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O estranho
de voltar a casa
O que se comia, o que se dizia e o que se vestia, nada me parecia familiar. Nunca me sentira
tão desamparada, tão longe, tão perdida e tão só
MARTA CAIRES / 01 ABR 2018 / 02:00 H.

Os meus pais nunca tiveram férias e, do que me lembro, descansavam ao domingo à tarde, quando o meu pai adormecia no
quintal a ouvir o relato e a minha mãe descia a entrada para o encontro de irmãs e primas na casa do meu avô. As mulheres
ficavam à conversa – quase sempre a falar umas por cima das outras – entre a porta da cozinha e o poço de lavar até ser
quase de noite. Quando não havia bola nos Barreiros, o meu tio Humberto juntava os homens da vizinhança em tardes de
torneios de cassino na garagem. E a folga era mais ou menos isto.

Lembro-me que vestiam uma roupa melhor, o meu pai até passava água no cabelo para acertar os caracóis que lhe caíam pela
cara, pois tirava a barreta com que ia para as obras. E a minha mãe trocava aqueles trapos de andar por casa por uma saia
melhor e calçava os sapatos das voltas, que eram diferentes dos que calçava para ir ao médico ou quando ia levantar as
nossas notas da escola. Ao domingo à tarde faziam essa cerimónia, acho que para parecer diferente dos outros dias.

O luxo acabava nisto. Se descontar os casamentos e os baptizados, os meus pais não jantaram fora juntos uma única vez e
também não iam ao café a não ser nas excursões, nas mesmas em que nos compravam chocolates, refrescos e gelados com
uma generosidade de espantar. A minha mãe geria o dinheiro com tanto rigor que nunca excedia os 20 escudos por dia. E eu
não tinha outro remédio senão saltar o lanche quando faltava às aulas para ir à sessão das quatro e meia no Cine Casino. Ou
então desviava moedas de cinco e e dois e meio dos trocos das mulheres dos bordados e fazia fé no jeito distraído com que a
minha mãe orientava a vida doméstica.

Esta frugalidade estava lá, em todos os momentos da nossa existência, moldava-me a cada dia. E não apenas por saltar
lanches para ir ao cinema, estava nas vezes que quase gritava ao atender o telefone, que era assim uma espécie de objecto
sagrado, em que quase não se podia tocar a não ser para limpar o pó. A vergonha e a voz a sumir-se para chamar o
empregado na Chave de Ouro vinha da falta de treino, eu não sabia bem o que era um café e fiz figura de urso quando fui
almoçar fora pela primeira vez. Pedi pratos a mais, as azeitonas fugiram-me do garfo e o senhor que me atendeu num
restaurante fino que havia no Centro Comercial do Infante tratou-me como uma ignorante.

Também me fugiu a elegância quando me mudei para Lisboa, com um edredão dentro da mala e nem as escadas rolantes que
havia no aeroporto consegui subir sem ajuda do polícia que lá estava. Se foi assim para apanhar o avião não é complicado
imaginar o resto na cidade grande, onde tudo, mas mesmo tudo, me parecia de outro planeta e me obrigava a vencer a
vergonha todos os dias, a cada minuto desde o momento que fechava a porta do prédio na Amadora, onde vivi naqueles
primeiros tempos. Eu tive de fixar ruas, estações de metro, apeadeiros de comboio, os números das carreiras dos autocarros e
tive de me fazer entender entre aquelas pessoas que falavam depressa, muito depressa.

O que se comia, o que se dizia e o que se vestia, nada me parecia familiar. Nunca me sentira tão desamparada, tão longe, tão
perdida e tão só. Não me tinham treinado, nem preparado, acho que nunca tinha visto fotografias de Lisboa ou de outro sítio
qualquer do continente, esse continente que brilhava mais do que tudo o que conhecia. Do que me lembro é que fiquei tão
confusa, cheguei a temer não ser capaz de fazer as cadeiras do curso e quis correr para casa, onde os meus pais continuavam
a folgar ao domingo à tarde, mas lá me aguentei. O estranho foi voltar.

As coisas que conhecemos desde sempre parecem imutáveis e bastou-me três meses para o meu quarto parecer acanhado, as
torneiras da casa de banho estranhas e as ruas do Funchal demasiado estreitas. Era o efeito do distância, um efeito que eu não
sabia que podia existir, o meu mundo tinha sido este durante 18 longos anos sem intervalo e sem sequer um fim-de-semana
grande no Porto Santo ou uns dias num acampamento.

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