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Ciclo de seminários

Fórum Social Brasileiro, Belo Horizonte, 7 e 8 de novembro de 2003

Um projeto Ibase, em parceria com ActionAid Brasil, Attac Brasil e


Fundação Rosa Luxemburgo

Tendências da nova ordem mundial e o lugar do Brasil

César Benjamin

A esquerda tem debatido há vários anos a possibilidade de uma crise do


capitalismo, em escala mundial. Alguns chegam a defender que essa
crise já se instalou. Não compartilho dessa opinião. De um lado, ela
banaliza a expressão “crise”, conferindo - lhe um sentido elástico demais;
de outro, perde de vista a especificidade do capitalismo. O aumento da
exclusão social, a concentração da riqueza, as tendências militaristas e
realidades afins, tão visíveis no mundo contemporâneo, não devem ser
apresentados como argumentos e evidências nesse sentido, pois o
funcionamento normal do sistema pode provocar esses efeitos. O
capitalismo só entra em crise quando o processo de acumulação de
capital se interrompe. Sob este ponto de vista, ele permanece
funcionando, com as dificuldades e contradições que lhe são inerentes.

A idéia de uma “crise iminente”, por sua vez, não é despropositada, se


usarmos como referência teórica a análise clássica de Marx. Porém, as
leis formuladas por ele são insuficientes para compreender a dinâmica
que predomina em cada momento. É preciso observar a configuração

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real do sistema, o modo como ele se articula em determinado período.
Era assim, aliás, que o próprio Marx trabalhava, estabelecendo todo o
tempo uma relação estreita entre teoria e história (sua crítica a Ricardo,
por exemplo, insistia na importância da forma dos processos, aspecto
que o grande economista inglês subestimava). Para ele, a história nunca
foi um conjunto de fatos a serem selecionados para legitimar uma
teoria. A história constitui organicamente a teoria, de modo que esta
não existe sem aquela. “O modo dialético de exposição só é correto
quando conhece seus próprios limites”, escreveu nos Grundrisse, onde
descreve seguidamente como são insuficientes os raciocínios baseados
apenas em arranjos lógicos de conceitos. Por isso, ele nunca pensou
que pudesse fazer previsões a partir das leis fundamentais que
formulou, às quais, aliás, deu o nome de leis de tendência, o que
pressupõe a existência de contratendências, que freqüentemente
prevalecem (não fosse assim estaríamos diante de leis positivas,
absolutas).

Desejo propor outra abordagem. Ela parte da constatação de que os


elementos potenciais de crise sistêmica, reiteradamente apontados,
estão presentes há muitos anos. Por que, então, essa crise ainda não se
instalou? Como tem sido adiada? Até quando será adiada?
Indefinidamente? Que elementos têm permitido o prolongamento de
uma espécie de “fuga para a frente” do próprio sistema?

Para responder a questão assim reformulada, muitas análises enfatizam


o desenvolvimento tecnológico, ou a chamada Terceira Revolução
Industrial. Também me parece um caminho insuficiente. É verdade que
a mutação tecnológica contém dois elementos capazes de adiar a crise.
De um lado, tem permitido expandir o espaço geográfico abrangido
pela acumulação capitalista, incorporando vastas regiões e populações
(antes só marginalmente incorporadas) ao sistema produtivo
diretamente controlado pelo capital; por essa via, grande quantidade de

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trabalho vivo e novos mercados em ascensão, não saturados, tornaram -
se disponíveis para o capital nas últimas décadas, somando- se aos
“estoques” mais antigos. De outro, o desenvolvimento técnico permitiu
encurtar o tempo da acumulação, ou o ciclo do capital, tornando mais
rápido o circuito de produção, circulação e realização de bens e serviços
— o que, como se sabe, também é um mecanismo de sustentação das
taxas de lucro (“Circulação sem tempo de circulação é a tendência do
capital”, dizia Marx).

Ao permitir simultaneamente expandir o espaço (leia- se, incorporar


populações) sob controle efetivo do capital e contrair o tempo da
acumulação, a mutação da base técnica pode ter contribuído, de fato,
para que a crise potencial não se instalasse, como já aconteceu em
outros momentos da história (não há nada de novo nisso: esta é a mais
importante função do progresso técnico no capitalismo). Mas,
paradoxalmente, essa mesma mutação contém também elementos que
deveriam apressar a crise: o aumento da produtividade tem sido muito
superior ao aumento da produção; a capacidade de incorporar trabalho
vivo nas regiões “velhas” (especialmente nas mais desenvolvidas)
diminui dramaticamente; a acumulação fictícia (D- D’) crescu muito mais
que a acumulação produtiva; a tendência à superprodução se torna mais
nítida em um mundo no qual o desemprego aumenta, os salários reais
diminuem, os gastos anticíclicos dos Estados nacionais se contraem.

Com a integração plena do planeta em uma economia- mundo e a


realização de uma acumulação “na velocidade da luz”, a expansão do
espaço e a compressão do tempo atingem limites não ultrapassáveis.
Assim, a ênfase no desenvolvimento técnico deveria, ao fim e ao cabo,
repor e aprofundar a idéia de uma crise iminente. Privilegiando- se essa
abordagem, as segundas tendências (as tendências à crise) deveriam
acabar prevalecendo necessariamente sobre as primeiras (as tendências
ao adiamento da crise). A questão que formulamos acima — por que a

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crise iminente não se transforma em crise real — permaneceria sem
solução.

Para resolver a nossa questão precisamos reduzir o nível de abstração.


Poderemos então observar algumas características muito importantes,
que chamarei de anomalias, presentes na configuração atual do sistema.
Destacarei três delas, relacionadas entre si.

A primeira: a economia mais importante do mundo funciona com


déficits externos colossais e tornados permanentes. O déficit comercial
norte- americano só tem feito crescer, superando hoje, com folga, US$
500 bilhões por ano. A ele se soma um déficit fiscal que também
atingirá US$ 500 bilhões neste ano. Para perceber a enormidade desses
números, basta lembrar que, quando o déficit comercial brasileiro
atingiu “apenas” US$ 8 bilhões por ano, nosso país – que não é pequeno
– mergulhou em crise aguda, que forçou a mudança de seu regime
cambial.

