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O Transconstitucionalismo de Marcelo
Neves
1. Transconstitucionalismo e transconstituição
O título Transconstitucionalismo parece indicar que Marcelo
Neves se propõe a abordar a formação de uma espécie de
constituição que seja transnacional no sentido de que ela
ultrapassaria as fronteiras dos Estados nacionais. Além disso,
sabendo que ele faz várias referências à sociedade mundial,
tratando inclusive do direito que lhe é próprio, podemos intuir
que essa transconstituição seria justamente a norma de maior
hierarquia no contexto de um ordenamento transnacional.
Contudo, nada é mais distante da proposta do livro que
essas projeções de sentido feitas a partir de uma leitura
apressada do título. Por isso mesmo, logo no início do texto
Neves afirma sua discordância dos autores que apontam para a
existência de uma espécie de constituição transnacional1 e
esclarece que o transconstitucionalismo não é o processo de
formação de transconstituições, mas uma proposta de
compreensão do diálogo existente entre os sistemas
constitucionais. Portanto, trata-se de um
transconstitucionalismo sem uma transconstituição, na medida
em que o trans indica a ocorrência de elementos que
atravessam os sistemas, e não que os unificam em uma espécie
de metasistema.
Com isso, Neves segue explicitamente as intuições de
Lyotard no sentido de que não mais se justifica a tentativa de
construir metanarrativas totalizantes (LYOTARD, ?). Em sua obra
A condição pós-moderna Lyotard trata da gradual falência das
tentativas modernas de construir um metadiscurso unificado dos
saberes, o que acentua a necessidade de se pensar o mundo em
1
Essa indicação é feita na própria Introdução, embora Neves somente identifique e
analise tais concepções no final do cap. II (pp. 83-113).
termos de coordenação de narrativas diversas e não de
subordinação a um modelo único. Embora Neves não utilize
exatamente esses termos, é possível identificar claramente em
sua proposta uma reação contra a tendência dos juristas de
pensar o mundo apenas em termos de hierarquia e
subordinação.
Os estudantes de direito aprendem em seu primeiro dia de
aula que ubi societas ibi jus (onde está a sociedade está o
direito) e logo aprendem também que onde quer que haja
norma precisa haver uma norma de hierarquia superior, que
confere unidade ao ordenamento jurídico. Essa mistura de um
dado sociológico (a existência de normas) e um dogma filosófico
(a necessidade lógica de uma norma fundante) gera a ideia de
que toda sociedade tem uma norma básica, identificada com a
sua constituição.
Esse tipo de raciocínio conduz ao que Neves chama
concepção histórico-universal de constituição (p. 54), que
chama de constituição toda norma jurídicas supremas dentro de
uma ordem social. Neves não explora diretamente as
deficiências dessa posição normativista2, mas aponta que esse
tipo de perspectiva oferece um conceito demasiadamente
amplo de constituição, enquanto ele prefere utilizar uma
definição muito mais restrita, ligada ao movimento do
constitucionalismo. Assim, ele não apresenta qualquer norma
básica como constitucional, mas apenas aquelas que estão
envolvidas no processo moderno de diferenciação entre política
e direito, de tal forma que o título constituição fica reservado
para a norma que realiza o acoplamento estrutural entre política
e direito nos Estados de Direito contemporâneos (p. ?).
Onde inexiste essa diferenciação entre política e direito,
pode-se apontar a ocorrência de normas máximas (como o
direito natural), de normas gerais (como as antigas
Ordenações), mas não de uma constituição propriamente dita.
Para explicar devidamente as peculiaridades desse conceito de
constituição, Neves inicia o Capítulo I com uma análise histórica
panorâmica das relações entre política e direito, mostrando que
essas relações podem assumir formas múltiplas. Essa
reconstrução histórica evidencia que a autonomia funcional do
direito, conquistada no século XVIII, é apenas uma das
conformações possíveis de organização social.
Porém, o ponto mais importante da argumentação de Neves
é a acentuar necessidade de pensarmos as relações entre os
subsistemas sociais da política e do direito em termos de
2
Os limites desse tipo de posição são explorados por Hans Kelsen.
coordenação, e não de subordinação/hierarquia. Isso implica
uma superação da perspectiva dominante entre os juristas, que
toma como dogma a supremacia da constituição e logo conclui
que a tarefa dos juristas é aplicar as normas constitucionais a
todas as relações sociais, independentemente do sentido que as
decisões judiciais possam ter nos outros subsistemas sociais,
especialmente no da política.
2. Transconstitucionalismo e teoria dos sistemas