Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Considero meu primeiro contato com sua obra uma verdadeira descoberta:
comprei num sebo no Centro do Recife uma edição velhinha de Filosofía y poesía e
enxerguei ali, já na leitura dos primeiros parágrafos, algo fora do ordinário, tanto
do ponto de vista conceitual quanto no que se refere ao estilo literário plasmado
em forma ensaística. Afinal, era filosofia ou literatura? A disjuntiva (isto ou
aquilo) ainda se me impunha como algo intransponível naquele tempo. Depois de
alguns anos, e superada a visão dicotômica e empobrecedora à qual eu mesmo me
aferrava, a pergunta simplesmente deixou de fazer sentido para mim. Mas, antes
de tratar disso, acho que é de bom-tom apresentar brevemente as circunstâncias
vitais da pensadora.
Por razões políticas, Zambrano deixou a Espanha, e toda sua vida como exilada,
pesem todas as dificuldades, foi muito fecunda em produção literária e em
relacionamentos com intelectuais, artistas e políticos. No México, conheceu Octavio
Paz e León Felipe; na França, fez amigos como Albert Camus e o poeta René Char.
Viveu também em países como Porto Rico e Cuba, sempre exercendo a docência
em diversas universidades. Somente em 1953 ela pôde retornar à Europa, fixando
residência em Roma. No ano de 1978, mudou-se para a Suíça e, finalmente, em
1982, retornou à Espanha, onde faleceu em 1991.
OS CAMINHOS DO PENSAMENTO
“O próprio do homem é abrir caminho, porque, ao fazê-lo, põe em exercício o seu
ser; o próprio homem é caminho”, escreveu Zambrano. A citação é um ótimo
exemplo para ilustrar duas coisas: primeiramente, em relação ao seu estilo
literário, vê-se que utiliza a linguagem metaforizada para carregar a sua
concepção de um sentido vital; e, em segundo lugar, que o autor de Caminhos do
bosque, Martin Heidegger, foi outra grande influência para a filósofa. Aliás, a ideia
heideggeriana do homem como um eterno projetar-se no tempo parece que teve
muitas reverberações, tanto na filosofia como na literatura. Essa mesma concepção
está presente, por exemplo, em Ortega y Gasset (“El hombre es quehacer”), ou em
Antonio Machado (“El camino se hace al caminar”); e, também, para citar um
exemplo literário brasileiro, em Guimarães Rosa, quando ele sugere que o real não
está nem no princípio nem no fim, mas dispõe-se para cada um durante a
travessia, que é a vida mesma.
A razão poética, como método para uma recepção vital dos acontecimentos, é que
vai promover a “creación de la persona”, através desse caminho que é a existência.
Para tanto, inicia-se como “conocimiento auroral”: visão poética e atenção
disposta à recepção – sem rechaçar o que vem do espaço exterior,
permanentemente aberta e nascente. A partir de então, a razão poética se dará
plenamente, como ação metafórica, à maneira dos poetas, realizando um vínculo
através das palavras. E, neste ponto, pode-se vislumbrar novamente a visão de
Heidegger, para quem o pensador autêntico e o verdadeiro poeta estão
necessariamente ligados ao mesmo ato e ao mesmo testemunho do ser.
POESIA E FILOSOFIA
Investigar a essência do fenômeno poético e perscrutar os seus vínculos com a
filosofia: eis a instigante tarefa a que se propõe María Zambrano em uma parte
considerável de suas escrituras.
***
A edição das Obras completas (em quatro tomos) de María Zambrano começou a
sair em 2015 pela Editora Galaxia Gutenberg, e seria um grande acontecimento
intelectual por estas bandas se alguma boa editora resolvesse publicar, mesmo que
não em sua totalidade, boas traduções. Para ficar com três títulos fundamentais, eu
destacaria El hombre y lo divino, Filosofía y poesía e Persona y democracia.
A EMPATIA É BRANCA?
A empatia tem que ser bilateral, mútua e ser, por assim dizer, simpatia?
ILUSTRAÇÃO HANA LUZIA
FacebookTwitterGoogle Plus
Meu amigo e colega Filipe Campello traça, em artigo recente, uma distinção
importante no que diz respeito ao debate vital sobre o lugar de fala. Campello tem
razão em colocar inicialmente que em termos políticos não estamos mais dispostos
(as), ou pelo menos não deveríamos, a passarmos incólumes diante da omissão
histórica do lugar de fala de grupos significativos da população brasileira. Não
apenas grupos estatisticamente chamados minoritários, mas grupos que compõem
a maior parte da população brasileira, como as pessoas não brancas, por exemplo,
tiveram seu lugar de fala sequestrado em nome de uma suposta harmonia social
(chamada por alguns de democracia racial). O discurso da harmonia e da
cordialidade fez sombra sobre a explícita hegemonia branca, católica, masculina e
heteronormativa em todos os lugares de poder. Reparar essa dívida histórica, sim,
trata-se de uma dívida, parece algo tanto urgente quanto justo. O lugar de fala
importa.
Com efeito, a despeito das dificuldades que trago, podemos perguntar se não seria
possível treinar a sensibilidade para atingirmos uma espécie de padrão universal.
E, enfim, termos uma base sensível comum para, por exemplo, o exercício da
empatia mais generalizado e capaz, porquanto, de superar as diferenças
recalcitrantes que experenciamos hoje entre diferentes grupos políticos.
No entanto, parece-me que cabe uma questão anterior. Aliás, algumas. Precisamos
de um treinamento estético para o exercício da empatia? Ganha-se mais
politicamente sendo mais empático? É a empatia uma categoria política
incontornável? A empatia tem que ser bilateral, mútua e ser, por assim
dizer, simpatia? São várias indagações, mas vou me permitir voltar à questão do
lugar de fala que serve como uma lupa para recuperar nos discursos os lugares de
poder. Quem pede empatia? Qual o lugar de fala da empatia? Ele é, em geral,
privilegiado. Para retomar o exemplo do texto de Campello é a artista branca
Dana Schutz que se mostra empática em face do sofrimento do jovem negro
Emmett Til; pintado por ela. No entanto, o que alguns movimentos sociais pedem
não é propriamente empatia, mas reconhecimento; o que nos reporta para uma
discussão mais política do que apenas estética. Voltemos para a política.