Em tese, uma economia não poderia funcionar como a americana o faz.


Isso, aliás, era o que pensavam os arquitetos da ordem capitalista do
após- guerra, que criaram o Fundo Monetário Internacional (FMI)
exatamente para construir maneiras de reequilibrar balanços de
pagamentos em desequilíbrio, considerados incompatíveis com o
funcionamento normal do sistema internacional.

Só podemos compreender o padrão de funcionamento da economia


americana quando o observamos junto com uma segunda anomalia:
essa economia gigantesca e altamente deficitária emite, sem lastro e
sem regras de emissão, a moeda do mundo. Por isso, sua capacidade de
endividamento é incrivelmente elástica, em uma escala quase
impensável nos moldes tradicionais. Recordemos como chegamos a
isso: ao transformar o dólar em moeda de referência internacional, a

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Conferência de Bretton Woods (1944) entregou a senhoriagem da
economia capitalista mundial aos Estados Unidos, mas impôs a esse
país duas regras de emissão: a conversibilidade dólar- ouro e a paridade
fixa entre os dois. Ambas as regras foram garantidas em tratado
internacional assinado pelo Estado americano.

Criou- se assim um sistema em que a reserva americana de ouro


lastreava o dólar, que por sua vez era a referência para as demais
moedas, de acordo com taxas de câmbio fixas (ajustáveis segundo
certas regras). Nesse contexto, o poder de senhoriagem do Estado
americano era contido e disciplinado, pois a emissão de dólares
representava a hipoteca de sua reserva de ouro e, de alguma forma, era
limitada por ela. Em 1972, como se sabe, 28 anos depois de Bretton
Woods, os Estados Unidos romperam unilateralmente o tratado e se
descomprometeram com as regras de emissão nele previstas.
Desvincularam o dólar e o ouro, repudiando a conversibilidade, e em
seguida desvalorizaram a moeda, abandonando a paridade, tendo em
vista recuperar a competitividade de sua economia. Os demais países
tiveram de seguir caminho semelhante, efetuando suas próprias
desvalorizações competitivas, logo tornadas sucessivas.

O sistema de Bretton Woods deixou de existir, dando lugar a um “não-


sistema” de moedas sem lastro e câmbios flutuantes. Desenvolveram - se
então, vigorosamente, os processos que viriam a formar o que mais
tarde foi chamado “globalização”, especialmente a financeirização da
riqueza, pois os mercados de câmbio (estreitamente vinculados aos de
juros) tornaram - se fontes de receitas extraordinárias para empresas,
fundos e bancos multinacionais capazes de operar simultaneamente em
diferentes moedas e praças financeiras, realizando todo tipo de
operações de arbitragem.

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Como o sistema internacional não tinha – e ainda não tem – substituto
para o dólar, o Estado americano reteve, na prática, o direito de
senhoriagem sobre a economia internacional, agora porém sem as
limitações das regras de emissão. Não foi uma decisão técnica.
Relacionou- se, antes de tudo, com um ambicioso projeto de retomada
(ou reafirmação) da hegemonia norte- americana, àquela altura
ameaçada pelo vigor das economias alemã e japonesa reconstruídas, o
poderio político- militar soviético em aparente ascensão e as veleidades
contestadoras de grande parte do então Terceiro Mundo. Sem
compreender esse projeto, em todas as suas dimensões (econômica,
militar, política, cultural, ideológica), nada se compreende da evolução
da conjuntura internacional nas últimas décadas. (Reiteremos, de
passagem, este aspecto da história: o chamado processo de
globalização deslancha a partir do momento em que é impulsionado
pelo Estado nacional hegemônico, em defesa de seus interesses;
confundir “globalização” e “enfraquecimento [ou fim] da ação dos
Estados” não tem sentido nenhum.)

Para o que nos interessa aqui, ressaltemos que um Estado nacional


passou a emitir, sem regras e praticamente sem limites, a moeda do
mundo. Trata- se de uma situação que não pode perdurar
indefinidamente, pois introduz uma assimetria estrutural nas relações
internacionais. Imaginá- la como uma situação normal e permanente é
admitir que os demais integrantes do sistema aceitarão passivamente,
para sempre, uma posição subordinada, o que contraria toda a
experiência histórica.

Vimos, porém, que a decisão norte- americana data da década de 1970.


Só muito recentemente surgiu uma possível resposta a ela, com a
criação do euro, que ainda engatinha. Por que esta segunda anomalia se
prolonga tanto?

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Um primeiro motivo é claro: é muito difícil transitar de um padrão
monetário a outro. O trânsito da libra para o dólar, por exemplo, só se
completou muito depois de a Inglaterra ter perdido, de fato, a
hegemonia mundial, e a fase de transição exigiu duas guerras mundiais.
O segundo motivo nos interessa mais, pois remete à terceira anomalia
do sistema internacional atual, a que me referi antes: a região
ascendente do sistema – o Leste da Ásia – é estruturalmente
superavitária. Não poderia funcionar se não tivesse como formar e para
onde escoar o seu enorme superávit. O déficit americano – ou seja, a
necessidade de financiamento da economia americana – é que abre
espaço para a acumulação acelerada na Ásia e para a reciclagem do
capital sobrante dessa região. Essa afirmação pode ser generalizada,
sem nenhuma perda de rigor: o déficit americano cria aquele que é, de
longe, o mais importante pólo de demanda efetiva para a economia
internacional, pois os dois outros grandes centros – a Europa e o Japão –
vivem períodos prolongados de recessão ou baixo crescimento.

Se esta visão é correta, o que mantém em funcionamento a ordem


mundial atual, chamada de neoliberal, não é o que ela anuncia como
sendo seu grande trunfo (o desenvolvimento tecnológico e a formação
de uma “nova economia”), mas sim um mecanismo tipicamente
keynesiano: a sustentação da demanda efetiva por meio da emissão de
dívidas. Emissão incrivelmente elástica porque o mesmo agente, de um
lado, se endivida e, de outro, fabrica a moeda (não lastreada) em que
sua dívida deve ser paga.

