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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

DIREITO A DMINISTRATIVO III

P ARTE I – A JUSTIÇA A DMINISTRATIVA: NOÇÃO E Â MBITO

Introdução

O conceito de justiça administrativa que deve ter-se hoje como aceite não corresponde ao conceito que
vigorava na época liberal, que a definia como o conjunto das garantias dos particulares contra as actuações
ilegítimas da Administração que violassem os seus direitos ou interesses. Superada a realidade do Estado
liberal, não se pode reduzir a justiça administrativa a uma função garantística – desde logo, porque
existem litígios emergentes de relações entre entes administrativos, em que não está em causa direitos a
protecção de direitos e interesses dos particulares; e sobretudo porque a justiça administrativa serve
também a prossecução do interesse público. Daí o artigo 212.º/3 da CRP dar uma definição material, e
não funcional, de justiça administrativa.

Isto não impede, contudo, que afirmemos que a garantia das posições jurídicas dos particulares integre
ainda o domínio típico da justiça administrativa, tal como transparece dos artigos 268.º/4 e 5 da CRP. Para
V IEIRA DE A NDRADE, estes artigos deverão funcionar como “base normativa para a afirmação de que a
protecção efectiva dos direitos dos administrados constitui o núcleo essencial ou, pelo menos, o domínio
típico da justiça administrativa”.

1. Os principais modelos históricos de justiça administrativa (V IEIRA DE A NDRADE, A Justiça


Administrativa, pp. 7-22)

Estamos aqui a pressupor um modelo de administração executiva, que é o modelo característico do


espaço latino-germânico e que se caracteriza por haver um direito especial da Administração Pública, que
regula primariamente e em termos substanciais a sua actividade e lhe atribui autoridade para, dispondo em
regra de um espaço discricionário, tomar decisões unilaterais obrigatórias, dotadas de força executiva.

1.1 Objectivismo e subjectivismo

Esta distinção baseia-se em dois critérios principais – a função do contencioso (enquanto que no modelo
objectivista se vista a defesa da legalidade e do interesse público, no subjectivista está em causa a
protecção das posições jurídicas substantivas dos particulares); e o objecto do processo (se no modelo

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objectivista o processo incide sobre actos, no subjectivista o processo incide sobre a alegada violação dos
direitos e interesses dos particulares).

No entanto, pode recorrer-se também a critérios complementares:


- A entidade competente para o controlo;
- A concepção do processo;
- O âmbito do controlo;
- Os poderes do juiz;
- Os efeitos do caso julgado.

A opção entre estes dois modelos já não é uma opção entre dois modelos puros, historicamente isolados,
mas sim a opção entre dois modelos típicos, susceptíveis de harmonização, tendo em conta a sua
evolução e os dados actuais.

1.2 Os modelos organizativos

Se atendermos à história da evolução da justiça administrativa, podemos identificar três modelos básicos
de organização, segundo o critério da competência para julgar.

1) Modelo administrativista – a decisão final dos litígios cabe aos órgãos superiores da
Administração activa, segundo uma ideia de que julgar a administração é ainda administrar.
Também se designa como modelo do “administrador-juiz” ou da “justiça conservada”. Foi um
modelo típico da época liberal, em que o contencioso administrativo era visto como um
instrumento de realização do interesse público e apoiava-se numa concepção da separação de
poderes que postulava a liberdade da actividade executiva estadual, que se devia em parte a uma
desconfiança em relação à actividade judicial.

2) Modelo judicialista – a decisão cabe a verdadeiros tribunais, integrados numa ordem judicial,
segundo o princípio de que julgar a administração é ainda julgar. É este o modelo actual, na linha
da ideia de que a actividade administrativa, mesmo nos momentos discricionários, está sempre
subordinada ao Direito, atribuindo por isso aos tribunais a competência para conhecer de todos os
litígios emergentes de relações jurídicas administrativas interpessoais..

3) Modelo judiciarista ou quase-judicialista – este é um modelo intermédio, de transição entre os


outros dois, segundo o qual a resolução de litígios cabe a órgãos administrativos independentes que,
apesar de serem alheios à orgânica dos tribunais e de as suas decisões não terem força executiva,

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desempenham funções específicas de controlo e actuam segundo um procedimento contraditório


de tipo jurisdicional.

Para além destes, podemos encontrar também na evolução da justiça administrativa dois modelos mistos.

4) Modelo administrativista mitigado – a decisão cabe a órgãos superiores da Administração


activa, mediante consulta prévia obrigatória a um órgão administrativo independente, cujo parecer
pode ou não ser homologado.

5) Modelo judicialista mitigado – apesar de a competência ser atribuída a verdadeiros tribunais, as


suas sentenças não têm força executiva ou têm força executiva fortemente limitada – quer por
estarem sujeitas a publicação pela Administração, quer por dependerem da boa vontade desta para
as executar.

1.3 Os modelos processuais

A questão dos modelos processuais prende-se com a finalidade do contencioso administrativo. No


espaço europeu, num primeiro momento histórico vigorou um (1) modelo objectivista, que é um modelo
tradicional de origem francesa. Este modelo apresenta os seguintes traços típicos:
i) Os litígios são decididos por órgãos administrativos independentes, actuando segundo um
processo jurisdicionalizado.
ii) O domínio nuclear do contencioso administrativo é o recurso de anulação de decisões
administrativas, de mera legalidade, sucessivo e limitado. A título complementar, a lei pode juntar
segundo um princípio de taxatividade outros meios de acção, designadamente em matéria de
contratos e responsabilidade civil. Todavia, vale aqui o princípio da decisão administrativa prévia,
segundo o qual apenas se pode intentar a acção depois de atacar a decisão administrativa; e a
impossibilidade de injunções directas à Administração.
iii) No plano processual, temos um processo feito a um acto, com o principal objectivo de aferir da sua
legalidade. Este modelo trazia assim algumas vantagens – alargava-se a legitimidade activa para
impugnação de actos administrativos (bastava um interesse simples ou de facto), já que os
particulares eram meros auxiliares dos tribunais na administração da justiça; e a sentença produzia
efeitos erga omnes, alargando os poderes de execução da sentença.

A evolução da justiça administrativa ditou a transição para um (2) modelo subjectivista, também
designado por modelo alemão, tendo surgido no pós-guerra.

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i) Instituição de uma verdadeira justiça administrativa, a nível material, processual e orgânico, com a
separação orgânica da jurisdição comum. Historicamente, se os modelos objectivistas estiveram
ligados a modelos administrativistas puros ou mitigados, os modelos objectivistas foram sempre,
de um ponto de vista orgânico, judicialistas.
ii) Alargamento dos meios de acesso à justiça administrativa e dos poderes do juiz, instituindo uma
jurisdição plena. O juiz dispõe de poderes condenatórios, anulatórios, declarativos e cautelares,
mesmo no âmbito do exercício de poderes de autoridade por parte da administração. Os princípios
da taxatividade dos meios de acção e da decisão administrativa prévia desaparecem.
iii) Acentuam-se os aspectos subjectivistas do processo, enquanto processo inter partes. Isto tem
consequências ao nível da legitimidade activa, que é mais restrita; e dos efeitos e execução da
sentença, já que só produz efeitos entre as partes.

A realidade recente dos países da Europa ocidental dotados de um sistema de administração executiva
aponta no sentido de uma subjectivização da justiça administrativa, tendo em conta a insuficiência dos
modelos objectivistas para assegurar uma protecção judicial efectiva dos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos, especialmente tendo em conta o progressivo alargamento da intervenção da
actuação administrativa. Assim, encontramos quer modelos com características predominantemente
subjectivistas, quer modelos mistos.

Mas isto não significa, note-se, adoptar uma visão que rejeite por completo as virtudes do modelo
objectivista, colocando-o no passado. Tem de se reconhecer que este apresenta certas vantagens, já
que, ao oferecer garantias mais amplas de defesa da legalidade, alarga a legitimidade para o acesso aos
tribunais – sobretudo na acção colectiva, pública e popular. Outras ideias concorrem para a não rejeição
em absoluto deste modelo:
i) A finalidade da justiça administrativa não se reduz à protecção das posições jurídicas substantivas
dos particulares, visando também assegurar a juridicidade da actuação da administração;
ii) Mesmo na actividade administrativa favorável, há que acautelar o interesse público contra a
concessão de vantagens ilegais.
iii) Também do ponto de vista da protecção dos direitos e interesses dos particulares o modelo
objectivista traz algumas vantagens, ao impor certos deveres e limitações à Administração.

“Nesses termos, talvez a opção mais adequada para o legislador seja uma construção normativa que
combine, sem preconceitos, aspectos de ambos os modelos, aproveitando, na medida do possível, as
vantagens de cada um”.

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2. O actual sistema de justiça administrativa em Portugal (V IEIRA DE A NDRADE, A Justiça


Administrativa, pp. 39-46)

2.1 O quadro constitucional da justiça administrativa

O art. 268.º da CRP não deve ser interpretado como uma imposição constitucional de um modelo
subjectivista, já que está apenas em causa a intenção de assegurar uma protecção plena e efectiva dos
direitos dos administrados. De resto, deve ser reconhecida ao legislador uma margem de liberdade de
conformação, desde que respeite o quadro constitucional nas suas duas vertentes – a protecção efectiva
dos direitos e o modelo organizatório judicialista.

Assim, V IEIRA DE A NDRADE concebe a hipótese de introduzir características do modelo objectivista,


alargando os meios da justiça administrativa à defesa da legalidade e do interesse público, apoiando-se
para tal em quatro argumentos:
1. O art. 266.º estabelece o interesse público como a principal finalidade da actuação
administrativa.
2. Um tal alargamento é necessário para controlo das relações jurídicas interadministrativa.
3. A própria Constituição, ao estabelecer no art. 52.º/3 o direito de acção popular para defesa de
interesses colectivos, difusos ou comunitários, impõe uma objectivização do modelo.
4. A Constituição não assume, nem pode assumir, uma intenção reguladora, fixando apenas os
aspectos fundamentais, dentro dos quais tem de ser reconhecida uma margem de conformação
ao legislador ordinário.

2.2 A reforma do modelo legal

A reforma da justiça administrativa de 2002 (que conduziu, sobretudo em função das revisões
constitucionais de 1989 e 1997, à adopção do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do Código
de Processo nos Tribunais Administrativos) alterou o modelo de justiça administrativa num sentido
subjectivista, com a manutenção ou introdução de algumas notas objectivistas. Vejamos porquê:
i) Alargou-se o âmbito tradicional da justiça administrativa, atribuindo aos tribunais
administrativos a competência para julgar os “litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas” (arts. 1.º e 4.º do ETAF). Esta ampliação é notória ao nível dos contratos que
envolvam a aplicação de direito público e da responsabilidade civil por actos praticado no
âmbito das funções legislativa e jurisdicional.

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ii) Consagra-se o princípio da tutela jurisdicional efectiva, art. 2.º/1 CPTA. Para que não haja
dúvidas acerca da plena jurisdição dos tribunais administrativos, estabelecem-se os diversos
conteúdos das pretensões possíveis junto dos tribunais e os correspondentes poderes do juiz –
art. 2.º/2.
iii) Os meios processuais principais sofrem uma alteração radical, organizando-se em torno de
duas formas processuais: a acção administrativa comum e a acção administrativa especial. O
anterior recurso de anulação perde assim o seu papel central, recebendo o nome de
“impugnação de actos” e passando a ser um dos pedidos da acção especial.
iv) Admite-se a cumulação de pedidos – art. 4.º CPTA.
v) Mantém-se um conceito alargado de legitimidade activa, que inclui o Ministério Público e os
titulares de interesse directo na anulação do acto. Alarga-se mesmo esta legitimidade a pessoas
colectivas e aos órgãos administrativos, e no âmbito da acção popular a qualquer cidadãos e a
titulares de interesses difusos (arts. 9.º/2 e 55.º do CPTA).
vi) Continua a reconhecer-se um papel processual relevante ao Ministério Público, apesar de se
lhe terem retirado alguns dos seus poderes processuais.
vii) Consagra-se o princípio da igualdade entre armas entre o recorrente e a Administração, no
sentido de um processo entre partes.
viii) Alarga-se a protecção cautelar dos administrados, que agora abrange quaisquer providências
adequadas – arts. 112.º e ss. Do CPTA.
ix) Regula-se o processo executivo, reforçando a garantia da efectividade das decisões judiciais –
nomeadamente através da possibilidade de o juiz fixar uma sanção pecuniária compulsória
(art. 157.º e ss. do CPTA).

2.3 Apreciação global do modelo

A Reforma de 2002 veio consagrar um modelo subjectivista, concebendo o processo como um processo
de partes e alargando os poderes de decisão e cognição do juiz. Todavia, podemos identificar algumas
notas objectivistas:
i) Reconhecimento de legitimidade activa, por exemplo, aos interessados de facto para
impugnação de actos administrativos na acção particular;
ii) Previsão de litígios interadministrativos;
iii) Reconhecimento de poderes ao Ministério Público;
iv) Conhecimento oficioso pelo juiz das ilegalidades do acto administrativo impugnado (95.º/2
do CPTA).

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3. A justiça administrativa em três dimensões

3.1 Dimensão substantiva ou material (V IEIRA DE A NDRADE, A Justiça Administrativa, pp. 47-60)

3.1.1 A noção de relação jurídica administrativa

O critério material de delimitação da justiça administrativa assenta no art. 212.º/3 da CRP, que afirma que
compete aos tribunais administrativos “o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por
objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas”. Assim, temos de nos
perguntar o que se deve entender por relação jurídica administrativa, já que este conceito tem uma
importância não só dogmática, mas também prática – sempre que um dado litígio não emergir de uma
relação jurídica administrativa, está fora do âmbito da justiça administrativa. Aqui, temos vários sentidos
possíveis:
i) Sentido subjectivo: inclui qualquer relação jurídica em que intervenha a Administração.
ii) Sentido objectivo: atende às relações jurídicas reguladas pelo Direito Administrativo.
iii) Sentido funcional: abrange as relações jurídicas que correspondam ao exercício da função
administrativa.

V IEIRA DE A NDRADE critica o facto de a densificação deste conceito ser remetido para a doutrina, pois,
dado ser uma questão fulcral, deveria ser resolvida expressamente pelo legislador. Todavia, podemos
afirmar que o sentido consagrado no art. 212.º/3 é o sentido tradicional: relação jurídica administrativa é
toda a relação jurídica externa ou intersubjectiva de natureza administrativa, isto é, regulada pelo
Direito Administrativo, e que se estabelece entre a Administração e os particulares ou entre duas
pessoas colectivas públicas. Este é um sentido subjectivo-estatutário: subjectivo porque pressupõe a
presença de pelo menos uma entidade administrativa; e estatutário por exigir que a relação seja regida
pelo Direito Administrativo.

Esta noção, ao pressupor a existência do Direito Administrativo, tem subjacente duas questões essenciais:
i) A existência de um sistema de administração executiva;
ii) A ideia de que existe um conjunto de tarefas próprias que caracterizam o núcleo essencial da
função administrativa, nas quais a Administração é tipicamente dotada de poderes de
autoridade.

Impõe-se fazer ainda algumas precisões face à noção de relação jurídica administrativa:
i) O requisito subjectivo significa que pelo menos um dos sujeitos é uma pessoa colectiva pública
ou uma entidade privada que actua no exercício de poderes públicos. A Administração Pública

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em sentido organizatório inclui quer as entidades administrativas privadas (pessoas colectivas


privadas sujeitas ao controlo de pessoas colectivas públicas), quer privados no exercício de
funções públicas. A tendência é a de abranger todas entidades, mesmo sob forma privada, que
desempenhem actividades de interesse público sobre direcção pública. Podemos perguntar-
nos se ainda são relações administrativas aquelas que integram um sujeito que desempenhe
funções materialmente administrativas; deve entender-se que sim, dado estas serem questões
reguladas pelo Direito Administrativo.
ii) Quando se fala em relação intersubjectiva, pressupõe-se que a relação existe entre pelo menos
duas pessoas com personalidade jurídica. Isto significa que estão excluídas da justiça
administrativa as relações internas, como as relações interorgânicas ou entre os órgãos de uma
pessoa colectiva pública e os respectivos titulares ou membros. Todavia, existem excepções.

3.1.2 Implicações para o âmbito da justiça administrativa

Da adopção deste critério material resulta a exclusão do âmbito da justiça administrativa certas relações.

1) Questões administrativas disciplinadas pelo direito privado: são as questões decorrentes da actividade
de direito privado da Administração, quer a que corresponde ao mero exercício da sua capacidade
privada, quer se trate de actividades funcionalmente administrativas desenvolvidas através de
instrumentos de direito privado.
Todavia, encontramos certas excepções a esta ideia:
i) Pode-se considerar substancialmente incluído na justiça administrativa o conhecimento de
certos aspectos de direito público de uma actuação administrativa desenvolvida ao abrigo do
direito privado (ex: o contencioso relativo à formação de contratos de direito privado, quando
siga um procedimento pré-contratual de direito público).
ii) É legítima a atracção para os tribunais administrativos da resolução global de litígios, alargada
aos aspectos de direito privado, com os objectivos de prevenir dúvidas e evitar a duplicidade
de processos.
iii) Pode haver atribuição expressa destes litígios aos tribunais administrativos, tendo o ETAF
optado por uma cláusula geral e não por uma enumeração taxativa.

2) Questões emergentes de actuações jurídicas privadas autorizadas ou licenciadas pela Administração,


quando as mesmas não decorram directamente da decisão administrativa de autorização.

3) Questões relativas à validade dos actos praticados no exercício de outras funções estaduais: está
igualmente excluída a impugnação de actos da função política, legislativa, e jurisdicional.

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i) Em relação aos actos da função política, o seu carácter não-administrativo resultará de serem
actos de 1º grau, praticados por órgãos supremos, em execução directa da Constituição e
destinados à prossecução directa de interesses fundamentais da comunidade política.
ii) Em relação à função legislativa, serão actos legislativos quaisquer disposições gerais e
abstractas editadas sob forma de diploma legislativo, ainda que tenham carácter regulamentar
(não existe entre nós nenhuma reserva material ou funcional de regulamento). É preciso ter
em conta que os actos administrativos podem ser impugnados perante os tribunais
administrativos independentemente da sua forma, ou seja, mesmo que constem de diploma
legislativo, o que nos remete para a questão da distinção entre acto administrativo e lei-
medida (uma medida concreta e individual pode qualificar-se como legislativa quando
consubstancie uma decisão sobre uma matéria importante, que não esteja regulada em
abstracto).
Mais uma vez, encontramos certas excepções a esta exclusão:
i) O nosso sistema obriga, desde logo, todos os tribunais a julgar a constitucionalidade das
normas que aplicam (fiscalização concreta).
ii) O novo ETAF, ao contrário do anterior, atribui aos tribunais a competência para conhecer
litígios relativos à responsabilidade civil extracontratual por danos causados no exercício da
função legislativa e jurisdicional.

3.1.3 Relações jurídicas interadministrativas

Para efeitos de exclusão do âmbito da justiça administrativa, são de considerar relações jurídicas
administrativas internas:
i) As relações entre órgãos administrativos dentro da mesma pessoa colectiva;
ii) As relações entre os órgãos administrativos e os respectivos membros ou titulares;
iii) As relações entre os órgãos de um instituição e os funcionários, utentes ou sujeitos de relações
especiais de direito administrativo, na medida restrita desse vínculo funcional.

Isto não significa que, na linha de introdução de aspectos objectivistas no nosso modelo, a lei não possa
atribuir, dentro de certos limites, a competência aos tribunais administrativos para conhecer litígios entre
órgãos da mesma pessoa colectiva ou entre um órgão e os respectivos membros. Ponto é que estas
situações estejam expressamente previstas na lei e sejam interpretadas em termos restritivos.

Pare efeitos de inclusão, devem considerar-se relações administrativas internas:


i) Relações entre a Administração e os particulares.
ii) Relações jurídicas interadministrativas:

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a. Entre entes públicos administrativos;


b. Entre entes administrativos e outros entes que actuem em substituição de órgãos;
c. Certas relações entre órgãos de diferentes entes públicos.

3.2 Dimensão orgânica (V IEIRA DE A NDRADE, A Justiça Administrativa, pp. 89-117)

Esta dimensão tem relevância autónoma na medida em que o critério material não é suficiente para
recortar o âmbito da justiça administrativa, ou seja, de tal modo que houvesse uma correspondência
entre justiça materialmente administrativa e jurisdição administrativa.

3.2.1 O alcance da reserva constitucional da jurisdição administrativa (ETAF)

A primeira questão que se coloca é a de saber como interpretar o art. 212.º/3 da CRP, no sentido de saber
se daí se retira ou não uma reserva material absoluta de jurisdição atribuída aos tribunais
administrativos. Uma tal reserva teria um duplo sentido:
i) Os tribunais administrativos só podem julgar questões de direito administrativo;
ii) Só os tribunais administrativos podem julgar questões de direito administrativo.

1) Quanto ao primeiro aspecto, a jurisprudência do Tribunal Constitucional parecia apontar para uma
reserva negativa de exclusão aplicável aos tribunais não judiciais, que neste sentido seriam tribunais
especiais. Assim, seria inconstitucional qualquer que lei que atribuísse aos tribunais administrativos
competência para julgar questões que não fossem emergentes de relações jurídicas administrativas.

No entanto, a doutrina evoluiu no sentido inverso, admitindo a atribuição legal aos tribunais
administrativos da resolução de litígios referentes à actividade administrativa ainda que incluísse aspectos
de direito privado; bem como de litígios decorrentes da actividade no âmbito de outras funções estaduais.
Como vimos, foi este último o sentido seguido pela Reforma da justiça administrativa.

2) Quanto ao segundo aspecto, são maiores as divergências doutrinais. Certos autores entendem resultar
da Constituição uma reserva segundo a qual o legislador não pode atribuir a outros tribunais,
designadamente judiciais, o julgamento de litígios materialmente administrativos (salvo excepções
previstas a nível constitucional). Outros propõem uma posição mitigada, que admite a remissão do
legislador para os tribunais comuns de certas questões jurídicas administrativas, por considerações de
ordem prática (insuficiência do número de tribunais para corresponder às necessidades de uma tutela
judicial efectiva).

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A posição adoptada por V IEIRA DE A NDRADE, e que é partilhada pela jurisprudência, é a de que o art.
212.º/3 da CRP define um modelo típico, que admite certos desvios desde que estes não descaracterizem o
modelo, ou seja, afectem o seu núcleo essencial. Este preceito deve ser entendido como uma garantia
institucional da qual resulta para o legislador uma proibição de descaracterização da justiça administrativa.
De resto, deve reconhecer-se uma livre margem de conformação do legislador, podendo atribuir
pontualmente a outros tribunais o julgamento de questões materialmente administrativas, com
fundamento em razões diversas (já quando se queira estabelecer desvios à ordem constitucional típica,
tem de ser a Assembleia da República a legislar, salvo autorização ao Governo – art. 165.º/1/p)). O
mesmo é dizer que os tribunais administrativos são os tribunais comuns em matéria administrativa.

Para esta tese concorrem vários argumentos:


i) Argumento histórico: este preceito foi instituído na revisão de 1989, com a intenção de
consagrar a ordem jurisdicional administrativa como uma jurisdição própria. É natural que
este preceito contenha assim uma definição da nova ordem jurisdicional, sem que com isso
pretenda estabelecer uma reserva material absoluta – a técnica utilizada foi a da cláusula geral.
ii) O art. 212.º/3 serve também para delimitar a parte final do art. 211.º/1, que atribui aos tribunais
judiciais uma competência residual – uma questão de natureza administrativa passa a
pertencer à jurisdição administrativa sempre que não seja expressamente atribuída a nenhuma
outra.
iii) Uma interpretação mais rigorosa suscitaria problemas de inconstitucionalidade de certas leis e
práticas vigente (por exemplo, em matéria de contraordenações e expropriações por utilidade
pública).
iv) Esta foi a interpretação que este na base da Reforma de 2002, que redefiniu o âmbito da justiça
administrativa em termos que não coincidem exactamente com os da Constituição.

“Em resumo, a interpretação mais razoável do preceito constitucional parece ser a que visa apenas consagrar
os tribunais administrativos como os tribunais comuns em matéria administrativa.”

Ainda que se optasse pela tese da reserva material absoluta, o critério orgânico não perderia sentido, uma
vez que a própria Constituição atribui determinadas competências em matéria administrativa a outros
tribunais:
i) Jurisdição constitucional: é o que sucede no que respeita a questões eleitorais (223.º/2/c) CRP) e à
fiscalização abstracta da constitucionalidade de normas administrativas (art. 281.º/1/a), c) e d)
da CRP e 72.º/2 do CPTA).

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ii) Jurisdição do Tribunal de Contas: em matéria de legalidade financeira, é competente o


Tribunal de Contas – art. 214.º da CRP.
iii) Jurisdição internacional: o art. 8.º/3 da CRP ressalva um conjunto de questões de direito
administrativo que pertencem à jurisdição de tribunais internacionais.
iv) Tribunais arbitrais: a previsão da existência de tribunais arbitrais deve-se igualmente
considerar como uma compressão constitucional da reserva judicial dos tribunais
administrativos.

3.2.2 A delimitação legal do âmbito da justiça administrativa

O art. 1.º do ETAF começa por reafirmar a cláusula geral da Constituição; todavia, o art. 4.º vem
densificar o âmbito desta cláusula através de enumerações. Note-se que com este artigo subsistem ainda
alguns problemas, já que:
i) A enumeração é meramente exemplificativa;
ii) É impossível uma identificação exaustiva de todos os litígios;
iii) Certos conceitos utilizados carecem de precisão;
iv) Esta previsão não exclui a existência de legislação especial divergente.

O art. 4.º contém uma (1) enumeração positiva, referindo os litígios que compete aos tribunais
administrativos dirimir. Esta enumeração positiva é, em princípio, meramente concretizadora da cláusula
geral, mas terá de ser considerada aditiva quando vise atribuir competências que não caibam no âmbito
dessa cláusula. Por outro lado, contém igualmente uma (2) enumeração negativa, que é também em
princípio meramente delimitadora, apesar de certas disposições terem carácter subtractivo.

1) Enumeração positiva

1.1) Dimensão concretizadora: a maior parte das alíneas do art. 4.º/1, com excepção das b), e), g) e h), visa
a concretização positiva do conceito “litígios emergentes de relações jurídicas administrativas”. Isto
significa que se dever interpretar o conteúdo destas alíneas em função da cláusula geral do art. 1.º (por
exemplo: a tutela de direitos fundamentais prevista na alínea a) só cabe aos tribunais administrativos no
âmbito das relações jurídicas administrativas). Esta concretização do âmbito da justiça administrativa
tem uma dupla função:
i) Enuncia as hipóteses mais importantes de litígios decorrentes de relações jurídicas
administrativas;

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ii) Não deixa quaisquer dúvidas em relação a matérias que poderiam estar excluídas por
legislação anterior – é o que sucede, por exemplo, com a alínea a) (que, para ser de máximo
alcance, deveria exigir a intervenção dos tribunais comuns).

1.2) Dimensão aditiva: os problemas surgem na medida em que certas alíneas no n.º 1 se têm de
considerar como um alargamento da jurisdição administrativa relativamente à cláusula geral, o que
sucede em dois domínios – nos contratos celebrados pela Administração Pública e na responsabilidade
civil extracontratual de entidades públicas. Note-se que este alargamento tem um mero alcance processual,
isto é, não significa que as questões passem a ser inteiramente reguladas pelo direito administrativo, mas
sim que os tribunais administrativos possam ter de aplicar, a título principal, normas de direito privado.

 Em matéria de contratos:
i) Alínea b), 2ª parte: confere aos tribunais administrativos competência para aferir da
invalidade de quaisquer contratos, quando esta seja consequência directa da invalidade do
acto administrativo em que se fundou a respectiva celebração – invalidade derivada. Esta
solução explica-se porque a solução alternativa – o tribunal comum aprecia a invalidade do
contrato, e o administrativo se a invalidade do acto se repercute na do contrato – seria
demasiado complexa do ponto de vista do particular. Contudo, V IEIRA DE A NDRADE
defende que esta opção deve ser interpretada em termos restritivos, exigindo uma relação
substancial adequada de causalidade entre as duas invalidades.
ii) Alínea f): atribui competência aos tribunais administrativos para conhecer de litígios
referentes à interpretação, validade e execução de contratos administrativos. Esta alínea
pretendeu recortar critérios de administratividade dos contratos, tendo de se ler hoje
conjugadamente com o art. 1.º/6 do Código dos Contratos Públicos. Pode representar um
alargamento do âmbito da justiça na medida em que possa abranger contratos não
administrativos, designadamente nas situações em que o regime de direito público
escolhido pelas partes possa referir-se apenas a aspectos específicos da relação contratual.
iii) Alínea e): atribui à jurisdição administrativa os litígios que tenham por objecto a
interpretação, validade e execução de contratos, mesmo que privados, desde que estejam
submetidos a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público. Estão
aqui em causa todos os contratos de direito público, sejam eles ou não administrativos – art.
1.º/2 do CCP.

 Em matéria de responsabilidade civil extracontratual:


i) Alínea g): atribui competência aos tribunais administrativos para conhecer das questões
relativas à responsabilidade civil extracontratual, incluindo as por danos emergentes no

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exercício da função jurisdicional e legislativa. No âmbito da função jurisdicional, este


preceito só é verdadeiramente aditivo na medida em que abrange as acções de
responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais administrativos (veja-se a
exclusão do n.º 3, al. a)), já que a responsabilidade por má administração da justiça envolve a
resolução de questões de direito administrativo (tal como sucede na alínea c)). Atenção que
é necessário fazer uma interpretação restritiva deste preceito, juntamente com a alínea g), no
sentido de limitar o seu objecto à responsabilidade das pessoas colectivas por actos no
exercício da gestão pública, ficando assim excluídos os actos de gestão privada, no qual se
aplicará as normas do Código Civil. Todavia, a jurisprudência tem ido no sentido contrário,
do alargamento aos actos de gestão privada.
ii) Alínea h): também aqui se deve fazer uma interpretação restritiva, no sentido de abranger
apenas a responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes
e demais servidores públicos por actos funcionais e não pessoais. Por outro lado, estão
incluídas neste preceito as acções de responsabilidade contra os titulares de órgãos e
trabalhadores de pessoas colectivas privadas, em consonância com a alínea seguinte.

2) Enumeração negativa

2.1) Dimensão delimitadora: algumas alíneas do n.º 2 e 3 limitam-se a concretizar a cláusula geral,
esclarecendo que determinadas questões não são litígios emergentes de relações de direito
administrativo.
i) N.º 2, alínea a): exclui a impugnação directa dos actos praticados no exercício da função
política e legislativa. Esta exclusão expressa justifica-se pelo facto de se atribuir competência
em matéria de responsabilidade extracontratual.
ii) N.º 2, alínea b): exclui os litígios que tenham por objecto a impugnação de decisões
substancialmente jurisdicionais de tribunais de outras ordens judiciais. Visa assegurar a
separação das jurisdições, em contraposição com a regra que submete à jurisdição
administrativa a apreciação de questões relativas a actos materialmente administrativos,
mesmo praticados por outros tribunais.
iii) N.º 3, alínea a): exclui a apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário
cometido por tribunais pertencentes a outras ordens, em contraposição com a alínea g) do
n.º 1.
iv) N.º 3, alínea d): exclui os litígios emergentes de contratos individuais de trabalho que não
constituam uma relação jurídica de emprego público. V IEIRA DE A NDRADE considera esta
separação “altamente discutível, até porque este tipo de contratos passou a constituir uma
hipótese residual”.

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

2.2) Dimensão subtractiva: a par dos preceitos delimitadores, encontramos outros que retiram à
jurisdição administrativa a competência para conhecer de certas questões de direito administrativo.
i) N.º 2, alínea c): subtrai à jurisdição administrativa os litígios que tenham por objecto a
impugnação dos actos de natureza administrativa relativos ao inquérito e à instrução penal, e
ao exercício da acção penal. Esta subtracção explica-se pela tradição e proximidade ao
processo penal, pelo que são julgados pelos tribunais comuns.
ii) N.º 3, alíneas b) e c): subtrai a fiscalização dos actos materialmente administrativos
praticados pelo Presidente do STJ, bem como pelo Conselho Superior da Magistratura e
respectivo Presidente. Concorrem aqui motivos de tradição e sobretudo de pudor
institucional.
iii) N.º 1, alínea m): ressalva a hipótese, que já vimos, de atribuição do contencioso eleitoral a
outras jurisdições.

Destacam-se algumas alterações relativamente ao anterior ETAF, que apenas possuía uma delimitação
negativa:
i) Desapareceu a exclusão do julgamento de questões de direito privado, o que significa, não
uma atribuição total de competência nesta matéria, mas a possibilidade de a admitir
pontualmente.
ii) Deixam de estar expressamente excluídos os litígios referentes à qualificação de bens como
pertencentes ao domínio público e a actos de delimitação destes com bens de outra natureza,
o que era motivado por uma atitude de desconfiança relativamente aos tribunais
administrativos. Hoje, poderá acontecer uma repartição de competências pelas jurisdições
em função do pedido na situação concreta, conforme haja ou não um acto prévio de
delimitação administrativa do domínio público.
iii) Um último aspecto prende-se com a subtracção aos tribunais administrativos da
impugnação dos actos de aplicação de coimas no âmbito das contra-ordenações e dos litígios
relativos à indemnização por expropriação – apesar de ser intenção da reforma de 2002
subtrair expressamente estes domínios à jurisdição administrativa, não o fez. Todavia,
devemos manter estas exclusões, o que se explica sobretudo por juízos práticos de volume de
acções e proximidade geográfica dos tribunais comuns.

3.2.3 Outros desvios legais

Para além do ETAF, há um conjunto de leis especiais que conferem expressamente a competência para o
julgamento de questões de direito administrativo a outros tribunais, como ao Tribunal Constitucional e

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ao Tribunal de Contas. Onde se verificam, no entanto, os principais desvios é na atribuição de


competências aos tribunais judiciais.

V IEIRA DE A NDRADE chama a atenção para a necessidade de racionalização de todos estes desvios, num
propósito de racionalização e coerência global.

3.3 Dimensão funcional (V IEIRA DE A NDRADE, A Justiça Administrativa, pp. 71-88)

3.3.1 Delimitação funcional

Utilizando agora um critério funcional de delimitação, a justiça administrativa apenas abrange a


resolução de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas que impliquem o exercício da função
jurisdicional, ou seja, os litígios constituam questões jurídicas a resolver num tribunal através de um
processo jurisdicional. A partir daqui, podemos levar a cabo uma delimitação negativa e positiva da
jurisdição administrativa.

1) Delimitação negativa:
i) A perspectiva funcional leva-nos, desde logo, a excluir da justiça administrativa o
conhecimento dos actos ou relações meramente internas, embora com excepções. Estas
questões não têm relevo jurídico num plano externo; sendo que é preciso ter em conta que o
conceito hoje vigente de actos e relações internas é muito menos amplo que antigamente,
tendo sofrido uma grande depuração.
ii) Exclui igualmente a resolução de questões administrativas quando esta se realize através de
meios administrativos de impugnação (quer por autocontrolo, quer por heterocontrolo), ou
ainda de meios políticos, através de petições dirigidas ao Provedor de Justiça ou ao
Parlamento. A justiça administrativa no sentido actual abrange apenas a actividade
jurisdicional reservada aos tribunais.
iii) Finalmente, exclui-se a resolução de questões administrativas através de meios de
autocomposição de conflitos (conciliação, mediação ou transacção), ou ainda através dos
centros de arbitragem permanente. Estes instrumentos de composição não jurisdicional de
conflitos estão previstos no art. 202.º/4 da CRP.

