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Capítulo 1.

O Transconstitucionalismo de Marcelo
Neves

CAPÍTULO 1. O TRANSCONSTITUCIONALISMO DE MARCELO NEVES. .1


1. TRANSCONSTITUCIONALISMO E TRANSCONSTITUIÇÃO.......................................................1
2. TRANSCONSTITUCIONALISMO E TEORIA DOS SISTEMAS.....................................................3
3. TRANSCONSTITUCIONALISMO E DIÁLOGO INTER-SISTÊMICO.................................................6
4. ACOPLAMENTO ESTRUTURAL E RACIONALIDADE TRANSVERSAL.............................................9
5. TRANSCONSTITUCIONALISMO STRICTO SENSU.............................................................11
6. ÂMBITOS DO TRANSCONSTITUCIONALISMO.................................................................12
7. BALANÇO FINAL.............................................................................................14

1. Transconstitucionalismo e transconstituição
O título Transconstitucionalismo parece indicar que Marcelo
Neves se propõe a abordar a formação de uma espécie de
constituição que seja transnacional no sentido de que ela
ultrapassaria as fronteiras dos Estados nacionais. Além disso,
sabendo que ele faz várias referências à sociedade mundial,
tratando inclusive do direito que lhe é próprio, podemos intuir
que essa transconstituição seria justamente a norma de maior
hierarquia no contexto de um ordenamento transnacional.
Contudo, nada é mais distante da proposta do livro que
essas projeções de sentido feitas a partir de uma leitura
apressada do título. Por isso mesmo, logo no início do texto
Neves afirma sua discordância dos autores que apontam para a
existência de uma espécie de constituição transnacional1 e
esclarece que o transconstitucionalismo não é o processo de
formação de transconstituições, mas uma proposta de
compreensão do diálogo existente entre os sistemas
constitucionais. Portanto, trata-se de um
transconstitucionalismo sem uma transconstituição, na medida
em que o trans indica a ocorrência de elementos que
atravessam os sistemas, e não que os unificam em uma espécie
de metasistema.
Com isso, Neves segue explicitamente as intuições de
Lyotard no sentido de que não mais se justifica a tentativa de
construir metanarrativas totalizantes (LYOTARD, ?). Em sua obra
A condição pós-moderna Lyotard trata da gradual falência das
tentativas modernas de construir um metadiscurso unificado dos
saberes, o que acentua a necessidade de se pensar o mundo em
1
Essa indicação é feita na própria Introdução, embora Neves somente identifique e
analise tais concepções no final do cap. II (pp. 83-113).
termos de coordenação de narrativas diversas e não de
subordinação a um modelo único. Embora Neves não utilize
exatamente esses termos, é possível identificar claramente em
sua proposta uma reação contra a tendência dos juristas de
pensar o mundo apenas em termos de hierarquia e
subordinação.
Os estudantes de direito aprendem em seu primeiro dia de
aula que ubi societas ibi jus (onde está a sociedade está o
direito) e logo aprendem também que onde quer que haja
norma precisa haver uma norma de hierarquia superior, que
confere unidade ao ordenamento jurídico. Essa mistura de um
dado sociológico (a existência de normas) e um dogma filosófico
(a necessidade lógica de uma norma fundante) gera a ideia de
que toda sociedade tem uma norma básica, identificada com a
sua constituição.
Esse tipo de raciocínio conduz ao que Neves chama
concepção histórico-universal de constituição (p. 54), que
chama de constituição toda norma jurídicas supremas dentro de
uma ordem social. Neves não explora diretamente as
deficiências dessa posição normativista2, mas aponta que esse
tipo de perspectiva oferece um conceito demasiadamente
amplo de constituição, enquanto ele prefere utilizar uma
definição muito mais restrita, ligada ao movimento do
constitucionalismo. Assim, ele não apresenta qualquer norma
básica como constitucional, mas apenas aquelas que estão
envolvidas no processo moderno de diferenciação entre política
e direito, de tal forma que o título constituição fica reservado
para a norma que realiza o acoplamento estrutural entre política
e direito nos Estados de Direito contemporâneos (p. ?).
Onde inexiste essa diferenciação entre política e direito,
pode-se apontar a ocorrência de normas máximas (como o
direito natural), de normas gerais (como as antigas
Ordenações), mas não de uma constituição propriamente dita.
Para explicar devidamente as peculiaridades desse conceito de
constituição, Neves inicia o Capítulo I com uma análise histórica
panorâmica das relações entre política e direito, mostrando que
essas relações podem assumir formas múltiplas. Essa
reconstrução histórica evidencia que a autonomia funcional do
direito, conquistada no século XVIII, é apenas uma das
conformações possíveis de organização social.
Porém, o ponto mais importante da argumentação de Neves
é a acentuar necessidade de pensarmos as relações entre os
subsistemas sociais da política e do direito em termos de
2
Os limites desse tipo de posição são explorados por Hans Kelsen.
coordenação, e não de subordinação/hierarquia. Isso implica
uma superação da perspectiva dominante entre os juristas, que
toma como dogma a supremacia da constituição e logo conclui
que a tarefa dos juristas é aplicar as normas constitucionais a
todas as relações sociais, independentemente do sentido que as
decisões judiciais possam ter nos outros subsistemas sociais,
especialmente no da política.
2. Transconstitucionalismo e teoria dos sistemas

