 1992)20; de Pierre Nora (1993)21, embora
discordemos da sua idéia de que já não há memória, concordamos com a idéias
de lugares da memória,
De Maurice Halbwachs (1990)22 aderimos a sua concepção de Memória
Coletiva, quando referida à pequenas esferas, como família, grupos – a memória
coletiva “fixa sua atenção sobre o grupo23; porém, compreendendo a memória,
principalmente, enquanto individual, para a qual também nos apoiamos nas
reflexões de Thomson (1997)24
Autores como Heller (1992)25, Lefevbre (1991)26 e Certeau (1999)27
abordam o cotidiano por caminhos diferentes, mas é possível encontrar
confluência entre suas abordagens, especialmente, ao considerar a modernidade
como ponto de partida para a compreensão dessa categoria, o que nos permitiu

17
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.
18
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, 3ª
ed.
19
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
20
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento e silêncio. In: Estudos Históricos; Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3,
1989; POLLAK, Michel. Memória e identidade social. In: Estudos Históricos; Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10,
1992.
21
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares.. In: Projeto História. São Paulo: Brasil,
1993.
22
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
23
Ibid., p. 109.
24
THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a História Oral e as memórias.
In: Projeto História; São Paulo, n. 15. 1997.
25
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra, 1992, 4ª ed.
26
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática S/A, 1991.
27
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petropólis: Vozes, 1999.
35

ensaiar uma significação razoável para o tema e, a partir daí compreendermos


como se dá o dia-a-dia das rezadeiras nesse contexto.
Assim, situamos as abordagens de todos os teóricos adotados nesse
trabalho no mesmo período histórico – a modernidade ou pós-modernidade,
como defende Hall. Decisão que nos permitiu aferir uma incontestável afluência
entre suas considerações.
O segundo capítulo: A História de Pojuca nas memórias guardadas pelas
rezadeiras foi desenvolvido como a montagem de um quebra-cabeça, a partir das
informações fornecidas pelas rezadeiras e também por outros antigos moradores
da cidade, e, dessas informações também partimos em busca de dados
fornecidos por documentos oficiais na secretaria da Casa Paroquial de Pojuca,
também informações de pessoas no município de Catu, cidade a qual Pojuca
pertenceu, além de autores que abordam sobre a citada cidade em suas obras.
Tínhamos o propósito de também pesquisar no Arquivo Público Municipal.
Perdoem-me, se parece capricho, mas decidi pesquisar especificamente em
Pojuca, desvendar sua história presente nos seus próprios documentos, porém,
tive como obstáculo a impossibilidade de pesquisar no Arquivo Público Municipal,
pois não tive permissão de acesso ao citado logradouro.
Para realizar o terceiro capítulo: Rezadeiras: guardiãs da memória, além
da pesquisa bibliográfica, na qual consultamos autores como Câmara Cascudo
(1999), Elda Oliveira (1985) e Denilson dos Santos (2005), fomos à busca das
rezadeiras do município. Elaboramos um banco de dados com os nomes e
endereços dessas, além de calendário de visitas e entrevistas. Esse capítulo
ainda nos rendeu algumas reflexões sobre mito, com contribuição de Eliade
(2002)28, religiosidade popular, a partir das reflexões de Santos (2006)29 e dupla
pertença, a partir de Santana (2004)30 tendo como transversalidade a construção
social das rezadeiras.
O trabalho de campo teve inicio com conversas bem informais com
moradores da cidade sobre rezadeiras. As reações eram as mais diversas: uns

28
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 6ª ed, 2002.
29
SANTOS, Rafael Beondani dos. Martelo dos hereges: militarização de Santo Antonio no Brasil colonial.
Dissertação de Mestrado em História. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2006. Disponível em:
http://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert-2006_SANTOS_Rafael_Brondani_dos-S.pdf . Acessado em
25/06/2010.
30
SANTANA, Marise de. O legado ancestral africano na diáspora e o trabalho docente: desfricanizando para
cristianizar. Tese de Doutorado, São Paulo: PUC, 2004.
36

diziam que não existia mais rezadeiras, outros começavam a dar informações
onde eu encontraria, outros perguntavam se eu acreditava “nisso” e outros até se
colocavam à disposição para me levar até rezadeiras conhecidas suas.
Aceitamos de bom grado as solicitudes, mas fomos primeiramente ao
encontro das duas rezadeiras indicadas no I Censo Cultural da Bahia, dessas só
tivemos êxito com dona Zilda (72 anos), a outra, dona Joana Elisa, infelizmente,
não conseguimos localizar, nem por telefone, nem no endereço informados no I
Censo Cultural. Em seguida realizamos diversas visitas, tivemos contato inicial
com doze rezadeiras e ao longo da pesquisa fomos recebendo informações de
mais quinze rezadeiras.
Para estabelecermos os limites de rezadeiras que comporiam o quadro
dos sujeitos sociais dessa pesquisa, definimos como critérios a idade, a partir dos
setenta anos e a naturalidade, nascidas em Pojuca. Das doze entrevistadas no
primeiro momento, seis tinham idade a partir dos setenta anos, porém, apenas
quatro entre essas seis nasceram em Pojuca. Diante desse quadro,
consideramos como sujeitos sociais da nossa pesquisa, as quatro rezadeiras
nascidas em Pojuca, como idade a partir dos setenta anos, mas, ao longo da
pesquisa tivemos a oportunidade de conhecer dona Djão (74 anos), e, como ela
preenchia todos os critérios, além de disposição e muita informação interessante
para nos oferecer, também a incluímos nesse processo.
Então apresentamos como sujeitos sociais dessa pesquisa, cinco
rezadeiras, a saber: Aldir dos Santos Souza – dona Dida (70 anos), Jardelina
Moura Silva – dona Senhora (80 anos), Laura Alves Costa – dona Laura (81
anos), Maria José Cardoso Ferreira – dona Djão (74 anos) e Maria Zilda Moura
Nonato – dona Zilda (72 anos).
No período em que essas mulheres que nos contaram histórias, falaram
das suas vidas, nos apresentaram muitas folhas, declamaram rezas e nos
permitiram observar suas benzenções no momento em que atendiam as
pessoas; tivemos a oportunidade de penetrar nos seus espaços, perceber e
conhecer a simbologia em todo o seu contexto e nos dedicamos à interpretá-las,
pois:
De acordo com Thompson (1995):
37

O enfoque da HP deve aceitar e levar em consideração


as maneiras em que as formas simbólicas são interpretadas
pelos sujeitos que constituem o campo-sujeito-objeto. Em
outras palavras, a hermenêutica da vida quotidiana é um ponto
de partida primordial e inevitável do enfoque da HP. Por
conseguinte, o enfoque da HP deve se basear, o quanto
possível, sobre uma elucidação das maneiras como as formas
simbólicas são interpretadas e compreendidas pelas pessoas
que as produzem e as recebem nos discursos de suas vidas
quotidianas, este momento etnográfico é um estágio preliminar
indispensável ao enfoque da HP.31

Então, tanto o terceiro capítulo, quanto as considerações finais: novas


indagações para o tema foram os principais momentos elaborados a partir da HP,
pois a investigação em torno das rezadeiras foi realizada através do processo
etnográfico. É como Thompson32 chama a análise sócio-histórica, o qual tem por
objetivo reconstruir as condições sociais e históricas de produção, circulação e
recepção das formas simbólicas. Esse momento pode ser desenvolvido em
vários pontos a partir da natureza do sujeito social estudado. De acordo com os
aspectos apontados por Thompson, o que corresponde à natureza do estudo das
rezadeiras refere-se ao espaço-temporais.

(...) podemos identificar e descrever as situações


espaço-temporais específicas em que as formas simbólicas são
produzidas e recebidas. As formas simbólicas são produzidas
(faladas, narradas, inscritas) e recebidas (vistas, ouvidas, lidas)
por pesoas situadas em locais específicos, agindo e reagindo a
tempos particulares e a locais especiais, e a reconstrução
desses ambientes é uma parte importante da análise sócio-
histórica.33

Já a análise formal ou discursiva refere-se à compreensão de que objetos


e expressões que circulam nos campos sociais são também construções
simbólicas complexas que apresentam uma estrutura articulada. Thompson34.
Tais formas simbólicas são os produtos e ações situadas que estão baseadas em
regras, recursos e etc., disponíveis ao produtor; mas elas são também algo mais,
pois elas são construções simbólicas complexas, através das quais algo é
expresso ou dito.

31
THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna... Op. Cit. 363;
32
Ibid., p. 366
33
THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna... Op. Cit. 366;
34
Ibid., p. 366; 368;
38

Essa fase apresenta-se muito importante, pois o universo das rezadeiras é


completamente envolto de símbolos e significados. Porém, embora de extrema
relevância no processo da pesquisa qualitativa, tal forma de análise só tem
sentido se realizada no conjunto dos momentos que compõem a HP.
O último momento componente da HP: interpretação/ re-interpretação, é
esclarecido pelo autor como processo construído a partir dos dois primeiros
momentos: a análise sócio-histórica e análise formal ou discursiva, porém diverso
destes. Momento fundamental tanto na construção do quarto capítulo como nas
considerações finais, pois ambos se constituíram através da interpretação do que
foi colhido em documentos, entrevistas e observações.
Thompson35 afirma que a interpretação implica um movimento novo de
pensamento, ela procede por síntese, por construção criativa de possíveis
significados... Essa concepção nos remete compreensão que também temos
sobre a tríade “tese – antítese – síntese” método da dialética marxista –
hegeliana. Dessa maneira, compreendemos que a interpretação/reinterpretação
nos permite, a partir do que tivemos a oportunidade de observar e apreender
durante o processo de pesquisa de campo, confrontar e avaliar o que se
apresenta como verdade e, a partir daí, construirmos novas idéias ou novos
conhecimentos. Assim, a metodologia da HP como um todo, é um processo
dialético.
Esse momento exige grande criticidade e também coerência, pois as pré-
intrepretações, as interpretações e a reinterpretação podem ser conflituosas.
Assim, Thompson adverte:

Ao desenvolver uma interpretação que é mediada pelos


métodos da HP, estamos reinterpretando um campo pré-
interpretado; estamos projetando um significado possível que
pode divergir do significado construído pelos sujeitos que
constituem o mundo sócio-histórico.36

Sendo assim, desenvolvemos o processo de interpretação/reinterpretação,


a partir da preocupação com a coerência, para que ainda que a nossa
interpretação entre em conflito com o que as rezadeiras proclamem como
verdade e concepção de mundo, não prejudiquemos nossa pesquisa pelo receio
35
Ibid., p. 375;
36
Ibid., p. 376;
39

de decepcioná-las. No entanto, devemos respeitar seus pontos de vista e


considerá-los como fundamentais para a compreensão do processo que está
sendo estudado, pois, Thompson (1995) nos mostra que:

(...) a justificação de uma interpretação pressupõe um


princípio de não-imposição e que, dentro dos amplos contornos
estabelecidos por esse princípio, podemos desenvolver
argumentações dentro de contextos específicos, a fim de
defender ou criticar, uma interpretação específica, mostrar que
ela é plausível ou implausível, justificável ou injustificável, à luz
da evidência e das razões que podem ser trazidos dentro
desse contexto da investigação.37

Essa lógica se apresentou com notoriedade nessa pesquisa quando


observamos os discursos das rezadeiras a cerca do ser católica. Podemos
identificar falas muito diferentes e, no entanto, todas elas acabaram apontando
para um mesmo prisma de compreensão. Enquanto afirmavam ser católicas, era
nas próprias argumentações para respaldar suas afirmativas que encontramos os
elementos conflituosos e contrários a tal afirmação.
Thompson (1995) esclarece essa situação nas seguintes palavras:

É essa possibilidade de um conflito de interpretações,


uma divergência entre uma interpretação de superfície e uma
de profundidade, entre pré-interpretação e reinterpretação, que
cria o espaço metodológico para o que eu descreveria como o
potencial crítico da interpretação...38

Podemos concluir que a Hermenêutica Profunda impõe a nossa pesquisa


uma postura crítica, porém, verdadeiramente fundamentada nos textos e também
nos contextos que estamos investigando. Essa premissa nos fez identificar
contrastes entre o cotidiano e as falas das rezadeiras, e, desses contrastes
podemos identificar a presença de símbolos e significados da cultura indígena e
africana nos seus mitos e ritos, que reafirmam a cultura cristã negando em seus
discursos as culturas indígenas e africanas, mas em suas práticas reafirmando-
as.

37
Ibid., p. 412;

38
Ibid., p. 336;
40

As técnicas utilizadas para realização desse trabalho em conformidade


com a metodologia adotada foram: coleta de dados, fundamentais no processo
da pesquisa documental, na composição da história de Pojuca; a observação,
importante para compreensão do que era dito e também do não dito pelos
sujeitos sociais. Além disso, empregamos as entrevistas.
Optamos, no entanto, pela entrevista desenvolvida a partir de dois
aspectos: primeiro direcionamos algumas perguntas gerais como nome,
endereço, naturalidade, profissão, formação, estado civil, idade e religião, além
do pedido para que recitassem algumas das orações repetidas durante o ritual da
benzeção, depois seguimos com a entrevista não estruturada, pois atentamos
para não direcionar as respostas das rezadeiras no sentido das nossas
expectativas, além de considerarmos pertinente atentar para o que elas avaliam
como importante para ser dito sobre seu cotidiano, saberes e crenças. Aspecto
que nos rendeu muitos elementos para interpretação.
Essa pesquisa nos fez perceber que a linguagem, explorada nas suas
mais diversas formas, pode ser um fundamental instrumento para a construção
de um contínuo, gradual, mas eficaz processo de preservação da memória, bem
como para a manutenção dos laços que nos identificam e, consequentemente,
fortalecem e se constituem como sutil resistência. É nessa perspectiva que
iniciamos as reflexões em torno das categorias de análise que dão bases às
nossas interpretações/ reinterpretações das idéias, símbolos, discursos e
sentidos coletados e identificados no decorrer desse trabalho.
Segundo Lefebvre “A reserva de poder da linguagem nunca se esgota”.39
Palavras muito pertinentes para um tópico destinado ao estudo conceitual de
determinadas categorias, que tem como pretensão tecer significados. E é
justamente a linguagem que dá sentido e nomes às coisas, que verbaliza as idéias e
permite que essas sejam comunicadas.
Partindo dessa concepção, compreendemos que a linguagem é o
elemento fundamental para a construção e ou desconstrução de qualquer idéia,
mais que isso, em se tratando da presente pesquisa, a linguagem, viva e
dinâmica, dialética e concreta (de acordo com a sua função social) e,

39
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. Op. Cit.; p. 9;
41

principalmente, subjetiva é também o ponto de convergência entre a tríade que


aqui se apresenta: identidade cultural, memória e cotidiano.
Admitimos que, a priori, quando pensamos o tema dessa pesquisa, apesar
de acreditar na relação entre os termos dados, não desconfiávamos que essa
relação era tão profunda. São, pois, intrínsecas, assim como o mar, que não
seria mar se não fossem os rios, apesar das suas distintas peculiaridades. Pois,
um depende do outro para que sejam, de fato, eles mesmos; para que, de fato,
tenham sentido.
Essa conjunção entre os três termos é fundamental para o estudo da
memória africana de Pojuca, a partir do cotidiano das rezadeiras; pois nos
oferece argumentos para o olhar mais apurado da realidade que buscamos
desvendar, dentro do contexto em que se encontra cada uma das rezadeiras
investigadas, e assim, como numa troca mútua, tanto as abordagens dos
diferentes autores vão nos permitir identificar os determinados conceitos entre os
sujeitos sociais; como, a partir da análise, interpretação e re-interpretação dos
seus discursos e fazeres, saberes, poderemos tecer novas significações ou
aspectos para identidade cultural, memória e cotidiano.

1.2 Identidade cultural: tecendo significados

Quem teve a oportunidade de viver no meio rural ou longe dos grandes


centros urbanos, ou numa casa com quintal e não tem nenhuma relação com
algum tipo de planta ou erva? Possibilidade praticamente impossível. As plantas
fazem parte da nossa vida, nos alimentam, nos acolhem e confortam com suas
sombras, nos curam... Mas, de acordo com as experiências vividas, cada pessoa
desenvolve uma relação diferente com as plantas. As rezadeiras, por exemplo,
imediatamente, vêem nas plantas, potencial poder de cura. Dona Zilda40, uma
das rezadeiras dessa pesquisa, deixa isso bem evidente, quando profere: “as
folhas são atraentes”. Dona Laura41 também nos faz compreender dessa
maneira, quando diz: “Deus deixou as folhas foi para curar, para rezar...”

40
Conversa com dona Zilda, 72 anos, em 05/05/2010.
41
Conversa com dona Laura, 81 anos, em 25/10/2010.
42

Isso por que o nosso olhar perante o mundo é determinado por nossas
experiências de vida vividas ou aprendidas a partir das experiências dos mais
velhos. Assim, no dia-a-dia, muitas vezes fazemos coisas que não sabemos o
porquê nem nunca nos preocupamos em saber, apenas fazemos porque “é
assim que se faz”. Quando perguntamos a dona Senhora42 porque ela prefere
rezar no quintal, ela respondeu: “por que não sei, sempre fiz assim”.
Sodré (2005) esclarece esse comportamento comum entre os praticantes
das religiões de matriz africana dos dias atuais:

(...) no ritual negro de hoje (dos terreiros da Bahia, do


Norte, do Rio, aos quintais dos subúrbios paulistas), nem
sempre se conhecem bem os fundamentos (isto é, a ordem
originária dos textos, das liturgias), mas a comunidade se forma
em torno do ato concreto de realização do culto.43

Podemos ir além dessa observação e acrescentar que também nos


quartinhos de santos, nos quintais não só dos subúrbios paulistas e mesmo em
algumas práticas cotidianas, preceitos44 e ritos são preservados, pois repetidos,
ainda que sem consciência dos seus fundamentos de origem. Assim a sabedoria
africana e ou afro-brasileira resiste, evidenciando a heterogeneidade cultural da
sociedade brasileira.
Então, o que para nós (afro-brasileiros) parece ser “normal” ou
“corriqueiro”, para pessoas que não passaram por nossas experiências, tais
coisas podem parecer absurdas. Isso porque, como afirma Geertz, a cultura é
como uma “teia de significados”45. Não temos como sair dela, por mais que
queiramos. Nosso olhar para determinada situação ou coisa, inevitavelmente,
será determinado pela nossa maneira de ver o mundo, pelos valores que nos
envolvem e dão sentido às coisas.
Acreditamos que esse é o primeiro passo para pensarmos cultura na
possibilidade de compreensão do diferente, por isso, povos e culturas diferentes;
mas nunca melhores ou piores, adiantados ou atrasados, modernos ou
primitivos; apenas diferentes.

42
Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 05/05/2010.
43
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p.137;
44
Preceito, para as rezadeiras está relacionado a obrigações do candomblé. Dona Dida, ao se referir ao caruru
que sua mãe fazia porque teve filhos trigêmeos esclareceu: “mas não era de preceito, não”.
45
GEERTZ, C. A interpretação das culturas... Op. Cit.; p. 15;
43

No entanto, reconhecemos que o mundo moderno tem feito severas


imposições para as pessoas. O mercado define as regras, o comportamento e os
valores. Utiliza-se da moda para definir padrões, da religião para definir o que é
certo e o que é errado, das leis para justificar a dominação de uns poucos sobre
ou outros. Utiliza-se da televisão para divulgar suas verdades e seduzir
consumidores. É nesse contexto que devemos pensar a cultura. Culturas que
estão esfaceladas, povos que entre si, não se conhecem, identidades confusas!
Sobre isso Hall (2005), ressalta:

Quanto mais a vida social se torna medida pelo


mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens
internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de
comunicação globalizantes interligados, mais as identidades se
tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares,
histórias e tradições específicos e parecem “flutuar livremente”.
Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades
(cada qual nos fazendo apelos a diferentes partes de nós),
dentre os quais parece possível fazer uma escolha.46

Por outro lado, o autor admite tendências contraditórias dentro da própria


globalização (modernidade) e, considera a possibilidade de resistência à essa,
forjada pelas identidades locais:

As identidades nacionais e outras identidades “locais” ou


particularistas estão sendo reforçadas pela resistência à
globalização.47

Sendo assim, ainda que reconheçamos o efeito opressor da globalização


ou da modernidade48, não podemos considerar tal situação como força infalível,
pois, ou conscientemente ou como uma mera forma de defesa, as pessoas,
grupos e ou comunidades reagem a esse tipo de opressão. Não é à toa que as
identidades locais ou particularistas, como o autor nomina, estão se re-
conhecendo, re-encontrando, tendo como princípio a resistência.

46
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Op. Cit.; p.75;
47
Ibid., p. 69;
48
Embora os diferentes autores apresentem conceituações bem definidas para cada termo, todos, ao referirem-se
a tanto à globalização quanto à modernidade, geralmente consideram o mesmo período e as mesmas
características e conseqüências para ambos. Assim, para efeito dessa pesquisa, considerando as abordagens de
autores como Sodré (2005) e Hall (2005), dentre outros, ainda que globalização e modernidade não sejam,
necessariamente, a mesma coisa, são aqui referências para as mesmas características do mundo atual.
44

Um sério estudo da história dos africanos no Brasil nos faz saber, que
posturas de resistências diante de situações de extrema opressão, foram
largamente adotadas pelo povo negro, escravizado, especialmente no que se
refere às imposições culturais, aos valores que foram impostos aos africanos
pela sociedade cristã católica, como afirma Sodré (2005):

Hoje se sabe que, em plena vigência da escravatura –


com seus desmoralizantes castigos corporais, suas sangrentas
intervenções armadas, suas táticas de assimilação e cooptação
ideológicas (concessões de pequenos privilégios,
oportunidades de ascensão social para os mestiços etc.) –, os
negros desenvolviam formas paralelas de organização social.49

A afirmação de Sodré (2005) nos permite alegar que o comportamento de


resistência a partir da cultura, é uma potencial arma dos povos oprimidos,
especialmente por que cada povo constrói sua resistência a partir da
peculiaridade da sua cultura original.
Mas como construir resistência com base na cultura se vivenciamos
tempos de fragmentação por um lado e por outro generalização dos
comportamentos, valores e crenças, orquestrados pelos ditames da globalização
ou modernidade?
O próprio Sodré (2005), com exemplos da resistência dos negros (nagô)
na Bahia, nos ajuda a responder tal questionamento, quando afirma que: (...) “no
mesmo campo ideológico cristão do colonizador, fixaram-se as organizações
hierárquicas, formas religiosas, concepções estéticas, relações míticas, músicas,
costumes, ritos característicos dos diversos grupos negros”50.
Em outras palavras, podemos dizer que mesmo dentro do contexto de
opressão, de imposição de uma nova ordem cultural, um povo pode manter ou
re-inventar a sua cultura e resistir a partir dela. Para ser mais coerente, é
justamente a cultura que atua como elemento de resistência. É na sua cultura
que o povo busca inspiração, respostas para os desafios que lhes são postos. No
entanto, diante da realidade de repressão e esfacelamento de um povo, essa re-
invenção só se torna possível se esse povo, de acordo com as palavras de

49
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p. 90;
50
Id.
45

Sodré, consegue estabelecer os “elementos básicos de sua organização


simbólica de origem” 51.
É possível identificar esse aspecto, quando observamos o comportamento
de dona Senhora. Todas as vezes que se refere aos seus conhecimentos, às
suas crenças sempre cita a sua mãe, como uma necessidade de referendar o
que diz: “é que eu via minha mãe falar”52. É bem verdade que não se trata da
busca do elemento de origem, nos termos que Sodré sugere, mas há uma busca
da origem, através da sua maior referência – a mãe.
Também dona Dida busca amparar sua prática e seu comportamento de
razadeira nos ensinamentos de sua mãe: “as pessoas mais antigas do que eu,
fala; minha mãe, que rezava também, ela passava para mim isso, né? Não
poderia pegar folhas na beira da estrada, onde passava caixão”53. Dona Dida se
vale também das palavras de um antigo padre o qual lhe ensinou muita coisa: “o
padre Manoelito me ensinou que as rezas são os salmos populares, como
antigamente não tinha salmo, as pessoas rezavam essas rezas”54. Imaginamos
que nesse caso, poderíamos dizer, que, no que se refere aos seus aprendizados,
a figura do padre, substitui a figura do seu pai, já que esse não lhe ensinou muita
coisa.
E é justamente na origem – na cosmogonia da origem – de determinado
povo, que é possível estabelecer os laços identitários, a identidade cultural. Essa
compreensão nos faz crer que cultura não é uma palavra solta, ou um termo
genérico capaz de definir qualquer povo, por mais diferente que seja. Talvez por
isso, a conceituação desse termo seja tão complexa e controversa.
Mas, como já foi dito anteriormente, esse capítulo não tem o propósito de
definir conceitos. Nosso propósito é tecer significados, isso quer dizer que o que
estamos propondo é uma interpretação do sentido que os termos dados
adquirem quando relacionados à vivência das rezadeiras, assim, teremos a
significação destes sem o risco de ter que racionalizar ao extremo aquilo que é,
inevitavelmente, subjetivo.

51
Id.
52
Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 05/05/2010.
53
Conversa com dona Dida, 70 anos, em 14/04/2010.
54
Conversa com dona Dida, 70 anos, em 10/03/2009.
46

Peter Burke (2005)55, que também concorda com as abordagens de


Certeau, nos ajuda a explicar o sentido desse propósito, quando fala da
“recepção”. Isso quer dizer que o sentido e o significado das mensagens que são
comunicadas por qualquer transmissor e também em qualquer tipo de linguagem
são recebidos de acordo com a compreensão do receptor.
Não foi por acaso que optamos por iniciar a discussão em torno de uma
significação de cultura aderindo à idéia de “uma teia de significados”. Ainda que
não exista um conceito unívoco de cultura, não se pode negar que cada povo e
ou cada grupo vive e se relaciona com as pessoas, com o seu espaço,
determinado pelos valores, pelas experiências, pelos símbolos e mitos, que o
reportam e dão sentido a sua origem, a sua existência.
No entanto, diante dos tantos processos de transformação, fragmentação
e complexificação das culturas dos mais variados grupos étnicos e sociedades
espalhados pelo mundo, provocados pelas as guerras de conquistas, pelas
colonizações, unificações de nações e, mais recentemente pelo processo de
globalização, especialmente, com o gigantesco avanço das tecnologias de
comunicação e informação, impõe-se uma inquestionável dificuldade em
determinar a cultura de certos povos ou sociedades.
Segundo Hall (2005), na modernidade, são as culturas nacionais as
responsáveis em representar determinado povo, ou melhor, determinados povos
que foram “unificados” em um dado memento. Para ele:

As culturas nacionais são uma forma distintivamente


moderna (...). As diferenças regionais e étnicas foram
gradualmente sendo colocadas, de forma subordinada, sob
aquilo que Gellner chama de “teto político” do estado-nação,
que se tornou, assim, uma fonte poderosa de significados para
as identidades culturais.56

Ele diz ainda:

A formação de uma cultura nacional contribuiu para criar


padrões de alfabetização universais, generalizou uma única
língua vernacular como meio dominante de comunicação em
toda nação, criou uma cultura homogênea e manteve
instituições culturais nacionais, como, por exemplo, um sistema

55
BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2005. p. 104.
56
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade... Op. Cit., p. 49;
47

educacional nacional. Dessa e de outras formas a cultura


nacional se tornou uma característica chave da industrialização
e um dispositivo da modernidade.57

Para Hall58, a cultura nacional é diferente de identidade nacional, porém, a


primeira é que determina a segunda. De acordo com o autor, a identidade
nacional não é inata ao ser humano, nós a formamos e transformamos no
“interior das representações”. Ele afirma que a nação não é apenas os limites
políticos, é, pois, algo que produz sentidos, que cria sentimento de identidade e
lealdade entre os seus.
Com essa compreensão de identidade nacional, a impressão que se tem é
de que não há como superar as imposições do Estado, do mercado ou das elites
que dominam as sociedades. Sensação que não se altera ao conhecermos o
conceito de campo, sub-campo e indústria cultural, abordados por Sodré (2005),
que afirma:

O problema da diversidade das culturas se esclarece


por meio da diversidade dos campos, isto é, dos espaços
globais da ideologia que estabelecem valores diferentes para a
atividade simbólica. O campo estipula as regras dos códigos
através dos quais passam os discursos que uma classe ou uma
etnia produzem num dado momento de sua história. (SODRÉ,
2005: 55).

No entanto, essa visão do autor está relacionada a um olhar ainda anterior


à modernidade, pois para classificar o comportamento cultural em tempos
modernos, Sodré (2005) argumenta em torno da idéia de subcampos culturais.
De acordo com essa compreensão, ele diz que “o advento da Modernidade
instaura no Ocidente a possibilidade de subcampos culturais, isto é, zonas de
especialização de códigos, manejados por instituições diversificadas...”59. Para
ele, “a ação do subcampo cultural se exerce, portanto, por meio de uma
‘censura’, cujos mecanismos podem ou não ser explicitados institucionalmente”
60
.