Esse padrão monetário, que podemos chamar de dólar- flexível, produz


conflitos no núcleo do sistema mundial de poder. A posição especial do
Estado americano incomoda, pois sua hegemonia está inscrita nas
regras do jogo, tal como elas existem hoje, que são regras viciadas.
Mas, além de conflito, também há cooperação, pois se o dólar desabar todos
desabam, já que todos são credores do dólar. Eis o paradoxo: o mecanismo

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que mantém a economia mundial funcionando (a capacidade de
endividamento americana) depende da posição especial do dólar;
porém, enquanto essa posição perdurar, os Estados Unidos manterão
um grau de hegemonia que não é facilmente tolerado pelos demais
participantes do grande jogo de poder mundial.

Em outras circunstâncias históricas isso poderia se resolver por meio da


guerra entre os integrantes do núcleo do sistema, mas esta
possibilidade está afastada. Hoje, a guerra é alternativa para lidar com
regiões periféricas. Não há, pois, via rápida e radical de promover
mutações, nem pela economia (pois a ruptura do padrão monetário
seria dramática para todos) nem pela confrontação militar. Por isso, a
atual configuração só pode se modificar lentamente. A posição do dólar é
o elemento-chave para o desenlace da crise latente. Esta posição, embora já
muito instável e precária – pois é evidente a tendência à desvalorização
–, se beneficia da inexistência, hoje e pelos próximos anos, de
alternativas à moeda norte- americana como reserva de valor no sistema
mundial.

A abordagem que estamos desenvolvendo permite enfocar as duas


dimensões fundamentais do sistema – riqueza e poder –, que não são
compreensíveis isoladamente. Muitos não se dão conta disso,
enfatizando apenas a dimensão da riqueza, ou da economia, e sendo
capturados pela ênfase abusiva nos modos de produzir. Terminam
enxergando apenas, ou principalmente, o enfoque da técnica. Marx
nunca pensou assim, nem mesmo em suas obras especificamente
econômicas (basta lembrar as centenas de páginas que escreveu sobre o
dinheiro nos Grundrisse, que formam, talvez, a parte mais complexa e
fascinante de sua vasta obra).

Se incorporarmos a dimensão do poder como fundamental para explicar


os movimentos do sistema internacional, devemos admitir, quase

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axiomaticamente, que em condições normais esse sistema tende a
algum tipo de multipolaridade. Na economia- mundo contemporânea, a
existência de um só centro, esmagadoramente hegemônico, só pode ser
uma situação excepcional e transitória. A unipolaridade criada no imediato
após-Guerra Fria não é uma configuração estável.

Se essa abordagem está correta, a leitura da conjuntura internacional


precisa tentar decifrar um grupo delimitado de questões: como a
configuração unipolar, intrinsecamente instável, está se desdobrando na
direção de uma nova multipolaridade? Qual a forma desse processo? Em
que ritmo ele avança? Que dificuldades enfrenta? Como se comportam
os principais agentes? Será que já se podem ver os contornos da
configuração que virá? Tais questões permitem diferentes abordagens
que não posso desenvolver aqui. Privilegiarei duas delas. A primeira
abordagem possível é de natureza regional. Vejamos, passo a passo, o
que ela nos mostra.

Os Estados Unidos vivem o auge de seu poder e ocupam um duplo


centro: o centro da economia- mundo e o centro de uma área econômica
regional já constituída pelo Nafta. Em seu entorno imediato, temos uma
América Latina sem projeto próprio, em trânsito para ser tragada pela
área regional americana. Assim ampliada, esta área regional poderá vir a
ser, explicitamente, a futura “área do dólar”, se outras regiões
conseguirem escapar da senhoriagem norte- americana.

Grandes movimentos estruturais em curso na região apontam para o


fortalecimento dessa condição: a proposta de criação da Área de Livre
Comércio das Américas (Alca) em 2005, que extingue os espaços
econômicos nacionais e cria um só espaço hemisférico, centrado na
economia americana; o enfraquecimento e abandono de diversas
moedas nacionais, com a dolarização progressiva do continente; a
desnacionalização galopante dessas economias; a transformação dos

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Estados nacionais em reféns do sistema financeiro internacional; o
isolamento ideológico e enfraquecimento das forças armadas do
continente; a intervenção direta dos Estados Unidos na região
amazônica, importante depositária de recursos estratégicos para o novo
ciclo econômico de longo prazo que se inicia (pela primeira vez na
história, essa intervenção inclui a montagem de bases militares
americanas dentro da região).

Se não forem contidos e revertidos, esses movimentos redefinirão


profundamente a geopolítica continental ainda nesta década.

Continuemos nossa viagem. Para compensar a relativa fraqueza de seus


Estados- membros, tomados isoladamente, a Europa acelerou seu
processo de unificação. Formou uma região econômica integrada cuja
capacidade produtiva se equipara à dos Estados Unidos; constituiu uma
área monetária própria, iniciando um incipiente movimento de escape
em relação à senhoriagem do dólar; harmonizou sua legislação em
quase todos os âmbitos; unificou seu mercado de trabalho e concedeu
cidadania continental às suas populações; está em processo de
unificação de suas forças militares, dotando- as de alta capacidade de
intervenção.

O que é isso, se não a criação de um novo Estado?