Essa perspectiva coordenativa de Neves, em oposição à


perspectiva subordinativa do senso comum, é uma decorrência
direta da escolha da teoria dos sistemas como marco teórico de
suas reflexões. Essa teoria constitui um aparato teórico que
somente nos permite pensar a sociedade (e qualquer outro
objeto) em termos de sistemas coordenados, que podem atuar
em conjunto a partir de um acoplamento estrutural que
preserva a estrutura própria de cada sistema. Portanto, essa
perspectiva nega a existência de uma subordinação na relação
entre sistemas, mesmo naquela existente entre subsistemas e o
sistema que os engloba. Assim, tal como não faz sentido afirmar
que as células do nosso corpo estão subordinadas ao cérebro
(mas apenas que são coordenadas pelo sistema nervoso), não
faz sentido falar na subordinação entre sistemas sociais.
Mapear a sociedade em termos de
acoplamento/coordenação nos leva a imagens diversas da
perspectiva jurídica clássica, que tem como categorias
fundamentais autoridade/subordinação. Somente essa mudança
radical de perspectiva já seria um bom motivo para darmos
atenção para a teoria dos sistemas e sua capacidade de
descrever de novas formas a realidade social. Cabe ressaltar
que é justamente o primado da perspectiva clássica que nos faz
pensar que um transconstitucionalismo pressuporia uma
transconstituição, já que tendemos a colocar no ápice de todo
sistema jurídico uma autoridade fundamental. É isso que
fazemos desde o pensamento grego (em que a autoridade
fundamental decorria da natureza), e assim continuou sendo
feito pelo pensamento medieval (em que a autoridade
fundamental decorria de deus) e pelo pensamento moderno (em
que a autoridade fundamental é a do próprio povo). Todos esses
sistemas são variações do mesmo tipo de perspectiva
naturalista: o fundamento do poder está na autoridade natural
de alguém, que funciona como causa sui.
Mesmo o constitucionalismo contemporâneo é uma variação
desse modelo, já que a divisão funcional dos poderes é uma
questão da organização burocrática do Estado e não da própria
divisão da autoridade fundamental. Essa unicidade platônica do
poder estava presente em Hobbes (para quem todos os poderes
políticos eram atributos do soberano) e continua até hoje
presente, com a peculiaridade de que o povo é considerado o
soberano. A criatividade constitucionalista não alterou o velho
modelo em sua base, sendo que até hoje, em nossos mitos
fundantes, o poder constituinte cabe ao povo, que não pode
exercê-lo diretamente em função da amplitude dos Estados e da
complexidade das questões. Com isso, o poder constituinte se
exerce mediante delegação popular a uma assembléia, a qual
se dissolve quando realiza a função que lhe é própria.
Num passe de mágica, a autoridade máxima se desfaz a si
mesma, muito embora a teoria insista em afirmar que o poder
constituinte não é dissolvido, mas continua difusamente
atribuído ao povo, cuja vontade deve ser respeitada para que as
leis sejam legítimas. Essa conexão, contudo, é apenas teórica, e
a vontade do povo permanece relevante basicamente porque a
opinião pública é o critério democrático para a atribuição dos
poderes políticos a alguém. Enquanto os gregos optavam
fundamentalmente pelo sorteio entre iguais, as democracias
contemporâneas optam pela escolha dos mais amados. A
possibilidade de modificar os arranjos fundamentais do poder
permanece alheia ao campo do exercício político, exceto no
caso de ser possível mobilizar suficiente poder para realizar uma
ruptura institucional revolucionária. Assim, nosso sistema de
separação de poderes é sempre dado nos quadros de uma
burocracia que não tem poder absoluto, já que a autoridade
fundamental é atribuída a uma constituição legislada, fundada
em um poder que é absoluto mas que não pode ser mais
invocado por ninguém. Na medida em que essa á a mitologia
hegemônica, não podemos falar em uma transconstituição sem
romper com o próprio constitucionalismo.
Dentro da organização estatal contemporânea, cada um dos
sistemas nacionais se afirma como soberano e, portanto,
autônomo. Isso significa que a legitimidade constitucional é
referida a contextos regionais específicos, nos limites dos quais
foi possível estabelecer uma certa identidade política. Uma vez
constituídos, os Estados podem fazer acordos entre sim, podem
estabelecer relações, podem inclusive estabelecer fóruns
supranacionais cuja complexidade pode terminar gerando uma
espécie de Estado unificado, que talvez seja o futuro da União
Européia.
Todavia, antes que exista uma efetiva unificação política,