57
Id.
58
Ibid., p. 48;
59
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p. 56.
60
Ibid.; p.57.
48

O autor nos apresenta dois subcampos culturais: a cultura elevada, que


corresponde e determina a cultura da elite, pautada na lógica de produção e a
indústria cultural ou produção de massa, que representa a ação do mercado e é
pautada pela lógica do consumo.
Nessa perspectiva apresentada por Sodré, o sujeito das classes populares
ou minorias é excluído quando refere-se à cultura elevada, pois:

A luta do subcampo pela autonomia produtiva leva-o a


censurar as demandas externas, a questionar as formas
expressivas vigentes e a discriminar os receptores, na medida
em que o discurso produzido se hermetiza, acessível apenas à
camada social dotada de recursos para manejar o código de
deciframento.61

Já em referência a indústria cultural, o sujeito das classes populares ou


minorias aparece apenas como um consumidor, levado pelas imposições da
indústria de massa a aceitar seus produtos também ideológicos, ou seja, não são
sujeitos:

(...) nele a forma produtiva, ao contrário da cultura


elevada, é acionada pela motivação econômica do retorno de
capital, do lucro. A produção dita de “massa” apóia-se na
rentabilidade do capital investido, o que a leva a buscar um
público consumidor socialmente diversificado (heterogêneo,
disperso e anônimo) e a faz dependente (heterônomia) do
mercado.62

Só a classe média é apresentada como opositora às formas da cultura


elevada e da indústria cultural:

Estas ocorrem quando frações da classe média – por


meio de mecanismos de discriminação e seleção de públicos
no interior da cultura de massas – participam de estratégias de
distinções estéticas, tradicionalmente reservadas aos saberes
da cultura elevada. Ou então quando tentam criar, sob a égide
da indústria cultural, lugares de oposição aos mecanismos de
legitimação (a censura) da cultura elevada – o fenômeno da
contracultura é uma oposição desse tipo.63

61
Ibid., p. 59;
62
Ibid., p. 66;
63
Ibid., p. 69;
49

Num primeiro momento essa percepção causa certa estranheza, mas, com
o aprofundamento da leitura, é possível compreender que ambos os autores
identificam um conflito eminente entre diferentes comportamentos culturais, que
ocorrem ao mesmo tempo e no mesmo espaço e, a partir desses conflitos é
possível perceber que outros atores e outros comportamentos emergem
reivindicando e/ou reinventando suas identidades.
Sodré argumenta sobre da disputa entre o subcampo da cultura elevada e
o subcampo da indústria cultural, que provocado por esse último, dá origem ao
pós-modernismo:

A essa mudança de estatuto do saber, os sociólogos


tem chamado pós-modernismo – uma condição ou uma era em
que busca seus critérios de legitimação, ainda oscilando entre
os da ideologia clássica e os da “falta de sentido e de verdade”
da nova ideologia da operacionalidade absoluta, assentada na
grande organização, cujos efeitos de totalidade (informacionais,
tecnológicos, econômicos etc.) permeiam a sociedade
capitalista pós-moderna.64

Em outro momento Sodré ainda afirma que:

A cultura, entendida como relacionamento com o real e,


portanto, como extermínio dos termos finalísticos do sentido,
das posições ideológicas do sujeito65, implica excesso (não
excedente, que é resto acumulado), consumação,
reversibilidade. Não é nenhum sistema, nenhuma estrutura,
mas o sedutor vazio que nos indetermina.66

Também Hall aponta o pós-modernismo como fruto da disputa entre as


identidades nacionais e a globalização:

As identidades nacionais permanecem fortes,


especialmente com respeito a coisas como direitos legais e de
cidadania, mas as identidades locais, regionais e comunitárias
têm se tornado mais importantes. Colocadas acima do nível da
cultura nacional, as identificações “globais” começam a
deslocar e, algumas vezes, a apagar, as identidades
nacionais.67

64
Ibid., p. 70;
65
Grifo nosso.
66
Ibid., p. 88;
67
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade... Op. Cit.; p. 73;
50

Verifiquemos que esse momento, é possível, ainda que de forma


subtendida, compreender que outras vozes ou outros atores, ainda que
contrariando a lógica do pós-modernismo, emergem nesse cenário, atuando na
luta por identidades étnicas, particulares, comunitárias ou locais.
Observemos que Hall (2005), com um breve questionamento, já sinaliza
que a cultura nacional, apesar de todos os esforços e todas as formas (violência
bélica, perseguição religiosa, imposição de novas línguas...) para unificar a
nação, se mostra ineficaz, pois busca juntar diferentes etnias, grupos, classes
sociais numa mesma representação identitária:

Para dizer de forma simples: não importa quão


diferentes seus membros possam ser em termo de classe,
gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa
identidade cultural, para representá-los todos como
pertencendo à mesma e grande família nacional. Mas seria a
identidade nacional uma identidade unificadora desse tipo, uma
identidade que anula e subordina a diferença cultural?68

Imaginamos as culturas nacionais ou os campos como um caldeirão de


diversos grupos étnicos e raças diferentes, tendo que se enquadrar num ethos
forjado para mantê-los como um só povo, sempre ameaçando explodir em
conflitos étnicos, raciais e sociais. Inevitavelmente, movimentos, silenciosos ou
com ar de revoltas, se espalham pelas nações, onde as minorias resistem às
imposições da cultura elevada e ou da indústria cultural.
Cabe ressaltar, no entanto, que esses movimentos não são uma
peculiaridade do tempo atual, da pós-modernidade. As formas são diferentes, as
inspirações ou provocações também são outras, pois, de acordo com Sodré
(2005), “A cultura, movimento do sentido, relacionamento com o real, tem de lidar
com as determinações geradas num dado espaço social e num tempo histórico
preciso”69. Isso nos permite afirmar que todo povo submetido ou subjugado, em
qualquer tempo histórico, forjou formas de resistência.
A cultura nacional brasileira, por exemplo, conforme podemos observar
nas palavras de Sodré, desde o seu primórdio, é uma especial representação
desse caldeirão cultural:

68
Ibid., p. 59;
69
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... p. 81;
51

Como se sabe, a formação da sociedade brasileira,


iniciada no século XVI, foi um processo de agrupamento, num
vasto território a se conquistar, de elementos americanos
(indígenas), europeus (os colonizadores portugueses) e
africanos (escravos negros, trazidos principalmente da costa
ocidental da África).70

71
Com um olhar muito diferente da “visão indiferenciada do humano” , da
antropologia do século XIX, o qual inaugura o preconceito racial do europeu
frente aos outros povos, compreendemos que essa situação nos faz perceber
uma inquestionável dificuldade em apontar a cultura desse ou daquele grupo e
ou sociedade. Também esses se vêm fragmentados, e, se fragmentados,
inevitavelmente fragilizados, necessitam recompor suas memórias, seus mitos,
suas origens.
É o que Hall nos afirma nas palavras abaixo:

Algumas vezes isso encontra uma correspondência num


recuo, entre as próprias comunidades comunitárias, a
identidades mais defensivas, em resposta à experiência do
racismo cultural e de exclusão. Tais estratégias incluem a re-
identificação com as culturas de origem (no Caribe, na Índia,
em Bangladesh, no Paquistão); a construção de fortes contra-
etnias – como na identificação simbólica da segunda geração
da juventude afro-caribenha, através dos temas e motivos do
rastafarianismo, com sua origem e herança africana...72

A escravização dos negros africanos no Brasil, também provocou nestes,


desde o inicio, uma necessidade de defesa e resistência, que se pautou
principalmente na preservação das suas origens, ainda que sob a influência das
relações entre as diferentes etnias negras, os brancos, os mestiços e também
entre os indígenas. As palavras de Sodré (2005) são elucidativas nessa questão:

A cosmogonia e os rituais nagô não se implantaram no


Brasil exatamente como existiam na África. Houve aqui uma
síntese operada sob o vasto panteão dos orixás africanos,
assim como modificações que só o trabalho etnográfico pode
dar conta. Em outras palavras, a ordem original (africana) foi
reposta, sofrendo alterações em função das relações entre

70
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p. 89;
71
Ibid., p. 28;
72
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade... Op. Cit.; p. 85;
52

negros e brancos, entre mito e religião, mas também entre


negros e mulatos, e entre negros de etnias distintas...73

Em outra perspectiva, Laraia (2008), afirma que:

A participação do indivíduo em sua cultura é sempre


limitada; nenhuma pessoa é capaz de participar de todos os
elementos de sua cultura. Este fato é tão verdadeiro nas
sociedades complexas com um alto grau de especialização,
quanto nas simples, onde a especialização refere-se apenas às
determinadas pelas diferenças de sexo e de idade74

Há controvérsias diante dessa compreensão, pois, ao adotar a lógica da


“teia de significados”, ao contrário de Laraia (2008), acreditamos que, numa dada
sociedade, mesmo quando há a interdição da participação de certos segmentos
sociais para algumas atividades, ritos, celebrações ou outros, ainda assim,
aqueles que são proibidos de participar, apesar de parecer contraditório,
participam sim, pois estão desempenhando o seu papel (o de não participar de
determinado aspecto ou ação), ocupando o seu espaço no referido grupo ou
sociedade.
Essa argumentação só ganha sentido se for observada diante de uma
compreensão de cultura baseada na idéia de cultura nacional ou na idéia de
campo e subcampos culturais, nas quais há submissão de aspectos culturais de
povos distintos em nome de uma unidade nacional ou da imposição ideológica de
uma etnia ou classe social em detrimento dos outros ou ainda diante das
imposições da indústria cultural respectivamente. No entanto, não é essa a
compreensão de cultura que determina essa pesquisa, ela apenas aparece
nesse trabalho como parâmetro para ajudar a compreender o cenário em que se
apresenta a necessidade constante de identificação cultural a partir do
sentimento de pertencimento, especialmente dos afro-brasileiros.
Nessa perspectiva, podemos nos perguntar, por exemplo, como um povo
como o brasileiro, formado a partir de tantas matizes étnicas, consegue criar um
referencial de identidade. E imediatamente, nos veremos diante de diferentes
concepções do ser brasileiro, desde as diferenças da língua portuguesa falada

73
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p. 99;
74
LARAIA, Roque de Barros. Cultura um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 22ª Ed; 2008, p. 80.
53

nos diferentes estados brasileiros às crenças, concepções religiosas e aos


fenótipos humanos encontrados por aqui.
Numa visão geral, se perguntarmos a um brasileiro sobre a formação do
universo, esse, automaticamente vai responder conforme relata a tradição cristã,
porém, se perguntarmos a um índio sobre a criação do mundo para o seu povo,
como perguntamos à Otto Payayá75 – índio da nação payayá, da região da
Chapada Diamantina, mas que reside há dez anos em Pojuca – ele vai falar do
grande caldeirão de onde saíram todas as formas de vida. Se fizer essa mesma
pergunta à um adepto do candomblé, esse irá falar do ser supremo, dos orixás e
da responsabilidade de cada um desses na criação do mundo. Assim, apesar de
todos os esforços da unificação cultural dos povos que compõem o Brasil, apesar
da formação de certas simbioses de símbolos e valores, as memórias de suas
origens ainda são latentes.
Até mesmo entre os afro-brasileiros, que tiveram que re-criar nessas terras
seu mito de origem, quando nos referimos à religiosidade, é possível identificar
peculiaridades que identificam diferentes grupos étnicos que foram trazidos da
África para o Brasil, como podemos constatar nas palavras de Bastide (2001):

Os candomblés pertencem a “nações” diversas e


perpetuam, portanto, tradições diferentes: angola, congo jeje
(isto é euê), nagô (termo com que os franceses designavam
todos os negros de fala ioruba, da Costa dos Escravos), queto
ijexá. É possível distinguir essas “nações” umas das outras
pela maneira de tocar o tambor (seja com a mão, seja com
varetas), pela música, pelo idioma dos cânticos, pelas vestes
litúrgicas, algumas vezes pelos nomes das divindades, e enfim
por certos traços do ritual.76

As pessoas vivem a cultura a partir da sua realidade e é justamente na


realidade em que estão inseridas que conseguem compreender o mundo a sua
volta. Ainda que num mesmo país ou sociedade, detalhes lhes escapem; porém,
essa é a situação que pode permitir às pessoas desenvolverem formas
alternativas de organização. É possível incidir novos significados aos símbolos e
construir novos valores, redimensionar espaços e, assim, transformar
gradativamente a realidade em que se encontra.

75
Conversa com o índio Otto Payayá, 49 anos, em 20/07/2009.
76
BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia: rito nagô, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, 29.
54

Atualmente a palavra que melhor expressa esse cenário e que tem


provocado muitos discursos é diversidade. O Brasil é o país da diversidade!
Frase muito repetida ultimamente, porém, essa diversidade, se por um lado, é
apresentada como sinônimo de riqueza cultural, de reconhecimento da
resistência dos povos contra as ordens estabelecidas do estado e das elites, por
outro, também o discurso da diversidade – é o discurso da “democracia racial”,
que aliena – é transformado em mercadoria, especialmente para alimentar a
indústria do turismo.
Assim muitas características nossas, especialmente dos afro-brasileiros,
são caricaturadas e ou desvirtuadas para atrair o turista (consumidor de
costumes e culturas exóticas) e isso é muito sedutor. Um de nossos sujeitos
sociais, por exemplo, dona Zilda, se entusiasma ao relatar que reza até
estrangeiros, suíços e alemães. “Rezo até por telefone”77.
Cabe ressaltar, no entanto, que o discurso em torno da diversidade não é
algo do século XXI, como geralmente fazem parecer, e que preocupações em
torno dele já aparecem na Bahia, desde a década de 1950, como podemos
verificar através das palavras de Santana (2004):

Na década de 50, por iniciativa do educador Anísio


Teixeira, então Secretário de Educação e Saúde do governo do
Estado da Bahia, o programa de Pesquisas Sociais, Estado da
Bahia – Columbia University do qual participou, promoveu o
desenvolvimento de estudos de comunidades, precisamente
com o objetivo de fornecerem subsídios para a formulação de
diretrizes para o trabalho daquela secretaria.78

Porém, para que a diversidade cultural não passe de mero discurso


mercadológico – do mercado do turismo ou de cooptação de lideranças –, todas
as ações para ser, de fato, força de resistência num processo de preservação e
ou reinvenção do que identifica (valores, crenças, símbolos, saberes...) os grupos
e ou povos, só são eficazes se baseadas na busca da origem. Não é por acaso
que todos os povos possuem seus mitos de origem, que, segundo Eliade (2001)
“relata de que modo algo foi produzido e começou a ser”79. Ele também informa

77
Conversa com dona Zilda, 72 anos, em 03/2009.
78
SANTANA, Marise de. O legado ancestral africano na diáspora e o trabalho docente... Op. Cit.; p. 52;
79
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade... ... Op. Cit.; p. 11;
55

que “a principal função do mito consiste em revelar os modelos exemplares de


todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o
casamento, quanto o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria”.80.
É provável que a busca pelo mito de origem seja provocada pelo
sentimento de pertencimento, que uma vez despertado pode ter como
conseqüência o encontro com a identidade cultural de determinado grupo. Assim,
como afirma Santana (2004) “os grupos dependem da manutenção das suas
fronteiras para reafirmar suas identidades”81. Tal afirmação reforça a idéia de que
mesmo dentro do contexto da cultura nacional, para se sustentar resistente, os
grupos necessitam manter suas fronteiras ou buscá-las, defini-las ou redefini-las.
Podemos comprovar esse comportamento nas palavras de dona Senhora:

(...) Ta lá meu quartinho; quando eu me sinto ruim aqui,


eu me pico, quando chego lá no quarto do meu santo... Aqui
tudo é crente e lá... Eu vendi... Eu só tinha uma vaquinha, essa
vaquinha eu vendi e fiz o quarto do meu santo, que eu tenho
uma casinha, quando eu chego, lavo, limpo, rezo, acendo uma
vela e deixo lá...82

Essa fala de dona Senhora é bastante provocativa. A idéia do quartinho do


santo pode ser entendida de várias maneiras. Num primeiro momento, uma vez
que evocada para ilustrar as palavras de Santana (2004), podemos interpretá-lo
como um espaço, necessário para definição de fronteiras, limite. Fronteiras essas
com o firme propósito de afastá-la (dona Senhora) dos “crentes”, ao tempo em
que reafirma a sua identificação com o candomblé. Assim, podemos imaginar
esse quartinho também como uma representação do terreiro, espaço sagrado, do
tempo em que ela era feliz: “Agora eu gostava do bichinho! No fim foi chegando
filho, não tinha tempo, ???, Não perdia, cochilava , daqui a pouco eu levantava
sambava, , dançava candomblé, dancei muito candomblé”83.
Segundo Sodré (2005)84, o terreiro é guardião do axé (força vital) e do auô
(segredo). É matéria e antimatéria, é lugar de irradiação de intensidades e
possibilidades de reversibilização para a sociedade global. Como limite (fronteira)
é uma resistência.
80
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade... ... Op. Cit.; p. 13;
81
SANTANA, Marise de. O legado ancestral africano na diáspora e o trabalho docente... Op. Cit.; p. 38;
82
Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 05/05/2010;
83
Id.
84
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p. 125;
56

O quartinho de dona Senhora, pode representar então a re-significação


dos saberes da cultura africana, conforme podemos compreender através das
palavras de Santana (2004):

Para tanto se faz necessário não esquecer que a


criação dos Terreiros, no século XIX, se deu para preservar os
saberes da cultura africana, mas com a repressão da
colonização cristã, esses saberes tiveram que ser (re)
significados no imaginário dos africanos e de seus
descendentes, para serem redistribuídos como saberes
populares.85

Como espaço para preservar os saberes da cultura africana, os terreiros


foram duramente perseguidos, muitos foram destruídos e impedidos de
funcionar. Essa ação da elite branca no Brasil provocou muitas resistências, mas
também medo e, consequentemente, negação pública do culto afro-brasileiro
pelos próprios negros.
Contudo, ainda que publicamente houvesse omissão ou negação do culto
aos Orixás, estratégias criadas antes mesmo da criação dos terreiros persistiram
e ainda persistem no comportamento dos negros brasileiros.
Tais evidências nos permitem perceber que a construção da identidade
cultural das rezadeiras de Pojuca se pauta no que Sodré (2005) nomina de
reposição, quando se mantém inatas as formas essenciais de diferença simbólica
e dentro dessas se relaciona com seus elementos tradicionais e aqueles
produzidos a partir com a relação com o novo contexto.
No entanto, vale ressaltar, que as identificações existem,
independentemente da vontade das pessoas, o que, então, não significa,
necessariamente, uma força de resistência. As pessoas podem se reconhecer
numa determinada identidade e, no entanto, não se sentir ou admitir pertencente
àquela identidade. Não desenvolvem o sentimento de pertencimento. Dona Dida
(70 anos), por exemplo, quando relatou sobre o caruru que sua mãe oferecia
para os santos Crispim, Crispiniano e Doú, por causa dos filhos trigêmeos,
apesar de exemplificar um dos preceitos86 seguidos por sua mãe, nega com
veemência qualquer tipo de relação com o candomblé. Eis a sua fala:

85
SANTANA, Marise de. O legado ancestral africano na diáspora e o trabalho docente... Op. Cit.; p. 41;
86
As rezadeiras se referem a preceito como obrigação de candomblé.
57

Porque o caruru de minha mãe era muito... Era muito


assim, ela diz que era... São, era três, era três filhos, e ela só
fazia com as galinhas, que eram fêmeas: três frangas virgens.
Ainda tinha esse negócio de franga virgem; ela tinha que matar
aquelas três frangas, agora depois das frangas, matava
também outras galinhas, e ai fazia esse caruru, ela fazia um
caruru muito grande mesmo, de mil quiabos, ou não sei
quantos quiabos, e eu não pude fazer mais, minha família
cresceu, tenho uma família grande, e ai meus filhos não
quiseram fazer e eu não pude fazer, tenho aqui as
imagenzinhas de minha mãe, de São Crispim, dela era São
Crispim Crispiniano e Doú, mas não são de candomblé não.87

Os elementos que aparecem nessa fala de dona Dida por si só falam.


Servem para ilustrar muitas coisas, mas nesse momento basta nos atermos à
negação que aparece pelo fato de ela não dar continuidade ao que sua mãe fazia
– algo exigido nas religiões de matriz africana – bem como no final da explicação,
quando apresenta as imagens, mas diz que não tem nada a ver com o
candomblé. As informações sobre o caruru que sua mãe oferecia por ter três
filhos gêmeos deixam evidente a inevitável identificação com suas raízes
africanas, no entanto, diante das duas formas de negação que aparecem nessa
exposição, percebemos que o sentimento de pertencimento é negado. Vale
lembrar que a sua mãe também era rezadeira e foi quem lhe ensinou as
primeiras rezas.
Entretanto, vale ressaltar que dona Dida (70 anos), é uma senhora de
setenta anos e muito católica. Vai para a igreja quase todos os dias e participa de
todas as missas durante a semana. É membro do Apostolado da Oração e do
coral. Leva unção dos enfermos aos doentes e faz exéquias88 nos velórios. Uma
mulher comprometida com a fé cristã católica e que busca no próprio cristianismo
respaldo para seu ofício de rezadeira. Segundo ela, um antigo padre de Pojuca,
padre Manoelito, havia dito que as rezas eram os salmos populares que os pais
ensinavam para os filhos.
Também encontramos uma fala bastante contraditória nas palavras de
dona Zilda (72 anos). Quando questionada sobre a sua relação com os orixás ou
outra entidade dos cultos afro-brasileiros, ela diz não, mas no momento em que

87
Conversa com dona Dida, 70 anos, em 04/05/2010.
88
Exéquias são cerimônias de honras fúnebres.
58

justifica por que não, deixa transparecer como água cristalina o seu
pertencimento.

Não, essas coisas não, a minha reza é somente com a


luz, flores e alfazema e água, viu? Eu não tenho entidade,viu?
Não boto mesa, eu não, não... Só às vezes, assim, uma
simpatia. Tem gente, uma simpatiazinha às vezes eu faço, e dá
certo, dá certo, a maioria das pessoas dizem que se dá bem.
(...)
Simpatia eu compro um capim, um bocado de coisa,
usa isso aqui mesmo, vela, (ruído) mais um bocado de coisa,
mas não é nada de candomblé, né? Candomblé eu nem gosto,
acho bonito, acho bonito os trajes, acho bonito as danças, as
músicas... Eu acho bonito, eu acho bonito, mas eu tenho medo.
Não que eu tenha medo, mas é que eu sinto mal quando eu
chego (pausa), quando eu chego perto mesmo assim, eu sinto
mal...89

E ela tem consciência disso. Porque será então, que a primeira vista ela
nega esse pertencimento? Vejamos o que ela continua dizendo para justificar o
medo que sente do candomblé:

Eu não vou por que eu acho que não me garanto lá


dentro do quarto. Eu tenho medo de não me garantir, ai lá eu
não vou (pausa). Eu não vou não, tenho medo, eu não gosto,
tenho medo, ficar agarrado por lá e fazer as coisas que eu não
quero... Não, não vou não, Eu vou é em Candeias... Domingo
agora, que passou, eu fui prá Nova Soures, um encontro do
Sagrado Coração, da igreja, da católica, em encontro do
Sagrado Coração de Jesus. Lá prá Nossa Senhora da
Conceição, eu vou prá São Roque, viu? No dia 16 eu vou pra
Salvador, visitar a Igreja do Bonfim, a Igreja de Santa Luzia, a
Irma Dulce... Depois vou pra Igreja da Conceição, Nossa
Senhora da Conceição, e depois eu vou pra Mãe Rainha, lá no
Imbui, a gente faz esse percurso, não sabe? Todo dia três de
agosto eu vou pra Bom Jesus da Lapa, já estou com a
passagem aqui nas mãos, para ir pra Bom Jesus da Lapa...90

Embora dona Zilda (72 anos) ache o candomblé bonito, com as danças, as
roupas, ela se nega participar das festas. Acreditamos que pelo fato de saber e
sentir que tem um forte pertencimento – as sensações que tem são evidentes –
então ela teme ter que assumir um orixá, ter que “fazer a cabeça” – o que ela diz

89
Conversa com dona Zilda, 72 anos, em 05/05/2010
90
Id.
59

não querer – e, como se para assegurar que isso não vai acontecer ela prefere
não ir às festas do candomblé e busca refúgio na igreja católica.
Como mais um exemplo dessa constatação, relembramos a explicação de
dona Laura sobre a necessidade do pedido de licença para colher as folhas a
serem utilizadas na benzeção, quando ela nos disse que todas as folhas têm um
dono e, depois de certa pausa, revelou que o dono das folhas é Jesus. É a Ele
que se pede licença.91
Para compreendermos melhor esse exemplo, precisamos saber que dona
Laura (81 anos) é católica, membro da Pastoral da Criança há 22 anos, já ajudou
a organizar três comunidades e tem um discurso bem católico, para justificar o
seu ofício de rezadeira:

Eu vejo isso descrente de reza de magia, de caboclo, eu


vejo isso como uma coisa assim que agente usa na mente da
gente, sobre a mente da gente. Eu não creio que Jesus esteja
misturado com essas coisas (orixás, caboclos), eu sei que o
trabalho de Jesus é um só, é curar e salvar nós. (dona Laura,
81 anos)

Tanto no comportamento e dona Dida (70 anos), no de dona Zilda (71


anos), quanto no de dona Dida evidencia-se a face do duplo pertencimento. Não
apenas elas, mas quase todas as rezadeiras entrevistadas professam a fé
católica, exceto dona Bió (72 anos), que hoje é cristã da Primeira Igreja Batista.
Contudo, todas elas vivem a experiência do duplo pertencimento, ainda que nem
sempre reconheçam com as palavras, porém suas práticas não deixam dúvidas.
Dona Senhora, por exemplo, não nega seu duplo pertencimento, ainda
que em alguns momentos seu discurso revele mais uma pertença e noutros
momentos outra. Primeiro, quando questionada sobre sua devoção por Santa
Bárbara, ela afirma que é do candomblé e diz que já dançou muito nas festas,
nos terreiros: “Ela é de candomblé mesmo, o santo que eu festejo é de
candomblé, já dancei no candomblé, já fui muito no candomblé, já perdi muitas
noites, hoje não posso mais, vou fazer o que, mas não disfarço não, eu gosto de
candomblé mesmo!92”

91
Conversa com dona Laura, 81 anos, em 02/06/2010.
92
Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 04/05/2010.
60

Cita inclusive o terreiro de São Bartolomeu, em Salvador. Depois, quando


questionada sobre seus saberes enquanto rezadeira, se receitava algum banho,
ela disse que não, que não aprendeu sobre isso. Mas, quando estava concluindo
a entrevista nesse dia, ela nos sugeriu que quando acordasse desanimada,
sentindo-se mal, que fizesse um banho com vassourinha e tomasse da cabeça
aos pés.
Noutro momento ela fala das suas discussões com o marido (falecido),
que, como católico, membro da Irmandade do Sagrado Coração de Jesus, a
repreendia pelo fato de pertencer ao candomblé: “Não vou à igreja? Não faço
batizado e tudo? O que tem isso?”93
O duplo pertencimento é evidente nos quatro exemplos. Contudo, devido o
que Santana (2004) chama de cristianização94, esse duplo pertencimento
manifesta-se nas vidas dessas mulheres em forma de conflito, no qual o discurso
cristão católico atua como censura frente às práticas e saberes de origem
africana.
Sobre o duplo pertencimento, também chamado de dupla militância
religiosa por Brekenbrock (2007) podemos entender: “se trata de fato de duas
militâncias distintas entre si. Uma não tem nada a ver com a outra, a não ser no
fator de se tratar de uma só pessoa”95.
No entanto essa dupla pertença ou duplo pertencimento ou dupla
militância religiosa, não pode ser pensada apenas com respeito às pessoas que
tem atuação efetiva nas religiões, ela pode ser pensada também no contexto das
experiências e tradições passadas por gerações, ainda que as pessoas não
assumam professar esse ou aquele credo, mas os elementos constitutivos das
diferentes religiões, inevitavelmente, influenciam na forma de ver o mundo e de
se relacionar com todas as coisas e pessoas ao seu redor.
No fragmento abaixo a professora Marise de Santana (2004), estabelece a
diferença básica entre sincretismo e dupla pertença:

Assim, ao falar sobre nossos pesquisados, preferimos


nos referir à ‘dupla pertença’ ao invés de sincretismo, pois,

93
Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 04/05/2010.
94
O mito-cristão se move na sociedade educando para que indivíduos se tornem racionais lógicos e percam a
dimensão das emoções, da intuição, da imaginação, enfim, criatividade. (SANTANA, 2004: 126);
95
BERKENBROCK, Volney J. E experiência dos Orixás: um estudo sobre a experiência religiosa no
candomblé. Petrópolis, Vozes, 3ª ed, 2007, p. 343.
61

estamos tratando da relação das pessoas com diferentes


universos religiosos e não do processo cultural que leva este
nome.96

No entanto, como já averiguamos nos fragmentos de suas falas, as


rezadeiras, mesmo aquelas que professam a fé católica, mas não atuam
efetivamente na igreja, identificam claramente as fronteiras que existem entre o culto
cristão católico e os de matriz africana, ainda que também não tenham uma vivência
orgânica no candomblé ou em outra denominação afro-religiosa. Isso é evidente até
mesmo quando negam qualquer possibilidade de influência do segundo sobre suas
ações, memórias e saberes. Por isso, também nós optamos pela terminologia do
duplo pertencimento, para denominar o comportamento das rezadeiras pesquisadas.
Contudo, vale ressaltar, que uma das rezadeiras, dona Laura católica,
membro da Pastoral da Criança, foi a mais contundente ao negar qualquer influência
dos cultos afro-brasileiros no seu ofício de rezadeira. Para todas as perguntas as
respostas eram sempre a partir de alguma estorinha envolvendo Jesus – nada
partindo dos evangelhos – ou então atribuía tudo à fé em Deus e à força da mente:
“tem que ter fé. O que cura é a fé e a mente da pessoa. Tem que ter a fé e a mente
positiva. Se não tiver a mente positiva não vale nada”97.
De certa forma, ela já demonstrava alguns elementos da influência do legado
africano no seu ofício de rezadeira, mas não se deixava trair pelas palavras. Porém,
quando observamos ela rezar uma “paciente” de erisipela, ela aproveitou para
explicar o processo e algo me chamou a atenção, quando ela explicou que quem
fuma, vai fumando e jogando a fumaça para cima, no momento em que estiver
rezando. Essa fumaça passou a ser a ponta do novelo, que vai ser desvendado no
capítulo específico sobre rezadeiras.
Esse comportamento de dona Laura nos despertou para a necessidade de,
para efeito dessa pesquisa, além de considerar o aspecto da dupla pertença,
considerar também, imprescindívelmente, o sincretismo, muito presente nos versos
das orações declamadas durante uma bezenção.
Nessa pesquisa conseguimos identificar que o legado africano está presente
no município de Pojuca através das rezadeiras, a maioria delas recebeu esse legado

96
SANTANA, Marise de. O legado ancestral africano na diáspora e o trabalho docente: Op. Cit.; p. 43;
97
Conversa com dona Laura, 81 anos, em 22/01/2010
62

dos seus pais, contudo, ainda que seja repetido e afirmado por essas mulheres
através de seus saberes, especialmente a benzenção, elas sofrem um conflito entre
assumir e omitir suas origens. Por isso percebemos que há a preocupação com a
preservação do ofício de rezadeira, mas tal preocupação não se traduz em esforços
para garantir que seus saberes sejam preservados, provavelmente por conta do
processo de cristianização, já mencionado acima.
Entendemos o legado africano conforme Santana (2004) nos apresenta:

Estamos entendendo o Legado Ancestral Africano como


um conjunto de saberes de uma matriz não ocidental que
transcende o espaço dos Terreiros, pois se encontra como
sobrevivências africanas nestas cidades (...). Apesar de
acharmos que Nina Rodrigues (1935), trata dos elementos do
legado africano com uma carga excessivamente grande de
preconceitos, ele nos oferece riquezas de detalhes sobre esse
legado e nos diz: pedras, águas, vegetais, são todos elementos
sagrados para os africanos e os seus descendentes. Ele
descreve elementos de crenças africanas em Terreiros e
espaços sagrados da cidade de São Francisco do Conde,
contribuindo para que, trilhando suas indicações, em nossa
coleta de dados, encontrássemos muitas dessas
remanescências.98

Aqui nos interessa especialmente, identificarmos os elementos que compõe o


legado africano, não especificamente por sua existência, pois todas as pessoas
podem ter acesso a esses elementos, que são oferecidos pela natureza, mas
principalmente pelo significado, pelo sentido que esses elementos têm para as
práticas e para a vida das rezadeiras. Pois, de acordo com Eliade (2002):

É então a imagem em si, enquanto conjunto de


significações, o que é verdadeira, e não uma única das suas
significações ou um único dos seus inúmeros planos de
referências. Traduzir uma Imagem na sua terminologia
concreta, reduzindo-a a um único dos seus planos referenciais,
é pior que mutilá-la, anulá-la como instrumento de
conhecimento. 99

Ainda sobre os símbolos Eliade (2002: 174) profere: “É a presença das


Imagens e dos símbolos que conserva as culturas “abertas”: a partir de qualquer

98
SANTANA, Marise de. O legado ancestral africano na diáspora e o trabalho docente: Op. Cit.; p. 24;
99
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade... Op. Cit.; p. 12.
63

cultura, tanto a australiana quanto a ateniense, as situações-limite do homem são


perfeitamente reveladas graças aos símbolos que sustentam essas culturas”100.
Tais palavras nos permitem compreender como os símbolos são
imprescindíveis no processo de preservação do legado africano. Percebemos que os
símbolos nos falam tão forte, que, mesmo quando revestido por uma outra capa,
ainda assim deixam transparecer e por isso conseguem conservar seu significado,
sua significação mítica, que está para além da história.
Nessa perspectiva, o que podemos afirmar sobre cultura é que ela existe
independentemente da nossa vontade. Ela não existe para uma só pessoa; só um
grupo, uma sociedade ou uma comunidade tem condições de viver uma
determinada cultura de ser moldado por essa e moldá-la todos os dias. No entanto,
diante da atualidade, para compreender sua cultura e dela, construir resistência, há
a necessidade de que as pessoas, primeiro se identifiquem nela e a partir daí
desenvolvam o sentimento de pertencimento, o que não é fácil, se consideramos a
discurso cristão cada vez mais contundente, agora com o crescimento das igrejas
protestantes e com a “pentencostalização”101 da igreja católica em Pojuca.
Porém, mesmo quando esse sentimento é negado ou omitido,
inevitavelmente, diante de uma dada situação de opressão, ele emerge, invadindo a
mente e o cotidiano das pessoas através da memória.

