Ressentimento, como fenômeno de grupo ou de classe, é problema ainda mais
complexo e quase insolúvel. Ele desapareceria se fosse possível estimular, pela
educação dos homens desde os primeiros dias de vida, esse elemento inestimável da
personalidade que é o amor, sistematizando-o através dos deveres. Sabemos como é
fácil ensinar as crianças a odiar, pois infelizmente temos várias provas da eficiência
dessa didática em certos sistemas políticos atuais. Ensiná-las a amar, será ainda mais
fácil porque corresponde à tendência mais forte da alma humana.
Ressentimento, como fenômeno de grupo ou de classe, é problema ainda mais
complexo e quase insolúvel. Ele desapareceria se fosse possível estimular, pela
educação dos homens desde os primeiros dias de vida, esse elemento inestimável da
personalidade que é o amor, sistematizando-o através dos deveres. Sabemos como é
fácil ensinar as crianças a odiar, pois infelizmente temos várias provas da eficiência
dessa didática em certos sistemas políticos atuais. Ensiná-las a amar, será ainda mais
fácil porque corresponde à tendência mais forte da alma humana.
Ressentimento, como fenômeno de grupo ou de classe, é problema ainda mais
complexo e quase insolúvel. Ele desapareceria se fosse possível estimular, pela
educação dos homens desde os primeiros dias de vida, esse elemento inestimável da
personalidade que é o amor, sistematizando-o através dos deveres. Sabemos como é
fácil ensinar as crianças a odiar, pois infelizmente temos várias provas da eficiência
dessa didática em certos sistemas políticos atuais. Ensiná-las a amar, será ainda mais
fácil porque corresponde à tendência mais forte da alma humana.
Artigo publicado na IMPRENSA MÉDICA, em Novembro de 1945, nº 383
Por Spartaco Vizzoto
Assistente-psiquiatra do Hospital do Juqueri, São Paulo, SP
Imaginemos um indivíduo de poucos recursos quanto à força física, que seja
agredido por um outro incomparavelmente mais forte. Sua reação imediata, instantânea, consistirá em um impulso de contra-ataque, que no entanto será refreado e recalcado em virtude de uma emoção – o medo que superou a ira inicial. Esta, porém, não desaparece. A contra-reação é adiada para um momento e situação mais favoráveis, nascendo assim um novo sentimento, o de vingança, caracterizado pelo deslocamento no tempo e no espaço da satisfação de um impulso agressivo. Essa energia psíquica em estado de latência pode libertar-se de várias maneiras: pela realização da vingança, através da agressão física e moral (insulto, calúnia, maledicência) ou pelo desprezo (se o agredido se considera de categoria individual ou social muito superior à de agressor). Na impossibilidade de tomar qualquer dessas atitudes, por debilidade física ou moral ou por imperativos circunstanciais insuperáveis, surge um angustioso sentimento de impotência, que imprime à personalidade características especiais – ela está envenenada pelo ressentimento, que a corrói nas suas funções mais nobres, degradando-a aos níveis morais mais inferiores. A intensidade desse fenômeno é particularmente grande quando ligado a um sentimento místico de direito e de dever. É o caso de um selvagem a quem se negou o “direito” a uma vingança de sangue e que se consumiu até morrer. O ressentido sente e ressente milhares de vezes a mesma sensação de fraqueza, de frustração de seus desejos de represália. Traduz em todos seus atos e atitudes a ação maléfica dessa paixão: torna-se azedo, amargurado, seus juízes são pérfidos. É um detrator sistemático de todos os valores individuais ou sociais, numa tentativa ilusória de aliviar a sua tensão emotiva. É incapaz de um gesto de gratidão, pois transforma os favores que lhe fazem em material para seu ressentimento. “Senti desde muito cedo a penosa escravidão de agradecimento”, escreveu Robespierre, um grande ressentido. Foge do contato social, ao mesmo tempo que é repelido pela sociedade, pois a sua simples presença anula os prazeres – é o clássico “estraga-alegria”, e “amigo da onça”. Mira y Lopez define expressivamente o ressentimento como a “ira em conserva já apodrecida”, exalando miasmas que contagiam o ambiente psicológico. Além da insatisfação do impulso de vingança, há outra fonte rica de ressentimento – a inveja. Esta aparece quando, à cobiça de determinados valores, junta- se o ódio ao possuidor destes, em virtude de uma sensação ilusória de que o invejado seja o responsável pela situação “injusta”. Fracassadas as tentativas de obter pelo trabalho, pela compra ou pelo crime o bem almejado, a ambição cede lugar à inveja. Quando a esta se acrescentam a sensação de possibilidade em outras circunstâncias de obter a coisa desejada e de “direito” à esta, gera-se então o ressentimento. Este atinge o seu mais alto grau quando entram em cena os valores inúteis do indivíduo – a beleza, a inteligência, a raça e a nobreza. O extremo desta categoria é ocupada pelos anões e corcundas para os quais a simples presença das pessoas normais é causa de