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TABUS ACERCA DO MAGISTERIO (© que irei expor constitui apenas a apresentagio de um problema; nem é uma teoria constitufda, para o que nio te- nho legitimidade por nio ser pedagogo, nem tampouco 0 re- lato de resultados de investigacdes empiricas. Seria necessirio acrescentar pesquisas ao que apresento, sobretudo estudos de casos individuais, principalmente em termos psicanaliticos. ‘Minhas considerag6es prestam-se no maximo a tornar visiveis algumas dimensdes da aversio em relacio A profissao de profes: sor, que representam um papel nio muito explicito na conhecida crise de renovacio do magistério, mas que, talvez até por isto ‘mesmo, so bastante importantes. Ao fazé-lo, tocarei simultanea- ‘mente, a0 menos por alto, numa série de problemas que se rela- cionam com o proprio magistério e sua problemitica, na medida ‘em que as duas coisas dificilmente podem ser separadas, Permitam-me comecar pela exposic’o da experiéncia inicial: justamente entre os universitérios formados mais ta- lentosos que concluiram o exame oficial, constatei uma forte repulsa frente aquilo a que sio qualificados pelo exame ofi- cial, e em relagio a0 que se espera deles apés este exame. Eles sentem seu futuro como professores como uma imposi- Gio, a que se curvam apenas por falta de alternativas. B im- portante ressaltar que tenho a oportunidade de acompanhar ‘uum contingente no desprezivel de tais formados, com moti- ‘vos para supor que nfo se trata de uma selecio negativa Muitos dos motivos de tal aversio so racionais e tio conhecidos que no preciso me deter neles. O principal € a 97 antipatia em relagdo ao que se encontra regulamentado, ao que se encontra disposto por meio do desenvolvimento defi- nido por meu amigo Hellmut Becker como dirigido a escola administrada, Existem também motivacées materiais: a ima- gem do magistério como profissio de fome aparentemente € mais duradoura do que corresponde a prépria realidade na ‘Alemanha. A desproporeio que registro por esta via parece- me, ja me adiantando, tipica para todo o conjunto em ques- tio, caracterizado pelas motivacées subjetivas da aversio con- tra o magistério, em especial as que so inconscientes. Tabus ficam, a meu ver, representacdes inconscientes ou pré- conscientes dos eventuais candidatos ao magistério, mas tam- bém de outros, principalmente das préprias criangas, que vin- culam esta profissio como que a uma interdicZo psiquica que a submete a dificuldades raramente esclarecidas. Portanto uti- lizo 0 conceito de tabu de um modo relativamente tigoroso, no sentido da sedimentacio coletiva de representacdes que, de um modo semelhante aquelas referentes i economia, ja mencionadas, em grande parte perderam sua base real, mais duradouramente até do que as econdmicas, conservando-se porém com muita tenacidade como preconceitos psicologicos ¢ sociais, que por sua vez retroagem sobre a realidade conver- tendo-se em forgas reais. Permitam fundamentar-me em alguns testemunhos tri- viais. A leitura de antincios matrimoniais nos jornais — bas- tante elucidadiva — revela que em seus antincios professores ou professoras destacam que no sio tipos professorais, que no sio mestres de escola. Praticamente nenhum antincio matrimonial proveniente de professor ou professora deixa de conter ressalvas atenuantes. --- Outro exemplo: além do ale- mio, também outras linguas apresentam uma série de expres- sdes degradantes para o magistério; o mais conhecido em ale- mio é Pauker (quem ensina com a palmatéria como quem tweina soldados a marchar pelas batidas nos tambores); mais ‘vulgar e também relacionado em alemio a instrumentos mu- 98 sicais é Steisstrommler (quem malha o traseiro); em inglés, uti- liza-se schoolmarm para professoras solteironas, secas, mal-hu- moradas € ressentidas. De uma maneira inequivoca, quando comparado com outras profisses académicas como advoga- do ou médico, pelo prisma social o magistério transmite um clima de falta de seriedade. Além disso, a sociologia académi- cae da educagéo pouco atentaram para a distincio que a po- pulacio estabelece entre disciplinas com prestigio e despres tigiadas: entre as prestigiadas listam-se a Jurisprudéncia a Medicina, e sem ditvida nfo consta o estudo da Filologia; nas faculdades de filosofia, a excecio visivel é a altamente presti- giosa Historia da Arte. Se estou bem informado —o que es- capa ao meu controle por nao ter acesso direto aos ambientes em questio —, num dos eirculos hoje mais exclusivos, alega- damente o mais exclusivo de todos, os fil6logos simplesmente sio recusados, Nesta medida, conforme a’percepgio vigente, © professor, embora sendo um académico, nao seria social- mente capaz; quase poderfamos dizer: trata-se de alguém que nfo é considerado um “senhor”, nos termos em que este ter- mo é usado no novo jargio alemio, aparentemente relaciona- do a alegada igualdade de oportunidades educacionais. Numa complementariedade peculiar parece encontrar-se o inabala- do prestigio do professor universitario, apoiado inclusive em estatisticas. De um lado, o professor universitario como a pro- fissio de maior prestigio; de outro, o silencioso édio em rela- do ao magistério de primeiro e segundo graus; uma ambiva- léncia como esta remete a algo mais profundo. Na mesma ordem de