Memória: sentimento de pertencimento

Acima, já tivemos a oportunidade de abordar sobre o contexto do mundo pós-


moderno ou globalizado em que nos situamos, a partir de autores como Sodré
(2005) e Hall (2005). Assim como eles, enxergamos o mundo a partir de uma
infinidade de referenciais, símbolos, mercadorias e informações (que também são
mercadorias), que provocam, dentre outros, uma sensação de aceleração do tempo

100
ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.b
101
Movimento iniciado na Igreja Católica na década de 60 do século passado, que tem como princípio a “volta
ao espírito” a "inspiração pessoal do Espírito Santo", a exemplo das igrejas “protestantes”. Esse movimento é
chamado de Renovação Carismática Católica – RCC e tem ganhado muito espaço também midiático,
especialmente com a propagação de alguns padres como Fábio de Melo e Marcelo Rossi.
64

e o distanciamento das pessoas do seu espaço e do seu grupo, ainda que


continuem convivendo no mesmo local.
Outro autor também falando da modernidade, consegue expressar muito bem
essas sensações:

O turbilhão da vida moderna tem sido alimentado por


muitas fontes: grandes descobertas nas ciências físicas, com a
mudança da nossa imagem do universo e do lugar que
ocupamos nele; a industrialização da produção, que transforma
conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes
humanos e destrói os antigos, acelera o próprio ritmo de vida,
gera novas formas de poder corporativo e de luta de classes;
descomunal explosão demográfica, que penaliza milhões de
pessoas arrancadas do seu habitat ancestral, empurrando-as
pelos caminhos do mundo em direção a novas vidas; rápido e
muitas vezes catastrófico crescimento urbano; sistemas de
comunicação de massa, dinâmicos em seu desenvolvimento,
que embrulham e amarram, no mesmo pacote, os mais
variados indivíduos e sociedades...102

Nesse fragmento, Berman (2007) consegue imprimir e transmitir ao leitor a


sensação de velocidade e mudanças constantes provocadas pelo mundo
globalizado e assim faz despertar inúmeras preocupações diante do nosso futuro.
É interessante como nossas preocupações geralmente giram em torno do futuro
e não do presente, independente da situação que estejamos experimentando.
Mais interessante ainda é perceber que ao projetarmos nossas atenções para o
futuro, inevitavelmente, nos lançamos para o passado. Vamos à busca de
referências; é como se procurássemos nos ancorar no passado para não
ficarmos à deriva, sem perspectivas, sem rumo.
É possível perceber essa característica na fala de dona Senhora (80
anos), quando conta sobre uma das suas idas ao médico:

Esses filhos meu, quando eu tô rezando, bem que


podiam pedir assim: minha mãe, eu quero aprender, pra
quando a senhora morrer. Não, diz: ah, eu não quero saber
esse negócio de reza não! Ah, isso aqui não é o médico! Eu
quando estava com essa perna inchada, tava com dois dias
com a perna... Mãe, não quer ir no médico?! Menina, isso é
reumatismo, num é coisa de médico, não. Então a senhora fica
ai... Depois, com muita coisa, eu fui no médico; quando eu
chego lá o médico disse que era pressão! Eu disse: doutor, o

102
BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido se desmancha no ar. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007, p. 25.
65

senhor já viu pressão inchar o pé? Ele disse mais é. Ah, eu


não sabia que pressão inchava o pé não, para mim era
reumatismo. Essa conversa de reumatismo dona Senhora? É o
que ouvi minha mãe falar, que quando a gente tinha a junta
inchada era reumatismo, agora o senhor diz que é não sei o
quê, eu não sei não!103

Observemos que dona Senhora tem certa dificuldade para acreditar nos
diagnósticos dos médicos, pois esses contrariam o que ela aprendeu com sua
mãe. Seus filhos, por sua vez, não dão valor ao seu ofício e a sua sabedoria, não
têm interesse em aprender e se deixam levar pela conversa do médico, que pode
contribuir para que fique ainda mais doente, pois dizem que “é uma coisa e é
outra.” Em outro memento ela deixa ainda mais clara essa preocupação:

É antigamente... Minha mãe, quando minha mãe tinha


boa saúde, que trabalhava pra me criar, eu não via minha mãe
dizer que sentia nada. Depois, quando ela apareceu doente,
doente, doente... Foi no médico teve de operar, tirou o mioma,
ai pronto, perdeu a saúde, perdeu a saúde, ficou um século
doente. Eu tenho coisa de médico, eu não gosto não!104

Ou seja, para ela, os diagnósticos dos médicos, acabam contribuindo para


que as pessoas fiquem mais doentes ainda. Os “remédios de médico” provocam
tantos outros problemas. Assim, se os seus filhos se interessassem em aprender
a rezar, evitariam as idas ao médico e não ficariam tão doentes. Nas suas
memórias, pouco se ficava doente, mas agora, para tudo as pessoas recorrem ao
médico e não são saudáveis. Foram vários os exemplos que dona Senhora
utilizou para expressar sua aversão aos médicos e sua confiança nos remédios
que aprendeu como rezadeira.
De certa forma, para dona Senhora, no seu passado ficou o tempo bom,
da saúde, da festa “já dancei no candomblé, já fui muito no candomblé, já perdi
muitas noites, hoje não posso mais, vou fazer o quê?105” É confortável para ela
se lembrar do seu passado. Esse passado nada mais é do que suas origens.
É provável que para todas as pessoas, suas origens estejam em algum
momento do passado, por isso vão à busca dos mitos que justificam vossa

103
Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 04/05/2010;
104
Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 04/05/2010;
105
Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 05/05/2010;
66

existência, que explicam o mundo, que abrandam suas angústias. Esse passado,
muitas vezes está para além da sua existência; aliás, nossa existência, de fato, é
muito anterior a nós mesmos. Não é incomum sentirmos saudades ou medo de
algo, de um tempo que, necessariamente não vivemos, mas sabemos que
existiu, que aconteceu e sentimos suas sensações... Mas, o passado, passado,
só pode nos socorrer ou até mesmo nos atormentar se revivificado e a única via
para essa revivificação é a memória.
A memória, assim como assinala Guarinello (1995):

Memória é uma palavra que nos veio do latim,


preservando, em português, os dois sentidos fundamentais que
possuía na origem. Memória, em primeiro lugar, é algo que não
está em lugar algum, por que ocupa e preenche todos os
lugares. É um substrato, repositório dos produtos de nosso
passado que sobrevivem no presente, condição mesma do
tempo presente. É a trama dos vestígios oriundos de diferentes
épocas e condições de produção, que constitui a espessura
mesma daquilo que existe, como cristalização e permanência
do que não morreu, daquilo que nos liga aos mortos na medida
em que sobrevive no presente.106

Temos clareza de que não existe apenas uma definição para memória, no
entanto, a definição elaborada por Guarinello (1995) é muito interessante e nos
oferece elementos para análises, especialmente quando confrontada com
abordagens de outros autores como Halbwachs (2006), Nora (1993), Pollak
(1989; 1992) e também Thomson (1997). Desse confronto de idéias pretendemos
estabelecer significados para o tema, que nos permitam interpretar o
comportamento das rezadeiras frente suas memórias.
De imediato, podemos confrontar a idéia de lugares da memória. Enquanto
Guarinello (1995) afirma que a memória não está em lugar algum, pois ocupa
todos os lugares, Nora (1993) sentencia: “Fala-se tanto de memória porque ela
não existe mais”107. Para ele, existem lugares de memória.
Num primeiro momento pode parecer que as abordagens referidas aqui
são contrárias, mas ao analisarmos com mais precisão, percebemos que também
Nora, concebe a memória como preenchendo todos os espaços: “a memória se
enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto...” Entretanto,

106
GUARINELLO, Norberto Luiz. Memória coletiva e história científica... Op. Cit.; p. 187;
107
NORA, Pierre. Entre memória e história... Op. Cit.; p. 7;
67

ele problematiza a ação da história como cristalizadora da memória em alguns


lugares – os lugares de memória – Isso devido à realidade da sociedade
moderna, “sociedade do esquecimento”108. Não há aqui, mais necessidade de
repetir as características desse tempo, contudo, cabe lembrar a idéia de campo e
subcampo cultural e cultura nacional, abordadas por Sodré (2005) e Hall (2005)
respectivamente, como estratégias do Estado de uniformização dos povos de
uma nação. Nesse caso, para Nora (1993) a história também é utilizada como um
dos elementos para garantir tal uniformização:

A memória emerge de um grupo que ela une, o que


quer dizer, como Halbwachs o fez, que há tantas memórias
quantos grupos existem; que ela é, por natureza, múltipla e
desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao
contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma
vocação para o universal.109

Mas, ao mesmo tempo que Nora percebe uma pluralidade de memórias


numa sociedade, ele mesmo sentencia sua morte, considerando que “Há lugares
de memória porque não há mais meios de memória”110. O autor considera que a
memória “verdadeira” só existe nas sociedades “ditas primitivas”, enquanto nas
modernas sociedades o que existe é a história.
Ainda seguindo essa lógica, Nora (1993) afirma:

O que nós chamamos de memória é, de fato, a


constituição gigantesca e vertiginosa do estoque material
daquilo que nos é impossível lembrar, repertório insondável
daquilo que poderíamos ter necessidade de nos lembrar. A
“memória de papel” (...)111

Para respaldar a nossa argumentação de que há um certo equívoco nas


palavras de Nora, evocamos as argumentações de Pollak.

O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao


esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil
impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo
tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças

108
Ibid., p.9;
109
NORA, Pierre. Entre memória e história... Op. Cit.; p. 9;
110
Ibid., p. 7;
111
Ibid., p. 715;
68

dissindentes nas redes familiares e de amizades, esperando a


hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e
ideológicas.112

Pollak (1989), assim como Nora (1993) reconhece que há um processo de


opressão e dominação, sobre determinados grupos sociais, ao ponto de impor
um longo silencia das suas memórias, no entanto, essas memórias não deixam
de existir, e, de acordo com o autor, continuam sendo transmitidas nas redes
familiares e de amigos. É provável que esse processo de transmissão silenciosa
alimente a memória de uma força extraordinária, ao ponto de emergir quando for
oportuno ao grupo.
É bem provável que as memórias das rezadeiras de Pojuca estão nesse
estágio, ou que a memória africana de Pojuca esteja passando por esse
processo de silenciamento, mas, com possibilidade de emergir quando for o
momento. Levantamos essa suspeita, pois mesmo sob a dominação do discurso
pentecostal das igrejas evangélicas mais a católica, há pouco tempo, vários
praticantes dos cultos afros em Pojuca se organizaram e formaram a Associação
do Culto Afro Pojucano – ACAP –, com o objetivo de reorganizarem seus
espaços de culto e conquista do respeito, dentre outros.
De uma forma geral, a população pojucana discrimina e tenta negar a
existência desses cultos no município; muitos barracões foram fechados depois
do falecimento de seus líderes e suas famílias não deram continuidade, por
diversos motivos, dentre eles, por terem migrado para as igrejas evangélicas, no
entanto, aqueles que resistem resolveram falar dos seus problemas e os
tornaram públicos e coletivos; então, como resultado, formaram a associação,
algo que jamais ocorreu na época em que existiam os famosos pais e mães-de-
santo na cidade. Os tambores vão voltar a soar!
O fato de apresentarmos perspectiva diferente ao discurso de Nora, não
significa que descartemos toda a sua reflexão em torno dos locais de memória,
consideramos que, de fato, há a construção e manipulação desses locais, bem
como também concordamos que “Não se celebra mais a não, mas se estudam
suas celebrações”113.

112
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento e silêncio... Op. Cit.; p.5
113
NORA, Pierre. Entre memória e história... Op. Cit.; p. 14;
69

Analisamos a história de Pojuca a partir dessa lógica dos locais de


memória e nos deparamos com um processo, inegavelmente pensado, elaborado
para ofuscar determinadas características da memória dos grupos que
constituem aquele município.
Quatro elementos nos saltam aos olhos: o primeiro refere-se ao ancestral
indígena, conservado no significado do seu nome yapô-yuca (pântano podre, o
estagnado), porém com uma compreensão ocidental do seu significado, afinal, se
esforçarmo-nos um pouco, podemos desvelar uma outra face para a significação
do seu significado. Pensemos, pois na idéia da fertilidade. A terra pantanosa foi
escolhida para a produção da cana-de-açúcar, por causa da sua fertilidade.
Pensemos também na lama, terra podre, que faz geminar a vida e acolhe o
estagnado, que oferece seus restos para enriquecer a terra e assim volta à vida.
Não esqueçamos ainda, que é o rio Pojuca, que batiza o município, é o mais
extenso da bacia do Recôncavo Norte e corta sete municípios até chegar à
Pojuca.
O segundo aspecto da história oficial de Pojuca apresenta-se como
substituição do mito fundador indígena e atribui à Jesus Cristo, no caso, Bom
Jesus da Passagem – o padroeiro da cidade – a fundação do povoado que dará
origem ao município. Vemos nesse caso, o que Santana (2004) denomina de
cristianização114; o terceiro elemento refere-se à representação da fonte de
riqueza do município: o petróleo, que se faz lembrar em monumentos, no seu
pseudônimo “a princesinha do petróleo” e também na sua bandeira.
Torna-se conveniente aqui, para efeito de evidenciar o caráter proposital
dessa “realidade” histórica, ressaltar que a emancipação política de Pojuca
ocorreu no ano de 1913, enquanto a Petrobrás só se instalou naquele município
na década de 50 de século passado, quando da sua implantação no Brasil, como
um todo.
E finalmente, o quarto elemento – lugar de memória – da história do
município de Pojuca, fica por conta do seu caráter pecuário. Antes representado
pelas vaquejadas, hoje pelos rodeios e pela construção de um parque de
vaquejadas, subutilizado, que figura com um dos grandes feitos de uma das
administrações daquela cidade. Talvez para ostentação do tempo (do final do

114
Processo de formação/educação pautado no ensinamento do mito cristão. A catequese do período colonial já
tinha esse propósito.
70

século XIX até as primeiras décadas do século XX) em que Pojuca era uma
grande produtora leiteira, pois até os dias atuais os pojucanos identificam-se com
o perfil pecuarista.
Até hoje, nas datas festivas como independência do Brasil e aniversário de
emancipação política da cidade, dentre outras, é comum ver muitas pessoas
desfilando montadas pelas ruas da cidade, embora, do ponto de vista econômico,
essa ostentação não tenha mais nenhum sentido; pois, de acordo com alguns
dados (IBGE)115, numa área de 318,21 km2, com população estimada em 32.225
habitantes, dos quais 21.884 vivem na cidade e apenas 4.319116 vivem no
campo, Pojuca conta com PIB de R$ 818.159, 00, sendo que a agropecuária
contribui com apenas 6.768, 00, enquanto os serviços contribuem com R$
170.204, 00 e a indústria com R$ 532.736.
É nesse aspecto, da universalização da cultura, que a história, cria e
manipula os locais da memória e tenta generalizá-la, impondo a experiência de
uns para todos e, para efetivar tal esforço, se vale do sentimento de que não há
memória espontânea, como afirma Nora:

nascem e vivem do sentimento que não há memória


espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter
aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios
fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são
naturais.117

Embora Nora ateste a morte da memória, se confrontarmos essas


palavras com a abordagem de Eliade (2002), quando este fala sobre a
necessidade de rememorar os mitos, ritualizando-os para “aprender o segredo da
origem das coisas”118, uma vez que “celebrações, aniversários, elogios
fúnebres...”, podem ser considerados ritos do retorno ao mito?
Ressaltamos ainda a eficácia dos ditos locais de memória; afinal, na
maioria das vezes, ao menos no Brasil, verificamos um certo esquecimento
mesmo diante os locais de memória. Na véspera do feriado “21 de abril”, dia de

115
IBGE Cidades. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1, acesso em 23/05/2010.
116
IBGE. Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/universo.php?tipo=31&paginaatual=1&uf=29&le
tra=P, acesso em 23/05/2010.
117
NORA, Pierre. Entre memória e história... Op. Cit.; p. 13;
118
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade... Op. Cit.; p. 17;
71

Tiradentes, perguntamos aos nossos alunos se sabiam por que não haveria aula
e nenhum deles soube informar o motivo do feriado.
Durante essa pesquisa também tivemos a oportunidade de saber que o
Conselheiro Saraiva, grande figura política do último período do império, morava
em Pojuca e era dono do Engenho da Purificação ou Engenho Central de Pojuca.
Contudo, ainda que exista uma escola e uma rua com o seu nome no município
de Pojuca, nem alunos, nem professores têm a mínima noção de quem tenha
sido o patrono da referida escola. Esses exemplos nos levam a crer que não
basta “imortalizar” o feito ou determinado personagem através dos lugares de
memória. Se não houver ações que estimulem a lembrança do significado desses
lugares de memória, com o tempo eles perdem o sentido e, consequentemente a
significação.
Também Pollak (1989) acredita na apropriação da memória pela história,
quando nos fala sobre o enquadramento da memória:

Vê-se que as memórias coletivas impostas e defendidas


por um trabalho especializado de enquadramento, sem serem o
único fator aglutinador, são certamente um ingrediente
importante para a perenidade do tecido social e das estruturas
institucionais das sociedades. Assim, o denominador comum
de todas essas memórias, mas também as tensões entre elas,
intervém na definição do consenso social e dos conflitos num
determinado momento conjuntural. Mas nenhum grupo social,
nenhuma instituição, por mais estáveis e sólidas que possam
parecer tem sua perenidade assegurada. Sua memória,
contudo, pode sobreviver a seu desaparecimento, assumindo
em geral a forma de um mito que, por não poder se ancorar na
realidade política do momento, alimenta-se de referências
culturais, literárias ou religiosas. O passado longínquo pode
então se tornar promessa de futuro e, às vezes, desafio
lançado à ordem estabelecida.119

Embora Guarinello (1995: 182) não trate dos lugares de memória, assim
como Nora (1993) ou de enquadramento da memória como Pollak (1992),
também compreende a história (a partir de uma crítica à lógica positivista) como
limitadora da memória: “A função mesma da história como ciência, carregava em
si uma condenação da memória”120.

119
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento e silêncio... Op. Cit.; p. 11;
120
GUARINELLO, Norberto Luiz. Memória coletiva e história científica... Op. Cit.; p. 182;
72

É interessante observar como tais abordagens encontram ressonância


muito acertada nos discursos das rezadeiras dessa pesquisa. Observemos a
resposta de dona Laura para o significado do uso das folhas nos benzimentos:

Não sei, mas você vê, a gente usa; você vê, qualquer
coisa que Jesus fez de cura, qualquer coisas que Jesus fez de
cura, ele curou o cego, ele usou remédio, não? Que quando
Jesus curou o cego, ele mandou ele cuspir no chão. Jesus
cuspiu no chão, fez a lama e passou na vista. Não foi um
remédio? Foi remédio, quando ele mandou que o cego
levantasse e andasse, o que foi que ele fez? Ele não mandou
que ele se molhasse na água? Silule (?), mandou que ele
pegasse a cama e andasse, foi um remédio. Tudo que Jesus
fez, ele não fez nada só com falar. Ele, em nome disso, tudo
ele fez, tudo ele usou a palavra, não teve nada que ele não
usasse a palavra do Pai. Ele fez, eu te faço isso, a gente
sempre reza em nome do Pai, em nome do Filho em nome do
Espírito Santo, porque são os três que une o Pai com o Filho. É
o pai, o Filho e o Espírito Santo que nos defende de tudo
quanto for ruim, é quem nos cura, é quem nos salva, é quem
nos faz tudo. É Deus, primeiramente que e nosso pai, Jesus
que é nosso irmão e o Espírito Santo que une os três em um
só.121

Observemos que segundo a lógica da cristianização da sociedade, a Igreja


também se utiliza da história e também de uma linguagem simbólica para
enquadrar os grupos e suas memórias. Uma história religiosa e, especialmente,
universalista, mais que todas as outras histórias, uma vez que apresenta Jesus
Cristo como a única verdade, provoca rupturas entre a memória vivida e a
história escrita e dogmatizada. Halbwachs122: “por isso é preciso derrubar os
altares dos deuses antigos e destruir seus templos...” Assim, dona Laura, mesmo
se utilizando de um saber ancestral não cristão, substitui a significação do uso
das folhas pelo discurso cristão. Porém, como há um mito por trás dos saberes
das rezadeiras e identificamos o duplo pertencimento na sua vivência religiosa,
como já vimos acima, noutros momentos, ela deixa revelar as outras
significações em torno das folhas.
Então, o que Nora (1993) chama de lugares de memória, Pollak (1993)
denomina de enquadramento da memória, guardadas suas proporções, dizem a
mesma coisa. Porém, Pollak (1992) tem um discurso mais otimista e reconhece

121
Conversa com dona Laura, 81 anos, em 22/01/2010;
122
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva... Op. Cit.; p. 185;
73

que, apesar do enquadramento, há uma margem de mobilização da memória que


a história não consegue abarcar, ou seja, enquadrar.
Entre os diversos debates em torno da memória, não é uma peculiaridade
das abordagens de Pollak (1992), Nora (1993) e Guarinello (1995), a
compreensão da história como mutiladora da memória. Halbwachs (2006), um
dos maiores teóricos da memória, trata da memória coletiva e, ao contrário do
possa parecer, para ele, memória coletiva e história não são sinônimos, ainda
que, de certa forma desenvolvam certa relação.

... A memória coletiva não se confunde com a história e


que a expressão memória histórica não é muito feliz, pois
associa dois termos que se opõem em mais de um ponto. A
história é a compilação dos fatos que ocuparam maior lugar na
memória dos homens (...) em geral, a história só começa no
ponto em que termina a tradição, momento em que se apaga
ou se decompõe a memória social123.124
Assim, todos os autores aqui citados, concebem a história como um
instrumento ideológico de unificação, de dominação de uns povos ou classes
sociais, ou grupos étnicos sobre outros. Contudo, não é nossa intenção
apresentar a história como uma vilã. Nesse caso se faz necessário considerar as
imposições do discurso positivista desde o século XIX e os esforços para
confirmar à história o status de ciência e com isso a sua utilização como
instrumento de opressão, na medida em que subjuga e omite as peculiaridades
dos diferentes grupos, amarrados na unidade da cultura nacional.
O mundo pós-moderno também coloca a história em xeque, não são em
vão essas abordagens em torno da contradição entre história e memória. No
entanto, conseguimos vislumbrar a história hoje como uma potencial aliada das
minorias e grupos que, na contra-mão do turbilhão de informações e
acontecimentos do tempo pós-moderno, se perdem de si mesmos e necessitam
re-constituir suas identidades. Podemos assim citar a história regional, a história
local e, especialmente, a história oral, tanto enquanto disciplina como enquanto
metodologia, como provas dessa possibilidade.
Afinal, como Halbwachs sugere: “um dos objetivos da história talvez seja
justamente lançar uma ponte entre o passado e o presente e estabelecer essa

123
Grifo nosso.
124
Ibdi., p. 100;
74

continuidade interrompida”125. Contudo, para nós, essa possibilidade só se torna


real se de acordo com a lógica da história local, regional, oral e/ou afins como já
sinalizamos acima.
Isso só é possível, porque a memória tem um quê de mística. A memória é
afetiva, ainda que guarde lembranças de situações desagradáveis, de sofrimento
e etc. Mas, por ser algo de cada pessoa, ainda que coletiva, a memória mesmo
quando silenciada consegue cravar na vida traços de uma identidade dada como
perdida.
Por causa da angústia dos dias atuais, para os idosos, é no passado que
se estabelece a felicidade. As lembranças são sempre agradáveis, de tempos em
que se era feliz. Mesmo com as dificuldades que eram enfrentadas, memoriar
esses tempos traz a sensação de conforto, de segurança de felicidade. É o que
constatamos nas palavras sempre repetidas de dona Djão:

Isso, eu era muito feliz, a rua Alfredo Leite, a rua da


Lama de antigamente só tinha 50 casa e tinha uma ponte,
quando agente era pequena tinha um candomblé dentro
d’água. O candomblé, nera? Agente ia prá lá sete horas da
noite, oi! Era galo cantava, era bode... Era a Lagoa Encantada.
Agente ia prá ver, era uma festa nessa lagoa. Ai agente via
tudo, agente era muito feliz...126

Essa pesquisa estimulou a memória dessas mulheres, elas passaram a se


preocupar em lembrar das coisas para nos informar; então a cada encontro elas
narravam situações das mais diversas. E o mais interessante é que os primeiros
discursos foram sempre baseados no discurso católico, porém, com o passar dos
dias, elas começavam a revelar outras falas, começavam a revelar segredos.
Porém, percebemos que sempre havia a necessidade de apoiar suas
lembranças nas lembranças de outros, assim, se houvesse mais alguém por
perto, era chamado para confirmar algo ou então recorriam a nós mesmos para a
necessária confirmação das suas lembranças; sempre com um “né?” ou “como
é”. Às vezes se contentavam com um simples aceno de cabeça, um olhar
afirmativo ou com alguma palavra que ajudava a completar o raciocínio. Tal
verificação nos permite afirmar que a memória coletiva atinge as pessoas nos

125
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva... Op. Cit.; p. 101;
126
Conversa com dona Djão, 74 anos, em 12/05/2010;
75

seus relacionamentos sociais e suas lembranças são construídas a partir dos


estímulos externos como comentários, imagens, sons e odores que fazem as
pessoas viajarem no tempo e trazerem para o presente, recordações do
passado, que ajudam a construir a memória coletiva.
Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a memória é determinantemente
marcada pela cultura de um povo, pois, a memória é indissociável da cultura e
das instituições sociais.
Quando dona Djão nos falou da Lagoa Encantada, por exemplo, ainda não
havíamos ouvido nenhuma outra falar, no entanto, quando passamos a tocar no
assunto, passaram a surgir relatos daquela lagoa e de outras. E quando
questionávamos onde estão os encantados ou por que não aparecem mais,
todas diziam a mesma coisa: “é porque agora tudo está sujo, as pessoas jogaram
lixo, agora é esgoto”127.
Essa lógica impõe a preservação das tradições e modos de fazer que só
são possíveis graças a memória de determinado grupo social. Nesse caso, a
memória é um elemento imprescindível na preservação da cultura. Justifica-se
assim, a necessidade de evocarmos a memória como escudo diante da atual
dinâmica de vida que tem provocado a desagregação de grupos e generalização
cultural e, conseqüentemente, da identidade cultural do povo.
Atentos a essa realidade assistimos a crescente importância que vem
sendo atribuída à História Oral, seja ela enquanto disciplina, ou enquanto
metodologia de pesquisa; o fato é que as testemunhas orais, narradores,
colaboradores, depoentes, entrevistados, informantes..., seja lá qual for a
terminologia empregada pelo pesquisador à quem lhes fornece as informações,
ou seja, se permite entrevistar, investigar; tem sido cada vez mais respeitadas
enquanto importantes e, em alguns casos, imprescindíveis fontes de pesquisa,
especialmente nas pesquisas sociais, o que confirma a crescente credibilidade
do estudo da memória ou a partir da memória entre a comunidade acadêmica.
No entanto, mesmo com esse crescente interesse em ouvir e fazer projetar
as vozes das minorias, não há como contestar que a sociedade terrorista128,

127
Id.
128
Na “sociedade terrorista” reina um terror difuso. A violência permanece em um estado latente. As pressões se
exercem de todos os lados sobre os membros dessa sociedade; eles têm uma enorme dificuldade para se
desembaraçar delas, para afastar esse peso. Cada um se torna terrorista dos outros e seu próprio terrorista; cada
76

como denomina Lefebvre (1991), interfere diretamente no cotidiano das pessoas


e, na tentativa de moldá-lo, cria novos mitos, camuflam certos acontecimentos e
inventa outros; também cria novos símbolos e se empenha em impor diferentes
significações à esses. Essa sociedade provoca medo, as novidades amedrontam
as pessoas, que se sentem impotentes diante de tais situações.
As pessoas mais velhas são as maiores vítimas dessa situação, pois se
vêm diante de uma realidade para a qual sentem-se impotentes. As palavras de
dona Senhora são fiel exemplo do que afirmamos: “a gente tem medo até de
dizer que faz, né? Porque tudo é estranho; é uma coisas, é outra; é uma doença,
é outros nomes que a gente hoje não sabe, tudo que passa nas pessoas,agora e
não sei o que...”129
Dona Laura desabafa: “acho que o amor do povo está esfriando. O povo
só acredita em médico, qualquer coisa é médico e nos pastores. O amor do povo
esfriou, a fé do povo esfriou”130.
As falas de dona Senhora e de dona Laura funcionam como desabafo.
Elas estão cheias de angústias, de medos provocados pelas novidades impostas
na atualidade. Não se sentem mais construtoras de um processo, não sabem
mais das coisas. Diante desse desabafo nos perguntamos o que essa sociedade
reserva para as pessoas idosas?
E nós mesmos ensaiamos responder que essa angústia, que não é só de
dona Senhora, nem de dona Laura, mas, em diferentes aspectos, foi explicitada
por quase todas as rezadeiras entrevistadas. É uma angústia de todas as
pessoas que sentem-se oprimidas e buscam respostas, buscam saídas. Mas,
numa perspectiva otimista, cremos que essa angústia representa um passo para
a possibilidade de superação do terror, que começa com o sentimento de
pertencimento, construído através do desvelar da memória.
Essa crença é sustentada com base no que Thomson (1997) chama de
composição da memória:

um aspira a tornar-se terrorista (...). Não é preciso ditador, cada um se denuncia a si mesmo e se pune (...).
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p. 158;
129
Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 07/2009;
130
Conversa com dona Laura, 81 anos, em 02/06/2010;
77

As imagens e linguagens disponíveis usadas pelo


público nunca se encaixam perfeitamente às experiências
pessoais e há uma tensão que pode ser manifestada através
de um desconforto latente, da comparação ou da avaliação.
Portanto, os relatos coletivos que usamos para narrar ou
relembrar experiências não necessariamente apagam
experiências que não fazer sentido para a coletividade.
Incoerentes, desestruturadas e, na verdade, “não-
relembradas”, essas experiências podem permanecer na
memória e se manifestar em outras épocas e lugares (...). A
memória “gira em torno da relação passado-presente, e
envolve um processo continuo de reconstrução e
transformação das experiências relembradas”.131

Assim, é possível vislumbrar um processo de superação e, portanto a


possibilidade de rompimento com certas histórias. Fazer o exercício de
rememorar ou memoriar, embora não seja uma tarefa fácil, pois, “para alguns
esse processo é extremamente desafiador, mas pode também insuflar-lhes
confiança à medida que se recuperam e confirmam experiências antes
silenciadas e fazer com que suas histórias sejam compartilhadas e ouvidas”132.
Podemos verificar essa possibilidade através do relato da experiência de
Alistair Thomson (1997) com ex-combatentes de guerra australianos e a lenda
sobre esses Anzacs: “Como o retrato público de participação dos australianos na
guerra havia mudado, Fred Farral pode compor um passado para os Anzacs com
o qual conseguia conviver”133.
Suas entrevistas lhe permitiram constatar que a partir de uma nova versão,
de uma revisão dos fatos históricos, é possível devolver o lugar de sujeito ou de
retratar a participação de certos grupos num processo histórico e assim,
contribuir para que haja um processo de recomposição de certas memórias.
Em termos de Brasil, podemos citar vários exemplos, como o caso de
Tiradentes, ainda que resultado de um processo de enquadramento, de traidor,
no período imperial, passou à condição de herói da nação e símbolo da luta
republicana, sendo transformado, como defende Nora, num local de memória,
pelos defensores da república, que necessitavam também da construção do seu
mito fundador. Numa outra perspectiva, também Zumbi dos Palmares foi, durante
muito tempo, apresentado como vilão na história oficial e, a partir da luta dos

131
THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a História Oral e as memórias.
In: Projeto História; São Paulo, n. 15. 1997, p. 56.
132
Ibid., p.70;
133
THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: Op. Cit.; p. 67.
78

negros organizados, no final do século passado, passou a figurar como herói da


nação, ajudando a recompor a história de luta contra a escravidão, se tornando
assim uma referência de luta e resistência para os afro-brasileiros, que saem da
condição de passivos ou coitadinhos, para a condição de valentes, lutadores.
Nessa perspectiva, são elucidativas as palavras de Pollak: “A memória e a
identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e
particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos”134. Então, para
construir o sentimento de pertencimento da sua identidade exige do grupo a
laboração de um processo de provocação das suas memórias; o que,
inevitavelmente, vai provocar conflitos, pois vai colocar antigas verdades em
xeque.
Acreditamos que de forma silenciosa, e ainda que sem um propósito
planejado, mas pela necessidade da sobrevivência, as pessoas e/ou grupos
criam e também dão outros significados àquilo que lhes é imposto, dessa forma,
conseguem burlar a ordem imposta. Contudo isso só se torna realidade se
houver sentimento comunitário, se as pessoas se identificam em determinado
grupo, o significam e se permitem significar por esses.
É, justamente, o que sugere Pollak (1992):

Podemos, portanto dizer que a memória é um elemento


constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como
coletiva, na medida em que ela é também fator extremamente
importante no sentimento de continuidade e de coerência de
uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si.135

Memória e identidade, portanto, faces da mesma moeda. Essa operação,


no entanto, não é fácil e necessita da memória como elemento fundamental para
essa construção silenciosa das artes de fazer. É preciso construir, rememorar o
mito fundador. Eliade, diz que a “função do mito consiste em revelar os modelos
exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas; tanto a
alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a educação, a arte ou a
sabedoria”136. Assim fizeram os povos de todos os tempos.

134
POLLAK, Michel. Memória e identidade social... Op. Cit.; p.205;
135
POLLAK, Michel. Memória e identidade social... 135 Op. Cit.; p. 204;
136
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade... 136 Op. Cit.; p. 13;
79

Os hebreus, quando voltaram do exílio, para continuarem caminhando,


criaram o mito do gênese e da arca de Noé; os africanos, desterrados, tiveram
que recriar seu mito fundador, para dar sentido à vida em meio à escravidão,
como diz Sodré (2005): “A cultura negro-brasileira, emergia tanto de formas
originárias, quanto dos vazios suscitados pelos limites da ordem ideológica
vigente”137.
Essas reflexões nos permitiram identificar cinco aspectos que nos
garantem compreender a memória para fins dessa pesquisa:
a) a memória é uma manifestação do presente, pois o passado é acionado
a partir de sentimentos e necessidades provocados pelo momento. As
lembranças de dona Quita (89 anos), moradora de Catu, que de imediato nos
disse nunca ter ouvido a palavra “jeje”, mas no decorrer da conversa ela foi se
lembrando de pessoas e de situações, com riqueza de detalhes:

Agora me lembro, aqui tinha algumas mulheres que


foram escravas, que diziam que eram jeje. Elas trajavam
aquelas saias rodadas, eram bem pretinhas.
Dona Sofia, eu chamava ela de “tia Sofia”. Ela tinha um
santo preto na casa; orava, era esse negócio de bruxaria ...
trajava saias rodadas com um camisão, como chama? Isso,
bata. Usava torço na cabeça. Mas era muito cismada, não ria
para ninguém.138

Assim, cremos que é o momento que determina nossas lembranças; é


através do olhar do presente, dos valores do presente que avaliamos nossas
lembranças e a importância da memória que ela faz aflorar;
b) a memória como indissociável da vida social, portanto, individual e
coletiva ao mesmo tempo, numa perspectiva dialética, pois, como afirma
Halbwachs, “a nossa memória se aproveita da memória dos outros”139;
c) que a memória também é herdada e se conserva não só na mente, mas
também no corpo, cheiros, objetos e em espaços, ela é afetiva. Dona Lindu, fala
do tempo da sua mãe, como se tivesse vivido esse tempo: “no tempo da minha

137
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p. 93;
138
Conversa com dona Quita, 89 anos, em 03/06/2010; moradora de Catu, cidade a qual Pojuca pertenceu antes
da sua emancipação.
139
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva... Op. Cit.; p. 39;
80

mãe era tão bom... Agora hoje em dia não, mas no tempo da minha mãe...”140 Ao
mesmo tempo ela revela que o que aprendeu com sua mãe foi muito pouco, pois
essa faleceu quando ela ainda era muito nova “uma garotinha”
d) a memória figura como instrumento fundamental de reconstrução da
identidade: “eu fico muito feliz em saber a reza que minha mãe me ensinou,
deixou para mim, minha mãe tem trinta e poucos anos de morta, mas me deixou
essa bênção, essa glória, que eu fico muito feliz...”141. É dessa maneira que dona
Dida descreve sua sensação por ser rezadeira;
e) por último, ao contrário do que Nora (1993) afirma, a memória existe e
resiste, ainda que silenciada, ainda que enquadrada ou camuflada, porém,
quando de alguma forma provocada pode surgir com uma força devastadora,
capaz de destruir locais, discursos e histórias cristalizados; ou sorrateira, através
de uma reconstrução que só tem sentido, se coletiva para garantia da
preservação e/ou re-composição da identidade de determinado grupo ou
sociedade. Pois, como afirma Pollak:

O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao


esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil
impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo
tempo ela transmite cuidadosamente as lembranças
dissidentes nas redes familiares e de amizade, esperando a
hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e
ideológicas.142

Cabe ressaltar, no entanto, que, na tentativa de explicar a memória na


suas diversas nuances os autores, especialmente Nora e Pollak, apesar de
oferecerem importantes contribuições para a compreensão do tema, o
apresentam de maneira muito cartesiana. Enquanto, ao conviver e escutar as
narrativas das lembranças das rezadeiras de Pojuca percebemos que,
independentemente de vontade ou de prévias formulações, as memórias brotam
e, em muitos momentos se apresentam conflitivas com os discursos reproduzidos
pelas mesmas. Assim, compreendemos a memória como um fenômeno
inevitavelmente subjetivo, para além das nossas conjecturas e determinações,

140
Conversa com dona Lindu, 98 anos, em 12/05/2010. Dona Lindu é responsável pelo bumba-meu-boi, que sai
às ruas de Pojuca nas festas de reis todos os anos, há quase 80 anos.
141
Conversa com dona Dida, 70 anos, em 10/03/2009;
142
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento e silêncio... Op. Cit.; p. 5;
81

ainda que seja real o processo de manipulação da memória, através da história


oficial, na construção de uma memória oficial / nacional. Mas é justamente o seu
caráter subjetivo que garante um movimento de resistência da memória, que está
fincado no sentimento de identidade.
E é a cultura que torna tudo isso possível. É a identidade cultural que
conserva a memória e, ao mesmo tempo, é a memória que preserva a identidade
cultural de um povo ou grupo. Uma não existe sem a outra e ambas se realizam
no cotidiano, na vida cotidiana.