2) Delimitação positiva: deve-se considerar incluída na justiça administrativa a resolução de litígios de


direito administrativo por tribunais arbitrais (que pode decorrer de convenções de arbitragem ou de
cláusulas compromissórias), já que estes constituem, nos termos do art. 209.º/2 da CRP, verdadeiros

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tribunais. Esta jurisdição arbitral não se confunde com a arbitragem administrativa, desenvolvida quer
pelos centros de arbitragem, quer pelas autoridades reguladoras.

3.3.2 Limites funcionais da justiça administrativa

1) Os poderes de cognição do juiz: os limites relativos ao conteúdo da fiscalização

Apesar de o princípio da separação de poderes ter sofrido uma evolução no sentido de uma concepção
mais equilibrada, que promove a colaboração entre os poderes, não deixa de valer a proibição de os
juízes se substituírem à Administração (antes, do princípio da separação de poderes retirava-se a
natureza de jurisdição limitada da justiça administrativa). Podemos encarar esta proibição, actualmente,
em duas dimensões:
i) Diferença entre a autoria e a fiscalização: é necessário fazer uma distinção funcional entre a
tarefa levada a cabo pelo juiz, de fiscalização, e pela Administração, de autoria. Na autoria
ou decisão, a Administração tem de tomar conhecimento de todas as circunstâncias de facto
relevantes, fazer uma ponderação das dimensões valorativas envolvidas e, havendo
discricionariedade, optando pela alternativa que melhor realize o interesse público. O juízo
subjacente à tarefa jurisdicional tem uma natureza diferente – o juiz tem de elaborar o
paradigma normativo aplicável e submeter a decisão a testes de juridicidade. Podemos dizer
que, enquanto que o juízo administrativo articula uma racionalidade estratégica com uma
racionalidade normativa, o juízo jurisdicional é puramente normativo.
ii) Princípio da autocontenção jurisdicional perante a reserva de discricionariedade da
Administração: este limite está intimamente associado ao anterior, embora possua um
alcance mais vasto. Anteriormente, esta questão era resolvida através da separação entre
duas zonas de actividade: a zona de mérito, submetida a regras de boa administração; e a
zona de legalidade, submetida à lei e, logo, à fiscalização dos tribunais. Hoje, sabe-se que
toda a actividade da Administração está subordinada ao Direito, apesar de se ter mantido a
ideia de que os tribunais fiscalizam apenas a legalidade e juridicidade na actuação da
Administração, não lhes cabendo apreciar a sua conveniência ou oportunidade – art. 3.º/1
do CPTA. Esta autocontenção do juiz será tanto maior quanto mais amplos forem os poderes
discricionários, ganhando aqui importância a interpretação, no sentido de saber a que cabe
ou deve caber a responsabilidade pela decisão de aplicação da norma ao caso concreto – se
aos tribunais, se à Administração (dependendo de factores como a capacidade técnica e
legitimidade política ou social do órgão administrativo, a matéria, o modo de decisão, etc.).

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No sistema jurisdicional francês, teríamos de acrescentar uma terceira limitação funcional à justiça
administrativa – o princípio da decisão administrativa prévia. Este princípio vigorou entre nós durante
muitos anos, e diz-nos que o tribunal só pode fiscalizar a actuação administrativa depois de esta ter
proferido – ou ter sido provocada a proferir – uma decisão. Nesta linha de ideias, a justiça administrativa
seria excepcional em tudo o que fosse para além da impugnação de actos. Se é verdade que a
Administração, pela natureza das suas funções, deve ter a oportunidade para se pronunciar sobre as
pretensões dos particulares antes de estes se dirigirem aos tribunais (é isto que sucede na prática), isto não
significa que os administrados sejam obrigados a esperar ou a provocar actos administrativos só para
poderem exercer o acesso aos tribunais administrativos.

Com efeito, este princípio conflitua com o princípio da tutela jurisdicional efectiva, que manda que a
cada posição jurídica substantiva do particular (direito ou interesse legalmente protegido) corresponda
uma acção. A superação deste princípio é uma das notas subjectivistas do nosso sistema, e pode ver-se
atendendo às seguintes disposições:
i) Art. 37.º/2/c) do CPTA: consagra a condenação da Administração à não adopção de um acto
administrativo, quando seja provável que este viole um direito subjectivo ou interesse
legalmente protegido.
ii) Arts. 109.º e ss. do CPTA: consagra a intimação para a protecção de direitos, liberdades e
garantias, podendo o tribunal impor à Administração um comportamento positivo ou
negativo.

Todavia, podem manter-se algumas excepções, ou seja, o prévio requerimento pelo particular da
intervenção administrativa pode ser condição processual de uma acção quando essa intervenção
administrativa seja, por força da lei, necessária no caso – exemplo: um particular não pode pedir uma
providência judicial condenatória em caso de omissão administrativa relativamente a uma licença ou
autorização sem antes as ter requerido.

2) Os poderes de decisão do juiz: os limites à plena jurisdição do tribunal administrativo

Embora existam limites aos poderes de decisão dos tribunais administrativos, ou seja, à sua plena
jurisdição, a verdade é que estes limites já não correspondem aqueles que eram impostos anteriormente.
No início da justiça administrativa, o tribunal apenas poderia proferir sentenças constitutivas ou
declarativas quando estivessem em causa actuações de autoridade (actos ou regulamentos),
estabelecendo-se uma diferença entre este contencioso limitado e um outro, de plena jurisdição, quando
estivessem em causa actuações não autoritárias (acções relativas a contratos e responsabilidade civil
extracontratual).

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Com as revisões de 1977 e 1985, ainda que se continuasse a reconhecer à Administração o privilégio da
execução prévia da sentença, o juiz poderia especificar em que consistia a actividade administrativa de
execução da sentença, gozando de poderes de plena jurisdição. A situação alterou-se definitivamente
com as revisões de 1989 e 1997, que introduziram o princípio da tutela jurisdicional efectiva, em nome do
qual se abandonou a concepção de um contencioso limitado quando estivessem em causa actuações
autoritárias da Administração – assim, o juiz dispõe de poderes condenatórios (condenação da
Administração à prática de acto devido, arts. 66.º e ss. do CPTA, e declaração de ilegalidade por omissão,
art. 77.º do CPTA), mas ainda de outros poderes relevantes:
i) Poder de decretar providências cautelares antecipatórias;
ii) Poder de fixar prazos para o cumprimento dos deveres;
iii) Poder de fixar uma sanção pecuniária compulsória, que afecta não o património do Estado,
mas sim do próprio titular do órgão (art. 44.º do CPTA);
iv) Poder de assegurar a execução das sentenças, nomeadamente através de sentenças
substitutivas de actos administrativos (art. 3.º/3, art. 109.º/3; art. 164.º/4/c), 167.º/6e 179.º/5
do CPTA).

No entanto, estes poderes encontram limites:


i) Condenação no caso de poderes discricionários: o princípio da separação de poderes dita que,
apesar de o juiz ter poderes condenatórios, não pode proferir uma decisão sobre o mérito da
actuação (art. 3.º/1 do CPTA em geral e, no caso da condenação à prática de acto devido, art.
71.º/2 e 95.º, sobretudo n.º 4 e ss.). Esta condenação será tanto mais genérica e indicativa
quanto maior forem os poderes discricionários, pelo que estes representam um importante
limite. Já no caso de actos estritamente vinculados, são levados ao extremo os poderes de
plena jurisdição: o tribunal fixa o conteúdo da sentença, e, se a Administração a não
cumprir, pode em sede de processo executivo fixar uma sentença que produza os mesmo
efeitos que o acto administrativo (sentença substitutiva).
ii) Respeito pelo caso decidido administrativo: o juiz tem de respeitar a força de caso decidido de
um acto administrativo, quando este, ainda que inválido, se tenha tornado inimpugnável por
força do decurso do prazo de impugnação.

Assim, podemos dizer que o princípio da separação de poderes não implica uma limitação aos poderes
de plena jurisdição do juiz, mas sim uma proibição funcional de o juiz afectar o núcleo essencial da função
administrativa.

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Concluindo, da análise destas três dimensões resulta um conceito estrito de justiça administrativa, que
corresponde aos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas que estão cometidos aos
tribunais administrativos, os quais têm poder para apreciar as questões jurídicas (e não de mérito) e
para proferir decisões de plena jurisdição em tudo o que não ofenda o conteúdo essencial da função
administrativa

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P ARTE II – A ORGANIZAÇÃO DA JURISDIÇÃO A DMINISTRATIVA

(V IEIRA DE A NDRADE, A Justiça Administrativa, pp. 121-144)

Introdução

Os tribunais administrativos são, desde a revisão de 1989, de existência obrigatória segundo a


Constituição – art. 209.º/1/b) e art. 212.º/1. Resulta também da Constituição haver um tratamento
conjunto ou articulado dos tribunais administrativos e fiscais. A jurisdição administrativa fiscal é dual na
base e unitária no topo, organizando-se segundo um esquema de pirâmide de base alargada:
i) Na base da pirâmide, encontramos os tribunais administrativos de círculo e os tribunais
tributários.
ii) No meio da pirâmide, estão os Tribunais Centrais Administrativos, que têm uma Secção de
Contencioso Administrativo e uma Secção de Contencioso Tributário.
iii) No topo da pirâmide, está o Supremo Tribunal Administrativo, também dividido numa
Secção de Contencioso Administrativo e Secção de Contencioso Tributário.

Neste esquema, os tribunais administrativos são entendidos como uma sub-ordem judicial autónoma. A
sua organização foi radicalmente alterada com a reforma de 2002, dado que esta, por razões históricas,
estava sujeita a um regime especial (que se prendia essencialmente com o papel específico dos tribunais
superiores). A reforma veio padronizar o regime de organização, aproximando-o do regime dos
tribunais judiciais:
i) Os tribunais administrativos passam a ter alçada, art. 6.º ETAF.
ii) Estabelece-se a regra do duplo grau de jurisdição, admitindo-se excepcionalmente o triplo
grau (art. 24.º/2 ETAF e 150.º CPTA; no processo civil, a regra é a do triplo grau).
iii) Reduzem-se drasticamente os casos em que o STA, e sobretudo os TCA, funcionam como
tribunais de 1ª instância.
iv) Para além disto, as disposições relativas aos tribunais judiciais são subsidiariamente
aplicáveis.

1. Os tribunais administrativos

No conjunto dos tribunais administrativos, temos de distinguir entre os tribunais permanentes e os


arbitrais. Os tribunais permanentes são:
i) Supremo Tribunal Administrativo: tem sede em Lisboa e funciona em formação de três
juízes ou em pleno. Tem competência sobre todo o território nacional.

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ii) Tribunais Centrais Administrativos: são dois – o Tribunal Central Administrativo do Norte,
com sede no Porto; e o Tribunal Central Administrativo do Sul, com sede em Lisboa. Têm
jurisdição nas respectivas Regiões, sendo que o do Sul julga ainda os litígios das Regiões
Autónomas. Funcionam em formação de três juízes.
iii) Tribunais Administrativos de Círculo: funcionam, juntamente com os tribunais tributários,
num só tribunal, que recebe o nome de tribunal administrativo e fiscal. São tribunais locais,
que funcionam com juiz singular ou em formação de três juízes (acções administrativas
especiais com valor superior à alçada).

A par destes, encontramos os tribunais arbitrais, que se constituem ad hoc, em regra com base em
compromissos arbitrais ou em cláusulas compromissórias inseridas em contratos. Estes são verdadeiros
tribunais (art. 209.º/2 da CRP) que têm, no âmbito da justiça administrativa, um âmbito de jurisdição
limitado, ainda que hoje mais amplo do que o tradicionalmente admitido: tradicionalmente, apenas
abrangia litígios em matéria de responsabilidade civil e contratos, tendo sido alargado pelo CPTA (art.
180.º). Hoje, integra o domínio específico dos tribunais arbitrais:
i) A apreciação de quaisquer contratos, desde que esteja em causa a aplicação de normas de
direito público administrativo e, mais importante, a apreciação de actos administrativos
relativos à execução dos contratos [art. 180.º/1/a)] Exclui-se, no entanto, a apreciação de actos
praticados no âmbito do procedimento de formação dos contratos.
ii) Questões de responsabilidade civil extracontratual por danos decorrentes de actos também de
gestão privada, por força do alargamento do âmbito da justiça administrativa pelo ETAF.
Isto apenas no âmbito do exercício da função administrativa – art. 185.º do CPTA.
iii) Questões relativas a actos administrativos “que possam ser revogados sem fundamento na sua
ilegalidade nos termos da lei substantiva”, que inclui, por força do art. 140.º do CPTA, todos
os actos cujos efeitos não sejam impostos por lei imperativa. O fundamento deste
alargamento está na intenção de desembaraçar os tribunais administrativos de certas
questões.
iv) Casos previstos em lei especial.

Por outro lado, é preciso ter também em conta que o alargamento da arbitragem significou também uma
mudança qualitativa – a arbitragem não respeita agora só a questões patrimoniais e não se exclui dela a
apreciação da validade de actos administrativos, como sucedia antes da Reforma de 2002.

2. Repartição de competências entre os tribunais administrativos

2.1 Repartição em razão da matéria

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 Tribunais Administrativos de Círculo: têm uma competência genérica, nos termos do art. 44.º do
ETAF, para conhecer de todas as questões da justiça administrativa, com excepção daquelas cuja
competência esteja reservada aos tribunais superiores. A sua competência é também residual, na medida
em que, se um dado litígio não cair na competência de um tribunal superior, cai na dos Tribunais
Administrativos de Círculo.

 Tribunais Centrais Administrativos: os Tribunais Centrais Administrativos apreciam, em primeira


instância, as acções de regresso por responsabilidade funcional propostas contra um juiz de um tribunal
administrativo de círculo e tribunais tributários e magistrados do Ministério Público em exercício de
funções junto desses tribunais – art. 37.º/c) do ETAF. Incluem-se aqui as questões de erro judiciário e má
administração da justiça, sendo que esta competência se justifica por motivos de imparcialidade – não
poderia ser o próprio tribunal onde trabalha o juiz a julgá-lo. Isto sem prejuízo da atribuição de
competências prevista em lei especial – alínea d).

 Supremo Tribunal Administrativo: nos termos do art. 24.º/1 do ETAF, o Supremo Tribunal
Administrativo é competente para conhecer, em primeira instância:
i) Alínea a): dos processos em matéria administrativa relativos a acções ou omissões dos órgãos
superiores do Estado, bem como dos pedidos cumulados com estes, alínea e). Esta atribuição
justifica-se por uma questão dignidade destes órgãos. Tradicionalmente, o âmbito da justiça
administrativa era mais alargado, incluindo, por exemplo, os actos dos ministros. Isto
implicava que o Supremo Tribunal Administrativo tinha uma competência muito ampla em
primeira instância, pois bastava que fosse possível recorrer do acto para um ministro para
caber na sua competência.
ii) Alínea b): dos processos relativos a eleições previstos no ETAF.
iii) Alínea c) e d): dos pedidos de providências cautelares relativos aos processos da sua
competência, bem como dos pedidos de execução das suas decisões.
iv) Alínea f): das acções de regresso por responsabilidade funcional propostas contra juízes do
Supremo Tribunal e Tribunais Centrais, bem como magistrados do Ministério Público em
exercício de funções junto desses tribunais.

2.2 Repartição em razão da hierarquia

Embora com a limitação das alçadas, vale na justiça administrativa o princípio do duplo grau de jurisdição
(admitindo-se em determinados casos o triplo grau): das sentenças proferidas pelo tribunal de primeira

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instância cabe recurso para um tribunal superior, sendo que, no caso do Supremo Tribunal, o recurso se
faz para uma formação de julgamento mais alargada.
i) Recursos das decisões proferidas pelos Tribunais Administrativos de Círculo: são, em regra,
conhecidos pelos Tribunais Centrais Administrativos, salvo nos casos em que haja recurso
per saltum para o Supremo Tribunal – art. 37.º/a) do ETAF. Estes casos estão previstos no art.
151.º do CPTA e 24.º/2 do ETAF, tratando-se de um recurso de revista, isto é, apenas sobre
questões de direito. Em recurso, o Supremo Tribunal funciona sempre como tribunal de
revista.
ii) Recurso das decisões proferidas pelos Tribunais Centrais, quer em primeira instância, quer,
quando haja lugar a revista, em segunda instância: são apreciados pelo Supremo Tribunal –
art. 24.º/1/g) e n.º 2 do ETAF. O Supremo Tribunal pode funcionar como terceira instância
nas situações excepcionais em que, das decisões proferidas em segunda instância pelos
Tribunais Centrais, cabe ainda recurso de revista para o Supremo Tribunal. Esta
possibilidade coloca-se nas situações em que a decisão jurídica seja particularmente
complexa e controvertida e está prevista no art. 150.º do CPTA.
iii) Recursos das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal em primeira instância: são
conhecidos pelo Pleno da Secção, art. 25.º/1/a) do ETAF:
iv) Recursos das decisões dos tribunais arbitrais: são conhecidos pelos Tribunais Centrais, art.
168.º do CPTA, 37.º/b) do ETAF e 59.º/2 da LAV.

Cumpre ainda referir que os recursos para uniformização da jurisprudência são conhecidos pelo Pleno da
Secção do Supremo Tribunal – art. 152.º do CPTA e art. 25.º/1/b) do ETAF. O Pleno da Secção tem ainda
competência para se pronunciar vinculativamente sobre o sentido em que deve ser resolvida uma
questão de direito nova que se suscite num tribunal administrativo de círculo e que para ele seja enviada
em sede de reenvio prejudicial – art. 25.º/2 do ETAF (esta hipótese constitui uma alternativa ao
julgamento em formação alargada, art. 93.º do CPTA e art. 41.º do ETAF).

2.3 Repartição em razão do território

Esta questão coloca-se sobretudo em relação aos Tribunais Administrativos de Círculo, e pressupõe a
determinação de critérios para a distribuição da competência territorial:
i) A regra geral é a da competência do tribunal da residência habitual ou sede do autor (ou
maioria dos autores), art. 16.º do CPTA. Esta solução visa favorecer, em termos de
razoabilidade e comodidade, os particulares.

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ii) Todavia, há regras especiais que constituem excepções à regra geral, em função do tipo de
processo, da matéria ou do objecto da acção. Estas excepções estão previstas nos arts. 17.º,
18.º, 19.º e 20.
a. Art. 17.º: os processos relacionados com bens imóveis ou direitos a eles referentes
são intentados no tribuna da situação do bem
b. Art. 18.º: as pretensões em matéria de responsabilidade civil extracontratual são
deduzidos no tribunal do lugar em que se deu o facto constitutivo da
responsabilidade.
c. Art. 19.º: as pretensões relativas a contratos são deduzidas no tribunal
convencionado ou, na falta de convenção, no tribunal do lugar de cumprimento.
d. Art. 20.º/1: os processos respeitantes à prática ou omissão de normas e actos das
Regiões Autónomas e autarquias locais são intentadas no tribunal da área da sede
da entidade demandada.
e. Art. 20.º/3: o contencioso eleitoral é da competência do tribunal da área da sede do
órgão cuja eleição se impugna.

Em suma, podemos fazer uma apreciação global do novo regime da justiça administrativa:
i) Ao aproximar o Supremo Tribunal Administrativo de um tribunal supremo, reduzindo
significativamente a sua competência em primeira instância, quis-se assegurar uma justiça eficaz e
eficiente, evitando o congestionamento com processos menores dos tribunais superiores.
ii) Por outro lado, assegurou-se que as questões de especial relevo jurídico ou social (questões de direito
novas, complexas ou com efeitos massivos) continuam a caber ao Supremo Tribunal, a quem cabem as
funções de velar pela boa aplicação do direito administrativo e uniformidade da jurisprudência.

3. Papel do Ministério Público

Por influência directa do contencioso francês, o Ministério Público tem na justiça administrativa
portuguesa um papel de grande relevo.

1) O que é? O Ministério Público consiste num corpo de magistrados responsáveis e hierarquicamente


subordinados, com autonomia relativamente ao Governo e à magistratura judicial, cuja gestão e
disciplina cabe à Procuradoria-Geral da República, sendo presidido pelo Procurador-Geral e incluindo
o Conselho Superior do Ministério Público. É um órgão constitucional de administração da justiça,
dotado de independência externa, mas não é um órgão de soberania.

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2) Quais as suas funções? Cabem ao Ministério Público várias funções relevantes no âmbito da justiça
administrativa:
i) Defesa da legalidade;
ii) Fiscalização da constitucionalidade dos actos normativos;
iii) Representação do Estado e outros entes público, bem como determinadas pessoas indicadas
por lei (ausentes e incapazes);
iv) Defesa de interesses colectivos e difusos;
v) Patrocínio dos trabalhadores e suas famílias na defesa dos seus direitos sociais.

3) Quais os seus poderes? O nosso ordenamento jurídico atribui ao Ministério Público amplos poderes
processuais:
i) Enquanto defensor da legalidade da actuação da Administração, o Ministério Público tem
legitimidade processual activa na maioria das acções, bem como, por exemplo, o direito de
recorrer de acções jurisdicionais (art. 141.º do CPTA), o direito de interpor recursos para
uniformização de jurisprudência (art. 152.º), e o poder de assumir a posição de autor em
caso de desistência (art. 62.º). Há certos casos em que a legitimidade é mesmo mais facilitada
que na acção particular (acção para declaração de ilegalidade com força obrigatória geral); e
outros em que o Ministério Público é mesmo obrigado a intentar acções (quando uma
norma seja declarada ilegal três vezes).
ii) Dispõe de poderes processuais relevantes nas acções administrativas especiais intentadas por
particulares – poder de pronúncia na fase preparatória, poder de invocar novos vícios,
alguns poderes de iniciativa no âmbito da instrução (art. 85.º) e poder de dar parecer sobre o
mérito do recurso (art. 146.º).
iii) Cabe-lhe a representação do Estado nas acções administrativas em que este seja parte,
concretamente, em matéria de relações contratuais e de responsabilidade civil (art. 219.º/1
da CRP) embora aí também intervenha como defensor da legalidade (art. 11.º/2 do CPTA).
iv) Compete-lhe ainda a representação de outras pessoas colectivas públicas ou de outros
interessados, nos casos expressamente previstos na lei.

V IEIRA DE A NDRADE critica esta diversidade de funções, que atribui a esta instituição um papel dúplice
– ora colocando-o do lado do Estado, ora aparecendo contra a Administração.
i) Na acção administrativa especial, limitou-se fortemente a sua intervenção processual,
optando-se pela supressão pura e simples do parecer final, o que revela um “excesso de
confiança” – o argumento mais forte a favor daqueles que eram contra os poderes do
Ministério Público seria o de que originaria uma sobreposição dos poderes com o juiz.

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

ii) Pelo contrário, parece permitir-se amplamente a acção pública na defesa activa da
legalidade, sem quaisquer condições ou limites.
iii) Por outro lado, no que respeita aos processos administrativos que sigam a forma de acção
administrativa comum, não se percebe que o Ministério Público não possa aí intervir.

O Ministério Público deveria ser apenas visto como um defensor da legalidade, quer intervenha como
parte principal, quer actue na veste de auxiliar do juiz, já que não há razões para, no processo
administrativo actual, atribui ao Ministério Público a representação dos interesses patrimoniais do
Estado-Administração, que poderia ser assegurado por funcionários próprios.

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P ARTE III – TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA E P ROCESSO A DMINISTRATIVO

CAPÍTULO I – A garantia constitucional (V IEIRA DE A NDRADE, A Justiça Administrativa, pp. 145-162)

1. O direito de acesso aos tribunais administrativos e o princípio da tutela jurisdicional efectiva

Podemos identificar três dimensões do princípio da tutela jurisdicional efectiva.

1) Direito à protecção judicial: resulta directamente do art. 20.º da Constituição, sendo o seu núcleo
essencial integrado por três direitos:
i) Direito à protecção pela via judicial – é o núcleo essencial deste direito, dizendo-nos que aos
cidadãos titulares de posições jurídicas substantivas tem de ser garantida uma via judicial
para as defender;
ii) Direito a obter uma decisão em prazo razoável;
iii) Direito a um processo judicial equitativo;

Neste sentido, podemos dizer que o direito à protecção judicial é um direito complexo, integrando ainda
o dever de o legislador assegurar garantias processuais adequadas. É ainda reforçado pelo art. 205.º/2 e 3
da CRP, que determina a obrigatoriedade das sentenças para todas as autoridades e a imposição de
legislação que garanta a sua execução efectiva. Suscita-se ainda a questão de saber se inclui o direito à
reapreciação das decisões judiciais (pelo menos um duplo grau de jurisdição) – apesar de a maioria da
doutrina e jurisprudência entenderem que da Constituição só decorre este direito no âmbito penal, na
justiça administrativa e civil o legislador deve não obstante prever o recurso na linha da garantia da tutela
jurisdicional efectiva.

2) Tutela jurisdicional efectiva em matéria administrativa: o princípio da tutela jurisdicional efectiva


coloca especiais exigências no que toca às relações jurídicas administrativas, posto que esta se estabelece
normalmente entre um particular e uma entidade dotada de poderes públicos. Assim, a Constituição
consagra especificamente, no art. 268.º/4 e 5 (no CPTA, está previsto no art. 2.º/2), o princípio da tutela
judicial efectiva dos cidadãos perante a Administração Pública – enquanto que o art. 20.º está pensado
apenas para a defesa de direitos e interesses legalmente protegidos, o art. 268.º tem em vista que os
particulares tenham a possibilidade de defender todas as posições substantivas contra actuações ilegais da
Administração. Esta tutela tem de ser assegurada numa típlice dimensão – tutela principal, cautelar,
executiva –, e deve ainda entender-se que se estende à protecção do interesse público e dos valores
colectivos (saúde pública, ambiente, etc.).

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3) Princípio da plenitude dos poderes jurisdicionais: a tutela judicial efectiva é igualmente garantida pela
atribuição de poderes de plena jurisdição ao juiz, que lhe permitam tomar decisões justas e adequadas à
protecção dos direitos dos particulares, bem como assegurar a eficácia das mesmas. Hoje, a lei atribui aos
tribunais administrativos poderes de plena jurisdição, estabelecendo o seguinte:
i) Reforço dos poderes de pronúncia no plano declarativo, que vão para além dos poderes de
anulação e condenação nas acções tradicionais (ex: poder de condenação à prática de actos
administrativos, poder de intimação para adopção ou abstenção de comportamentos
administrativos, etc.);
ii) Poder de adoptarem quaisquer providências cautelares que considerem adequadas, arts. 2.º/1
e 112.º e segs. do CPTA (esta é uma novidade face ao contencioso anterior, no qual as
providências admitidas estavam taxativamente previstas);
iii) Reforço dos poderes em sede de execução de sentenças (art. 3,º/3 e 157.º e segs.);
iv) Poder de aplicação de sanções pecuniárias compulsórias (art. 3.º/2 e art. 169.º);
v) Poderes de controlo da juridicidade de todas as actuações administrativas, limitados apenas
pelo não conhecimento do mérito (art. 3.º/1) e pelo respeito pelos poderes discricionários
(arts. 71.º/2, 95.º/3, 168.º/2, 179.º/1);
vi) Poderes de substituição, embora apenas em sede de intimação para protecção de direitos,
liberdades e garantias e de execução de sentenças (art. 3.º/3, 109.º/3, 164.º/4/c), 167.º/6 e
179.º/5).

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CAPÍTULO II – A acção administrativa comum (V IEIRA DE A NDRADE, A Justiça Administrativa, pp. 163-
182)

1. Âmbito e objecto

A acção administrativa comum está prevista nos arts. 37.º e segs. do CPTA. Nos termos do art. 37.º/1, a
forma da acção comum é aplicável a todos os litígios sujeitos à jurisdição administrativa relativamente aos
quais não esteja expressamente estabelecida uma forma especial, quer pelo CPTA, quer por legislação
avulsa. Esta é, assim, uma acção residual.

Como tal, e quanto ao objecto da acção, este pode ser integrado pelos mais variados pedidos, devendo a
sua delimitação ser feita negativamente – em regra, constitui o meio adequado de acesso à justiça
administrativa se não estiver em causa um litígio relativo à prática ou omissão ilegal de actos
administrativos ou regulamento, isto é, se estivermos perante uma relação de natureza paritária, que
não envolva o exercício de poderes de autoridade por parte da Administração.

A título exemplificativo, o art. 37.º/2 enuncia vários pedidos típicos que encontramos no âmbito desta
acção, tendo o cuidado de referir aqueles que se colocam como uma inovação ou como duvidosos face
ao direito anterior (atenção que, apesar de nos referirmos a estes pedidos como “acções”, estas não são
verdadeiras acções, não se tratando de meios autónomos). Os pedidos mais importantes são os relativos a
contratos e responsabilidade civil, que iremos tratar no final.

2. As acções administrativas comuns

2.1 Acções de reconhecimento: art. 37.º/2/a) e b)

As alíneas a) e b) consagram os pedidos de reconhecimento de situações jurídicas subjectivas,


decorrentes directamente de normas administrativas ou actos jurídicos nelas fundados; bem como de
qualidades ou posições jurídicas, através do preenchimento de condições normativas. São acções de
simples apreciação.

É específico destas acções a exigência do interesse processual, previsto no art. 39.º, uma vez que a elas
subjaz uma intenção preventiva. Este interesse implica a invocação de uma utilidade ou vantagem
imediata na declaração judicial pretendida, podendo esta ter origem, por exemplo, numa situação de
incerteza, na ilegítima afirmação pela Administração da existência de uma determinada situação jurídica,

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ou no fundado receio de uma conduta lesiva da Administração, fundada numa avaliação incorrecta da
situação existente.

2.2 Acções mandamentais: art. 37.º/2/c)

A alínea c) prevê o pedido de condenação à adopção ou abstenção de comportamentos, que é dirigido, em


princípio, contra a Administração, podendo também ser utilizado entre particulares (art. 37.º/3). Pode
ainda ser dirigido pela Administração contra particulares, pese embora estas situações sejam
excepcionais dado que na maior parte dos casos basta a força do acto administrativo.

Este é um pedido influenciado pelo direito alemão, e que pode à primeira vista causar dificuldades no
sistema de administração executiva, uma vez que se permite aos particulares pedirem a condenação da
Administração à não emissão de um acto administrativo, quando seja provável a emissão de um acto
lesivo (no sistema de administração executiva, primeiro a Administração pratica o acto, e depois é que o
particular pode reagir). Assim, quer porque este pedido pode interferir no exercício da função
administrativa, quer pela própria natureza do nosso sistema, tem-se defendido uma interpretação
restritiva:
i) Na posição original de V IEIRA DE A NDRADE, esta forma de tutela preventiva só poderia ser
utilizada quando a impugnação a posteriori do acto administrativo ilegal fosse insuficiente ou
desadequada, designadamente por permitir fundar uma situação de facto irreversível. Esta
posição é menos restritiva pois permite a utilização deste pedido quando esteja em causa a
prática de qualquer acto administrativo ilegal, bastando que se demonstrasse que a
impugnação posterior violaria o princípio da tutela jurisdicional efectiva. O Autor
acrescenta ainda que “este pedido parece, pois, especialmente vocacionado para a defesa de
direitos absolutos”.
ii) Na posição de PEDRO GONÇALVES, este pedido só pode ser utilizado em situações de
“carência de poder” (direito italiano), ou seja, naqueles casos em que o particular tem o
direito subjectivo à não emissão do acto administrativo, posto que a Administração carece
de poderes de autoridade. Esta restrição explica o facto de este pedido seguir a forma de
acção comum e não especial dado que a Administração não pode praticar o acto
administrativo, tratando-se antes de uma relação paritária.

De qualquer forma, os tribunais são tendencialmente restritivos na admissibilidade do recurso a este


preceito, pelo perigo que a tutela preventiva coloca de interferência dos tribunais na função
administrativa.

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2.3 Acções de restabelecimento: art. 37.º/2/d)

A alínea d) consagra os pedidos de condenação à Administração nas condutas necessárias ao


restabelecimento de direitos ou interesses violados por aquela. Podemos conceber três situações de
recurso a este pedido:
i) Quando se trate da reconstrução da situação actual hipotética na sequência da anulação de
acto administrativo, o pedido pode ser cumulado com o pedido impugnatório, seguindo a
forma de acção especial. Esta possibilidade está expressamente prevista no art. 42.º/2/b). Em
sede de execução da sentença anulatória, ainda que o pedido não tenha sido expressamente
cumulado, pode ainda assim ser deduzido (art. 47.º/3).
ii) Estes pedidos só serão autónomos quando o dever de restabelecimento não resulte da
prática de um acto administrativo ilegal, mas de um outro tipo de actuação administrativa
contrária à lei – por exemplo, de operações materiais, nas situações de via de facto.
iii) Pode ainda estar associado a uma acção de responsabilidade, impondo a reconstituição da
situação natural no âmbito de um pedido de indemnização.

2.4 Acções de prestação: art. 37.º/2/e)

A alínea e) consagra as acções de prestação, que se destinam a condenar a Administração no


cumprimento de deveres de prestar, que decorram directamente de normas administrativas ou tenham
sido constituídos por actos jurídicos (desde que não envolvam a prática de um acto administrativo),
podendo ter por objecto o pagamento de uma quantia, a entrega de uma coisa ou a prestação de um
facto. Este pedido também pressupõe a existência de situações em que não esteja previsto um verdadeiro
acto administrativo, mas simples actuações administrativas no contexto de relações jurídico-
administrativas em que a lei, regulamento ou acto administrativo anterior confiram directamente direitos
a prestações administrativas a determinados particulares. Distingue-se do pedido geral de condenação na
adopção ou abstenção de comportamento, uma vez que se trata do cumprimento de deveres
obrigacionais, típicos da administração de prestações.

A introdução desta alínea teve grande importância, uma vez que, face ao contencioso anterior,
organizado em torno do contencioso de anulação, forçava-se a existência de um acto administrativo para
permitir aos particulares a reacção contra o incumprimento de prestações. É mais uma consequência do
princípio da tutela efectiva e um contributo para o aperfeiçoamento de uma concepção substantiva da
justiça administrativa.

2.5 Acções de reposição: art. 37.º/2/g) e i)

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A doutrina agrupa sob esta designação os pedidos de reintegração patrimonial decorrentes do


enriquecimento sem causa administrativo e da imposição de sacrifícios por razões de interesse público,
alíneas g) e i). Não estão aqui em causa actuações ilícitas ou ilegais. São acções puramente residuais.

2.6 Acções interadministrativas: art. 37.º/2/j)

A alínea j) prevê expressamente a existência de acções no âmbito de relações jurídicas entre entidades
administrativas, que se podem reportar a qualquer dos pedidos da acção comum. Contudo, apenas estão
em causa as acções que não envolvam a prática ou omissão de actos administrativos ou regulamentos, ou
seja, relações tendencialmente paritárias, o que não é muito frequente nas relações interadministrativas.
Face ao princípio geral da legitimidade do art. 9.º/1, V IEIRA DE A NDRADE defende que não podem existir
acções administrativas comuns entre órgãos da mesma pessoa colectiva, que têm atribuições comuns
(PEDRO GONÇALVES é da opinião contrária).

2.7 Acções entre particulares: art. 37.º/3

O art. 37.º/3 consagra a possibilidade da utilização da acção administrativa comum por qualquer pessoa
ou entidade directamente lesada, para pedir a condenação à adopção ou abstenção de comportamento
por particulares, com fundamento na violação ou fundado receio de violação de vínculos jurídicos
administrativos, quando a Administração, chamada a fazê-lo, não tenha tomado as medidas
adequadas. Este é um caso especial de processo administrativo principal entre particulares; e releva
sobretudo para o domínio de defesa de interesses comunitários.

Para que um particular possa lançar mão deste pedido contra outro particular, é necessário que se
verifiquem dois requisitos:
i) Que não esteja em causa uma actuação legal do particular fundada numa ilegalidade do
acto administrativo – por exemplo, se um particular constrói um muro com base numa
licença de construção ilegal, está a violar normas de Direito Administrativo, porém com base
num acto administrativo impugnável. A forma de processo é a acção administrativa especial.
ii) Que o particular tenha provocado uma actuação administrativa – este pedido pressupõe o
requerimento prévio dirigido à Administração e o decurso de um prazo razoável ou prova
clara da omissão administrativa.

