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Leitura dos Clássicos – Aula 03

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Leitura dos Clássicos – Aula 03: Otelo


Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho

Transcrição não revisada ou corrigida pelo professor.

Vamos pensar um pouco: nesta história há dois personagens que são muito
estilizados. Um deles é Iago e o outro é a Desdêmona. O Iago é só mau, não
conseguimos ver qualquer boa motivação nele; Desdêmona, por sua vez, é só boa,
não possui nenhum “mal”. Não há nenhum momento em que ela aja com alguma
intenção maligna, nem algum momento em que o Iago aja com alguma intenção
benigna. Vocês conhecem pessoas assim? Que só agem com intenções benignas ou
que só agem com intenções malignas? É muito difícil encontrar pessoas assim. O
que esse tipo de personagem indica para o leitor em uma história? De duas, uma: ou
é uma história muito mal escrita, com pessoas irreais, ou esses personagens não
estão representando pessoas que possamos conhecer. Não é possível conhecer uma
pessoa como a Desdêmona ou como o Iago. Isso indica, numa obra de literatura, que
esses personagens se referem a você mesmo, o leitor. Se as pessoas são às vezes
boas e às vezes más, se às vezes elas agem com intenção benigna e às vezes com
intenção maligna, é porque dentro delas mesmas existe uma coisa que é sempre boa
e outra que é sempre má, e há momentos em que ela pende para um lado e
momentos em que pende para o outro. Veja bem, esta peça não é escrita
fundamentalmente para agradar, mas para explicar algo sobre você mesmo, leitor-
espectador. Podemos observar, por exemplo, em O Fio da Navalha, que todos os
personagens são pessoas reais – podemos conhecer pessoas parecidas com cada um
daqueles personagens –, todos eles são dotados de qualidades e defeitos, são tipos
humanos. Aquele livro é um espelho da sociedade humana, ou de qualquer grupo
humano em que se encontrem pessoas daqueles diversos tipos. Já Otelo não é o
espelho da sociedade humana ou de um grupo, mas das forças que estão em jogo
dentro de você mesmo, que o levam a se comportar ora de uma maneira, ora de
outra.

Qual é o primeiro passo para entendermos bem qualquer obra do Shakespeare?


É entendermos que todas as suas obras têm mais ou menos o mesmo tema central,
mais ou menos a mesma preocupação. Shakespeare está sempre falando do mesmo
assunto: as duas maneiras de ver a vida e o conflito entre elas. Na Inglaterra, no
tempo de Shakespeare, havia na sociedade duas maneiras diferentes de se ver a vida
que eram bastante vivas, mas uma estava em declínio e a outra em ascensão. A

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primeira, a que estava em declínio, podemos chamar “a cosmovisão medieval”, a


visão que o homem medieval tinha do mundo. E a segunda é a cosmovisão
renascentista, que estava surgindo e crescendo no tempo de Shakespeare. Qual é a
principal diferença entre essas duas maneiras de ver o mundo? A principal diferença
consiste na resposta à pergunta: "Qual é o principal propósito da vida?". Lembrem-
se de que quando tratamos d’O Fio da Navalha, falamos que o que diferencia um ser
vivo de um ser inanimado é a presença de propósitos naquele: o ser vivo procura
situações, estados ou coisas que ainda não estão presentes. Então, a diferença
fundamental entre essas duas cosmovisões, que é na verdade a diferença entre
quaisquer outras duas cosmovisões (e mais adiante, na leitura de outros livros,
vamos descrever outras cosmovisões), consiste justamente na resposta à
pergunta: "Qual é o principal propósito da vida?". Quer dizer, qual é a melhor coisa
que você pode buscar na vida? O que faz da sua vida boa ou ruim?

Nessa peça, Iago representa uma dessas cosmovisões estilizada ao extremo, e


apesar de termos mencionado Desdêmona, que é completamente boa, como “oposta”
ao Iago, que é completamente mau, não é ela quem representa a outra cosmovisão,
mas o próprio Otelo. Desdêmona representa um elemento que, embora esteja
presente na vida humana, é supra-humano, então ela não pode representar uma
cosmovisão – um modo do ser humano encarar a vida e entender o mundo. Iago, por
sua vez, não se opõe jamais a Desdêmona; não é Desdêmona que ele quer destruir e
sim Otelo, não é ela quem Iago odeia, e sim Otelo. Já no início da obra, Iago diz
quem odeia.

Para compreendermos essas cosmovisões, vamos entender qual é o propósito


que o Otelo e o Iago têm em suas vidas. Vocês conseguem imaginar esses propósitos
ao lembrar-se, na história, do comportamento de um e de outro? Quer dizer, o que o
Iago quer da vida? Ele age sempre em benefício próprio. E o que é o benefício
próprio? Qual é o benefício que ele procura? É um benefício exterior. E o Otelo, o
que ele busca? O que o Otelo quer? Ele se preocupa muito com a honra. O ponto
dele é a honra. Tanto que a honra é sua força moral, mas também é o ponto fraco de
seu caráter, o que o leva a ser enganado pelo Iago. Logo no início da obra, ele se
justifica diante dos nobres sobre como conquistou Desdêmona, comenta a sua falta
de habilidade no falar, porque em toda a sua vida ele não fez outra coisa senão lutar.
Desde os sete anos, só levantou o braço para dar porradas. Mas para que ele lutava?