Cotidiano: espaço de sentidos e representações

Na perspectiva de tecer um significado de cotidiano que responda aos


questionamentos e se adéqüe às constatações dessa pesquisa, optamos pela
leitura de três importantes teóricos estudiosos dessa temática: Certeau (1999),
Lefebvre (1991) e Heller (1989). Chamamos atenção para o fato de que esses
três autores, assim como os que abordam sobre identidade cultural e memória,
também contextualizam suas abordagens na modernidade, ou pós-modernidade,
como prefere Hall (2005).
Na sua obra “A invenção do cotidiano”, Certeau (1999) já sinaliza a grande
aproximação existente entre suas idéias e as idéias de Lefebvre (1991), quando
informa, em nota, que os trabalhos do segundo “constituem uma fonte
fundamental143” para os estudos do comportamento das pessoas, enquanto a
rede de antidisciplina144.
Por isso, optamos em abordar nosso entendimento sobre cotidiano a partir
de uma base constituída em torno da obra de Lefebvre (1991); contudo,
ressaltamos que nossa concepção de cultura está para além da concepção de
revolução cultural do referido autor, pois esse não consegue compreendê-la para
além das formulações nacionais ou mundiais ou de estética, como podemos
observar nesse fragmento: “A revolução cultural tem como primeira condição e
143
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano I: Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 319.
144
Antidisciplina, para Certeau, é uma multiplicidade de “táticas” articuladas sobre os “detalhes” do cotidiano;
contrárias, por não se tratar mais de precisar como a violência da ordem se transforma em tecnologia disciplinar,
mas de exumar as formas sub-reptícias que são assumidas pela criatividade dispersa, tática e bricoladora dos
grupos ou dos indivíduos presos agora nas redes de “vigilância”. Esses modos de proceder e essas astúcias de
consumidores compõem, no limite, a rede de uma antidisciplina. CERTEAU, 1999: 41.
82

procedimento, como exigência inicial e fundamental a reabilitação plena e


completa dessas noções: obra, criação, liberdade, apropriação, estilo, valor (de
uso), ser humano”145.
Observemos que o ser humano aparece como a última noção a ser
reabilitada no processo da revolução cultural promulgada por Lefebvre.
Compreendemos que sua concepção de mundo e de modernidade tem como
base os ideais marxistas e que, embora identifique limites na visão de Marx, ele
também não consegue avançar para uma idéia de ser humano para além da
divisão de classes (proletariados e burgueses) ou de categorias (mulheres,
operários, jovens).
Sendo assim, ressaltamos também que, embora em raros momentos o
autor considere a existência de diferentes grupos étnico-culturais, a base da sua
abordagem em torno do mundo moderno não atinge tais grupos. Sua visão é
limitada ao mundo urbano e à filosofia e organização espacial ocidental, diante
do seu olhar para a França - Nação; o que determina mais esse limite na sua
obra e, por isso, reforçamos que nosso ideal de cultura, passa pela
identificação/identidade de grupo, pautado na busca e respeito à ancestralidade e
ao seu mito fundador, divergindo assim, da concepção de Lefebvre.
Contudo, a sua conceituação de cotidiano e cotidianidade nos é muito
favorável, para a construção do significado dentro da perspectiva dessa
pesquisa, pois conseguimos traçar uma evidente via que conduz tal conceituação
às discussões e problematizações já abordadas na elaboração desse capítulo. O
fragmento abaixo, por exemplo, consegue expressar idéias preliminares sobre o
significado de cotidiano.

No entanto essas pessoas nascem, vivem e morrem.


Vivem bem ou mal. É no cotidiano que eles ganham ou deixam
de ganhar sua vida, num duplo sentido: não sobreviver ou
sobreviver, apenas sobreviver ou viver plenamente. É no
cotidiano que se tem prazer ou se sofre. Aqui e agora.146

Observemos que o autor concebe o cotidiano como um lugar – o lugar


onde tudo acontece, onde as pessoas vivem, bem ou mal, mas é nesse lugar que
as pessoas vivem, no sentido mais amplo da palavra, pois, todas as pessoas
145
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p. 210;
146
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p. 27;
83

habitam num determinado lugar onde moram, se relacionam, trabalham,


estudam, brigam, cuidam, plantam, colhem, se divertem, aprendem, ensinam e
etc. É bem verdade, que a ideologia da modernidade também influencia na
significação de lugar, assim como o faz com tantos outros termos. Por isso,
consideramos importante apresentarmos aqui, a nossa concepção de lugar.
Podemos dizer que o lugar é o concreto, o espaço concreto, que permite
que todos os aspectos subjetivos ganhem significados e sentidos, pois é onde se
realizam. O professor Milton Santos (1996) nos ajuda a pensar o lugar dessa
maneira quando afirma que:

O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao


mundo, do que lhe vem solicitações e ordens precisas de
ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das
paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa,
pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da
criatividade.147

Nessa perspectiva, o lugar é, pois, o espaço dos sentidos e das


representações. A partir dessa compreensão do significado de lugar,
conseguimos situar o ser humano e observar seu comportamento, suas ações,
suas maneiras de se relacionar e apropriar do espaço; aí identificamos o
cotidiano.
Dessa maneira, compreendemos que, assim como a cultura e também a
memória são assaltadas e oprimidas pela modernidade, o cotidiano, que é a base
onde a cultura se realiza ou é representada e a memória é provocada e/ou
estimulada, também é assaltado por essa modernidade.
Assim, nas obras dos autores em questão, as idéias em torno de uma
ordenação do cotidiano ou alienação, imposta pela ação da “sociedade
terrorista”, ou da “cultura ordinária”, ou ainda da estrutura econômica, vão confluir
para o termo cotidianidade, mais evidente nas obras de Lefebvre (1991) e de
Heller (1989), quanto à nomenclatura, porém tão evidente quanto nos dois
primeiros na obra de Certeau (1999), no que diz respeito ao seu sentido.
É nesses termos que Lefebvre define cotidianidade:

147
SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 258;
84

(...) pressões e repressões que se exercem em todos os


níveis, a todos os instantes, sobre todos os planos, até mesmo
a vida sexual e afetiva, a vida privada e familiar, a infância, a
adolescência, a juventude, em resumo o que aparentemente
escapa à repressão social, porque está próximo da
espontaneidade e da natureza.148

Noutro momento ele define cotidianidade dessa maneira: “(...) espaço


social e solo do consumo organizado, da passividade mantida pelo terrorismo
(...). Ela domina, resulta de uma estratégia global (econômica, política, cultural)
de classe”149.
Diante dessas elaborações em torno do cotidiano, podemos afirmar que
antes mesmo da modernidade, ainda que com outras estratégias, o cotidiano
sempre foi oprimido, ainda que muito mais atualmente. É fácil comprovar tal
afirmação se observamos o comportamento e as imposições da Igreja Católica
no período medieval, por exemplo. Essa tinha o controle até do tempo, que na
modernidade, de acordo com Lefebvre, passa a ser controlado pela filosofia e
pela publicidade.
Para Lefebvre é através da racionalização e da ordenação da
cotidianidade que o Estado, a religião e a cultura oprimem o cotidiano.
Interessante, como diante de determinadas situações as pessoas, de certa
forma, ainda que não consigam identificar de onde vem a opressão, percebem
que ela existe. As palavras de dona Senhora são comprovadoras:

Quando eu saio daqui, eu saio alegre, mas alegre,


quando digo vamos embora, eu já tô toda pelos cantos. Eu não
vou gosto daqui não, não gosto. Aqui dá muita lembrança, e lá
na roça não, lá na roça eu fico à vontade, não tem que ficar...
Saio com meus vestidos cheios de... Qualquer uma saia
rasgada, ninguém repara, eu (pausa)... Ave Maria , olha, faço
meu fogo de lenha, ôxe, asso meu pedaço de carne pra come,
faço o meu gostoso, é bom mesmo.150

Dona Senhora não tem consciência de que é a opressão do consumo e da


moda que determina o que e como se vestir, o quê e como cozinhar... Mas sente
que existe uma “censura”, uma imposição. Contudo, ela, quando vai para a roça,

148
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p. 156;
149
Ibid., p. 208;
150
Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 07/05/2010;
85

foge desse cotidiano oprimido da cidade e fica à vontade. Esse ficar à vontade é
cheio de significações. É o lugar onde ela se realiza; onde pode rezar em
qualquer lugar, pois “todo canto é quintal”; onde se veste como quiser, come o
que gosta e prepara do jeito que gosta. A roça é o lugar onde dona Senhora vive
sem as cobranças, sem as imposições, sem se sentir vigiada pelos seus filhos,
pela sociedade como um todo.
Esse comportamento de dona Senhora expressa o que Certeau (1999)
denomina de antidisciplina. E representa um comportamento de resistência.
Ainda podemos observar essas palavras de dona Senhora a partir da ótica
do mal-estar, abordado por Lefebvre, que por sua vez, não se dá apenas no
campo das artes e do lazer.
A forma como Certeau (1999) lida com a situação de opressão contra o
cotidiano, lhe permite atribuir caráter fictício à ordem imposta pela técnica e pela
teoria à realidade cotidiana, quando diz que:

O que ocorre abaixo da tecnologia e lhes perturba o


jogo nos interessa aqui. É seu limite, percebido há muito
tempo, mas ao qual se deve dar outro alcance que não o de
uma no man’s land151. Pois, trata-se de práticas efetivas. Os
conceptores conhecem muito bem essa modalidade a que dão
o nome de “resistências” e que perturba os cálculos
funcionalistas (forma elitista de uma estrutura burocrática). Não
podem deixar de perceber o caráter fictício instilado numa
ordem por sua relação à realidade cotidiana152

O que Certeau (1999) define como técnica e teoria se adéqua


perfeitamente ao que Lefebvre (1991) chama aqui de filosofia (a partir da ótica do
positivismo), ao afirmar que: “Diante da vida cotidiana, a filosofia pretende ser
superior, e descobre que é vida abstrata e ausente, distanciada e separada”153
(LEFEBVRE, 1991: 18). Dessa maneira, ambos sugerem a existência de um
campo/espaço/tempo, resultado “de uma estratégia global (econômica, política,
cultural) de classe” (LEFEBVRE, 1991: 208), que, por sua vez, precisa ser
combatido. Segundo Certeau através da antidisciplina e, segundo Lefebvre,
através da revolução cultural.

151
Tradução do inglês: terra de ninguém.
152
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano... Op. Cit.; p. 308;
153
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p.18;
86

Apesar de toda repressão que a sociedade moderna impõe sobre o


cotidiano, ela não é infalível:

A tese constante aqui exposta é que a sociedade


terrorista, caso extremo da sociedade super repressiva, não
pode se manter por muito tempo. Ela visa à estabilidade, às
estruturas, à manutenção de suas próprias condições e de sua
sobrevivência. Mas é em vão, pois no final das contas ela
explode. (LEFEBVRE, 1991: 159)

Heller (1989), por sua vez, admite que a vida cotidiana é heterogênea e
hierárquica, especialmente no que concerne ao conteúdo, significação e
importância dos tipos de trabalho. O que nos faz entender que essa hierarquia
determina e é determinante da estrutura social e, consequentemente, determina
a ordenação da cotidianidade. No entanto, a autora diz que “a ‘ordenação’ da
154
cotidianidade é um fenômeno nada cotidiano” , e sugere como forma de
superação da alienação, provocada por essa “ordenação” a “condução da vida”:

Nesse caso a condução da vida torna-se representativa,


significa um desafio à desumanização, como ocorreu no
estoicismo ou no epicurismo. Nesse caso, a “ordenação” da
cotidianidade é um fenômeno nada cotidiano: o caráter
representativo, “provocador”, excepcional, transforma a própria
ordenação na cotidianidade numa ação moral e política.155

Compreendemos, contudo, que revolução cultural, artes de fazer ou


antidisciplina e condução da vida, são todas idéias da configuração do
comportamento/ação das pessoas oprimidas pela cotidianidade para superação
dessa dada opressão, que transforma a cotidianidade no tempo/espaço do
consumo, do desejo e do pecado, dos sonhos e das obrigações, é a ilusão de
que se é possível realizá-los. Pois, conforme Lefebvre (1991), o papel atribuído
para a cotidianidade pela elite está na construção do imaginário.

(...) o imaginário, com relação à cotidianidade, prática


(pressão e apropriação), tem um papel: mascarar a
predominância das pressões, a fraca capacidade de
apropriação, a acuidade dos conflitos e os problemas “reais”. E
às vezes preparar uma apropriação, um investimento prático.156

154
Ibid., p. 41;
155
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história... Op. Cit.; p. 41;
156
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p. 99;
87

Assim, todos os autores aqui consultados, concordam que o processo de


mudança da realidade se dá a partir do cotidiano. O cotidiano, então, seria esse
espaço/tempo em que tudo acontece, sem preocupação prévia com uma
elaboração ou cientificação; o mundo real, onde as pessoas vivem, trabalham,
criam, sonham, brigam, se relacionam... Ainda que em certos momentos, haja a
necessidade de organizações para elaborações de estratégias; mas, também
esse processo, para ser fiel à organização das pessoas, deve acontecer no seu
cotidiano, pois é no próprio cotidiano é possível forjar o processo de superação.
Mas já vimos que a elite moderna, para se manter no poder necessita se
apropriar do cotidiano, assim, ordena e controla a cotidianidade e dessa forma
determina, define o que deve ser dito, produzido, criado, desejado. O que se
deve comer, usar, comprar... Anulam-se os sujeitos e em seu lugar institui o
indivíduo consumidor de coisas e de idéias. No entanto, a resistência, ainda que
silenciosa, acontece dentro do próprio cotidiano, até porque fora dele, não se
pode transformá-lo. Porém, só é possível enxergar tais mudanças se, a exemplo
de Certeau (1999), observarmos a partir de baixo, ou seja, se observarmos os
movimentos de homens e mulheres comuns do lugar onde atuam.

Muitas práticas cotidianas (falar, ler, circular, fazer


compras ou preparar as refeições etc.) são do tipo tática157. E
também, de modo mais geral, uma grande parte das “maneiras
de fazer”: vitórias do “fraco” sobre o mais “forte” (os poderosos,
a doença158, a violência das coisas ou uma ordem etc.),
pequenos sucessos, artes de dar golpes, astúcias de
“caçadores”, mobilidades da mão-de-obra, simulações
polimorfas, achados que provocam euforia, tanto poéticos
quanto bélicos.159

Basta observar com atenção os exemplos que Certeau oferece sobre as


práticas ou artes de fazer (ler, fazer compras, trabalhar, falar, escrever, caçar,
cozinhar...), que percebemos que tais práticas estão inseridas em contextos
intrínsecos à vida em sociedade, como a linguagem (entendida em sua

157
As táticas “tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do
poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia. Em, suma,
tática é a arte do fraco” (CERTEAU, 1999: 101).
158
Grifo nosso. Para nossa pesquisa, essas palavras são elucidativas, pois fala através de nós, que as ações das
rezadeiras, bem como de quem recorre à elas, fazem parte das táticas que correspondem à vitória dos fracos
sobre os mais fortes.
159
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano... Op. Cit.; p. 47;
88

amplitude), a religião e o uso do espaço; logo, nos damos conta de que ele se
refere a uma “rede de antidisciplina”.
Podemos exemplificar isso com o uso que as rezadeiras dão às folhas,
como se relacionam com os santos, os objetos utilizados nos rituais de
benzeção, as palavras usadas, a preservação dos quintais... Mulheres que se
utilizam de conhecimentos antigos e misturam crença com conhecimento de
plantas, ervas e outros elementos e realizam cura, ainda que a ciência e a
sociedade de consumo e repressora não admitam e tentem reprimir. Assim,
medicina alopática e tratamento alternativo existem concomitantemente, ainda
que não seja de forma harmoniosa. E, contrariando o discurso da eficácia da
medicina alopática/oficial versus a ineficácia dos benzimentos, elas resistem até
mesmo nas grandes cidades.
Essa constatação tem particular importância, pois as rezadeiras, enquanto
mulheres que também vivem essa realidade do cotidiano conseguem sobrepor a
lógica de que, segundo Lefebvre (1991), são os principais alvos da cotidianidade
da sociedade terrorista do consumo e, por isso, vítimas da vida cotidiana, como
podemos observar no fragmento abaixo:

Pesa sobre as mulheres o fardo da cotidianidade. É


provável que tirem vantagem disso. Sua tática: inverter a
situação. Nem por isso deixam de agüentar a carga.
Acontece que, em sua maioria, elas ficam presas na
pesada massa. Para as outras, pensar é evadir-se, não
ver mais, esquecer o atolamento, não perceber mais a
massa pegajosa [...] São ao mesmo tempo sujeitos na
cotidianidade e vítimas da vida cotidiana, portanto objetos,
álibis (a beleza, a feminilidade, a moda, etc.) e é a elas
que os álibis maltratam. São igualmente compradoras e
consumidoras e mercadorias e símbolos da mercadoria
(na publicidade: o nu e o sorriso). A ambigüidade da sua
situação no cotidiano, que faz parte, precisamente da
cotidianidade e da modernidade, fecha-lhes o acesso à
compreensão. A modernidade, para elas, por elas,
dissimula notavelmente bem a cotidianidade.160

Essa abordagem de Lefebvre tem um quê de machista. Ele pensa a


mulher assim como a publicidade. A modernidade construiu um modelo de
mulher e a tornou, como o autor informa, em consumidora e objeto de consumo

160
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p. 83;
89

ao mesmo tempo. E, embora numa postura de crítica à esse comportamento da


modernidade, o autor não sugere uma possível resistência feminina, frente a tal
situação.
Hall (2005) nos oferece argumentação plausível que nos permite negar
com segurança o posicionamento de Lefebvre frente às mulheres:

Mas o feminismo teve também uma relação mais direta


com o descentramento conceitual do sujeito cartesiano e
sociológico.
Ele questionou a clássica distinção entre o “dentro” e o
“fora”, o “privado” e o “público”. O slogan do feminismo era: “o
pessoal é público”. ( HALL, 2005: 45)

E mais, todas as rezadeiras aqui investigadas servem como referência


para afirmarmos que as mulheres dentro do cotidiano que as absorve, ao
repetirem os ensinamentos dos seus antepassados, resistem e põem em xeque
essa total submissão da mulher à modernidade.
Especialmente, podemos ilustrar essa afirmação com um relato de dona
Dida sobre a sua vida, seu dia-a-dia:

Sou católica, participo do Apostolado da Oração, do


grupo de convivência do idoso, vou à missa todos os sábados e
domingos e canto nas missas. Participo das atividades da
igreja. Gosto da religião, nasci e me criei nela e me casei nela e
peço a Deus para não sair dela.
Sofri muito, no início meu marido não aceitava eu sair
para a igreja. Hoje em dia ele já acostumou. Quando não vou
para a missa ele pergunta: Mulher, você não vai para a igreja
hoje não, o que está acontecendo? Mas ele não vai. Eu rezo
todos os dias para que ele se acomode e passe a me
acompanhar para as coisas da igreja.161

Mulher franzina, de voz baixa, mas, com uma força de determinação que
não permitiu que o marido a impedisse de fazer o que gostava. Conquistas
gradativas, que ela atribui ao fato de ter rezado muito, mas que é marca da sua
insistência e resistência. Não se acomodou, perseverou e conseguiu impor a sua
vontade. Não se enquadra no comportamento das mulheres descrito por
Lefebvre. Afinal, é o autor quem afirma que: “Apesar dos esforços para

161
Conversa com dona Dida, 70 anos, em 10/03/2009;
90

institucionalizá-lo, o cotidiano; foge sua base e se furta, ele escapa ao assalto


das formas”.162
Com essas palavras o autor nos faz acreditar que o cotidiano possui uma
energia vital, que o alimenta e é alimentada por ele (o cotidiano). Ao contrário do
que parece, o cotidiano tem uma força de se reinventar sempre, por isso,
consegue burlar as formas impostas. Sendo assim, a modernidade não criou um
outro cotidiano, ela impôs a este, formas, que no entanto, são sorrateiramente
burladas.
Cabe ressaltar, contudo, que não é o cotidiano que realiza as ações, pois
não se trata de um ente. Assim, podemos dizer que são as pessoas – homens,
mulheres, grupos, que dentro do cotidiano, se moldam, mas também resistem às
imposições da sociedade terrorista, subvertendo as ordens determinadas,
através dos seus saberes, das suas crenças, dos seus desejos, das suas dores e
conflitos.
Heller (1989) reconhece que:

A estrutura da vida cotidiana, embora constitua


indubitavelmente um terreno propicio à alienação, não é de
nenhum modo necessariamente alienada. Sublinhemos, mais
uma vez, que as formas de pensamento e comportamento
produzidas nessa estrutura podem perfeitamente deixar ao
indivíduo uma margem de movimento e possibilidades de
explicação, permitindo-lhe – enquanto unidade consciente do
humano-genérico e do indivíduo particular – uma condensação
“prismática”, por assim dizer, da experiência da cotidianidade,
de tal modo que essa possa manifestar-se.163

Assim, é possível entender que a sociedade moderna, com todas as suas


teses não comporta o cotidiano, por isso o nega, no entanto, necessita dele, pois
é na vida cotidiana que as coisas acontecem e a racionalidade, a ciência
moderna, que pretende ordenar tudo, definir lugar e mensurar, enfim, racionalizar
todas as coisas, contraditoriamente necessita do cotidiano, pois é na vida
cotidiana que todas as coisas acontecem. Ai se estabelece a capacidade de
resistência do cidadão do cotidiano.
É exatamente no cotidiano que se manifestam as potencialidades
humanas, onde acontecem as coisas corriqueiras e, as vezes, despercebidas ou

162
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p. 193;
163
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história... Op. Cit.; p. 38;
91

ignoradas. Porém é nessas coisas que se estabelece a força capaz de


transformar a vida das pessoas. Assim, é também no cotidiano que as pessoas
se reconhecem e se identificam através da memória. Sobre isso, assim discorre
Lefebvre (1991):

A imagem, a imaginação, o imaginário parecem


mergulhar no fluxo temporal e prolongá-lo; no entanto, a
essência do imaginário situa-se, talvez, na evocação, na
ressurreição do passado, ou seja, numa repetição. Isso
aproxima a imagem da lembrança e o imaginário da memória,
assim como do conhecimento. O conhecimento, os filósofos
souberam desde o início que ele comportava reminiscência e
reconhecimento (de si mesmo, na reflexão; do outro, no
conceito; do ser, na certeza).164

Nesse caso, assim como já é possível vislumbrar a organização das


pessoas em torno das suas culturas, e por compreendermos que é o cotidiano o
“cenário” de todas as ações do ser humano, acreditamos que também o cotidiano
está sendo transformado, cada vez que um grupo reivindica a sua
ancestralidade, o seu espaço na sociedade, no mundo. Cada vez que as pessoas
conseguem se identificar enquanto grupo e se identificam com suas heranças
culturais ancestrais, elas estão resistindo à opressão do cotidiano e libertando-o,
ao mesmo tempo em que se libertam.
Dessa maneira, a memória preservada pode significar uma fonte de
resistência contra todo tipo de opressão. Principalmente quando nos referimos
aos artifícios utilizados pela sociedade terrorista, como a religião, a publicidade, a
televisão e a história moderna para ordenar o cotidiano. Crença que é reforçada
pelas palavras de Certeau (1999), que considera a memória também como uma
arte de fazer, uma resistência contra a cotidianidade oprimida. Segundo ele,

Este saber se faz de muitos momentos e de muitas


coisas heterogêneas. Não tem enunciado geral e abstrato, nem
lugar próprio. É uma memória, cujos conhecimentos não se
podem separar dos tempos de sua aquisição e vão desfiando
as suas singularidades. Instruída por muitos acontecimentos
onde circula sem possuí-lo (cada um deles é passado, perda
de lugar, mas brilho de tempo), ela suporta e prevê também “as
vias múltiplas do futuro” combinando as particularidades
antecedentes ou possíveis. Assim se induz uma duração na
relação de forças, capaz de modificá-la. A métis aponta com

164
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p. 24;
92

efeito para um tempo acumulado, que lhe é favorável, contra


uma composição de lugar, que lhe é desfavorável. Mas a sua
memória continua escondida (não tem lugar que se possa
precisar), até o instante em que se revela, no “momento
oportuno”, de maneira ainda temporal embora contrária ao ato
de se refugiar na duração. O resplendor dessa memória brilha
na ocasião.165

Concluímos então que o cotidiano, enquanto o lugar onde as pessoas


vivem, onde realizam as ações, é o plano onde a cultura se significa e se faz
representar; é também onde a memória é provocada e estimulada. Assim, é no
cotidiano que as pessoas se realizam, são alienadas ou se tornam conscientes
do seu papel na sociedade e a cultura, por sua vez figura como força de
resistência, que desperta as pessoas para a tomada da consciência de quem
são: construção da identidade. Enquanto é a memória o elemento fustigador
dessa construção.
A partir desse ponto de vista, entendemos que o processo de investigação
dessa pesquisa, interferiu diretamente no cotidiano das rezadeiras de Pojuca,
sujeitos sociais desse trabalho. As visitas e perguntas serviram como estímulo
para que “forçassem a mente” e lembrarem-se de coisas acontecidas e/ou ditas
há anos. Fez com que essas mulheres se perguntassem sobre o seu ofício,
lamentaram muitas vezes porque seus filhos e filhas “não se interessam em
aprender rezar”, para que quando elas se forem, tenha quem continue rezando. E
por isso, demonstraram preocupação em passar seus conhecimentos para
alguém: “Eu vou até ver alguém para ensinar essas coisas”166, disse dona Djão
em um dos nossos encontros.
Então, quando pensamos o cotidiano, quando provocamos as pessoas
para que nos exponham suas memórias, inevitavelmente estamos interferindo no
seu cotidiano, afinal, o que antes não era questionado ou parecia não ter mais
“jeito”, agora figura como incômodo e, se incomoda, é porque tem força de
transformação, pois está latente na memória e, consequentemente, no cotidiano
das pessoas e do espaço que elas habitam. Portanto, como afirma Lefebvre
(1991: 35) “é tratando do cotidiano que podemos caracterizar a sociedade”167 em

165
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano... Op. Cit.; p. 157;
166
Conversa com dona Djão, 74 anos, em 02/06/2010;

167
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p. 35;
93

que vivemos, assim podemos conhecê-la, desvendá-la e superar suas limitações


e imposições.

Capítulo II
94

A História de Pojuca nas memórias guardadas pelas


rezadeiras

Começaria tudo outra vez,


se preciso fosse meu amor.
A chama que em meu peito arde...
Nada foi em vão.

A Constituição do Estado da Bahia, no inciso VII do artigo 59, que versa sobre
a competência dos municípios, diz que cabe à esses “garantir a proteção do
patrimônio ambiental e histórico-cultural local168”, no entanto, em muitos municípios
da Bahia nos deparamos com situações que ignoram por completo tal determinação
legal. Pojuca é um exemplo típico dessa constatação.
Na tentativa de investigar aspectos da sua história a partir do Arquivo Público
Municipal, tivemos a oportunidade de ver que tratamento tem sido dado aos
documentos oficiais do município. Num local de muita umidade, inclusive com
infiltração no teto, encontramos várias pastas e caixas, contendo documentos,
jogadas de forma aleatória nas prateleiras e pelo chão. Até uma poça de água,
formada pela infiltração foi possível verificar naquele local. Porém, não tivemos a
oportunidade de acesso a nenhum documento, pois não foi-nos dada autorização
pela prefeita do município para tal propósito.
Tratamento parecido tem sido dado ao conjunto arquitetônico e objetos
antigos, que serviriam como “locais de memória”, como define Nora (1993). Casas e
prédios do início do século XX são demolidos ou reformados sem o mínimo pudor e
objetos antigos ou encontrados em obras de escavação não são guardados ou
expostos em nenhum local adequado.
Essas considerações nos fazem voltar às reflexões do capítulo anterior, nas
quais verificamos o esforço para a construção e manutenção de uma cultura geral e
uma história oficial organizadas pelo Estado, que representa os grupos dominantes,
aos quais, diante dos seus objetivos, nos posicionamos criticamente. Os poderes
públicos de Pojuca, não se interessam, nem sequer em conservar os documentos
oficiais do município.

168
BAHIA, Constituição do Estado, Assembléia Legislativa da Bahia, 2002.
95

Enfatizamos que, não negamos a importância da história; já havíamos


assinalado que a consideramos de grande valor para a humanidade, desde que esta
retrate as peculiaridades, as entranhas da vida, do cotidiano e da memória dos
grupos, que compõe a sociedade; desde que dê eco às vozes das minorias e não
camufle os conflitos existentes nas diversas sociedades. Portanto, não negamos a
importância dos elementos que viabilizam a construção da história, o que
questionamos são os interesses que estão por trás de determinadas elaborações
históricas e culturais e, consequentemente, o tratamento dispensado à esses
elementos.
Sendo assim, percebemos que em Pojuca não há uma política de tratamento
das “fontes históricas” ou “locais de memória”. A história desse município tem sido
contada de forma surreal, apenas baseada nos nomes dos prefeitos e prefeitas e
suas famílias, nos ditames das famílias abastadas e baseada na presença da
Petrobrás e da Ferbasa. Então, para não fugir da regra, revela os nomes das nobres
famílias responsáveis pelo inicio do povoamento e em seguida, os feitos em prol da
sua emancipação política. Tudo mais tem sido omitido ou camuflado.
Diante dessa infeliz realidade, nos propomos fazer o caminho inverso no
processo de averiguação da história de Pojuca e suas memórias, pois nos apoiamos
no olhar, nas experiências e nas memórias do seu povo. Investigar um pouco dessa
história a partir das informações orais, das memórias das pessoas entrevistadas,
principalmente das rezadeiras, e também de alguns outros documentos e obras
bibliográficas, deve nos permitir formular algumas sínteses em torno dos aspectos
omissos dessa história.
Resolvemos iniciar apresentando dados da sua localização.
Pojuca é um pequeno município do Recôncavo Norte da Bahia, com área de
318 Km2 e situada a 70 km de Salvador. É cortada pelas rodovias BA 093 (que vai
de Entre Rios até Simões Filho, quando se encontra com a BR 324 e alcança
Salvador) e BA 420 (que a liga à Catu). Tem população estimada 32.225 mil
habitantes169.
É um dos municípios que compõem a região ao entorno da Baía de Todos os
Santos – o recôncavo baiano –, situado ao norte. Trata-se de uma região de Mata

169
Contagem da população, IBGE 2009. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1.
Acessado em 08/06/2010.
96

Atlântica, com clima temperado e solo úmido, de massapé, propício para o plantio de
cana-de-açúcar, por exemplo.