Embora a lei não o preveja expressamente, a acção administrativa comum é também a forma que deve ser
utilizada pelas entidades públicas, quando peçam providências contra os particulares – embora em regra

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a Administração não tenha interesse em fazê-lo, uma vez que tem competência para obter o efeito
jurídico pretendido através da prática de um acto administrativo.

2.8 Acções relativas a contratos

Para perceber estas acções, convém relembrar alguns aspectos do regime dos contratos:

(1) Procedimento de formação do contrato: os contratos sujeitos ao Código dos Contratos Públicos (CCP)
têm um procedimento que se divide em duas fases – o procedimento pré-contratual, que termina com o
acto administrativo de adjudicação; e o procedimento pós-adjudicatório, que termina com a celebração
do contrato. O acto administrativo de adjudicação é o acto pelo qual a entidade adjudicante escolhe a
proposta, e por conseguinte escolhe com que irá celebrar o contrato. Em que é que isto se reflecte em
matéria de acções? Podemos ter situações em que o acto de adjudicação ou outro acto praticado durante
procedimento pré-contratual padeça de uma invalidade - ex: foi excluído do concurso ilegalmente um
dado concorrente, etc. Estes actos administrativos inválidos, porque são actos administrativos, vão ser
impugnados na acção administrativa especial.

(2) Regime da invalidade do contrato administrativo: vem regulado nos arts. 283.º, 283.º-A e 284.º do
CCP. Podemos distinguir dois tipos de invalidades – invalidade consequente ou derivada; e invalidade
própria. O regime da invalidade consequente vem previsto no art. 283.º, enquanto que o da invalidade
derivada vem previsto no art. 284.º.

(2.1) Invalidade derivada: ocorre quando a invalidade do contrato decorre de vícios ou de ilegalidades
que afectam actos administrativos praticados durante o procedimento pré-contratual. Entre os actos
administrativos e o contrato administrativo existe uma relação de pressuposição: os actos funcionam
como actos pressupostos, e o contrato como ato consequente. O Código fala em "acto procedimental em
que assentou a celebração do contrato" - acto procedimental que influenciou ou a escolha do co-
contratante ou o conteúdo do contrato. A adjudicação, por ex., é um acto pressuposto, pois é através dele
que conhecemos o co-contratante da Administração; assim como o acto de exclusão de uma proposta,
etc. O CCP diz-nos que a invalidade do ato pressuposto origina a invalidade do contrato. Excepções: no
caso de anulabilidade do acto, o CCP permite que o juiz, em certos casos, aproveite o contrato, caso não
tenha ocorrido uma modificação subjectiva do contrato; quando se comprove que é pior para o interesse
público a invalidade do contrato, pode-se manter a validade.

(2.2) Invalidade própria: está em causa uma invalidade que afecta os elementos essenciais dos contratos -
sujeitos, declaração negocial ou conteúdo. Pode haver situações em que a mesma causa de invalidade

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gere uma invalidade derivada e própria do contrato – diz-se que é uma invalidade comum. Ex: quando a
adjudicação é feita à proposta errada de acordo com os critérios adjudicantes, temos uma invalidade
derivada pois a invalidade da adjudicação reflecte-se na do contrato; e própria pois a escolha da proposta
errada influencia o conteúdo do contrato.

(3) Fase de execução do contrato: quando está em causa um contrato administrativo, o contraente público
tem poderes de autoridade. O CCP, na Parte III, tem em vista os contratos de subordinação, que se
caracterizam por conferir ao co-contratante público poderes de autoridade durante a execução do
contrato. Como distinguir entre poderes de autoridade e declarações negociais? O CCP, no art. 307.o, diz
quais actuações correspondem ou não a poderes de autoridade - são meras declarações negociais as
declarações do contraente em matéria de invalidade e interpretação do contrato; e são actos
administrativos as declarações proferidas no exercício dos poderes de direcção, fiscalização,
modificação, resolução, e aplicação de sanções.

1) Art. 40.º/1: fala apenas em acções relativas à validade dos contratos, mas inclui também as acções
relativas à sua interpretação. Estes pedidos assumem especial relevo em matéria de contratos, uma vez
que a Administração, ao contrário do que sucede com os actos, não pode unilateralmente declarar a
invalidade e interpretar os contratos de que é parte.

No contencioso anterior, as acções relativas a contratos apenas podiam ser propostas pelas partes, o que
colocava sérios problemas – se as partes, por exemplo, inseriam um clausulado contratual diferente do
que foi acordado, um terceiro preterido nada podia fazer. Foi a protecção de terceiros – quer
relativamente a contratos que envolvam interesses comunitários relevantes, quer relativamente a
contratos celebrados na sequência de procedimentos concursais, quer a contratos com efeitos externos –
que motivou o alargamento da legitimidade processual destas acções (para além da legitimidade conferida
às partes, alínea a)):
i) Alínea b): acção pública e acção popular, para defesa da legalidade ou de interesses
comunitários fundamentais.
ii) Alínea c): quem tenha sido prejudicado pelo facto de não ter sido adoptado o procedimento
pré-contratual legalmente exigido.
iii) Alínea d): quem tenha impugnado um acto administrativo no procedimento pré-contratual.
Esta será uma situação rara, uma vez que não é necessário propor uma acção autónoma para
a invalidade derivada já que o art. 63.º/2 prevê a possibilidade de haver uma modificação
objectiva da instância – o pedido inicial é alargado para abranger a invalidade do contrato.

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iv) Alínea e): quem, tendo participado no procedimento pré-contratual, alegue que o
clausulado não corresponde aos termos da adjudicação.
v) Alínea f): quem alegue que o clausulado não corresponde aos termos inicialmente
estabelecidos no caderno de encargos (documento que contém, em linhas gerais, o
clausulado que será posteriormente incluído no contrato). Pode haver terceiros que fiquem
prejudicados com esta situação, já que em virtude dos termos apresentados não participaram
no procedimento pré-contratual.
vi) Alínea g): pessoas singulares ou colectivas cujas posições jurídicas são afectadas pelo
clausulado inválido do contrato.

As alíneas c), d), e) e f) conferem assim legitimidade aos ex-candidatos preteridos ou mesmo candidatos
virtuais, em relação a certas invalidades derivadas, com a finalidade de assegurar, de forma efectiva, o
respeito pelas regras e pelos princípios do procedimento adjudicatório – concorrência, transparência,
imparcialidade e igualdade de tratamento.

O prazo de propositura das acções de anulação de contratos é de apenas 6 meses – art. 41.º/2 do CPTA.

2) Art. 40.º/2: prevê as acções relativas à execução de contratos, em regra, para exigir o cumprimento do
clausulado contratual. A forma de reacção deixa de ser a acção administrativa comum quando esteja em
causa a prática de actos administrativos pela Administração em sede de execução dos contratos.

Tradicionalmente, a legitimidade para deduzir pedidos relativos à execução era também restrita às
partes. Note-se que o contraente público tem neste domínio poderes de autoridade, não necessitando de
se dirigir ao tribunal para exigir a execução do contrato – todavia, esta legitimidade está prevista pois há
certos contratos nos quais não existe uma relação de subordinação e este não dispõe de poderes de
autoridade sobre a outra parte. Para além das partes, tem também legitimidade activa:
i) Alínea c) e d): acção pública e acção popular. Nestes pedidos, o Ministério Público só tem
legitimidade quando esteja em causa o cumprimento de cláusulas que afectem o interesse
público, logo a sua legitimidade é mais restrita que nos pedidos relativos à invalidade, pois aí
está a exercer a sua função de defensor da legalidade.
ii) Alínea b): pessoas em função de cujos direitos ou interesses as cláusulas contratuais tenham
sido estabelecidas – trata-se dos “contratos com efeitos regulamentares”. No contencioso
anterior, não se podiam dirigir directamente ao tribunal, tendo antes de pedir ao contraente
público que reagisse contra o incumprimento do co-contratante privado.

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

iii) Alínea e): quem tenha sido preterido no procedimento pré-contratual tem legitimidade para
reagir contra o incumprimento do contrato. Esta legitimidade é estabelecida para evitar que
se realizam conluios entre o contraente público e o co-contratante privado.

Estes pedidos podem ser propostos a todo o tempo – art. 41.º/1 do CPTA.

Há apenas uma situação de incumprimento de contratos que não cabe nestas acções, embora seja uma
questão discutida na doutrina – quando se trate de um contrato sobre o exercício de poderes públicos no
qual a Administração se obrigue a praticar um acto administrativo ou a praticar um acto com um dado
conteúdo. Apesar de estes serem actos contratualmente devidos, tendo em conta a relevância decisiva do
critério de distinção entre a acção especial e comum, entende-se que se deve pedir a condenação à
prática de acto administrativo devido no âmbito da acção administrativa especial. Ou seja, o facto de a
obrigação decorrer de um contrato não altera o carácter e as dimensões substanciais de autoridade
próprias do acto administrativo. Isto tem repercussões, nomeadamente a nível do prazo que, na acção
administrativa especial, é apenas de 1 ano.

2.9 Acções relativas à responsabilidade civil

 Objecto: as acções relativas à responsabilidade civil estão previstas nas alíneas f) e g) do art. 37.º/2 do
CPTA. Têm por objecto as questões sobre responsabilidade civil extracontratual por danos decorrentes
de actos:
i) Do Estado e dos demais entes públicos;
ii) Dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes e demais servidores públicos;
iii) Dos sujeitos privados e respectivos trabalhadores, quando lhes seja aplicável o regime
específico da responsabilidade dos entes públicos.

Como sabemos, a reforma de 2002 trouxe importantes alterações neste domínio:


i) Alargou a competência dos tribunais administrativos, passando a abranger o conhecimento
de questões relativas à responsabilidade do Estado por danos decorrentes do exercício da
função político-legislativa e da função jurisdicional (má administração da justiça e erro
judiciário cometido por juízes administrativos).
ii) Autonomizou-se a referência aos litígios relativos à condenação ao pagamento de
indemnizações decorrentes da imposição de sacrifícios, alínea g).

 Legitimidade:

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i) A legitimidade activa cabe a quem se arrogue um prejuízo efectivo causado pela actividade
ou omissão pública, devendo admitir-se, nos termos do art. 52.º/3 da CRP, a acção popular
quando tenham sido ofendidos determinados valores comunitários.
ii) A legitimidade passiva varia com o pedido apresentado.

 Prazo: estas acções podem ser propostas a todo o tempo, salvo determinação legal especial em
contrário. Isto com algumas ressalvas:
i) O direito à indemnização, segundo o art. 498.º do Código Civil, prescreve no prazo de 3 anos
a contar do conhecimento pelo lesado desse direito. Este prazo é considerado demasiado
curto e deveria porventura ter sido alargado. Note-se que não é a propositura de acção que
tem prazo, mas sim o direito de exigir a indemnização! Suscitou-se a questão de saber se este
prazo se aplicaria também à indemnização pelo sacrifício, questão que parece ter sido
resolvida no sentido da sua aplicabilidade pelo art. 5.º do Regime da Responsabilidade Civil
do Estado.
ii) Este prazo interrompe-se quando haja impugnação do acto lesivo, art. 41.º/3, ou se
verifiquem outras causas suspensivas ou interruptivas, nos termos gerais da prescrição.

 Culpa do lesado: no caso da acção para condenação ao pagamento de indemnizações decorrentes da


imposição de sacrifícios, temos uma responsabilidade por actos lícitos – art. 16.º da Lei 67/2007, que
estabelece o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas.
Trata-se aqui de actuações que, embora não violem direitos, impõem mais sacrifícios a certos cidadãos
que aos cidadãos em geral (ex: se um plano urbanístico impede os proprietários de um terreno de aí
construírem, a Administração deve indemnizá-los). A estas acções está por isso subjacente o princípio da
igualdade dos encargos públicos.

Já quando se trate de acções de responsabilidade civil por danos decorrentes de actos administrativos
ilegais (responsabilidade por danos decorrentes da função administrativa), temos uma responsabilidade
por actos ilícitos, que é subjectiva – a Administração só responde se houve culpa os titulares dos órgãos.
Algumas notas:
i) O art. 10.º/2 do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual consagra uma presunção
de culpa, logo o ónus da prova recai sobre a Administração.
ii) Nos termos do art. 38.º, pode ser apreciada a título incidental a invalidade do acto
administrativo no âmbito deste pedido, já que este artigo está pensado para aquelas
situações em que o particular deixou passar o prazo de impugnação do acto e mesmo assim
pode propor a acção de responsabilidade civil – o direito à indemnização não depende da
tempestiva impugnação administrativa. Para que o tribunal possa apreciar a ilicitude da

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sua conduta, tem de apreciar a título incidental a validade do acto, apesar de tal nunca dar
origem à invalidação do acto. Esta era uma questão bastante debatida, sendo que a Escola
de Coimbra entendia que a impugnação prévia do acto era condição necessária para a
dedução deste pedido.
iii) Todavia, quando o tribunal chegue à conclusão de que o particular sofreria menos danos se
tivesse impugnado atempadamente o acto administrativo, pode determinar a redução do
montante indemnizatório por conduta negligente do lesado – art. 4.º do Regime da
Responsabilidade Civil Extracontratual.

3. Legitimidade e prazo

Nos termos do art. 9.º/1, a legitimidade activa pertence, em regra, a quem “alegue ser parte na relação
material controvertida”, invocando para tal um direito ou interesses legalmente protegido. No entanto,
encontramos alguns regimes especiais:
i) Como vimos, as acções de simples apreciação e as acções relativas a contratos têm regras
especiais quanto à legitimidade activa.
ii) Nos termos do art. 9.º/2, admite-se ainda a acção popular, conferindo legitimidade
processual activa para defesa de bens e valores constitucionalmente protegidos a qualquer
pessoa, às autarquias locais, a associações ou fundações defensoras desses interesses e ao
Ministério Público (a acção pública só está prevista nas acções relativas a contratos, logo
nos restantes casos este terá de actuar no âmbito da acção popular).
iii) Quanto à acção popular para protecção dos bens do Estado, Regiões Autónomas e
autarquias locais, há um artigo do Código Administrativo de 1940 que ainda vigora, o art.
822.º, na parte em que restringe a utilização da acção popular contra os actos da
Administração local. Este artigo prevê a possibilidade de se intentar uma acção popular
para defesa de bens das autarquias locais, mas exige que o particular ou outra entidade,
antes de intentar a acção, provoque a Administração a evitar lesar o bem em causa,
mantendo o anterior contencioso de anulação. Este artigo não foi expressamente revogado,
e deve considerar-se ainda em vigor por destacar a natureza subsidiária da intervenção
judicial quanto à defesa dos bens públicos.

Já a legitimidade passiva cabe, nos termos gerais, à contraparte na relação material controvertida (art.
10.º/1), devendo a acção ser intentada contra a pessoa colectiva pública a que pertence o órgão que
praticou ou devia ter praticado o comportamento em causa. No caso específico do Estado, deve ser
proposta contra o ministério responsável.

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Quanto ao prazo, a regra é a de que podem ser propostas a todo o tempo, sem prejuízo do disposto na lei
substantiva relativamente à prescrição dos direitos – art. 41.º/1. Isto embora haja excepções previstas no
CPTA e em legislação especial – por exemplo, no que respeita aos pedidos de anulação de contratos.

As questões são julgadas pelos TAC, mas também eventualmente por tribunais arbitrais (art. 180.º/1). A
tramitação da acção administrativa comum segue os termos do processo de declaração do Código de
Processo Civil (salvo quando haja cumulação destes pedidos com outros sujeitos à acção administrativa
especial, caso em que se aplica o regime desta).

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CAPÍTULO III – A acção administrativa especial

1. Acções relativas a normas (V IEIRA DE A NDRADE, A Justiça Administrativa, pp. 213-222; RAQUEL
M ONIZ, “O Controlo Judicial do Exercício do Poder Regulamentar”, pp. 432-472)

A impugnação judicial directa de normas administrativas constitui hoje um direito constitucionalmente


protegido, art. 268.º/5 da CRP. As acções relativas aos regulamentos administrativos estão previstas nos
arts. 72.º e segs. do CPTA. Em primeiro lugar, cumpre perguntar pelo objecto destas acções, cuja resposta
terá de ser dada à luz do art. 4.º/1/b) e d) do ETAF, que atribui aos tribunais administrativos a
competência para fiscalização da legalidade de regulamentos e normas praticadas por sujeitos privados
no exercício de poderes administrativos.

Na delimitação do conceito de norma para efeitos de controlo da legalidade nos tribunais administrativos,
coloca-se a questão se saber se determinados tipos de actos integram ou não este conceito.
i) Regulamentos praticados sob a forma legislativa: pode perguntar-se se vale em relação aos
regulamentos a mesma regra que vale para os actos administrativos, impugnáveis
independentemente da forma. Esta questão assume relevo por dois motivos – o âmbito de
jurisdição do Tribunal Constitucional não incide sobre ilegalidades simples, o que tornaria
estas normas isentas de controlo; e os regulamentos regionais, quando emanados pelas
assembleias legislativas das Regiões Autónomas, revestem a forma de decretos legislativos
regionais. Pelo menos neste último caso, estas normas devem estar sujeitas ao controlo dos
tribunais administrativos. De resto, uma vez que não existe, no nosso ordenamento, uma
reserva de regulamento, a resposta a esta questão remete-nos para o problema da distinção
entre a função legislativa e a função administrativa.
ii) Normas internas: a doutrina costuma excluir estas normas com base no critério da
lesividade – que não é definitivo, uma vez que este serve apenas para delinear a
legitimidade da acção particular –, e da garantia constitucional se referir apenas a normas
com eficácia externa – que também não serve, uma vez que o legislador pode ir além das
exigências consagradas na Constituição. Já procederá o argumento de que o âmbito da
jurisdição administrativa é recortado em função do critério da intersubjectividade, pelo
que apenas em casos explicitamente previstos na lei poderão os tribunais administrativos
apreciar relações de natureza interna.
iii) Normas que não estão em vigor no momento da propositura de acção: quanto às normas que
ainda não estão em vigor, contra elas não obsta a ideia de lesividade, uma vez que o CPTA
se basta com uma lesividade potencial. Todavia, apenas a declaração de ilegalidade com
efeitos circunscritos ao caso concreto pode dizer respeito a estas normas (solução idêntica

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vale para os actos administrativos, art. 54.º/1/b)), uma vez que a com força obrigatória geral
pressupõe a prévia desaplicação da norma em três casos concretos. Quanto às normas cuja
vigência já cessou, a utilização dos meios impugnatórios restringe-se às hipóteses em que
ainda se colha algum efeito útil da sentença, que poderá existir em consequência da eficácia
retroactiva da declaração de ilegalidade.

1.1 Questão prévia: a competência do Tribunal Constitucional e dos tribunais administrativos

Não obstante consubstanciar uma das formas típicas da actuação administrativa, por se tratar de um acto
normativo o regulamento é igualmente controlável por outros tribunais que não os administrativos –
principalmente pelo Tribunal Constitucional.

Assim, é necessário articular o art. 212.º/3 com o art. 223.º/1 da CRP, que atribui ao Tribunal
Constitucional a competência para apreciar a constitucionalidade e legalidade das normas – sendo que o
conceito de norma para efeitos de controlo deste tribunal integra, sem quaisquer dificuldades, o
regulamento administrativo. O Tribunal Constitucional tem deste modo competência para apreciar os
processos em que seja arguida quer a inconstitucionalidade, quer a ilegalidade reforçada (violação do
estatuto da região autónoma por normas constantes de regulamento regional ou violação dos direitos de
uma região consagrados no seu estatuto por quaisquer normas constantes de regulamento do Governo)
dos regulamentos administrativos arts. 280.º/1 e 2, e 281.º/1 da CRP.

O controlo dos regulamentos por parte do Tribunal Constitucional pode ser feita em sede de:
i) Fiscalização abstracta sucessiva, art. 281.º e 282.º: uma decisão positiva resulta na
expurgação da norma do ordenamento jurídico com efeitos retroactivos, bem como na
repristinação. O art. 72.º/2 do CPTA exclui do âmbito da jurisdição administrativa as
questões relativas à declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade e
ilegalidade reforçada dos regulamentos. Note-se que os particulares não possuem
legitimidade activa para deduzir um pedido de declaração de inconstitucionalidade com
força obrigatória geral ao Tribunal Constitucional (art. 281.º/2), o que todavia não se
traduz num deficit de tutela jurisdicional dos cidadãos, que dispõem da possibilidade de
recurso à declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto e à
intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, para além do direito de
suscitar o incidente de constitucionalidade, desencadeando o processo de fiscalização
concreta.
ii) Fiscalização concreta, art. 280.º: produz apenas efeitos inter partes.

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A par do controlo efectuado pelo Tribunal Constitucional, o exercício do poder regulamentar é


igualmente objecto de controlo por parte dos tribunais judiciais, que tem todavia natureza meramente
incidental e com efeitos restritos ao processo. Isto por força do art. 204.º da CRP, que impõe a obrigação
dos tribunais de não aplicar normas inconstitucionais, e do art. 203.º, do qual se pode retirar o poder de
fiscalização da legalidade por parte dos tribunais – a subordinação dos tribunais à juridicidade implica
que, no momento da realização do direito, estes possam afastar na decisão do caso concreto qualquer
norma inválida.

1.2 Impugnação de normas

O novo Código veio consagrar, no âmbito da acção administrativa especial, duas formas de reacção
contra normas regulamentares ilegais: a acção administrativa especial dirigida à declaração de ilegalidade
com força obrigatória geral; e a acção administrativa especial dirigida à declaração de ilegalidade com
efeitos circunscritos ao caso concreto. A previsão de dois meios distintos justifica-se por reflectirem
preocupações distintas, que influenciam os seus regimes – enquanto que a primeira se orienta por um
imperativo de reintegração da ordem jurídica, a segunda dirige-se à prossecução da tutela jurisdicional
efectiva dos direitos e interesses dos cidadãos. Para além destes meios impugnatórios, o legislador
consagrou também uma acção destinada à declaração de ilegalidade por omissão.

Note-se que, de qualquer forma, note-se que os tribunais administrativos têm o dever de recusar a
aplicação de todas as normas administrativas que violem a Constituição e os princípios nela consignados
(art. 204.º da CRP e 1.º/2 do ETAF), bem como o dever de não aplicar normas inválidas.

Nos termos do art. 74.º, a declaração de ilegalidade pode ser pedida a todo o tempo, admitindo-se a
cumulação destes pedidos com o pedido de anulação ou declaração de ilegalidade dos actos
administrativos que a tenham aplicado, bem como o pedido de condenação da Administração ao
restabelecimento da situação actual hipotética (art. 4.º/2/b) do CPTA).

1.2.1 Declaração de ilegalidade com força obrigatória geral

Manifestamente inspirada no processo de fiscalização abstracta, a declaração de ilegalidade com força


obrigatória geral está prevista no art. 73.º/1 do CPTA, caracterizando-se por constituir uma forma de
controlo principal e abstracto de normas destinado a erradicá-las do ordenamento jurídico, com
fundamento na sua ilegalidade simples. Tem como objecto quaisquer normas regulamentares, tendo-se
superado a separação de meios processuais do contencioso anterior, que variava consoante estivessem
em causa normas imediata ou mediatamente operativas.

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Iremos abordar três aspectos: o requisito da recusa da aplicação da norma em três casos concretos; a
legitimidade e os efeitos da sentença.

1) Requisito da prévia desaplicação da norma em três casos concretos

A parte final o art. 73.º/1 condiciona o pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral à
verificação prévia da desaplicação da norma em três casos concretos. O ETAF de 1984 já previa este
requisito, mas apenas quanto aos regulamentos mediatamente operativos, o que significa um autêntico
retrocesso – se não do ponto de vista dos particulares (já que as normas imediatamente operativas causam
efeitos lesivos logo quando emanadas, todavia estes têm ao seu dispor a declaração com efeitos
circunscritos ao caso concreto), então da óptica da tutela da legalidade administrativa e do princípio da
segurança jurídica.

A intenção do legislador terá sido a de acautelar um juízo suficientemente ponderado no sentido da


ilegalidade da norma. Todavia, esta opção é altamente criticada pela doutrina, desde aqueles autores que
chamam atenção para o pendor objectivista da norma, aqueles que defendem a inconstitucionalidade
desta solução por violação do direito fundamental de impugnação das normas jurídicas lesivas dos
direitos dos particulares.

Como tal, esta norma deve ser objecto da interpretação mais ampla possível, incluindo:
i) As hipóteses em que a norma é afastada, por qualquer tribunal, a título incidental;
ii) As situações em que os tribunais administrativos julgarem a norma ilegal no âmbito de um
processo de declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto;
iii) O caso dos processos em massa (art. 48.º), cuja sentença valerá pelas três aplicações.

Outras notas:
i) A circunstância de transitarem em julgado três sentenças de recusa de aplicação não
conduz automaticamente a uma declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, esta
pressupõe a propositura de uma nova acção.
ii) O tribunal tem, ainda que não se ignore o peso proporcionado pelos precedentes
jurisprudenciais, o poder de apreciar livremente a validade da norma, não estando
vinculado.
iii) Este requisito só é exigido na acção particular e não quando é o Ministério Público a
intentar a acção – art. 73.º/3. Todavia, verificando-se três casos de desaplicação da norma,
o Ministério Público passa a ter o dever de intentar a acção – n.º 4 e 5.

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2) Legitimidade processual activa

A lei atribui legitimidade processual activa nas seguintes situações:


i) Acção particular: qualquer particular que seja prejudicado pela aplicação da norma ou
possa previsivelmente sê-lo num momento próximo tem legitimidade para intentar esta
acção. O critério de lesividade pode ser actual ou potencial.
ii) Acção interadministrativa: embora o artigo não o preveja expressamente, deve-se
reconhecer legitimidade a outras entidades públicas quanto aos interesses que lhes cumpra
defender (e não para tutela da legalidade administrativa).
iii) Acção pública: o Ministério Público tem legitimidade para pedir a declaração de
ilegalidade com força obrigatória geral sem necessidade da verificação do pressuposto da
prévia desaplicação da norma em três casos concretos, o que leva à configuração deste
pedido como um direito potestativo do titular da acção pública. É necessário fazer aqui
uma ponderação entre o princípio do dispositivo e da oportunidade que marcam a acção
pública, e a configuração como direito potestativo não preclude que se ponderem
hipóteses em que o Ministério Público possuirá maiores motivos para fazer uso deste
poder, nomeadamente quando estejam em causa normas que atentem contra os direitos
fundamentais dos cidadãos ou aquelas que causem graves prejuízos ao interesse público,
ou quando a permanência da norma no ordenamento jurídico potencie situações de
insegurança jurídica ou de violação do princípio da igualdade de tratamento. Por outro
lado, depois de cumprido o pressuposto de desaplicação da norma em três casos concretos,
o Ministério Público tem o dever de intentar a acção, em nome do princípio de certeza e
segurança jurídicas, estando este dever facilitado pelo disposto no art. 73.º/4.
iv) Acção popular, como veremos mais à frente.

3) Efeitos da sentença

Os efeitos da sentença constam do art. 76.º:


i) A sentença tem eficácia retroactiva – n.º 1;
ii) Determina a repristinação das normas que a norma declarada ilegal haja revogado – n.º 1;
iii) Quando se verifiquem razões de segurança jurídica, equidade ou interesse público de
excepcional relevo, pode o tribunal conferir à decisão efeitos prospectivos – n.º 2;
iv) Esta retroactividade não afecta os casos julgados ou os casos decididos, salvo decisão em
contrário do tribunal quando a norma respeite a matéria sancionatória e seja de conteúdo

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menos favorável ao particular – n.º 3. Para além destes dois requisitos, é necessário que
haja uma decisão judicial neste sentido.

(Note-se que estes são os efeitos de uma sentença positiva; quando se trate de uma sentença negativa, esta
não possui eficácia preclusiva, podendo ser intentada novo pedido de apreciação da norma – apesar de
aqui a presunção de legalidade se adensar.)

Colocam-se aqui dois problemas. O primeiro é o de saber se o tribunal está vinculado a apreciar a
legalidade das normas a repristinar. Em princípio, o tribunal não pode apreciar a legalidade destas
normas, de acordo com o princípio do pedido. Todavia, o próprio fundamento da repristinação (evitar
um vazio jurídico decorrente da eliminação da norma apreciada) aponta no sentido de que o tribunal
deverá como que apreciar a título incidental a validade destas normas, com o fim de saber se, em virtude
da impossibilidade de repristinação destas normas, esta originará um vazio jurídico. Neste caso, o
tribunal pode, à luz do art. 76.º/2, restringir os efeitos da sentença, alegando a existência de um vazio
jurídico já em momento anterior ao da decisão.

O segundo problema diz respeito à excepção dos casos decididos, que coloca em cheque a própria eficácia
retroactiva da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral. Esta solução é bastante criticada pela
doutrina que, no mínimo, procura limitar o seu alcance e, no máximo, a tem por não escrita. Deve-se,
por isso, fazer uma interpretação restritiva deste segmente normativo, no sentido de apenas salvaguardar
as situações cobertas por actos inimpugnáveis susceptíveis de haver gerado legítimas expectativas na
esfera jurídica dos cidadãos.

1.2.2 Declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto

A declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto é uma forma de controlo principal
e abstracto da validade dos regulamentos (não só da ilegalidade simples, mas também da
inconstitucionalidade e da ilegalidade reforçada), todavia com efeitos circunscritos ao caso subjacente à
propositura da acção (controlo híbrido) – “uma pronúncia com o alcance de subtrair o lesado à aplicação
da norma ilegal”. Assim, consubstancia uma forma de controlo híbrido – embora se aprecie a título
principal a validade de uma norma, um juízo positivo de ilegalidade não determina a eliminação do
ordenamento – distinguindo-se:
i) Da declaração com força obrigatória geral, quanto aos efeitos;
ii) Da desaplicação incidental, quanto:
a. Aos tribunais competentes,
b. À prejudicialidade da decisão de ilegalidade,

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c. À pronúncia judicial sobre as consequências da ilegalidade na situação concreta.

Este pedido assume grande relevância quando confrontado com os limites impostos à declaração com
força obrigatória geral – na ausência de três decisões judiciais de desaplicação da norma, este constitui a
única forma de reacção a título principal contra a ilegalidade de um regulamento.

1) Objecto

Podemos perguntar-nos se este pedido tem por objecto apenas normas imediatamente operativas, ou
normas mediatamente operativas. Ora, o art. 73.º/2 refere-se apenas a normas cujos efeitos se produza3m
imediatamente, sem dependência de um acto administrativo ou jurisdicional de aplicação,
circunscrevendo por isso o âmbito de aplicação aquelas primeiras normas, ou seja, às normas
imediatamente operativas. Esta ideia aparece corroborada pelo disposto quanto à suspensão de eficácia
de normas – art. 130.º/1.

Esta limitação do âmbito de aplicação significa 3da norma regulamentar, salvo se já tiveres ocorrido três
recusas de aplicação. A extensão do âmbito de aplicação às normas mediatamente operativas permitiria
colmatar a lacuna de protecção resultante deste limite imposto à declaração com força obrigatória geral.

A questão já não se coloca quando haja um acto administrativo de execução, pois neste caso o lesado não
só pode, como tem interesse em, impugnar o acto directamente, com fundamento em ilegalidade do
regulamento (cumulando assim os dois pedidos). Assim, a potencialidade da declaração com efeitos
circunscritos ao caso concreto revela-se antes ao nível da tutela preventiva, ou seja, em momento anterior
ao da prática do acto administrativo de execução. Este pedido não se confunde com a condenação à não
emissão do acto administrativo já que, em rigor, não se vai apreciar o futuro exercício de um poder de
autoridade, apesar de a sentença ter igualmente o efeito prático de impedir a emissão do acto,
precavendo o agravamento da ilegalidade. Nesta medida, o recurso ao pedido de declaração de
ilegalidade surge mais facilitado.

2) Legitimidade e causa de pedir

A declaração de ilegalidade da norma com efeitos restritos ao caso concreto pode ser pedida pelo lesado
ou pelos titulares da acção popular, com fundamento na ilegalidade ou inconstitucionalidade da norma.

3) Efeitos

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Apesar de a lei não se referir expressamente aos efeitos da declaração de ilegalidade com efeitos
circunscritos ao caso concreto, deve-se entender que estes também operar retroactivamente e com
alcance repristinatório, embora se produzam apenas naquele caso – o que não significa necessariamente
que se produzam apenas inter partes.

No entanto, já não se justifica a possibilidade de o juiz limitar os efeitos da declaração, já que os


fundamentos legais dessa limitação apenas se colocam quando os efeitos são gerais. Isto torna esta via
mais favorável para os particulares.

4) Apreciação

Do ponto de vista da tutela jurisdicional efectiva, a declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao
caso concreto constitui um importante mecanismo, sobretudo em face dos requisitos que rodeiam a
declaração com força obrigatória geral. Com efeito, no caso de regulamentos imediatamente operativos
ainda não desaplicados em três casos concretos, este é o único meio de reacção. O facto de esta
declaração se conceber como uma tutela preventiva e os efeitos que esta produz contribuem igualmente
para a protecção dos interesses dos particulares.

Todavia, já se suscitam algumas do ponto de vista da tutela da legalidade administrativa e da segurança


jurídica, assim como do princípio da igualdade de tratamento. Isto uma vez que, sendo a norma
declarada ilegal no âmbito deste pedido, a situação de manutenção desta norma no ordenamento
jurídico até que o Ministério Público solicite a declaração com força obrigatória geral (que, perante três
decisões, será um dever) pode consubstanciar uma violação daqueles princípios. Esta situação será, no
entanto, principalmente devida aos requisitos demasiado exigentes da declaração com força obrigatória
geral.

Declaração de ilegalidade e acção popular

A possibilidade de acção popular é ressalvada pelo art. 52.º/3 da Constituição, e confirmada pelo art. 9.º
do CPTA que estabelece que qualquer pessoa, independentemente de ter ou não interesse processual,
tem legitimidade para propor e intervir em processos principais e cautelares destinados à defesa de
valores e bens constitucionalmente protegidos (saúde pública, ambiente, qualidade de vida, etc.).

Na acção administrativa especial tendente à impugnação de normas, não se faz qualquer referência à
legitimidade popular quanto à declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, mas no art. 73.º/2,
em relação à declaração com efeitos circunscritos ao caso concreto, encontramos já uma alusão a esta

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legitimidade (o facto de a lei só aludir a “entidades” e não “pessoas e entidades” deve ser considerado um
lapso). Isto parece um pouco paradoxal. Se mesmo quando estejam em causa interesses individuais
homogéneos, as sentenças proferidas em acções administrativas têm eficácia geral (art. 19.º/1 da Lei n.º
83/95), por maioria de razão, uma sentença relativa a uma acção popular social assumirá igualmente
eficácia erga omnes. Pelo que se deve admitir a legitimidade popular nos pedidos de declaração com efeitos
circunscritos ao caso concreto sempre que, na perspectiva dos autores, através da sua procedência se consiga
já obter uma protecção daqueles bens constitucionalmente protegidos (o que sucederá raramente); mas
também nos pedidos de declaração com força obrigatória geral. No entanto, não valerá para estes o requisito
da prévia desaplicação em três casos concretos, uma vez que, sendo este o único meio de defesa de bens e
valores constitucionalmente protegidos, aquele pressupostos iria contra o princípio da tutela
jurisdicional efectiva.

1.2.3 Declaração de ilegalidade por omissão

O art. 77.º vem estabelecer um mecanismo de reacção contra a inércia no exercício do poder
regulamentar, mais uma vez inspirado no processo de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão
(art. 283.º), que reflecte a compreensão actual do papel dos regulamentos enquanto importante
complemento da lei.