humilhação, ódio, inveja e ressentimento que origina uma atitude sarcástica, amargurada, num esforço inútil de depreciação do inacessível para eles. Uma característica fundamental do ressentido é a sua atração irresistível para valores como a alegria de viver, a riqueza, a força, o poder, a sedução pessoal. É torturado pelo desejo intenso de possuí-los, mas não ignora ao mesmo tempo a inutilidade de sua cobiça. Daí resolver desviar deles a sua atenção e uma necessidade de prescindir do mesmo para afastar esse tormento, verdadeiro suplício de Tântalo. Esta atitude vai influenciar todos os seus processos mentais desde o ato perceptivo ao juízo crítico, resultando numa deformação dos objetos, uma verdadeira inversão dos valores. Tal como na fábula da raposa – “as uvas estão verdes...”. Os indivíduos antes invejados e odiados são agora compadecidos, dignos de pena. Os bens almejados passam a ser os opostos – a pobreza, a dor, a submissão, a morte. Assim tiveram origem muitas idéias que se organizaram em moral, ética e religião, influindo consideravelmente nas correntes culturais e políticas. A moral burguesa, toda ela, nasceu do ressentimento, como também grande parte da moral cristã e de certas idéias de filantropia universal que constituem a base de alguns credos esquerdistas. A supervalorização do “eu” desempenha também papel importante, como é observável entre os judeus, que, ao par de um desmedido orgulho racial, por se considerarem o povo eleito de Deus, sentem o secular menosprezo das nações em que se radicam. Passam a considerar injusta a organização social que os coloca em tais dificuldades e, como estão sempre em minoria, não podem revidar plenamente as agressões de que são vítimas. O ódio e a sede de vingança não satisfeitos, são recalcados e inundam a alma do mais tremendo ressentimento. Muitos dentre eles, pelo processo psicológico que vimos acima, adotam uma escala de valores invertida, que explica o grande número de judeus adeptos e criadores de teorias reformistas, anarquistas e de extremismos em todos os setores do pensamento humano, tendo como ponto de partida a depreciação dos valores sobre os quais se fundam as sociedades que os repudiam. Por outro lado, a propensão para negócios e o imenso trabalho que realizam na ciência e na arte são uma maneira de obter compensação para a falta de reconhecimento de suas pretendidas qualidades superiores e para o desprezo que lhes é votado. Outras vezes refugiam-se na moléstia mental, que apresenta aqui o seu maior índice de frequência racial, ou no suicídio, que em última análise é uma manifestação de desequilíbrio psíquico. Um doloroso exemplo é o do judeu Otto Weininger, que, ao verificar a indiferença dos meios culturais pelas suas idéias consideradas por ele próprio como geniais e perfeitas, não encontrou outro caminho a não ser varar o coração com uma bala de revólver. São inúmeras as manifestações do ressentimento. Vimos como ele se revela a força propulsora de muitas idéias religiosas, filosóficas e artísticas. Não é menor a sua influência nas inter-relações dos indivíduos e grupos sociais, constituindo o traço essencial de determinadas personalidades. A solteirona, por exemplo, é a própria imagem do ressentimento – é o símbolo do maior dos fracassos, o fracasso sexual. Daí a feroz perseguição que move ao que lhe é negado, a fuga no puritanismo, o humor amargurado e a tendência à perfídia, à calúnia, à maledicência, verdadeiras válvulas de segurança de seu espírito envenenado. O extremo oposto – a prostituta – sofre do mesmo mal que se revela ao detratar a virtude e a castidade, chamando-as medo, fealdade ou conveniência. Os velhos que não aprendem a envelhecer, a renunciar aos bens e prazeres que já não lhes são permitidos, pelas próprias contingências da decadência física e psíquica, são também vítimas de atroz ressentimento. A invés de se apegarem a valores morais superiores (tão bem expostos no livro de Mantegazza – “A arte de envelhecer”), põem-se a negar todas as qualidades da civilização moderna, e, não tanto, como em geral acredita, por incapacidade de se ajustarem às concepções novas de vida, mas sim por se sentirem impotentes diante de seu secreto desejo de reconquistar os bens que se esvaíram com os anos, em especial àqueles ligados às qualidades existenciais da própria juventude – a força, a beleza, a inteligência ágil e produtiva. A sogra – os sons dessa palavra já nos conduzem a uma vivência desagradável. – É aqui onde ressentimento se apresenta mais cruel e irremediável, pois, ver arrebatado de seu carinho o ser a quem deu o melhor de seu amor, a quem gerou e amparou desde os primeiros instantes de vida, por alguém que surge inopinadamente e passa a ter todo o direito sobre ele, enquanto ela – a mãe – é colocada de lado... Fatalmente brotarão os ciúmes, os ódios, a inveja, que a todo momento hão de ser recalcados, produzindo uma penosa auto-intoxicação psíquica. Terrenos férteis para o ressentimento são também os casais em que