não se poderá falar propriamente de uma transconstituição, e
essa me parece ser a mensagem de Neves. Acordos
multilaterais, tendências de homogeneização e outros
elementos que podem ser caracterizados como formas de
acoplamento estrutural não podem ser entendidos como uma
unificação dos sistemas, que continuam mantendo a sua
identidade (ou diferenciação, para usar uma categoria mais
típica da teoria dos sistemas). Por isso mesmo, falar de
constituição é falar de normas máximas e de poderes
soberanos, que não reconhecem a necessidade deôntica de
levar em conta quaisquer parâmetros que sejam diversos
daqueles definidos em sua própria constituição.
Essa afirmação de autonomia conduz tipicamente os
sistemas jurídicos de um determinado país a considerarem
irrelevantes para a sua atividade todos os elementos que
estranhos ao seu próprio direito. Mesmo as regras internacionais
somente ganham relevância na medida em que sua validade é
reconhecida pelo próprio Estado. Essa característica é lida na
teoria dos sistemas como uma forma de fechamento
operacional, na medida em que tudo o que lhe é estranho não
precisa ser levado em conta na sua operação.
Dentro da teoria luhmaniana, tal fechamento é condição da
própria sistematicidade das ordens jurídicas, na medida em que
apenas ele confere ao direito a diferenciação funcional que está
na base de sua autonomia. Essa autonomia dos sistemas
constitucionais conduz tradicionalmente ao que Neves chama de
tradição constitucional de autossuficiência (p. 144), o qual inclui
uma aplicação judicial vinculada a um modelo de resistência que
afirma a necessidade de garantir a soberania da constituição
interna frente a eventuais influxos externos que lhe sejam
contrários(p. 258).
Esse tipo de comportamento pode ser explicado pela teoria
dos sistemas como uma afirmação simultânea do fechamento
operacional (por meio do qual a identidade do sistema é
mantida por meio de uma operação baseada exclusivamente em
elementos internos) e da abertura cognitiva (por meio da qual o
próprio sistema pode observar elementos externos a ele). Com
isso, uma corte constitucional até poderia estudar o
comportamento de outros tribunais, mas referências ao direito
comparado seriam apenas obiter dicta, ou seja, elementos
retórico que contribuem para esclarecer a questão mas que não
definem a decisão.
De fato, os tribunais sempre fizeram referência às decisões
de outras cortes e ao direito comparado, mas apenas como um
elemento secundário na formação de suas convicções, pois cada
direito nacional não reconhece força deôntica a esses
elementos. Assim, a observação da atividade de outras cortes
ou de normas estranhas a um sistema constitucional até pode
ser inspiradora, mas não é obrigatória.
Aparentemente, dentro de sistemas constitucionais
articulados em torno do moderno conceito de soberania, esse
tipo de fechamento operativo parece plenamente justificado. É
claro que os universalistas podem pensar que esta é apenas
uma fase de transição, pois a evolução humana tende
necessariamente à instituição de um governo mundial unificado,
de uma cidadania global e uma política planetária. As tribos se
organizaram em cidades, que se organizaram em países, que
atualmente se organizam em blocos e fatalmente se
organizarão em uma grande república. Esse raciocínio pode ser
sedutor, mas é falso. A unidade é apenas uma das
possibilidades de organização, e a mais improvável porque há
muito mais formas de multiplicidade que de unidade.
Abandonando a futurologia, temos que a realidade atual é a
de que cada um dos sistemas constitucionais afirma sua própria
autonomia e que, portanto, não reconhecem força normativa a
qualquer elemento que lhe seja externo. Neves reconhece esse
fato e aponta para a o fato de que os sistemas que se percebem
como soberanos tendem a compreender como um risco de
desdiferenciação, na medida em a utilização direta por um
sistema de regras externas a ele é entendida como uma
corrupção sistêmica.
Se o Supremo Tribunal Federal tomasse uma decisão
porque ela seria adequada à política externa do governo, ele
contribuiria para a desdiferenciação entre direito e política. Já se
ele tomasse uma decisão invocando como precedente uma
decisão da Suprema Corte dos EUA, ele estaria contribuindo
para a desdiferenciação entre o Estado Brasileiro e Estado
Norte-Americano. Em ambos os casos, a teoria dos sistemas
tenderia identificar uma corrupção sistêmica, ou seja, o fato de
um sistema reagir fora dos seus próprios códigos, afirmando
códigos de um sistema diverso.
3. Transconstitucionalismo e diálogo inter-sistêmico