Enquanto nossas elites vocacionadas para a subalternidade saúdam o


“fim do Estado”, assistimos no centro do sistema ao surgimento de um
megaestado, um Estado continental, multinacional, que manterá as
sociedades européias no grande jogo mundial da riqueza e do poder no
século XXI. É um projeto geopolítico de fôlego, cujas maiores
dificuldades atuais parecem ser as seguintes: (a) na esfera econômica,
destaca- se a assimetria decorrente da existência de um Banco Central
europeu e de Tesouros ainda submetidos aos Estados nacionais, o que

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impede a adequada coordenação de políticas monetárias e fiscais; sem
essa coordenação (que o Estado norte- americano realiza com grande
competência, graças a uma arquitetura institucional que garante elevada
sintonia entre Banco Central e Tesouro), a Europa perdeu a capacidade
de realizar políticas anticíclicas e deixou - se prender na armadilha do
baixo crescimento; a própria Alemanha já percebeu a necessidade de
alterar essa situação, mas todos os movimentos da União Européia, por
sua própria natureza, são especialmente complexos e lentos; (b) na
esfera política, destaca- se a dificuldade de definir uma política externa
européia unificada, por motivos históricos e geopolíticos, que se
traduzem por exemplo na tendência alemã de olhar para o hinterland do
Leste, de um lado, e na elevada dependência da Inglaterra (que continua
a ser uma praça financeira importante e a deter uma capacidade militar
também importante) em relação aos Estados Unidos, de outro; (c) as
incertezas que cercam o futuro da Rússia e de várias ex- repúblicas
soviéticas, que pesam diretamente sobre o continente.

A África está fora do jogo; nas palavras de um alto tecnocrata


internacional, “é um problema para a Cruz Vermelha”. A Rússia ainda
luta para conter sua própria decomposição, para então reposicionar - se.
Mantém - se na arena internacional graças ao peso de seu arsenal
atômico, mas ele é inútil para ajudá- la a lidar com o mosaico de
contradições internas resultantes da falência do socialismo burocrático,
de uma transição inepta ao capitalismo (que a lançou em uma inusitada
acumulação primitiva de capital privado em uma sociedade
industrializada) e das múltiplas questões de natureza social, étnica e
nacional que a paralisam.

Ao lado da América Latina – mas num patamar de importância muito


superior –, o Oriente Médio é a outra área de intervenção direta
permanente dos Estados Unidos. O abastecimento de petróleo é uma
conhecida vulnerabilidade americana. Com reservas, em seu território,

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de 28,6 bilhões de barris e um consumo diário de 19,5 milhões de
barris, os Estados Unidos têm petróleo próprio para abastecer- se
durante apenas quatro anos. A evolução do cenário no Oriente Médio foi
favorável à posição americana até recentemente: a principal potência
regional não subordinada, o Iraque, fora destruída na Primeira Guerra
do Golfo e permanecia sob bloqueio, remetida a uma posição passiva e
defensiva, e a maioria dos Estados árabes já reconhecia (ou se dispunha
a reconhecer) Israel. Com o fim da União Soviética, desaparecera o
espectro de uma guerra entre Estados na região, pois os países árabes
ficaram sem retaguarda. O regime iraniano trabalhava para sua própria
consolidação e não parecia capaz de uma ação desestabilizadora. O
conflito reduzira- se a uma escala local na Palestina, de baixa
intensidade, envolvendo helicópteros e grupamentos de soldados, de
um lado, homens- bomba e atiradores de pedra, de outro, em
escaramuças suficientes para alimentar noticiários, mas incapazes de
colocar em risco a oferta de petróleo.

A evolução recente do quadro regional, porém, traz complicadores,


causados em parte, paradoxalmente, pela ação dos próprios Estados
Unidos na segunda guerra do Iraque, que resultou num atoleiro.
Multiplicam - se grupos que pretendem estimular uma desestabilização
de regimes pró- americanos instalados na região, mas, até onde se pode
ver, é improvável que tenham êxito. A resposta dos Estados Unidos seria
igualmente imediata e violenta, apoiada por inúmeros Estados cuja
existência seria ameaçada por um movimento pan- islâmico desse tipo.
Mesmo assim, a situação atual é claramente mais explosiva do que a de
alguns anos atrás.

A médio e longo prazos, a Ásia – e não o Oriente Médio – é a grande


incógnita do sistema. Tem a segunda maior economia nacional do
mundo (o Japão), a potência emergente (a China), grandes massas
demográficas dotadas de alta laboriosidade, elevado dinamismo

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tecnológico, experiências de desenvolvimento rápido, empresas e
bancos de grande porte, Estados nacionais vigorosos, poder nuclear
(ainda claramente inferior ao dos Estados Unidos e da Rússia, porém
crescente). Será uma jogadora de grande peso no século que se inicia.

Mas tem limites: está longe de criar uma área econômica integrada e
nem se vislumbra a possibilidade de que algum dia venha a constituir
um megaestado continental, em moldes europeus. Não se vê sequer
como poderia constituir uma área monetária. Mantém- se altamente
dependente do mercado norte- americano e do dólar, moeda em que
estão denominadas suas volumosas reservas. Além disso, abriga
grandes populações em estado de pobreza e é portadora de enormes
tensões internas de natureza nacional, étnica e religiosa. Não consegue
marchar junta. A Índia permanece às voltas com um grave contencioso
com o Paquistão, a China (que ainda não completou seu processo de
reunificação nacional) precisa ganhar tempo, o Japão tem fraquezas
estruturais de grande monta, e assim por diante.

A ordem mundial norte- americana não foi – e não será – capaz de


enquadrar a Ásia, que por isso ainda não encontrou sua posição no
sistema- mundo contemporâneo. É grande demais e forte demais para
ser engolida (como a América Latina), marginalizada (como a África) ou
derrotada (como a Rússia). Ali ocorrerão os principais processos de
transformação da ordem internacional.

Do ponto de vista dos Estados Unidos, a Ásia tem de ser mantida


dividida, até mesmo por uma questão de estratégia militar. O
Departamento de Estado considera que o quarto objetivo estratégico da
geopolítica americana é o mais difícil de ser mantido no longo prazo. Ele
é assim definido: “Que nenhum poder, ou conjugação de poderes, do
hemisfério oriental possa desafiar o domínio norte- americano sobre os
oceanos.” Compreende- se a preocupação: como as armas atômicas

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prestam- se muito mais à dissuasão do que ao uso efetivo, o controle
simultâneo dos oceanos é, de longe, o elemento central na supremacia
militar em escala mundial. Tendo- o conquistado, os Estados Unidos
detêm o monopólio da capacidade de deslocar e projetar suas forças em
qualquer parte do planeta.