1) O dever da emanação de normas administrativas e o direito à emissão de regulamentos

O dever de emissão de regulamentos verifica-se em duas situações:


i) Imposição expressa de regulamentação contida na própria lei ou;
ii) Impossibilidade de execução desta sem a emanação de um regulamento.

Note-se que não está aqui em causa apenas regulamentos executivos, uma vez que há situações em que a lei
impõe uma obrigação de regulamentação e esta não se traduz numa especificação da lei (regulamentos
complementares ou mesmo independentes); e nem todos os regulamentos imprescindíveis à aplicação
da lei são executivos.

A previsão deste meio processual leva-nos a concluir não só que o poder regulamentar não configura um
poder livre da Administração, mas também que a emissão de regulamentos cumpre igualmente uma
função de realização de direitos e interesses individuais, sobretudo quando estejam em causa direitos
fundamentais. Isto poderá levar à construção de um “direito formal à emissão de normas jurídicas
administrativas”, nos termos do qual os particulares gozam de um direito à emissão de normas
regulamentares, não apenas quando estas sejam um elemento indispensável à operatividade da lei, mas

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também quando a sua não emissão represente um obstáculo à realização de direitos subjectivos dos
particulares. Um tal direito compreende-se no quadro da concepção actual do poder regulamentar, um
poder vinculado que serve o interesse geral assim como as posições substantivas dos particulares.

2) Âmbito

O art. 77.º restringe o âmbito deste pedido à omissão das normas administrativas que se revelem
indispensáveis para conferir exequibilidade a actos legislativos carentes de regulamentação coloca dois
problemas.
i) As normas devidas podem ser apenas materialmente administrativas? Sabemos que esta é
uma questão complexa, uma vez que não existe no nosso ordenamento uma reserva de
regulamento e nada impede, como tem salientado o Tribunal Constitucional, que matéria
susceptível de ser objecto de actividade administrativa, nomeadamente a regulamentação
de leis, não possa igualmente ser objecto de actividade legislativa. Ora, se o acto legislativo
prever a sua complementação mediante outro acto legislativo (decreto-lei), ainda que esta
seja uma norma materialmente administrativa, não há nada no nosso ordenamento que nos
permita fundar o recurso aos tribunais administrativos com o fim de obter a condenação à
emissão desse acto.
ii) O acto carecido de regulamentação tem de ser um acto legislativo? Há situações em que o
dever de emissão de normas administrativas não resulta de uma lei, mas sim da auto-
vinculação administrativa – por exemplo, o dever de emissão pode resultar de uma
obrigação imposta por outro regulamento, ou imposto por princípios jurídicos em
determinadas situações concretas. Assim, esta acção administrativa, ao aplicar-se aos casos
de existência de um dever de emissão, deveria aplicar-se também nas situações em que este
dever decorre da auto-vinculação da Administração.

3) Legitimidade processual activa

A lei atribui legitimidade processual activa nos seguintes casos:


i) Acção particular: tem legitimidade quem alegar um prejuízo directamente resultante da
situação de omissão. Apesar de este conceito ser ainda bastante vasto, o prejuízo invocado
tem de ser directo e actual.
ii) Acção popular;
iii) Acção pública.

4) Efeitos da sentença

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Os efeitos da sentença em sede de declaração de ilegalidade por omissão revestem natureza


condenatória, vinculando a entidade competente a suprir a omissão dentro de um prazo não inferior a 6
meses – art. 77.º/2. Este prazo nem sempre se revelará adequado, para além de não parecer acautelar
interesses administrativos dignos de protecção, o que leva V IEIRA DE A NDRADE a perguntar-se se não
deveria antes a lei referir-se a um prazo “razoável”, sem fixar limites quantitativos. Apesar de a
formulação legal parecer apontar para uma pronúncia declarativa, isto não obsta a que os autores
reconheçam à sentença índole condenatória, o que decore da circunstância de estarem em causa normas
devidas.

Por outro lado, não está expressamente prevista a cominação de uma sanção pecuniária compulsória,
possibilidade que é assim rejeitada por V IEIRA DE A NDRADE. Todavia, RAQUEL M ONIZ entende que se
deve admitir esta hipótese, uma vez que a aplicação da sanção pecuniária compulsória está prevista
genericamente no art. 3.º/2. A lei também não se refere, no título reservado ao processo executivo, aos
termos da respectiva execução.

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2. Acções relativas a actos (V IEIRA DE A NDRADE, A Justiça Administrativa, pp. 185-212)

2.1 Impugnação de actos administrativos

A impugnação dos actos administrativos destina-se ao controlo da sua invalidade, sendo por isso possível
a utilização deste meio para obter quer a declaração de nulidade ou de inexistência do acto quer a sua
anulação (sendo este último pedido mais frequente).

2.1.1 Objecto

O objecto desta acção pressupõe o conceito de acto administrativo impugnável, que é um conceito
autónomo e distinto do conceito material. De acordo com o conceito material de acto administrativo,
este é uma decisão materialmente administrativa de autoridade que visa a produção de efeitos numa
situação individual e concreta, independentemente da forma revestida (art. 120.º do CPA). Na linha desta
definição, não são actos administrativos os puros actos instrumentais (propostas, pareceres,
comunicações, etc.), as acções ou operações materiais (de exercício ou execução), e os comportamentos
(informações, avisos), por lhes faltar a nota decisória.

O conceito de acto administrativo impugnável não coincide com o conceito material, sendo por um lado
mais amplo e, por outro, mais restrito:
i) É mais amplo por prescindir da dimensão orgânica do conceito material, incluindo não só
decisões tomadas por entidades privadas que exerçam poderes públicos, como também
actos emitidos por autoridades não integradas na Administração Pública – art. 51.º/2.
ii) É mais restrito por apenas abranger as decisões administrativas com eficácia externa (art.
51.º/1). São actos com eficácia externa os actos administrativos que produzam ou
constituam efeitos nas relações jurídicas administrativas externas, ou seja, na esfera jurídica
dos destinatários.

O conceito de acto administrativo impugnável...


i) Inclui os actos que, por si só, produzam os seus efeitos jurídicos, ainda que devam ser
complementados por actos jurídicos de execução.
ii) Inclui os actos destacáveis (actos que, ainda praticados num procedimento, produzam
efeitos jurídicos externos autonomamente).
iii) Exclui os actos internos, ou seja, os actos que visem produzir efeitos apenas nas relações
intrasubjectivas – quer aqueles que atinjam as relações entre órgãos administrativos, quer
as relações especiais de poder na sua dimensão orgânica. Isto com algumas excepções.

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

iv) Inclui ainda, embora tal seja mais problemático, as decisões administrativas preliminares –
decisões que, embora determinem peremptoriamente a decisão final de um procedimento,
não têm capacidade para produzir efeitos externos autonomamente, produzindo-se esses
efeitos apenas através da decisão final. Apesar de estes actos não produzirem directamente
o efeito lesivo, V IEIRA DE A NDRADE defende a sua impugnabilidade como forma de defesa
antecipada dos interessados, uma vez que os actor irão, com grande probabilidade, causar
lesões em direitos dos particulares. Todavia, isto não significa uma preclusão do direito de
impugnação das decisões finais com base na ilegalidade da pré-decisão, sob pena de se esta
garantia redundar numa desprotecção efectiva. Estas decisões não se confundem com as
decisões parciais, que são decisões que, em procedimentos escalonados ou faseados,
constituem já a decisão final relativamente a algum dos efeitos (ex: licença de estruturas) –
e que têm obviamente eficácia externa.

Naquilo que ao objecto diz respeito, levantam-se alguns problemas em relação a certos actos.

1) Impugnação de acto meramente confirmativo: o acto confirmativo é aquele que, emanado da mesma
entidade e dirigido ao mesmo destinatário repete, perante os mesmos pressupostos de facto e de direito, o
conteúdo e a fundamentação do acto definitivo lesivo anterior, sem nada acrescentar ou retirar ao
conteúdo deste. Este conceito foi elaborado pela doutrina e jurisprudência com a finalidade prática de
evitar que os particulares, através de requerimentos sucessivos, pudessem reabrir o prazo de impugnação
dos actos administrativos.

O art. 53.º do CPTA parece pressupor a utilidade da figura, todavia vem limitar a invocação do carácter
confirmativo do acto para efeitos de rejeição da impugnação. Assim, apenas se pode rejeitar a impugnação
do acto com fundamento no carácter confirmativo do acto quando o acto confirmado:
i) Tenha sido impugnado – alínea a);
ii) Tenha sido notificado – alínea b);
iii) Tenha sido publicado, sem que tivesse de ser notificado – alínea c).

O legislador quis limitar a impugnação do acto confirmativo aos casos em que o acto anterior é ineficaz,
isto é, o acto confirmativo só é impugnável quando o acto confirmado não for oponível aos interessados.
Assim, a alínea a) está pensada para os casos em que o acto não foi notificado nem publicado, e mesmo
assim foi impugnado pelo particular, o que revela que o particular teve dele conhecimento, não podendo
depois vir invocar a sua ineficácia.

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Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte de 20-04-2012

“Ora, o regime da inimpugnabilidade dos actos está associado a necessidades de estabilidade e segurança
jurídicas — os actos anuláveis devem consolidar-se pelo decurso do prazo da impugnação.
E, só se pode dizer que o acto administrativo (anulável) se consolidou na ordem jurídica se foi notificado
ao interessado que não o impugnou - alínea b) – ou, se foi objecto de publicação (quando é obrigatória) e
não foi impugnado - alínea c). A notificação e publicação tornam o acto oponível aos interessados. Se o acto
não foi notificado ou publicado quando o deveria ser, então o acto não é eficaz, não produz efeitos
relativamente ao interessado que por isso pode impugnar o acto que o confirma. Mas se o interessado apesar
de não ter sido notificado, ou de não ter havido a publicação obrigatória, impugnar o acto, está a reconhecer
que dele teve conhecimento oficial, não podendo invocar a ineficácia.
Deste modo, quando o legislador dispõe na alínea a) que uma impugnação só pode ser rejeitada com
fundamento no carácter meramente confirmativo do acto quando o acto anterior tenha sido impugnado
pelo autor, está a pensar nas situações em que o primeiro acto não foi notificado ao autor, ou não foi
publicado, quando obrigatório.
Neste sentido escrevem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, “Comentários ao
Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais”, 2ª edição revista-2007, nota 2 ao artigo 53º,
página 324.
«2. A impugnabilidade do acto confirmativo depende de o acto confirmado se ter tornado ou não oponível
aos interessados. Se o acto confirmado tiver sido notificado ao interessado e publicado, sendo de publicação
obrigatória, produz efeitos jurídicos externos, sendo esse o acto susceptível de impugnação nos termos do
art. 51º, nº 1. Do mesmo modo, se, apesar de não ter tido lugar a notificação ou a publicação, o interessado
intentou processo impugnatório contra o acto confirmado, revelou, por essa forma, ter tido conhecimento
oficial do acto, não podendo invocar a sua ineficácia jurídica para efeito de deduzir nova impugnação
contra o acto conformativo. A possibilidade de um interessado impugnar um acto administrativo ainda não
notificado ou não publicado é admitida pelas disposições conjugadas dos arts. 53º e 59º, nº 3, alínea c)».
Sendo o acto impugnado nos autos meramente confirmativo do anterior, o qual foi notificado ao autor, o
acto é inimpugnável».

2) Impugnação de acto administrativo ineficaz: o art. 54.º permite a impugnação de actos administrativos
ainda não eficazes em duas hipóteses:
i) Quando tenha havido início de execução.
ii) Quando seja seguro ou muito provável que o acto vá produzir os seus efeitos – se existir
um termo inicial, hipótese na qual a produção de efeitos é certa; ou se existir uma condição

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

suspensiva de provável verificação, sobretudo se for uma condição potestativa


(dependente da vontade do destinatário do acto).

3) Impugnação de actos de indeferimento expresso: os actos de indeferimento expresso são verdadeiros


actos administrativos, e, como tal, susceptíveis de impugnação. Todavia, o legislador prefere que o
particular recorra à acção administrativa especial de condenação à prática do acto devido quando
queira reagir contra um acto de indeferimento expresso, no pressuposto de que esse pedido confere uma
tutela mais intensa – daí obrigar o juiz a convidar o particular a substituir a petição, quando esta seja de
estrita anulação (art. 51.º/4).

Isto não significa, no entanto, a exclusão em absoluto da possibilidade de impugnação autónoma das
decisões de indeferimento. Esta pode ser admitida quando:
i) O particular demonstre um interesse relevante (interesse em agir) – pode acontecer que o
particular, no caso concreto, não tenha interesse na condenação da Administração à
prática do acto devido, especialmente naqueles casos em que o acto tenha um conteúdo
largamente discricionário (actos negativos do exercício da margem de livre apreciação
administrativa). Mas também podemos conceber outras hipóteses em que o particular
não tenha interesse na condenação: por exemplo, “se o particular viu recusada uma
autorização para o exercício de uma actividade profissional (por ex., a inscrição na Ordem
dos Advogados), poderá não ter interesse na concessão imediata da autorização (por ter
encontrado um emprego incompatível) mas pretender salvaguardar a hipótese de no
futuro vir a advogar, mantendo o interesse na anulação do indeferimento que considera
ilegal”.
ii) O particular tenha um direito à anulação ou declaração de nulidade do acto – por
exemplo, se tiver legitimidade para impugnação (tem um interesse de facto) mas não para
pedir a condenação (não é titular de um direito ou interesse à respectiva emissão); ou
passados três meses, uma vez que a acção de condenação está sujeita a um prazo de
caducidade. (M ÁRIO A ROSO DE A LMEIDA discorda: no primeiro caso, porque também não
há legitimidade para a impugnação; e no segundo, porque o prazo da acção da acção de
condenação não vale em caso de nulidade de indeferimento expresso)
iii) Seja cumulada com o pedido de condenação à prática de acto devido – art. 47.º/2/a) e
4.º/2/c).

Fora destes casos de indeferimento, já não restarão dúvidas quanto à utilização autónoma do pedido de
impugnação nos casos de:

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i) Indeferimento parcial da pretensão: são actos que satisfazem a pretensão do particular


apenas em parte (ex: o particular pede uma extensão do horário de funcionamento até às
4h da manhã e autoriza-se apenas até às 2h);
ii) Actos positivos de duplo efeito ou actos de conteúdo ambivalente: são actos que, para além
do efeito positivo ou favorável para alguém, produzem um efeito desfavorável em relação a
outro interessado (ex: decisão de adjudicação do contrato a A, que significa a exclusão de
B, C e D).
iii) Actos concludentes: são actos dos quais resulta a impossibilidade legal de prover o
requerimento de outrem (ex: a autorização de uma farmácia para um local, que prejudica
os pedidos dos outros concorrentes).

Isto não significa que, nestes casos, não se tenha de cumular estes pedidos com a acção de condenação.

2.1.2 Causa de pedir

A questão principal a resolver no processo é sempre a da ilegalidade ou ilegitimidade jurídica, que se


traduz no incumprimento de quaisquer normas jurídicas – normas e princípios inconstitucionais,
normas de direito europeu, actos legislativos, regulamentos ou normas contratuais.

Nos termos do art. 95.º/2, o juiz tem de conhecer de todos os vícios invocados no processo e, além disso,
deve averiguar oficiosamente a existência de outras ilegalidades do acto impugnado. Isto representa
uma derrogação ao princípio da limitação do juiz pela causa de pedir e constitui uma nota claramente
objectivista do nosso sistema, sobretudo tendo em conta que acresce à faculdade do Ministério Público
de invocar vícios não arguidos pelo autor. Este preceito suscita várias dificuldades práticas e
preocupações, nomeadamente em relação ao papel do juiz, que nestes termos deixa a sua tradicional
posição supra partes e torna-se num fiscal oficioso da legalidade. Pelo que este poder do juiz deve ser
interpretado em termos restritivos, limitando-se a causas de invalidade que afectem direitos fundamentais
ou interesses públicos ou comunitários de relevo. O STA já se pronunciou no sentido de que “só existe o
dever de o juiz ... se do processo constarem [no momento da decisão] todos os factos necessários para o
respectivo julgamento”.

2.1.3 Legitimidade

1) Legitimidade activa

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

O art. 55.º do CPTA tem um alcance claramente objectivista, uma vez que confere legitimidade para
impugnar actos administrativos aos titulares de meros interesses de facto, alarga a acção de grupo e a
acção popular, e amplia a legitimidade do Ministério Público e a acção pública nas relações inter-
administrativas.

 Acção particular:
i) Quem seja titular de um interesse directo e pessoal na impugnação (n.º 1, alínea a)), “isto
é, quem retire imediatamente (directamente) da anulação ou declaração de nulidade um
benefício específico para a sua esfera jurídica (pessoal), mesmo que não invoque a
titularidade de uma posição jurídica subjectiva lesada”.
ii) Pessoas colectivas privadas, quanto aos interesses que lhes cumpra defender (direitos e
interesses colectivos ou direitos e interesses individuais legalmente protegidos dos
membros) (n.º 1, alínea b)). Esta é a “acção de grupo” ou “acção colectiva”.
iii) Pessoas colectivas públicas actuando em defesa de interesses próprios no âmbito de relações
inter-administrativas (quando estejam numa posição de sujeição ou, excepcionalmente,
no exercício de poderes de tutela) (n.º 1, alínea c)); ou órgãos administrativos
relativamente a actos praticados por órgãos da mesma pessoa colectiva (n.º 1, alínea d)).

 Acção popular:
i) Cidadãos eleitores das comunidades locais, para impugnação dos actos dos respectivos
órgãos autárquicos – acção popular local (n.º 2);
ii) Qualquer pessoa, bem como o Ministério Público, as autarquias locais, e associações e
fundação de defesa de certos interesses difusos, relativamente a actos administrativos
lesivos de valores e bens comunitários constitucionalmente nos termos do art. 9.º/2 (n.º 1,
alínea f))– acção popular social.

 Acção pública:
i) Ministério Público, para defesa da legalidade (n.º 1, alínea b));
ii) Presidentes de órgãos colegiais (contra os actos do respectivo colégio), ou a outras
entidades, nos casos previstos na lei, quando esteja em causa a defesa da legalidade (n.º 1,
alínea e)).

2) Legitimidade passiva

No contencioso anterior, a legitimidade passiva pertencia ao órgão actor do acto (ou, se fosse caso disso,
da norma). Uma das grandes novidades do CPTA foi a de que, nos meios impugnatórios, a legitimidade

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passiva pertence à pessoa colectiva pública a que pertence o órgão demandado ou, no caso do Estado, o
Ministério, se o acto for da autoria de um órgão integrado numa estrutura ministerial – art. 10.º/2. Isto
salvo quando a parte demandada for um órgão da mesma pessoa colectiva pública, caso em que a
legitimidade passiva pertencerá ao órgão demandado – n.º 6. Sempre que existam contra-interessados, a
lei impõe o litisconsórcio passivo necessário – art. 57.º.

2.1.4 Efeitos e prazo

Em regra, a impugnação de um acto administrativo não suspende automaticamente a eficácia do acto, pelo
que o particular terá de pedir ao tribunal a suspensão da eficácia do acto no âmbito de um processo
cautelar – mesmo nos casos de nulidade, apesar de, em rigor, não haver produção de efeito jurídicos,
poderá haver interesse nesta providência para que não se suscitem dúvidas e sobretudo para evitar os
efeitos práticos da decisão. Isto salvo nos casos do art. 50.º/2 (pagamento de quantia certa).

Quanto aos prazos:


i) Se o acto for nulo, a declaração de nulidade pode ser pedida a todo o tempo, art. 58.º/1
(salvo os casos em que a lei excepcionalmente estabeleça um prazo de caducidade da
acção, como sucede com o direito de propor a acção para declaração de nulidade dos
actos urbanísticos, que caduca se os factos não forem participados ao Ministério Público
no prazo de dez anos).
ii) Se o acto for anulável,
a. Para o Ministério Público, o prazo é de um ano contado globalmente a partir da
prático do acto ou da publicação, se obrigatória – art. 58.º/2/a). Pode impugnar
o acto em momento anterior ao da publicação obrigatória caso tenha sido
desencadeada a sua execução (art. 59.º/7).
b. Para os particulares (e demais impugnantes), o prazo é de três meses, art.
58.º/2/b), podendo a lei estabelecer prazos mais curtos em casos especiais desde
que não viole o direito de impugnação. Este prazo passa a sujeitar-se ao regime
dos prazos processuais, art. 58.º/3, o que significa que deixa de correr nas férias
judiciais.

Embora apenas dentro do prazo de um ano, admite-se a impugnação para além dos três meses quando
se prove a inexibilidade da impugnação tempestiva a um cidadão normalmente diligente, numa
manifestação do princípio do favorecimento do processo. Isto ocorre em três casos – art. 58.º/4:
i) Justo impedimento;
ii) Erro induzido pela Administração;

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

iii) Erro desculpável.

Para os destinatários do acto, o prazo só começa a contar-se a partir da notificação, mesmo que o acto
dependa de publicação obrigatória, art. 59.º/1, o que se justifica para assegurar o conhecimento efectivo
do acto.

A notificação ou publicação deficiente tem efeitos na contagem do prazo: se não der a conhecer o sentido
da decisão, causa a inoponibilidade do acto, obstando ao início da contagem do prazo; quando não
indique o autor, data ou fundamentos, permite o requerimento para informação e eventualmente a
intimação judicial respectiva, com os efeitos de interrupção do prazo.

2.1.5 Efeitos da impugnação administrativa

A utilização de meios de impugnação administrativa suspende o prazo de impugnação judicial do acto,


mas não impede o interessado de proceder a esta na pendência daquela – art. 59, n.º 4 e 5. A suspensão do
prazo judicial distingue-se da interrupção, o que significa que o prazo retomará o seu curso uma vez
proferida a decisão ou decorrido o respectivo prazo.

Isto pressupondo que a impugnação administrativa seja necessária; havendo impugnação administrativa
necessária, esta suspende a própria eficácia do acto, pelo que nem se coloca o problema da suspensão do
prazo judicial. Para V IEIRA DE A NDRADE, em face da eliminação da regra geral da necessidade de
impugnação administrativa prévia e do direito a uma tutela judicial efectiva, só poderá haver impugnação
administrativa necessária nos casos em que tal se justifique e uma lei o determine expressamente; todavia, a
jurisprudência tem sido menos exigente, considerando como necessários todos os recursos previstos em leis
que anteriormente eram como tal qualificados.

2.1.6 Sentença

Os efeitos directos da sentença de provimento são, no caso de anulação, constitutivos; e, no caso de


declaração de nulidade ou inexistência, meramente declarativos. A sentença tem igualmente efeitos
retroactivos, gerando a obrigação da Administração de reconstituir a situação de facto anterior à prática do
acto – ainda que o pedido seja de estrita anulação (art. 47.º/3), embora seja provável que o
restabelecimento da situação constitua objecto de pedido cumulado com o pedido anulatório.

2.2 Condenação à prática de acto devido

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2.2.1 Sentido: a previsão constitucional e a opção legislativa

A acção de condenação à prática de acto devido está prevista nos arts. 66.º e segs. do CPTA. A
consagração da acção de condenação corresponde a uma manifestação da garantia do princípio da
tutela jurisdicional efectiva, pois face ao contencioso anterior havia uma deficiência da garantia dos
particulares sempre que estávamos perante uma inércia da actuação administrativa. A ficção de actos
ou da abertura do contencioso proporcionava uma protecção reduzida, uma vez que a administração
não podia ser condenada à prática do acto em falta.

A construção de uma acção condenatória deve ser considerada uma opção legislativa pois, em face do
imperativo constitucional (art. 268.º/4 da CRP), havia vias alternativas possíveis de reacção contra a
inércia:
i) Sentença declarativa: legislador podia ter previsto uma acção declarativa acompanhada de
uma sanção pecuniária compulsória. O tribunal reconhecia a omissão ilegal e fixava uma
sanção para que a administração terminasse com a situação de inércia.
ii) Sentença executiva: num outro extremo, teríamos a possibilidade do o CPTA ter
consagrado a possibilidade de o juiz se substituir a prática de acto.

Entre uma sentença declarativa e substitutiva, o legislador optou pelo meio termo, pois só este consegue
equilibrar o princípio da separação de poderes. Por um lado, ao permitir a emissão de uma sentença
condenatória, o legislador admite que o tribunal possa condenar a Administração a praticar uma acção
administrativa de autoridade; por outro lado, ao não prever genericamente uma sentença substitutiva,
garante-se que o tribunal não invade o núcleo da função administrativa - poderes discricionários.
Confere poderes de plena jurisdição ao tribunal, mesmo quando está em causa o exercício de poderes de
autoridade, mas também evita que os tribunais invadam as valorações próprias do exercício da actividade
administrativa. É esta a razão de ser – equilibrar o poder administrativo e judicial no âmbito do princípio
da separação de poderes.

2.2.2 Objecto: o conceito de “acto devido”

O art. 66.º/1 diz-nos que este pedido serve para pedir a condenação da Administração à prática de “acto
administrativo ilegalmente omitido ou recusado”. O acto devido é o acto que, na perspectiva do autor,
deveria ter sido emitido e não foi, quer tenha havido uma pura omissão ou recusa, quer o tenha sido
praticado um acto que não satisfaça ou satisfaça integralmente uma pretensão. Por outro lado, o acto não
tem de ser estritamente vinculado perante a lei – pode ser um acto discricionário, desde que a sua
emissão seja, nas circunstâncias de um caso concreto, legalmente obrigatória.

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

Mas quando é que podemos dizer que o acto devia ter sido praticado e não foi? Esta obrigação legal deve
ser interpretada em sentido amplo, abrangendo todas aquelas situações em que a omissão ou recusa
sejam contrárias à ordem jurídica – imposição do acto pelo Direito – excluindo apenas os casos em que a
prática do acto corresponda a um mero dever de boa administração.
i) Casos em que a fonte do dever de emissão é a lei – é esta a situação que se infere
imediatamente do art. 66.º/1. Esta imposição legal abrange também os casos em que esta
decorra de uma norma constitucional, internacional ou comunitária, ou de um princípio
jurídico aplicável.
ii) Na linha daquela interpretação mais ampla, temos ainda os casos em que o acto deveria ter
sido praticado na decorrência de uma situação de auto-vinculação administrativa. Cabem
aqui três situações:
a. Promessa da prática de acto administrativo;
b. Imposição por regulamento administrativo;
c. Imposição por contrato administrativo – apesar de a omissão dos actos
contratualmente devidos configurar uma situação de incumprimento contratual,
e em regra as acções relativas à execução de contratos seguirem a forma de acção
comum, neste caso seguem a forma de acção especial. Isto porque, na
ponderação entre as duas acções, dá-se maior peso ao facto de a prestação
contratualmente devida ser um acto administrativo.

2.2.3 As situações pressupostas

As situações pressupostas por este pedido estão enunciadas no artigo 67.º.


i) Alínea a): é apresentado um requerimento mas não há decisão – silêncio da
Administração.
ii) Alínea b): é recusada a prático de acto devido – indeferimento expresso.
iii) Alínea c): é recuada a apreciação de requerimento dirigido à prática do acto.

1) Silêncio administrativo: o problema dos actos silentes

Nem sempre que o particular apresenta um requerimento a Administração fica constituída no dever de
decidir, ou seja, só há uma omissão ilegal para efeitos do art. 67.º/1/a) quando a Administração tenha o
dever de decidir. O art. 9.º do CPA distingue o dever de decisão do dever de pronúncia: sempre que é
apresentado um requerimento, a Administração tem o dever de se pronunciar sobre ele, mas não o de

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apreciar materialmente a sua pretensão. Não haverá dever de decidir na situação do art. 9.º/2 – caso dos
actos confirmativos.

O problema vai colocar-se sobretudo nas situações de inércia da Administração. Tradicionalmente, o


CPA tinha dois artigos sobre o silêncio da Administração – o art. 108.º (em vigor) e o art. 109.º (que se
dever considerar revogado pela previsão da acção de condenação à prática de acto devido pelo CPTA).

A hipótese prevista no art. 108.º é a de deferimento tácito: estão em causa as situações em que o legislador
atribui ao silêncio o efeito da prática de acto administrativo – actos fictícios ou actos silentes positivos. Para
estas situações, valerá o art. 68.º/1/a), ou seja, será possível o recurso à acção de condenação nos casos
em que a lei atribui ao silêncio da Administração o valor de acto administrativo de deferimento? Não, do
ponto de vista lógico, tal não deverá ser admissível, ou seja, não é necessária a propositura da acção
condenatória nos casos de deferimento tácito (V ASCO PEREIRA DA SILVA, porém, defende o contrário).
Todavia, poderá haver lugar a outras acções:
i) Acção administrativa comum de reconhecimento: se o particular tiver interesse em obter
uma definição da situação, para evitar dúvidas sobre a existência ou não de uma direito.
ii) Acção de impugnação: pode acontecer ainda que o deferimento seja ilícito, pelo que um
terceiro ou o Ministério Público podem impugnar o acto.

2) Indeferimento expresso: a opção legislativa pela condenação e a substituição da petição

Já o art. 67.º/1/b) prevê as situações de indeferimento expresso. No contencioso anterior, perante um caso
de silêncio negativo (inércia legal) dava-se ao particular a faculdade de ficcionar o acto para o poder
impugnar. Na linha desta opção, os actos de indeferimento não eram verdadeiros actos administrativos,
mas sim meros pressupostos processuais de acesso à justiça administrativa. Com a previsão da acção de
condenação, coloca-se a questão de saber se, perante um indeferimento expresso, o particular é obrigado
a utilizar esta acção ou, ao invés, pode impugnar o acto. O art. 51.º/4 do CPTA resolve esta questão:
quando o autor impugnar um acto de indeferimento expresso, o tribunal convida o autor a substituir a
petição inicial para formular um pedido de condenação. Ou seja, o CPTA obriga o particular a seguir a
acção de condenação.

Em face do art. 51.º/4, alguns autores argumentaram que o acto de indeferimento não seria um
verdadeiro acto administrativo mas sim um pressuposto procedimental, numa ideia próxima da ideia que
valia no contencioso anterior e está hoje ultrapassada. Mas será que esta obrigatoriedade acabou mesmo
por transformar a natureza do acto de indeferimento?

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

i) A tese positiva mobiliza, para além do art. 51.º/4, o art. 66.º/2, que diz que nas situações de
indeferimento expresso, o tribunal aprecia a petição do interessado – isto é, se o particular
tem ou não direito à pretensão que apresentou e foi indeferida – e não o acto de
indeferimento. Se o tribunal nem sequer aprecia a validade do acto administrativo, então o
indeferimento não é um acto administrativo.
ii) Todavia, deve entender-se que esta disposição em nada alterou a natureza jurídica do acto
de indeferimento, pois este constitui uma posição da Administração quando à juridicidade
e conveniência da pretensão do particular. Do ponto de vista objectivo da ordem jurídica,
há um elemento novo – a definição da situação jurídica do particular. O facto de o tribunal
apreciar a pretensão do particular é apenas uma homenagem ao princípio da tutela
jurisdicional efectiva, já que a mera apreciação do indeferimento não satisfaria a pretensão do
particular – ao eliminar o acto da ordem jurídica, o particular teria de intentar uma novo
pedido. A acção de condenação pretende assim satisfazer directamente a esfera jurídica do
particular, até por uma questão de economia processual.

Porém, surgem alguns problemas, que resultam das situações em que o indeferimento só está ferido de
vícios formais. Quando o tribunal aprecia apenas a validade da pretensão e não do acto, tal resulta numa
desvalorização dos vícios formais – a Administração pode ganhar a causa mesmo sendo o acto de
indeferimento inválido por vícios formais, quase que parecendo que numa situação de indeferimento
pode desrespeitar os requisitos de forma. Pelo que não se pode levar à letra o art. 66.º/2.

3) Outras situações

Há outras hipóteses em que se pode recorrer a esta acção, mesmo quando as situações não cabem nas do
art. 67.º:
i) Actos administrativos parcialmente favoráveis – indeferimento parcial. Nestes casos, o pedido de
condenação pressupõe a impugnação do acto praticado, pelo que é necessária uma cumulação
de pedidos, art. 47.º/2/a).
ii) Actos favoráveis para terceiros – indeferimento indirecto. É exemplo o acto de adjudicação, sendo
que nestes casos se faz uma cumulação entre a impugnação do acto administrativo e a
condenação à prática de acto devido (este foi um dos objectivos da reforma – permitir a
apreciação global no mesmo processo das várias questões suscitadas no âmbito da relação
jurídica controvertida). O indeferimento indirecto pode ser:
a. Suplementar.
b. Consequencial.

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

iii) Outra situação resulta da configuração da legitimidade processual do Ministério Público,


naqueles casos de inactividade oficiosa comprovada da Administração: são os casos em que o
dever de decidir não resulta de um requerimento prévio do particular, mas em que a prática do
acto seja imposta directamente pela lei. Principalmente quando a violação do dever legal de
praticar um acto consubstancie uma violação de direitos fundamentais ou do interesse público, e
quando se prove um atraso manifesto e desrazoável no cumprimento da lei, o Ministério Público
poderá intentar esta acção.

2.2.4 Legitimidade

1) Legitimidade activa

A legitimidade activa combina elementos subjectivistas e objectivistas. Pode apresentar este pedido (art.
68.º/1):
i) Quem tenha a titularidade de direitos ou interesses legalmente protegidos, dirigidos à
emissão desse acto (tratando-se de deveres não oficiosos, quem o tenha requerido) – alínea
a);
ii) Pessoas colectivas públicas ou privadas em relação aos direitos e interesses que
representem – alínea b), bem como os restantes actores populares, incluindo o Ministério
Público, para defesa dos valores comunitários do art. 9.º/2 – alínea d);
iii) Ministério Público, enquanto titular da acção pública, quando se trate de um acto
legalmente devido, desde que esteja em causa a defesa de direitos fundamentais ou de um
interesse público especialmente relevante – alínea c).

2) Legitimidade passiva

A lei determina que, além da entidade competente responsável pela omissão, são igualmente
demandados os contra-interessados (litisconsórcio necessário, art. 68.º/2). Vale aqui o art. 10.º/2: a parte
demandada é a pessoa colectiva ou o ministério a que pertence o órgão competente para a prática do acto
devido (que, aliás, pode não ser o responsável pela emissão).

2.2.5 Prazo

O prazo de propositura de acção depende de ter havido ou não inércia da Administração – art. 69.º.
Todavia, não estão previstos no art. 69.º todos os casos de acção de condenação, o que pode suscitar
problemas.

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

i) Situações de inércia da Administração (n.º 1): o prazo é de um ano, contado desde o termo
do prazo legal estabelecido para a emissão do acto.
ii) Situações de indeferimento expresso (n.º 2): o prazo é de três meses para os particulares, um
prazo igual ao da impugnação, o que consubstanciará um argumento a favor da natureza
de acto administrativo do acto de indeferimento – passados três meses, adquire força de
caso decidido.
a. E para o Ministério Público? Parece que deverá igualmente valer o prazo de um
ano, como sucede na impugnação de actos. Uma solução diversa atentaria contra
o princípio da tutela jurisdicional efectiva.
b. E se o indeferimento for nulo? A manter-se o prazo de três meses, seria mais fácil
de reagir contra os actos de deferimento que contra os de indeferimento, logo
deve fazer-se uma interpretação conforme ao princípio da tutela jurisdicional
efectiva, admitindo-se o pedido a todo o tempo.
iii) Situações de recusa de apreciação: não estão previstas no art. 69.º. Tendo em conta que não
se formou um acto administrativo que possa tornar-se inimpugnável ao fim de três meses,
deve valer aqui o prazo geral de um ano; embora o particular possa sempre apresentar um
novo requerimento, sem o obstáculo do art. 9.º/2 do CPA (sem ter de esperar 2 anos).