170

Na escola só tivemos a oportunidade de ouvir falar sobre alguns aspectos


bem pontuais da sua história, como o significado da palavra pojuca, que, de acordo
com Teodoro Sampaio171, é considerada uma corruptela de yapô-yuca, palavra tupi,
que quer dizer água podre, pântano, estagnado. Recebemos também informações
bem superficiais do seu processo de colonização, como podemos observar na
monografia número 262, ano 1963 do IBGE:

A colonização nas terras baianas só teve início depois


da chegada de Tomé de Souza, em 1549. O bandeirante

170
Localização de Pojuca, disponível em:
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/9/9c/Bahia_Municip_Pojuca.svg/579px-
Bahia_Municip_Pojuca.svg.png acessada em: 20/08/2009.
171
Pojuca corr. yapó – yuca, o pântano corrupto, apodrecido; estagnado, podre. In: SAMPAIO, Teodoro. O tupi
na geografia nacional. São Paulo: Brasiliana, 1987, 5ª ed. P. 305.
97

Garcia d'Ávila estabeleceu-se na região e venceu os patachós


e tupiniquins. Grande movimento de colonização operou-se de
1609 a 1612, na zona territorial entre os rios Joanes, Jacuípe e
Pojuca, sendo interrompido durante a invasão holandesa. A
primeira povoação surgida no território data de 1684, quando
se fixaram às margens do rio Pojuca, onde hoje está situada a
cidade, as famílias Freire de Carvalho, Veloso e Saraiva,
construindo moradias e engenhos, cercando pastagens e
cultivando a terra. A iniciativa despertou interesse dos
moradores circunvizinhos, desenvolvendo-se mais rapidamente
o núcleo. O distrito surgiu em 1892 e o Município em 1913.
O termo Pojuca, segundo Teodoro Sampaio, é
corruptela de "yapô-yuca": "o pântano, o estagnado e podre"172

Confirmamos essa informação através do vocabulário geográfico brasileiro de


Sampaio (1987), que apresenta assim o significado do termo: “Pojuca. Corr. Yapó –
yuca, o pântano corrupto, apodrecido; o estagnado, podre. Alt. Ipojuca, pajú, bajú,
mojú” (SAMPAIO, 1987: 305). O significado do termo pojuca e os índios que
habitavam a região: tupiniquim e pataxó são as únicas menções feitas à presença
indígena na história da cidade, embora a presença do povo pataxó seja bem
questionável, diante da sua localização desde a chegada dos portugueses ao Brasil,
ainda que saibamos que o nomadismo era uma das características desse povo.
Outro aspecto da história de Pojuca também repetido nas escolas refere-se à
origem da sua colonização, ocorrida desde o início do século XVII, período colonial
do Brasil, sendo Pojuca parte de uma sesmaria, que, só passou a ser povoada pelos
portugueses no final do referido século, com a construção dos engenhos de cana-
de-açúcar, também mencionados na citada monografia do IBGE. Assim, sobre a
presença dos negros nessa história, apenas há um indício implícito, por conta da
informação de que nesse município se construiu engenhos.
Depois de uma grande lacuna, por ocasião dos festejos emancipatórios fala-
se da emancipação do município no início do século XX, quando a cidade deixou de
ser um distrito do município de Santanna do Catu em 29 de julho de 1913, como
consta na mesma monografia:

FORMAÇÃO ADMINISTRATIVA
O Distrito foi criado pela Lei municipal de 5 de setembro de
1892, como componente do Município de Santana do Catu.
Desmembrou-se deste em virtude da Lei estadual n.º 979, de
29 de julho de 1913 que criou o Município de Pojuca. A
172
IBGE/ BA, Monografia nº 262, 1963. Disponível em:
- http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/bahia/pojuca.pdf, acesso em 01 maio de 2009.
98

instalação verificou-se a 26 de outubro do mesmo ano. O


decreto-lei estadual n.º 11.089, de 30 de novembro de 1938,
elevou a sede à categoria de cidade. Sempre foi composto de 2
distritos: Pojuca (sede) e Miranga173 (IBGE, 1963).

Ainda no período em que estudávamos no ensino fundamental, era comum


ouvir em verso e prosa o chavão de que Pojuca era a “Princesinha do Petróleo”,
isso, por causa da extração petrolífera, que iniciou no município a partir de 1953,
quando a Petrobrás se instalou naquela região, transformando sua paisagem,
valores e, consequentemente, o comportamento da população, que ampliou
bastante com a chegada de muitas pessoas para trabalhar na empresa.
Segundo Brito (2008), entre 1940 e 1950, devido a grande crise na cultura
canavieira, o índice populacional de Pojuca sofreu uma grande depressão: cerca de
44, 8%. Já entre as décadas de 1950 e 1960, com a implantação da extração
petrolífera ocorreu movimento inverso e o índice populacional teve crescimento de
60% de moradores na sede do município174. Assim, Pojuca passa a ter uma
população crescente, combinada com o aumento da densidade demográfica na sede
e redução na zona rural; fator que provoca profundas mudanças na paisagem e no
comportamento da população, que vai se orgulhar de pertencer à “princesinha do
petróleo”.
Hoje já não se repete mais esse chavão, pois, embora ainda tenha na
extração de petróleo e de gás natural a sua maior fonte de renda, Pojuca já perdeu o
título de “princesinha do petróleo” há alguns anos.
A abordagem de Hall (2005) sobre a cultura nacional ou de Nora (1993) sobre
história, encontram fiel exemplo na forma como a história oficial de Pojuca busca
construir no imaginário do povo pojucano a idéia da homogeneização social da
população. Os gestores, especialmente a partir da década de 80, passaram a utilizar
o discurso de pai ou mãe dos pojucanos, assim, omitem os conflitos que desafiam a
realidade, e, através de favores, apadrinhamentos e distribuição de brindes, mantêm
a população alheia aos desmandos cometidos, e submissa à ordem por eles
estabelecida.
Esse discurso histórico, somado ao grande fluxo migratório que a cidade
sofreu e ainda sofre são responsáveis pela realidade de alienação à qual o povo de

173
IBGE/ BA, Monografia nº 262, 1963.
174
Esses dados podem ser observados entre as páginas 71 e 130, onde o autor representa-os através de tabelas.
BRITO, Cristóvão. A Petrobrás e a gestão do território no Recôncavo Baiano. Salvador: EDUFBA, 2008.
99

Pojuca tem sido induzido. Como conseqüência dessa situação, encontramos uma
população com pouca ou nenhuma consciência da sua identidade cultural,
especialmente no que se refere à presença africana, ainda que a grande maioria dos
seus habitantes seja notoriamente negra.
Pojuca tem dois inegáveis indícios da presença africana desde os primórdios
da sua história oficial. Primeiro as características físicas e culturais do seu povo, que
é uma conseqüência do segundo indício, a sua localização, no recôncavo, que não
deixa dúvidas da presença africana nessa região, pois os colonizadores ocuparam
suas terras com a criação de gado e, principalmente com a construção de engenhos
de cana-de-açúcar, para os quais foi introduzida a mão-de-obra escrava dos negros
africanos.
Como a grande maioria dos municípios baianos, Pojuca também se formou às
margens de um rio, seu homônimo. De acordo com os dados do Relatório de
Monitoramento das Águas do Estuário do Rio Pojuca (2005)175, esse rio é o principal
de uma bacia que recebe águas de doze rios, possui cerca de 4.341 km² e percorre
quase de 200 km, sendo a bacia de maior extensão do Recôncavo Norte. Nasce no
município de Santa Bárbara , na Serra da Mombaça e desemboca no Oceano
Atlântico entre a Vila da Praia do Forte e Itacimirim.
Além de Pojuca, suas águas atravessam os territórios de vários municípios
como Feira de Santana, Irará, Teodoro Sampaio, Terra Nova, Coração de Maria,
Alagoinhas, Catu, Mata de São João e Camaçari.

(...) Cruzando o interior ao norte do Recôncavo, outros


rios como o Jacuípe, Joanes e Pojuca corriam em direção
leste, desaguando não na baía de Todos os Santos, mas no
oceano, ao longo da costa norte de Salvador. Esses rios
nasciam nos áridos planaltos e ocasionalmente secavam por
completo durante o verão. Os engenhos, sempre que possível,
localizavam-se às margens da baía ou ao longo dos rios,
aproveitando-os como meio de transporte e as vezes também
como fonte de energia.176

O rio Pojuca dá nome à cidade e foi ele o responsável pela atração de


famílias que foram se acumulando nessas terras, onde construíram engenhos de

175
BAHIA, Relatório de Monitoramento das Águas do Estuário do rio Pojuca. Salvador, Bahia, 2005.
Disponível em: http://www.semarh.ba.gov.br/gercom/relatorio_monitoramento.pdf, acessado 20/06/2009.
176
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos, e escravos na sociedade colonial 1550 – 1835. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 79;
100

cana-de-açúcar, comum naquela época. Rego (1988) apresenta relato datado no


ano de 1757, do reverendo Felipe de Barbosa da Cunha para o rei de Portugal:

Há nesta freguesia oito engenhos de fazer açúcar a


saber: Laranjeiras, da Pojuca, do Retiro, da Água Boa,
Pimentel, Laranjeiras Nova, Papassu, Terra Nova e das
religiosas de Nossa Senhora do Carmo. Distam um do outro
entre uma e duas léguas. Estes engenhos são as maiores
povoações de que compõem esta freguesia, porque além de
serem os seus senhores pessoas distintas, trabalham nesta
oficina grande quantidade de escravos e homens forros,
havendo também muitos lavradores de cana que plantam para
moerem nos ditos engenhos, dando-lhes a meação do açúcar
como é estilo vivendo estes em suas fazendas distintas que
fazem corpo com os mesmos engenhos (...). Há nesta
freguesia três capelas filiais: a de Nossa Senhora da Soledade,
sita no Engenho do Retiro; Nossa Senhora das Mercês, no
Engenho de Pojuca177, e a Nossa Senhora do Desterro, no
Engenho das Laranjeiras (...).178

Contudo, encontramos esta mesma citação no artigo de Filho179, seguramente


mais elaborado, e, a partir dele, percebemos que os engenhos citados pelo então
vigário não se referiam apenas ao atual território de Pojuca, pois, as terras do
referido município compuseram, juntamente com os atuais municípios de Catu, Mata
de São João, São Francisco do Conde, São Sebastião do Passé, dentre outros, a
Vila de São Francisco do Conde, Schuartz (1988):

As paróquias instituídas pela Igreja estabeleceram a


forma básica de organização no Recôncavo por duzentos anos;
entretanto em fins do século XVII um sistema de organização
secular, baseado em municipalidades, também começou a
formar-se. Em 1698, criaram-se no Recôncavo as vilas de São
Francisco do Conde, Cachoeira e Jaguaripe; Santo Amaro foi
estabelecido em 1727. Jaguaripe foi subdividido em 1724, com
a criação da vila de Maragogipe (...).180

Consideramos também que o número de engenhos oscilou durante os anos


da economia canavieira, com suas altas e baixas. Schuartz (1988), ainda que
desconfiado dos dados, apresenta dados que informam que no final de século XVI a

177
Grifo nosso.
178
REGO, Alfredo Antonio Silva. Breve notícia sobre a emancipação de Pojuca: 1913 – 1930. Pojuca, 1988, p.
7;
179
FILHO, Walter Fraga. Histórias e reminiscências da morte de um senhor de engenho no Recôncavo. In: Afro-
Ásia nº 24. Salvador: UFBA, 2000, pp. 165 – 189.
180
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos, e escravos na sociedade colonial... Op. Cit.; p. 81;
101

capitania da Bahia possuía 50 engenhos em funcionamento181. Porém, Sousa


(1851), na sua obra Tratado Descritivo sobre o Brasil em 1587, contabiliza 36
engenhos na Bahia:

Mas comecemos nos engenhos, nomeando-os em


suma, ainda que particularmente se dissesse de cada um seu
pouco, havendo que dizer deles e de sua máquina muito, os
quais são moentes e correntes trinta e seis, convém a saber:
vinte e um que moem com água e quinze que moem com bois,
e quatro que se andam fazendo. Tem mais oito casas de cozer
meles, de muita fábrica e mui proveitosas. Saem da Bahia cada
ano destes engenhos passante de cento e vinte mil arrobas de
açúcar, e muitas conservas. Tem a Bahia com seus recôncavos
sessenta e duas igrejas, em que entra a Sé e três mosteiros de
religiosos, das quais são dezesseis freguesias curadas...182

Assim, Schuartz, apresenta maior confianças nas observações de Sousa183.


Já nos séculos seguintes o autor informa que esse número sofreu significativo
aumento: “Em 1676 havia no Recôncavo 130 engenhos. Apenas em princípios do
século XVIII começou a haver melhora na documentação. Em 1710 indicou-se a
existência de 146 engenhos na Bahia”184. E no século XIX ocorreu um considerável
aumento no número de engenhos na Bahia, como podemos observar na tabela
abaixo:

TABELA I – Engenhos matriculados pela Junta da Real Fazenda e pelo


governo provincial, Bahia 1807 – 1874185

Nº médio de novos
engenhos Nº total de novos Total
Anos
matriculados por ano engenhos cumulativo
matriculados

181
Embora existia alguma discrepância quanto ao número total de engenhos, vários relatos dão conta de
cinqüenta deles funcionando na capitania da Bahia em 1590. (SCHWARTZ, 1988: 72)
182
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro, 1851. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me003015.pdf . Acesso em 02/06/2010, p. 141;
183
Temos a boa sorte de possuir descrições minuciosas, embora incompleta, referentes a 1587, (...) as quais
fornecem um excelente panorama dos contornos demográficos e econômicos dessa região. (SCHWARTZ, 1988:
82);
184
SCHWARTZ, Stuart. B. Segredos internos... Op. Cit.; p. 85;
185
BARICKMAN, Bert Jude. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo,
1780-1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 75.
102

1807 – 1818 - - 315


1818 – 1820 8,7 26 341
1821 – 1829 12,2 110 451
1830 – 1834 26,4 132 583
1835 – 1839 11,6 58 641
1840 – 1844 3,2 16 657
1845 – 1849 10,8 54 711
1850 – 1854 13,2 66 777
1855 – 1859 6,2 31 808
1860 – 1864 3,6 18 826
1865 – 1869 1,8 9 835
1870 – 1874 1,0 5 840

Essas constatações nos servem de argumento quanto a dificuldade de


precisar a quantidade de engenhos no território pojucano. Outro fator que também
dificulta tal precisão refere-se à grande troca de donos sofrida pelos engenhos,
como podemos verificar nas palavras de Schwartz: “Os engenhos mudavam de mão
rapidamente; uma má colheita, a chegada tardia de uma frota, uma guerra européia
podiam acarretar um desastre. A indústria açucareira não era um investimento
seguro”186.
Contudo, conseguimos identificar um dos engenhos citados pelo vigário
Felipe Cunha, no atual contorno das terras de Pojuca: o Engenho Pojuca, onde
ainda existe e resiste uma velha fazenda, localizada entre os bairros Shangri-lá e
Pojuca Nova. Foi possível localizar esse Engenho, graças a um dos relatos de dona
Djão, quando nos informou sobre sua mãe: “Minha mãe era... Ai tinha uma igreja,
uma capelinha... Nossa Senhora da Mercês e mãe lavava roupa prá... Engomava
prá o pessoal da fazenda. Mãe Joana foi criada lá e disse até que ela era filha do
barão”187.
Convém considerar que essa dita fazenda, outrora Engenho Pojuca e
pertencente ao Conselheiro Saraiva, pertence hoje à família Leite, família que
tradicionalmente tem governado o município. João Alfredo Leite (pai), fazendeiro,
que já aparece na cena política de Pojuca desde os anos trinta do século passado188
e foi prefeito nos anos de 1946 a 1948; Luiz Alfredo Leite (filho), que governou por

186
SCHWARTZ, Stuart. B. Segredos internos... Op. Cit.; p.93;
187
Conversa com dona Djão, 74 anos, em 12/05/2010;
188
Participou da cerimônia de posse do prefeito Pacífico de Azevedo Lima, no dia 08 de dezembro de 1930,
quando da “Revolução de 30”, conforme constatamos em Rego (1988:17).
103

duas vezes, de 1984 a 1988 e de 1993 a 1996 e, por último, Luiz Eduardo Bastos
Leite (neto), que governou de 2006 a 2008. Fato que comprova que ainda hoje a
situação política de Pojuca é marcada por profundos resquícios do período
escravocrata.
Segundo os relatos de dona Djão, toda a região do bairro Shangri-lá pertencia
a João Alfredo Leite. Suas lembranças indicam que ainda no inicio do século XX,
existiam engenhos – usinas – em Pojuca e que o tratamento dado aos trabalhadores
era como se ainda fossem escravos:

Ele (seu pai) era escravo mesmo. Era filho de escravo.


Ele criava. Tinha uma fonte bem perto que mãe lavava roupa
prá a fazenda, mãe era lavadeira... E meu pai trabalhava na
fazenda. Ela engomava prá as pessoas da fazenda, lá e
cozinhava...
Tinha cana, meu pai ia para Paranaguá, ia buscar cana.
Os carros de cana para moer aqui.
Ai tinha a moenda. A fazenda era aqui, no finado João
Leite, a fazenda... Ai tinha a moenda, tinha um tacho deste
tamanho, o tacho. Agora tinha... Moía com o boi, viu? Era dois
boi moendo assim: moendo, moendo, moendo... E depois fazia
o açúcar, fazia o açúcar, o açúcar mascavo. Tá vendo?189

Região de tabuleiro do recôncavo, mas ainda com clima úmido e solo fértil,
Pojuca oferecia todos os aspectos necessários para favorável produção de cana-de-
açúcar, mas além da cana, também produziu em mandioca, fumo e desenvolveu a
criação de gado leiteiro.
De acordo com informações tiradas do Livro Tombo da Paróquia Bom Jesus
da Passagem (1917), ao apresentar os limites da nova paróquia, conseguimos
identificar mais cinco engenhos, a saber: Engenho Santiago, Engenho Remédios,
Engenho Gameleira, Engenho Pindobal e Engenho Onça190.

189
Conversa com dona Djão, 74 anos, em 12/05/2010;
190
Pela presente Havemos por bem, usando da Nossa jurisdição ordinaria e na forma do Sagrado Concílio
Tridentino, ouvido o Nosso Ilmº Revmº Caleido Metropolitano, attendendo aos interesses espirituaes dos fieis,
elevar à categoria de freguezia, que se denominará = Freguesia do Bom Jesus da Passagem =, o segundo districto
de paz e policial da Villa e Freguezia de Sant’anna de Catú, cuja séde é no arraial de Pojuca, ficando desde já
separado, dividido e desmembrado o mesmo districto da mensionada parochia de Sant’Anna do Catú, e erigido
economicamente instituída em o dito districto a nova Parochia sob o Orago de Bom Jesus da Passagem, cuja
linha divisoria é a seguinte: No rio Pojuca, do lugar onde desagúa o rio Una, por este rio acima até a estrada
denominada dos Olheiros; por esta acima comprehendendo as terras dos extintos engenhos: Remédios, Santiago,
Gameleira, Pindombal e Onça ate os limites que tinha o territorio desmembrado da freguezia de Sant’anna do
Catú com as freguezias de Alagoinhas, Abrantes, Mata de São João e Villa de São Francisco e dali ate o lugar
onde se principiou a traçar a linha divisoria, isto é, na foz do rio Uma no Rio Pojuca: limites estes que são os do
104

Na sua obra Povoamento do Recôncavo pelos engenhos: 1536 – 1888,


Carlos Ott (1996) cita os engenhos Remédio e Santiago, além do Pojuca, o qual ele
diz que o nome verídico é Caboclo, no entanto, tivemos muita dificuldade em
identificar o Engenho Caboclo, o Engenho da Purificação e o Engenho Pojuca. Ao
ler Ott (1996) e Araújo (2002), imediatamente concluímos que tratava-se do mesmo
estabelecimento, principalmente a partir das informações de Araújo (2002)
referentes aos sócios do Engenho Central de Pojuca – o segundo Engenho Central
da Bahia –, no processo de tentativa de recuperação da economia canavieira da
Bahia no final o século XIX:

Seus fundadores e principais acionistas — Conselheiro


José Antônio Saraiva, Coronel José Freire de Carvalho, José
Augusto Chaves, Antônio Ferreira Veloso191 e Félix Vandesmet
—, possuidores de grande capacidade administrativa,
souberam atrair ao projeto o interesse de pessoas de projeção
na sociedade baiana, como é o caso do Conde de Subaé.192

Também quando a autora se refere à localização do referido Engenho:

O segundo engenho central construído na Bahia foi o da


Pojuca, localizado em Catu, no Engenho Purificação, à margem
da linha férrea inglesa (Estrada de Ferro Bahia ao São
Francisco), estabelecimento contratado, à semelhança do Bom
Jardim, com a Companhia Five-Lille.193

Ressaltamos aqui, que como declara o documento do IBGE (1963), o


município de Pojuca sofreu sua emancipação política em 29 de julho de 1913 e o
que estamos chamando aqui de Pojuca, não é apenas o espaço político, mas,
também o espaço geográfico, ou seja, como estamos adotando uma cronologia não
linear, para a construção de aspectos da história de Pojuca, concomitantemente,
apresentamos informações de diferentes períodos da sua história, antes e após a
sua emancipação.
Cientes de que havia uma freqüente rotatividade entre os donos de engenhos,
supomos que essa era uma realidade bem evidente do engenho em questão: Ott

actual segundo districto de paz e policial da Villa de Sant’anna do Catú... Livro Tombo da freguesia de Bom
Jesus da Passsagem, 1917.
191
Grifo nosso.
192
ARAÚJO, Tatiana de Freitas. Os engenhos centrais e a produção açucareira no Recôncavo Baiano: 1875-
1909. Salvador, FIEB, 2002, p. 117;
193
Ibid., p. 116;
105

revela: “No dia 19 de agosto de 1839, já aparece como proprietário do engenho


Pojuca o coronel Simão Gomes Ferreira Veloso”194, mais um empreendedor do
Engenho Central.
Já na Noticia descriptiva da felicitação dirigida em nome do Partido Liberal ao
Sr. Conselheiro José Antonio Saraiva (1870)195, encontramos como proprietários do
Engenho da Purificação a família Velloso e também o Conselheiro Saraiva, que era
casado com a filha do primeiro. Com todas essas informações, somos levados a
acreditar que trata-se de um mesmo engenho, apesar dos diferentes nomes a esse
atribuídos. Porém, na consulta ao livro Tombo da Paróquia Bom Jesus da
Passagem, padroeiro de Pojuca, quando registra o extrato da escritura de doação de
terras por José Antonio Saraiva para construção do cemitério da Paróquia em 1895,
encontramos outra informação que nos faz voltar a idéia inicial de se tratar de dois
engenhos distintos, ainda que com proprietários comuns:

(...), perante os quais pelo procurador do dito


Conselheiro José Antonio Saraiva, me foi dito que seu
constituinte doava à fábrica de Igreja Matriz desta parochia de
Sant’Anna do Catú, novecentas braças quadradas de suas
terras, para no referido terreno ser pela mesma Fabrica
edificado um cemiterio, cujas terras se confinam com as do
Barão de Pojuca com quinze braças de frente e sessenta de
fundo um dos seus lados collocados no rumo do engênho do
seu constituinte196 e em direcção à fonte antiga do Pau
D’arco.197

Essa informação evidencia que o Engenho Pojuca, do Barão de Pojuca era


um e o Engenho Purificação, que tem como nome original “São José dos Caboclos”,
onde foi implantado o segundo Engenho Central da Bahia – Engenho Pojuca, é
outro, contradizendo as informações de Ott (1996), que os apresenta como se fosse
apenas um.
Para reforçar a tal conclusão acrescentamos a fala de dona Helena (99 anos):

Não sei se tinha engenho. Só sei que em Central fazia


açúcar. Meu avô plantava cana para moer em Central, na
fábrica Central. Tinha também a usina de Pitanga. Em Central

194
OTT, Carlos. Povoamento do Recôncavo pelos engenhos: 1536 – 1888. Salvador: Bigraf, 1996, p. 309;
195
PARTIDO LIBERAL. Noticia descriptiva da felicitação dirigida em nome do Partido Liberal ao Sr.
Conselheiro José Antonio Saraiva (1870): em sua residência à Pojuca. Bahia: Typographia do Diario, 1870.
196
Grifo nosso.
197
LIVRO DE TOMBO DA FREGUEZIA DE POJUCA, Pojuca – BA, 1917 – 1960, p. 3 (verso).
106

tinha a Igreja da Purificação. Dois de fevereiro era a missa da


Purificação. Quem tem a imagem da santa até hoje é Luís
Claudio, filho de dr. Dilson.
A sede era mais desenvolvida que Central, só tinha a
igreja e a estação e a usina de açúcar.198

Nessa foto (2010) podemos identificar a Fazenda São José do Caboclo, com sua torre, com data de
1894 a linha férrea São Francisco, com parte do prédio da Estação Central, no atual bairo de Central.

Ainda uma dúvida nos acomete em relação ao segundo Engenho Central da


Bahia, pois, de acordo com o trabalho de Araújo (2002), esse foi inaugurado em 18
de novembro de 1880, naquela tentativa de dar reativar a cultura açucareira no
estado, o que, no entanto, conforme a autora, não surtiu o efeito esperado e, em
1909, com o final da monarquia, fora completamente abandonado199.
No entanto, a placa na base da torre da fazenda São José do Caboclo, como
podemos verificar abaixo, apresenta data de 1894, quatorze anos após a
inauguração. Podemos ainda relembrar as palavras de dona Helena (99 anos), as
quais informam que esse estabelecimento ainda se encontrava em franca atividade
nos primeiros anos do século XX, quando lembra que seu pai produzia cana para
ser processada nesse engenho. Essas duas informações nos fazem deduzir que

198
Conversa com dona Helena, 99 anos, em 09/12/2009; (faleceu em Janeiro de 2010).

199
Julga-se interessante ressaltar que a política encetada oficialmente para aplicação de recursos na implantação
de engenhos centrais tende a ser gradualmente abandonada, à medida que se opera a transição do regime
monárquico para o republicano, até ser definitivamente abandonada em 1909. (ARAÚJO, 2002: 139)
107

esse engenho continuou funcionando para além da primeira década do século


passado.

Inscrição da placa da base da torre da fazenda São José dos Caboclos, 2010.

Das terras desse engenho muito já foi vendido, mas até hoje suas terras
atingem os territórios de Catu e São Sebastião do Passé, segundo o seu dono, Sr.
Luis Claudio Vasconcelos de Aguiar, neto do então barão de Pojuca. Foi
conversando com ele que conseguimos elucidar a dúvida se o engenho São José
dos Caboclos e o engenho Pojuca eram o mesmo estabelecimento, possibilidade
negada pelo herdeiro do barão de Pojuca.
Outro engenho citado pelas rezadeiras foi o Engenho Pitanga. Citado tanto
por dona Laura (81 anos) e também por dona Helena (99 anos), mas, como dona
Laura sinalizou não pertence à Pojuca e sim ao município de Mata de São João.
Dado confirmado por Filho (2006:51): “em 12 de fevereiro de 1881, o chefe de
polícia recomendou ao subdelegado de Mata de São João que informasse ao dono
do Engenho Pitanga200 que o escravo José de Santana, crioulo, fora à sua presença
queixar-se do feitor do mesmo engenho201”. Dona Helena ainda nos informou que “a

200
Grifo nosso.
201
FILHO, Walter Fraga. Encruzilhadas da Liberdade. Campinas: UNICAMP, 2006, p.
108

usina da Pitanga era o arrimo do povo de Pojuca. Tinha de tudo lá: feira, tão grande
quanto a de Pojuca, tinha dentista202, tinha feira sábado e domingo”203.
No entanto, o fato do Engenho Pitanga não pertencer a Pojuca e sim a Mata
de São João204 não interfere na nossa investigação, pois, nesse caso, a questão de
limites é apenas política, já que antes mesmo de Santana do Catú ser uma
freguesia, ela também compunha o território matense. Por outro lado, até os dias
atuais as pessoas dessas imediações se consideram pojucanas e são atendidas em
todas as questões como educação, água, saúde e comércio, dentre outros, em
Pojuca.
Por último, ainda que apenas como suposição, vemos como possível a
presença da família do barão de Jeremoabo – Costa Pinto – também em Pojuca. O
cruzamento de duas informações nos permite verificar tal possibilidade:

O historiador F. W. O. Morton estima que 92 dos 316


engenhos baianos em 1818 (29%) eram propriedade de vinte
grandes famílias, entre elas, os Góes, Calmon, Fiúza, Costa
Pinto, Dória e Rocha Pita. Essas famílias não só possuíam
muitos engenhos, mas também, em geral, os mais bem
localizados e maiores.205

Nessa lista de donos de engenho apresentada nesse fragmento identificamos


a família Dória, já apontada como proprietária do Engenho da Purificação e também,
é bem provável que a família Costa Pinto, seja a mesma família do Cel. Carlos Pinto,
que figurava como influente figura política do município, pois foi um dos
personagens do processo emancipatório de Pojuca e o primeiro prefeito daquela
cidade. Também encontramos o seu nome diversas vezes com padrinho de muitas
crianças do referido município, no livro de batismos da Paróquia Bom Jesus da
Passagem, fato que comprova sua influência sobre a população, comportamento
comum dos coronéis daquela época. Infelizmente, não conseguimos identificar qual
teria sido o engenho de propriedade dessa família.
A essa altura já temos como certa a presença africana, logo nos anos iniciais
da ocupação colonial das terras ao longo do rio Pojuca, uma vez que a mão-de-obra
202
É provável que naquela época não houvesse dentista, serviço ainda hoje muito limitado à população. Talvez
o que se due
203
Conversa com dona Helena, 99 anos, em 9/12/2010;

204
Vamos ao segundo engenho, o de Pitanga da Freguesia de Bonfim da Mata. (OTT, 1996: 36)
205
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos... Op. Cit.; p. 93;
109

utilizada em toda a colônia e, especialmente nos engenhos era do negro africano


escravizado.
De acordo com Berkenbrock (2007): “Já no ano de 1549, os donos de
plantação receberam o direito de importar ao Brasil cada qual 120 escravos da
Guiné ou da Ilha de São Tomé. Esta é a primeira permissão legal para a importação
de escravos africanos ao Brasil de que se tem notícia”206, porém ainda não se
constituía o tráfico conforme se desenhou a partir do século XVII.
Berkenbrock (2007) estima que no primeiro século de colonização o Brasil
importou cerca de 30 mil escravos africanos:

Estima-se em dois a três mil o número de escravos


africanos no Brasil por volta de 1570. Duas décadas depois,
este número já deve ser de nove a dez mil e na virada do
século em torno de 15 mil. Segundo estas estimativas, no
primeiro século de colonização foram trazidos para o Brasil
cerca de 30 mil escravos africanos. Neste mesmo período, o
número de engenhos subiu para mais de 100. Cada engenho
possuía em média de 20 a 300 escravos.207

Já segundo Mattos (2007: 104), o Brasil recebeu cerca de cem mil africanos
só no século XVI. Eram povos mandingas, jalofos, balantas, bijagós, dentre outros,
oriundos da região da Senegâmbia208.
Observemos que Mattos indica um número de africanos no Brasil três vezes
maior que a estimativa de Berkenbrock, de trinta mil africanos. O que causa
estranheza é que Mattos utiliza como fonte Alencastro (O trato dos viventes, 2000) e
apresenta estimativa tão diferente da sua fonte, que, assim como Berkenbrock,
apresenta uma estimativa de 40209 mil escravos.
O aumento do comércio de escravos também fez expandir os territórios de
onde os africanos eram capturados e ou comprados. Assim, a partir do final do
século XVIII, os nagô passaram a ocupar lugar no cenário de escravidão no Brasil.
Nagô também era um nome genérico, como nos informa Sodré (2005);

206
BERKENBROCK, Volney J. E experiência dos Orixás... Op. Cit.; p. 67;
207
Ibid., p. 70;
208
A área entre o deserto do Saara e a floresta equatorial, nas bacias dos rios Senegal e Gâmbia, era conhecida
como Senegâmbia. Habitada pelos povos sereres e jalofos, que no segundo milênio da era cristã, vindos do vale
do Senegal aí se fixaram, fugindo da seca e da expansão do islamismo (MATTOS, 2007: 31).
209
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006, p. 69.
110

Nagô é o nome genérico de todos os grupos originários


do sul e do centro de Daomé e do sudoeste da Nigéria,
portadores de uma tradição rica derivada das culturas
particulares dos diferentes reinos africanos de onde provieram
(...)210

Nessa perspectiva, de uma forma geral, quando ouvimos falar das nações
africanas no Brasil, especialmente na Bahia, é mais comum ouvirmos falar no povo
nagô – “baianidade nagô” – e/ou no povo banto. É bem verdade que também se
ouve falar em povo jeje-nagô.
No entanto, considerando que “jeje” não se refere a um termo corriqueiro, o
fato de as rezadeiras ao se referirem aos escravos só atribuírem o termo “jeje”, nos
faz presumir que a maioria dos negros escravizados em Pojuca originaram-se dessa
nação. Assim, tornou-se imprescindível aprofundar um pouco mais as reflexões em
torno da origem dos africanos que foram trazidos como escravos para o Recôncavo
baiano.
Assim, dona Djão (74 anos) disse que o seu pai era jeje, quando perguntei o
que era jeje, ela prontamente respondeu que jeje era quem era escravo: “(...) meu
pai que era jeje, seu Bernardo era jeje. Jeje, quer dizer... Jeje é a primeira parte de
africano, né?...”211 Também dona Senhora (81 anos) assim identificou a senhora que
lhe ensinou a rezar: “ela era assim, bem pretinha, era jeje”. Lembramos então já ter
ouvido essa denominação em outros momentos e com o mesmo significado, o que
sugere a probabilidade da presença de negros jeje ou nagô em terras pojucanas.
Informação que nos surpreendeu e, exigiu maior aprofundamento, uma vez
que o nosso propósito é identificar a memória africana de Pojuca, através da vida
cotidiana das rezadeiras. Mas, infelizmente, essas informações só foram reveladas
no período final da pesquisa, o que não nos permitiu fazer buscas mais profundas à
documentos e referências bibliográficas, e mesmo nas entrevistas, no intuito de
atribuir maior precisão às suspeitas então suscitadas. Porém, ainda que com o risco
de cometer equívocos, nos mobilizamos nessa empreitada.
Assim, encontramos autores que convergem quanto a terminologia jeje, ao
tempo em que aprofundam a classificação de forma mais detalhada que a acima
apresentada por Sodré (2005), como são os casos de Reis (2003: 162) “(...) Daomé,

210
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p. 89;
211
Conversa com dona Djão, 74 anos, em 12/05/2010;
111

terra dos chamados jejes (povos do grupo lingüístico gbe, sobretudo fon-ewe”212 e
Parés (2007):

O termo “jeje” aparece documentado pela primeira vez


na Bahia nas primeiras décadas dos Setecentos, para designar
um grupo de povos provenientes da Costa da Mina (...) Os
“jejes” têm sido usualmente identificados, ao menos a partir do
século XIX e, posteriormente, na literatura afro-brasileira, como
daomeanos, isto é, grupos provenientes do antigo reino de
Daomé. Mas, na verdade, o termo “jeje” parece ter designado
originalmente um grupo étnico minoritário, provavelmente
localizado na área da atual cidade do Ponto Novo, e que, aos
poucos, devido ao tráfico passou a incluir uma pluralidade de
grupos étnicos localmente diferenciados.213

Não devemos esquecer, contudo, que aqui no Brasil, os africanos foram


construindo suas identidades através de traços gerais que os identificava como
língua, religiosidade, região... E assim construíram um ideal de irmandade. Então, o
que na Bahia é denominado de jeje não refere-se a apenas uma etnia africana, bem
como, não formaram seu perfil cultural apenas com os elementos vindos na memória
e no corpo do seu lugar de origem. Também devemos considerar que, com a
mudança geográfica do volume de africanos no comércio para a Bahia, a partir do
final da segunda década do século XIX, os nagôs passaram a predominar e com
isso, influenciaram também na construção cultural do povo jeje na Bahia.
De acordo com Reis (2003), devido os conflitos ocorridos na África, a partir do
inicio do século XIX, houve uma mudança na distribuição étnica dos grupos que
foram trazidos para o Brasil, com aumento substancial dos negros das nações da
região do Benin, especialmente do antigo reino de Daomé. Assim Reis descreve tal
fluxo:

Em 1819-20 – quando os nomes de nação apareceram


mais discriminadamente na documentação –, os grupos
específicos mais numerosos embarcados nos portos do golfo
de Benin (nagôs, haussás, jejes e tapas) representavam quase
54% dos escravos da Cidade da Bahia nascidos na África. Em
1835, esses mesmos grupos passariam a representar perto de
60%. A nação nagô foi de longe a que mais aumentou sua
representação nesse período, de 16,5% para 31,1% dos
africanos. Esses números poderiam ainda ser mais altos, caso

212
REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil
213
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia.Campinas:
UNICAMP, 2007, p. 30.
112

a vaga expressão “mina” – que abarcava nagôs, jejes, haussás


e outros grupos do golfo de Benin – pudesse ser decomposta
com alguma precisão.214

No entanto, a partir da primeira metade do século XVIII até a segunda década do


século XIX o maior número de africanos desembarcados nos portos da Cidade da Bahia,
como era chamada Salvador naquela época, era de origem jeje:

Essa progressiva chegada de escravos gbe-falantes, na


primeira metade do século XVIII, aos poucos ia constituir na
Bahia um estrato de população escrava demograficamente
significativo para estabelecer a matriz de uma nova identidade
coletiva, que viria a consolidar-se como a “nação jeje” na
segunda metade do século.215

Observemos que na tabela extraída de Reis (2005: 309), com a projeção das
nações dos escravos africanos em Salvador, na primeira metade do século XIX, os
Jejes aparecem como o segundo grupo mais numeroso entre as nações da África
Ocidental que foram trazidos para o Brasil.