Aluno: Para defender aquilo em que acreditava. Sendo que aquilo em que ele
acreditava não era algo que lhe servisse.

Aluna: Mas ele também obtinha conquistas...

Prof: Exatamente, mas ele conquistava para ele? Não, não era para ele. Ele, de
fato, lutava por algo em que acreditava e que não era ele mesmo. Não era assim: “Eu
acredito que devo ser o chefe de todo mundo, porque sou melhor do que todo

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mundo, então eu luto e conquisto para chefiar depois”; depois que conquistava, ele
entregava para outro. E neste caso específico, era para a República de Veneza. O
elemento importante aqui é justamente este: ele lutava em nome de algo distinto dele
mesmo. Existia algo que ele prezava mais do que si. Ele pensava: “Isto vale tanto
que, eu posso passar a vida toda lutando e arriscando a minha própria vida para que
isso se realize”. A diferença entre o Iago e o Otelo é fundamentalmente essa, quer
dizer, tudo que o Otelo faz é em função de algo que está fora dele. E o Iago, por sua
vez, não faz nada senão em função de si mesmo. Esta é a primeira dentre as
principais diferenças entre a cosmovisão medieval e a cosmovisão renascentista.

A cosmovisão medieval é teocêntrica, está centrada em Deus. A palavra


“Deus” aqui tem um significado muito amplo: ela se origina de uma palavra
que significa “aquele que vê; o vidente; aquele que cuida”. Então, esse é o primeiro
ponto: a quem Otelo servia? Ele servia àquela parte dele mesmo que o via em suas
ações, e agia como alguém que está diante de um outro que testemunha tudo o que
ele faz. E esse outro é seu juiz o tempo inteiro, é esse outro quem decide como ele
tem que se comportar. É por isso que ele nunca se perturba nos seus
propósitos. Lembrem como, logo no início da peça, quando Iago diz para Otelo que
o pai da Desdêmona está pronto para mandar prendê-lo, matá-lo ou qualquer coisa
assim, e ele responde “Pois que venha, eu não temo”? O que ele quer dizer é: “O que
eu fiz, eu já fiz diante de uma testemunha, então eu não tenho nada do que me
envergonhar!" Essa testemunha é o “Deus” do sujeito, é a ligação dele com Deus. Já
a cosmovisão renascentista é, de início, antropocêntrica, está centrada no próprio
indivíduo humano. Isso significa que ela está centrada na vontade humana. Cada
uma dessas cosmovisões se baseia em um fato sobre a sua própria mente e sobre a
sua própria alma, que é evidente para todo mundo: o primeiro fato, que fundamenta
a cosmovisão tradicional, é que toda vez que você faz uma coisa, algo dentro de
você diz se você fez o Bem ou o Mal; o segundo fato, que fundamenta a cosmovisão
renascentista, é que você só faz o que quer – não importam essa testemunha interior
nem as testemunhas exteriores, as pessoas internas ou externas: a decisão, em último
caso, cabe a você mesmo.

De acordo a primeira visão, a sua vontade se subordina a essa testemunha


interior, ela não está centrada na vontade, mas na testemunha que diz se a vontade
foi bem orientada ou mal orientada; essa testemunha vê o que você faz e cuida de
você. Quando a testemunha interior diz “Isso foi errado” ou “Não faça isso”, por que
ela o diz? O que ela vai ganhar se você agir de acordo com ela? Ela não vai ganhar
nada. Ela é só um componente dentro da pessoa, e não uma pessoa. Isso é como
perguntar “O que a lâmpada ganha iluminando esta sala?” Ela não ganha nada, quer
dizer, ela tem uma natureza mais ou menos permanente. Quem vai ganhar? É
você. Ela está dizendo isso porque se você agir de um certo modo, será melhor para
você mesmo – está lá para cuidar de você. Já o Iago, em princípio, tem uma ação e
uma visão da realidade centradas em sua vontade, sua visão da realidade está
centrada no elemento volitivo: “Eu quero fazer aquilo”, “Eu não quero fazer isso”.

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Por quê? “Porque eu quero”. Então, essa diferença entre a cosmovisão teocêntrica e
a cosmovisão antropocêntrica terá como consequência uma ênfase maior numa
dimensão da vida ou em outra.

Aluno: Na cosmovisão teocêntrica há uma testemunha exterior e na


cosmovisão antropocêntrica uma testemunha interior?

Prof: Não, na cosmovisão teocêntrica há uma testemunha interior – é algo


dentro de você que lhe diz se é certo ou errado o que você faz. É como se você
estivesse diante de Deus, porque o que ela diz não depende do que a você quer, ela
nem sempre diz o que você quer. Às vezes, a vontade fica contente quando a
testemunha interior diz “Faz o certo”; e às vezes a vontade fica tremendamente
descontente, pois é terrivelmente difícil seguir aquela testemunha. Já na visão
antropocêntrica é o contrário: a testemunha interior não tem nenhum valor. É assim:
“Virtude – virtude, uma vírgula! Não existe esse negócio de virtude!”.

