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César Benjamin
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real do sistema, o modo como ele se articula em determinado período.
Era assim, aliás, que o próprio Marx trabalhava, estabelecendo todo o
tempo uma relação estreita entre teoria e história (sua crítica a Ricardo,
por exemplo, insistia na importância da forma dos processos, aspecto
que o grande economista inglês subestimava). Para ele, a história nunca
foi um conjunto de fatos a serem selecionados para legitimar uma
teoria. A história constitui organicamente a teoria, de modo que esta
não existe sem aquela. “O modo dialético de exposição só é correto
quando conhece seus próprios limites”, escreveu nos Grundrisse, onde
descreve seguidamente como são insuficientes os raciocínios baseados
apenas em arranjos lógicos de conceitos. Por isso, ele nunca pensou
que pudesse fazer previsões a partir das leis fundamentais que
formulou, às quais, aliás, deu o nome de leis de tendência, o que
pressupõe a existência de contratendências, que freqüentemente
prevalecem (não fosse assim estaríamos diante de leis positivas,
absolutas).
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trabalho vivo e novos mercados em ascensão, não saturados, tornaram -
se disponíveis para o capital nas últimas décadas, somando- se aos
“estoques” mais antigos. De outro, o desenvolvimento técnico permitiu
encurtar o tempo da acumulação, ou o ciclo do capital, tornando mais
rápido o circuito de produção, circulação e realização de bens e serviços
— o que, como se sabe, também é um mecanismo de sustentação das
taxas de lucro (“Circulação sem tempo de circulação é a tendência do
capital”, dizia Marx).
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crise iminente não se transforma em crise real — permaneceria sem
solução.
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Conferência de Bretton Woods (1944) entregou a senhoriagem da
economia capitalista mundial aos Estados Unidos, mas impôs a esse
país duas regras de emissão: a conversibilidade dólar- ouro e a paridade
fixa entre os dois. Ambas as regras foram garantidas em tratado
internacional assinado pelo Estado americano.
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Como o sistema internacional não tinha – e ainda não tem – substituto
para o dólar, o Estado americano reteve, na prática, o direito de
senhoriagem sobre a economia internacional, agora porém sem as
limitações das regras de emissão. Não foi uma decisão técnica.
Relacionou- se, antes de tudo, com um ambicioso projeto de retomada
(ou reafirmação) da hegemonia norte- americana, àquela altura
ameaçada pelo vigor das economias alemã e japonesa reconstruídas, o
poderio político- militar soviético em aparente ascensão e as veleidades
contestadoras de grande parte do então Terceiro Mundo. Sem
compreender esse projeto, em todas as suas dimensões (econômica,
militar, política, cultural, ideológica), nada se compreende da evolução
da conjuntura internacional nas últimas décadas. (Reiteremos, de
passagem, este aspecto da história: o chamado processo de
globalização deslancha a partir do momento em que é impulsionado
pelo Estado nacional hegemônico, em defesa de seus interesses;
confundir “globalização” e “enfraquecimento [ou fim] da ação dos
Estados” não tem sentido nenhum.)
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Um primeiro motivo é claro: é muito difícil transitar de um padrão
monetário a outro. O trânsito da libra para o dólar, por exemplo, só se
completou muito depois de a Inglaterra ter perdido, de fato, a
hegemonia mundial, e a fase de transição exigiu duas guerras mundiais.
O segundo motivo nos interessa mais, pois remete à terceira anomalia
do sistema internacional atual, a que me referi antes: a região
ascendente do sistema – o Leste da Ásia – é estruturalmente
superavitária. Não poderia funcionar se não tivesse como formar e para
onde escoar o seu enorme superávit. O déficit americano – ou seja, a
necessidade de financiamento da economia americana – é que abre
espaço para a acumulação acelerada na Ásia e para a reciclagem do
capital sobrante dessa região. Essa afirmação pode ser generalizada,
sem nenhuma perda de rigor: o déficit americano cria aquele que é, de
longe, o mais importante pólo de demanda efetiva para a economia
internacional, pois os dois outros grandes centros – a Europa e o Japão –
vivem períodos prolongados de recessão ou baixo crescimento.
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que mantém a economia mundial funcionando (a capacidade de
endividamento americana) depende da posição especial do dólar;
porém, enquanto essa posição perdurar, os Estados Unidos manterão
um grau de hegemonia que não é facilmente tolerado pelos demais
participantes do grande jogo de poder mundial.
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axiomaticamente, que em condições normais esse sistema tende a
algum tipo de multipolaridade. Na economia- mundo contemporânea, a
existência de um só centro, esmagadoramente hegemônico, só pode ser
uma situação excepcional e transitória. A unipolaridade criada no imediato
após-Guerra Fria não é uma configuração estável.
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Estados nacionais em reféns do sistema financeiro internacional; o
isolamento ideológico e enfraquecimento das forças armadas do
continente; a intervenção direta dos Estados Unidos na região
amazônica, importante depositária de recursos estratégicos para o novo
ciclo econômico de longo prazo que se inicia (pela primeira vez na
história, essa intervenção inclui a montagem de bases militares
americanas dentro da região).