A tentativa de preservar os sistemas constitucionais frente à


possibilidade de corrupção tende a conduzir a um fechamento
operacional completo, que parece ser a opção mais desejável
dentro da teoria luhmanniana, na qual a manutenção da
diferenciação entre os sistemas é um elemento central de
preocupação. Como afirma o próprio Neves, a concepção de
Luhmann tende a considerar que as sabotagens de código não
são consideradas apenas uma questão de fato, mas são
compreendidas como um problema moral (pp. 44-45).
Nesse ponto, Neves parece afastar-se de Luhmann em
direção a outro pensador que influencia bastantes suas
concepções: o alemão Jürgen Habermas, cujo critério de
legitimidade/moralidade não está ligado à manutenção da
diferenciação sistêmica, e sim à manutenção de uma
racionalidade comunicativa por meio da qual as pessoas se
reconhecem reciprocamente como sujeitos autônomos. Na
concepção habermasiana, existe um primado do diálogo sobre o
monólogo, no sentido de que a relação com o outro deve ser
caracterizada por uma efetiva abertura.
Já na teoria de Luhmann, essa abertura deve ser apenas
cognitiva, e não operacional, de tal forma que os códigos
utilizados na resolução de um problema sejam aqueles
reconhecidos como válidos pelo próprio sistema. Assim, o
diálogo entre sistemas seria indesejável, na medida em que a
garantia do fechamento operacional implica a existência apenas
de monólogos por meio dos quais cada sistema define seu
comportamento conforme as suas próprias categorias. Como
aparato conceitual luhmanniano tende a considerar toda
interferência direta entre sistemas como uma forma de
corrupção, as possibilidades de diálogo efetivo entre sistemas
ficam muito limitadas.
A principal virtude do trabalho de Neves é mostrar que o
posicionamento frente a essa questão teórica apresenta reflexos
imediatos nas formas de solução de uma série de questões
contemporâneas nas quais se pode observar a sobreposição de
ordens jurídicas. As principais questões afloram no âmbito da
União Européia, em que há um maior entrelaçamento entre as
instituições políticas nacionais e supranacionais e,
principalmente, existe um esforço para harmonizar as decisões
dos Estados e da Comunidade. Um dos casos emblemáticos se
relaciona com a divulgação de fotos de Caroline de Mônaco,
uma colisão dos direitos de liberdade de imprensa e de
intimidade que foi resolvida de modo diferente pelo Tribunal
Europeu de Direitos Humanos (TEDH) e pelo Tribunal
Constitucional Alemão (pp. 138 e ss.).
Caso decidisse seguir a clássica semântica da soberania, o
Tribunal estatal da Alemanha deveria afirmar a autonomia de
suas decisões, de tal forma que a ordem internacional.
Sustentar o primado da ordem internacional teria um efeito
corruptor de desdiferenciação, apontando na instituição de uma
ordem jurídica européia e não da coordenação de ordenamentos
constitucionais autônomos. Assim, não deve causar espécie o
fato de que a decisão foi no sentido de que a Corte
Constitucional alemã “deve levar em conta as decisões do
TEDH, mas não está vinculado a elas”, pois não se admite que
uma decisão internacional limite um direito fundamental
previsto na constituição (p. 139).
Neves tenta mostrar que essa afirmação de autonomia não
pode ser entendida como uma “negação narcisista” das
decisões do TEDH, pois qualquer unilateralidade poderia “ter
efeitos destrutivo, irracionais, sobre a integração europeia no
âmbito dos direitos humanos e fundamentais” (p. 139). Nesse
sentido, ele argumenta que a própria Corte alemã tentou
escapar de uma simples afirmação de soberania, buscando
justificar sua posição no texto da própria Convenção Européia de
Direitos Humanos (CEDH), cujo art. 53 determina que nenhuma
de suas disposições será interpretada no sentido de limitar ou
prejudicar os direitos do homem e as liberdades fundamentais
reconhecidas pelos Estados contratantes.
Apesar disso, Neves deixa claro que a semântica dominante
ainda foi a da autonomia sistêmica, pois apesar de ser havido
uma abertura cognitiva para o sistema internacional, que foi
invocado explicitamente pelo o Tribunal Constitucional alemão,
essa corte sustentou a sua competência para interpretar de
forma soberana o próprio direito internacional, em vez de
reconhecer o primado das instituições internacionais. Assim, a
CEDH é tratada como direito válido no sistema alemão, mas as
decisões do TEDH não são entendidas como vinculantes, numa
afirmação da autonomia dos sistemas constitucionais.
Por mais que reconheça que os tribunais continuam
mantendo o fechamento operacional dos sistemas
constitucionais, Neves aponta a existência cada vez maior de
que as decisões tomadas por instituições internacionais
(especialmente dos organismos supranacionais) precisam de
alguma forma ser levadas em conta pelas instituições estatais.
Nesse sentido, a afirmação de autonomia não precisa seguir a
semântica clássica da soberania, pois essa autonomia não é
sustentada com base na supremacia do sistema estatal e sim na
tentativa de promover a coordenação dos sistemas. É nessa
abertura para o diálogo, para uma “conversação construtiva” (p.
142) entre os sistemas que Marcelo Neves identifica uma
peculiaridade da atual conformação dos sistemas jurídicos. E o
fenômeno do transconstitucionalismo é justamente a ocorrência
dessas tentativas de conversação, em que um sistema se abre
autonomamente para o outro.
Segundo Neves, a abertura dos sistemas é reflexo de um
reconhecimento de que as ordens constitucionais atualmente se
encontram em um grau de entrelaçamento tão grande que uma
série de problemas não podem ser devidamente resolvidos de
modo isolado por cada uma delas. Em suas próprias palavras, “o
direito constitucional estatal passou a ser uma instituição
limitada” porque “o incremento das relações transterritoriais
com implicações normativas fundamentais levou à necessidade
de abertura do constitucionalismo para além do Estado” (p.
120). E é justamente essa “emergência de problemas
constitucionais perante ordens as mais diversas impõem “um
diálogo ou uma conversação transconstitucional” (p. 122).
4. Acoplamento estrutural e racionalidade transversal