Aluna: É interessante essa ser uma opinião na Renascença.

Prof: Os temas das obras dessa época ainda são, numa certa medida, a
herança medieval, mas o foco das obras começa a mudar. Há uma obra clássica do
Renascimento que marca essa mudança de plano, uma obra de Piero Della
Francesca, Flagelação de Cristo. Ou seja, os temas medievais continuam
presentes. A diferença entre esta obra e as obras medievais é que, nesta obra, Cristo
aparece no plano de fundo, enquanto na frente aparecem três sujeitos que conversam
sem dar a mínima atenção para o que acontece ali. É uma obra brilhante em termos
de perspectiva e de representação, mas que, sobretudo, indica muito da mentalidade
que estava surgindo: os Mistérios Divinos estão acontecendo o tempo inteiro, mas as
pessoas estão vivendo suas vidas, e aquilo lá se encontra só no fundo da realidade. O
sujeito coloca essa testemunha interior no escanteio, ela ainda continua lá, mas não
tem mais a importância que tinha. Ninguém consegue apagar essa testemunha
completamente – apagá-la seria apagar-se a si próprio –, mas se consegue colocá-la
num cantinho, e ela passar a não ter mais importância nenhuma na vida. Piero foi
um dos principais pensadores do Renascimento, foi um grande matemático também,
- foi até mais conhecido por suas obras na Matemática - mas, recentemente, nos
últimos cem anos, foram ressuscitadas as suas pinturas, que possuíam como símbolo
justamente aquilo que representava o pensamento Renascentista: a posição do
homem no centro do universo. O homem agora é o assunto mais importante, e isso
não mudou desde então.

Outra característica do Renascimento que indica essa centralidade que o


homem passou a ter no pensamento, na cosmovisão, é a reentrada no panorama
artístico da figura humana nua. Isso foi praticamente abolido na Idade Média. Por
que isso representa muito o Renascimento? Justamente porque, depois de séculos
sem ver uma pintura com uma figura humana nua, quando se vê uma, aquilo chama

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a atenção de tal modo que todos os outros componentes da obra perdem


importância. O ser humano que está ali chama tanto a atenção, que todo o resto
passa para o segundo plano. É diferente hoje em dia: vemos figuras nuas o tempo
todo, então isso não distrai a atenção do conjunto da obra. Já naquele momento
histórico, era uma virada e tanto no modo de encarar as coisas. Quer dizer, o sujeito
não pensaria em Deus coisa nenhuma, no máximo pensaria que “Deus também faz
parte da vida”, “Também existe esse negócio de Deus”.

Então, a proximidade entre Deus e a sua consciência, isto é, essa testemunha


interior, era uma coisa evidente em toda a Idade Média. Como uma pessoa sabia
então que existia Deus? Você (em geral) sabe que existe Deus porque existe algo em
você que, independente do que você quer, diz o que é certo e errado. Isso é como
que um sinal de Deus escrito no interior do ser humano. E na Idade Média, todas as
obras de arte tinham como centro o próprio Deus, porque essa é a parte central do
ser humano. Quando o homem coloca Deus num cantinho, ele acaba por colocar a
sua consciência num cantinho também, e ela passa a ser “um lado” da sua
vida. Tanto é assim que qual é a visão acerca do homem que vai surgir em
decorrência do pensamento Renascentista? A visão segundo a qual o homem é
composto de duas partes principais: a razão, que é um princípio de ordem, e as
paixões que são princípios de desordem. Toda discussão sobre o ser humano a partir
do Renascimento é acerca de qual desses lados do ser humano deve dominar o outro
– a razão de um lado e a paixão do outro. Isso é uma simplificação extrema!

Na própria história da arte, os movimentos que se seguem na arte ao


Renascimento são uma sucessão de predomínios, ora de um lado ora do outro. A
própria arte renascentista tendia muito mais para o lado racional, daí então a sua
insistência na Matemática, na perspectiva; as pessoas acreditavam que a perspectiva
e a Matemática explicavam a ordem por trás de uma aparência, por trás do que se vê,
então era uma arte mais racional do que passional. Mais tarde, esse lado do ser
humano “enjoou” e, como o ser humano é feito de dois lados e não só de um, a arte
logo em seguida passa, já no Barroco, a enfatizar outro lado: “A razão não é nada, é
só um esquema matemático vazio e morto. Vida mesmo é intensidade das paixões”.
Toda a arte do Barroco representa justamente isso, ela tenta mostrar a positividade
deste lado do ser humano. Depois do Barroco então surge o Clássico, que é o contra-
ataque da razão. Toda a discussão sobre o ser humano, tanto na arte quanto em
Moral e Filosofia, depois do Renascimento, se resume nesta questão: o que é mais
importante? A razão ou as paixões? Esses temas entraram até no imaginário popular:
qualquer novela de televisão hoje em dia vai colocar os personagens em situações
nas quais surgem as seguintes perguntas: eles têm de agir de acordo com a razão ou
de acordo com os sentimentos? De acordo com a cabeça ou com o coração? Até as
mais baratas obras literárias do séc. XX vão colocar este conflito, porque esse é um
tema já secular, um tema já tão velho, levantado há tanto tempo, que já chegou na
mente de todos; ele se tornou um lugar-comum.