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impede a adequada coordenação de políticas monetárias e fiscais; sem
essa coordenação (que o Estado norte- americano realiza com grande
competência, graças a uma arquitetura institucional que garante elevada
sintonia entre Banco Central e Tesouro), a Europa perdeu a capacidade
de realizar políticas anticíclicas e deixou - se prender na armadilha do
baixo crescimento; a própria Alemanha já percebeu a necessidade de
alterar essa situação, mas todos os movimentos da União Européia, por
sua própria natureza, são especialmente complexos e lentos; (b) na
esfera política, destaca- se a dificuldade de definir uma política externa
européia unificada, por motivos históricos e geopolíticos, que se
traduzem por exemplo na tendência alemã de olhar para o hinterland do
Leste, de um lado, e na elevada dependência da Inglaterra (que continua
a ser uma praça financeira importante e a deter uma capacidade militar
também importante) em relação aos Estados Unidos, de outro; (c) as
incertezas que cercam o futuro da Rússia e de várias ex- repúblicas
soviéticas, que pesam diretamente sobre o continente.
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de 28,6 bilhões de barris e um consumo diário de 19,5 milhões de
barris, os Estados Unidos têm petróleo próprio para abastecer- se
durante apenas quatro anos. A evolução do cenário no Oriente Médio foi
favorável à posição americana até recentemente: a principal potência
regional não subordinada, o Iraque, fora destruída na Primeira Guerra
do Golfo e permanecia sob bloqueio, remetida a uma posição passiva e
defensiva, e a maioria dos Estados árabes já reconhecia (ou se dispunha
a reconhecer) Israel. Com o fim da União Soviética, desaparecera o
espectro de uma guerra entre Estados na região, pois os países árabes
ficaram sem retaguarda. O regime iraniano trabalhava para sua própria
consolidação e não parecia capaz de uma ação desestabilizadora. O
conflito reduzira- se a uma escala local na Palestina, de baixa
intensidade, envolvendo helicópteros e grupamentos de soldados, de
um lado, homens- bomba e atiradores de pedra, de outro, em
escaramuças suficientes para alimentar noticiários, mas incapazes de
colocar em risco a oferta de petróleo.
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tecnológico, experiências de desenvolvimento rápido, empresas e
bancos de grande porte, Estados nacionais vigorosos, poder nuclear
(ainda claramente inferior ao dos Estados Unidos e da Rússia, porém
crescente). Será uma jogadora de grande peso no século que se inicia.
Mas tem limites: está longe de criar uma área econômica integrada e
nem se vislumbra a possibilidade de que algum dia venha a constituir
um megaestado continental, em moldes europeus. Não se vê sequer
como poderia constituir uma área monetária. Mantém- se altamente
dependente do mercado norte- americano e do dólar, moeda em que
estão denominadas suas volumosas reservas. Além disso, abriga
grandes populações em estado de pobreza e é portadora de enormes
tensões internas de natureza nacional, étnica e religiosa. Não consegue
marchar junta. A Índia permanece às voltas com um grave contencioso
com o Paquistão, a China (que ainda não completou seu processo de
reunificação nacional) precisa ganhar tempo, o Japão tem fraquezas
estruturais de grande monta, e assim por diante.
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prestam- se muito mais à dissuasão do que ao uso efetivo, o controle
simultâneo dos oceanos é, de longe, o elemento central na supremacia
militar em escala mundial. Tendo- o conquistado, os Estados Unidos
detêm o monopólio da capacidade de deslocar e projetar suas forças em
qualquer parte do planeta.
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poder: (a) os Estados Unidos são capazes de atacar e derrotar países não
portadores de armas nucleares, como o Iraque e o Afeganistão,
independentemente de sua posição geográfica; porém, para
estabilizarem sua dominação, dependem da existência de grupos de
apoio minimamente legítimos nas sociedades locais; se esses pontos de
apoio lhes são negados, sua vitória militar inicial se transforma em um
pesadelo; (b) países portadores de armas nucleares permanecem
invulneráveis à máquina militar norte- americana, por sua capacidade de
causar danos inaceitáveis aos próprios Estados Unidos ou a seus
aliados; é o caso da Coréia do Norte, cujos mísseis podem alcançar as
principais cidades japonesas e as bases militares americanas em toda a
região; por isso, aliás, a agressividade dos Estados Unidos pode
desencadear uma corrida, de conseqüências imprevisíveis, em direção à
posse dessas armas por parte de países que se sintam ameaçados; (c)
ações militares unilaterais têm altos custos políticos, diplomáticos e
financeiros; em princípio têm de ser financiadas inteiramente pelo
atacante; (d) embora, pelo sólido controle dos oceanos, os Estados
Unidos venham a manter por muito tempo o monopólio da capacidade
militar ofensiva em escala planetária, nada impede que outros países
desenvolvam estratégias defensivas eficazes em escala regional;
ninguém poderá competir com a esquadra dos Estados Unidos em alto-
mar, mas alguns poderão capacitar- se, com custos acessíveis, a impedir
que ela se aproxime de seus territórios.