216
TABELA II – NAÇÃO DOS ESCRAVOS AFRICANOS EM SALVADOR, 1802 - 35
1835
1802 – 6 1819 – 20
NAÇÃO (ESTIMATIVA DA
(AMOSTRA) (AMOSTRA)
POPULAÇÃO)
ÁFRICA
OCIDENTAL
Mina 223 21 1681
Haussá 22 34 1611
Nagô 51 36 5388
Jeje 72 47 2668
Outros 6 26 1268
Total 374 (67%) 164 (68,6%) 12616 (72, 8%)

Devemos considerar, contudo, que os negros de origem mina são um


conjunto de povos, que inclui também os jejes.217
Vale ressaltar, que o termo jeje é presente apenas na África e no Brasil, não
sendo encontrada nenhuma referência em países da América Central, também de

214
REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil... Op. Cit.; p. 308;
215
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé... Op. Cit.; p. 53;
216
REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil... Op. Cit.; p 309;
217
Embora se possa admitir que entre os muitos minas listados por volta de 1835 nos inventários e nos registros
de alforria – base para minhas estimativas – pudessem estar incluídos nagôs, jejes, haussás etc. (REIS, 2003:
328)
113

histórico escravocrata, como Haiti, Cuba e Trindade, dentre outros. Por outro lado,
mesmo no Brasil, essa nomenclatura não se espalhou, ficando restrita apenas à
Bahia e ao Maranhão218.
Isso significa que o estudo desse povo é algo bastante localizado,
especialmente em Salvador e no recôncavo baiano, onde autores vão contribuir com
dados sobre a presença jeje no recôncavo da Bahia, sendo assim, nos engenhos de
Pojuca igualmente, afinal, de acordo com Araújo (2006):

A área do termo da cidade da Bahia corresponde,


atualmente, ao território dos municípios de Amélia Rodrigues,
Camaçari, Candeias, Catu, Conceição do Jacuipe, Dias D’ávila,
Itaparica, Lauro de Freitas, Mata de São João, Pojuca219,
Madre de Deus, Salvador, Santo Amaro, São Francisco do
Conde, São Sebastião do Passé, Saubara, Simões Filho,
Teodoro Sampaio, Terra Nova, Vera Cruz e parte dos
municípios de Coração de Maria, Itanagra e Salinas das
Margaridas.220

Embora tenhamos a estimativa da existência de sete engenhos nas terras do


atual município de Pojuca, nas obras consultadas, das poucas informações
referentes a esses, só tivemos a oportunidade de vislumbrar informações sobre o
Engenho Pojuca. Tendo esse engenho como referência, a tabela abaixo nos é
reveladora. Por exemplo, no ano de 1739, os negros mina, aos quais também estão
referidos os jejes, além de ardas e calabares, representavam 92,5 do total de
escravos africanos daquele estabelecimento. Uma leitura bem atenta dessa tabela
pode nos revelar interessantes informações.

TABELA III – Escravos crioulos e africanos em nove engenhos baianos,


1739221
Engenhos Crioulosa Angolab Minac % Total
H M H M H M africanos H M
São Brás 12 7 12 5 9 17 69,4 33 29
Pitanganha 14 6 8 1 42 40 81,3 65 47
Acotinga 16 7 7 3 7 18 60,3 30 28
Matoim 21 12 5 2 24 24 65,9 50 38

218
Parés, 2007: 47).
219
Grifo nosso.
220
ARAÚJO, Jean Marcel Oliveira. Bahia: negra, mas limpinha. Dissertação de Mestrado. Salvador,
Universidade Federal da Bahia, 2006, p. 55;
221
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos... Op. Cit.; p. 87;
114

Pindobas 9 3 9 2 24 48 87,4 42 53
Sapucaia 3 5 2 2 14 17 81,4 19 24
Caboto 6 9 3 1 15 23 73,7 24 33
222
Pojuca 4 1 14 7 27 14 92,5 45 22
Cornubuçu 1 0 0 0 12 11 97,1 13 11
Total 86 50 60 23 174 212 77,4 321 285
(Porcentagem de (53,2) (72,3) (45,1) (52,9)
homens)
(a) Inclui crioulos, mulatos, mestiços. (b) Inclui angolas, são-tomés, benguelas,
congos, gagos. (c) Inclui minas, jejes, calabares, ardas.

A primeira observação que nos cabe fazer é com respeito a questão de


gênero, vemos que em todos os casos referentes ao Engenho Pojuca, o número de
homens é maior que o número de mulheres, o que nos faz imaginar que as tarefas
nesse engenho eram ligadas principalmente ao trabalho pesado, literalmente
falando.
De acordo com o número de escravos existente em cada engenho
relacionado na tabela, percebemos que o Engenho Pojuca tem o terceiro maior
número de escravos, sendo superado apenas pelos engenhos Pitanganha e Matoim.
Provavelmente um dos maiores e que mais produzia açúcar também; pois,
considerando os engenhos que possuem mais homens que mulheres, o Pojuca é o
que tem a maior diferença: 23 homens a mais que mulheres. Número considerável,
pois o que mais se aproxima – o Pitanganha – tem uma diferença de 18 homens a
mais, sendo este o engenho com maior número de escravos entre os nove
relacionados na tabela.
Outra importante constatação que essa tabela nos fornece é a provável
predominância de negros jejes entre os minas. Considerando as informações de
Reis (2003: 308): “Esses números poderiam ser ainda mais altos, caso a vaga
experssão “mina” – que abarcava nagôs, jejes, haussás e outros grupos do golfo do
Benin – pudesse ser decomposta com alguma precisão”223 e de Parés (2007)224, que
apresenta um volume de 40,5%, entre os anos de 1750 e 1779, da população jeje,
em relação às demais nações de escravos nas regiões de São Francisco do Conde
e Santo Amaro da Purificação.

222
Grifo nosso.
223
REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil... Op. Cit.; p. 308;
224
Ver tabela em: PARÉS, 2007: 66.
115

Ainda que a tabela de Schwartz (1996) seja representativa do ano de 1735 e


as informações de Parés (2007) se refiram ao período entre 1750 e 1779, não há
equívocos nessa argumentação, pois, o próprio Parés, informa que:

Uma das mudanças mais notórias da primeira metade


do século XVIII é o significativo aumento dos jejes, que
passaram de 11.3%, nas três primeiras décadas dos
Setecentos, a 27,1% no período 1730 – 1750 (...) a partir de
1750 até 1780, esse grupo atinge a sua proporção mais alta,
constituindo, com quase 30% na área fumageira e 40% na área
açucareira.225

Essas informações são bastante elucidativas, na perspectiva de nos ajudar a


embasar nossas argumentações em torno da maior presença de africanos de origem
jeje nas terras onde hoje encontramos o município de Pojuca.
Optamos então em seguir o caminho dos africanos jejes na Bahia, na
perspectiva de comprovar nossa suspeita. Além de observar no comportamento e
nas informações fornecidas pelas rezadeiras e outras pessoas que nos deram
importantes subsídios, como é o caso de dona Quita (89 anos), moradora do
município de Catu. Ela não nasceu em Catu, mas foi morar lá desde os cinco anos
de idade. Ela nos dá informações de duas negras que ela conheceu. E assim como
as demais pessoas que se referiram aos ex-escravos ou aos filhos de escravos que
conheceram, os classifica como jejes: dona Sofia, a qual ela chamava de tia e
também dona Bernarda, uma beata que servia de “bandeja” na igreja – levava as
crianças para o batismo.
Lembramos que até 1913, Pojuca ainda não era emancipada e pertencia ao
município de Santana do Catu. Diante disso, o mapa representativo do Recôncavo
baiano daquela época, não aparece o município Pojuca; para sua localização então,
deve ser considerado o rio Pojuca e a freguesia de Santana do Catu, localizada no
Recôncavo norte da Bahia, onde é possível precisar um pouco mais a localização da
região em estudo, já que as terras de Pojuca pertenciam ao território catuense.
Vejamos o mapa ilustrativo do Recôncavo baiano que extraímos no livro de
Schwartz (1988)226:

225
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé... Op. Cit.; p. 68;
226
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos... Op. Cit.; p. 84;
116

Verificamos, que a presença dos engenhos marcou muito a paisagem e a


história desse município. Quase todas as rezadeiras relataram conhecer ou até
mesmo ter morado em terras de engenho ou usina de açúcar, como é o caso de
dona Laura (usina Pitanga), dona Djão, dona Senhora e também dona Zilda. Essas
três últimas na mesma região, então, provavelmente no mesmo engenho (engenho
Pojuca). É interessante perceber como em Pojuca, as pessoas mais idosas
nasceram, se criaram e vivem até hoje no mesmo lugar, ao menos, na mesma
região.
Essas informações são importantes para compreendermos a construção
histórico-cultural de Pojuca e, a partir daí, compreendermos a relação do seu povo
com essa história e com sua cultura imprimida na memória e refletida no cotidiano
de cada pojucano e pojucana.
117

A existência de tantos engenhos aponta para a grande quantidade de


africanos e crioulos (filhos de africanos nascidos no Brasil), que viveram nessa
região, então, a base da cultura de Pojuca é, decisivamente, marcada pelas
contribuições africanas.
Não podemos negar, no entanto, o processo de miscigenação entre negros,
brancos e índios. Essa miscigenação não foi algo que se deu apenas do ponto de
vista biológico. Inevitavelmente, ocorreu de forma simultânea a miscigenação
biológica e cultural. Como síntese dessa fórmula de simbiose cultural, temos nas
rezadeiras uma significativa representação.
Com o passar dos anos a cidade foi recebendo outras influências,
principalmente com a exploração do petróleo, que provocou grande migração de
habitantes de outras cidades para Pojuca, como do campo para a cidade, fazendo
reduzir o número de habitantes do campo e ampliando consideravelmente a
demografia no espaço urbano do município. Essa realidade gerou mudanças no
comportamento e, consequentemente, no discurso dos moradores de Pojuca, que a
cada dia se projeta mais distante das suas origens.
Desde o início do seu povoamento pelos colonizadores até o início do século
XIX, a principal fonte de renda de Pojuca era a cana-de-açúcar, depois a farinha e
também e criação de gado leiteiro incrementaram sua economia: “com o declínio da
economia açucareira, o sustento da Vila passou a ser a farinha de mandioca
juntamente com o comércio do leite, madeira e cereais, embora em pequena
escala”.227
A chegada da linha férrea inglesa Estrada de Ferro Bahia ao São Francisco, a
primeira da Bahia, ao município, ampliou sua importância comercial e,
conseqüentemente, política. Foi às suas margens que foi construído o segundo
Engenho Central da Bahia. Pois, de acordo com Araújo (2002)228, o segundo
Engenho Central da Bahia foi Construído em Pojuca. Agora já sabemos, porém que
o seu nome não era Engenho Pojuca e sim, Engenho da Purificação e depois São
José dos Caboclos.
A partir do final da primeira metade do século XX, a chegada de grandes
empresas devolveu à Pojuca importância econômica, perdida com o declínio da

227
REGO, Alfredo Antonio Silva. Breve notícia sobre a emancipação de Pojuca... Op. Cit.; p. 9;
228
ARAÚJO, Tatiana de Freitas. Os engenhos centrais e a produção açucareira no Recôncavo Baiano... Op. Cit.;
p. 116
118

economia canavieira e atraiu uma grande quantidade de pessoas de outras cidades


e estados do país. A descoberta de petróleo levou para Pojuca a Petrobrás, o que
transformou profundamente a paisagem.

Assim como a cana e o fumo, o petróleo provocou uma


penetração desigual na região. A emigração para asa cidades
da região inverte o processo demográfico iniciado há décadas e
permite o reencontro entre o passado e o presente, entre as
tradicionais trabalhadoras da indústria fumageira, cortadores de
cana, pescadores, trabalhadores da agricultura familiar e os
novos trabalhadores assalariados do mercado formal
construído pelo petróleo (...). O petróleo movimentou o antigo
núcleo econômico do Recôncavo, representado pelas cidades
de Santo Amaro, Cachoeira e São Félix, construído nas antigas
relações de produção criadas pelo açúcar e fumo para a região
que flutuava entre as cidades de Candeias, ainda distrito de
Salvador e antigo templo religioso, São Francisco do Conde,
São Sebastião do Passé, Pojuca e Catu.229

Pojuca recebeu também a Ferbasa, empresa que produz ferros e liga de ferro
e exporta para outros estados e países e implicou em conseqüências muito
parecidas como as provocadas pela Petrobrás para Pojuca e região:

A Ferbasa constitui-se numa holding230que possui treze


empresas controladas, que operam nos setores de mineração,
reflorestamento e agropecuária, e tem participação (entre 64%
e 100% do capital) em mais quatorze companhias. Logo, o
núcleo gerencial desta empresa também necessita realizar
comunicações velozes e eficientes com todas as unidades de
negócios, que se encontram distribuídas em distintas partes do
estado da Bahia e com seus clientes e fornecedores em
regiões alhures.231

Por volta dos anos 90, o que se manifestou como destaque econômico da
cidade foi o crescimento do comércio de bens e serviços e de pequenas indústrias,
porém esse crescimento, não parece ter alguma outra explicação, do ponto de vista
local, senão o crescimento da população e as exigências da pequena burguesia da
cidade.

229
CHAGAS, Jonilson Batista. Recôncavo Baiano: as transformações em curso. Dissertação de Mestrado em
Análise Regional e Urbano. Salvador: UNIFACS, 2008. Disponível em:
http://tede.unifacs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=375 Acesso em 23/06/2010, p. 84.
230
Tradução: exploradora.
231
BRITO, Cristóvão. A Petrobrás e a gestão do território no Recôncavo Baiano. Salvador: EDUFBA, 2008, p.
200.
119

Assim, podemos, num primeiro momento, identificar três movimentos


econômicos que provocaram mudanças substanciais no cenário cultural de Pojuca:
a chegada da linha férrea de São Francisco, a implantação da Petrobrás e, por
último da Ferbasa. Esses movimentos provocaram profundas mudanças no cenário,
no comportamento e nos valores da população pojucana, especialmente por ter
ocasionado um extraordinário movimento migratório e, por conseguinte, ampla
demografia urbana.
É provável que por isso, atualmente, a população de Pojuca, que é de maioria
jovem, aparentemente, não apresenta ter consciência da sua cultura, tanto quanto
das manifestações culturais e da sua identidade cultural no contexto regional.
Realidade que não desperta preocupação dos poderes públicos, uma vez que não
promovem políticas publicas de estímulo às expressões culturais e a preservação da
cultura e da história do município.
Além das transformações por força das questões econômicas, outros fatores
também contribuíram para o emudecimento dos pojucanos/as diante da sua origem.
Trata-se do avanço do protestantismo ou do pentecostalismo, diante das
características que as igrejas têm adotado, inclusive a igreja Católica, religião
professada pelas cinco rezadeiras que compõem o quadro dos sujeitos sociais
dessa pesquisa. Dona Senhora (80 anos), por exemplo, reclama: “Até a igreja está
tirando os santos todos, minha filha!”
As palavras de Costa (2005) ilustram com bastante clareza essa face do
comportamento da população de Pojuca frente as religiões de matriz africana:

Lembro-me de uma situação que ilustra bem a


dificuldade em assumir claramente a participação no
candomblé e os contornos necessários para evitar traumas: em
Pojuca, quanto entrevistei uma filha de santo, tivemos que falar
quase aos cochichos na varanda de sua casa, enquanto o
marido dela assistia à tv na sala ao lado. A mulher parecia
dividida entre o orgulho e o temor. Seu marido não gostava do
candomblé e não queria que ela fizesse parte da seita. Por
isso, a pedido da entrevistada, a conversa ocorreu quase às
escondidas. Mesmo orgulhosa de falar sobre o assunto,
sentindo-se valorizada em seu papel, estava temerosa de ser
descoberta e punida. Sua atitude revela uma identidade
desconfortável e a maneira complexa de se lidar socialmente
com a questão.232

232
COSTA, Edil Silva. Comunicação sem reservas: ensaio da malandragem e preguiça. Tese de doutorado em
Comunicação e Semiótica. São Paulo: USP, 2005, p. 109;
120

Essa dada situação evidencia como tem sido difícil a livre expressão da fé, da
cultura e, consequentemente das origens das pessoas em Pojuca. Há uma forte
repressão que se revela em todos os espaços: nas próprias casas, nas escolas, nos
espaços públicos... No entanto, as reflexões em torno de cotidiano, memória e
identidade, nos ajudam a compreender que esse comportamento da população de
Pojuca não é algo singular diante do cenário contemporâneo. E nos faz crer que,
silenciosamente as pessoas vão desenvolvendo “formas de fazer”, pois, ao mesmo
tempo em que dizem que “em Pojuca não há cultura”, “não tem nada”, estão
reagindo contra a apatia aparente, reinante na cidade, se percebem diferentes dos
moradores das cidades vizinhas, tanto quanto, das mais distantes.
É bem verdade, que geralmente essas percepções são expressas nas piadas,
muitas vezes preconceituosas e com comentários pejorativos, quando se vêm diante
do diferente. Deduzimos, então, que essa percepção do comportamento
diferenciado é a prova de que há uma assimilação da sua identidade histórico-
cultural, ainda que isso não seja verbalizado ou entendido como tal. Sendo
necessário, assim, realizar atividades que despertem a população para essa
questão. Acreditamos que a plena efetivação da Lei 11. 645, de 10 de março de
2008, que versa sobre a obrigatoriedade do ensino da história e cultura indígena,
africana e afro-brasileira nas escolas, já é um bom começo, para superação do
preconceito religioso tão agressivo em Pojuca.
Outra iniciativa que se pode ser tomada é a realização de levantamento dos
espaços, práticas e ou discursos que tenham conteúdos africanos no dia-a-dia da
população pojucana, além das rezadiras:
Religião – As pesquisas nos indicaram, por exemplo, onde existiram dois
terreiros, um na parte rural do bairro Shangrí-la e o outro na Rua dos Pires, às
margens da ponte velha. Também nos indicaram nove locais onde existem ou
existiram barracões ou locais onde realizam ou realizavam atividades mais
simples.233 O interessante é notar que no bairro da Pojuca Nova é onde se
concentra o maior número de espaços do culto afro em Pojuca. Acredita-se que é
porque, embora hoje ele seja um bairro de centro, já foi a grande periferia da cidade.

233
Ver tabela IV dos anexos.
121

Culinária – Quanto aos pontos de venda de acarajé, conseguimos identificar a


existência de cinco fixos na região mais central da cidade, além das mulheres que
vendem na feira, nos dias de sexta-feira e sábado.234
Festas e manifestações artísticas – Em Pojuca existem três pessoas que
animam bumba-meu-boi: dona Lindu (98 anos) é a mais atuante, todos já bem
idosos e um desses, seu Carrapeta, com sérios problemas de saúde; há também
três grupos de samba de roda na sede e é provável que existam mais alguns na
zona rural, mas com perfil mais percussivo. Também existe uma academia de
capoeira. Já existiu um clube de reggae, o Movimento Cultural de Pojuca, que junto
com outros grupos do município realizou durante alguns anos “Semanas de
Consciência Negra” e fundou um grupo de dança afro. Existiu uma escola de
samba, que desfilava na micareta da cidade. A festa do Bom Jesus da Passagem,
que é o padroeiro da cidade, acontece no mês de janeiro e, a exemplo de outras
festas de padroeiro, acontecia também a lavagem das escadarias da Igreja matriz
por um grupo de baianas, hoje, infelizmente, não existem mais as baianas; a última
vez que realizaram a lavagem das escadarias da igreja, foi no ano de 2008 e a
prefeitura convidou o Balé Folclórico do SESC (Salvador) para participar do evento,
contudo, não se sabe quais as reais intenções da re-inserção de baianas na
lavagem do Senhor Bom Jesus da Passagem.235

234
Idem.
235
Verificar tabela IV dos anexos.
122

Festa do Padroeiro “Bom Jesus da Passagem” em janeiro de 1975.236

236
Arquivo da Biblioteca Municipal de Pojuca.
123

Festa do Padroeiro “Bom Jesus da Passagem” em janeiro de 2008.237

Medicina popular - Encontramos muitas rezadeiras no município, 27 ao


238
todo.
Os dados resultantes dessa pesquisa nos chamaram atenção para uma
realidade, no mínimo, instigante: ao contrário do que parece, existe em Pojuca um
significativo número de pessoas que freqüenta espaços, práticas e manifestações de
conteúdos do legado africano, mas que mostra-se muito discreta frente a essa
realidade, no entanto, estão em movimento e se organizando, por outro lado, é
inegável o crescimento das igrejas evangélicas no município e seus discursos já
vêm predominando em vários espaços públicos de Pojuca. Considerando que no
processo de tomada de consciência da identidade cultural e, consequentemente, da
descoberta do pertencimento, há a necessidade de se fazer memória do grupo, esse
movimento, inevitavelmente, vai provocar conflitos, pois vai se estabelecer uma
disputa pela identidade.
237
Arquivo da Biblioteca Municipal de Pojuca.
238
Ver tabelas I e II dos anexos.
124

Numa perspectiva dialética, podemos dizer que está acontecendo em pojuca


em processo de antítese? Ou seja, depois de décadas sob a hegemonia do discurso
cristão, será que está sendo construída em Pojuca, sobre os alicerces do discurso
cristão/ pentecostal, com base na religiosidade afro-brasileira, uma nova identidade
pojucana?
Essa interrogação, certamente, pode nos dizer muita coisa e, por isso nos faz
questionar quais conteúdos africanos são preservados nas condutas que as
rezadeiras e a comunidade que a elas recorre adotam para driblar a “sociedade
terrorista” e continuar atuando no município? É o que tentaremos desvendar no
capítulo seguinte.
125

Rezadeiras: guardiãs da memória e da fé

Renascer da própria força, própria luz e fé, memória


Entender que tudo é nosso, sempre esteve em nós, história
Somos a semente, ato, mente e voz, magia
Não tenha medo, meu menino povo, memória
Tudo principia na própria pessoa, beleza

A história oficial tem sido, ao longo dos tempos, muito injusta com as
mulheres. Geralmente omite sua participação nos diversos movimentos pelo mundo
a fora. Atribuímos esse comportamento da história a dois motivos que se completam.
O primeiro refere-se ao que Hall chama de cultura nacional. O segundo, associado
ao primeiro, refere-se aos conceitos e concepções machistas que determinam o
comportamento das sociedades em quase todas as partes do mundo e rotulam as
mulheres como fúteis, como tivemos a oportunidade de verificar em Lefebvre
(1991)239.
No entanto, as mulheres estiveram e estão sempre presentes e atuantes em
toda e qualquer sociedade, mesmo naquelas em que sistemas bastante fechados
oprimem e submetem-nas a condição de meros objetos ou simplesmente “mães”.
Contudo, ressaltamos que ainda que a cultura tenha a capacidade de libertar,
também, quando a sua origem é opressora, pode aprisionar e, anos a fio serão
necessários para que um povo construa postura crítica frente a sua própria cultura,
capaz de forjar as possibilidades de libertação dentro da sua mesma cultura, como
já afirmava Paulo Freire (2008):

Somente quando os/as oprimidos/as descobrem,


nitidamente, o opressor, e se engajam na luta organizada por
sua libertação, começam a crer em si mesmos/as, superando,
assim, sua “convivência” com o regime opressor. (...) Os/as
oprimidos/as, nos vários momentos de sua libertação, precisam
reconhecer-se como homens/mulheres240, na sua vocação
ontológica e histórica de ser mais. A reflexão e a ação se

239
São ao mesmo tempo sujeitos da cotidianidade e vítimas da vida cotidiana, portanto objetos, álibis (a beleza, a
feminilidade, a moda, etc.) e é a elas que os álibis maltratam. São igualmente compradoras e consumidoras e
mercadorias e símbolos da mercadoria (na publicidade: o nu e o sorriso). (LEFEBVRE, 1991: 83)
240
Nos sentimos a vontade para acrescentar a alternativa feminina no texto de Freire por fidelidade ao nosso
tema e também por acreditarmos que se hoje fosse vivo, Freire faria revisão no seu discurso, considerando a
presença feminina.
126

impõem, quando não se pretende, erroneamente, ditocomizar o


conteúdo da forma histórica de ser do homem.241

Sendo assim, diante de uma sociedade machista e também sexista, como a


baiana, muito se tem a fazer, mas reconhecemos que muito se tem feito, ainda que
de forma silenciosa e lenta. As mulheres já sabem quão fundamental é o seu papel
diante dessa sociedade e através das suas “artes de fazer” têm alcançado sucesso
em dois importantes eixos: contra o machismo, se reconhecem como mulheres, sem
contudo, aceitarem os rótulos e as atribuições que a sociedade machista lhes
reserva. Também contra o elitismo, quando cientes da sua condição de humana,
independente de qualquer circunstância.
Em nossa opinião, grandes exemplos desse comportamento feminino
encontramos nas rezadeiras. Mulheres que nas suas práticas cotidianas contrariam
e resistem às imposições das elites, a partir da confiança nos seus saberes e da
consciência da sua importância para a sociedade. Assim, através da fé, das rezas,
das folhas e dos ritos; dos segredos e das memórias de tempos idos, revelam nos
seus fazeres receitas e experiências ensinadas por africanos, transformadas com
influências do catolicismo popular e dos saberes e crenças indígenas, na direta
relação entre o corpo e o espírito, entre a terra e o divino, entre o sagrado e o
profano.
Segundo o Dicionário do Folclore Brasileiro, de Câmara Cascudo:

Rezadeira é a “mulher, geralmente idosa, que tem


“poder de cura” por meio do benzimento. A rezadeira,
especialista em quebranto, mau-olhado, vento caído, enquanto
reza cruzes sobre a cabeça do doente com pequenos ramos
verdes, que vão murchando por adquirir o “espírito” da doença
que fazia o mal.242

É evidente que o nosso propósito, como já foi dito, não é o de definir


conceitos, é sim, construir significados. Nesse caso, o significado com o qual
Cascudo (2001) define rezadeiras é muito limitado e não consegue abranger a gama
de signos e concepções que essa palavra carrega; no entanto, a partir dele, é
possível identificar quem são essas mulheres e, afirmar que suas práticas são

241
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2008, 47ª ed, p. 58;
242
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro: revisto, atualizado e ilustrado. São Paulo:
Global, 1999, p. 587;
127

fundadas numa confluência de crenças e simbolismos, oriundas de diferentes


religiões. Porém, por se tratar de uma obra bastante conhecida, de um dos maiores
folcloristas do Brasil, não podemos nos furtar de elaborar algumas análises diante
dessa definição.
Apesar da evidente limitação do significado de rezadeira apresentado por
Cascudo (2001), o que mais nos chamou atenção é a forma como o autor descreve
o ritual, ele simplifica tanto, que até parece que está tratando de uma mera “figura
folclórica”, o que não é o caso.
O rito é importante e fundamental no processo do benzimento, pois, de
acordo com Bastide (2006): “Em suma, não podemos definir a oração como um
simples rito oral; trata-se de um rito total que engloba a totalidade do homem
orante”243.
É o rito que garante a eficácia da oração, fazendo com que as pessoas
fiquem curadas. Afinal, “todo rito, mesmo consciente, é comemoração dos gestos
dos Deuses244” As rezadeiras foram unânimes em dizer que quem cura é a fé, não
temos dúvidas a esse respeito, porém, também não temos dúvidas de que a fé é
manifesta por meio de palavras, versos, movimentos e símbolos, dentre outros. Nas
entrevistas e nas observações que fizemos de momentos em que elas rezavam
algum “paciente”, tivemos a oportunidade de vê-las repetindo movimentos,
escolhendo lugares e folhas para rezar, determinando a posição em que o “paciente”
deveria ficar, dentre outros.
Esse comportamento nos faz crer que a benzeção não é um ato isolado, pelo
contrário, é um rito, um processo. Tem começo, meio e fim e por isso não deve ser
considerada como um simples remédio. Assim, no processo de cura engendrado
pelas rezadeiras, o principal agente da cura é o próprio paciente que tem que ter fé e
se tiver fé, tem que seguir todas as orientações.
Ai se estabelece uma relação entre a rezadeira e o paciente, na qual ambos
precisam ter consciência do seu papel nesse processo. Nesse momento,
independente de quem seja o paciente, as rezadeiras são atribuídas de autoridade e
isso só é possível porque elas se reconhecem diante do seu papel na sociedade.
Oliveira (1985) diz que:

243
BASTIDE, Roger. O sagrado selvagem: e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 158;
244
Ibid., 271.
128

Não podemos compreender o trabalho da benzedeira


sem que estudemos o que a move para realizá-lo. Em outras
palavras, não podemos todo o conhecimento que fundamenta o
seu trabalho sem antes localizar na sua vida a percepção de
que ela tem um sentimento que marca um momento especial,
determinante na escolha do seu ofício. Esse momento é a
descoberta do dom de benzeção.245 (OLIVEIRA, 1985: 32)

O decorrer dessa pesquisa nos dá a idéias de que para compreender o ofício


das rezadeiras, mais do que saber o momento da descoberta do dom, é conhecer o
mito que embasa suas práticas. Assim, ainda citando Oliveira (1985):

A benzedeira, enquanto uma cientista popular, fala em


nome de uma religião. Ela não pode ser entendida sem que
sua religião seja considerada. A maior parte das benzedeiras é
católica. Encontram-se espalhadas em diversas vilas e bairros
de uma cidade grande e não fazem parte de cooperações
profissionais do tipo sindicato ou igreja. São religiosas, mas
nem sempre freqüentam igrejas.246

Embora a obra de Oliveira (1985) tenha grande relevância para a


compreensão do ofício das rezadeiras, ousamo-nos aqui discordar de um detalhe
dessas suas palavras. É inegável que a prática das rezadeiras é completamente
marcada pelo viés religioso. No entanto, ainda que a maioria se considere católica,
muitas, mesmo assumindo seu catolicismo, não negam que nas suas práticas há a
interferência de outras crenças. Outras negam nos discursos, mas se deixam trair
pelas práticas. Assim, seria um equivoco dizer que elas falam em nome de uma
religião.
Devemos considerar que se há rito, é porque há mito; afinal, segundo Bastide
(2006), “o rito não passa da repetição do mito das origens”247. Nessa perspectiva,
relembramos que de acordo com Elaide (2002) o mito é sempre “a narrativa de uma
criação”248. E, de acordo com essa premissa, necessitamos desvendar qual é o mito
ou quais são os mitos que dão sentido à prática das rezadeiras, afinal, esse autor
afirma que a principal função do mito é revelar os modelos exemplares dos ritos e
das atividades do ser humano, como alimentação, casamento, trabalho, educação
arte e também a sabedoria, o que nos permite confirmar que a relação das pessoas

245
OLIVEIRA, Elda Rizzo de. O que é benzeção. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 26;
246
Ibid., 32;
247
BASTIDE, Roger. O sagrado selvagem... Op. Cit.; p. 112;
248
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade... Op. Cit.; p. 13;
129

com o mito, está intimamente ligada à sua identidade, ao seu sentimento de


pertencimento, ainda que escondido, diante das repressões comuns nessa
sociedade.
Não por acaso, a repetição do mito, através dos ritos é uma ação de
memorização. É necessário lembrar do mito para “aprender não somente como as
coisas vieram à existência, mas também como encontrá-las e como fazer com que
reapareçam quando desaparecem”249.
Para desvendar o mito ou os mitos que embasam a ação das rezadeiras é
necessário considerar alguns importantes aspectos. Inicialmente, devemos observar
o que Bastide (2001) revela:

Nos flancos sonoros dos navios negreiros vieram não só


os filhos da noite, mas também os seus deuses, os orixás dos
bosques, dos rios e do céu africano. É verdade que, no cais
dos portos brasileiros, o capelão esperava os nagôs, os jejes,
os angolas – capelães das cidades, capelães dos engenhos
para lhes ensinar as preces latinas e os batizar com o Espírito
Santo. Os negros confundiram suas divindades sombrias com
os santos católicos250, mas continuariam por meio dos cantos e
das danças tradicionais, a adorar os deuses de além-mar.251

Embora Bastide (2001) tenha dado importante contribuição no estudo sobre o


candomblé, reconhecemos que a idéia que calça esse fragmento que grifamos já é
hoje superada. Até mesmo quem defende o sincretismo, não o ver a partir desse
ponto de vista. Os negros tinham clara consciência de que suas divindades não se
confundiam com os santos e o deus dos católicos, justamente por isso, continuaram
adorando os seus deuses. O que se deve considerar nessa questão são três
possibilidades: a primeira baseia-se na idéia de recepção defendida por Burke
(2005)252. Os portugueses apresentaram seu deus e seus santos de uma
determinada maneira, contudo, os negros, na condição de receptores, as receberam
de acordo com seus valores e visão de mundo, o que significa que, inevitavelmente,
a mensagem comunicada pelos colonizadores não foi absorvida pelos africanos,
com a “pureza” da lógica católica, como podemos atestar através das palavras de
Gaspar (2008).