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Acontece que em termos de Filosofia Moral, de pensamento moral, também


nos séculos seguintes, na história do ocidente, o papel que era ocupado pela
consciência – pela testemunha – passou a ser desempenhado às vezes pela razão e
às vezes pelas paixões. Então todo dilema humano depois do Renascimento passou a
ser sempre este: a sua vontade deve seguir a razão ou o conjunto formado pelos
desejos, sentimentos e paixões? Uns dirão que a opção moralmente superior é seguir
a razão, e que às vezes nós derrapamos e seguimos as paixões e sentimentos. Outros
dirão o contrário: o que é certo mesmo, o que é bom mesmo é seguir as paixões, e de
vez em quando nós cedemos e caímos na “tentação” racional. Toda busca de
felicidade depois do Renascimento acaba dirigindo o sujeito ou para um lado, ou
para o outro, e o pensamento moral inteiro vai oscilar entre uma coisa e a outra. Por
exemplo, o pensamento moral de Kant é que você deve seguir a razão ao invés das
paixões, que seguir a razão é ter uma boa vida, uma vida excelente e melhor. Mas
toda a obra de Kant sobre Moral é uma resposta à obra de David Hume sobre Moral
que dizia que a razão não vale nada, que bom mesmo é seguir as paixões. Ou seja,
temos na cosmovisão Renascentista estes três componentes: a razão de um lado, as
paixões do outro, e a sua vontade, que pode escolher entre uma coisa e a outra. Mas
como a razão e as paixões são componentes do seu próprio ser, inevitavelmente você
oscilará entre satisfazer esta e satisfazer aquela. O único ponto de equilíbrio entre a
razão e as paixões é a sua própria vontade. E se ela é o ponto de equilíbrio, você ora
vai oscilar para um lado, ora oscilar para o outro.

Qual é a diferença entre essa cosmovisão e a cosmovisão medieval? Simples:


na cosmovisão medieval não havia três elementos, e sim quatro elementos na vida: a
razão, as paixões, a sua vontade livre, e Deus - ou a testemunha interior. Na Idade
Média se dizia que a sua vontade não deve seguir nem a razão, nem as paixões: a sua
vontade deve seguir a testemunha interior pura, e deveria usar a razão e as paixões
para isso, deveria converter a razão e as paixões em instrumentos dessa outra
finalidade que é seguir a testemunha interior. A testemunha interior não é nem
racional, nem passional, ela se expressa às vezes de modo racional, e às vezes de
modo passional. Às vezes essa testemunha usa ou consegue se expressar por meio
das paixões, e assim ela aparece como um intenso desejo de fazer o que é certo; às
vezes ela aparece só como uma fria restrição ou uma fria ordem: “Você tem que
fazer o que é certo por causa disto e daquilo”. Às vezes ela aparece como um
argumento e às vezes ela aparece como desejo. Ela não é um, nem o outro. Então, a
cosmovisão medieval dirá que a vida humana segue num movimento quaternário,
que tem quatro etapas ou funções distintas (o que era comparado às quatro estações
do ano, às quatro fases da lua, aos quadrados mágicos etc.): a sua vontade persegue a
testemunha interior, ela tenta seguir a orientação da testemunha interior. Na medida
em que a vontade consegue fazer isso, a testemunha passa a iluminar a sua razão e
você passa a entender melhor a sua própria situação. Quando você entende melhor a
sua situação, a razão põe uma certa ordem nas paixões. Quando você entende algo
sobre a sua vida os seus sentimentos começam naturalmente a se ordenar por esse

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entendimento. Quando as paixões são então ordenadas pela razão, elas servem de
suporte à sua vontade num esforço de seguir a testemunha. E assim a coisa se segue,
num movimento de quatro etapas.

Como na cosmovisão Renascentista só há três elementos, a privação de um


deles é insuportável para a alma humana, porque a pessoa não aguenta muito tempo
sem uma diretriz fundamental. Isso significa que a consciência – a testemunha
interior, o elemento que foi subtraído – tem de ser substituído por alguma outra
coisa. De um modo ou de outro, essa outra coisa tem de se parecer com a primeira,
parecer com a testemunha interior. Esse substituto consiste também num
ordenamento da sua ação. Caso você conclua que uma vida feliz é seguir a sua
vontade, ora orientada pela razão, ora orientada pelas paixões, qual vai ser a sua
vontade, qual vai ser o primeiro problema que você vai enfrentar? Se você decidir
fazer só o que quiser, o que vai acontecer? Em algum momento você tentar vai fazer
algo e alguém vai falar “Não faça isso, senão eu lhe bato!”. Será esse o efeito
evidente, você vai esbarrar em alguém. Se você não tem um princípio de restrição
interno, vai surgir um princípio de restrição externo, ou seja, alguém
inevitavelmente tentará lhe impor um limite. Agora, se o propósito da vida é seguir a
sua vontade, aquele limite exterior lhe parecerá arbitrário: “Eu só estou querendo me
contentar, e você me diz ‘não’?! Ora, quem é você para dizer isso?!” Acontece que
você vai então se confrontar com a seguinte ideia: “Ou eu volto para a visão anterior
da realidade, ou eu terei de lutar contra esse cara”. Supondo que você escolha a
segunda alternativa, o que acontece quando você decide isso? Você abstrai o fato de
que o outro também é uma pessoa humana, que também tem uma vontade da mesma
ordem que a sua. No momento em que você faz essa escolha, a sua visão muda da
antropocêntrica para a egocêntrica – “Os outros não são centro de nada, nem deles
mesmos. Eu sou o centro do que está acontecendo. As vontades dos outros são
apenas fatores coadjuvantes ou obstaculizantes da minha vontade.” Então o
propósito do sujeito passa quase imediatamente a ser manipular aqueles que
concordam com ele para que eles destruam aqueles que discordam dele. Quer dizer,
está chegando no Iago, não é? O que Iago faz o tempo todo é justamente isso.