2.2.6 Alteração da instância

A alteração da instância (art. 70.º) ocorre quando, na pendência da acção, a Administração pratica um
acto administrativo que ou indefere a pretensão do particular, ou não a satisfaz integralmente (acto
parcialmente favorável).
i) No primeiro caso, o particular vai poder alegar novos fundamentos e apresentar novos
meios de prova. A instância altera-se porque se amplia a causa de pedir – n.º 1 e 2.
ii) No segundo caso, o particular pode cumular o pedido impugnatório com o já existente
pedido condenatório. Ocorre uma ampliação do pedido – n.º 3.

2.2.7 Poderes decisórios e sentença

O art. 71.º prevê os poderes de pronúncia do tribunal – este pronuncia-se sobre a pretensão do particular
e impõe a prática do acto devido. A sentença é por isso condenatória. O âmbito desta condenação varia
em função do maior ou menor grau de discricionariedade da Administração em relação ao acto devido –
n.º 2: num extremo, temos os actos estritamente vinculados, nos quais o tribunal condena a
Administração a praticar um acto com um dado conteúdo; no outro, temos os actos discricionários, nos
quais o tribunal se limita a uma condenação genérica, explicitando os princípios a que está adstrita a

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

prática do acto. O tribunal deve ainda estabelecer o prazo em que deve ter lugar a pronúncia
administrativa e identificar o órgão competente.

Quando o tribunal o entender justificado, pode determinar logo na sentença condenatória a aplicação de
uma sanção pecuniária compulsória – art. 66.º/3.

2.2.8 Execução da sentença

A aferição do incumprimento da sentença por parte da Administração varia também em função do grau
de discricionariedade do acto: se a condenação for específica, o seu incumprimento traduz-se ou num não
cumprimento, ou na emissão de um acto com um conteúdo diferente; se a condenação for genérica, o
incumprimento traduz-se ou na não prática do acto, ou na emissão de um acto que viole os princípios
especificados.

Se se tratar de um acto vinculado, no qual a sentença de condenação especifica o momento da prática e o


seu conteúdo, em sede de execução da sentença pode o tribunal proferir uma sentença substitutiva da
prática do acto legalmente devido – art. 167.º/6 do CPTA. Apesar de uma tal sentença não violar o
princípio da separação de poderes, mesmo assim optou-se por uma primeira fase na qual a sentença é
declarativa, e, persistindo o incumprimento, numa segunda fase admite-se a sentença substitutiva.

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CAPÍTULO IV: Processos urgentes (V IEIRA DE A NDRADE, A Justiça Administrativa, pp. 230-250)

1. Introdução

1.1 Caracterização

Perante um dado caso concreto, devermos verificar se é um caso de processo urgente; não se tratando de
um processo urgente, devemos averiguar se é uma actuação autoritária - acção administrativa especial;
não sendo, acção administrativa comum. Os processos urgentes acabam por ser mais específicos que a
acção especial, pois podem abranger situações de omissão ou prática de actuações administrativas
autoritárias ou paritárias. Está em causa saber se a situação específica cabe ou não no processo urgente.
Os processos urgentes são assim:
i) Em regra de plena jurisdição,
ii) E que se dirigem à apreciação de actuações autoritárias ou não.

O que os caracteriza?
i) Como a própria designação indica, são processos com uma tramitação mais célere que os
que conduzem à acção especial e comum. É a tramitação acelerada que os distingue destas
acções.
ii) Mas, não obstante a urgência, são processos principais, o que os aproxima da acção
especial e comum. O facto de dizemos que são principais permite distingui-los das
providências cautelares, que também são processos urgentes, com uma tramitação
acelerada – todavia, nos processos urgentes a sentença compõe definitivamente o litígio, o
âmbito da cognição do tribunal é total e não limitada. Nas providências cautelares, a
composição do litígio é apenas provisória, destinando-se a assegurar que, quando for
proferida a sentença, esta tem utilidade, ou seja, a acautelar o seu efeito útil. Há processos
urgentes que têm uma tramitação menos acelerada, podendo ser necessário decretar uma
providência cautelar – por ex., o contencioso pré-contratual urgente.

Porque é que são previstos processos urgentes em relação a dadas situações específicas? Há situações que
não se podem compadecer com a demora normal dos processos da acção comum e especial. As situações são
de tal forma prementes, quer do ponto de vista da garantia, quer do interesse público, que violaria o
princípio da tutela jurisdicional efectiva se estes seguissem o processo normal. Em muitos casos
(intimação para protecção dos direitos, liberdades e garantias), o que está em causa é que a posição
jurídica do particular seja acautelada o mais rápido possível, mas não tem de ser assim: no contencioso
eleitoral, está antes em causa a defesa da legalidade e do interesse público. Encontramos por isso

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

preocupações subjectivistas e objectivistas, dependendo do processo específico.

Temos assim duas ideias-chave: celeridade e prioridade, por um lado; e resolução definitiva do litígio,
por outro.

Isto traduz-se num regime processual próprio, o que significa que: as fases processuais estão abreviadas; há
uma redução significativa dos prazos; estes processos decorrem durante as ferias judiciais; os actos da
secretaria são praticados no próprio dia e com precedência sobre todos os outros; os recursos sobem
imediatamente, etc. Isto é comum a todos os processos urgentes.

1.2 Processos urgentes previstos

Quais são os processos urgentes que o nosso Código consagra? São quatro, o que não significa que a
enumeração seja taxativa:
i) Dois processos impugnatórios – impugnações urgentes:
a. Contencioso eleitoral.
b. Contencioso pré-contratual.
ii) Dois processos intimatórios:
a. Intimação para a prestação de informações, consulta de documentos e passagem
de certidões;
b. Intimação para a protecção dos direitos, liberdades e garantias.

Notas:
i) As impugnações urgentes não visam apenas a apreciação da validade, não são apenas
impugnações. Apesar de receberem este nome, a verdade é que o tribunal não tem apenas
poderes de declaração da nulidade e anulação, mas também poderes condenatórios
(poderes de plena jurisdição).
ii) Há outros processos previstos em lei especial.
iii) Existe sempre, ao abrigo do art. 121.º, uma espécie de possibilidade de criação ad hoc de
processos urgentes pelo próprio tribunal, que é uma criação específica para um dado caso
concreto. Este artigo está no capítulo das providências cautelares e é uma forma de
convulação do processo: o particular requer uma providência cautelar, e este artigo admite
que em situações de urgência o tribunal, em vez de proferir uma decisão para a
providência, resolva antecipadamente a causa principal, tendo já elementos suficientes
para a decidir. O processo cautelar transforma-se num processo principal urgente: ver art.

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121.º (em geral) e 132.º/7 (em especial para o contencioso eleitoral).

2. Impugnações urgentes

2.1 Contencioso eleitoral

Está em causa o controlo da validade das actuações eleitorais. Notas quanto ao contencioso eleitoral:
i) Numa primeira nota relativa ao âmbito, este está recortado pelo próprio âmbito da justiça
administrativa – arts. 97.º e segs. e art. 4.º/1/m) do ETAF. Nem todo o contencioso eleitoral
está devolvido aos tribunais administrativos: por exemplo, o contencioso das eleições
autárquicas cabe à jurisdição constitucional.
ii) Qual a ratio subjacente deste contencioso eleitoral? Se não fosse urgente, correr-se-ia o risco
de as sentenças e a protecção dos cidadãos eleitores e elegíveis nunca ter uma verdadeira
eficácia: as sentenças de provimento não teriam a sua utilidade em virtude da
impossibilidade prática de reconstituição da situação actual hipotética (não seriam
susceptíveis de execução específica), e também não seria adequado o recurso a
providências cautelares. Isto é sobretudo uma questão de interesse público, da estabilidade
dos actos eleitorais.

1.1.1 Objecto

Qual o objecto deste processo? É a verificação da legalidade todas as pronúncias administrativas


relativas a eleições para órgãos de pessoas colectivas públicas, desde que não estejam excluídas da justiça
administrativa:
i) Associações profissionais;
ii) Órgãos directivos das escolas secundárias;
iii) Órgãos das universidades públicas e institutos politécnicos;
iv) Etc.

Há aqui uma divergência doutrinal quanto a saber se também devem seguir processo urgentes as eleições
para órgãos de pessoas colectivas privadas que desempenhem poderes públicos. A Administração Pública
em sentido organizatório abrande estas pessoas. Há um patamar mínimo de unanimidade na doutrina –
se se tratar de eleições não sujeitas a um procedimento especifico de Direito Administrativo, não há
razões para estar sujeita à justiça administrativa e ao contencioso eleitoral, mesmo que essas pessoas
colectivas privadas desempenhem poderes públicos. Mas há divergência quando em concreto há actos
eleitorais que estão regulados pelo menos em parte pelo Direito Administrativo – é o casos das eleições

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no âmbito das federações desportivas para órgãos directivos, que é regulada em parte pelo Direito
Administrativo.
i) V IEIRA DE A NDRADE entende que estas hipóteses estão foras do contencioso eleitoral
urgente, estando fora da jurisdição administrativa – isto porque se trata de uma pessoa
colectiva privada;
ii) Já PEDRO GONÇALVES entende que esta eleição cabe dentro do âmbito da justiça
administrativa e deve ser regulada pelo contencioso eleitoral urgente, uma vez que é
regulada em parte do Direito Administrativo (levando às ultimas consequências a
administrativização do procedimento eleitoral).

 Princípio da impugnação eleitoral unitária, art. 98.º/3: esta é uma especificidade do contencioso
eleitoral, que diz que apenas o acto eleitoral final, que implica o apuramento dos resultados, pode ser
impugnado. Ao contrário do que se passa na impugnação do acto administrativo, o contencioso eleitoral
parece retirar a possibilidade de serem impugnados actos anteriores ao acto final, ainda que praticados
no procedimento. Isto não deixa de ser estranho, pois anteriormente vigorava aqui precisamente a
orientação inversa: a doutrina e a jurisprudência defendiam o princípio da aquisição procedimental
progressiva, segundo o qual só se podia passar à próxima fase se estivesse cumprida de forma legal a fase
anterior. É certo que este artigo tem uma excepção, a exclusão ou omissão de cidadãos em listas ou
cadernos eleitorais. Mas isto é pouco, logo devemos fazer uma interpretação restritiva da primeira
parte, alargando ao máximo as excepções da segunda parte: as excepções têm de ser mais do que as
expressamente previstas.
i) Deve considerar-se incluída na excepção legal a impugnação autónoma da recusa da
admissão das próprias listas, a inscrição indevida de eleitores nos cadernos ou listas
eleitorais e a admissão de candidaturas. Só assim é que se garante a estabilidade do universo
eleitoral.
ii) Para além disto, o princípio vale em relação a cada acto eleitoral – no caso das eleições por
voltas, não temos de esperar pela segunda volta para impugnar; ou ainda no caso das
eleição indirecta (eleição de um colégio). Uma interpretação em sentido diverso poria em
causa a estabilidade do acto eleitoral, que é o objectivo da própria previsão do contencioso
eleitoral urgente.

1.1.2 Legitimidade e prazo

A legitimidade activa cabe apenas aos eleitores e elegíveis, art. 98.º/1, incluindo, no caso de omissão nos
cadernos ou nas listas, as pessoas cuja inscrição foi omitida. Não se admite a acção pública, popular ou
mesmo colectiva. Na falta de disposição legal em contrário, o prazo é de sete dias – art. 98.º/2.

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

Este processo segue a tramitação da acção administrativa especial, com as especificidades do art. 99.º; e é
de “plena jurisdição” (art. 97.º/2), o que significa que o juiz tem poderes condenatórios.

2.2. Contencioso pré-contratual

Em termos estatísticos, este é o contencioso urgente com maior aplicação prática (juntamente como o
contencioso de intimação para protecção dos direitos, liberdades e garantias). Está previsto nos arts. 100.º
e segs., e corresponde a uma exigência do direito da União Europeia: inicialmente, o contencioso pré-
contratual remonta a um diploma avulso de 1998, que procurava transpor uma directiva europeia em
matéria de mecanismos processuais de defesa dos terceiros quanto a celebração de certos contratos da
Administração (a directiva recursos). Este contencioso é assim filho directo da necessidade de
transposição do direito europeu, é uma manifestação a nível processual da europeização do Direito
Administrativo.

Tem de ser lido a par da acção administrativa especial, uma vez que o contencioso pré-contratual vem
estabelecer um regime específico de reacção contra actuações administrativas praticadas no
procedimento de certos contratos: empreitada, concessão de obras pública, prestação de serviços e
fornecimento de bens. Assim, este contencioso destina-se à apreciação da validade das actuações
administrativas praticadas no âmbito do procedimento de formação destes contratos. Quer dizer que,
quando estejam em causa procedimentos pré-contratuais, a primeira preocupação que temos de ter é
identificar a que contratos se destinam aqueles procedimentos: se for um daqueles contratos, a apreciação
da validade é feita no processo urgente; se forem outros contratos, a apreciação é feita em regra na acção
administrativa especial (art. 46.º/3).

Porque é que foi instituído um processo urgente nesta matéria pela União Europeia? Podemos apontar
dois motivos, ambos relacionados com preocupações típicas do direito europeu:
i) Promover a transparência nos procedimento de celebração dos contratos, relacionada com
a protecção do imperativo da concorrência. Assegurar que existe uma fiscalização urgente
destas actuações significa permitir aos intervenientes nos procedimentos pré-contratuais
uma reacção rápida contra actuações administrativas que atentem contra o princípio da
concorrência.
ii) Em segundo lugar, visa garantir a estabilidade do contrato. Este processo urgente tem um
propósito especifico, o de assegurar que os litígios são resolvidos antes da celebração do
próprio contrato. Isto é importante porque, como vimos, os vícios das actuações
praticadas no procedimento pré-contratual podem repercutir-se na validade do contrato,

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

dando origem a uma validade derivada. Se conseguirmos suprir a invalidade antes,


evitamos a celebração de um contrato inválido, que estaria sujeito a impugnação, não se
estabilizando. É muito melhor do ponto de vista da tutela efectiva e do próprio interesse
público se antes da celebração tiverem sido resolvidos todos os problemas relativos à
invalidade.

2.2.1 Objecto

Esta acção deve ser utilizada quando esteja em causa a ilegalidade de quaisquer decisões administrativas
relativas à formação daqueles contratos – não se exige aqui que seja um acto que preencha o conceito de
acto administrativo impugnável (basta o carácter decisório, aliado à relevância no procedimento); nem o
de norma (pode-se impugnar qualquer documento normativo contratual, art. 100.º/2). Exemplos de
actos que podem ser impugnados:
i) Decisão de contratar;
ii) Decisão de escolha do procedimento;
iii) Decisão de hierarquização de propostas;
iv) Decisão de selecção dos concorrentes;
v) Decisão de exclusão dos concorrentes ou de propostas;
vi) Decisão de recusa de contratar;
vii) Decisão de adjudicação.

 Um primeiro problema que se coloca aqui é: por que motivo são só estes os contratos abrangidos? Se
pensarmos naquelas duas razões para a existência deste contencioso, chegamos a conclusão que se
justificam em quaisquer contratos celebrados pela Administração, porém ficam fora a concessão de
serviços públicos, a concessão e utilização privativa de domínio público, e a exploração do domínio
público. A razão formal que justificou a restrição tem a ver com o facto de a directiva recursos se
preocupar apenas com estes contratos, isto é, o cumprimento do direito europeu ficou alcançado com a
previsão do processo urgente para estes contratos. Foi assim em 98, quando foi transposta a directiva; e
não obstante algumas críticas doutrinas ao DL 134/98, foi assim que passou para o CPTA. O legislador
apenas se preocupou em alcançar o patamar mínimo. Há argumentos a favor e contra uma interpretação
extensiva deste preceito:
i) Contra: há causas que justificam esta restrição.
a. Por um lado, a importância económica associada aos contratos do mercado de
obras publicas e fornecimento de bens, e o relevo do ponto de vista do direito ao
trabalho dos de prestação de serviços justificariam que houvesse uma tutela
reforçada dos procedimentos pré-contratuais. Isto impediria o interprete de

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

fazer uma interpretação extensiva.


b. Por outro lado, com o CPTA não se pode dizer que o legislador fez esta restrição
de forma inconsciente, pois já havia quem criticasse antes dele esta restrição. Se o
transpôs para o CPTA, então estaria a dar guarida expressamente a esta restrição.
ii) A favor:
a. Desde logo, o princípio da tutela jurisdicional efectiva diz-nos que os interesses
das partes processuais ficarão melhor satisfeitos se os litígios relativos à formação
do contrato forem sempre decididos antes da sua celebração. Só há uma
verdadeira tutela dos interessados no procedimento se o litígio for solucionado
antes da celebração. Se alguém for excluído e a sentença vier depois da
celebração, já não vai conseguir grande coisa sem ser uma indemnização, nunca
terá a oportunidade de celebrar o contrato que é o que interessa
verdadeiramente, diminuindo o currículo da empresa.
b. Outro argumento resulta do art. 20.º do Acordo sobre Contratos Públicos,
estabelecido no anexo 4 do Acordo que Institui a Organização Mundial do
Comércio (aprovado pela UE). Este acordo diz que os EM se comprometem a
regular um conjunto de processos céleres relativos à formação de quaisquer
contratos públicos. Impõe aos EM da UE o dever de estabelecer mecanismos
judiciais urgentes para reagir contra os procedimentos de formação de quaisquer
contratos públicos.

Se nos aparecer um casos fora do contencioso pré-contratual? Em princípio, na prática não se pode
seguir o art. 100.º, os tribunais não aceitam em regra estes casos. Numa situação hipotética em exame,
temos de debater o problema - o contrato está fora do elemento literal, e há argumentos a favor e contra
uma interpretação extensiva. Do ponto de vista do direito constituído, este contencioso deveria ser
alargado a todos os contratos públicos, já que os argumentos a favor jogam de forma mais intensa para o
alargamento.

 Um segundo problema relativamente ao objecto: quais são os pedidos abrangidos no art. 100.º?

1) Pedido de impugnação de actos administrativos relativos à formação do contrato, n.º 1. Neste


contexto, o contencioso pré-contratual funciona como uma espécie de acção administrativa especial de
tramitação acelerada. Aqui temos três questões a abordar:
i) Uma primeira questão que se coloca é se, não obstante se referir à impugnação de actos, o
art. 100.º/1 não deverá envolver também o pedido condenatório para funcionar como uma
verdadeira alternativa à acção administrativa especial (ex: acto de exclusão de

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candidatura). Parece que sim, que se deve abranger também o pedido condenatório
sempre que estiver relacionado com a impugnaçãoass de actos administrativos praticados
no procedimento de formação, admitindo-se a cumulação do pedido impugnatório com o
condenatório.
ii) Art. 100.º/3: são equiparados a actos administrativos os actos administrativos praticados
pelos sujeitos privados no exercício das funções públicas. Relacione-se estas entidades com o
leque do art. 2.º/2 do CCP, que prevê que sejam entidades adjudicantes sujeitos privados.
Os actos praticados por estas entidades adjudicantes no decurso do procedimento pré-
contratual administrativo previsto no CPP, parte II, são fiscalizados aqui. Remissão do art.
100.º/3 para art. 2.º do CCP e ainda 4.º/1/d) do ETAF, que inclui no âmbito da jurisdição
administrativa a fiscalização da legalidade destes actos (o art. 100.º/3 é uma concretização
deste artigo).
iii) O contencioso é obrigatório para a fiscalização de actos? Pode o interessado optar por
seguir o contencioso pré-contratual urgente ou a AAE? Isto é relevante para a questão do
prazo - aqui tem apenas 1 mês, enquanto que 3 meses com possibilidade de extensão de 1
ano. Deixando passar o prazo de 1 mês, pode socorrer-se do prazo da AAE? Não - a divisão
entre o contencioso pré-contratual e a AAE é uma divisão imperativa. Este é um meio
necessário e obrigatório - não se pode escolher livremente entre o processo urgente e AAE.
Isto decorre de uma interpretação conjugada do art. 46.º/3 do CPTA e do art. 100.º/1. O
primeiro exclui do âmbito da AAE a impugnação de actos administrativos praticados no
âmbito do procedimento de formação do contrato, sem prejuízo do regime especial do
contencioso pré-contratual.

2) Pedido de impugnação de documentos conformadores do procedimento de formação dos contratos, n.º


2. São aquilo a que chamamos as peças do procedimento. Este número alarga o âmbito de aplicação do
contencioso à impugnação destas peças, sendo as mais importantes o programa do procedimento
(documento que contém a tramitação do procedimento pré-contratual) e caderno de encargos (cláusulas
do contrato a celebrar).
i) Há aqui uma certa dúvida sobre a natureza jurídica das peças do procedimento.
Tendencialmente, costuma dizer-se que, neste caso, o contencioso funciona como uma
espécie de alternativa à acção administrativa especial de declaração de ilegalidade de
regulamentos. Esta questão de saber se o contencioso é ou não uma alternativa dá por
resolvida uma questão que é prévia, que é a de saber a natureza jurídica das peças: serão
regulamentos administrativos?
ii) Para RAQUEL M ONIZ, as peças procedimentais não se reconduzem a qualquer das formas
típicas da actuação administrativa. Isto complica a questão se saber como se reage contra

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

peças de procedimento que não sejam elaboradas nos contratos abrangidos por este
contencioso. Para quem considerar que são regulamentos, fora daqueles contratos segue-se
a declaração de ilegalidade; para quem não considerar, chega à mesma solução mas por
um caminho diferente. Não sendo actos de autoridade, teriam de ser impugnados através
da acção administrativa comum. Mas isto faria com que a tendencial unidade que deve
haver no contencioso contratual ficasse em causa: para além da diferença consoante os
contratos, haveria uma diferença posterior pois se fossem actos praticados fora dos
contratos, seria a acção especial, e se fossem peças de procedimento fora daqueles
contratos, seguiria a acção comum. Em favor da unidade do contencioso pré-contratual,
RAQUEL M ONIZ propõe aproximar as peças de actuações autoritárias praticadas no
procedimento pré-contratual, seguindo a tramitação da acção administrativa especial. A
tramitação do contencioso pré-contratual já está, do ponto de vista dos arts. 100.º e segs,
parcialmente adaptada à apreciação da validade dos regulamentos (excepto nos prazos),
ou seja, se legislador já considera que a tramitação da acção especial é adequada à
tramitação do contencioso pré-urgente, porque não seguir essa tramitação para os outros?

3) Pedido de impugnação do contrato quando celebrado na pendência do processo pré-contratual. Isto é


o que resulta do art. 102.º/4, que consubstancia uma das situações de modificação objectiva da instância.
Não obstante a urgência, o contrato pode ser celebrado na pendência do processo; aí, por remissão para
o art. 63.º/2, o contencioso continua mas é abrangido também o processo de impugnação do contrato, a
questão de invalidade derivada. Este pedido só pode ser deduzido posteriormente, e é sempre um pedido
cumulado com outros já que este contencioso não se destina à apreciação da invalidade dos contratos.

2.2.2 Prazo

O prazo está previsto no art. 101.º, segundo o qual os processos têm de ser intentados no prazo de um mês
contado da data de notificação ou, não havendo notificação, do conhecimento do acto. Este é um prazo
muito curto, mas que está relacionado com a urgência do processo, com a ideia de que os litígios têm de
ser resolvidos antes da celebração dos contratos.

 E se entretanto passar o prazo de um mês e o acto não tiver sido impugnado? Temos de distinguir duas
situações: actos anuláveis e actos nulos.
i) No caso dos actos anuláveis, sabemos que a relação entre a acção especial e o contencioso
pré-contratual não é uma relação de escolha dos interessados: o contencioso pré-contratual
é de utilização necessária. Se o acto for anulável e passar um mês, torna-se inimpugnável,
ou seja, não se pode recorrer à acção especial (salvo as regras do justo impedimento). Isto

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tem implicações do ponto de vista substancial, pois estes actos forma caso decidido muito
mais cedo. Do ponto de vista da concorrência, isto não é favorável, logo parece ser paradoxal
face às preocupações de protecção da concorrência do direito europeu. Em circunstâncias
normais, o próprio direito europeu exige que os actos contra a concorrência nunca se
consolidem, pondo em causa a estabilidade do acto administrativo (um acto que viole o
direito europeu, designadamente as normas de concorrência, nunca se pode estabilizar).
Mas nestes casos é o próprio direito da União Europeia que, procurando equilibrar a tutela
da concorrência com a estabilidade dos contratos, veio fixar este prazo muito curto. A
tutela da concorrência tem de ser conciliada com o bom funcionamento do mercado
interno, que exige que os próprios operadores económicos sejam diligentes na reacção.
ii) No caso dos actos nulos, o regime da nulidade diz que esta é invocável a todo o tempo. Um
acto pré-contratual nulo tem de ser impugnado no prazo de um mês ou pode ser
impugnado a todo o tempo? A ideia é a de articulação do regime substantivo da nulidade
com as exigências do contencioso pré-contratual: perante um acto nulo, se um interessado
quiser fazer uso do contencioso pré-contratual, tem de impugnar o acto no prazo de um
mês. Passando esse prazo, o acto não se consolida na ordem jurídica porque é nulo e o
regime substantivo não permite a consolidação de um acto nulo, mas a sua impugnação já
só pode ser feita na acção especial. Quem pretenda beneficiar da tramitação acelerada, tem
também de ser célere na reacção. (V IEIRA DE A NDRADE parece adoptar uma posição
diferente: “nos casos de nulidade de actos administrativos pré-contratuais, tem de admitir-
se, em face do respectivo regime legal substantivo, a invocação da nulidade,
independentemente de prazo, mas apenas no âmbito de processos que não tenham como
objecto a impugnação do acto”.

 Um segundo problema tem a ver com a articulação da invalidade das peças do procedimento e a
invalidade derivada dos actos administrativos pré-contratuais. Está em causa uma situação em que uma
peça de procedimento é inválida: por exemplo, o programa tem uma regra contrária à lei no prazo para a
apresentação de propostas, e com base nesse programa a entidade adjudicante recusa uma proposta com
fundamento na ultrapassagem do prazo. A peça é inválida na medida em que contraria o Código dos
Contratos Públicos, e por sua vez o acto administrativo que recusa a proposta é inválido por ter na sua
base uma disposição que contraria esse código. Quis iuris se o interessado não impugnou a peça no prazo
de um mês e vem agora dentro do prazo impugnar o acto administrativo que recusou a admissão da
resposta? Quando teve conhecimento do programa, podia ter impugnado ao abrigo do art. 100.º/2
imediatamente a peça, e não o fez (pode acontecer que, apesar da norma ser inválida, não quis provocar
conflitos).

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O STA veio dizer que, se o interessado deixou passar o prazo de um mês para impugnar a título principal
a peça, não pode vir depois impugnar o acto que a aplica com fundamento na ilegalidade da peça do
procedimento, pressupondo a título incidental uma avaliação da invalidade. Esta posição não faz
qualquer sentido, levando a situações em que um acto administrativo se tornaria inimpugnável mesmo
antes de se iniciar o prazo para a sua impugnação (exemplo: o interessado tem conhecimento do
programa, entretanto não impugna a disposição e passa um mês; se o acto administrativo é praticado
passado o prazo de impugnação, nasce inimpugnável). O STA inverteu assim a sua tendência e hoje
admite expressamente que os interessados possam invocar com fundamento na invalidade da peça a
invalidade do acto administrativo, mesmo que a peça não tenha sido impugnada a título principal no
prazo de um mês. Não há preclusão do direito de impugnação do acto administrativo com fundamento
na ultrapassagem do prazo de impugnação da peça a título principal.

2.2.3 Especificidades da tramitação

A tramitação é única (a urgência não depende do valor da causa) e segue a da acção administrativa
especial (art. 102.º/1), com algumas especificidades.

 Audiência pública, art. 103.º: continua a obedecer à ideia de celeridade, prevendo que sempre que se
considere adequado à rápida decisão do litígio, o juiz pode determinar a realização de uma audiência
pública, apreciando-se a matéria de direito e de facto, apresentando as partes as alegações de forma oral
(quando o processo administrativo é tendencialmente escrito), e sendo a sentença proferida logo no fim
da audiência. Este é o mecanismo mais adequado quanto a urgência na decisão é muito intensa, ou
quando as questões a apreciar são relativamente simples – só nestes casos se deverá recorrer ao art. 103.º.

 Modificação objectiva da instância, art. 102.º/5: ocorre quando há impossibilidade absoluta de


realização do interesse do autor – por exemplo, não obstante a urgência, o contrato é celebrado e
executado. Numa situação destas, pode ser totalmente inconveniente para o interesse público destruir o
contrato e celebrar um novo. Esta será uma situação limite, que a previsão do próprio contencioso
pretende pôr cobro. O art. 102.º/5 prevê que o tribunal aí faça uma modificação objectiva, pelo que o
processo se transforma num processo indemnizatório. Este artigo remete-nos para o art. 45.º: se as partes
não acordarem um montante indemnizatório, o autor pode requerer a fixação judicial da indemnização
devida. Assim, na falta de acordo das partes, isto dá origem a uma acção de responsabilidade civil. Esta é
uma especificidade da tramitação, pois estamos num processo declarativo e a fazer um juízo típico de um
processo executivo.

2.2.4 Relações com o direito europeu

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O art. 188.º do CPTA, dando guarida à ideia de que o contencioso pré-contratual é um contencioso que
procura efectuar a transposição de uma directiva, estabelece um mecanismo de relacionamento entre o
Estado português e a Comissão europeia: obriga a que o Estado informe a Comissão sobre todos os
processos principais e cautelares intentados no âmbito deste contencioso nos quais tenha sido suscitada a
violação de normas de direito europeu.

3. Intimações

3.1 Intimação para prestação de informações, consulta de documentos e passagem de certidões

3.1.1 Alcance

Este é um processo que chegou a estar consagrado no contencioso anterior, todavia era concebido como
mero meio acessório, ou seja, providência cautelar na pendência do processo principal. Todavia, por
força da Constituição, entendeu-se que a configuração deste meio como mera providência cautelar não
era suficiente para salvaguardar os direitos fundamentais, que são direitos análogos aos DLG, de
informação dos administrados – art. 268.º/1 e 2. Este constitui um meio processual destinado a garantir
direitos fundamentais, é um “remédio jurisdicional” de direitos fundamentais de informação dos
administrados.

 Direito à informação: o n.º 1 do art. 268.º diz respeito ao direito à informação procedimental, que é o
direito que todos os cidadãos têm de obter informação sobre o andamentos dos procedimentos
administrativos em que sejam interessados; e o n.º 2 consagra o direito a informação não procedimental,
também conhecido com direito ao arquivo aberto. Este direito assegura os cidadãos ao acesso aos
documentos e informações que a Administração tenha sobre a sua própria pessoa, mesmo que isso não
ocorra no âmbito de um procedimento administrativo.

 Além deste meio processual, existem também mecanismos de reacção administrativa quando são
postos em causa estes direitos fundamentais, ou seja, este não é o único remédio. Também há garantias
administrativas, de que é exemplo típico Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA)
– entidade administrativa independente à qual os cidadãos podem fazer queixa sempre que a
Administração viole os seus direitos à informação. No caso específico das informações pessoais, a tutela
cabe também a outra entidade administrativa independente que é a Comissão Nacional de Protecção de
Dados.

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 O art. 104.º indica os pressupostos do exercício da intimação: as pretensões que esta intimação pretende
dar resposta não se relacionam exclusivamente com a tutela dos direitos à informação.
i) O n.º1 dá guarida a esta tutela: é objecto todas as pretensões informativas dos cidadãos, quer
as que representam o direito à informação procedimental quer as que representam o
direito informação não procedimental.
ii) Mas o n.º 2 ainda dá guarida a outra pretensão, a obtenção da notificação do acto.

 Notificação do acto administrativo: a notificação do acto administrativo também é um dever que tem
assento constitucional, art. 268.º/3, 1ª parte. Houve uma grande discussão da jurisprudência
constitucional para saber se a este dever de notificação corresponde ou não um direito fundamental à
notificação dos actos administrativos. A conclusão a que chegou a jurisprudência e doutrina foi de que
esta notificação corresponde a uma garantia acessória do direito fundamental da impugnação de actos
administrativos, ou seja, pode não ser um direito fundamental dos administrados, mas corresponde a um
dever constitucional da Administração.

Sobre a notificação integral do acto administrativo, temos de nos socorrer das menções obrigatórias do
acto administrativo, art. 123.º CPA. Porque é que é relevante o exercício desta intimação? Um dos
requisitos formais da validade é a fundamentação; e em regra os problemas da notificação surgem
quando desta não consta a fundamentação do acto, isto é, o particular é notificado apenas de que foi
indeferida a sua pretensão. Isto pode ser apenas um problema da notificação, que não contem todo o
texto, ou do próprio texto, de que falta a fundamentação. O vício formal da falta de fundamentação dá
origem à anulabilidade; mas a mera impugnação de um acto administrativo com base num vício formal
pode apenas dar origem à renovação do acto administrativo (prática do acto com o mesmo conteúdo,
mas sem reincidência no vício formal). Assim, quando um particular recebe uma notificação sem
fundamentação o meio de reacção não é a impugnação do acto mas deve ser antes a intimação: pede
primeiro à Administração que notifique o acto devidamente fundamentado; e se esta não disser nada ou
emitir uma notificação com o mesmo conteúdo, deve o particular recorrer a este meio intimatório. Isto
porque, segundo V IEIRA DE A NDRADE, a fundamentação constitui uma importante garantia acessória do
direito a impugnação: só se pode impugnar um acto administrativo com rigor se soubermos a justificação
e motivação do acto administrativo. Para além disto, o acto pode ter vícios de conteúdo e o particular
pode não se aperceber disto, porque o acto não foi devidamente fundamento.

Isto tem uma virtude: o prazo de impugnação do acto fica interrompido. Lembre-se a diferença entre a
suspensão (o prazo é retomado no momento em que parou) e a interrupção (o prazo é retomado do
início). A interrupção está prevista nos arts. 60.º/2 e 3 e no art. 106.º.

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 Porque é que este processo é urgente? Não se exige aqui que o particular esteja numa situação urgente;
o que o Código pretende acentuar é o princípio da transparência da Administração, entendendo-se que
esta transparência só é efectiva se o administrado puder obter uma resposta célere aos processos relativos
à sua informação.

3.1.2 Legitimidade, pedido prévio e prazo

 Legitimidade: cabe, nos termos do art. 104.º/1 (intimação para exercício do direito à informação), aos
titulares do direito a informação procedimental ou não procedimental. Se for um processo nos termos do
104.º/2, têm legitimidade todos aqueles que teriam legitimidade para impugnar o acto e todos aqueles
que teriam direito à notificação (são as mesmas pessoas).

A legitimidade passiva afere-se nos termos gerais do art. 10.º/2 – porém, por força da referência à
autoridade requerida (art. 107.º), o requerente deverá identificar o órgãos responsável, para que o
tribunal lhe possa dirigir a intimação.

 Exigência de uma decisão administrativa prévia: a utilização deste meio pressupõe que, antes do
acesso ao tribunal, a Administração tenha tido oportunidade de responder às pretensões informativas e
ao dever de notificação integral do acto. Temos várias hipóteses de solução: o particular pode não querer
ir directamente para a justiça administrativa e recorrer à entidade administrativa independente, todavia
este recurso não é obrigatório: pode ser usado como a decisão administrativa prévia, ou após se ter
dirigido à Administração e antes do tribunal.

 Prazo: nos termos do art. 105.º, o prazo é de vinte dias e começa a contar da decisão administrativa
prévia.

3.1.3 Sentença

A sentença é uma sentença condenatória, podendo condenar a Administração a permitir ao particular a


consulta de um documento; a prestar uma informação; ou a passar uma certidão – tudo depende daquilo
que for pedido e do que a Administração considerar legítimo (esta pode entender que um dado
documento, dadas as suas características, não pode ser consultado directamente pelo interessado, caso
em que passa uma certidão com as informações que considere necessária). O art. 108.º/2 diz que pode a
Administração ser condenada ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória.