Criar uma poderosa marinha de guerra exige recursos imensos,


incompatíveis com manter grandes exércitos envolvidos com questões
territoriais. Daí o permanente esforço americano de fazer com que seus
competidores potenciais – especialmente os asiáticos – mantenham - se
às voltas com ameaças terrestres, que os próprios Estados Unidos, por
sua posição geográfica – tendo como vizinhos apenas o Canadá e o
México –, não enfrentam. Esse tem sido, há muito tempo, o jogo
americano na Ásia. Quando a extinta União Soviética começou a
desenvolver uma marinha de guerra de alcance mundial, baseada em
porta- aviões, os Estados Unidos, em um lance de gênio, a atolaram em
uma prolongada guerra terrestre no Afeganistão, puxando - a de volta
para dentro.

Tensões duradouras no coração da Ásia – se necessário, ampliando - se


as diversas guerras civis latentes na região – ajustam - se perfeitamente
aos interesses estratégicos dos Estados Unidos. Enquanto essas
turbulências persistirem, todos os Estados asiáticos precisarão manter -
se voltados para questões regionais, com forças militares territoriais,
relativamente estáticas. Assim, a grande esquadra americana poderá
continuar a navegar pelo mundo, soberana. Essa condição geopolítica,
que é estrutural, mostra uma importante fraqueza da Ásia, quando
considerada como pólo de poder mundial.

Não se vê, pois, nem mesmo a médio e longo prazos, o surgimento de


um contrapoder à altura de desafiar a capacidade de projeção do poder
militar do Estado norte- americano. Mas já se podem ver os limites deste

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poder: (a) os Estados Unidos são capazes de atacar e derrotar países não
portadores de armas nucleares, como o Iraque e o Afeganistão,
independentemente de sua posição geográfica; porém, para
estabilizarem sua dominação, dependem da existência de grupos de
apoio minimamente legítimos nas sociedades locais; se esses pontos de
apoio lhes são negados, sua vitória militar inicial se transforma em um
pesadelo; (b) países portadores de armas nucleares permanecem
invulneráveis à máquina militar norte- americana, por sua capacidade de
causar danos inaceitáveis aos próprios Estados Unidos ou a seus
aliados; é o caso da Coréia do Norte, cujos mísseis podem alcançar as
principais cidades japonesas e as bases militares americanas em toda a
região; por isso, aliás, a agressividade dos Estados Unidos pode
desencadear uma corrida, de conseqüências imprevisíveis, em direção à
posse dessas armas por parte de países que se sintam ameaçados; (c)
ações militares unilaterais têm altos custos políticos, diplomáticos e
financeiros; em princípio têm de ser financiadas inteiramente pelo
atacante; (d) embora, pelo sólido controle dos oceanos, os Estados
Unidos venham a manter por muito tempo o monopólio da capacidade
militar ofensiva em escala planetária, nada impede que outros países
desenvolvam estratégias defensivas eficazes em escala regional;
ninguém poderá competir com a esquadra dos Estados Unidos em alto-
mar, mas alguns poderão capacitar- se, com custos acessíveis, a impedir
que ela se aproxime de seus territórios.

A posição do Brasil é, em larga medida, definida por sua condição de


integrante do espaço regional latino - americano, a cujo destino imediato
já me referi. Porém, nosso país mantém uma especificidade importante:
somos o grande país periférico das Américas, um dos cinco ou seis grandes
países periféricos do mundo, que podem ser chamados de “países
intermediários”. Essa constatação nos introduz em um segundo recorte
possível para a abordagem do sistema internacional. Tentemos
entendê- lo.

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Desde sua constituição, nas origens do mundo moderno, o sistema
internacional foi fortemente polarizado por um centro relativamente
pequeno e uma grande periferia. Processos de crescimento rápido, fora
dos países centrais, ocorreram basicamente em regiões que dispunham
de abundantes recursos naturais (potencial agrícola, minérios),
eventualmente valorizados. Quando esses recursos se esgotavam ou
perdiam importância, suas regiões produtoras caminhavam para a
decadência, reafirmando sua condição periférica.

O século XX alterou parcialmente esse padrão. Nele, economias não


centrais conheceram casos notáveis de crescimento que não se
basearam na exploração de recursos naturais abundantes, mas em
processos intensivos de industrialização. Esses ciclos de crescimento –
que, em diversos casos, promoveram mutações nos sistemas produtivos
locais – foram impulsionados de diferentes formas, por diferentes
regimes, que se baseavam em diferentes classes sociais, anunciavam
diferentes metas e valores, mas tinham um traço comum: lançavam mão
de mecanismos de coordenação supramercado para acelerar a
industrialização e processos correlatos de modernização. As sucessivas
disputas pela hegemonia no centro do sistema, que marcaram
fortemente o período que Hobsbawm chamou de “breve século XX”
(1914- 1991), criaram condições favoráveis a esses projetos que se
desenvolviam em alguns espaços tradicionalmente periféricos.

Surgiu assim um grupo de países intermediários, ou semiperiféricos,


alguns de grande porte, entre os quais o Brasil. As condições estruturais
desses países, somadas aos processos de modernização que
experimentaram no século XX, os tornaram suficientemente fortes para
que não devam ser confundidos com os países mais pobres e
desassistidos, em geral de pequeno ou médio porte, que neste

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momento enfrentam dificuldades insuperáveis para sustentar projetos
emancipatórios próprios.

Justo por isso, um dos fenômenos mais importantes na construção da


“nova ordem” mundial no fim do século XX foi a desarticulação
sucessiva das diferentes estratégias desses países intermediários que
buscavam industrializar - se e diminuir a distância em relação ao centro
(ou, no caso da União Soviética, disputar o centro). A primeira vaga de
desarticulação, associada às crises das dívidas externas na primeira
metade da década de 1980 e ao desdobramento na direção de políticas
neoliberais, destrói os projetos em curso na América Latina. A segunda
vaga, que ocorre no fim da mesma década e início da seguinte,
desarticula a antiga União Soviética e os países de sua área de
influência. Em meados da década de 1990, chega a vez do acerto de
contas com as estratégias de emparelhamento em curso em países da
Ásia. Só a China resiste, apoiada em sua configuração estrutural –
território, recursos, população –, em sua vontade política e na
especificidade de seu sistema, cuidadosamente preservado, na medida
do possível, das ondas de choque oriundas do sistema internacional (a
experiência chinesa de crescimento rápido é recente, pertence a uma
“nova geração”, sendo difícil fazer qualquer prognóstico claro sobre seu
desdobramento de longo prazo).