Aluno: [pergunta inaudível]

Prof: Sim, essa é uma preocupação importante e isso delineou a nossa história
recente entre o Renascimento e a época atual. Do Renascimento para cá, o desejo de
domínio do mundo aumentou incalculavelmente.

No final, resta só esta ideia: “Quem discorda de mim é um chato, nada mais”.
Se você não tem um meio para diferenciar a própria vontade e para hierarquizar o
que nela é bom e o que é mau, você não encontrará esse meio fora de si. Se você não
tem objetividade em relação à sua própria vontade, você não terá objetividade em
relação aos outros, você até mesmo vai esquecer que os outros também são seres
humanos. Todo esse processo está como que contido, em semente, em cada ocasião

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na qual o sujeito contraria a sua própria consciência; ele está ali subjacente,
escondido por trás da ação – “Os outros não valem nada, eu sou o centro do
mundo”. Essa é a primeira diferença que decorre do antropocentrismo. Do
teocentrismo decorre uma ênfase na interioridade, e do antropocentrismo ocorre uma
ênfase na exterioridade. O próprio Iago fala: “Não existe virtude. O que importa é
ganhar ou perder. A vida é melhor quando você tem uma porção maior desse
mundo, e pior quando você tem uma porção menor”. Ele é bem claro nisso.
Shakespeare já via no pensamento Renascentista o desenvolvimento dessa semente.

Já para o Otelo não é isso que é importante. Observem: cada vez que entrava
em uma guerra, ele o fazia só porque sabia que ganharia? Ele queria ganhar, mas
nunca sabia se ganharia. Quando você propõe a si mesmo um objetivo exterior, que
você não sabe, não tem a menor certeza se pode conquistar ou não, e está na dúvida,
você chega a agir? Você consegue fazer isso todos os dias? De vez em quando as
pessoas, ainda na dúvida, decidem se arriscar. Mas você consegue se arriscar todos
os dias, como o Otelo fazia, desde os sete anos (Com exceção de nove meses, em
toda vida dele, em que ele não se dedicou àquilo)? Você consegue se lançar em
empreendimentos de risco o tempo todo? Arriscar tudo o que você tem o tempo
todo?

Aluna: Mas hoje, todo mundo ao sair de casa tem consciência dos riscos.

Aluno: Mas são calculados.

Aluna: E para ele [Otelo] também não eram?

Prof: Claro que não. Os ofícios de vida ou morte nunca são calculados. A
questão é justamente esta: “Não importa que eu ganhe ou perca a guerra, eu já estou
ganhando uma outra coisa. Ganhando a guerra ou perdendo, essa outra coisa eu já
estou ganhando. Não tem problema eu perder, porque o que eu estou procurando eu
já estou ganhando, de qualquer jeito.”

Aluno: Foi isso que seduziu a Desdêmona?

Prof: Foi exatamente isso. O que o Otelo está procurando está dentro dele
mesmo. É algo que acontece dentro dele, quando age daquele jeito. Ou seja, a ênfase
da sua vida está na dimensão da interioridade. Já o Iago é realmente egocêntrico. Ele
se apresenta sob um prisma antropocêntrico no começo, mas se revela um evidente
egocêntrico. A diferença é exatamente na ênfase na interioridade ou na
exterioridade. Todos os propósitos de Iago são exteriores, e é essa exterioridade da
vida que faz com que aqueles propósitos sejam maximamente secretos. Como os
propósitos são essencialmente exteriores, ele tem de torná-los secretos, senão ele não
seria astuto.

Aluno: No caso específico do Iago, seu propósito era secreto porque se não o
fosse, ele não conseguiria realizá-lo. Era algo racional.

Prof: Exatamente, era só uma frieza tática.

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Aluno: O Iago pensava “Como eu vou interferir na vida das pessoas, elas não podem
saber. Se souberem, elas não deixarão, e isso vai me prejudicar”. Não era um
problema moral.

Prof: Não era um problema de consciência, era um problema estratégico,


logístico: “O que vai facilitar ou dificultar, para mim?”.

[INTERVALO]

Como não temos muito tempo, vamos fazer uma pequena lista do que cada um
dos personagens principais dessa peça representa na alma humana.