249
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade... Op. Cit.; p.17;
250
Grifo nosso.
251
BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia... Op. Cit.; p. 327;
252
BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2005.
130

No Brasil, da mesma forma como ocorre em outros


países de forte tradição cristã, as crenças e práticas propostas
pela estrutura religiosa formal têm sido progressivamente
reinterpretadas pelo povo à luz de experiência quotidiana
concreta.253

O segundo aspecto, como uma resposta ao primeiro é o que chamamos de


manutenção das fronteiras identitárias. Como já verificamos em Santana (2004: 38),
para reafirmar suas identidades faz-se necessário que os grupos mantenham suas
fronteiras bem definidas. Essa compreensão das fronteiras é a base do que
chamamos de dupla pertença (Santana 2004) ou dupla militância religiosa
Berkenbrock (2007)254, pela qual as pessoas se identificam com duas realidades
míticas diferentes, mas não as confunde.
É possível identificar esse aspecto com bastante clareza nessas palavras de
dona Senhora (80 anos):

Ela (Santa Bárbara) é de candomblé, mesmo. (...)


Adoro minha santa, ele (o marido) era bom, mas aqui
não queria, não! Ai dizia: “– você é invocada”. Que ele era da
Irmandade do Coração de Jesus. Eu disse: “– E o que é que
tem a ver a irmandade do Coração de Jesus com o meu? Eu
não vou na igreja? Eu não faço batizado e tudo? O que é que
tem isso?” “– Ah, mas você é do candomblé!” “Ah, então é!”
Agora eu gostava do bichinho (do candomblé)! (...) Não perdia.
Cochilava, daqui a pouco eu levantava, sambava, dançava
candomblé, dancei muito candomblé.255

Observemos que dona Senhora tem clara consciência das fronteiras que
separam as duas religiões, ou as duas crenças. A forma como ela revela sua
devoção pela “Santa Bárbara do candomblé” é enfática e não deixa dúvidas de que
havia um conflito entre ela e o seu marido, que era católico da Irmandade do
Coração de Jesus, por conta da sua identidade religiosa.
Vale ressaltar que quando perguntamos qual a sua religião, dona Senhora
respondeu imediatamente que é católica e que antes rezava para Santo Antonio e
Nossa Senhora do Parto, mas não revelou sua crença por Santa Bárbara; revelação

253
GASPAR, Eneida D. Guia de religiões populares do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2004, p. 123;
254
BERKENBROCK, Volney J. E experiência dos Orixás... Op. Cit.;
255
Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 04/05/2010;
131

que só foi feita a partir do nosso terceiro encontro. Porém, percebemos que quando
ela sentiu segurança passou a assumir outro discurso, falou das festas de
candomblé que freqüentava, das pessoas e locais onde aconteciam as festas. Mas
disse que não existia terreiro em Pojuca.
Intimamente ligada ao aspecto da dupla pertença, aparece também o
sincretismo. “É a Santa Bárbara do candomblé”. Assim, uma mesma denominação
para dois entes diferentes. Dona Senhora, como exemplo do povo afro-brasileiro,
vive as duas experiências, a do duplo pertencimento, especialmente determinante
para a sua identidade de descendente africana e também a do sincretismo,
determinante da formação da cultura brasileira.
Não queremos, com isso, estabelecer antagonismos entre identidade e
cultura; são, pois, faces da mesma moeda, porém, cada uma com sua significação.
A cultura nacional brasileira, como uma cocha de retalhos, é constituída de
fragmentos das culturas dos diferentes povos que construíram essa nação. Os
“elementos básicos de sua organização simbólica de origem”256, ainda que com
traços mais acentuados da cultura cristã ocidental, devido o processo colonizador, e
permanece em constante conflito, devido essa diversidade contida nela, bem como
devido o elitismo, o que Sodré (2005) chama de cultura elevada.
Cada fragmento de cultura terá significado diferenciado para a população
(consideremos aqui, mais uma vez, a idéia da recepção), o que, por sua vez, vai ser
determinado pelo sentimento de identificação, pelo pertencimento. Contudo, mesmo
os traços identitários de cada grupo, já são marcados pela influência dos diferentes
fragmentos ou elementos culturais. A cultura é dinâmica e dialética.
Ao analisarmos as considerações de Consorte (2006) em relação ao
“manifesto de ialorixás baianas contra o sincretismo”, percebemos esse enquanto
inegável, do ponto de vista da construção da cultura nacional brasileira. Ainda que
os fiéis tenham consciência das fronteiras de cada religião, num contexto geral, que
envolve linguagem, crenças, experiências de fé, música, ditos, dente outros, o
sincretismo apresenta-se “inapelavelmente ligado ao processo de inserção do negro
na sociedade brasileira”.257

256
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p. 90;
257
CONSORTE, Josildeth Gomes. Em torno de um manifesto de ialorixás baianas contra o sincretismo. In:
BACELAR, Jéferson & CARDOSO, Carlos (org.). Faces da Tradição Afro-Brasileira. Rio de Janeiro: Pallas,
Salvador: CEAO, 1999, p. 79;
132

Ainda no ensejo de conhecer o mito ou os mitos fundadores que embasam as


práticas das rezadeiras de Pojuca convém considerarmos dois aspectos relevantes,
como a confluência ente as experiências culturais africanas e o chamado catolicismo
popular. O primeiro refere-se à construção da identidade africana no Brasil, a qual foi
forjada a partir da confluência dos diversos elementos de diferentes etnias africanas,
resultado da estratégia de resistência, adotada por esses contra a escravidão.
Quanto ao catolicismo popular, há de se considerar que, embora atualmente
seja fortemente marcado por símbolos africanos, já veio de Portugal, repleto de
fragmentos de outras crenças diversas do catolicismo oficial romano e aberto à
outras.
Como ilustração dessa informação, consideramos pertinente transcrever uma
estorinha que dona Laura (81 anos) nos contou para explicar a origem do
benzimento para curar engasgo com espinha de peixe:

Quando Deus andou no mundo, tinha um homem e uma


mulher pobrezinha, não tinha nada, nada, nada, nada. Ai, todo
ano São Pedro mais Jesus descansava na casa deles.
Passava uma vez , duas, na casa deles. Eles botava comida
para eles comerem, eles comiam; fazia cama na varanda para
eles dormir, eles dormia; no outro dia Jesus saia e ia embora,
porque Jesus não comia mesmo, saia embora. Pedro ficava, ai
Pedro embirrou: “Senhor, dá riqueza aquele homem!” Olha
Pedro, aquele homem é bom, mas a mulher é má, se aquela
mulher tiver qualquer coisa, ela não vai deixar a gente entrar na
casa dela. Pedro disse: “deixa Senhor, agora eles faz tanto,
depois que ficar rico, ai é que vai fazer”. Jesus chegou e deu
uma “riquezinha” a eles.
Quando foi no outro ano, que Jesus passou lá, ele
estava bem forte, tinha feito a casa, a casa estava mobiliada de
tudo; a casa estava que fazia gosto! Ai Jesus bateu na porta:
“são aqueles homem que passam aqui de ano em ano, chegou
aqui, querem um arranjo para dormir”. Ela disse: “pega essa
esteira velha que esta ai, bote lá na casa de farinha”. Pegou um
lençol velho deu a ele: “bote lá na casa de farinha, bote eles
prá dormir lá na casa de farinha”. Ai o marido pegou tudo e
botou Jesus pra dormir lá na casa de farinha. Jesus dormiu na
casa de farinha, a esteira velha, o lençol velho, tudo velho.
Quando foi de noite eles fizeram comida, comeram o
peixe bom e pegaram aquelas espinhas, aqueles peixes ruim
levaram para Jesus e São Pedro, lá na casa de farinha. São
Pedro comeu, Jesus não comia mesmo, só fazia bicação, mas
ele não comia, ai foi embora. Ai Jesus disse: “eu não te disse
São Pedro?” Ai São Pedro foi embora mais Jesus.
Quando chega longe, vai o homem correndo atrás
deles: “Senhor, Senhor, minha mulher esta engasgada, nem
sobe a comida, nem desce; esta lá que não pode nem falar!” Ai
133

Jesus mostrou: “vamos voltar, Pedro”. Pedro tentou acha que o


que Jesus fazia era ruim: “mas nós vamos voltar daqui?” “Volta
Pedro, vamos voltar, se a mulher do homem está engasgada,
vamos voltar, Pedro”. Ai Pedro voltou mais Jesus, ai Jesus
pegou o ramo e disse: “casa bom homem, ruim mulher; casa
veia, esteira ruta, engasgo suba ou desça desse pescoço,
dessa mulher”. Disse três vezes, ai quando a espinha desceu,
saiu e foi embora. O engasgo desceu da garganta da mulher;
Jesus foi embora.
Assim é muita gente, porque você ter fé que ele vai tirar
aquele engasgo do seu pescoço, você mesmo reza com sua
mão, e quando você chega é só você falar, casa veia, esteira
ruta, bom homem, ruim mulher, engasgo ou suba ou desça
desse pescoço, em nome do Pai, e do Filho e do Espírito
Santo, pronto!258

Apesar de extensa, optamos por transcrevê-la na íntegra, para não correr o


risco de prejudicar no seu sentido, até mesmo porque dona Laura, tem uma forma
própria de contar. Observemos que essa estorinha tem o mesmo estilo dos contos
medievais, o que nos faz crer que é uma herança do catolicismo popular trazido de
Portugal, pois, como atesta Santos (2006):

A nova religiosidade, formada pela especificidade da


religião vivida pela população colonial, eivada de
reminiscências folclóricas européias e colorida pelas
contribuições culturais de negros e índios, surgia como ponto
fundamental na formação de um catolicismo tipicamente
colonial e específico, onde o “viver em colônia” devia muito aos
elementos do imaginário europeu cujo signo se constituiu.259

Assim, o mito fundador que embasa as práticas das rezadeiras de Pojuca é,


provavelmente, uma combinação de todas essas nuances. Enfatizamos, como já foi
mencionado no primeiro capítulo, que, nesse caso, tanto a concepção de dupla
pertença, no que concerne à identidade, quanto a concepção de sincretismo,
relacionada a constituição cultural das práticas das rezadeiras são nesse trabalho,
pertinentes.
Transcrevemos abaixo uma das orações utilizadas por dona Laura (81 anos)
no benzimento para cura de erisipela e a forma como é realizado o benzimento,
como prova dessa percepção.

258
Conversa com dona Laura, 81 anos, em 20/01/2010;
259
SANTOS, Rafael Beondani dos. Martelo dos hereges: militarização de Santo Antonio no Brasil colonial.
Dissertação de Mestrado em História. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2006., p. 97. Disponível em:
http://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert-2006_SANTOS_Rafael_Brondani_dos-S.pdf . Acessado em
25/06/2010.
134

A reza de erisipela ou “a vermelha” pode ser rezada de


duas forma: com folha de fedegoso e óleo de oliva ou com
cachimbo aceso.
Reza fazendo cruz no lugar doente. Diz assim: Nossa
Senhora vinha de viagem, encontrou com a vermelha; ela
perguntou: “a onde tu vai, vermelha?” Ela respondeu: “eu não
me chamo vermelha, eu me chamo, como a carne e deixo o
osso”. Antes que tu coma a carne e deixe o osso, eu te corto o
pescoço, com os poderes de Deus e de São Virtuoso.
Quando pergunta “prá onde tu vai, vermelha” a pessoa
responde: “eu não me chamo vermelha”.
Se rezar com o fedegoso, via fazendo cruz no lugar
doente; se for com o cachimbo, vai rezando e jogando fumaça
no lugar doente.260

Esses dois exemplos de orações pronunciadas pelas rezadeiras no momento


do benzimento não deixam dúvidas de que o catolicismo popular é uma das bases
da prática das rezadeiras. A cruz, por exemplo, já citada na definição de Cascudo
(1999), é um símbolo presente em quase todas as orações. Nas diversas orações
são feitos movimentos em forma da cruz ou no lugar doente, como é o caso de
doenças como a erisipela ou sobre o “paciente”, de forma geral, se tratar de doenças
não localizadas, como o olhado.
Sabemos que a cruz é um símbolo cristão, trazido para o Brasil pelos
portugueses. Foi esse o primeiro símbolo que os colonizadores impuseram aos
nativos, e, foi através dele que se iniciou a catequese dos índios e também dos
negros. Para a igreja Católica a cruz é símbolo de sofrimento, penitência: “cada um
deve carregar a sua cruz”. É também o símbolo da conversão, as pessoas se
convertem “pela cruz do Nosso Senhor Jesus Cristo”. E a cruz é também o símbolo
da cura e da salvação: Jesus Cristo salvou a humanidade pelo padecimento na cruz.
Todo sacramento (batismo, unção dos enfermos, cinzas...) são feitos a partir do sinal
da cruz. A cruz é escudo, é amuleto.
As rezadeiras dizem que usam a cruz porque, quem cura é Deus. Assim
diz dona Laura (81 anos): “a importância das rezadeiras é a fé. Nossas palavras
não é nada. A fé em Deus é que cura”. Todas as outras dizem a mesma coisa.
“Você sabe que sem fé não tem nada, se não tiver fé... não é? Diz que é a fé
quem move montanha”261.

260
Conversa com dona Laura, 81 anos, em 25/10/2009.
261
Conversa com dona Zilda, 72 anos, em 05/05/2010;
135

A cruz é a senha de que o que elas fazem é permitido por Deus. “Deus é
quem cura”. Porém, seus ritos de cura deixam escapar traços de outras identidades
culturais e, conseqüentemente, religiosas. Afinal, nos ritos de origem africana
simbologia da cruz também aparece, porém, na forma da encruzilhada, que sugere
as várias possibilidades de caminhos a se trilhar, como Santos (2005) esclarece:

Seria também nas encruzilhadas (espaço físico, o lugar


sagrado) que muitos curandeiros ligados aos cultos afro-
brasileiros, através de seus guias, divindades e entidades
sobrenaturais, oficiavam procedimentos religiosos/curativos
realizados para abrir caminhos para o sucesso (no emprego, no
amor e em outras situações), desmanchar feitiços, amarrar
uma pessoa (in)desejável, enfim, as encruzilhadas
simbolicamente representariam as várias possibilidades de
caminhos por onde as pessoas – a depender de suas escolhas
– poderiam trilhar para resolver suas angústias psicológicas,
espirituais e até mesmo dificuldades materiais. Em suma, as
encruzilhadas poderiam ser vistas por muitos como espaço
ritual – o lugar de comunicação com o mundo sagrado.262

Assim, quando Cascudo (1999) informa quais os instrumentos que as


rezadeiras utilizam, ele nos apresenta elementos genuinamente católicos, pois as
rezadeiras “fazem cruzes na cabeça com pequenos ramos verdes”.
Porém, antes de nos referimos aos outros elementos, consideramos
conveniente também tratar ainda de outro elemento do catolicismo popular, trazido
pelos portugueses para o Brasil. Trata-se da devoção aos santos, especialmente a
devoção a Santo Antonio. Quase todas as rezadeiras entrevistadas revelaram
devoção ao santo, das cinco que acompanhamos durante todo o período da
pesquisa, apenas dona Laura, não expressou tal devoção. Então tentamos ver se
desvendávamos o motivo da grande popularidade de Santo Antonio entre as
rezadeiras de Pojuca.
Santo Antonio era um santo genuinamente português e adotado como o
padroeiro de Portugal; sua devoção se expandiu tanto quanto o império português,
no Brasil e na África, também, como se pode verificar em Santos (2006):

262
SANTOS, Denilson Lessa. Nas Encruzilhadas da Cura: Crenças, Saberes e Diferentes Práticas Curativas.
Santo Antonio de Jesus – Recôncavo Sul – Bahia (1940 – 1980) – Dissertação de Mestrado. UFBA, Bahia, 2005,
p. 13;
136

Antonio, o santo português que consegui transitar pelos


vários espaços e estratos sociais, também fazia crescer sua
auréola em outros territórios. Empenhados em conquistar
novas terras, os portugueses não abandonaram o ideal
missionário. Santo Antonio seria um dos principais santos
escolhidos para patrocinar as viagens e inspirar os
conquistadores. Assim, a devoção ao santinho lisboeta se
expandiria juntamente com o Império português.263

A devoção à Santo Antonio já chegou sincretizada nas terras brasileiras, com


elementos da cultura celta, como o cristianismo popular. Sobre isso Santos (2006)
revela:

(...) a formação de um forte culto à Santo Antonio fez-se


animada por crenças e lendas, ressaltando o Divinu Antonius
como um herói popular simpático e com algo dos gênios
familiares benfazejos e brincalhões, onde as quadras e as
orações são por vezes resquícios de orações de origem celta,
que o povo repetia e cantava em suas cerimônias.264

Assim, os portugueses trouxeram para o Brasil, um santo muito próximo, com


o qual desenvolviam um relacionamento muito íntimo, como um ente querido da
família: “Santo Antonio era para os mais devotos como um membro da própria
família, alguém bem próximo do cotidiano e da vida dos fiéis que conheciam a sua
legenda e, principalmente, esperavam seus milagres em prol dos seus interesses e
dos reinóis”265
No dia 13 de junho do ano em curso tivemos a oportunidade de participar de
algumas rezas em louvor ao santo. Três entre as cinco rezadeiras principais dessa
pesquisa renderam homenagens à Santo Antonio. Dona Zilda e dona Djão rezaram
nas suas próprias casas, com altares enfeitados de verde e amarelo, em
homenagem ao Brasil na copa do mundo. Dona Dida puxou os ofícios em louvor a
Santo Antonio em várias casas e também no “Lar dos Idosos”, onde reza todos os

263
SANTOS, Rafael Beondani dos. Martelo dos hereges: militarização de Santo Antonio no Brasil colonial.
Dissertação de Mestrado em História. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2006. Disponível em:
http://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert-2006_SANTOS_Rafael_Brondani_dos-S.pdf . Acessado em
25/06/2010, p. 81;
264
SANTOS, Rafael Beondani dos. Martelo dos hereges: militarização de Santo Antonio no Brasil colonial.
Dissertação de Mestrado em História. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2006, p. 75. Disponível em:
http://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert-2006_SANTOS_Rafael_Brondani_dos-S.pdf . Acessado em
25/06/2010,
265
Id.
137

anos a trezena de Santo Antonio, pois já não o faz mais em sua casa, uma vez que
o padre disse que lugar de rezar é na igreja:

Antigamente se rezava nas casas, mas hoje em dia...


(pausa) como, tem várias missas, missas em todas as
comunidades, todo mês tem missa, então ficou... As pessoas,
as vezes o padre fala que é para gente, pra ir rezar na igreja
em vez de ficar fazendo culto (que ele fala culto) em casa, pra
rezar na igreja que é melhor, reúne a família e vai rezar na
igreja que e melhor, né? Mas tem pessoas que não se
conformaram com isso não. Aqui mesmo em minha rua, tem
uma pessoa que reza Santo Antonio. Eu mesmo, não rezo
Santo Antonio na minha casa, sou rezadeira de muitos anos,
meu pai chamava Antonio, tenho um filho chamado Antonio,
um genro chamado Antonio, meu tio chamava Antonio e eu não
rezo Santo Antonio em casa, não sei por que, antigamente eu
rezava.266

Percebemos nesse caso, a visível tentativa da igreja Católica em controlar a


religiosidade popular, centralizando todas as manifestações em torno dos seus
templos, especialmente, diante do processo de pentecostalização. Vale ressaltar
que como todas as rezadeiras devotas de Santo Antonio relataram também dona
Dida começou a rezar para o santo desde que era “mocinha”:

Eu, deste os meus 13 anos de idade que eu rezo Santo


Antonio, acostumava fazer trezena, tinha uma prima minha que
nós saiamos assim pelas casas, colocava um retratinho do
santo numa caixa do Santo Antonio e nós íamos pedir, pedir
esmola, né? Falava esmola, naquele tempo as pessoas davam
aquele dinheirinho e nós comprávamos papel, comprávamos
as velas, e comprava açúcar, comprava manteiga para fazer a
bala, nós acostumava fazer as balas, nós mesmo, em casa, e a
noite nós rezamos, fazíamos a trezena de Santo Antonio na
casa da minha amiga; eu tirava a reza e ela também, então foi
isso que me ajudou eu aprender a rezar, tirar a reza de Santo
Antonio. Até hoje eu continuo rezando.267 (dona Dida, 71 anos)

Os relatos de dona Zilda, dona Djão e também dona Lindu (98 anos), que não
é rezadeira, mas rezou para Santo Antonio durante muitos anos, só deixou depois
que uma das suas filhas faleceu. Para todas essas o processo de construção da
devoção a Santo Antonio foi o mesmo. Dona Senhora (80 anos) também rezava
para Santo Antonio e deixou de rezar depois que uma de suas filhas faleceu, só

266
Conversa com dona Dida, 70 anos, em 04/05/2010;
267
Id.
138

continua rezando para Santa Bárbara. Embora não tenham dito claramente, parece-
nos que deixaram de rezar para o santo, como se fosse uma espécie de castigo ou
mágoa, que passaram a cultivar contra o santo, por não ter conseguido livrar as
filhas de ambas da morte. Esse comportamento é muito típico na relação de
intimidade que os devotos estabelecem com seus padroeiros.
Mas não acreditamos que essa devoção seja resultado apenas da forma
como chegou ao Brasil. Como já abordamos sobre a recepção e o sentimento de
identificação, acreditamos que ambos também influenciaram na adoção de Santo
Antonio como santo padroeiro de tantos brasileiros, especialmente das rezadeiras
de Pojuca. Em primeiro lugar, a devoção a Santo Antonio já era uma realidade no
Congo e também em Angola, na África, ligado às lutas revolucionárias. Diante disso
é provável que muitos dos africanos que foram trazidos para o Brasil na condição de
escravos já conhecessem o santo, de acordo as informações de Santos (2006):

(...) percebemos que a fé difundida entre os povos


africanos foi reinterpretada e relida segundo o contexto e as
necessidades, fazendo de Santo Antonio um grande articulador
e chefe de um movimento revolucionário, uma vez que Beatriz
Kampa Vita dizia incorporá-lo, devia evidentemente haver uma
grande difusão de seu culto, de imagens e orações que
propiciaram tal distorção.268

O resultado desse movimento foi a queima na fogueira da líder do movimento,


acusada de heresia pela igreja Católica. Porém, essa passagem nos serve de
argumento para, considerando o fato de que durante o século XVIII, a
predominância de africanos trazidos para o Brasil foi de angolas e congoleses269,
sugerirmos que é bem provável que ao chegarem ao Brasil, já conhecessem o
santo; talvez por isso ele seja relacionado a Ogum, senhor do ferro e da guerra.
Em segundo lugar, tempo também grande participação de africanos e crioulos
nas irmandades e confrarias por todo o Brasil, especialmente na Bahia, desde o
século XVII. Essas irmandades, sobretudo, funcionavam para os negros como
possibilidade de ascensão social, luta por liberdade e respeito, mas também
influenciam no processo de formação da identidade cultural dos negros no Brasil,
como esclarece Parés (2001):

268
SANTOS, Rafael Beondani dos. Martelo dos hereges... Op. Cit.; p. 75;
269
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos... Op. Cit.; p. 282.
139

Entretanto, outra parte dos africanos envolvidos nas


irmandades, talvez a maioria, não sofria uma conversão tão
radical. Eles podiam adicionar, muitas vezes de forma apenas
superficial, certas crenças e hábitos católicos àqueles com os
quais foram educados na África, estabelecendo paralelismos
ou relações conceituais, por vezes até identificações, entre os
dois sistemas referenciais. A cumulação de recursos espirituais
diferenciados, aliás característica de muitas religiões africanas
e também do catolicismo popular, não era vivida
necessariamente como uma contradição, mas como uma
estratégia eficaz para lidar com a adversidade e propiciar boa
fortuna.270

Por último, para decifrar o mito que embasa as práticas das rezadeiras, como
já começamos, temos um conteúdo africano muito denso, ainda que, em alguns
momentos, negado ou camuflado. Lembremos os ramos verdes citados por Cascudo
(1999).
A utilização de folhas em ritos, chás e efusões é uma prática muito antiga e os
índios utilizavam várias e conheciam também os espíritos das doenças. Mas as
folhas não são utilizadas apenas pelos índios, os africanos já chegaram aqui com
muitos conhecimentos de ervas e dos seus usos, além da concepção de que as
doenças têm origem mágica ou espiritual. Assim, os africanos acreditam que não
basta o uso dessa ou daquela erva; é fundamental que juntamente com os ritos,
chás ou efusões sejam pronunciadas palavras “mágicas” que têm poder de curar.
De acordo com Verger (2009): “entre os iorubas a preparação de remédios e
trabalhos mágicos deve ser acompanhada de encantações (ọfọ) com o nome das
plantas, sem as quais esses remédios e trabalho não agiriam”271.
Assim, folhas e palavras são bases de quase todas as rezas, são poucas as
doenças que não exigem o uso de folhas no processo de benzimento. Abaixo
apresentamos relação de algumas folhas utilizadas pelas rezadeiras e para que
serve:

Água – não é folha ou erva, mas muito presente em vários rituais. Serve para
rezar de olhado e dor de cabeça, principalmente;
Afavaca de galinha – febre, gripe;
Alecrim – dor de cabeça, sinusite;

270
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé... Op. Cit.; p. 111;
271
VERGER, Pierre Fatumbi. Ewé: O uso das plantas na sociedade ioruba. São Paulo: Companhia das Letras,
2009, p. 35;
140

Alfazema - olhado
Algodão – dor no corpo, para ajudar no parto;
Alho – embora não seja uma folha ou erva, foi citado por todas as rezadeiras,
para diversos fins como dor de cabeça, dor de dente, inflamação, coceira;
Alumã – fígado, estômago;
Aroeira – para olho grosso, gripe;
Assa peixe – rins, dor no corpo, impinge
Babosa – emplasto, deve preparar com mel e vinho, serve para câncer e
doenças desse tipo;
Boldo – fígado, estômago, intestino;
Capeba – banhos, febre, estômago, fígado, intestino;
Carqueja – diarréia;
Capim santo – pressão alta, gripe;
Cidreira – gripe, dor de cabeça, pressão alta;
Fedegoso – erisipela;
Folha da costa – prepara o xarope, serve para asma;
Gonçalinho – dor de barriga, disenteria;
Guiné – olho grosso,
Jurubeba – diabetes;
Mandacaru – rim, tuberculose;
Melão de são Caetano – fígado, sarna, ferida, coceira;
Pinhão branco – intestino;
Pinhão roxo – intestino;
Pitanga – gripe, garganta, osteoporose;
Quarana – dores no corpo, osteoporose, a vermelha;
Quiôiô – febre, olhado, serve para fazer banhos e chás;
Tapete de Oxalá – serve para tudo, qualquer tipo de dor;
Vassourinha – olhado, febre, erisipela;
Velaminho – dor de cabeça, febre;

A intenção de apresentar este rol de folhas utilizadas pelas rezadeiras, não


tem nenhum propósito medicinal, até porque a base da presente pesquisa é cultural,
nossa intenção foi apresentar a grande variedade de folhas e suas utilidades, que as
rezadeiras de Pojuca conhecem e utilizam no seu ofício. Não apresentamos todas,
141

apenas as mais citadas e com as informações de uso dadas pelas próprias


rezadeiras, sem a intenção de fazer checagem botânica ou farmacêutica. Com
essas folhas elas simplesmente benzem as pessoas, passando pelo corpo, fazem
chás, banhos, xaropes e outras fórmulas, de acordo com o mal que pretendem
combater.
Nenhuma rezadeira informou recitar alguma oração durante o preparo das
receitas, mas a maioria, exceto dona Senhora, admitiu pedir licença antes de colher
as folhas. Também advertiram que não se pode colher as folhas em qualquer lugar,
em beira de estrada, por exemplo, não se deve colher. Dona Dida, dona Senhora e
dona Djão disseram que não pode colher as folhas em qualquer hora: nem, depois
do por-do- sol ou no meio dia. Geralmente, elas não souberam responder o porquê
dessas cautelas no momento de colher as plantas. Mas, todas, sem exceção,
admitiram que as folhas têm dono.
Dona Djão (74 anos) foi muito direta informando que cada folha tem o seu
orixá; enquanto dona Laura (81 anos) nos diz claramente: “todas as folhas tem um
dono, para tirar tem que pedir licença”272, mas, em seguida, completou: “agente sabe
que tudo quanto é folha Jesus está presente”. Já dona Dida (71anos) nos disse que
tudo o que faz é em nome de Nossa Senhora e do Pai, do Filho e do Espírito Santo,
é neles que ela pensa quando vai tirar as folhas para rezar.
Dona Zilda (72 anos), sutilmente nos disse que “as folhas são atraentes”. Ela
disse que os elementos que utiliza para rezar são folhas, água e alfazema, às vezes
também utiliza velas e de vez em quando faz umas simpatias, umas oferendas:

(...) a minha reza é somente com a luz, folhas e


alfazema e água, viu? Eu não tenho entidade, viu? Não boto
mesa, só às vezes, assim uma simpatia. Tem gente, uma
simpatiazinha às vezes eu faço e dá certo.
Prefiro rezar só as rezas dos santos católicos, mas
acredito e também peço licença aos orixás,
principalmente quando vou tirar as folhas para rezar as
pessoas e orientar no uso de chás, banhos e garrafadas;
fórmulas utilizadas para a cura de todo tipo de doença.273

272
Conversa com dona Djão, 74 anos, em 02/06/2010;
273
Conversa com dona Zilda, 72 anos, em 05/05/2010;
142

Ela afirma ser católica, mas confessa que vai a qualquer igreja. Um dos seus
filhos bebia muito, mas depois que foi para a igreja dos mórmons ele deixou de
beber e ela agradece muito a Deus. Às vezes vai com o filho na igreja que ele
freqüenta. Mas esclarece: “não saio da minha religião”
O conteúdo africano presente nas práticas das rezadeiras de Pojuca é
inegável, ainda que tentem fazer isso. Percebemos que algumas delas, como dona
Zilda e dona Senhora, num primeiro momento omitiram seu pertencimento, noutro
tentou até negar, dizendo que não gosta, mas no decorrer da pesquisa, foram
confirmando o que não conseguiam esconder.
Já dona Djão, que logo deixou transparecer seu pertencimento, embora
afirme ser índia, pois sua avó era índia e embora o seu pai fosse negro jeje, como
ela afirmou. Numa das nossas conversas, ela disse que uma das filhas “vê as
coisas”, que quando era criança, sempre ganhava presente da mãe d’água, mas que
não quer “mexer”, porque “é coisa de herança e ia mexer com muita gente”.
Por outro lado, dona Dida (70 anos) e dona Laura (81 anos), as mais católicas
entre as cinco, pois participam ativamente da vida na comunidade e fazem parte do
Apostolado da Oração e da Pastoral da Criança, respectivamente. Não abrem mão
do ofício, mas tentam passar uma idéia de “pureza” das suas práticas. “Jesus deixou
as folhas para curar”. Essa frase foi proclamada por dona Laura várias vezes.
Dona Dida, inclusive negou que cada reza tenha o seu patrono, embora
reconheça que os versos das orações citam vários santos, que seriam responsáveis
por aquelas doenças. Discurso fortemente controverso, por isso mesmo, muito
confuso:

(...) e os patronos, quando você fala, não. Eu não rezo,


quer dizer, é pra Nossa Senhora, quer dizer, a reza de cobreiro:
vim de Roma, de Romaria, rezando cobreiro de cobraria, com
ramos verdes e água fria, com os poderes de Deus e da
Virgem Maria. Da Virgem Maria. Então, realmente é a Virgem
Maria, E o outro é Santo Antonio; eu não tenho assim como
patrono, como Santo assim, escolhido, não. Eu rezo assim,
mas não tenho assim rezo é Santo Antonio, é São João, é
Nossa Senhora da Conceição... E assim, não sei dizer mesmo
se tem um patrono, eu sei que Nossa Senhora é também a
mãe de Jesus e quase todas essas rezas nós falamos em
Nossa Senhora, né? Eu acho que minha patrona e Nossa
Senhora, é a Virgem Maria e também Jesus Cristo, que é o
nosso irmão. Prá tudo é Jesus Cristo e Deus que é nosso Pai.
Assim, patrono assim, santo especial, e santo assim, não sou
muito, eu não sei assim não.
143

São Braz, que é o santo de reza de engasgo, quando a


pessoa engasga com espinha, uma coisa, então reza pra São
Braz (...). A vermelha é Nossa Senhora também, quase todas
as outras rezas com Nossa Senhora. Nossa Senhora vinha de
viagem, encontrou com a vermelha... Sempre Nossa Senhora,
então eu acho que o patrono dessas rezas todas é Nossa
Senhora e São Braz, como ela falou e São João é muito não.
Eu invoco mais é Jesus, Maria e Deus, assim eu não tenho,
assim, dizer assim: é Santo Antonio, é São João, é São Pedro,
não tenho, assim, não.274 (dona Dida, 70 anos)

Lembramos que dona Dida, em outro momento revelou ser devota de Santo
Antonio desde os 13 anos de idade. Que na sua família tem várias pessoas com
esse nome. E que deixou de rezar em casa porque o padre disse que não era para
fazer “cultos em casa”, deveriam rezar nas missas. Suspeitamos que esse
comportamento é fruto da ação da igreja, dos discursos dos padres sobre seus fiéis,
pois são justamente, as duas rezadeiras mais atuantes na igreja Católica, que
apresentam discurso dessa natureza. Aquelas que não têm vivência tão presente na
igreja, devem se sentir mais livres, quanto ao seu pertencimento, por isso, apesar
dos subterfúgios, falam com mais abertura sobre o assunto.
Outro fator que ilustra o conteúdo africano nas práticas e saberes das
rezadeiras é o processo de aprendizado e ensinamento do ofício. Nos causou
surpresa constatar que a maioria das rezadeiras aprendeu rezar com pessoas fora
do seu ciclo familiar. Apenas dona Zilda revela que aprendeu rezar observando e
auxiliando o seu pai no momento em que ele fazia os benzimentos. Ela conta que
começou rezar com apenas vinte anos de idade.
Todas as outras aprenderam fora do seio familiar. São os casos de dona Djão
(74 anos), que aprendeu com uma velha senhora que morava próximo da sua casa;
dona Dida, que embora sua avó e sua mãe fossem rezadeiras também, ela conta
que aprendeu com várias pessoas diferentes, desde sua mãe até um compadre;
também dona Senhora revelou que aprendeu por curiosidade, ficava olhando as
pessoas rezarem. Quem lhe ensinou foi a parteira, dona Vicença, que “pegava” e
rezava; uma senhora “bem pretinha”. Dona Senhora (80 anos) também foi parteira,
fez o curso, mas sua mãe jogou seu diploma fora, mas ela exerceu o ofício durante

274
Conversa com dona Dida, 70 anos, em 02/06/2010;
144

muitos anos. Também dona Laura aprendeu a rezar com outra pessoa. Ela diz que
sua mãe não sabia nem rezar o “Pai Nosso”:

Minha mãe não sabia rezar nada, ela não sabia rezar
nem o Pai Nosso. Quem me ensinou foi uma senhora chamada
Salu. O nome dela era Salustiana, ela morava na usina Pitanga
e morreu com mais de cem anos. Ela rezava alto para agente
aprender, depois vinha e dizia como era que rezava.275

Os diversos relatos indicam que o processo de aprendizado foi oral, exceto


dona Dida, que revelou que só gravava a oração se copiasse. Aquela que não
copiou, não conseguiu memorizar. Todas as outras aprenderam oralmente,
observando os mais velhos rezarem. Sendo assim, como afirma Vansina (1982): “a
oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade”276.
Dona Senhora e dona Zilda informaram que não pode copiar as orações, pois, se
copiar elas perdem a força. Essa lógica é semelhante ao que ocorre entre os
iorubas, conforme atesta Verger (2009): “(...) a transmissão oral do conhecimento é
considerada o veículo do axé das palavras, que permanecem sem efeito em um
texto escrito. Palavras, para que possam agir devem ser pronunciadas”277.
Assim, todas as vezes que as rezadeiras vão benzer alguém, elas perguntam
primeiro o nome da pessoa a ser benta e no momento em que pronunciam as
orações, repetem várias vezes o nome do paciente, enquanto passa sobre o seu
corpo, da cabeça aos pés, ramos verdes:

Claudia, com dois te botaram, Claudia, com três eu


retiro, se botaram por traz, com São Braz, se botaram pela
frente, com São Vicente, com os poderes de Deus, da Virgem
Maria, Divino Espírito Santo, Nossa Senhora do Livramento, te
abençoe, Claudia, te dê paz, te dê saúde, te dê uma boa sorte,
te faça feliz. Senhora Santana te proteja, te ilumine a sua
mente cada dia mais, a gloriosa Conceição que ilumine seus
caminhos, com os poderes de Deus e da Virgem Maria, Divino
Espírito Santo, as três pessoas da Santíssima Trindade te dê
saúde, te dê paz, uma boa sorte. Amem Jesus crucificado, filho
da Virgem Maria, hoje, toda noite, amanhã por todo dia. Nem

275
Conversa com dona Laura, 81 anos, em 02/06/2010;

276
VANSINA, J. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, Joseph (org). História Geral da África. I -
Metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática/UNESCO, 1982, p. 157;
277
VERGER, Pierre Fatumbi. Ewé... Op. Cit.; p. 35;
145

teu corpo será preso, Claudia, nem tua alma perdida, Jesus,
ave Maria, Jesus, ave Maria.278

Contudo, algo ainda ficou por ser dito. Durante o período da pesquisa,
algumas vezes as respostas e histórias se repetiam, noutras silêncios eram a
resposta e noutros momentos ainda se desviava perguntas.
Algumas com mais sede de falar que as demais; outras com muito mais
interesse em falar da sua vida amorosa ou dos problemas com seus maridos, ou das
suas viagens. Sempre ficava algo no ar, uma informação que não foi dita, palavras
que não foram usadas...
Algumas respostas não nos deixaram dúvidas de que havia segredos,
informações que não foram reveladas. Quando perguntamos a dona Dida (70 anos)
sobre os patronos das orações, ela teve uma incrível dificuldade em responder.
Citou diversos nomes de santos, mas ainda assim, negou ter algum patrono. Então,
uma pergunta ficou sem resposta: se ela acredita no poder das rezas, se reza muita
gente e todos aqueles que ela reza ficam bons, conforme seus relatos; e as rezas
são todas invocando vários santos, por que então, ela nega a existência do
padroeiro?
Duas possibilidades são plausíveis, ou ela está tentando respeitar com
exatidão as orientações do padre, que sugere a abolição dos santos, em nome de
Jesus, ou ela tem consciência que no seu processo de aprendizado, aprendeu que
quem está por trás das folhas, não são os santos, mas sim outras entidades, os
orixás ou pode ter qualquer outra resposta muito distante dessas aqui apresentadas.
Postura parecida teve dona Zilda (72 anos), quando perguntamos sobre as
“simpatiazinhas” que ela realiza às vezes, ela respondeu evasivamente:

Compro um capim, um bocado de coisa, usa isso aqui


mesmo, vela, seiva, mais algumas coisas que a gente ponha,
mas não é nada de candomblé, né? Candomblé eu nem gosto.
Acho bonito, acho bonito os trajes, acho bonito as danças, as
músicas eu acho bonito, mas eu tenho medo, não que eu tenha
medo, mas é que eu sinto mal quando eu chego, (pausa),
quando eu chego perto, mesmo assim, eu sinto muito mal, ai
eu não...279

278
Dona Zilda, 72 anos. Observação em: 12/05/2010;
279
Conversa com dona Zilda, 72 anos, em 05/05/2010;
146

E mudou de assunto. O que será que tem nas “simpatiazinhas”? Por que a
necessidade de enfatizar que não era coisa de candomblé? Por que a confusão com
as palavras no momento da resposta?
Muitas perguntas esse comportamento pode provocar. Portanto, embora não
tenhamos as respostas para essas perguntas, temos uma resposta que nos faz
compreender esse comportamento. Trata-se do segredo, elemento muito presente
na sabedoria africana. Segundo Sodré (2005) “é de separação o ato inaugural do
segredo, um ato de hierarquia daquele que sabe ‘alguma coisa’ – que o outro não
sabe”280. Ou seja, diante dos conteúdos do conhecimento a ser ensinado, algumas
coisas são retiradas, mas não são omitidas. O autor diz que o segredo deve ser
revelado de alguma forma, porém não para toda e qualquer pessoa, pois: “Entrar no
segredo de alguém e entrar na regra – de um jogo. A regra que permite as
identificações no interior de um determinado nível, circula, distribuí-se divide-se
entre os parceiros de um processo comunitário”.281
No caso das rezadeiras, essa vivência, de certa forma é individual, pois,
embora todas elas estejam inseridas numa comunidade, sejam reconhecidas pela
comunidade, não estão organizadas como num terreiro, então o processo de
aprendizagem é bem diferente. Cada uma vive uma experiência bem específica de
aprendizado, porém, identificamos um comportamento de segredo. Provavelmente
sejam aquelas coisas que só são reveladas quando o outro está pronto para
conhecer o segredo. Sodré confirma tal suposição quando afirma: “o enigma é uma
provocação ou um desafio à luta para conhecer a regra do jogo, é uma exibição do
segredo”282.
Não descartamos, contudo, que os segredos de hoje sejam apenas a
tentativa de camuflar ou negar o legado africano embutido na prática das rezadeiras,
especialmente no ato de rezar.

Em suma, para desvendar o mito que embasa a prática das rezadeiras de


Pojuca, necessitamos cruzar informações, muito mais das observações das suas
práticas, e das entrelinhas dos seus discursos, do que das suas palavras
propriamente ditas, pois essas se apresentam, muitas vezes, cheias de receios.

280
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p. 130;
281
Ibid., p. 103;
282
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p. 106;
147

Assim, devemos considerar os seguintes aspectos:


1. a vivência do catolicismo, como essas mulheres se compreendem dentro
da religião católica, membros da igreja, pelo batismo e devoção aos
santos ou pela efetiva participação: sempre à serviço Tanto dona Dida,
quanto dona Laura, as assíduas na igreja, relatam suas atividades, canta
nas missas semanais, ministra a eucaristia, faz exéquias; acompanha as
crianças pela Pastoral da Criança, ajudou a fundar comunidades...
2. mais que o uso, a relação que as rezadeiras desenvolvem com as folhas.
As casas de todas as rezadeiras possuem quintal onde elas cultivam
grande parte das ervas que utilizam nas suas práticas de cura; antes de
colher uma folha pedem licença.
3. o processo de aprendizado, através da oralidade e sem a necessidade de
ser ensinado pelos pais ou avós;
4. por último, devemos também considerar os ritos de cura, baseados em
quatro eixos: o uso discriminado das folhas, o local (quintais), os
movimentos conforme a doença e as orações pronunciadas;

Notemos que o último eixo engloba os três primeiros, mas não se confunde
com eles, então nos deparamos numa encruzilhada, como diz Santos (2005), numa
situação de várias possibilidades de caminhos. Qual caminho devemos seguir para
decifrar o mito fundador que embasa as práticas das rezadeiras?
Talvez pudéssemos dizer que elas não dissociam as práticas de cura de
ações místicas ou ainda, que suas ações são inevitavelmente justificadas pela fé,
pela crença em diferentes forças que tem o poder de curar e transformar situações
(santos, orixás, espíritos...).
Pois, podemos dizer que a religião é fator determinante da vivência cultural
dessas mulheres. A religião, no entanto, é uma faca de dois gumes. Sua importância
na vida das pessoas, inevitavelmente, está associada ao tipo de organização social.
Por isso, Lefebvre (1991), Certeau (1999) e Heller (1992), se referem à religião
enquanto instrumento de dominação, utilizado pela sociedade terrorista para manter
as pessoas presas ás imposições das elites. Segundo Lefebvre (1991)283, onde a
igreja Católica não conseguiu fazer esse papel, a igreja protestante, muito mais

283
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p. 157;
148

competente, no processo de controle das pessoas, a partir das mesmas, assumiu


esse papel. Não podemos esquecer, no entanto que esses são marxistas.
No entanto, como Certeau (1999) sugere, mesmo dentro dessa estrutura
opressiva, no cotidiano, as pessoas conseguem desenvolver formas de fazer, que
burlam a realidade de opressão. Podemos dizer que existe também, dentro da
estratégia sutil da dominação através da religião, uma resistência também sutil, onde
as pessoas assimilam alguns aspectos e burlam outros, a partir da sua realidade, o
que só se realiza se houver a consciência e o sentimento de pertencimento da sua
identidade. Dessa forma os grupos se tornam fortes e conseguem construir
processos de resistência, e, em alguns momentos até subverter certas ordens
preestabelecidas, como podemos verificar em seguida:
Na primeira metade do século XX, observa-se na Bahia uma intensa
campanha preconceituosa, elaborada pelo poder público e amplamente divulgada
pelos jornais, contra a vendagem de plantas medicinais, na tentativa de “destruir a
independência que a população mais pobre, negra e de origem cabocla conseguia
manter usando essas folhas medicinais – devido aos seus conhecimentos
transmitidos oralmente há gerações.”284
Já em meados desse mesmo século a perseguição contra os curandeiros se
apresentou também no âmbito da legislação, com a regulamentação de leis que
restringiam as práticas de prevenção e cura para os profissionais da saúde, como
pode ser observado em Santos (2005):

No Brasil após os anos 40 do século XX, sobretudo


após a institucionalização do Conselho Federal de Medicina em
1945 – este reestruturado em 1957 juntamente com os
Conselhos Regionais – os médicos com outros profissionais da
área de saúde (enfermeiros, farmacêuticos, dentre outros)
demarcaram quem poderia exercer as profissões relacionadas
com a arte de prevenir ou curar doenças. Com a
regulamentação de tais conselhos, o Estado delegava poderes
para que os mesmos combatessem o exercício ilegal da
medicina em quaisquer de seus ramos. 418
Com a criação das Normas Gerais sobre Defesa e
Proteção da Saúde, através da Lei 2312 de setembro de 1954
e com sua regulamentação sob denominação de Código
Nacional de Saúde em 1961419, estava determinado que os
Conselhos de Medicina seriam os principais responsáveis

284
LÜHNING, Angela. Ewé: as plantas brasileiras e seus parentes africanos. In: BACELAR, Jéferson &
CARDOSO, Carlos (org.). Faces da Tradição Afro-Brasileira. Rio de Janeiro: Pallas, Salvador: CEAO, 1999, p.
311;
149

quanto à disciplinarização do exercício profissional nas artes de


curar, ficando o Estado, via autoridade sanitária, a suplementar
tal ação.420 Competindo aos conselhos regionais de medicina
e às autoridades sanitárias fiscalizar.285

Diante de todo processo de perseguição contra as rezadeiras, contra o uso


das ervas, em favor da medicina alopática, elitista e branca, ocorrido desde os
primórdios do século passado, se não houvesse um processo de construção de uma
identidade, regido pela necessidade de sobreviver, de fazer sobreviver sua cultura,
conservar sua identidade e nela se identificar; provavelmente, os saberes
conservados pelas rezadeiras não passariam de meras lendas para as pessoas dos
dias atuais. As rezadeiras ainda hoje resistem e se impõem, por isso são
respeitadas. Conseguem sair do espaço oprimido da discriminação e marginalização
e passaram a ser reconhecidas, inclusive, pelo poder público como importantes
agentes de saúde.
Ai desvendamos o mito que dá base as suas práticas. As folhas, ou melhor, o
poder que emana das folhas: “as folhas são atraentes”; “cada folha tem seu dono”;
“tem que pedir licença para tirar as folhas”, “são as folhas que dão o sinal se a
pessoa tá com aquela doença ou não”; “planto tudo, cuido das minhas plantas, gosto
de tudo limpinha para quando precisar”; “as folhas são boas...”
“Sem folhas não há vida!”
Apesar de não termos conseguido elementos suficientes para confrontar as
práticas cotidianas das rezadeiras com o povo jeje, acreditamos que essas práticas
estão repletas desse conteúdo, contudo podemos afirmar que todos os elementos
africanos identificados nessa pesquisa pode ser uma larga porta, para um longo
caminho de pesquisas e descobertas do legado africano na vida do povo pojucano.
Afinal, para continuar vivendo temos que nos conhecermos cada vez mais,
temos que conhecer, sim, a nossa história; temos que fazer memória das nossas
vidas e precisamos ter bem definidas as fronteiras que nos identificam. Assim, ainda
que no mundo moderno a religião desempenhe papel opressivo, também a religião
pode oferecer um viés de resistência, especialmente, porque a sua base é a
tradição, então preserva alguns mitos e símbolos que identificam determinado grupo,
bem como, a partir das memórias, criam e re-significam outros.

285
SANTOS, Denilson Lessa. Nas Encruzilhadas da Cura... Op. Cit.; p. 160;
150

Por fim, uma valorosa e animadora possibilidade, se apresenta em nossa


frente sobre o futuro das rezadeiras: já que, necessariamente, essa sabedoria não
tem sido passada de pais/mães para filhos/as, e sim por pessoas fora do seio
familiar, surge a esperança de que em outras esferas, fora das suas famílias, as
rezadeiras encontrem pessoas que descubram o dom de rezadeiras e se interessem
em aprender e se apropriar dessa sabedoria.

Considerações finais
Os mitos resistem: novas indagações para o tema

Yapô Yuca é um lugar muito próximo, que era habitado por seres muito especiais.
Contam que naquelas terras habitava um povo muito feliz. Um povo que vivia no mato, na
mata. Tudo o que possuíam e tudo o que consumiam vinha da mata. Havia uma grande
relação de respeito entre o povo, os encantados, as águas, a terra, a flora e a fauna daquele
lugar.
Lá havia um rio maravilhoso, que também se chamava Yapô Yuca. Esse rio além de
ser a força vital daquelas terras, servia de morada para muitos encantados.
Certo tempo chegou em Yapô Yuca uma gente muito estranha; essa gente falava
uma língua que ninguém conhecia, mas foi obrigado a conhecer e aprender a falar. Eles
usavam muitas coisas estranhas e invadiram aquelas terras sem pedir licença; não
respeitaram nenhum dos habitantes de Yapô Yuca e foram se apropriando daquele lugar.
Todos os habitantes lutaram contra os invasores. Foram conflitos desleais e por isso,
muitos foram massacrados, mas ainda assim o povo continuou resistindo. O povo irmão se
juntou para lutar contra os invasores; não conseguiram expulsá-los, mas resistiram e
conseguiram permanecer em suas terras.
151

Passado mais algum tempo, outras pessoas chegaram em Yapô Yuca, mas dessa
vez não eram como os primeiros, essas outras pessoas foram trazidas como escravas pelos
primeiros; por isso chegaram muito tristes. Vendo a profunda tristeza dos novos hóspedes, os
yapôyucanos resolveram acolhe-los e confortá-los ainda que também tristes, há algum
tempo.
Entre esse novo povo, chegaram três pessoas/seres muito especiais e levaram
consigo algumas coisas muito interessantes, que eles chamavam de tesouro. A primeira era
uma senhora muito velha, mas incrivelmente forte. Segundo ela essa força vinha da lama e
que no percurso da viagem veio muito fraca, perdendo todas as suas forças; pensou que não
resistiria, mas ao chegar em Yapô Yuca, suas forças se restabeleceram, pois aquele lugar lhe
era muito familiar, lembrava muito o seu berço, por isso, sentiu-se cheia da sua força vital. E
como forma de gratidão se comprometeu em adotar todos os filhos de Yapô Yuca e cuidar
deles. Ela levou na sua bagagem um pouco de lama, que misturou com toda a lama existente
em Yapô Yuca, e dotou-a de poder vital.
O segundo era um ser muito misterioso, pois ninguém conhecia a sua face, mas, ao
mesmo tempo, tinha aspectos de todas as plantas e ervas, por isso, imediatamente se
relacionou muito bem com toda a flora da sua nova morada e logo descobriu seus segredos.
Nunca se viu tanta intimidade! Mas não divulgou o que descobriu, assim como fazia na sua
terra natal. Também trouxe consigo muitas sementes, que se adaptaram muito bem na nova
terra. Em sinal de gratidão, se comprometeu em cuidar da saúde de todo o povo que o
acolheu.
A última era uma fascinante serpente encantada. Umas vezes preta, outras colorida.
Ela era mágica, aparecia e desaparecia de repente, mas estava sempre presente. Tudo
ouvia, tudo via. Essa serpente se relacionou muito bem com o rio, vivia nas suas margens e
conversavam horas a fio. A serpente trouxe consigo um tesouro encantador, um arco
colorido, muito bonito e com esse tesouro se comprometeu em proteger o rio e todas as
águas daquela terra.
Apesar de todas as tormentas sofridas pelos dois povos, agora irmãos, o encontro
entre eles foi motivo de muita alegria, pois sabiam que se ajudariam mutuamente, sempre.
Dizem que sempre que podiam faziam muita festa. As moças da lagoa, se uniram com as
mães-da’água que vieram das terras distantes. Elas dançavam, cantavam, nadavam sem
parar; sempre muito bonitas e arrumadas. Recebiam muitos presentes e às vezes doavam
alguns desses. Contam que elas guardavam um baú com um grande tesouro no fundo do rio
Yapô Yuca, mas quem se atrevesse a pegar se daria muito mal.
Juntos, esses dois povos se tornaram um, e combateram incessantemente os
invasores. Tiveram a alegria de também poder contar com entes especiais da origem dos
invasores, também bravos guerreiros, que não concordavam com aquela forma deles se
comportarem, e foram aliados dos povos da mata e combateram juntos em grandes batalhas.
Às vezes, batalhas demoradas e silenciosas.
152

O tempo foi passando e unidos, os povos irmãos conseguiram muitos feitos,


ajudaram a libertar os cativos, mas tiveram muitas perdas também, porém, a gente estranha
descobriu que o rio era o ponto de convergência de todo aquele povo, então resolveu jogar
todo tipo de lixo no rio e esse foi ficando fraco, cada dia mais fraco. Já não conseguia nem
respirar direito. Suas águas, de um alaranjado natural tornaram-se turvas como a noite e
fétidas como cadáveres.
Diante dessa situação, o rio fez uma grande assembléia com todos os habitantes de
Yapô Yuca e sugeriu que fugissem, que procurassem outro lugar para morar e continuar a
cuidar do povo, pois ele não teria nenhuma possibilidade de protegê-los naquelas condições
em que se encontrava. Assim, todos aqueles habitantes saíram em busca de outro lugar para
morar, sem, contudo, se afastar daquelas terras, especialmente do rio, que agora necessitava
mais do que nunca deles.
A gente estranha pensou que havia vencido, porém, se deram conta que com o
sofrimento do rio, também eles sofriam, ficavam fracos e vulneráveis, seus filhos ficavam
doentes. Perceberam que morriam juntos com o rio. Contam que até hoje eles não sabem o
que fazer para reverter esse quadro.
Mas o rio continua lá, mesmo sofrendo, continua lá.
E vocês não estão curiosos para saber para onde foi o povo da mata?
Todos caminharam muito a procura de um novo lugar para morar; saíram do rio para
não morrer, mas não queriam abandoná-lo, por isso não se afastaram de lá. Encontraram
então, um ótimo lugar para morar, resolveram habitar na memória, nas lembranças das
pessoas, que se comprometeram em protegê-los. Assim, enquanto as pessoas se lembrarem
e contarem sobre eles, eles estarão vivos, e, enquanto estiverem vivos, povoam as memórias
e o imaginário do povo como força de resistência, pois, são elementos fundamentais da
identidade cultural dos yapoyucanos.

Compomos essa lenda a partir dos relatos colhidos nas entrevistas;


nos esforçamos para ser o mais fiel possível, pois acreditamos que através
dela podemos explicitar de forma sutil e mítica a origem da história de Pojuca,
considerando as crenças das rezadeiras, afinal, como afirma Eliade (2002:
11) “é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o
que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural”.
Ao longo dessa pesquisa lembranças indígenas foram aflorando,
histórias de caboclos, de encantados e de resistência nas matas foram
ganhando forma e Pojuca que tinha a ancestralidade indígena apenas no
nome, começa a se perceber indígena.
Diversos constituintes da memória africana foram sutilmente
desvelados diante do inevitável processo de lembranças, que a investigação
153

da memória das rezadeiras de Pojuca provocou. Assim, mesmo sob couraça


dos discursos da razão, do evangelho, do pentecostalismo ou do catolicismo,
os saberes africanos existem e resistem, pois são intrinsecamente
relacionados com todos os elementos da natureza, sendo assim, da vida.
Assim, as formas de fazer as coisas, a relação com as folhas, os
cuidados com os santos, os banhos, as rezas, a sabedoria, as sensações, as
lembranças... São heranças que agem como elementos constitutivos da
identidade do povo afro-brasileiro, ainda que sob a opressão do racismo, da
cristianização e do elitismo. São sábias as palavras de Gil (2007), quando se
refere às táticas de resistência dos/as africanos/as submetidos ao cativeiro:

Para continuar resistindo, os africanos submetidos ao


cativeiro e seus descendentes tiveram que refazer tudo, refazer
linguagens, refazer parentescos, refazer religiões, refazer
encontros e celebrações, refazer cultura. Esta foi a verdadeira
Grande Refazenda.286

Assim, reconstituir o mito, desenvolver sentimento de pertencimento a


partir da identidade afro-brasileira, preservar a memória, se apropriar da
história e viver criticamente o cotidiano são pressupostos fundamentais para a
construção da resistência necessária para a conquista da plena liberdade.
Nesse momento dois sentimentos se confrontam em nossa mente: o
sentimento de alívio, por concluir mais uma etapa da nossa caminhada
acadêmica e, ao mesmo tempo, o sentimento de angústia por perceber que
não se trata de um trabalho acabado. Há um grande volume de informações
que se transformam em problemas e nos desafia a buscar respostas para
eles. Por isso, não é possível considerar essa pesquisa concluída. Uma parte
dela foi finalizada, mas ainda tem muito o que pesquisar, questionar,
desvendar...
Por exemplo, apesar de parecer óbvio, certamente, precisaremos de
muito aprofundamento para desvelarmos por que há na superfície um
discurso, aparentemente tão bem elaborado, com transferências de
significados dos símbolos, mas nas entranhas da sociedade os símbolos

286
GIL, Gilberto. A grande Refazenda: África e Diáspora pós CIAD II. Brasília: Fundação Cultural Palmares,
2007, p. 7;
154

permanecem com os seus significados originais, se o mito fundador do


município foi modificado?
Também; diante da lógica da generalização da história, baseada na
cultura elevada, por que é do total desconhecimento da população pojucana,
a participação efetiva de pojuca em episódios marcantes da história nacional?
Por último, diante da clara revelação de elementos do conteúdo da
cultura indígena em Pojuca, quais grupos habitaram essa região e como se
deu o processo de permanência desse conteúdo na memória da população
pojucana?
São apenas alguns questionamentos que os resultados dessa
pesquisa fizeram brotar. Não sentimos constrangimento em dizer que a
verdadeira implicação desse trabalho foi a provocação de tantas perguntas,
ou, para ser mais fiel à sua construção textual, a verdadeira contribuição
desse trabalho foi a revelação de tantos caminhos a serem trilhados nas
investigações sobre Pojuca.
Assim, continuar ouvindo as rezadeiras ainda pode render muitas
outras informações e desvelação de heranças ainda secretas.
155

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160

Anexos
161

Tabela I - Relação das rezadeiras de Pojuca - entrevistadas

NOME IDADE NATURALIDADE ENDEREÇO RELIGIÃO QUINTAL

Aldir dos Santos


Souza (d. Dida) 70 Pojuca Rua Lino Costa católica sim
Carlinda C. de Chagas 60 Santa Rua do Fogo católica sim
(d. Rozinha) Bárbara
Edite dos Reis 67 Olhos Nova Pojuca católica sim
D’Água
Jardelina Moura Silva 80 Pojuca Rua Dois de católica sim
(d. Senhora) Julho/ Shangrilá
Laura Alves Costa 81 Pojuca Star católica sim
Maria Angelina dos 69 Salvador Pojuca Nova espírita não
Santos (d. Nezinha)
Maria Batista (d. Bió) 72 Serrinha Pojuca Nova batista sim
Maria José Cardoso 74 Pojuca Shangri-lá católica sim
Ferreira (d. Djão)
Maria José Nunes de entre 98 Catu Retiro católica sim
Jesus (d. Zezé)
e 105
Maria Zilda Moura 72 Pojuca Shangri-lá católica sim
Nonato
Raimunda dos Santos 58 Catu Retiro católica sim
Rita 58 ? Los Angeles católica sim
Valdelice Machado dos 66 Catu Pojuca Nova católica sim
Santos (d. Bia)
Obs. As linhas em destaque correspondem aos dados das rezadeiras que compõem o
quadro dos sujeitos sociais da pesquisa.
162

Tabela II – Outras rezadeiras de Pojuca


NOME ENDEREÇO
D. Alaíde Vitória
D. Cândida Los Angeles
D. Cotinha Cruzeiro (tornou-se evangélica –
faleceu pouco antes da data
marcada para primeira entrevista)
D. Domingas 29 de Julho
D. Helena Antonio Mota
D. Joana Eliza Corujão
D. Júlia Pojuca Nova
D. Lídia Star
D. Lourdes Pojuca Nova
D. Maura Shangrilá (tornou-se evangélica)
D. Zefa Central
D. Zefa Embira Branca
Sr. Arlindo Pau D’arco
Sr. Mundinho Santiago
163

Tabela III - Outras pessoas entrevistadas


NOME REFERÊNCIA
Antonieta dos Santos Pinto (d. 89 anos – moradora de Catu –
informações sobre os jejes.
Quita)
Helena 99 anos (falecida)
Luís Claudio Vasconcelos de Aguiar 58 anos – herdeiro do engenho São
José do Caboclo, que pertencia ao
barão de Pojuca.
Maria Arlinda dos Santos (d. Lindu) 98 anos – organiza bumba-meu-boi
desde os dez anos de idade.
Sidney Marcos Ferreira de Avelar Gerente de cultura do município de
Pojuca
164

Tabela IV – Espaços e práticas de conteúdo do legado africano


em Pojuca.
GRUPOS/ FESTAS
RELIGIÃO ORGANIZAÇÕES CULINÁRIA /MANIFESTAÇÕES
Espaços atuais: Atuais
Espaços de culto Cinco pontos fixos
atuais: ACAP – de venda de Bumba-meu-boi (d.
Casa de d. Joana – Associação do acarajé: 2 na Lindu) – Shangri-la;
Central; Culto Afro de Pojuca Nova, 1 no
Casa de d. Elza Pojuca; cruzeiro; 12 no De 3 a cinco grupos de
(Nenzinha) – Ladeira centro, 1 na Star e Samba de viola, entre
do Dendê; Academia de 2 na feira em dias sede e zona rural;
Casa de d. Ângela – Capoeira de sexta e
Pojuca Nova; Zumbiacongo; sábado.
Casa do Sr. João –
Pojuca Nova

Espaços de culto Não existem mais Não vendem mais: Bumba-meu-boi (se.
desativados: Carapeta) – Pau Dárco.
Barracão de d. Odete Movimento Cultural d. Odete Parou pois o responsável
(falecida) – Wanderlino de Pojuca; (falecida); encontra-se muito
Nogueira; doente;
Barracão de João Associação do d. Avani (deixou
Borges (falecido) – Reggar de Pojuca; de vender) Bumba-meu-boi (Sr.
Antonio Mota; Pedro) – Shangri-la –
Casa de d. Loló Escola de Samba d. Dolores (deixou deixou de fazer;
(falecida) – Pojuca Descendo o Morro; de vender)
Nova; Lavagem das escadarias
Casa de d. Lourdes Baianas da Igreja com baianas a
(falecida) caráter;
Casa de Juvêncio
(falecido) – Antonio Semana da Consciência
Mota; Negra – Os grupos que
Barracão de d. realizavam não existem
Ernestina/ Faterinha mais.
(deixou de bater) –
Beira Rio/ 29 de Julho.
Barracão de d.
Ormina (falecida) – às
margens da ponte
velha
Terreiro (?) – Shangri-

Locais de oferendas: Nos pontos
Encruzilhada do comerciais é
cemitério; comum a venda
Entrada da cidade. de “comida baiana
nas sextas-feiras.
165

D. Djão, 74 anos, colhendo folhas,


em 02/06/2010.

Altar de Santo Antonio na casa


de d. Zilda, 72 anos, em
13/06/2005.

Vestígios da capela da
Purificação – Fazenda São
José dos Caboclos. Em
13/06/2010.

Vestígios da capela da Purificação – Fazenda São José dos Caboclos


166

A lagoa encantada –
águas turvas – leito
completamente poluído.
Em, 02/06/2010.

Símbolo da Petrobrás.
Entrada de Pojuca.
Em, 13/06/2010.
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