Neves percebe que esse diálogo pode ser apenas aparente,


na medida em que os tribunais insistam no modelo de
resistência vinculado à semântica da soberania. Nesse caso, a
citação de decisões externas pode dar-se apenas segundo o
velho topos do direito comparado, no qual normas e decisões de
outras ordens jurídicas é levada em conta como uma
experiência relevante ou exemplar. Se o diálogo
transconstitucional que ele identifica se resumisse a isso, não
apontaria para nada de novo.
Para utilizar a teoria dos sistemas, a valorização do direito
comparado caracteriza apenas uma abertura cognitiva, no
sentido de que uma ordem se torna sensível para observar o
modo como outras atuaram em casos semelhantes. Todavia, o
diálogo transconstitucional envolve um acoplamento estrutural
entre duas ou mais ordens, de modo que os sistemas envolvidos
em uma questão transconstitucional modificam a si próprios de
modo a propiciar uma atuação coordenada. Se não há
coordenação de condutas, então inexiste o tipo de acoplamento
estrutural mediante o qual os dois sistemas mantém sua
individualidade, mas criam laços de interdependência.
Esse acoplamento se diferencia da corrupção porque, nesta,
os elementos de um sistema interferem em outro de modo
direto, sem respeitar a sua autonomia. Já no acoplamento
estrutural, existe a adoção autônoma de elementos de um
sistema diverso, gerando um entrelaçamento entre as diversas
ordens envolvidas, que passam a ter “uma relação simultânea
de indpendência e de dependência” (p. 35). Assim, “os
acoplamentos estruturais constituem fundamentalmente
mecanismos de interpenetrações concentradas e duradouras
entre sistemas sociais” (p. 37).
Um tal acoplamento existe entre as diversas ordens
constitucionais, na medida em que elas normalmente
reconhecem a validade dos atos praticados pelas outras. Uma
sentença italiana, por exemplo, é normalmente reconhecida
pelo ordenamento brasileiro como uma decisão válida e
vinculante, sendo possível inclusive que as instituições
brasileiras lhe dêem cumprimento. Também pode ser observado
um acoplamento estrutural no modo como os Estados europeus
reconhecem a validade das decisões do TEDH, embora reservem
para si a possibilidade de limitar certas decisões quando elas
conflitam com a constituição nacional.
Para além dos acoplamentos estruturais típicos, Neves
aponta a existência de racionalidades transversais, na qual não
se interpenetram apenas certas estruturas, mas os próprios
critérios de racionalidade que definem o comportamento dos
sistemas. Na racionalidade transversal, os sistemas
desenvolvem modos semelhantes de tratar as mesmas
questões, de tal modo que eles coordenam as suas ações por
meio da compatibilização do padrões de avaliação integrantes
de suas ordens semânticas. Não se trata apenas do
reconhecimento da validade de certos elementos
extrasistêmicos (como normas e decisões), mas da construção
conjunta de elementos compartilhados pelos dois sistemas.
Trata-se, pois, de um nível maior de entrelaçamento que os
acoplamentos estruturais mais simples.
Evidentemente, o desenvolvimento desses padrões comuns
pode conduzir a uma indiferenciação de algum dos sistemas,
especialmente quando os padrões de um deles passam a
colonizar o outro, impondo a gradual identificação de uma
ordem com a outra. Com isso, um dos âmbitos de racionalidade
pode se expandir sem reconhecimento do outro, numa forma de
“expansão imperial” que nega a legitimidade das outras ordens
(p. 48). Como antídoto a esse processo, pode-se gerar uma
outra disfunção oposta que seria o autismo do sistema, que se
fecha não só operativamente, mas também cognitivamente, e
se torna incapaz com isso de estabelecer um diálogo com outras
ordens (p. 45).
Tomando como exemplo as relações entre direito e política,
poderíamos ter uma expansão imperial da política sobre o
direito caso se consolidasse a exigência de que as decisões
jurídicas ponderassem valores dando prevalência certos valores
ligados à manutenção das estruturas hegemônicas de poder.
Com isso, política e direito desenvolveriam uma racionalidade
comum, mas preponderantemente política, gerando um risco de
indiferenciação. Por outro lado, o discurso jurídico poderia
tornar-se alheio a qualquer elemento político, o que teria por
efeito gerar decisões socialmente percebidas como ilegítimas.