Para começar, Desdêmona representa um elemento sobre-humano, que não é


algo puramente humano, mas que ainda assim está na alma humana: a vida excelente
que se alcança seguindo a testemunha interior. Desdêmona representa o último
objetivo de alguém que vive de acordo com aquela cosmovisão medieval, por isso
ela é sempre boa, e também por isso ela é esposa do Otelo. Otelo representa a
vontade que busca a vida excelente, a vontade que persegue esse objetivo até o fim.
Otelo pode até ser enganado, mas não age de maneira deliberadamente má em
nenhum momento (sob esse aspecto, ele é meio burrinho, mas isso se aplica a todos
nós). Iago também não representa propriamente um elemento humano, mas algo que
está sempre junto do ser humano: o próprio diabo, o puro desejo de enganar. Cássio
fica no mesmo plano de realidade do Otelo, e representa as boas qualidades da
vontade, as virtudes consolidadas na alma – os hábitos virtuosos que Otelo já tem. É,
aliás, essa afinidade entre Cássio e Desdêmona, em que ela representa o próprio bem
e ele representa a melhor coisa que há na alma humana, que torna verossímil a
história que Iago sopra na cabeça do Otelo, pois é fácil que se ele se convença disto:
“Eles são tão feitos um para o outro, que só pode ser verdade isso que você (Iago)
está falando”. Se a afinidade não existisse, o Otelo não acreditaria. E Rodrigo
representa o aspecto complementar e o oposto ao Iago: representa os maus hábitos e
vícios na alma humana. O que o Iago, que é o diabo, diz a Otelo, que é a vontade, o
tempo todo? “Você pode fazer tudo direitinho, e no final é só a sua parte virtuosa, só
um lado do seu ser, que vai ganhar isso que você quer. Não é você mesmo quem vai
ganhar, é o Cássio!” E, por outro lado, como ele alimenta os “vícios”, isto é, o que
ele sopra ao Rodrigo? “Confie em mim, porque você vai ganhar isto que agora é
do Otelo!” Por um lado, Iago argumenta com a vontade, questionando “De que
adianta buscar a vida excelente, se a vida excelente só é boa para as virtudes, só para
um lado do seu ser?” e, por outro lado, argumenta com os vícios, dizendo: “Não é
necessária virtude, você vai conseguir a vida excelente de qualquer maneira. É só
seguir os meus conselhos.”

Aluno: E a Ilha? Tem algum significado por ser uma ilha?

Prof: Não. Só o significado geral de longas viagens. Territórios estrangeiros


servem para mostrar que o palco é a alma: você sai do mundo exterior e vai lidar
com a alma, que é um território em conflito o tempo todo.

Aluna: E a Emília?

Prof: O que a Emília representa? A Emília é boa ou má? Ela é boa, mas é meio

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bobinha. Ela é boa, mas está submetida ao Iago. É ele quem decide, no decorrer da
peça, o que ela faz. Quando ele pega o lenço, ela vai contar a Desdêmona, vai dizer
“O seu lenço está com o meu marido.”? Não, ela diz: “Está bom, se você quer tanto,
fique”. Então, o que ela representa? Vamos pensar: marido e mulher estão mais ou
menos no mesmo plano, então significa que ela também representa um elemento
externo ao ser humano; mas ela não é má, o amor dela pela Desdêmona indica o
quanto ela não é má. E ela tem um papel crucial na peça, pois ela mostra a verdade
ao Otelo no final. Então, a Emília representa o próprio mundo exterior, o mundo no
qual o ser humano vive a sua vida. O mundo é um negócio bom, mas ele está numa
certa medida sob o domínio do diabo. Não completamente – por um lado ele está
sob o domínio da Desdêmona, e por outro lado, sob o domínio do Iago: assim é o
Mundo. Muitas vezes você só entende que falhou em seguir a testemunha interior e
que se desviou do caminho pelas consequências exteriores que vão ocorrer na sua
vida. Acontece que o Otelo, subjetivamente (até onde ele sabe), continua seguindo o
mesmo propósito que possuía na vida: agir de maneira digna, honrosa e aperfeiçoar
o caráter. Mas objetivamente, ele está agindo da maneira totalmente contrária.

Aluno: [inaudível]

Prof: Não foi exatamente uma fraqueza, porque no final é esse lencinho que
revela a verdade para ele. O lencinho atrapalhou, mas depois ajudou (ele também é
um personagem muito importante).

O que o lencinho representa? Otelo diz que ele tem propriedades mágicas. Foi
o primeiro presente que ele deu a Desdêmona. O pai dele deu o lenço para a mãe
dele, e podemos imaginar que o pai o recebeu da sua mãe, que recebeu de seu
marido, e assim por diante, até Adão e Eva. Qual é o presente que a vontade tem a
oferecer para a finalidade da vida? É evidente que uma vida excelente beneficia
muito aquele que a vive, mas em que medida que a pessoa responde a isso? O que dá
em troca? Este é um detalhe de simbolismo básico. Em geral, para que serve um
lenço? Serve para limpar. O lenço então representa a própria testemunha interior ou
a consciência de Otelo. Ele tinha propriedades mágicas mesmo! Tanto tinha que o
que acontece com a consciência do Otelo? Ela a tem durante a vida inteira, e num
breve período, quem toma posse dela é o Iago. Há um momento na peça em que, na
verdade, Otelo está completamente inconsciente do que está acontecendo.