Todos os elementos comuns dos processos de desarticulação, a que nos


referimos, estão contidos na estratégia de recuperação da hegemonia
americana: o choque dos juros, a aceleração da corrida armamentista, a
financeirização da riqueza e assim por diante.

É claro que essas desarticulações sucessivas só se tornaram possíveis


porque as diferentes estratégias dos países intermediários continham
importantes fraquezas. Não é o caso de analisá- las aqui, caso a caso.

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Observemos apenas um aspecto geral, especialmente relevante para
entender a desarticulação do projeto brasileiro.

Nas relações econômicas internacionais, obtêm vantagens os países que


conseguem controlar uma parte maior do excedente produzido no
conjunto do sistema. Para ocupar uma posição de vanguarda, um país
deve estruturar sua economia em torno de atividades geradoras de um
ganho diferenciado, situado acima – preferencialmente, muito acima –
da média. Tais posições são, por definição, excludentes (caso contrário,
o ganho que propiciam não seria diferenciado). Portanto, tal como está
organizado, o sistema econômico internacional é estruturalmente
assimétrico.

Como as atividades que garantem ganho diferenciado modificam - se ao


longo do tempo, a conquista e manutenção de uma posição de
vanguarda não podem depender do controle de um setor, uma
tecnologia ou uma mercadoria específicos (um setor, uma tecnologia ou
uma mercadoria que garantem ganho diferenciado hoje podem deixar
de fazê- lo amanhã). Elas exigem liderança sobre o processo de
inovação, ou seja, capacidade permanente de criar novas combinações
produtivas, novos processos, novos produtos. Por isso, sob esse ponto
de vista, o núcleo do sistema internacional são os espaços que concentram em
si a dinâmica da inovação. Eles capturam sucessivamente as posições de
comando justamente porque conseguem recriá- las, obtendo dessa
forma benefícios extras na divisão internacional do trabalho. No outro
pólo, a dependência também se repõe dinamicamente.

Visto sob essa óptica, torna- se claro que o esforço desenvolvimentista


brasileiro (1930- 1980) manteve- se preso aos limites de uma
modernização periférica e nunca nos aproximou, de fato, do centro do
sistema mundial. Conseguimos internalizar progressivamente atividades
produtivas que, em algum momento, sustentaram a liderança dos países

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centrais. Mas o problema é que tais atividades perdem essa
característica diferencial justamente quando a periferia em via de
modernização consegue capturá- las, pois aí elas ficam sujeitas a uma
pressão concorrencial que diminui sua importância e sua rentabilidade.
Quando isso acontece, essas atividades são relegadas a segundo plano
pelas economias centrais, que renovam sua posição privilegiada
alterando as combinações produtivas mais eficazes. A desigualdade se
repõe.

Uma impossibilidade lógica impede que “estratégias de


emparelhamento”, do tipo usado pelo Brasil e por outros países em seus
ciclos desenvolvimentistas, alterem as posições relativas no interior do
sistema. Não se consegue superar a condição periférica nem mediante o
uso extensivo de recursos naturais nem mediante a cópia de produtos e
tecnologias (e seus estilos de vida associados) que já estão maduros nos
países centrais. O desafio aberto às grandes economias retardatárias —
ou “países intermediários” — é duplo: internalizar seletivamente
elementos técnicos e culturais do paradigma vigente e, ao mesmo
tempo, preparar condições para um salto que lhes permita romper a
lógica da dependência, lançando- as na vanguarda de um novo
paradigma. Este, por sua vez, já não pode ser pensado apenas no
âmbito da técnica e da economia (neste caso, na melhor das hipóteses,
haveria um desdobramento do mesmo paradigma), mas
fundamentalmente das relações sociais. A problemática do rompimento
da dependência se articula, pois, com a questão mais geral da transição
a um novo tipo de sociedade.

É fácil ver por que a construção da nova ordem econômica mundial


associou - se à desarticulação de estratégias antes disponíveis aos países
intermediários. A ordem “globalizada” atinge as sociedades de forma
completamente diferente. No caso dos países centrais, o âmbito da
economia e da técnica, de um lado, e o âmbito das decisões políticas (aí

19
compreendidas aquelas que têm desdobramentos militares), de outro,
permanecem estreitamente vinculados, pelo forte vínculo entre
megacorporações empresariais e Estados nacionais poderosos. No caso
dos demais, esses âmbitos se dissociam, pela dispersão geográfica das
cadeias produtivas, em escala mundial, feita sob o comando de
corporações empresariais que não têm compromissos com os Estados e
sociedades mais fracos, onde apenas instalam filiais.

De modo mais ou menos geral – ressalvada a exceção da China –, as


capacidades diplomáticas, econômicas, militares e culturais desses
Estados e sociedades, bem como suas próprias vontades de desenvolver
essas capacidades, foram quebradas. O centro do sistema sustou a
penetração dos intrusos. Mas isso não os eliminou da história. Eles
continuam a existir, mesmo enfraquecidos. Contam com massas
demográficas muito expressivas, detentoras de capacidade técnica,
associada aos processos de industrialização experimentados. Seus
projetos de desenvolvimento, tal como definidos em períodos
anteriores, foram desarticulados, mas essa capacidade não desapareceu;
em larga medida, continua depositada em seus povos. Além disso,
mantêm sua vocação de pólos de sustentação de projetos regionais de
desenvolvimento e podem constituir uma importante rede internacional
de apoio recíproco. Seus territórios podem ser defendidos de qualquer
ameaça externa pela formação de infantarias extensas, imbatíveis em
seu próprio terreno.

A condição desses países é cheia de tensões e potencialidades.