3.2 Intimação para protecção dos direitos, liberdades e garantias

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É um meio que parece de utilização excepcional, mas a verdade é que a prática demonstra que as pessoas
se socorrem cada vez mais deste meio para tudo, de forma patológica, e os tribunais têm admitido este
meio a título normal. Este é um meio processual que também tem um fundamento constitucional, tendo
correspondido a uma obrigação de legislar prevista no art. 20.º/5 – este preceito prevê a existência de um
meio célere para a protecção dos direitos, liberdades e garantias, apesar de se referir apenas aos direitos,
liberdades e garantias pessoais (há ainda os direitos, liberdades e garantias de participação política e os
direitos dos trabalhadores). O Código veio estender esta protecção a todos os direitos, liberdades e
garantias e direitos de natureza análoga, nos termos do art. 17.º da CRP. A intimação existe assim para a
protecção de todos os direitos, liberdades e garantias e direitos de natureza análoga, não obstante o
imperativo constitucional ser mais restrito.

“Esta protecção acrescida justifica-se, na sua substância, pela especial ligação destes direitos à dignidade
da pessoa humana, e, na sua oportunidade, pela consciência do perigo acrescido da respectiva lesão”. “A
utilização desta acção deve, no entanto, por isso mesmo, limitar-se às situações em que esteja em causa
directa e imediatamente o exercício do próprio direito, liberdade ou garantia ou direito análogo”. Não é,
assim, legítimo o recurso a este meio para a protecção de eventuais interesses ou até direitos que tenham
um ligação instrumental com a realização de direitos constitucionais; ou consubstanciem concretizações
legislativas de direitos fundamentais.

3.2.1 Pressupostos

A lei exige três pressupostos para o acesso a este meio (art. 109.º):
i) Urgência;
ii) O pedido se refira à imposição de uma conduta positiva ou negativa à Administração;
iii) Não seja possível ou suficiente o decretamento provisório de uma providência cautelar –
esta condição é algo pleonástica, uma vez que esta acção se destina à obtenção de uma
decisão de mérito urgente.

Note-se que este é o único dos processos urgentes em que se exige uma urgência concreta: em todos os
restantes, o legislador ficciona, presume ou pressupõe a urgência, em abstracto. Isto vem confirmar o
carácter excepcional ou subsidiário da intimação, sendo que é neste sentido que deve ser interpretado o
último pressuposto: sempre que não seja indispensável uma decisão de mérito urgente, devem ser
utilizadas as acções comum e especial.

3.2.2 Legitimidade e pedido

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 Legitimidade activa: pertence a todos os titulares dos direitos, liberdades e garantias – ver art. 12.º da
CRP (todos os cidadãos são titulares de direitos fundamentais) e art. 15.º (cidadãos estrangeiros).
Também se pode admitir aqui a acção popular.

 Legitimidade passiva: o pedido é dirigido contra a Administração (art. 10.º/2). Porém, nos termos do
art. 109.º/2, também pode ser dirigido contra particulares, designadamente concessionários. Uma questão
que se coloca é que, como a intimação é utilizada para suprir a omissão de providências por parte da
Administração, o particular antes de propor a intimação não estará obrigado a pedir-lhe que adopte as
medidas necessárias para que o particular deixe de violar os direitos, liberdades e garantias. É o que se
sucede na acção administrativa comum. Isto pode fazer sentido ou não: numa situação de extrema
urgência, então não deverá ser exigido o requerimento à Administração, pois isto poderia pôr em causa o
exercício do direitos, liberdades e garantias. O pressuposto da urgência da intimação pode permitir que
se salte este passo.

 Pedido: pode ser feito qualquer pedido, seja da acção administrativa especial, seja da acção
administrativa especial.

3.2.3 Tramitação e sentença

 Tramitação: o que é específico é que há 3 tipos de tramitação diferente consoante a complexidade e


urgência da situação:
i) Tramitação para situações de urgência normal e complexidade simples, art. 110.º - é a
tramitação regra;
ii) Tramitação para processos complexos e situações de urgência normal, art. 110.º/3
(redução dos prazos a metade);
iii) Tramitação para situações de especial urgência, art. 111.º (decisão no prazo de 48h).

 Sentença: tudo depende do pedido, mas sendo este meio de plena jurisdição, o juiz poderá proferir
sentenças condenatórias. Pode mesmo proferir sentença substitutiva, quando esteja em causa a emissão de
um acto estritamente vinculado imprescindível ao exercício dos direitos, liberdades e garantias: note-se
que esta é a única hipótese em que o legislador admite uma sentença substitutiva num processo
declarativo. Como está em causa uma sentença condenatória, embora não se diga nada, o juiz também
pode cominar a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória nos termos gerais. As decisões de
improcedência são sempre objecto de recurso, art. 142.º/3/a).

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CAPÍTULO V: As providências cautelares (V IEIRA DE A NDRADE, A Justiça Administrativa, pp. 303-333)

1. Características da tutela cautelar

A tutela cautelar e constituída por um conjunto de processos céleres que se destinam a assegurar a
utilidade da sentença a proferir no processo principal. Trata-se de permitir que, quando for proferida a
sentença no processo, esta ainda tenha alguma eficácia na esfera jurídica das partes. Evita-se que na
pendência do processo se alterem de tal forma as circunstancias que isso impeça a eficácia ou efeito útil
da sentença – isto porque, em regra, os processos principais tem uma tramitação complexa que demora
no tempo.

Isto já e assim em geral, mas o problema acentua-se na justiça administrativa. Porquê? Porque os
tribunais administrativos são muito menos que os cíveis e têm muito menos funcionários.
Proporcionalmente ao número de causas, os tribunais administrativos são poucos e escassos em ternos
de recursos humanos. É por isso que em 1997, na revisão constitucional, passou a figurar como elemento
integrante do princípio da tutela jurisdicional efectiva a tutela cautelar: dada a relevância em geral, e em
especial nos tribunais administrativos.

Tendo em conta este objectivo, conseguimos identificar quatro características fundamentais da tutela
cautelar.

1) Instrumentalidade ou acessoriedade da tutela cautelar face à principal: os processos cautelares são


instrumentais, estão directamente dependentes, são acessórios, dos processos principais. Esta ideia está
presente no art. 113.º/1: o processo cautelar depende da causa que tem como objecto a decisão sobre o
mérito. Esta dependência tem consequências práticas:
i) A propositura do processo cautelar está relacionada com a propositura da acção principal.
Art. 114.º/1: o requerimento das providencias pode ser apresentado antes da instauração do
processo principal, em conjunto com a instauração ou na sua pendência. Quando o processo
cautelar é instaurado antes, o requerente está obrigado a propor o processo principal num
dado prazo, sob pena de caducidade da providência, art. 123.º/1/a). Quando há prazo, o
prazo conta-se nos mesmos termos da acção principal; quando não há prazo, nos termos
do n.º 2, aplica-se o prazo de 3 meses contado do trânsito em julgado da sentença que deu
provimento à providência cautelar.
ii) O art. 114.º/3/i) obriga sempre à identificação do processo principal, quando é
apresentado na sua pendência.
iii) Art. 123.º: todas as causas de caducidade das providências estão relacionadas com a

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instrumentalidade em relação ao processo principal.

2) Sumariedade: as providências caracterizam-se por uma cognição sumária e urgente das questões de
facto e de direito. As providências só se destinam a assegurar o efeito útil da sentença, resolvendo o litígio
provisoriamente – a resolução definitiva do litígio é efectuada apenas no processo principal. Assim, a
cognição da questão de facto e direito é sumária, ou seja, genérica, bastando um mero juízo de
probabilidade ou verosimilhança do direito que se pretende acautelar. Isto reflecte-se na própria
tramitação, que é acelerada e corre em férias (aplica-se aqui a tramitação dos processos urgentes). Veja-
se o art. 119.º: o prazo para decidir de uma providência é de 5 dias. Isto leva-nos à terceira característica.

3) Provisoriedade dos efeitos: os efeitos são necessariamente provisórios, quer a nível do conteúdo, quer
a nível da duração, uma vez que só se vão manter até à decisão da causa principal. A concessão de uma
providência cautelar não corresponde a uma resolução definitiva do litígio, que só ocorrerá com a
decisão do processo principal e que pode até contrariar a decisão da providência cautelar, uma vez que
esta foi baseada numa apreciação sumária. Esta provisoriedade tem consequências ao nível do próprio
tipo de providências que podem ser adoptadas: principalmente nas providências cautelares
antecipatórias, que antecipam o juízo da causa principal. Aqui, tem de se ter o cuidado de que a
antecipação do juízo não pode ocorrer de tal forma que ponha em causa a provisoriedade dos efeitos.
Exemplo típico: num processo concursal, em que há um acto de exclusão do concorrente, uma medida
antecipatória típica é uma admissão provisória do concorrente. Mas é apenas provisória; no fim, o
concorrente poderá ter novamente de sair do concurso.

A provisoriedade dos efeitos reflecte-se na possibilidade do art. 124.º/1: revisão das decisões quando se
comprove uma modificação das circunstâncias.

4) Impossibilidade de obter os mesmos efeitos do processo principal, ou pelo menos efeitos com o mesmo
alcance: mais uma vez, a medida de admissão provisória produz tendencialmente os mesmos efeitos do
processo principal, caso o acto de exclusão seja inválido, mas não produz efeitos com o mesmo alcance,
pois a admissão é provisória – a qualquer momento, o julgamento da causa principal pode determinar a
exclusão do concorrente do concurso.

2. Tutela cautelar na justiça administrativa: a universalidade das providências admitidas

É um instrumento ao serviço da tutela jurisdicional efectiva - art. 268.º/4, parte final, da CRP. Porque é
que o legislador constitucional incluiu esta tutela na revisão de 97?
i) O contencioso anterior era muito parco na admissibilidade de providências, sendo que a

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tutela cautelar correspondia apenas à suspensão da eficácia (intimação para consulta,


intimação para comportamento). O CPTA introduziu uma verdadeira revolução: vem
consagrar o princípio da atipicidade das medidas cautelares, ou da universalidade das
medidas cautelares, previsto no art. 112.º À luz deste artigo, podem ser requeridas a
adopção de quaisquer providências que se mostrem adequadas. É certo que o n.º 2 tem um
elenco, todavia este é meramente exemplificativo – mesmo não estando prevista, qualquer
medida que na perspectiva do autor seja adequada pode ser decretada. O n.º 2, 1ª parte, fala
ainda das providências especificadas no Código de Processo Civil, remissão que é
desnecessária.
ii) Também podem ser requeridas providências em relação a qualquer actuação
administrativa, até (e isto era muito discutido) os regulamentos administrativos.

O art. 112.º n.º 2 contém alguns exemplos de providências, quer de medidas antecipatórias, quer de
conservatórias:
i) Providência conservatória: destina-se a manter uma determinada situação de facto durante
o decurso do processo principal. São exemplos:
a. A suspensão da eficácia do acto administrativo ou de uma norma - alínea a);
b. O arresto: quem tem uma dívida, fica com os bens como que congelados (está no
Código de Processo Civil).
ii) Providência antecipatória: destina-se a uma composição provisória do litígio,
antecipando de alguma forma a tutela principal mas restringindo os seus efeitos em função
da provisoriedade. Art. 112.º/2: a maioria das medidas são antecipatórias:
a. Admissão provisória a um concurso;
b. Atribuição provisória da disponibilidade de um bem;
c. Autorização provisória para prosseguir actividade;
d. Regulação provisória de uma situação jurídica.

Quanto à intimação para a adopção ou abstenção de uma conduta por para da Administração, depende:
pode ser antecipatória ou provisória.

3. Critérios para a atribuição das providências

Art. 120.º: em geral, a decisão das providências cautelares tem em vista dois critérios de decisão, em
conjugação.
i) Fumus boni iuris: significa a probabilidade séria da providência da acção principal. O que
o juiz vai apreciar, ao abrigo deste primeiro critério, através daquela cognição sumária, é a

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probabilidade ou verosimilhança da procedência da acção principal, ou seja, se é mais ou


menos provável que o requerente vá ter sucesso na acção principal (a introdução deste
critério significa a eliminação do dogma da presunção da legalidade do acto
administrativo).
ii) Periculum in mora: diz respeito à perigosidade, ou seja, ao receio fundado da lesão do
direito em consequência da demora do processo principal. Através de um juízo de
prognose, o juiz vai avaliar, perante uma hipotética e futura acção principal, se existe o
perigo de esta sentença se tornar inútil, quer porque entretanto se consolidou um situação
de facto consumada incompatível com o processo principal, quer porque entretanto se
produziram na esfera jurídica do requerente prejuízos de difícil reparação. Assim, temos
dois tipos de periculum in mora:
a. Perigo da infrutuosidade: por exemplo, uma ordem de demolição é
impugnada mas não se pede uma providência cautelar. O prédio é demolido,
logo a decisão da impugnação não tem qualquer efeito útil.
b. Perigo do retardamento: por exemplo, numa acção de responsabilidade civil
pelos danos resultantes de um tratamento cirúrgico. Pede-se a indemnização,
que o particular precisa para realizar uma tratamento necessário para
corrigir. Se não for dada uma providência, quando vier a indemnização já o
particular não se consegue curar.

Mas a justiça administrativa acrescenta um outro critério a estes dois critérios do Processo Civil, que é o
do princípio da proporcionalidade. Segundo o princípio da proporcionalidade, o juiz tem de ponderar se
os danos concretos que resultarão para os interesse públicos e privados decorrentes da não concessão da
providência são superiores aqueles que decorrerão dessa concessão. A ponderação entre interesses
públicos e privados vai procurar averiguar se os interesses decorrentes da sentença são superiores aos que
resultarão da concessão da providência. A novidade não reside apenas na consagração do princípio, mas
no facto de serem considerados quer os interesses públicos, quer os privados – tradicionalmente, na decisão
de concessão apenas se ponderava o interesse publico e não o interesse privado do requerente. O sentido
deste princípio enquanto critério articula-se com o princípio constitucional da prossecução equilibrada
do interesse publico dentro do respeito pelos direitos dos particulares.

Como é que estes três critérios se articulam? As três alíneas do art. 120.º/1 reportam-se a situações
diferentes:
i) Alínea a): situações em que é evidente a procedência da pretensão a formular no processo
principal.
ii) Alínea b): providências conservatórias.

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iii) Alínea c): providências antecipatórias.

Alínea a): quando o juiz reconhece que é evidente a procedência da pretensão, está cumprido o
primeiro critério do fumus boni iuris. Exemplos de situações em que é evidente a procedência da
pretensão:
i) Impugnação de acto manifestamente ilegal;
ii) Impugnação de acto de aplicação de normas anuladas;
iii) Impugnação de acto idêntico a outro anteriormente anulado ou declarado nulo ou
inexistente.
iv) Mas há outros casos: por exemplo, quando a norma já foi considerada ilegal em 3 casos
concretos.

A lei permite que, quando haja evidência da procedência da acção, o juiz decrete automaticamente a
providência sem a apreciação dos outros dois critérios: sendo evidente que o particular tem razão, não
haverá, em regra, razão para deixar de conceder a providência. Note-se que o art. 120.º/2 faz aplicar o
princípio da proporcionalidade apenas às situações da alínea b) e c), logo aqui o juiz também está
dispensado de fazer a análise do princípio da proporcionalidade. A vantagem desta alínea é a de ser um
tributo a justiça material, assegurando totalmente a utilidade da sentença; mas tem também um perigo:
pode desvirtuar a cognição sumária da causa, porque podem as partes ser tentadas a solicitar ou o juiz ser
tentado a efectuar um juízo mais profundo sobre a probabilidade séria da existência do direito. O próprio
requerente, para tentar evitar que o juiz analise os outros dois requisitos, pode carregar de tal forma o
pedido de providência que exija ao juiz um conhecimento maior da causa. Assim, deve-se fazer uma
interpretação restritiva desta alínea, aqueles casos em que é manifesta a procedência da acção ( V IEIRA DE
A NDRADE defende mesmo que o alcance desta alínea se deveria limitar, no contexto das acções
administrativas especiais, às situações de nulidade; porém, mesmo aqui, tem de se considerar a
eventualidade de uma ponderação de interesses).

 Alínea b): diz respeito às providências de carácter conservatório. Vão aqui funcionar os três requisitos,
residindo a especificidade destas providências no critério do fumus boni iuris, sobretudo comparando
com a c): se olharmos para o periculum in mora, comparando as duas alíneas, vamos verificar que o texto
e idêntico; e o n.º 2 (proporcionalidade) aplica-se a ambas as alíneas. Quanto ao primeiro critério, nas
providências de carácter conservatório, não é preciso que se prove ou que o juiz fique com a convicção da
probabilidade de que a pretensão seja procedente, bastando que não seja manifesta a falta de
fundamento – juízo negativo de fumus boni iuris. Isto é assim uma vez que a lei parte do princípio de que
uma providência conservatória, comparada com uma antecipatória, é, por definição, menos intrusiva na
actividade administrativa ou menos prejudicial para os interesses do requerido e dos contra-interessados.

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 Alínea c): diz respeito às providências de carácter antecipatório. Aqui, exige-se um juízo positivo de
fumus boni iuris, ou seja, tem de ser provável que a causa principal virá a ser julgada procedente. É
natural que a providência antecipatória tenha um requisito mais exigente: na antecipatória, o particular
está a tentar obter uma tutela com efeitos de conteúdo semelhante aquele que irá obter na tutela
principal; ainda que haja uma regulação apenas provisória, já há uma antecipação em termos de
conteúdo da sentença a proferir na acção principal.

4. Conteúdo da decisão e respectiva garantia

O art. 120.º/3 prevê dois princípios relativos ao tipo e ao conteúdo da providência: o princípio da
adequação e o da necessidade. Dada a atipicidade presente no nosso sistema de medidas cautelares, a
única coisa que se exige é que a providência seja adequada e o menos gravosa possível para os interesses
públicos e privados. A grande novidade do CPTA diz respeito à própria modelação da decisão pelo
tribunal - nos termos deste artigo, pode:
i) Cumular providências cautelares, ou seja, juntar várias providências. V IEIRA DE A NDRADE
defende que esta possibilidade se refere exclusivamente às contra-providências: são
providências decretadas pelo juiz que visam diminuir o prejuízo para os interesses do
requerido e contra-interessados, como a imposição de garantias, art. 120.º/4.
ii) Substituir a providência requerida pelo particular, que terá de ser uma providência que
satisfaça em termos adequados as pretensões do requerente mas que cause menos
prejuízos;
iii) Apor um termo ou condição, art. 122.º/2;
iv) Substituir a decisão sobre a concessão da providência pela imposição de uma prestação de
garantia financeira, art. 120.º/6, quando o pedido seja de pagamento de quantia certa e não
tenha natureza sancionatória.

Conseguimos perceber que há aqui uma compressão do princípio do pedido, em homenagem a uma ideia
ponderada de necessidade, precisamente para assegurar que seja realmente decretada a providência
menos gravosa.

A providência está rodeada de garantias, previstas no art. 127.º.


i) Têm carácter impositivo;
ii) O tribunal pode fixar uma sanção pecuniária compulsória (nº 2);
iii) São objecto de execução coerciva ( n.º 1);
iv) O incumprimento da providências está sujeito a responsabilidade disciplinar, civil e penal

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(n.º 3, com remissão para o art. 159.º).

5. Decretamento provisório da providência cautelar

Apesar de o decretamento provisório estar sistematicamente enquadrado no Capítulo II (art. 131.º), onde
vêm consagrados os regimes específicos das providências, esta inserção é enganadora: o decretamento
não é uma providência específica, mas sim um instituto que tem aplicação relativamente a todas as
providências cautelares. Este artigo equivale aquilo a que V IEIRA DE A NDRADE designa como um
“processo pré-cautelar”, constbituindo um “aspecto suplementar do regime cautelar que vale para
qualquer providência em situações de especial urgência”.

 Qual o objectivo? É o de assegurar a utilidade da sentença da providência cautelar, tendo a mesma


função em relação à providência que a providência em relação ao processo principal. Não obstante a
tramitação acelerada, pode haver situações de urgência que não se compadeçam com aqueles 5 dias:
aqui, a decisão corre no prazo de 48h. No fundo, o periculum in mora reporta-se ao retardamento do
próprio processo cautelar.

 Qual o pressuposto? A providência tem de se destinar a tutelar direitos, liberdades e garantias que não
se possa tutelar em tempo útil; ou a assegurar uma situação de especial urgência (art. 131.º/1). O
funcionamento destes dois pressupostos é alternativo. Temos de associar o decretamento provisório à
intimação para protecção dos direitos, liberdades e garantias (art. 109.º/1): é pressuposto da intimação que
a tutela dos direitos, liberdades e garantias não fique plenamente assegurada com o decretamento
provisório. Poderá haver situações em que o decretamento não é suficiente: este é, por natureza
provisório, logo os efeitos são meramente provisórios; ora, pode precisamente acontecer que a tutela dos
direitos, liberdades e garantias exija uma resolução definitiva. Por exemplo: na obstrução à realização de
uma manifestação, não basta o decretamento provisório, pois não dá resposta ao exercício da
manifestação – não faz sentido autorizar provisoriamente uma manifestação. Porém, o art. 131.º não está
pensado exclusivamente para os direitos, liberdades e garantias: aplica-se a todas as situações de
urgência, o que é bastante criticado.

 O decretamento é ex officio: o próprio juiz pode decretar provisoriamente a providência, art. 131.º/3.

 Quais os critérios? O juiz está dispensado de observar os critérios de decisão do art. 120.º, ou seja, o juízo
é ainda mais sumário que o da concessão da providencia cautelar. Tem apenas de reconhecer uma
situação de lesão iminente e irreversível do direito e de ponderar os danos que o decretamento provisório
implica para os interesse públicos e privados.

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 Tramitação:
i) A providência é decretada no prazo de 48h, art. 131.º/3.
ii) O decretamento pode ser efectuado sem realização do contraditório, o que resulta a
contrario do 131.º/4; quando entenda que é necessário realizar o contraditório, pode a
audição ser realizada por qualquer meio de comunicação (ex: contacto telefónico);
iii) A decisão do decretamento, n.º 5, não é susceptível de impugnação, porque é, nos termos
do n.º 6, objecto de revisão. É dada as partes um prazo para se pronunciarem, e depois o
juiz tem 5 dias para rever a decisão: coloca-se a questão de saber se esta decisão é a decisão
definitiva da providência ou apenas uma decisão de revisão do decretamento, à qual se
seguirá a decisão da providência cautelar. V IEIRA DE A NDRADE entende que é apenas uma
decisão provisória de revista; porém, RAQUEL M ONIZ tem dúvidas porque prolonga o
procedimento durante muito tempo.

6. Convolação do processo cautelar em principal

O art. 121.º diz respeito à convolação do processo cautelar em principal, uma das novidades da reforma
do contencioso. A convolação do processo cautelar em principal traduz-se na antecipação processual do
juízo de fundo, transformando o processo cautelar no principal. A convolação está sujeita a dois
pressupostos:
i) Manifesta urgência: esta é aferida em função da natureza das questões e gravidade dos
interesses envolvidos. Por exemplo, há doutrina que densifica este critério dizendo que é
sempre uma situação de manifesta urgência os processos relativos à integração dos
trabalhadores na Administração Pública, associando esta urgência aos direitos
fundamentais.
ii) Existência de todos os elementos necessários à decisão da causa principal: este é um
elemento que se exige pela própria razão de ser da convolação do processo. O juiz só pode
avaliar se está em condições de avaliar a causa principal se tiver todos os elementos de
causa e de direito, ou seja, têm de estar presente todos os elementos que estariam presentes
na causa principal. Esta situação poderá ocorrer mais facilmente quando esteja em causa
apenas uma questão de direito ou quando a providência tenha sido requerida como
incidente do processo principal.

Isto levanta algumas questões.

 Será que a convolação pode de ser requerida? O art. 121.º/1 diz que o juiz pode antecipar o juízo sobre a

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causa principal, ou seja, oficiosamente, quando o juiz conclua que está numa situação de urgência e
tenha todos os elementos necessários, pode antecipar o juízo da causa. Todavia, não esclarece se as
partes podem pedir esta antecipação, logo a questão mantém-se. Se fosse possível requerer a antecipação,
esta disposição poderia pôr em perigo também aquela ideia de cognição sumária: as partes vão ser tentadas a
juntar todos os elementos necessários ao processo para conseguir que o juiz convole o processo cautelar
em principal, desvirtuando o sentido das providências. A uma cognição sumária contrapõe-se uma
prova sumária.

 A convolação está igualmente sujeita à realização de contraditório, durante 10 dias. Neste prazo de 10
dias, o contraditório destina-se a quê? As partes não têm de se pronunciar sobre o fundo, o contraditório
só serve para a decisão de antecipação da causa principal: pronunciam-se antes sobre a decisão do juiz de
antecipar a causa principal. Esta sentença, esta decisão de antecipação, é uma decisão autónoma, art.
121.º/2 – julga apenas a questão de saber se pode antecipar o juízo de fundo (daí a previsão de
impugnação desta decisão).

 A questão mais relevante é a de saber se uma decisão proferida ao abrigo do art. 121.º, isto é, a
antecipação do juízo, é uma decisão definitiva ou não. VIEIRA DE ANDRADE diz que se trata apenas de
uma “decisão provisória, ainda que produza na prática os efeitos de uma decisão de fundo”. Esta não é,
assim, a decisão definitiva do litígio. Este entendimento não é o mais adequado: se dizemos que o art.
121.º representa uma convolação do processo cautelar em processo principal, então o que o art. 121.º vai
permitir é que o juiz, em vez de decidir a providencia cautelar, produza uma decisão de mérito. Se não
fosse para tomar decisão definitiva, então bastava exigir o pressuposto da urgência, o que não sucede: são
necessários todos os elementos para a resolução definitiva do caso. Parece que o que o art. 121.º pretende
é exactamente uma resolução definitiva e não uma resolução provisória com os mesmos efeitos que a
definitiva.

7. Algumas providências em especial

7.1 Suspensão da eficácia dos actos administrativos

A suspensão da eficácia dos actos administrativos é a providência clássica da justiça administrativa, o que
se explica porque, quando é impugnado um acto, a mera impugnação não suspende os efeitos do acto; ou
seja, o simples facto de alguém reagir na justiça administrativa contra um acto não impede que este
continue a produzir os seus efeitos. Esta é uma consequência do sistema de administração executiva.
Assim, para assegurar a suspensão da eficácia, é necessário esta providência cautelar.

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Uma conduta processual diligente de alguém que está a sofrer prejuízos por um acto administrativo ilegal
exige que o interessado impugne o acto e peça a sua suspensão (sendo que o pode fazer antes). Isto é
relevante em sede de responsabilidade civil extracontratual: os danos provocados pelo acto ilegal são
imputados ao próprio interessado, ou seja, pode-se diminuir a indemnização se este não tiver requerido
imediatamente uma providencia cautelar.

O requerimento da providencia já vai suspender a eficácia do acto até a decisão cautelar - art. 128.º/1, e
gera duas obrigações na esfera da Administração:
i) A simples recepção pela autoridade administrativa do requerimento da providência cria
na esfera jurídica da Administração o dever de não executar o acto administrativo.
ii) Além de ter esta dimensão negativa de criar a obrigação de non facere, o requerimento gera
outra obrigação: nos termos do n.º 2, obriga a Administração a impedir que os serviços
competentes e interessados continuem a executar o acto – ou seja, não só esta obrigada a
não executar, como está obrigada a impedir que serviços e interessados o façam.

Notas sobre o n.º 2:


i) Adopta um conceito amplo de execução de acto administrativo – só há um problema de
execução coerciva quando se trata de um acto que cria uma obrigação para o particular, ou
seja, se este não cumprir, aí coloca-se o problema da execução, Aqui, quando se fala de
execução, não é neste sentido de execução coerciva contra o particular, significa que estão em
causa todas as actuações jurídicas ou materiais desenvolvidas pela Administração ou pelos
particulares ao abrigo de um dado acto administrativo, destinando-se a retirar todos os
efeitos da prática do acto. É por isso que aqui se inclui a construção de uma casa pelo
particular ao abrigo de uma licença (a licença, enquanto acto favorável, nunca seria
passível de execução coerciva).
ii) O que o n.º 2 diz é que, se um vizinho requerer a suspensão da eficácia da licença da
construção, fica a Administração obrigada a impedir que o particular continue a construir
a casa. Se entretanto o titular da licença começar a construção ou a prosseguir, como o n.º 2
obriga a Administração a impedir que o interessado execute, quase que a obriga numa
situação destas a praticar uma ordem de demolição, ou, pelo menos, de suspensão dos
trabalhos de construção. E podemos dizer que este acto é um acto devido.
iii) Isto é muito discutido, chegando-se a debater a constitucionalidade deste preceito – permite
um certo "terrorismo" entre os cidadãos, pois basta um requerimento do vizinho para que a
obra se interrompa. É certo que, como diz o art. 126.º, pode haver responsabilidade civil,
mas como se prova que o vizinho requereu a providencia com a intenção de prejudicar
(dolo)? A mera suspensão e a criação de um dever teve em pouca conta os interesses dos

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

contra interessados, potenciando situações deste tipo. É certo que a Administração pode,
quando receber o requerimento, opor uma resolução fundamentada nos termos do art.
128.º/1, em que reconheça que a não execução do acto seria gravemente prejudicial para o
interesse público. Esta resolução fundamentada ég posteriormente objecto de controlo por
parte do tribunal.

7.2 Suspensão da eficácia de normas

Esta é uma providência nova, que não existia na justiça administrativa anterior – discutia-se se se podia
aplicar analogicamente a providência da suspensão dos actos a normas, mas isto era duvidoso. Esta é uma
providência que tem pressupostos diferentes quanto ao tipo de processo principal – declaração de
ilegalidade com força obrigatória geral, art. 130.º/2, ou com efeitos circunscritos ao caso concreto, art.
130.º/1.

Coloca-se a questão de saber se, quanto esteja em causa a suspensão da eficácia de normas dependente de
uma acção de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, uma vez verificado que já houve
uma desaplicação, isto não levará sempre ao deferimento da providência. Sempre que o requerente seja
um particular (não o Ministério Público, que está dispensado do requisito) e demonstre que a norma foi
desaplicada em três casos concretos, esta providência deve ser concedida ao abrigo do art. 120.º/1/a), que
consagra os casos em que é evidente a procedência da acção. Se este artigo é aplicável em relação a
situações de actos semelhantes, por maioria de razão aplica-se ao casos em que a mesma norma é
declarada ilegal três vezes, logo deve ser sempre concedida, sem necessidade de demonstrar os requisitos
do periculum in mora e proporcionalidade.

O art. 130.º/4 remete a matéria da suspensão da eficácia para os dois artigos anteriores, designadamente o
art. 128.º que acabámos de analisar: também quando esteja em causa a suspensão da eficácia de normas, a
apresentação do requerimento impede que Administração aplique aquela norma.

7.3 Regulação provisória do pagamento de quantias

O art. 133.º diz respeito à regulação provisória do pagamento de quantias, providência que recebe uma
certa influencia do processo civil. Esta é uma providência nova no contencioso administrativo, e de
natureza antecipatória. Notas:
i) Qual o efeito? Gera o arbitramento provisório, isto é, a atribuição provisória, de uma
quantia pecuniária: esta providência é assim muito importante associada às acções de
responsabilidade civil extracontratual.

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ii) Pressupõe que o interessado esteja numa situação de grava carência económica; que seja
previsível que acarrete prejuízos graves; e ainda que seja provável que a pretensão venha a
ser julgada favorável (não é um pressuposto autónomo).
iii) Estas quantias que o requerente vai receber, se estiver em causa o pagamento de uma
indemnização, são depois deduzidos no quantum indemnizatório. O que se pretende é
que os interessados tenham meios de subsistência durante o processo.

7.4 Providências relativas aos procedimentos pré-contratuais

Estas providência estão previstas no art. 132.º, e trata-se de “providências cautelares especificadas
destinadas a corrigir a ilegalidade ou a impedir que sejam causados outros danos aos interesses em
presença na fase pré-contratual, incluindo a suspensão do procedimento de formação do contrato”.

Qual o seu âmbito de aplicação?


i) O âmbito de aplicação deste artigo é mais amplo que o âmbito de aplicação do contencioso
pré-contratual urgente: estão presentes providências que podem ser pedidas na pendência
quer do contencioso pré-contratual urgente, quer no contencioso pré-contratual não
urgente (acção administrativa comum). Isto não deixa de ser estranho, pois estas
providencias têm na sua génese também a directiva recursos, sendo que o legislador
estendeu aqui a todos os casos mas não o fez no contencioso pré-contratual – há aqui uma
incoerência parcial.
ii) Estão em causa providências relativas a quaisquer actuações praticadas no âmbito do
procedimento pré-contratual – actuações e não apenas actos administrativos, já que apesar
do teor literal do n.º 1, que começa por se referir à anulação ou declaração de nulidade ou
inexistência dos actos, a certa altura, ainda nesse número, fala-se em corrigir ilegalidades e
no n.º 7 fala-se na ilegalidade de especificações. Logo, estão aqui abrangidas todas as
hipóteses: quer reacções contra actos administrativos, quer reacções contra peças do
procedimento.
iii) Também não restringe o âmbito dos contratos aos quais se aplica – ao contrário do que
sucede no art. 100.º, aplica-se a todos os contratos celebrados pela Administração que se
integrem no âmbito da justiça administrativa.

Outras notas sobre o art. 132.º:


i) As providências podem ser de natureza conservatória ou antecipatória: o art. 132.º refere-
se à correcção de ilegalidades, que é uma providência de natureza antecipatória; e à
suspensão do procedimento de formação de contrato, que é uma medida conservatória.

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ii) Ao abrigo desta norma, também pode ser decretada a suspensão da eficácia do contrato que
venha a ser celebrado na pendência da acção principal? Numa situação destas, quando o
contrato é celebrado na pendência da acção principal, portanto deve entender-se que se
pode pedir também, quando o pedido é ampliado, a suspensão da eficácia do contrato. O
que não é necessário é requerer logo a suspensão da eficácia do contrato ao abrigo do art.
132.º: como vale o princípio da atipicidade, pode-se retirar esta providência da cláusula
geral.
iii) No n.º 6, faz-se uma densificação específica dos critérios necessários. Começa por dizer
que, sem prejuízo do princípio da proporcionalidade não se aplicar nos casos de
evidência, nos demais casos (providências antecipatórias e conservatórias) releva o
princípio da proporcionalidade. Este número pretende complementar os critérios do art.
120.º, logo não está a dispensar o fumus bonus iuris e o periculum in mora. Só que a
redacção deste artigo é um pouco estranha, pois parece dizer precisamente o contrário
daquilo que a norma pretende significar: diz-se que se concede a providência se os danos da
sua adopção forem superiores aos da não adopção. Isto não faz qualquer sentido – refere-se
à recusa e não à concessão.
iv) O n.º 7 contém uma situação especial de convolação do processo cautelar em principal, sendo
uma concretização de uma das situações em que se aplica o art. 121.º (artigo genérico). Diz
respeito às situações em que o problema da invalidade a ser julgado é um problema que diz
respeito a disposições das peças do procedimento: quando, no processo cautelar, o juiz
entenda que tem todos os elementos que lhe permitam concluir pela invalidade das
disposições da peça do procedimento, pode determinar imediatamente a correcção das peças.
Ao determinar esta correcção das disposições constantes das peças, o juiz vai no fundo
decidir a causa principal. Por exemplo: no programa do procedimento diz-se que o prazo
para a apresentação das propostas é inferior ao limite mínimo do CCP, e os concorrentes
impugnam o programa com fundamento na violação do CCP. Aqui, o juiz, em vez de
decidir a providência (ex: suspensão da eficácia da disposição), determina ele próprio a
substituição do prazo constante do programa pelo prazo supletivo, que existe no CCP.
Decide, assim, a causa principal, como que declara a invalidade da disposição e emitindo
uma sentença substitutiva. Isto não viola o princípio da separação dos poderes pois é uma
situação estritamente vinculada – a Administração não pode fixar um prazo mais curto
pois isso viola as garantias dos particulares e prejudica a concorrência. Embora se refira
apenas a ilegalidades dos "documentos do concurso", estão aqui abrangidas todas as
ilegalidades das disposições constantes das peças de procedimento (fala-se em
documentos pois esta disposição é anterior ao CCP).