Aluna: Então Iago estava de posse da consciência...

Prof: Da consciência [de Otelo].

Aluna: Ele estava seguro enquanto o lenço estava com a Desdêmona, que é o
Bem; estava tudo bem.

Prof: Estava tudo maravilhoso.

Aluno: E quando o Iago pega, ele ficava inconsciente dos fatos reais...

Prof: Exatamente! Subjetivamente ele ainda possui a consciência, mas


objetivamente, ou seja, no palco do mundo, ele não está mais agindo de acordo com
ela, só no palco da alma. É por isso que para que a consciência dele caia nas mãos de
Iago, tem que cair primeiro nas mãos da Emília. Vocês sabem quando se perde a

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consciência? Quando se medir a sua consciência pelos fatos do mundo exterior.

Aluno: No fim da peça, deu certo.

Prof: Veja bem, a posteriori os fatos muitas vezes mostram a você a realidade,
mas isso não ocorre antes que você aja. Suponha que o sujeito queira fazer algo e a
sua consciência diz que é certo ou que é errado, mas é só a consciência que está
dizendo. O que o sujeito faz? Ele não quer fazer aquilo que a consciência está
mandando de jeito nenhum, ele quer exatamente o contrário; ele vai ficar procurando
no mundo exterior um motivo que justifique a sua ação ou omissão contrárias à
consciência. Muitas vezes até pensamos assim: “Vou pedir conselho para uma
pessoa que eu sei que vai me dar um conselho que eu sei que é errado, mas com o
qual eu vou me sentir melhor”. Ele joga a sua consciência no exterior e a substitui
por um agente externo: “Minha consciência não é suficiente para me dar a certeza.
Eu quero uma prova. E a prova é o que o fulano pensa, a prova está na observação
do mundo”. Quando você olha o mundo, você sai da segurança da consciência e
você entra na insegurança do mundo, e passa a pensar: “Tudo o que você faz nesse
mundo é arriscado e você vai perder, então você precisa garantir um pedacinho”,
então você substitui a testemunha interior por qualquer testemunha exterior que
confirme o que você queira fazer.

Aluna: E se o primeiro não falar o que ele quer ouvir, ele procura outro. (risos)

Prof: Exatamente! Até que alguém concorde. Você pode procurar qualquer
coisa – pode procurar até na Bíblia uma justificativa. E geralmente até se encontra
alguma. Você sabe que é errado, mas vai dizer “Imagina, é a Bíblia, foi Deus que
falou! Minha consciência é um negócio da minha cabeça”. É possível procurar em
qualquer parte, mas saiba: tudo que está fora de você está em parte sob o domínio do
diabo, que é o príncipe deste mundo. Toda justificação que seja externa a você pode
agir contra você.

O mundo não está aqui para cuidar das pessoas, a consciência sim. Agora, não
significa que o Mundo seja mau; ele não é o diabo. Tanto é assim que é esse espelho
do mundo que mostra para Otelo que ele mesmo tinha acabado de eliminar a melhor
coisa da vida dele, sem nenhum motivo. São justamente os benefícios e os
malefícios, ou qualquer coisa que o sujeito receba do mundo externo, depois de ter
agido de modo contrário à sua consciência, que acabam por servir de testemunhas
contra ele. Se o sujeito não consegue um benefício, ele fica dizendo “Poxa, que
droga! Devia ter seguido a minha consciência, pelo menos eu dormiria em paz!”; e
se ele consegue o que deseja, sempre fica lembrando que uma parte dele teve que
morrer, que ele perdeu algo nele para ganhar aquilo: “Havia algo valioso em você.
Agora há algo valioso no mundo. Por mais que isso seja seu, não é você. E logo será
de outro”.

A Emília representa essa capacidade do mundo de servir de espelho do estado


do sujeito. Mas esse espelho nem sempre reflete as coisas como elas são, ele as
inverte também. Tanto o Iago quanto a Emília representam elementos que estão fora
do ser humano. A Desdêmona representa algo que não está fora do ser humano, mas
que transcende a individualidade humana – é algo que está dentro do Ser humano,
mas o transcende e não é determinado por ele. Já o Cássio e o Rodrigo representam

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Leitura dos Clássicos – Aula 03

simplesmente tendências dentro da alma humana: afinidade com o polo superior


extremo, que é a Desdêmona, ou com o polo inferior, que é o Iago.

Aluna: E o Ludovico? E a Bianca?

Prof: Todos os outros personagens possuem funções secundárias, tanto que a


importância deles não é constante; eles são acessórios e seguem linhas paralelas.
Mesmo o pai da Desdêmona, Brabâncio.