Simultaneamente atraídos e repelidos pelo centro do sistema – com suas
economias profundamente inseridas nos processos internacionais de
acumulação, porém sem acesso às benesses monopolizadas pelos que
controlam tais processos –, eles podem vir a constituir um elo fraco da
nova ordem capitalista, pois podem ensaiar movimentos de ruptura,
hoje bloqueados no centro. Por outro lado, vimos que a configuração

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atual evolui de uma situação de unipolaridade para alguma outra
configuração multipolar. Com o tempo, os espaços de manobra dos
países intermediários tenderá a voltar a crescer. Por isso, é vital que
consigamos impedir que, neste curto intervalo de unipolaridade, o Brasil e a
América Latina sejam tragados pela área regional americana, o que tornaria
“permanente” — ou, pelo menos, muito prolongada e custosa — uma
condição marcada pelo estreitamento de possibilidades.

O Brasil pertence a esse elo fraco do capitalismo contemporâneo, o


conjunto de países intermediários. Nossa crise é imensamente grave,
mas o potencial para superá- la é igualmente imenso. Para que isso
ocorra, dependemos, de um lado, dos espaços que vão se abrir para nós
naquela evolução do sistema como um todo: historicamente, nossos
espaços aumentam em períodos em que a hegemonia está em disputa,
sendo redefinida; de outro, dependemos da nossa própria capacidade
de colocar importantes mudanças internas na ordem do dia. Grandes
países periféricos, como os Estados Unidos e a China, já passaram por
desafios semelhantes, cada um ao seu jeito, e só obtiveram êxito
quando ousaram contrariar o lugar que lhe fora atribuído pela ordem
internacional de seu tempo. Isso tem custos. O problema é saber se
estamos dispostos a pagá- los.

Prevalece neste momento a tendência de voltarmos a ser um país


primário exportador, inserido de forma subordinada em um sistema
regional. A primeira condição é a de que resistamos a isso. Nossa
estratégia, hoje, começa por tentar preservar a possibilidade de termos
uma estratégia, o que depende da recuperação dos instrumentos
necessários para exercer nossa soberania. Em paralelo, deveríamos
buscar uma posição independente, fortalecida pela formação de um
bloco regional autônomo, capaz de manter relações extensa e
geograficamente diversificadas e, com o tempo, assumir um papel
próprio no mundo. O Brasil é insubstituível na criação do núcleo

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histórico de um novo rearranjo regional de cooperação e
desenvolvimento — latino e americano —, que poderá vir a configurar
um novo bloco, ou um novo megaestado, no futuro. Por isso, em última
análise, as negociações em torno da Alca são negociações entre Brasil e
Estados Unidos sobre o destino do continente.

Qual a nossa chance de alterar o curso atual das coisas?

Depois de mais de dez anos de experimento neoliberal, uma parte


minoritária da sociedade brasileira efetivamente alterou seus padrões de
consumo, suas expectativas e seus valores, adotando os padrões,
expectativas e valores das populações afluentes do capitalismo
globalizado. Esse processo conquistou setores expressivos das classes
médias e penetrou até a medula de nossas elites. Bem- posicionados
para participar diretamente do mercado mundial — como sócios
menores, rentistas ou consumidores —, esses grupos ficam cada vez
mais tentados a desfazer quaisquer laços de solidariedade local,
desligando seu próprio destino do destino da sociedade como um todo.
Suas opções apontam para o rompimento dos vínculos históricos e
socioculturais que até aqui mantiveram juntos, em algum nível, os
cidadãos. Essa parte da sociedade brasileira – proporcionalmente
pequena, mas a mais influente – verá o ingresso formal do Brasil na
“área regional americana” como uma enorme benesse.

Outra parte da sociedade ainda deseja preservar direitos sociais


abolidos ou ameaçados, mantendo por isso alguma referência, ativa ou
difusa, em partidos, sindicatos, movimentos ou organizações não
governamentais. Sozinha, ela não tem peso para alterar o rumo das
coisas: não é maioria numérica nem detém os principais aparatos de
poder. Exerce uma influência às vezes importante, mas não decisiva.

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Resta a maioria do nosso povo, que foi, simplesmente, desligado desses
processos. Refiro- me aos grandes contingentes humanos de que o
capitalismo não mais necessita. Sobrevivem no desemprego, no
subemprego, na economia informal, em atividades sazonais, incertas ou
ilegais. Por insistirem em sobreviver e por estarem relativamente
concentrados, ameaçam. E, de alguma forma, se organizam. São
dezenas de milhões. Mas, até aqui, não se tornaram agentes da
transformação. Este é o desafio central colocado para a esquerda, o
ponto cego de qualquer estratégia transformadora.

Pelo menos desde o fim do escravismo, nunca os diversos componentes


da nação viveram situações tão desiguais e tiveram interesses tão
conflitantes. Isso mostra que o modelo neoliberal tem menos potencial
estruturante da sociedade – e, nessa medida, menos potencial
hegemônico – que o modelo de acumulação anterior. A necessidade de
se buscar alternativas é mais evidente a cada dia. Mas ninguém é capaz
de prever o que virá pela frente, pois o Brasil atual é um país muito
mudado e muito desconhecido. É como um quebra- cabeças que
ninguém montou. Peças isoladas, ou encaixadas em pequenos grupos,
nos trazem fragmentos de informação, mas não temos uma nítida
imagem de todo o conjunto. Creio que três mudanças estruturais mais
ou menos recentes são especialmente importantes, por suas
implicações para o nosso futuro imediato.

Durante a maior parte do século XX, o Brasil foi uma economia


capitalista dependente, desigual, geradora de pobreza, concentradora
de renda e de propriedade, porém foi também, ao mesmo tempo, uma
economia muito dinâmica. Nossa capacidade produtiva cresceu 7% ao
ano, em média, durante cinqüenta anos. Hoje, somos uma economia
capitalista dependente, desigual, etc., e de baixo crescimento. Ficamos
com o que havia de ruim, perdemos o que havia de melhor. Não nos
iludamos com os anúncios, sempre reiterados e sempre frustrados, da

23
“retomada do crescimento”. Há duas décadas não temos nada parecido
com crescimento sustentado, mas apenas miniciclos de crescimento
dentro de uma economia travada. Nada indica que essa condição tenha
sido alterada. Essa transição estrutural – de uma economia dinâmica
para uma economia de baixo crescimento – é muito importante, pois o
grande dinamismo da economia brasileira até 1980 foi um fator decisivo
para conferir relativa estabilidade a uma sociedade tão desigual como a
nossa.