há diferenças apreciáveis de idade, posição social e dotes físicos ou intelectuais. O sacerdote, que por princípio se vê no dever de reprimir suas cóleras, seus ódios, seus desejos “impuros”, se não for superiormente dotado de qualidades morais, terá seu espírito envenenado, levando-o a trágicas aberrações do sentimento (descritas magistralmente pro Anatole France em seu romance “Thais” e também por S. Maugham em “Chuva”). Não é menor a importância do ressentimento em patologia mental. Normalmente, em certas emoções intensas como a ira, o ódio, o medo, etc., há um componente de sensações viscerais. No ressentimento, estas se vão acumulando continuamente até atingirem os limites da anormalidade, pela falta de liberação das cargas afetivas. O indivíduo tem a impressão subjetiva de que não está mais à vontade em seu próprio corpo, pela quebra da harmonia entre o soma e o espírito. Ao lado da angústia que daí resulta, aparecem dores que o clínico geral não sabe explicar, paralisias sem causa aparente. Os médicos da Polícia Militar Americana tiveram ocasião de observar uma grande porcentagem destes casos entre os soldados baixados aos hospitais. Rotularam estes quadros com o nome de “desajustamento simples do adulto”, reservando o de psiconeurose para casos mais graves e de origem diversa. A disciplina militar, exigindo obediência rigorosa, a ambição insatisfeita de promoção a postos superiores constituem o núcleo destes pequenos dramas individuais, que se resolviam após algumas semanas ou meses de psicoterapia, permitindo a volta aos campos de batalha da quase totalidade desses desajustados. O ressentimento revela-se na arte moderna pela insistência na busca de motivos na miséria social, no vício, na pobreza e na doença, levando a uma visão unilateral, e portanto falsa, da vida humana. Repete-se aqui o fenômeno da inversão de valores, cuja gênese já focalizamos. Os ascetas, em sua maioria, são vítimas do ressentimento: seu elogio à pobreza tem suas origens na impossibilidade de conseguir fortuna; a incapacidade de dominar transforma-se em humildade; o ódio, em amor. O rancor dirigido contra o indivíduo pode estender-se a toda a classe social a que ele pertence. Um exemplo dessa categoria é o do príncipe Kropotkin cujo ódio ao pai estendeu-se a toda a nobreza russa. Começando por proteger os humildes, logo passou a negar todos os valores positivos das elites. Tornou-se anarquista e renunciou às suas riquezas e posição social. A inveja das qualidades e bens das classes dominantes pode levar ao ódio contra as mesmas que se converte em amor às massas proletárias e à supervalorização dos dotes morais e intelectuais destas, dando origem a falso humanismo. Esta filantropia hipócrita, somente na enganosa aparência externa se assemelha aos verdadeiros ideais de filantropia universal, fundados em sentimentos primários e positivos da alma humana, nos quais repousam as esperanças de um futuro sem guerras, e de uma sociedade em que a seleção de distribuição dos valores sejam inspirados no amor entre os homens. Poderíamos comparar o estado atual destas correntes ideológicas a uma bela e frondosa árvore que desgraçadamente está se vergando sob o peso das parasitas daninhas, produtos de frustrações e recalques que explodem em impulsos histéricos e destruidores contra os valores acumulados pelo esforço milenar das gerações passadas. Todavia, se os líderes dessas massas ressentidas souberem inspirar-se em princípios morais elevados e em um puro e sincero amor à humanidade, poderão conduzi-las a um estádio de evolução política incomparavelmente superior ao de nossos dias. E como livrarmo-nos desse veneno – o ressentimento? É preciso, antes de mais nada, descobrir suas causas e encará-las com decisão. É necessário um treino consciente e tenaz, pois não basta admitir simplesmente a sua existência. Procurar-se-á inspiração sobretudo nos valores éticos elevados, afim de se obter uma vitória através do perdão, da renúncia, da resignação e até mesmo do desdém... Muitas vezes as conjunturas ambientais têm que ser modificadas através de uma mudança do meio social ou familiar ou da adoção de novos rumos, pelo aperfeiçoamento da imagem do mundo e conseqüente troca dos objetivos ideais. O ressentimento, como fenômeno de grupo ou de classe, é problema ainda mais complexo e quase insolúvel. Ele desapareceria se fosse possível estimular, pela educação dos homens desde os primeiros dias de vida, esse elemento inestimável da personalidade que é o amor, sistematizando-o através dos deveres. Sabemos como é fácil ensinar as crianças a odiar, pois infelizmente temos várias provas da eficiência dessa didática em certos sistemas políticos atuais. Ensiná-las a amar, será ainda mais fácil porque corresponde à tendência mais forte da alma humana. E também através do amor – amor ao dever, à justiça e à liberdade – é que nossa civilização poderá sobreviver à crise atual e construir um mundo sem ressentimentos, sem guerras e sem miséria.