No meio termo aristotélico, encontraríamos a possibilidade de
construir uma constituição transversal, que harmonizasse certos
valores políticos e jurídicos de forma a possibilitar uma atuação
coordenada dessas ordens que preservasse a autonomia de
cada uma delas.
Assim, o desenvolvimento de uma racionalidade transversal
entre dois sistemas (como uma constituição transversal que
acople direito e política) permite que eles desenvolvam uma
forma de coordenação de suas próprias atividades, sem que isso
gere uma corrupção do sistema. Em resumo, o respeito ao
fechamento operativo dos sistemas somente permite uma
coordenação estruturada quando certos elementos atravessam
as duas ou mais ordens envolvidas por meio de uma
“incorporação recíproca de conteúdos” (p. 118), de tal modo
que a construção de uma semântica compartilhada deita as
bases para o estabelecimento de um diálogo que represente um
“intercâmbio construtivo e duradouro” entre eles (p. 80).
5. Transconstitucionalismo stricto sensu
Após desenvolver a idéia de que, dentro de cada Estado
democrático existe o desenvolvimento de uma constituição
transversal que consubstancia uma racionalidade transversal
que atravessa o direito e a política (idéia explorada no Capítulo
II), Marcelo Neves passa à noção própria de um
transconstitucionalismo como o desenvolvimento de uma
racionalidade transversal entre ordens jurídicas diversas.
Esse é um passo ambicioso e exige a fixação de certas
categorias que são mais frágeis que as utilizadas para a análise
da situação intra-estatal. Ocorre que tanto política quanto
direito são apresentados como subsistemas da sociedade, de tal
modo que sua integração mediante a construção de elementos
comuns é explicada na medida em que ambos são partes de um
sistema que os engloba. Nessa medida, o autismo ou a
expansão imperial de um sobre o outro resultariam em danos ao
próprio sistema social das sociedades democráticas
contemporâneas, em que se aliam as exigências de que toda
decisão política seja juridicamente válida e que toda decisão
jurídica seja politicamente legítima. Esse entrelaçamento nos
valores sociais dá uma base sólida para a construção de política
e direito como ordens interdependentes, mas diferenciadas.
Mas a mesma ligação não ocorre na relação entre ordens
jurídicas diversas, que não se enxergam como parte de um
sistema integrado, mas que tipicamente se apresentam como
sistemas autônomos soberanos. Nesse caso, não existiria
nenhum elemento que permitisse exigir dessas ordens a
definição de padrões valorativos comuns, que permitissem a
coordenação efetiva dos seus comportamentos. Frente a essa
dificuldade, Marcelo Neves dá um passo ousado e tenta
caracterizar cada ordem constitucional como subsistemas do
direito da sociedade mundial.
Assim, em vez de encarar a relação entre países como um
comportamento literalmente internacional (entre nações), ele
busca construir a idéia de que fazemos parte de um sistema
social global, que por sua vez é dotado de um sistema jurídico
multicêntrico (p. 117) que ele caracteriza como um sistema
jurídico mundial de níveis múltiplos (p. 235). Nessa medida, a
inter-relação entre as diversas ordens jurídicas não se dá
segundo um modelo interno/externo (em que cada ordem que
trata as outras como externas ao sistema), mas segundo um
modelo centro/periferia (que cada ordem trata as outras como
partes de um mesmo sistema global). Assim, a relação
transconstitucional entre ordens jurídicas resulta “sobretudo de
que as diversas ordens jurídicas pertencem ao mesmo sistema
funcional da sociedade mundial” (p. 125). Somente esse passo
permite que Neves afirme a necessidade da construção de uma
coordenação entre esses sistemas “sem que se possa definir o
primado definitivo de uma das ordens” (p. 117) e sem que
nenhuma, nem mesmo o direito internacional público (p. 151),
pode “apresentar-se legitimamente como detentora da ultima
ratio discursiva”(p. 237).
Torna-se claro, então, que a crítica fundamental de Neves é
à tendência dos Estados de manter-se dentro de uma semântica
de soberania que os leva a ter com as outras ordens apenas
uma abertura cognitiva, sem se engajarem no processo de
estabelecer uma racionalidade transversal que envolve uma
atitude cooperativa no sentido de promover a incorporação
recíproca de conteúdos.
6. Âmbitos do transconstitucionalismo