A ela se soma uma segunda transição. Em nossos 500 anos de história,


durante 470 anos fomos um país cuja maioria da população estava no
campo. O primeiro censo demográfico que indicou um equilíbrio
campo/cidade foi o de 1970. Hoje, mais de 80% da nossa população já
estão vivendo nas cidades. Quase 40% da população total do país
concentram - se em apenas nove aglomerados urbanos, as Regiões
Metropolitanas, já que, como regra geral, também a rede de pequenas
cidades perdeu dinamismo. É outra mudança estrutural cheia de
conseqüências. Destacarei apenas uma delas: famílias que vivem em um
pedaço de terra, no campo, têm uma casa, uma roça, um pomar e uma
criação de animais. A relação direta com a natureza lhes garante o
mínimo essencial para sobreviver. Precisam de dinheiro para comprar
aquilo que não conseguem produzir. Na cidade, a vida é muito
diferente. Ninguém tem roça ou criação, e freqüentemente não se tem
nem mesmo uma casa própria. Essa família urbanizada precisa agora
obter uma renda em dinheiro para cobrir todas as suas necessidades.
Para a grande maioria, essa renda depende de um emprego.

A terceira mutação, a que me referi, é a seguinte. Muitos estudos


indicam que, até mais ou menos 1990, apesar de injusto como sempre
foi, o Brasil contava com vários mecanismos que garantiam à sua
população, na média, mobilidade social ascendente: os setores
modernos da economia absorviam força de trabalho; a fronteira agrícola

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estava em expansão; o Estado aumentava sua oferta de serviços e
contratava mais gente; chegou a existir em muitas regiões uma escola
pública de razoável qualidade, etc. Na década de 1990, porém, todos
esses mecanismos foram quebrados, e o resultado disso é que
represamos a mobilidade social. Os pobres não conseguem mais sair do
lugar. Nem a oferta de trabalho, nem o deslocamento no espaço, nem a
possibilidade de estudo abrem mais alternativas significativas. As
periferias das Regiões Metropolitanas viraram depósitos de gente sem
perspectivas.

Ninguém sabe dizer como nossa sociedade se comportará. Porém,


contrariando as aparências e o pessimismo de muitos, nunca o povo
brasileiro ocupou uma posição potencialmente tão forte. Essas
multidões concentradas em grandes cidades, com acesso a redes de
informação e sem alternativas dentro do sistema são – em tamanha
escala – um fenômeno novo em nossa história. Já ensaiaram mover- se
nas diretas- já, na campanha de 1989, no impeachment de Collor. Três
vezes em oito anos. Ensaiaram mover- se, mas ainda não aprenderam a
caminhar firmemente sobre os próprios pés, nem a levar suas demandas
até o fim. Não entraram no palco para valer. Mas já podem entrar. O
destino da nação está em suas mãos.

Vou concluir, recapitulando.

(a) A unipolaridade que marca o mundo após- Guerra Fria está dando
lugar, gradativamente, a uma nova configuração multipolar muito
complexa. O trânsito entre as duas situações é lento, pois há
disputa e cooperação no centro do sistema. A solução pela guerra
está afastada, e a conjugação de três anomalias econômicas criou
até hoje uma possibilidade muito elástica de adiamento de uma
grande crise. Isso desaparecerá se o dólar perder sua
centralidade atual, o que só poderá ocorrer em um prazo de pelo

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menos dez ou quinze anos. Não está clara a configuração exata
da nova ordem multipolar, que dependerá crucialmente dos
acontecimentos na Ásia.

(b) Os Estados Unidos estão em via de incorporar formalmente todo


o Hemisfério Americano em sua área regional de controle direto,
que poderá vir a ser, explicitamente, a “área do dólar”,
contrastada à “área do euro” e a algum tipo de arranjo asiático
que ainda não é claro.

(c) O destino do Brasil está atrelado ao do seu continente, porém


com uma importante especificidade: somos o grande país
intermediário da região, um país que ainda tem alguma margem
de manobra. É fundamental usá- la, apostando em uma nova
multipolaridade futura e preparando um outro caminho: a
formação de um bloco regional latino - americano com presença
global. Isso impõe uma estratégia de enfrentamento das
pretensões norte- americanas no hemisfério.

(d) A base social interna dessa nova estratégia é o povo brasileiro,


cujo destino depende inteiramente do destino que terá o Brasil.
As elites podem, no máximo, negociar certas condições para
nossa inserção subordinada no projeto americano. Por isso, um
reposicionamento estratégico no mundo e a realização de
profundas reformas políticas e sociais internas, que garantam a
hegemonia popular, são faces gêmeas de um mesmo projeto.

(e) O Brasil experimentou, em pouco tempo, mutações estruturais


de largo alcance, cuja combinação aponta para contradições
graves e, eventualmente, explosivas: deixou de ser uma economia
dinâmica e passou a ser uma economia de baixo crescimento, que

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não gera empregos; urbanizou maciçamente sua população, que
agora, mais do que nunca, precisa de empregos para sobreviver;
destruiu os caminhos abertos à mobilidade social, nos níveis
(insuficientes) que já tivemos. A crise do modelo neoliberal, que
se projetará pela nova década adentro, terá como pano de fundo
essa crise maior, que questiona as estruturas do capitalismo
dependente brasileiro.

Esse é o contexto dentro do qual temos de nos posicionar. Justamente


nele, a maior parte da esquerda brasileira se convenceu de que não é
possível propor mudanças importantes, de que mais vale uma bolsa-
família na mão do que uma soberania no ar, de que grandes
transformações não estão na ordem do dia, e assim por diante. A
história a julgará.

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