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Desde sua constituição, nas origens do mundo moderno, o sistema
internacional foi fortemente polarizado por um centro relativamente
pequeno e uma grande periferia. Processos de crescimento rápido, fora
dos países centrais, ocorreram basicamente em regiões que dispunham
de abundantes recursos naturais (potencial agrícola, minérios),
eventualmente valorizados. Quando esses recursos se esgotavam ou
perdiam importância, suas regiões produtoras caminhavam para a
decadência, reafirmando sua condição periférica.
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momento enfrentam dificuldades insuperáveis para sustentar projetos
emancipatórios próprios.
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Observemos apenas um aspecto geral, especialmente relevante para
entender a desarticulação do projeto brasileiro.
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centrais. Mas o problema é que tais atividades perdem essa
característica diferencial justamente quando a periferia em via de
modernização consegue capturá- las, pois aí elas ficam sujeitas a uma
pressão concorrencial que diminui sua importância e sua rentabilidade.
Quando isso acontece, essas atividades são relegadas a segundo plano
pelas economias centrais, que renovam sua posição privilegiada
alterando as combinações produtivas mais eficazes. A desigualdade se
repõe.
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compreendidas aquelas que têm desdobramentos militares), de outro,
permanecem estreitamente vinculados, pelo forte vínculo entre
megacorporações empresariais e Estados nacionais poderosos. No caso
dos demais, esses âmbitos se dissociam, pela dispersão geográfica das
cadeias produtivas, em escala mundial, feita sob o comando de
corporações empresariais que não têm compromissos com os Estados e
sociedades mais fracos, onde apenas instalam filiais.
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atual evolui de uma situação de unipolaridade para alguma outra
configuração multipolar. Com o tempo, os espaços de manobra dos
países intermediários tenderá a voltar a crescer. Por isso, é vital que
consigamos impedir que, neste curto intervalo de unipolaridade, o Brasil e a
América Latina sejam tragados pela área regional americana, o que tornaria
“permanente” — ou, pelo menos, muito prolongada e custosa — uma
condição marcada pelo estreitamento de possibilidades.
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histórico de um novo rearranjo regional de cooperação e
desenvolvimento — latino e americano —, que poderá vir a configurar
um novo bloco, ou um novo megaestado, no futuro. Por isso, em última
análise, as negociações em torno da Alca são negociações entre Brasil e
Estados Unidos sobre o destino do continente.
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Resta a maioria do nosso povo, que foi, simplesmente, desligado desses
processos. Refiro- me aos grandes contingentes humanos de que o
capitalismo não mais necessita. Sobrevivem no desemprego, no
subemprego, na economia informal, em atividades sazonais, incertas ou
ilegais. Por insistirem em sobreviver e por estarem relativamente
concentrados, ameaçam. E, de alguma forma, se organizam. São
dezenas de milhões. Mas, até aqui, não se tornaram agentes da
transformação. Este é o desafio central colocado para a esquerda, o
ponto cego de qualquer estratégia transformadora.
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“retomada do crescimento”. Há duas décadas não temos nada parecido
com crescimento sustentado, mas apenas miniciclos de crescimento
dentro de uma economia travada. Nada indica que essa condição tenha
sido alterada. Essa transição estrutural – de uma economia dinâmica
para uma economia de baixo crescimento – é muito importante, pois o
grande dinamismo da economia brasileira até 1980 foi um fator decisivo
para conferir relativa estabilidade a uma sociedade tão desigual como a
nossa.
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estava em expansão; o Estado aumentava sua oferta de serviços e
contratava mais gente; chegou a existir em muitas regiões uma escola
pública de razoável qualidade, etc. Na década de 1990, porém, todos
esses mecanismos foram quebrados, e o resultado disso é que
represamos a mobilidade social. Os pobres não conseguem mais sair do
lugar. Nem a oferta de trabalho, nem o deslocamento no espaço, nem a
possibilidade de estudo abrem mais alternativas significativas. As
periferias das Regiões Metropolitanas viraram depósitos de gente sem
perspectivas.
(a) A unipolaridade que marca o mundo após- Guerra Fria está dando
lugar, gradativamente, a uma nova configuração multipolar muito
complexa. O trânsito entre as duas situações é lento, pois há
disputa e cooperação no centro do sistema. A solução pela guerra
está afastada, e a conjugação de três anomalias econômicas criou
até hoje uma possibilidade muito elástica de adiamento de uma
grande crise. Isso desaparecerá se o dólar perder sua
centralidade atual, o que só poderá ocorrer em um prazo de pelo
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menos dez ou quinze anos. Não está clara a configuração exata
da nova ordem multipolar, que dependerá crucialmente dos
acontecimentos na Ásia.
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não gera empregos; urbanizou maciçamente sua população, que
agora, mais do que nunca, precisa de empregos para sobreviver;
destruiu os caminhos abertos à mobilidade social, nos níveis
(insuficientes) que já tivemos. A crise do modelo neoliberal, que
se projetará pela nova década adentro, terá como pano de fundo
essa crise maior, que questiona as estruturas do capitalismo
dependente brasileiro.
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