O terreno mais fértil para o desenvolvimento das reflexões


de Neves parece ser o do que ele próprio chama de
transconstitucionalismo entre direito estatal e direito
supranacional, entendido este como um direito ligado às
organizações integradas por estados. Especialmente no caso
europeu, ganha sentido o pressuposto de que as diversas
ordens se enxergam como participantes de um mesmo sistema,
o que gera pressões para o desenvolvimento de uma abertura
para a incorporação recíproca de significados, sem a afirmação
de uma “forma hierárquica monolítica” por meio da qual uma
das ordens afirme sua primazia sobre as outras. A existência de
um compromisso político entre os Estados no sentido de
construir um sistema supranacional faz com que seja necessária
uma “relação cooperativa” entre as instâncias estatais e
comunitárias.
Todavia, fora dos contextos políticos cooperativos ligados à
construção de ordens supranacionais, torna-se bastante débil a
tese de Neves de que os Estados precisam estabelecer diálogos,
ou seja, necessitam “pôr-se na posição do outro” (166) e
incorporar elementos de outras ordens e atuar
cooperativamente no sentido da manutenção da autonomia de
todas elas.
Mesmo quando ele trata do transconstitucionalismo entre
direito estatal e direito internacional essa conexão é bem mais
tênue, na medida em que ele parece transpor para a cena
internacional o ideal habermasiano de razão comunicativa, que
impõe a obrigação moral de tratar o outro como igual e a buscar
a construção de consensos. Todavia, os argumentos de Neves
não se mostram suficientes para justificar a inadequação de
explicar as relações entre as ordens constitucionais em termos
de uma racionalidade estratégica, em que cada um deles busca
apenas maximizar os seus próprios interesses, inexistindo um
compromisso fundamental de uma ordem com a autonomia das
demais nem com a construção de uma semântica unificada.
Portanto, o fato de uma determinada questão ser regulada por
sistemas nacionais e internacionais não precisa conduzir a um
diálogo construtivo que busque estabelecer uma convergência de
critérios jurídicos, sendo plenamente razoável a solução oposta, em
que uma das ordens manifeste a sua autonomia e pretenda a
aplicação dos seus próprios padrões.
A tese de Neves se mostra ainda mais frágil quando Neves
tenta expandir o transconstitucionalismo para englobar também
as relações entre ordens estatais diversas. Nesse caso, não
ocorre o julgamento do mesmo caso por dois sistemas, mas sim
o julgamento de questões semelhantes por diversas instituições
judiciárias que podem citar o direito estrangeiro ou precedentes
de outras cortes como elemento retórico de persuasão.
Portanto, não existe pressão alguma no sentido de que essas
ordens devem ser compatíveis entre si, embora a prudência de
outras cortes possa ser apontada como exemplar e a
experiência de outros países possa ser indícios relevantes para
que os juízes compreendam as possíveis consequências de uma
decisão. Nesse caso, os casos apontados por Neves mostram
apenas uma valorização do topos tradicional do direito
comparado, que pode indicar uma abertura cognitiva mais
ampla, mas está longe de estabelecer uma incorporação
recíproca de conteúdos, ainda mais porque é unilateral.
Neves também tenta aplicar a categoria de
transconstitucionalismo para a relação de uma ordem
constitucional com ordens jurídicas tradicionais não-estatais,
como as indígenas. Nesse caso, ele propõe um
“transconstitucionalismo unilateral de tolerância e, em certa
medida, de aprendizado” (p. 130), numa expansão do conceito
que termina por enfraquecê-lo, já que uma categoria fundada na
idéia de coordenação recíproca não parece compatível com
condutas unilaterais. Por mais que eu próprio concorde com a
defesa de uma atitude mais aberta à diferença e da
possibilidade de respeitar ordens diversas (e eventualmente
incompatíveis), parece exagerado tratar essa abertura como a
construção de uma racionalidade transversal ou como uma
exigência decorrente do crescente entrelaçamento das ordens
constitucionais.
Também é frágil a tentativa de compreender como um
âmbito do transconstitucionalismo o reconhecimento de ordens
transnacionais que não são compostas por Estados, mas por
indivíduos e empresas. Nesse caso, mostra-se mais uma vez
uma certa inflação da categoria de transconstitucionalismo, que
transborda de sua ligação inicial com o diálogo entre ordens
constitucionais e converte-se num conceito que tende a
englobar toda a abertura de uma ordem constitucional ao
reconhecimento de normas que não são formuladas pelas suas
próprias instituições, mas que advém de órgãos privados
transnacionais (como as entidades esportivas) ou de contratos
transnacionais (como os que estabelecem arbitragens).
7. Balanço final