questées situa-se a proibigio do titulo de “profes- sor”, negado na Alemanha pelos docentes universitérios aos docentes do segundo grau (hoje chamados de Studienrate, algo como “conselheiro de estudos”).” Em outros paises, + Antigamente of docentet Jor coligior tembim possulem o tule de Prefer, Ino restrto a quem & habiitado no concurs delivre-doctncia das univeradades ‘enomeado professor universtiro, 99 como a Franga, nfo existe essa diferenciagio rigorosa dividin- do um sistema, o que possibilita uma ascens4o continua. Nao tenho condigées de avaliar se isto influencia o proprio presti gio do magistério ¢ os aspectos psicoldgicos a que me refiro.” ‘Os que sio mais diretamente afetados pela questo deve- riam acrescentar a esses sintomas outros mais impositivos. Mas 0s mencionados até aqui deveriam bastar para possibili tar algumas especulacées. Afirmei que na Alemanha a pobre- za do professor é uma imagem do passado, Contudo, perma- nece inquestionavelmente a discrepancia entre a posicao material do docente e a sua exigéncia de status e poder, que + 0 sistema educacional slemto divide-se em dois ou trés momentos, segundo @ percutso do aluno: (0 primeiro grau &0 do ensno fundamental (Grandihal) com a durasto de sis nos pra todos A seguir, 0 aluno freqenta um dos nives seguintes do segundo momento da ida escolar, nivel que & definido para cada aluno por uma srle de fates, que ‘ariam de un Bstado para outro (A Alemanba é uma federacio parlamentarsa) nor malmente com grinde peso para indicagto dos profesore 1 Nivel bisico (Haupuchele), com trés snot de duragfo, completando a escolaridade minima obigatria no pals: tls anos de ensino fundamental e rx anos de nivel bic. 2, Nivel médio (Realuchule) com cinco anos, Ap6E sit conclusfo © aluno pode {reqdentar os cursos uperiores profsionalizants, com no méaximo quatro anos de duragio, como enfermagem, fsoteapia, fonoaudiologi, paramédico, compu, secretaia executiva, comércio, conrabildade, engenharia ‘operaciona, aboratoit,quimica técnica e utros 3 Nivel ecegial (Gyan), que dura sete anos, orienta para as eas decéncas cuaas, biologics ou az humanidades, ¢ cia conclasto & um exame insane acionalmente,o lke (uj resultado & uma média dat notas nese exame de tes rpatéias — alemao, uma lingua exrangirae matemstica—~ e ae nota sleangadas no histrico escolar, conforme pesos variadoy), que dl direito a feqentar qualquer uma das Universidades, onde se formar at prot académcas, como medina, iro, engenharia lena céncas armana, eso et Para quer vem do nivel médio ou do nivel colegal —o nivel bisco conch scolaidade obrgatéris de nove anos para os alunos “menos capazes” —, existe ‘um tercelro momento, Para quem vem do nivel médio — so odo anze ance —, apresentamse as escolassuperiores profisionslizantes (uma expécle de Coll), pbs as quais € posive eventualmente feqenta alguma Universidade, Pa quem vem do coléyio, alegadamente “os mals capazes" com treze anoé de ‘scnortae, 9 tereizo momento & a Universidade, At sniveridader to todse piles, esata ¢ granitas na Alemanha, com uma nica excesto referente & ‘uma Faculdade de Medicina na Reninia do Nore. (N. oT). 100 deveriam Ihe corresponder ao menos conforme prega a ideo- logia vigente. Esta discrepincia nao deixa de afetar o espirito. Schopenhauer atentou para essa situagio no que se refere aos docentes universitirios. Acreditava que o comportamento su- balterno que constatava neles h4 mais de cem anos relaciona- vase a seus péssimos salérios. & preciso acrescentar que na ‘Alemanha essa exigéncia de poder e status do espirito € em si problematica e nunca foi satisfeita. Haveria nisso a influéncia do tardio desenvolvimento burgués, da longa sobrevida do feudalismo alemfo que nio era propriamente afeito ao espiti- to, e que gerou a figura do mestre de escola como sendo um servical. A este respeito gostaria de relatar uma historia que me parece caracteristica, Aconteceu em Frankfurt. Num en- contro social elegante e burgués a conversa chegou a Hélder- lin e sua relaco com Diotima, Entre os presentes havia uma descendente direta da familia Gontard, muito idosa e inteira- mente surda; ninguém a considerava capaz de participar desta conversa, Repentinamente, ela tomou a palavra e disse uma tini- a frase em bom dialeto de Frankfurt: “Sim, sim, sempre h4 uma mA vontade em relagio aos preceptores”. Num tempo no mui- to distante, hd poucas décadas, ela acompanhara a referida hist6- tia de amor literalmente nos mesmos termos com que outrora 0 senhor Von Gontard havia se manifestado frente a Hélderlin: sob © prisma do patriciado burgués, para o qual um preceptor era nada mais do que um lacaio um pouco diferenciado. Conforme o sentido dessas imagens, o professor é um herdeiro do scriba, do escrivo. Como jé assinalei, 0 menos- prezo de que é alvo tem raizes feudais e precisa ser funda- mentado a partir da Idade Média e do inicio do Renascimen- to; como, por exemplo, na “Cangao dos Nibelungos”, onde se expressa 0 desprezo de Hagen, que considera o capelo um débil, justamente aquele capelio que a seguir escaparia com vida. Cavaleiros feudais cuja educagio passou pelos livros constituiram excecSes; caso contririo o nobre Hartmann von der Aue nfo teria se vangloriado tanto de sua capacidade de 101

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