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CAPÍTULO VI: Elementos essenciais da causa e pressupostos processuais (V IEIRA DE A NDRADE, A Justiça
Administrativa, pp. 251-284)

1. Elementos essenciais da causa

O que é que são os elementos essenciais da causa? São elementos, componentes, que:
i) Têm influência no sucesso da acção;
ii) Servem para delimitar posteriormente o próprio caso julgado;
iii) Servem para determinar quais os poderes dispositivos das partes;
iv) E, sobretudo, servem para determinar quais os poderes de cognição do tribunal.

Dividem-se em dois:
i) Condições de existência da acção;
ii) Condições de validade da acção.

1.1 Condições de existência da acção

As condições de existência dizem respeito, como a própria designação indica, aos elementos que são
imprescindíveis para que uma determinada acção se possa considerar proposta. Quais são estas
condições de existência? São duas: o tribunal e as partes. Costuma-se dizer que a propositura de uma
acção faz nascer uma relação processual entre as partes e entre estas e o tribunal, uma relação no fundo
trilateral. Quanto ao tribunal, já falámos da organização dos tribunais administrativos (remissão para esta
matéria).

Quanto às partes, estas são designadas por "sujeitos processuais". Temos:


i) Autor, que é aquele que propõe a acção;
ii) Réu, que é aquele contra quem é proposta a acção;
iii) Assistentes:
a. Assistentes do autor (aqueles sujeitos que têm um interesse paralelo ao do autor,
em que a causa seja julgada procedente) ou ad ajuvando. No Direito
Administrativo, aos assistentes do autor dá-se o nome de co-interessados.
b. Assistentes do réu (que têm interesse em que a causa seja julgada improcedente)
ou ad opponendum. No Direito Administrativo, são os contra-interessados.

Imaginemos que a Câmara atribui uma licença a A. B, vizinho, impugna a licença. B é autor, o réu é o
Município, e A é o contra-interessado. Quem poderiam ser co-interessados? Outros vizinhos de A, que

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têm interesse em que a licença seja julgado. No Direito Administrativo, os mais importantes são os
contra-interessados: a acção tem de ser sempre proposta quer contra o réu, quer contra os contra-
interessados. No caso da impugnação de actos administrativos, o art. 57.º do CPTA, para além da
entidade autora, tem de se demandar os contra-interessados. O Município e A formam assim uma
situação de litisconsórcio passivo necessário. Os contra-interessados têm todos os poderes das partes, por
isso até se coloca a questão de saber se no processo administrativo estes são verdadeiros assistentes - por
ex., podem arguir vícios diferentes dos invocados.

No processo administrativo há também uma outra especificidade, que tem a ver com o papel de enorme
relevo do Ministério Público, que embora não seja em rigor uma parte do processo, não deixa de ser
importante no processo administrativo, pois tem relevantes poderes. Estes manifestam-se sobretudo na
acção administrativa especial, art. 85.º do CPTA: pode solicitar a realização de diligências instrutórias,
invocar causas de invalidade diversas, etc. Tem um relevante papel no processo administrativo, o que é
uma consequência da influência do contencioso administrativo francês (o "advogado do Estado"). Já
tivemos uma maior intervenção do Ministério Público no contexto do contencioso anterior, em que se
admitia não só esta intervenção nos termos do art. 85.º, no momento inicial (posterior à citação), mas
ainda se admitia a vista final: o Ministério Público poderia intervir imediatamente antes do juiz proferir a
sentença. Esta vista final (que existe no contencioso francês) foi considerada inconstitucional por violar o
princípio do contraditório, nomeadamente porque podia invocar novos vícios e as partes não tinham
oportunidade para se defender.

1.2 Condições de validade da acção

1) O pedido: o pedido corresponde à pretensão do autor, ou seja, aos efeitos jurídicos pretendidos. A
grande novidade do processo administrativo face ao contencioso anterior é que agora, tal como no
Processo Civil, existem vários tipos de pedidos: temos a possibilidade de formulação de pedidos
constitutivos (anulação do acto, do contrato), declarativos (declaração de ilegalidade de regulamentes,
declaração de nulidade do acto) e condenatórios (condenação à prática do acto devido, condenação da
Administração à abstenção ou adopção de um comportamento, etc.). Por força do princípio da tutela
jurisdicional, impõe-se que seja possível deduzir todos os pedidos.

Há também uma ampla possibilidade de cumulação de pedidos, art. 4.º, que pretende dar resposta mais
uma vez as exigências do princípio tutela jurisdicional efectiva. O art. 47.º diz respeito à cumulação dos
pedidos da acção administrativa especial com outros pedidos. Destaca-se:
i) Art. 4.º/2/a), que é similar ao art. 47.º/2/b): cumulação com o pedido de condenação da
Administração ao restabelecimento da situação actual hipotética. Este restabelecimento

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

era uma questão anteriormente versada apenas no processo executivo, e que agora pode
ser antecipada para o próprio processo declarativo, conferido agilidade e celeridade ao
processo.
ii) Art. 4.º/2/d): cumulação com o pedido de anulação do contrato.
iii) Art. 4.º/2/f): cumulação de qualquer pedido com o condenatório.

A questão que se pode colocar quanto à cumulação diz respeito às formas de processo: é possível cumular
pedidos que seguem a forma de acção especial com pedidos que, sendo independentes, seguiriam a
forma de acção comum (exemplo: cumulação do pedido de anulação do acto administrativo com o
pedido de indemnização)?. O art. 5.º dá resposta a esta questão: a forma a seguir é a da acção
administrativa especial, numa manifestação da força atractiva desta acção relativamente à tramitação da
acção comum – enquanto a forma da acção especial é uma forma seguida segundo uma tramitação
pensada especificamente para o processo administrativo, a acção comum segue as regras da tramitação
do processo civil. A relação de especificidade atrai para si o julgamento de uma causa que, sendo
independente dela, seria julgada segundo as regras do processo civil.

Como resulta do art. 4.º/1, esta cumulação de pedidos pode ser :


i) Simples : o autor pretende que o tribunal dê procedência a ambos os pedidos.
ii) Subsidiária: há uma relação de prejudicialidade ou dependência, em que o segundo
pedido é apreciado apenas se o tribunal considerar improcedente o primeiro. Por
exemplo, a impugnação do acto relativo à formação do contrato é prejudicial
relativamente à impugnação do contrato por invalidade derivada.

2) A causa de pedir: são as razões de facto e os fundamentos de direito que justificam a acção, isto é, que
fundamentam o pedido ou a pretensão do autor. Quando se impugna um acto administrativo, a causa de
pedir é a invalidade do acto; quando se pede uma indemnização, a causa de pedir é o facto ilícito e os
danos causados; numa acção por incumprimento do contrato, a causa de pedir é precisamente o
incumprimento das cláusulas, etc.

No caso dos actos administrativos, é possível cumular várias causas de pedir: a invalidade do acto pode
ter várias fontes, vários vícios. Assim, quando se impugna um acto administrativo, na prática devem-se
invocar sempre vários vícios – cumulação de várias causas de pedir. Isto sobretudo quando alguns deles
tenham apenas natureza formal, pois os vícios de natureza formal não impedem a renovação do acto
administrativo. Exemplo: não vale a pena intentar uma acção por violação da audiência dos interessados
(excepto em procedimentos sancionatórios), pois, se for esse o único vício, pode acontecer que a
Administração realize a audiência e pratique um acto com o mesmo conteúdo. E também se o juiz

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

considerar que o acto só teria vícios formais e chegar à conclusão que o acto seria o mesmo sem os vícios,
o tribunal até pode aproveitar o acto, não o anulando, e proferindo uma sentença de aproveitamento.
Esta possibilidade não está expressamente prevista na nossa lei (ao contrario do direito alemão), mas à
luz das revisões que se estão a fazer no CPA e CPTA, vai passar a estar consagrada.

Na acções impugnatórias, existe uma terceira condição de validade:

3) O objecto mediato: é o acto administrativo ou norma administrativa cuja validade é posta em causa.
Será que isto é um verdadeiro elemento de validade? Não dirá respeito ao pedido? Diz-se que são
elementos de validade pois não é possível recorrer à acção impugnatória sem existir um acto
administrativo ou um regulamento, logo não é apenas um elemento do pedido. A consequência da
inexistência não é uma mera decisão de improcedência da acção, é mais gravosa.

1.3 Consequências da falta dos elementos essenciais

Qual a consequência da falta de uma condição de existência ou validade? Em regra, a falta de um destes
elementos determina a ineptidão da petição inicial, determinando por conseguinte a recusa da petição
pela secretaria.

Todavia, há algumas nuances na acção administrativa especial – ver art. 80.º do CPTA. Só há recusa da
petição pela secretaria em três situações: falta da indicação do tribunal, falta da indicação das partes ou
falta da identificação do objecto. Nos outros casos, a questão não é resolvida neste momento, mas sim
aquando do despacho saneador, ou seja, o processo avança mais algumas partes. No despacho saneador,
também se verificam os pressupostos processuais e outros elementos que obstem ao conhecimento do
mérito (art. 87.º, 88.º e 89.º). O despacho saneador permite que sejam supridas excepções dilatórias. A
falta dos elementos essenciais nesta fase tem como consequência a absolvição do réu da instância, art. 89.º
(mistura elementos essenciais com pressupostos processuais).

2. Pressupostos processuais

2.1 Noção

O que são pressupostos processuais? São as condições que têm e estar verificadas para que o tribunal está
obrigado a apreciar o mérito da causa, equivalendo às excepções dilatórias do processo civil (art. 88.º e
89.º). No contencioso anterior, distinguia-se entre as condições de procedibilidade da acção
(correspondem aos actuais pressupostos processuais) – condições em que o tribunal está obrigado a

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

apreciar o mérito; e as condições de procedência da acção – condições que têm de estar verificadas para
se poder julgar a acção procedente. Dizemos "obrigado" pois o juiz é obrigado a decidir; mas pode haver
situações em que tenha de decidir mas não possa julgar o mérito da causa.

2.2 Classificação

1) Primeira classificação:
i) Pressupostos positivos: são aqueles cuja verificação obriga o juiz a conhecer o mérito da
causa;
ii) Pressupostos negativos: são aqueles cuja verificação impede o juiz a conhecer o mérito da
causa. Para que o juiz possa conhecer do mérito, têm de estar verificados os pressupostos
negativos e não podem estar verificados os pressupostos negativos (o único pressuposto
que não se pode verificar é a aceitação do acto).

2) Segunda classificação:
i) Pressupostos gerais ou comuns: são pressupostos que se verificam relativamente a todas as
acções.
ii) Pressupostos especiais: são específicos de algumas acções, por exemplo, da acção
administrativa especial.

3) Terceira classificação:
i) Pressupostos absolutos: são aqueles que são de conhecimento oficioso, o tribunal pode
conhecer deles independentemente de serem invocados pelas partes, e geram
automaticamente a absolvição do réu da instância.
ii) Pressupostos relativos: são aqueles que podem ser invocados pelas partes e cujo
conhecimento pode ser irrelevante ou insanável.

2.3 Consequências da falta dos pressupostos processuais

Em regra, quais as consequências da falta de pressupostos? A absolvição do réu da instância, ou seja, em


regra o conhecimento dos pressupostos processuais é feito no momento do despacho saneador (art. 87.º
e segs.) e dá origem ao não conhecimento pelo tribunal do mérito da causa, ou seja, à prolacção pelo
tribunal de uma sentença de absolvição da instância. Por oposição às sentenças de absolvição do pedido,
significa que o processo terminou por razões processuais e não materiais, posto que o juiz não chega a
apreciar o mérito da causa.

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

Na acção especial, procura-se associar o princípio de favorecimento do processo, evitando que os


processos terminem com decisões de absolvição da instância. Se há uma decisão destas, nada impede que
o mesmo autor venha a propor novamente a acção com o mesmo objecto, pois a formação de caso
julgado só ocorre quando há uma decisão do mérito do pedido. O legislador tenta aproveitar o pedido,
caso contrário há uma perda de actos processuais. O art. 88.º (exemplo típico) prevê vários tipos de
situações:
i) A falta de pressupostos processuais pode ser corrigido pelo próprio juiz (n.º 1);
ii) Também se permite que o juiz emita um despacho de aperfeiçoamento, convidado as
partes a suprir as excepções (n.º 2);
iii) Quando não seja possível a correcção oficiosa ou a emissão de um despacho, o art. 89.º/2
dá outra possibilidade, a de apresentar uma nova petição inicial mas considerá-la
apresentada, para efeitos de determinação de tempestividade do pedido, no dia em que
apresentou a primeira petição inicial. Porque é que isto é relevante? Têm a ver com o prazo
de impugnação do acto: pode acontecer que a falta de um pressuposto nem seja imputável
à negligência das partes, e se fosse necessário propor nova acção esta petição já estivesse
fora do prazo. Ver, por ex., o art. 89.º/3, que diz os casos em que isto pode acontecer: é
exemplo o erro de qualificação do acto impugnado (falta de objecto mediato), pois nem
sempre é fácil, perante um acto individual e concreto, saber se estamos perante um acto
administrativo, um acto jurídico, ou uma norma. Exemplo de caso real: estava em causa
uma decisão que puna fim ao pagamento de um suplemento remuneratório, e o tribunal
entendeu que este não era o acto administrativo relevante, mas sim um acto anterior em
que se decidia os pressupostos do suplemento.

2.4 Pressuposto relativo ao tribunal

1) Competência do tribunal: a petição tem de ser dirigida ao tribunal competente. Isto significa que
ficam aqui convocadas todas as questões atinentes à competência que já vimos. Temos de distinguir
entre:
i) Competência absoluta: tem de se tratar de uma questão susceptível de ser decidida por um
tribunal administrativo, pelo que diz respeito à separação de jurisdições.
ii) Competência relativa: dentro da ordem dos tribunais administrativos, a petição tem de ser
dirigida ao tribunal administrativo com competência em razão da matéria, hierarquia e
território.

2) Preterição do tribunal arbitral: são situações em que as partes decidiram remeter o litígio a um
tribunal arbitral (por cláusula compromissória ou convenção) e uma das partes, em vez de diligenciar no

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Laura Nunes Vicente – Ano lectivo de 2013/2014

sentido de compor o tribunal, vai propor a acção num tribunal administrativo.

 Um aspecto essencial, tendo em conta as sucessivas mudanças legislativas, é o chamado o princípio da


perpetuação do foro: diz que a determinação da competência do tribunal é feita no momento da propositura
da acção. Se hoje o autor propõe uma acção no tribunal competente, é irrelevante que no futuro entre em
vigor uma legislação que altere a competência.

 Quais as consequências da falta deste pressuposto processual? Distinguem-se consoante seja um


problema de incompetência absoluta ou relativa: se for um problema de incompetência absoluta, então a
consequência é a absolvição da instância. Se for um problema de incompetência relativa, ver art. 14.º/1: a
solução é a remessa oficiosa da petição, numa ideia de aproveitamento do processo (porém, mesmo no
caso da incompetência absoluta o autor tem o direito de requerer a remessa, art. 14.º/2 e 3).

 Não confundir esta questão da competência com as questões relacionadas com as questões prejudiciais:
estas não geram um problema de competência. Estão aqui em causa situações em que uma decisão de
uma determinada acção para a qual tem competência o tribunal, pressupõe a resolução de uma questão
previa para a qual o tribunal administrativo não e competente. As questões prejudiciais são questões
prévias que são decisivas para a decisão do processo, mas que não podem ser decidir pelo tribunal. O juiz
pode fazer uma de duas coisas:
i) Nos termos do art. 15.º, o juiz vai suspender o processo até que o tribunal competente se
pronunciar.
ii) A suspensão fica sem efeito se o tribunal competente não decide a questão prejudicial,
quer porque a acção não foi proposta, quer porque o processo ficou parado por inércia das
partes. Nos termos do n.º 2, aí a questão é decidida pelo tribunal administrativo.

2.5 Pressupostos relativos aos sujeitos

1) Personalidade judiciária: é a susceptibilidade de ser parte no processo. Em regra, coincide com a


personalidade jurídica – todavia, há entidades sem personalidade jurídica que têm personalidade
judiciária. O que é aqui relevante? Tradicionalmente, as acções eram propostas contra órgãos da
Administração, que não têm personalidade jurídica: hoje, as acções são propostas contra as pessoas
colectivas de direito público às quais os órgãos pertencem, art. 10.º. Mas há excepções: há acções propostas
por um órgão contra outro órgão (litígios inter-orgânicos, art. 10.º/6), pelo que vamos ter em juízo duas
entidades que, embora desprovidas de personalidade jurídica, têm personalidade judiciária. Isto só pode
acontecer quando o Código o admita.

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2) Capacidade judiciária: é a capacidade de estar, por si só, em juízo. No Direito Administrativo, a


questão é mais premente porque, como em regra as acções são propostas contra pessoas colectivas
públicas, tem de se determinar, uma vez que a personalidade colectiva é abstracta, qual o órgão que em
tribunal vai agir em nome da pessoa colectiva. Isto depende: pressupõe a avaliação, em concreto, do
órgão que nos termos da lei é atribuída capacidade judiciária. Em regra, é atribuída ao órgão cimeiro,
mas é a lei que constitui a pessoa colectiva que determina qual o órgão. O nosso Código tem um certo
anacronismo: quem representa o Estado em juízo é o Ministério Público, que também representa os
incapazes, menores, etc.

3) Patrocínio judiciário: não é a mesma coisa do que a capacidade, embora nas pessoas colectivas isto
cause alguma confusão. A capacidade diz respeito ao órgão; o patrocínio diz respeito à representação
técnica e não à representação jurídica : é a pessoa que vai desenvolver tecnicamente os aspectos jurídicos
daquela acção, seja da parte do autor, seja da parte do réu. É obrigatória a constituição de advogado no
processo administrativo – art. 11.º/1.

4) Legitimidade: está prevista nos arts. 9.º e 10.º. A legitimidade é aferida em função da titularidade da
relação material controvertida, ou seja, têm legitimidade processual os sujeitos titulares da relação
jurídica material subjacente ao processo. Mas além desta noção genérica de legitimidade processual,
temos de distinguir entre a legitimidade activa e passiva:
i) Activa: pertence a quem propõe a acção, a quem é titular do direito de acção.
ii) Passiva: diz respeito ao sujeito contra o qual é proposta a acção.

Quer o autor, quer o réu, para serem partes legítimas, têm de ser titulares daquela relação material
controvertida. Para além desta noção genérica de titularidade da relação material controvertida, o CPTA é
muito generoso na atribuição do direito de acção:
i) Desde logo porque o próprio art. 9.º já pressupõe a acção popular, quer a social (qualquer
cidadão, contra qualquer actuação da Administração), quer a local (pelo habitante de uma
circunscrição territorial ou uma autarquia, e que se destina a reagir contra as ilegalidades
de uma dada actuação local). A acção popular visa a defesa de interesses difusos,
representando uma concretização do art. 52.º da CRP.
ii) Também é conferida uma legitimidade muito ampla nas acções especiais: na impugnação
do acto administrativo, nem sequer se exige que o autor seja titular de uma posição jurídica
substantiva, basta um interesse de facto para assegurar a legitimidade activa.
iii) Nas acções relativas a contratos, confere-se legitimidade a terceiros.

Quanto à legitimidade passiva, esta está prevista no art. 10.º: a acção deve ser intentada contra a pessoa

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colectiva pública e também contra os contra-interessados.

4) Aceitação do acto: este é um pressuposto negativo – a sua verificação impede a apreciação do mérito da
causa –, e é um pressuposto específico pois só existe na acção especial. Está previsto no art. 56.º do CPTA,
que define aceitação do acto: a aceitação pode ser expressa, quando o próprio destinatário declarou
expressamente declarar o acto (pouco frequente), ou tácita (n.º 2), que deriva da prática espontânea de
facto incompatível com a vontade de impugnar. Quando o particular, de forma expressa ou tácita, pratica
uma atitude que revela uma conformação em relação à actuação da Administração, nestes casos não é que o
acto administrativo se torne válido, simplesmente a lei associa ao comportamento do particular um “efeito
de perda do direito de impugnar”. Quais são as razões subjacentes a esta aceitação? Sobretudo razões de
estabilidade do acto administrativo, mas também de venire contra factum proprium: não pode o particular
despreocupar a Administração, conformando-se com a sua actuação, e vir depois intentar uma acção
contra ela, pois isto violaria a boa fé e a confiança que deve existir na relação entre a Administração e os
particulares.

2.6 Pressupostos relativos ao processo

1) Existência e admissibilidade da forma processual utilizada: este pressuposto exige que o autor utilize
o meio adequado para obter a protecção judicial de que necessita, havendo lugar à absolvição da
instância em caso de impropriedade do meio escolhido. Este pressuposto manifesta-se na distinção entre
os casos de acção especial e acção comum, e entre as pretensões que seguem a forma processual urgente
ou não. Há autores que incluem este requisito no do interesse processual, porém devem ser
autonomizados.

2) Necessidade de tutela judicial: este pressuposto equivale ao interesse processual ou interesse em agir.
Não basta que a parte seja titular da relação material controvertida, é necessário ainda que ela demonstra
que existe um interesse actual e directo na procedência do pedido.
i) O interesse processual nas acções de simples apreciação está previsto no art. 39.º: é
necessário que haja uma situação de incerteza, ameaça ou fundado receio de que a
Administração adopte uma conduta ilegal lesiva.
ii) Nas acções administrativas especiais, pela forma ampla como está apresentada a
legitimidade processual e sobretudo na acção particular, acaba por aglutinar os dois
conceitos: a legitimidade activa, nas acções de impugnação de actos, prevê-se que seja
necessário um interesse directo e pessoal, que a doutrina interpreta como retirar um efeito
útil para a esfera jurídica. A legitimidade é assim complementada pelo interesse em agir,
quase que se interligando: quem tem legitimidade para interpor uma acção de impugnação

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de actos administrativos é aquele que obtém para a sua esfera jurídica um benefício em
consequência da procedência da acção.
iii) V IEIRA DE A NDRADE defende que este pressuposto, embora de difícil aplicação, deve valer
ainda para os casos de acção popular e, em certa medida, nos de acção pública – “apesar de
na acção pública o interesse ser pré-julgado em termos de oportunidade pelo Ministério
Público, deve admitir-se também o controlo judicial da actualidade do processo,
sobretudo quando a lei exige que esteja em causa um interesse público especialmente
relevante, como acontece no pedido de condenação na prática de acto administrativo
devido”.

3) Tempestividade: é um pressupostos importante nas acções sujeitas a prazo. As situações mais


relevantes ocorrem no que respeita à acção especial de impugnação de actos administrativos, sendo que
aí o prazo de caducidade previsto é um prazo especial, pois é susceptível de suspensão e interrupção (o
prazo está previsto no art. 58.º; o art. 59.º/4 prevê a suspensão quando se utilizam meios de reacção
administrativa; e o art. 60.º/3 prevê uma causa de interrupção, quando for apresentado o requerimento
dirigido a pedir a notificação completa do acto administrativo). É importante não confundir o prazo de
caducidade, que é um prazo processual, com os prazos substantivos de prescrição do direito: há casos em
que a acção não tem prazo de propositura, mas o direito que se quer exercer tem um prazo de prescrição.
É o que sucede nas acções comuns de responsabilidade civil, que não têm prazo de propositura, porém o
direito de exigir a indemnização é um direito que prescreve nos termos do art. 498.º do CC (prazo de 3
anos). Qual a diferença prática entre os prazos processuais, que são pressupostos processuais, e os prazos
de prescrição, que são prazos substantivos? A falta de pressuposto processual gera uma decisão de forma,
ou seja, uma absolvição da instância; mas se estiver em causa o decurso do prazo substantivo, origina
uma absolvição do réu do pedido (o autor já não tem direito à indemnização).

4) Interpelação administrativa prévia: vamos olhar para este pressupostos segundo duas perspectivas: a
exigência de decisões administrativas prévias; e a exigência de outras impugnações administrativas. Os
problemas são distintos.

 Impugnações administrativas prévias: antes da reforma do contencioso, havia o pressuposto


processual da definividade vertical – o acto tinha de corresponder à ultima palavra da Administração.
Assim, relativamente a todos os actos administrativos, estes tinham de ser praticados ou pelo superior
hierárquico, ou, se não fossem, era obrigatório interpor antes do acesso aos tribunais o recurso
hierárquico necessário, para obter essa decisão. Esta era uma questão que dividia a Escola de Coimbra,
que defendia que esta não era uma opção inconstitucional, e a Escola de Lisboa, que defendia a sua
inconstitucionalidade.

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i) A Escola de Lisboa entendia que este pressuposto era inconstitucional por violar o princípio
da tutela jurisdicional efectiva, na medida em que se obrigava o particular a desencadear
um processo administrativo de segundo grau, e isso era limitativo do acesso aos tribunais.
ii) A Escola de Coimbra contestava, com os seguintes contra-argumentos:
a. Apenas se exigia que o interessado recorresse previamente à Administração para
tentar que a questão fosse aí resolvida, reduzindo a litigiosidade dos tribunais
administrativos.
b. Além disso, isto não impedia o acesso aos tribunais, simplesmente condicionava o
acesso: depois de obter a decisão, o particular poderia ter acesso aos tribunais.
c. Por outro lado, esta possibilidade até podia ser benéfica para o particular, pois
enquanto que o tribunal só averiguará a juridicidade, a Administração pode
também avaliar o mérito. O particular poderia conseguir a sua pretensão através
da análise do mérito.
d. A escola de Coimbra avançava ainda o argumento de que estes procedimentos
eram gratuitos, e enquanto que se interpunha o recurso hierárquico não
começava a contar o prazo para impugnação.

O Tribunal Constitucional sempre entendeu que esta não era uma solução inconstitucional. Com a
reforma do contencioso, este pressuposto desapareceu em geral: hoje não é, em princípio, necessário
interpor qualquer recurso hierárquico. As disposições sobre o recurso hierárquico necessário do CPA não
valem em geral: "em geral" porque a Escola de Coimbra entende ainda que leis específicas possam exigir
a impugnação administrativa prévia. Ou seja, o legislador do CPTA veio abolir em geral o pressuposto
da definitividade vertical, mas este poderá valer se leis especiais o estabelecerem. É neste ponto que hoje
as duas escolas divergem, pois a Escola de Lisboa continua a entender que é inconstitucional. O Tribunal
Constitucional secunda a tese da Escola de Coimbra, obviamente com o requisito da suspensão da
contagem do prazo para impugnação judicial, no mínimo entre o momento da propositura da acção e o
momento da decisão ou do decurso do prazo para a decisão.

O CPTA permite que os particulares façam impugnações administrativas e, nesses casos, quando
particular optar por deduzir primeiro uma acção administrativa, o art. 59.º/4 prevê a suspensão do prazo
jurisdicional. Mesmo as impugnações facultativas suspendem, por isso, o prazo de impugnação
jurisdicional, que retoma o curso com a notificação da decisão ou decurso do respectivo prazo legal -
remissão para o art. 175.º do CPA, cujo n.º 3 prevê que a ausência de uma decisão de segundo grau no
prazo legal forma um acto administrativo silente.

A circunstância de a impugnação administrativa ser facultativa não impede, nos termos do n.º 5,

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impugnar judicialmente enquanto espera pela decisão no procedimento administrativo. Se a decisão da


Administração for favorável, extinguir-se-á o processo por inutilidade superveniente da lide; se não for
favorável, há uma ampliação do objecto para abranger o acto administrativo. Note-se que não é o
particular que tem de comunicar a decisão, mas sim à Administração.

 Pode haver outras situações de interpelações administrativas prévias. É o que acontece, por exemplo:
i) Na condenação à prática de acto devido (art. 77.º/1/a)), que pressupõe que tenha sido
apresentado um requerimento que constitua o órgão no dever de decidir.
ii) Também na acção administrativa comum entre particulares (art. 37.º/3), por violação de
vínculos jurídico-administrativos, antes de um particular propor a acção contra o outro,
deve primeiro solicitar às entidades competentes que adoptem as medidas necessárias para
que o particular deixe de violar os tais vínculos.
iii) A mesma ideia aparece, por exemplo, na intimação para a protecção de direitos liberdades
e garantias, art. 109.º/1: a intimação contra particulares também supõe que haja uma
provocação administrativa prévia da Administração para que esta pudesse adoptar as
medidas adequadas a que o particular continuasse a violar esses direitos.
iv) Outro exemplo é o da reacção jurisdicional contra situações em que a Administração viole
o direito à informação (prestando informações, permitindo a consulta de documentos e
passando certidões), art. 104.º e art. 60.º/2.

Estas interpelações não se confundem com as impugnações: nas impugnações, o que está em causa é a
apreciação da validade de um acto administrativo praticado anteriormente; nas interpelações, o que está em
causa é provocar a Administração a pronunciar uma acto de primeiro grau.

5) Cumulação ilegal de pedidos, caso julgado e litispendência: trata-se de pressupostos processuais


negativos comuns.
i) Cumulação ilegal de pedidos: há uma cumulação ilegal de pedidos quando são violadas as
exigências do art. 4.º em geral (ex: inexistência de uma conexão material) e, no caso da
acção administrativa especial, as exigênciaos constantes do art. 47.º do CPTA. O
contencioso administrativo é especialmente generoso na admissão da cumulação de
pedidos, mas é necessário observar certas regras.
ii) Caso julgado e litispendência: está em causa a repetição dos elementos essenciais da causa.
Se há uma repetição face a um processo que está pendente, temos uma situação de
litispendência; se é face a um processo que já transitou em julgado, temos uma situação de
caso julgado.

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CAPÍTULO VII: Princípios gerais do processo administrativo

Os princípios gerais do processo administrativo são princípios normativos que regem a própria
tramitação do processo administrativo, e que devem ser obedecidos quer pelo legislador, quer pelo
intérprete, na propositura, tramitação e desenvolvimento das causas. Todos estes princípios procuram
estabelecer uma dialéctica entre outros dois princípios: o princípio do dispositivo ou auto-responsabilidade
das partes e o princípio do inquisitório, oficialidade ou oficiosidade do tribunal. O primeiro exprime a ideia
de que os sujeitos processuais têm um papel determinante no desenvolvimento do processo judicial;
enquanto que o segundo é reflexo da ideia de que o tribunal que tem a seu cargo a administração da
justiça, logo tem o dever de alcançar a justiça material. O processo tem de ser desenvolvido pelas partes,
mas o juiz, enquanto tem o poder de administrar a justiça em nome do povo, tem o dever de conformar o
processo por forma a obter a justiça material de caso concreto. Os princípios que iremos ver acabam por
se filiar ou num princípio, ou noutro, ou tentam conciliar os dois: apesar de, no processo administrativo,
haver um predomínio mais intenso das ideias de oficiosidade no contexto da acção administrativa especial.

Os princípios gerais do processo dividem-se em cinco categorias:


i) Princípios relativos à promoção ou iniciativa processual;
ii) Princípios relativos ao âmbito do processo;
iii) Princípios relativos à prossecução processual;
iv) Princípios relativos à prova e instrução;
v) Princípios relativos à forma processual.

1. Princípios relativos à promoção ou iniciativa

1.1 Princípio da necessidade do pedido

Este princípio está em articulação com a circunstância de os tribunais não agirem sem que os particulares
lhe apresentem uma pretensão para ser decidida, ou seja, não cabe aos tribunais desencadearem um
processo oficiosamente. O facto de, algumas vezes, estar em causa a defesa do interesse público e valores
constitucionais leva a que quem dê início à acção seja o Ministério Público, que é também um
magistrado judicial – porém, isto não significa uma compressão ao princípio do pedido, pois é uma
entidade diferente do tribunal que instaura o pedido.

1.2 Princípio da promoção alternativa

Este princípio prende-se com a questão de saber quem inicia o processo. No processo administrativo, a

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iniciativa pode ser particular ou pública:


i) Particular: iniciativa de qualquer cidadão que seja titular de uma posição jurídica
substantiva, pertence aos titulares da relação material controvertida.
ii) Popular: pertence a qualquer cidadão quando esteja em causa a protecção de interesses
difusos.
iii) A estas iniciativas soma-se a iniciativa do Ministério Público.
iv) Podemos ter ainda a iniciativa pública: iniciativa de órgãos e entidades públicas, quanto
aos interesses que lhes compita defender – ex: litígios inter-orgânicos (entre o órgão
colegial e o seu presidente) e intersubjectivos.

Quanto à iniciativa particular, diz-se que obedece ao princípio da liberdade de iniciativa: os particulares
só propõem uma acção quando assim o quiserem. A questão é mais complexa nos casos de iniciativa
pública e nos casos de iniciativa do Ministério Público.
i) No primeiro caso, têm de estar verificados os pressupostos de competência das atribuições:
uma pessoa colectiva pública só pode propor uma acção em tribunal quando o objecto em
causa se incluir nas suas atribuições; e tem de estar em causa a defesa dos interesses
públicos que a lei comete aos órgãos e às pessoas colectivas públicas.
ii) Mais complexa é o segundo caso, do Ministério Público: relativamente à sua iniciativa,
vigorará o princípio da legalidade ou da oportunidade? Este está obrigado a propor as
acções ou goza de alguma discricionariedade na propositura de acções nas acções que tem
conhecimento? Devemos entender que só vigora o princípio da legalidade, ou seja, só está
obrigado a propor acções nos casos em que a lei expressamente o prevê (ex: declaração de
ilegalidade com força obrigatória geral, quando já tenha havido a desaplicação da norma
em três casos concretos). Nos demais casos, entende-se que deve valer o princípio da
oportunidade, ou seja, que não estará o Ministério Público obrigado a propor todas as
acções que tenha conhecimento, designadamente quanto estejam em causa actos
administrativos: deve ponderar se aquela acção serve o propósito de legalidade, de tutela
do interesse público, da tutela de valores constitucionais, ou da protecção dos direitos,
liberdades e garantias. Se o que estiver em causa for um interesse particular, nem sequer
ponderará, a não se quer que simultaneamente jogue com questões importantíssimas do
ordenamento jurídico. Esta ideia de não obrigar o Ministério Público a promover todas as
acções serve o propósito de evitar fraudes ao princípio da caducidade das acções
particulares: se o Ministério Público estivesse obrigado a propor todas as acções, o
particular poderia deixar passar o prazo e seria aquele a propor a acção (mais, não teria de
pagar custas).

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2. Princípios relativos ao âmbito do processo

Também se costuma designar como o princípio da determinação do thema decidendum e do thema


respondendum – o tema a decidir e o tema a responder, ou seja, os poderes decisórios e os poderes de
conhecimento.

2.1 Princípio da resolução global da situação litigiosa

Este princípio diz que a justiça material só se consegue alcançar se forem resolvidos, no litígio, todos os
problemas suscitados pelo caso concreto. É um princípio que tem muitas traduções no processo
administrativo:
i) É ele que justifica a amplitude da cumulação de pedidos permitida pelo nosso Código.
ii) Conhecimento oficioso dos vícios do acto administrativo: está previsto no art. 95.º/2 e
pretende que a questão da validade do acto administrativo seja resolvida definitivamente,
pois assim a parte poderia interpor uma nova acção com uma causa de pedir diferente.
iii) Modificação objectiva da instância: diz respeito, por exemplo, às situações em que o
tribunal chega à conclusão de que existe uma causa que impede absolutamente o
cumprimento dos deveres por parte da Administração, convolando o processo no sentido
de o particular deduzir uma nova acção indemnizatória (art. 45.º). Outro exemplo é
quando se impugna um acto pré-contratual e o contrato é celebrado na pendência da
acção: permite-se que seja modificada a instância e, ao lado da apreciação do acto, passa a
existir um pedido de invalidação do contrato (art. 63.º).
iv) No mesmo sentido vai a ideia de plenitude de execução.