Depois de lermos mais alguns livros, nós voltaremos a comentar Otelo. Hoje
foi complicado [desenvolver mais as explicações] porque tínhamos que introduzir a
questão da obra geral de Shakespeare, a respeito das duas cosmovisões. E na
verdade, apesar de a peça se colocar como um problema da civilização na época de
Shakespeare, este problema está presente em todo indivíduo humano. A todo
momento o ser humano está dividido entre essas duas coisas: “Faço de um elemento
imutável o critério da minha vida ou faço da minha vontade, tal como ela se
apresenta a cada momento, o critério da minha vida? Qual desses dois é o meu
senhor?” Essas duas inclinações estão presentes o tempo todo na alma, e todos têm
em sua alma o Cássio e o Rodrigo – algumas forças que facilitam e outras que
dificultam. Alguma dúvida?

Aluno: Na obra toda do Shakespeare está presente essa questão das duas
cosmovisões? Do Bem e do Mal também?

Prof: Sim, o tempo todo.

Aluno: O palco é sempre a alma?

Prof: O palco de Shakespeare é sempre a alma. Ele mesmo fala isso: “A vida
humana é uma peça”. Se observarmos bem, veremos que os personagens são sempre
da mesma forma. A peça possui sete atos, mas para pegar essa referência nós temos
que primeiramente ler o Gênesis, pois o número de atos tem uma ligação com os
sete dias da criação (aliás, seria interessante que o próximo livro de estudo fosse o
Gênesis).

Aluno: A Bíblia também tem essa questão de a alma ser o palco?

Prof: Sim, claro. A Bíblia sempre tem que ser lida desta forma. O palco da
Bíblia é a alma. Que importância há em conhecer a destruição da cidade de Sodoma?
Ou então, por que saber que os israelitas acabaram com algum povo, como os
filisteus?

Aluna: Não seria porque a Bíblia é a história do povo de Deus?

Prof: Sim, é a história do povo de Deus, no sentido literal. Mas qual é a


importância da história deste povo para uma pessoa que nada tem a ver com ele? Por
exemplo, quando se lê na Bíblia os Números ou o Levítico, na parte das genealogias:
Fulano que era filho de Fulano que era filho de Fulano. Vamos pensar: ou foi Deus
que escreveu esse livro, ou não. Um ser humano não teria motivação nenhuma para
fazer isso. Se foi Deus, Ele teve ter algum motivo, Deus não é bobo.

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Leitura dos Clássicos – Aula 03

Aluna: Se nós colocamos Deus como autor real da Bíblia, nós não tornamos
eles [os escritores] Deus?

Prof: Quem disse que Ele não é um ser humano?

Aluna: Ele mesmo.

Prof: Ele não disse que o ser humano é a sua imagem e semelhança?

Aluna: Isso Moisés disse.

Prof: Como você sabe que não foi Ele quem disse?

Aluna: Um professor meu de latim disse. Ele tinha sido padre jesuíta...

Prof: Só podia... (risos)

Aluna: Depois ele disse que “O homem pretensioso declara que Deus o criou à
sua imagem e semelhança...”

Prof: (risos) O argumento é interessantíssimo, o problema é que ele


subentende, como premissa, que está provado que foi o homem quem disse isso.
Porque a questão fundamental não é que Moisés tenha dito “Eu acho que o homem é
a imagem e semelhança de Deus”. Ele simplesmente disse “Deus me disse que o
homem é a imagem e semelhança de Deus”.

Todo o texto da Bíblia só pode ser realmente compreendido se o leitor entender


que toda aquela história exterior representa alguma coisa de permanente na alma
humana. Senão aquilo de fato não tem a menor importância. Como quando Deus
fala que criou o mundo em seis dias e depois descansou no sétimo, e Ele não gostou
do segundo dia. Que história é essa? Isso não faz o menor sentido. Por que ele teria
que descansar?

Aluna: É muito humano.

Prof: Humano até demais. Ele nem gosta de segunda-feira! (risos). Vejam
quanta “humanidade”!

Aluno: Foram criados os luzeiros para indicar a passagem dos dias, e antes de
haver os luzeiros...

Prof: Já havia “dia” e “noite”. E que história é essa de que em cada dia Deus
fez uma coisa, por exemplo?

Aluna: Todos os dias, depois que Deus observou o que criou, Ele os achou
bons. Mas no segundo dia (segunda-feira) ele não declarou isso...

Prof: Não declarou que Ele achou bom. No primeiro dia Ele criou a luz, e viu
que a luz era boa; e fez o mesmo em cada dia seguinte. E só na segunda-feira Ele
não falou nada, só criou as coisas. E separou as águas superiores das águas
inferiores, Ele criou o firmamento no meio das águas, e não comentou nada.

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Leitura dos Clássicos – Aula 03

Aluna: Ficou tão cansado que não conseguiu nem achar que aquilo estava bom.
(Tanto que a separação não deu muito certo, porque existe aquífero para todo lado)
Esse dia, Ele não achou bom e esse dia é o segundo dia: a segunda-feira.

Aluno: Ninguém gosta de Segunda-feira.

Prof: Nem Deus! (risos) Há então um fundamento religioso em nosso desgosto


pela segunda-feira.

Transcrição: Felipe Ken Ueda Kronéis, Paulo Henrique Brasil, Carlos Augusto G. Nascimento

Revisão: Juliana M. B. Ferreira do Amaral, Bruno Geraidine

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