Marcelo Neves inicia sua argumentação acentuando o


crescente entrelaçamento das ordens políticas, cada qual com
dotada de uma pretensão de autonomia. Nesse contexto, ganha
relevância a sua tentativa de desenvolver de categorias teóricas
capazes de organizar a reflexão sobre a relação entre os
sistemas diversos constitucionais, sem que isso seja projetado
sobre o pano de fundo de uma unidade pressuposta ou de um
projeto de unificação totalizante.
Com base na teoria dos sistemas, ele utiliza a categoria
racionalidade transversal para designar o processo de
incorporação recíproca de conteúdos realizadas por sistemas
que buscam agir de modo cooperativo e compatibilizar as suas
condutas, de modo que as pretensões de autonomia não
resultem num fechamento autista dos sistemas, especialmente
daqueles que lidam com demandas contemporâneas de
integração de ordens nacionais.
Num primeiro momento, ele explora esse conceito no
âmbito interno de um sistema social, descrevendo a
constituição como conteúdo compartilhado entre os subsistemas
de direito e política, configurando assim uma racionalidade
transversal. Expandindo essa categoria para as relações inter-
estatais, ele formula a noção de transconstitucionalismo para
descrever o desenvolvimento de racionalidades transversais na
relação entre sistemas jurídicos diversos.
Essa categoria se mostra capaz de evidenciar uma série de
relações emergentes dentro de sistemas supranacionais
compostos por estados autônomos, cuja estrutura exige uma
interação constante entre as instituições supranacionais e as
estatais. Esse tipo de relação pode ser vista como decorrências
de uma escolha de integração, que imporia aos tribunais uma
necessidade política de levar em conta as decisões dos órgãos
judicantes supranacionais. Porém, no âmbito da teoria dos
sistemas, tal descrição tenderia a identificar uma espécie de
corrupção sistêmica, na medida em que o código político
passaria a dirigir certos elementos do sistema jurídico estatal,
forçando a incorporação de elementos que lhe são estranhos.
Contudo, interpretar esse fenômeno como corrupção
significa vincular-se politicamente a uma proposta literalmente
conservadora, no sentido de que a função do direito é conservar
a sua própria integridade, o que inviabiliza a construção de
elementos compartilhados que compatibilizem sistemas
diversos. Esse tipo de interpretação é recusada por Neves, que
se mostra politicamente engajado na valorização do
estabelecimento de uma atitude cooperativa entre os sistemas.
Inspirado no ideal habermasiano de ação comunicativa, Neves
não identifica nessa abertura uma corrupção indevida, mas um
aprendizado legítimo, que ele qualifica como um processo de
diálogo.
Todavia, o que Neves chama de diálogo não é propriamente
uma conversação, pois trata-se de uma metáfora para aludir à
capacidade de uma ordem jurídica aprender, ou seja, de
modificar a si própria em decorrência de seu contato com outras
ordens. Essa conceituação permite que Neves converta o
transconstitucionalismo numa categoria que pretende abranger
todo movimento de abertura por meio do qual um sistema
define seu comportamento em função de elementos constantes
de outros sistemas. Essa é uma alteração significativa na
primeira noção apresentada no texto, que apresenta o
transconstitucionalismo apenas como movimentos de abertura
no sentido de construir uma racionalidade transversal, ou seja,
de incorporar conteúdos de outros sistemas.
Enquanto mantido no seu conceito mais restrito de
cooperação entre sistemas, a categoria transconstitucionalismo
é capaz de evidenciar uma série de ocorrências relevantes na
atual configuração jurídico-política das nações engajadas na
construção de um espaço internacional mais cooperativo,
especialmente no caso dos esforços políticos de constituir
instituições transnacionais. Essa cooperação se mostra na
necessidade de compatibilizar os critérios próprios com os
critérios externos, gerando um acoplamento estrutural entre
sistemas que tende a resultar em uma troca recíproca de
conteúdos.
Todavia, quando passa a um conceito mais largo de
transconstitucionalismo, que abrange não só os acoplamentos
estruturais, mas a simples abertura cognitiva com relação a
outros sistemas, Neves termina por fragilizar a categoria que ele
propôs. Nem todo reconhecimento estatal de que existe um
direito para além do sistema jurídico que lhe é próprio tende a
propiciar um acoplamento estrutural entre os sistemas, podendo
limitar-se ao uso de um topos retórico que observe em outras
experiências jurídicas um elemento a ser considerado relevante
para a reprodução autônoma do próprio sistema. O
reconhecimento da validade de outras ordens jurídicas e o
recurso exemplar ao direito comparado são mecanismos
clássicos de reprodução dos sistemas jurídicos estatais
plenamente compatíveis com uma semântica da soberania. Ao
caracterizar essas meras aberturas cognitivas como
transconstitucionalismo, Neves chega ao ponto de defender a
existência de um transconstitucionalismo unilateral que
contradiz a própria estrutura dialógica inicialmente ligada a essa
categoria teórica.
Além disso, deve se ressaltada a fragilidade da
caracterização dos sistemas jurídicos estatais como subsistemas
de um sistema jurídico mundial multicêntrico, apresentado como
um subsistema da sociedade mundial. Compreender a
sociedade mundial como um sistema parece uma escolha
metodológica razoável, e supor que ela tenha um sistema
jurídico parece também adequado. Todavia, é um salto
injustificado a caracterização das ordens jurídicas particulares
como subsistemas do sistema jurídico geral, desconsiderando
que essas ordens são sistemas semânticos vinculados aos
sistemas políticos estatais. Portanto, não se deve tratá-las como
partes de um sistema maior que têm uma necessidade racional
de coordenar as suas atividades de modo cooperativo, pois nada
impede que elas se coloquem como sistemas soberanos que
lidam com outras ordens políticas apenas sob uma perspectiva
estratégica.
Por tudo isso, afigura-se deveras otimista a conclusão do
livro, em que Neves afirma que “a transformação profunda que
tem ocorrido, nas condições hodiernas da sociedade mundial, no
sentido da superação do constitucionalismo provinciano ou
paroquial pelo transconstitucionalismo”, o que implica “o
reconhecimento de que as diversas ordens jurídicas
entrelaçadas na solução de um problema-caso constitucional
(...) que lhes seja concomitantemente relevante, devem buscar
formas transversais de articulação para a solução do problema,
cada uma delas observando a outra, para compreender os seus
próprios limites e possibilidades de contribuir para solucioná-lo”
(p. 297).
Essa conclusão parece muito mais a síntese de um projeto
político de abertura dialógica e de valorização dos direitos
humanos que o resultado de uma reflexão sobre a configuração
atual das relações entre ordens constitucionais, que parecem
muito menos interligadas por um ideal de coordenação de suas
atividades do que essa afirmação parece indicar. A maioria dos
exemplos apresentados por Neves pode ser compreendida como
uma ampliação da abertura cognitiva dos sistemas estatais,
embora o transconstitucionalismo possa ser uma categoria
relevante para descrever os movimentos existentes dentro dos
processos políticos de integração regional, que exigem a
construção de acoplamentos estruturais mais ricos entre os
sistemas participantes, envolvendo uma cooperação recíproca.

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