2.2 Princípio da vinculação do juiz ao pedido

Pressupõe a congruência ou a correspondência entre o pedido do autor e a sentença do tribunal. Este é um


princípio que tem muitas excepções no processo administrativo, não só por força do princípio da
resolução global, como porque o processo administrativo está pré-ordenado à maior satisfação do
interesse público e da legalidade. Exemplos de compressões a este princípio:
i) O tribunal pode conhecer de vícios diferentes dos alegados: por exemplo, o autor faz um
pedido anulatório, de natureza constitutiva, e o tribunal descobre um vício que conduz à
anulabilidade, com natureza declarativa. Há uma falta de congruência, mas que tem como
fundamento a resolução global do litígio e a reposição da validade da ordem jurídica.
ii) Outra compressão encontramo-la nas providências cautelares, art. 120.º/3: uma das
consequências do princípio da tutela jurisdicional constitui precisamente o facto de o

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tribunal poder declarar uma providência diferente da requerida, quando entender que há
uma providência mais adequada à satisfação dos interesses em causa - por ex., o particular
pede uma providência conservatória (suspensão da eficácia do acto de exclusão), e o
tribunal decreta uma antecipatória (admissão provisória no concurso).

Estas são compressões, mas há verdadeiras excepções:


i) A possibilidade de convolação do processo cautelar em processo principal, art. 121.º.
ii) Também em situações de impossibilidade absoluta de cumprimento da sentença,
considerando o tribunal que à execução da sentença se oporiam situações de relevante
interesse público e impossibilidade absoluta, o tribunal convida as partes a deduzirem um
pedido indemnizatório (art. 45.º).

2.3 Princípio da limitação do juiz pela causa de pedir

Significa que o juiz, além de estar limitado pela pretensão do autor, também está limitado pelos
fundamentos que são arguidos pelo autor na petição inicial ou restantes articulados. Também é conhecido
por princípio da substanciação.

Tem muitas restrições no processo administrativo, a mais importante dizendo respeito às excepções em
matéria de processo impugnatório, ou seja, em relação aos pedidos impugnatórios da acção
administrativa especial. O juiz pode conhecer de outros vícios do acto para além dos alegados pelas partes
- art. 95.º; mas isto vale também para as normas, ou seja, o princípio da substanciação vale para todos os
pedidos impugnatórios em que se peça a invalidação de um acto ou regulamento administrativo.
i) O facto de o juiz poder conhecer de outros vícios também consubstancia uma excepção ao
princípio da congruência, pois pode originar uma diferença entre o que é pedido e o que é
decidido; mas, mesmo que não haja esta diferença, haverá sempre uma compressão ao
princípio da substanciação. O juiz pode, por exemplo, anular o acto, mas com
fundamentos diferentes.
ii) Nos regulamentos, o autor pede sempre a declaração de ilegalidade, logo não há limitação
ao princípio da congruência, mas esta declaração de ilegalidade pode ser feita com base
nos vícios alegados ou não, numa limitação ao princípio da substanciação. Esta é uma nota
objectivista do nosso sistema: o nosso sistema não se limita a defender as posições jurídicas
substantivas (direitos e interesses), mas também a legalidade administrativa e a
prossecução de interesses públicos.

2.4 Princípio da estabilidade objectiva da instância

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É uma manifestação particular do princípio do dispositivo, que nos diz que o pedido e a causa de pedir se
mantêm inalterados desde o início até ao fim do processo. Mas este é um princípio que, no processo
administrativo, comporta igualmente muitas excepções:
i) Art. 51.º/4: situações em que está em causa a prática de um acto administrativo de
indeferimento, e o autor impugna o acto – o juiz convida o autor a substituir o pedido para
formular um pedido de condenação.
ii) Art 63.º/2: é pedida a impugnação de um acto administrativo pré-contratual, é celebrado o
contrato e modifica-se o pedido, que passa a ser cumulado com o pedido de invalidação
do contrato.
iii) Art. 63.º/1: na pendência do processo de impugnação de um acto são praticados actos
consequentes. O pedido é ampliado para abranger a impugnação desses actos.
iv) Possibilidade de arguição de novos vícios, nomeadamente pelo Ministério Público (art.
86.º e 91.º/5).
v) Possibilidade de alteração da instância no âmbito da condenação à prática de acto devido:
art. 70.º, nomeadamente o n.º 1 (ampliação de causa de pedir: por exemplo, entretanto a
Administração pratica um acto de indeferimento), e o n.º 3 (cumulação da pretensão
impugnatória com a condenatória),
vi) Art. 85.º, n.º 2, 3 e 4: poderes do Ministério Público.

Mais uma vez, estas excepções são todas expressão de uma nota objectivista do nosso sistema: quanto
mais depressa for resolvido todo o litígio subjacente a todo o caso concreto, melhor para os particulares e
para o ordenamento jurídico.

3. Princípios relativos à prossecução processual: decurso, condução e extinção do processo

3.1 Princípio da tipicidade

Ao princípio da tipicidade costuma-se associar o princípio da compatibilidade processual e da


adequação formal da tramitação. O que nos diz este princípio? Diz que os trâmites do processo e a
respectiva sequência são fixados pelo legislador: na acção administrativa especial e processos urgentes, é
fixada pelo CPTA; na acção administrativa comum, pelo CPC.

O princípio da compatibilidade processual tem sobretudo a ver com as situações de cumulação de


pedidos: quando se cumulam pedidos que seguem de formas diferentes, a ideia de compatibilidade
processual é definida pelo próprio CPTA no art. 5.º/1. Há situações em que o legislador admite poder

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haver adaptações ao processo: o art. 5.º/1 determina que quando os pedidos seguem formas diferentes,
todo o processo segue a forma da acção especial, porém com as devidas adaptações, ou seja, o juiz pode
adaptar o processo ao caso concreto. A ideia de adequação formal é transposta do perocesso civil, e diz-
nos que, quando a tramitação não se adequa ao caso concreto, o juiz deve praticar os actos que melhor se
adequem e adaptar a tramitação às especificidades do caso concreto.

3.2 Princípio do dispositivo ou auto-responsabilidade das partes

Este princípio diz-nos que compete às partes a dinamização do processo. São expressões deste pedido:
i) Quando o juiz determina o suprimento de excepções dilatórias ou quando o juiz convida a
parte a corrigir as irregularidades e o particular não cumpra o despacho de suprimento ou
não corrija nos termos do convite, isto determina nos termos do art. 88.º/4 a absolvição da
instância.
ii) As partes podem desistir do pedido quando o entenderem.

Aqui não está apenas em causa a tutela de interesses privados, ao contrário do que sucede no processo
civil, logo ponde acontecer que, pese embora as partes tenham perdido interesse no processo, o interesse
público determine que o processo continue: o Ministério Público pode entender que o processe deva
continuar, prosseguindo o processo (art. 62.º). Também esta ideia é posta em causa pela ideia de
conhecimento oficioso dos vícios: o próprio juiz, porque está em causa mais uma vez a tutela da
legalidade e do interesse público, pode conhecer de vícios não alegados.

3.3 Princípios da igualdade, boa fé e cooperação processual

 Princípio da igualdade: a lei determina que o tribunal assegure um estatuto de igualdade efectiva das
partes no processo. Porque é que é importante a ideia de igualdade das partes? No processo
administrativo, estão duas partes que, fora do processo, estariam numa relação de subordinação – o
particular e a Administração –, sendo que antes esta tinha vários privilégios processuais. Hoje, estes
privilégios foram em grande medida limitados: quer em relação ao juiz, que tem poderes condenatórios
quer em relação aos particulares, quer em relação à Administração; quer em relação à outra parte, o que
admite que a Administração possa ser igualmente condenada por litigância de má fé. Isto antes não era
possível, pois dizia-se que a Administração defendia o interesse público e por isso não poderia estar em
situação de má fé (ver exemplos). Também no contencioso anterior apenas os cidadãos teriam de pagar
custas processuais, hoje não.

 Princípio da cooperação e da boa fé processual: ambas as partes devem cooperar no processo para a

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averiguação da verdade; e devem estar de boa fé, ou seja, devem evitar adoptar expedientes dilatórios e
pedir diligências inúteis. Hoje, existe um verdadeiro dever da Administração de colaboração – veja-se o
art. 8.º/4..

3.4 Princípio da audiência e contraditório

Este princípio impõe, em geral, que seja dada oportunidade de intervenção efectiva a todos os
participantes no processo, ou seja, obriga tribunal a ouvir a parte contrária sempre que forem apresentadas
provas ou o tribunal se pretender pronunciar desfavoravelmente. O CPC tem algumas excepções que valem
aqui: por exemplo, no processo cautelar, quando a audiência possa por em causa a utilidade da decisão
principal (exemplo: se antes do arresto se for dizer à parte que os seus bens serão confiscados, é muito
provável que na altura da decisão principal não tenha bens).

3.5 Princípio da devolução facultativa ou da suficiência discricionária

É um princípio que diz respeito à existência de questões prejudiciais, cuja decisão pertence a tribunais de
outra ordem jurisdicional: numa situação destas, o juiz pode optar entre suspender o processo e enviar a
questão para o tribunal competente (devolução facultativa), e decidir ele próprio, com efeitos restritos ao
processo administrativo (suficiência discricionária).

Outra hipótese em que o juiz pode ter de decidir a questão com efeitos restritos diz respeito às situações
em que o particular deve ele próprio propor a acção ou deixa o processo parar por negligência – aí, o juiz
administrativo decide a questão prejudicial com efeitos restritos ao caso concreto, art. 15.º (não se pode
invocar a excepção de caso julgado se a questão surgir num tribunal civil).

3.6 Princípio do favorecimento do processo

Este princípio é um corolário normativo do princípio constitucional do acesso efectivo à justiça, que
aponta para uma interpretação e aplicação das normas processuais no sentido de favorecer o acesso ao
tribunal ou de evitar as situações de denegação da justiça. Dirige-se à capacidade interpretativa do juiz,
exigindo que interprete as normas processuais sempre no sentido de favorecer o acesso ao direito e aos
tribunais.

3.7 Princípios da economia e da celeridade processual

Segundo este princípio, o processo tem de ser, tanto quanto possível e em função do seu objectivo,

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eficiente e célere, devendo evitar-se trâmites desnecessários ou excessivamente complicados,


comportamentos dilatórios e decisões inúteis. Esta ideia de celeridade processual está desde logo
presente na existência dos processos urgentes, sendo que esta exigência de celeridade processual é em
alguns casos uma exigência constitucional (é o que acontece quando está em causa a protecção de
direitos, liberdades e garantias, art. 20.º/5). Outra manifestação está presente no art. 121.º (decisão da
causa principal em processos cautelares); ou no decretamento provisório da providência, art. 131.º. Este
princípio dirige-se menos ao juiz e mais ao legislador, isto é, estamos aqui a criar directivas para o
legislador e a forma como este irá criar o processo judicial – é sobretudo um princípio de política
legislativa.

4. Princípios relativos à prova e à forma processual

4.1 Princípios relativos à prova

4.1.1 Princípio do inquisitório ou da investigação

É um princípio que se contrapõe de alguma forma ao do dispositivo: enquanto que neste o que está em
causa é a apreciação pelo tribunal dos factos e das provas trazidas para o processo pelas partes; quando
falamos no princípio do inquisitório, estamos a falar de outra coisa – independentemente ou para além dos
factos e provas trazidos pelas partes, também os restantes sujeitos do processo devem promover o alcance da
verdade material. Isto vai significar a atribuição de poderes de investigação ao próprio tribunal, sendo
que o princípio do inquisitório tem uma maior projecção no processo administrativo do que, por
exemplo, no civil: o Ministério Público pode solicitar a realização de diligências instrutórias, dando
origem à produção de provas (art. 85.º/2); mas também o juiz pode ordenar as diligências de prova que
considere necessárias para o apuramento da verdade (art. 90.º/1). Neste último caso, existe a limitação do
juiz pela causa de pedir, sendo que nos processos de impugnação de actos e, sobretudo, de normas, são
de entender do modo mais amplo os poderes do juiz.

Percebe-se porque é que é assim: porque estão sempre em causa interesses públicos, não pode o juiz
estar circunscrito pelos factos alegados pelas partes, pois só assim é que se pode tutelar o interesse
público e reintegrar a legalidade administrativa.

4.1.2 Princípio da universalidade dos meios de prova

Este princípio diz-nos que são admitidos no processo administrativo quaisquer meios de prova, apenas se
admitindo as proibições de prova previstas no art. 32.º/6 da CRP. Isto é relevante posto que, no processo

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administrativo tradicional, havia uma redução exagerada e incompreensível dos meios de prova – por
exemplo, não se admitia em certas acções a prova testemunhal. O fundamento destas proibições residia
numa particularidade do processo administrativo, que era um processo escrito, sem mediação oral.
Também havia limitação de provas em matéria de prova pericial. Estas limitações de prova
desapareceram com o CPTA, pelo que o processo administrativo está apenas vinculado aos limites
constitucionais da prova.

4.1.3 Princípio da aquisição processual

Não está prevista em especial no CPTA mas decorre da aplicação subsidiária do CPC ao processo
administrativo: diz-nos que o juiz deve tomar em consideração todas as provas produzidas,
independentemente de serem produzidas por uma parte ou por outra, e essas provas produzidas são
sempre aproveitáveis para ambas as partes – a partir do momento em que se prova determinado facto,
esse facto é considerado adquirido para o processo. E isto independentemente da parte que o tenha
provado, ainda que quem tenha pedido certa diligência seja desfavorecido por ela, dando razão à parte
contrária. Este é um princípio genérico do processo civil, sem consagração específica pelo CPTA mas
remetido por ele no art. 1.º.

4.1.4 Princípio da livre apreciação das provas

Este princípio diz que o juiz vai valorar as provas de acordo com a sua livre convicção: isto não significa
remeter a apreciação para a arbitrariedade do juiz, esta livre apreciação não é subjectiva. Este princípio
pressupõe que o juiz seja alguém que, naquela posição, tenha uma razoabilidade e uma objectividade
padrão, ou seja, temos aqui o critério do juiz médio, razoável e objectivo.

Há, todavia, compressões, resultantes das presunções de prova – o legislador associa a determinado facto
ou comportamento uma dada prova.
i) Art. 84.º/5: diz respeito às situações em que é intentada uma acção administrativa especial
e, em consequência disso, a Administração é obrigada a enviar o processo administrativo,
no sentido do art. 1.º/2 do CPA (dossier que contém os documentos que levaram à prática
do acto administrativo). Se a Administração não enviar o processo, o art. 84.º/5 estabelece
uma presunção no sentido de que os factos alegados pelo autor se consideram provados.
ii) Art. 118.º/1: nos processos cautelares, quando a Administração não se opõe, presumem-se
verdadeiros os factos alegados pelo requerente (esta presunção já não tem natureza
sancionatória, decorrendo antes da cognição sumária).

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4.1.5 Princípio da repartição do ónus da prova objectivo

Este princípio diz respeito à questão de saber quem tem de provar factos. Este é um princípio que, ao
funcionar simultaneamente com o princípio do inquisitório, acaba por ser comprimido pelos poderes de
investigação do juiz, mas de qualquer forma as partes tem o ónus de prova dos factos. Aplica-se aqui o
critério do CPC, segundo o qual quem alegue ou invoque um direito tem de provar os respectivos factos
constitutivos, cabendo a contraparte a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse
direito.

Todavia, no processo administrativo estes princípio têm de sofrer compressões, pois de outra forma o
administrado ficava sempre numa posição desfavorecida – principalmente nos meios impugnatórios de
actos e de normas. Não se pode exigir ao particular que este tenha a prova de todos os factos relevantes da
invalidade, pois isto significaria ressuscitar o princípio da presunção da legalidade do acto
administrativo. Assim, há muitos casos em que o ónus da prova deve caber antes à Administração.
justamente para acautelar o princípio da tutela jurisdicional efectiva - é o que se passa, por exemplo, com
o ónus da prova da compressão de direitos fundamentais; ou ainda com o ónus da prova da falta de
imparcialidade ou dos outros princípios fundamentais nas actuações discricionárias. No fundo, é o juiz
que deve ponderar em último termo quem tem o ónus da prova; caso o juiz fique com dúvidas, deve ser a
Administração a suportar a desvantagem de não ter sido feita a prova.

4.2 Princípios relativos à forma processual

4.2.1 Princípio da forma escrita e da oralidade

Este princípio visa articular as duas, pois tradicionalmente o processo administrativo era um processo
escrito e não oral, não havendo lugar à audiência de discussão e ao julgamento. Hoje, na acção
administrativa comum, o processo administrativo segue o CPC, e portanto há uma audiência de
discussão e julgamento; além disso, mesmo na acção administrativa especial, há algumas manifestações
de oralidade:
i) Na acção especial, o art. 91.º permite hoje que haja lugar a discussão oral da matéria de
facto, ou seja, o juiz pode ordenar a realização de uma audiência publica para a discussão
oral da matéria de facto, oficiosamente o a pedido das partes.
ii) Outra manifestação do princípio da oralidade esta igualmente presente no art. 103.º
(contencioso pré-contratual), onde se prevê que o tribunal realize uma audiência pública
para discussão da matéria de facto e direito e na qual são feitas as alegações finais.
iii) O mesmo se passa nas intimações para protecção do DLG, na tramitação urgente do art.

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111.º, em que o juiz pode determinar a realização de uma audiência oral no prazo de 48h,
na qual profere a decisão final.

4.2.2 Princípio da publicidade das decisões

Como é que as decisões são conhecidas? De duas formas: ou através de notificação às partes (as sentenças
judiciais têm de ser notificadas às partes); ou através de publicação no Diário da República. É o que se
passa com as sentenças de uniformização de jurisprudência e com as sentenças e declaração de
ilegalidade com força obrigatória geral (art. 119.º da CRP). À parte destas situações, que são imperativas,
há ainda outras formas de publicidade: uma delas é a da publicação em apêndices ao Diário da
República, art. 30.º/4.

4.2.3 Princípio da fundamentação obrigatória das sentenças

É um princípio que está previsto no art. 94.º CPTA e 205.º/1 CRP: todas as sentenças têm de ser
fundamentadas, abrangendo esta fundamentação quer a matéria de facto, quer a matéria de direito.

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CAPÍTULO VIII: Efeito e força das sentenças

Iremos apenas falar do processo de execução de sentenças anulatórias, que é específico do processo
administrativo.

1. A obrigatoriedade da execução das sentenças

Tal como sucede no processo civil, temos no processo administrativo vários tipos de sentenças:
i) Condenatórias: condenam na abstenção ou adopção de uma conduta.
ii) Constitutivas: introduzem uma modificação na ordem jurídica.
iii) Declarativas: reconhecem ou constatam uma determinada situação jurídica.

Qual a especificidade no processo administrativo? As sentenças anulatórias, além de terem efeitos


constitutivos, como sucede no processo civil, têm ainda efeitos ultra-constitutivos, o que se vai reflectir na
própria formatação do processo de execução.

1.1 Dever de cumprimento espontâneo

Em qualquer das hipóteses, as sentenças judiciais são sentenças obrigatórias, isto é, a força jurídicas das
sentenças proferidas pelos tribunais administrativos é obrigatória: isto resulta expressamente do art.
158.º. Esta obrigatoriedade está associada aquilo que se designa como cumprimento espontâneo, ou seja,
à força vinculativa da sentença quer para os particulares, quer para a Administração – esta está obrigada
a espontaneamente cumprir ou retirar todas as consequências que resultam de uma dada sentença
judicial. Isto é relevante pois não foi sempre assim: anteriormente, quando era proferida uma sentença
judicial, designadamente anulatória, o particular tinha de ir pedir à Administração para dar execução à
sentença, e somente se esta não procedesse à execução é que o particular podia propor uma acção
executiva.

Hoje, está expressamente previsto no art. 162.º e 170.º a execução espontânea da sentença por parte da
Administração: o legislador fixa um prazo, que varia em função do tipo de prestação que a
Administração tenha de cumprir (na prestação de facto ou coisas, 6 meses; pagamento de quantia certa,
30 dias); se não o fizer, pode o particular propor a acção executiva.

Mas também temos sentenças com força obrigatória geral, ou seja, a Administração também pode ficar
vinculada mesmo que não tenha sido parte no processo.

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1.2 Consequências do incumprimento

Quais as consequências do dever de incumprimento? A primeira consequência imediata é a de que o


particular tem a possibilidade de propor a acção executiva; mas há outras consequências para a violação
do dever de cumprimento, art. 158.º/2 e 159.º:
i) Responsabilidade civil, disciplinar e criminal: art. 158.º/2 2ª parte e art. 159.º
a. Se a Administração não cumprir, incorre desde logo em responsabilidade civil se
do incumprimento da sentença resultarem danos para o particular (aplica-se
aqui o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais
entidades públicas por actos da função administrativa).
b. Responsabilidade disciplinar dos trabalhadores da Administração aos quais
competia nos termos da lei executar a sentença, prevista no Estatuto dos
Trabalhadores que exercem Funções Públicas. Vai desde a simples advertência
até à extinção da relação de emprego público.
c. Responsabilidade criminal: o art. 159.º/2 está mal redigido, pois o que o
legislador quer dizer é que há responsabilidade criminal e a inexecução importa
a prática de um crime de desobediência (não há a "pena de desobediência"), ao
qual é aplicado a moldura penal prevista no Código Penal.
ii) O art. 158.º/2 prevê uma outra consequência: a nulidade de qualquer acto administrativo
que viole a sentença judicial, art. 133.º/2/h) do CPA: o CPA prevê que são nulos os actos
que ofendam os casos julgados, que é precisamente a mesma coisa que diz o art. 158.º/2.

1.3 Causas legítimas de inexecução

Sabemos que a obrigatoriedade das sentenças judiciais traz como consequência o dever de execução
espontânea, mas há hipóteses em que a Administração pode não cumprir a sentença: são as hipóteses que
consubstanciam uma causa legítima de inexecução. Nas situações em que a Administração invoque esta
causa e o tribunal a reconheça, no final o particular terá direito a uma indemnização, que equivale a uma
indemnização por responsabilidade civil por actos lícitos.

A matéria das causas legítimas está prevista nos arts. 163.º e 175.º. O primeiro diz respeito às causas no
âmbito das obrigações da prestação de facto ou de coisa; e o segundo no âmbito da execução de
sentenças anulatórias de AA. Nas prestações de quantia certa não está prevista causa.

 Possibilidade de julgamento antecipado

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As causas legítimas são apreciadas durante a fase pré-declarativa dos processos executivos, que é uma das
especificidades do processo executivo administrativo e na qual se especificam os actos que
correspondem ao cumprimento da sentença judicial. A apreciação ocorre assim neste momento prévio.

No entanto, o Código prevê no processo declarativo a possibilidade de antecipação do juízo de causa


legítima, art. 45.º: este diz respeito a situações de julgamento antecipado, em que na acção declarativa já se
consideram factos que, se fossem tomados em consideração no processo de execução, equivaleriam à
invocação de causa legitima de execução. Nestes casos, em vez de proferir sentença que corresponde ao
pedido, julga improcedente o pedido e convida as partes a acordarem o montante da indemnização. Se
não houver acordo, o autor pode requerer a fixação judicial do montante da indemnização. O pedido é
transformado num pedido indemnizatório: em vez de o tribunal aceder à pretensão do autor, promove o
pedido de uma indemnização. Se no final temos um pagamento, vamos estar no âmbito de uma execução
para pagamento de quantia certa.

Na causa legítima em sede de processo executivo, não houve este julgamento antecipado: o tribunal
condenou o tribunal no pedido inicial, mas em sede de execução a Administração alega uma situação de
impossibilidade ou grave prejuízo.

Note-se que os pressupostos não são exactamente idênticos quanto ao prejuízo: o art. 45.º é mais exigente,
precisamente porque implica um juízo antecipado, ocorrendo em momento anterior à prolação da
sentença – fala em "excepcional prejuízo", enquanto que o art. 163.º se contenta com "grave prejuízo".

 Factos que fundamentam as causas legítimas: a questão da superveniência

Existem duas situações que fundamentam a causa legítima de inexecução: a impossibilidade absoluta,
material ou jurídica, e o grave prejuízo para o interesse público.

Quais são os factos que servem para fundamentar a impossibilidade absoluta e o grave prejuízo? O art.
163.º/3 exige que os factos sejam:
i) Objectivamente supervenientes, ocorrendo depois da prolação da sentença;
ii) Ou subjectivamente supervenientes, quando ocorreram antes mas a Administração não
tenha tido conhecimento.

Porque é que se exige esta superveniência? Diz-se que é porque o art. 45.º admite um julgamento
antecipado, ou seja, na lógica do legislador, se os factos ocorreram antes ou a Administração teve
conhecimento antes, então a questão deveria ter ficado decidida na acção declarativa. Critica-se isto pois

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este entendimento não valerá numa situação de impossibilidade: mesmo que esta decorra de factos
anteriores, a Administração nunca pode executar a sentença. Seria estranho furtar esta situação à causa
legítima, uma vez que ainda dá uma protecção aos interesses do lesado.

Porém, no processo de execução das sentenças anulatórias, o legislador não exige a superveniência. Porquê?
A razão desta diferença reside na específica regulação do processo de execução destas sentenças, que
contém uma fase pré-declarativa com muito maior peso. Assim, o legislador considera que no caso da
anulação a questão não ficou toda decidida no processo declarativo.

Concluindo, a ideia da superveniência não vale em absoluto: não vale em relação a todos os processos
executivos; e, mesmo quando exige em relação a certos processo, pode não fazer sentido (é o caso típico da
impossibilidade absoluta).

 Inexistência de verba

Há uma situação que nunca pode ser considerada uma situação de causa legítima, art. 171.º/2: a
inexistência de verba. Se a Administração for condenada numa determinada quantia pecuniária, a falta do
dinheiro não constitui causa legítima de inexecução, quer de impossibilidade, quer de grave prejuízo. Mas
e se não houver mesmo verba? O art. 172.º/8 prevê que se dê continuidade à execução sendo penhorados e
vendidos os bens patrimoniais públicos, sendo que o exequente tem o direito de nomear bens. Esta é uma
novidade do contencioso administrativo: antigamente, se não houvesse cabimento orçamental, o
particular não poderia nomear bens à penhora. Esta novidade permitiu assegurar a tutela jurisdicional
efectiva dos particulares em sentenças de condenação ao pagamento de quantias certas.

 Invocação das causas legítimas

Quando é que a Administração pode invocar uma causa legítima de inexecução? Logo na fase pré-
executiva, no momento em que deveria cumprir espontaneamente a sentença mas não o faz; ou em
oposição à execução, ou seja, durante o processo executivo (art. 165.º). No caso das sentenças de execução
anulatórias, a invocação da causa é efectuada da contestação à propositura da acção executiva (art.
177.º/3).

 Consequências da procedência

Uma causa pode ser procedente de duas maneiras: ou porque a Administração entra em acordo com o
interessado, art. 164.º/6; ou quando não há acordo e há um julgamento pelo tribunal da procedência, art.

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166.º.

Quais as consequências?
i) Se houver acordo, o art. 164.º/6 prevê que o exequente pode requerer a fixação da
indemnização.
ii) No caso de julgamento, o tribunal convida as partes a acordarem no montante. Se as partes
não estiverem de acordo, o tribunal vai fazer diligências que corresponderiam à acção de
responsabilidade civil, art. 166.º/2. No final destas diligências, fixa o montante. Esta
indemnização é de responsabilidade civil por factos lícitos, visando compensar o sacrifício
do direito do particular reconhecido pelo tribunal. Esta sentença será, em caso de
incumprimento, executada nos termos regulados para pagamento de quantia certa – art.
166.º/3.

Há aqui uma pequena controvérsia doutrinal de saber quais são os critérios de fixação desta indemnização: se esta é uma
indemnização que segue a indemnização por sacrifício da Lei da Responsabilidade Extracontratual (art. 16.º), ou se
equivale antes a uma indemnização por factos lícitos. Porque é que há controvérsia? Porque o art. 16.º limita o montante a
danos especiais e anormais – à luz do anterior Regime, a indemnização por factos lícitos e a indemnização por sacrifício
formavam um instituto único; hoje, por força desta limitação, a doutrina separa-os. Dizer que a indemnização pela causa
legítima é uma indemnização por sacrifício colocaria a questão de saber quais são os danos anormais, sendo que na
perspectiva de VIEIRA DE ANDRADE esta questão não se deve colocar: deve-se criar o critério da indemnização de todos os
danos decorrentes. Para RAQUEL Moniz, o art. 16.º estará mal construído: deveria dizer-se "todos os danos decorrentes de
encargos especiais e anormais", logo já serviria para a indemnização pela causa legítima, pois a não execução da sentença é
um encargo especial. Isto permitira unificar todas as situações de indemnização por actuações lícitas.

2. Processos executivos

2.1 Âmbito do processo executivo

Quanto aos processos executivos regulados no Código, estes são processos que se dirigem em primeira
linha a regular a execução das sentenças proferidas nos tribunais administrativos. Dentro das sentenças
proferidas pelos tribunais administrativos, temos de distinguir duas situações:
i) Sentenças proferidas contra os particulares;
ii) Sentenças proferidas contra a Administração (em sentido amplo).

O art. 157.º diz respeito ao âmbito do processo executivo, sendo que as sentenças proferidas contra a
Administração...
i) São reguladas pelo CPTA, aplicando-se os três processos executivos aí previstos:

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a. Pagamento de quantia certa;


b. Prestação de facto ou de coisa;
c. Sentenças anulatórias.
ii) Ocorre nos tribunais administrativos.

Já quanto às sentenças contra os particulares, o art. 157.º/2 diz que estas são proferidas pelos tribunais
administrativos, mas a lei aplicável é a do CPC.

Mas os processos previstos no CPTA não servem apenas para regular sentenças proferidas nos tribunais
administrativos, mas também para executar outros títulos executivos: os actos administrativos, quando a
Administração não tenha poder de execução dos actos (actos não executórios); e quando a
Administração não cumpra os actos administrativos (isto é diferente da execução de actos não
executórios, que é contra os particulares). Nestes casos, se do acto resultar um direito para o particular e
este quiser executar o acto, pode propor uma acção executiva. Estas hipóteses estão previstas no art.
157.º/3.

2.2 Espécies de processos executivos regulados no CPTA

Que processos executivos estão regulados no CPTA?


i) Execução para prestação de facto ou de coisas: arts. 162.º e segs. Note-se o art. 167.º/6: é no
processo executivo que o tribunal pode proferir sentenças substitutivas da prática de actos
administrativos, na hipótese em que o acto devido pela Administração seja totalmente
vinculado (quer quanto ao momento, quer quanto ao conteúdo).
ii) Execução para pagamento de quantia certa, art. 170.º e segs.
iii) Execução das sentenças de anulação, art. 173.º e segs.: é o processo executivo específico do
Direito Administrativo.

2.2.1 Execução das sentenças anulatórias

Uma primeira nota é a de que este processo acentua a especificidade do processo executivo no Direito
Administrativo: uma especificidade tem a ver com a ampliação da fase declarativa; a outra tem a ver com
o próprio título executivo. As sentenças constitutivas, como as anulatórias, não são no processo civil
títulos executivos: o efeito da sentença anulatória, para o processo civil, não carece de execução, pois o
objectivo da sentença anulatória, a satisfação dos interesses do autor, ocorre com a simples prolação da
sentença. No Direito Administrativo, não é assim: a sentença anulatória, além de ter efeitos constitutivos
(a destruição retroactiva do acto administrativo), tem também aquilo que a doutrina, na sequência do

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Professor FREITAS DO A MARAL, designa por efeitos ultraconstitutivos.

 Efeitos ultraconstitutivos

Em que consistem estes efeitos ultraconstitutivos? São efeitos que ultrapassam a mera anulação, o efeito
jurídico-abstracto que conduz à destruição retroactiva do acto. Estes são efeitos de dois tipos:
i) Reconstrutivos: determinam que a sentença anulatória crie na esfera jurídica da
Administração um dever de reconstituição da situação actual e hipotética. Estes efeitos
obrigam a Administração a colocar o destinatário do acto anulável na situação em que ele
estaria ou se não houvesse acto, ou se o acto não tivesse sido praticado com aquela
invalidade.
ii) Conformativos: significam que a Administração está obrigada a não reincidir nos vícios e
está vinculada ao cumprimento dos deveres que não tenha cumprido com fundamento
anulável. Gera duas obrigações, ambas dirigidas à adequação do comportamento da AP à
sentença
a. Não reincidência nos vícios.
b. Cumprimento dos deveres que não tenha cumprido com fundamento no acto
anulado.

É por se ter esta concepção dos efeitos que alguns destes pedidos já podem ser solicitados na acção
declarativa: os casos de cumulação de pedidos (art. 47.º) já prevêem que o pedido de declaração ou
anulação possa ser cumulado com o pedido da adopção dos comportamentos destinados à
reconstituição da situação hipotética e aos cumprimentos dos deveres que não tenham cumprido (2/b)).
Este efeito pode ser imediatamente antecipado para o processo declarativo (caso em que a própria
sentença do processo declarativo é uma sentença anulatória e condenatória): o particular pode assim
cumular na acção declarativa o pedido de impugnação do acto com o pedido condenatório; mas se não fizer
esta cumulação isto não isenta a Administração de, em sede da execução da sentença, cumprir estes deveres,
pois decorrem da sentença anulatória. Note-se que o efeito conformativo, na parte da não reincidência,
não impede a Administração de renovar o acto administrativo: no caso de vícios formais, o acto
administrativo pode ser praticado com o mesmo conteúdo sem vícios formais.

 Tramitação

O processo executivo é sempre precedido de um prazo para a execução espontânea da Administração – o


prazo aqui está previsto no art. 165.º/1 (3 meses). Neste prazo, a Administração deve dar cumprimento
aos efeitos ultraconstitutivos da sentença:

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i) Art. 173.º/2: fixa genericamente o que a AP pode fazer.


a. Praticar actos dotados de eficácia retroactiva;
b. Aplicar sanções;
c. Etc.
ii) Art. 173.º/3 e 4: fixam concretizações específicas do n.º 2 em matéria de funcionalismo
público, quando esteja em causa um acto administrativo nesta matéria e a sentença
implique a reintegração de um funcionário

E se a Administração não executar? O particular pode intentar a petição de execução, prevista no art. 176.º,
num prazo de 6 meses. Nessa petição, o particular deve especificar os actos e operações necessárias à
execução da sentença, inclusivamente pedir a declaração de nulidade de actos consequentes ou anulação
dos que mantenham a situação; e pode ainda pedir uma sanção pecuniária compulsória, se esta não tiver
sido fixada na declarativa.

Em resposta a esta petição, a Administração pode invocar a tal causa legítima de inexecução: ou a causa é
considerada procedente, com as consequências que vimos (indemnização), ou ela não é julgada
procedente. Nos termos do art. 179.º/1, o tribunal especifica o conteúdo dos actos a adoptar, os órgãos, o
prazo, declara a nulidade dos actos consequentes, anulam os que mantenham a situação legal, fixa a
sanção, etc. Estando em causa acto vinculado, pode fixar uma sentença substitutiva, n.º 5.

Se a Administração não cumprir no prazo que o tribunal fixar, incorre em responsabilidade civil, n.º 6.
Poderá também haver lugar a responsabilidade disciplinar e responsabilidade penal (art. 167.º/4)

O que é importante é perceber porque é que uma sentença anulatória é passível de execução judicial:
embora à primeira vista não pareça, cria deveres na esfera da Administração à semelhança de uma
sentença condenatória.

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