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Boletim ABLimno 41(1), 24-29, 2015

Ciência Brasileira: a reforma necessária

Gilson Luiz Volpato

Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Instituto de Biociências, Departamento de


Fisiologia. www.gilsonvolpato.com.br

Nos últimos vinte anos a ciência histórias. Nesse tempo, ainda no período da
brasileira passou por um crescimento ditadura militar, a relação com o exterior era
vertiginoso, estando agora num momento de bem menos intensa e, em várias áreas, nossa
queda profunda. Esse crescimento decorreu ciência tendia a permanecer mais voltada
de avaliação equivocada sobre nossa ciência para o cenário nacional. É evidente que
e a queda advém da explicitação desse erro. algumas áreas, por natureza (geralmente as
No texto abaixo dou o background que mais básicas), mantinham alguma interação
permeou o desenvolvimento de nossa ciência com a ciência internacional. Outras, mais
nas últimas décadas e nossos principais ligadas às “coisas brasileiras” (p.ex., agrárias
equívocos nessa jornada, culminando com e boa parte da saúde), se mantiveram focadas
sugestões para corrigirmos nossa ciência. no “nacional”, construindo o que chamamos
de “ciência nacional”. Foi a partir de meados
da década de 90 que a globalização,
1. Background intensificada pela internet, começa forçar a
ciência nacional a interagir com o mundo. A
A ciência brasileira se desenvolveu a presença de palestrantes nos congressos
partir da implantação da mentalidade nacionais se intensifica nas diversas áreas e
científica advinda de cientistas de certo as idas ao exterior são cada vez mais fáceis e
destaque, geralmente vindos do exterior. comuns.
Com eles algumas escolas de pensamento
formaram outros cientistas que constituíram Nesse cenário o Brasil começa a
grupos e derivações dessas escolas por meio crescer e a busca por uma ciência
das cátedras. Os catedráticos tinham todo o internacional chega no núcleo principal da
poder no seu setor (Departamento numa ciência brasileira, a pós-graduação. A Capes
Escola de Nível Superior), contratando e passa a ter participação fundamental na
descontratando, definindo linhas de pesquisa internacionalização da ciência brasileira por
e posturas. Quando o catedrático era um meio de suas exigências. O Qualis das
cientista de bom nível, a mentalidade revistas científicas já frisava o cenário
implantada era boa; quando não, instaurava- internacional (p.ex., Qualis A nacional,
se apenas o terror de um sistema ditatorial. Qualis A internacional; Qualis B nacional,
Com a eliminação formal da cátedra, os Quali B internacional etc.). E é nessa segunda
departamentos universitários seguiram seus metade da década de 90 que as revistas
caminhos de acordo com suas próprias brasileiras começam a ser mais

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estimuladas, inclusive contando com o periodicidade, apresentação formal dos


surgimento da primeira revista científica textos). Lembremos que a metodologia Scielo
eletrônica do Brasil (e, possivelmente, do foi constituída como uma biblioteca virtual e
mundo). Mas foi na década seguinte que a não necessariamente uma base de dados.
situação começou a fervilhar.
Esse crescimento resultou num
Entrando no século XXI, começamos aumento estupendo de revistas nacionais
no Brasil o que chamo de a “diarréia das indexadas no Web of Science (ISI-JCR) na
revistas científicas”. Todo esse apogeu de primeira década deste século, passando de
crescimento era também impulsionado com a cerca de 20 revistas para mais de 100. O
criação da metodologia Scielo (final da grande salto fica mais visível a partir de
década de 90), que buscava dar visibilidade 2009, um ano em que houve entrada
às revistas brasileiras e procurando expandir significativa de revistas de todo o mundo no
para a América Latina e Caribe. Criar uma ISI-JCR, possivelmente impulsionada pela
revista científica era sinônimo de qualidade criação do concorrente Scopus em 2004
de um curso de pós-graduação, os quais se (Volpato, 2013). Esse movimento
proliferavam velozmente. Para exemplificar, possibilitou que a Capes incorporasse de
na Universidade Estadual Paulista (UNESP), forma mais enérgica o Fator de Impacto no
onde sou lotado, em 2002 havia 84 títulos de Qualis, o que ocorreu em meados de 2008
revistas científicas, das quais 43 estavam (com efeito retroativo no triênio da pós-
literalmente vivas. O cenário hoje é de alguns graduação). Esse crescimento casava com a
milhares de revistas no Brasil. Dessas, um crescente euforia política de um Brasil que
grupo seleto faz parte da metodologia Scielo. era acenado pelo mundo como o país do
futuro, alimentando ilusões do governo
Esse movimento com as revistas federal. Esse cenário estimulou o equívoco
brasileiras significou um erro estratégico, principal de nossos gestores, que era o
pois começaram a publicar o impublicável. pressuposto de que estavam no caminho
Ao invés de investirem na melhora de nossa correto; qual seja, a busca de visibilidade
ciência para atingirmos as boas revistas cada vez maior para nossa boa ciência
internacionais que já existiam, nossos incompreendida e negligenciada (esse
gestores optaram por publicar a ciência que equívoco não ocorreu só no Brasil).
havia nos quatro cantos de nossa
comunidade. Isso partia de um pressuposto
errado, o qual admitia que nossa ciência
estava relativamente bem e que nos faltava 2. O equívoco de nossos gestores
apenas visibilidade. Com isso, criaram meios Ainda em 1998, eu publicava meu
para se publicar o impublicável, que até hoje primeiro livro onde num dos capítulos
permanece iludindo pesquisadores. Lógico questionava fortemente a competência de
que o sistema Scielo fazia triagem das nossa ciência, particularmente nossa pós-
revistas, mas os critérios dessa triagem não graduação. Um dos assessores da Capes
consideravam a qualidade científica dos respondeu a um dos meus textos alegando
artigos, mas principalmente o perfil das que aquilo não ocorria nos cursos A (que
revistas (p.ex., número de artigos,

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equivaleriam hoje aos cursos 6 e 7). Mas eu “papo” aqui fosse sempre o contrário.
avaliei na Capes cursos A e ministrava cursos Visibilidade sem conteúdo foi nosso grande
de redação científica em várias áreas e via um erro. E acredito que esse erro pode ter
cenário equivocado, completamente diferente decorrido de duas possibilidades (não
do que os grandes gestores pressupunham. exclusivas): a) achar que éramos bons e
Envolvido com a coordenação de pós- precisávamos apenas de visibilidade e/ou b)
graduação desde 1991, eu via que achar que conteúdo não interessa quando
caminhávamos para a formação de um dominamos os recursos de visibilidade (o tal
profissional técnico, sem perfil científico jeitinho brasileiro: não precisa ser, basta
adequado, o qual recebia o título de Doutor. parecer).
Por isso esse “cientista” via na publicação um
Em 2011, éramos o 15º país em
drama. A mediocridade da pós-graduação era
número de publicações e o 20º em número de
evidente, mas nem todos viam. Estavam
citações, o que foi alardeado pelo Ministério
absorvidos pelo “crescimento”, assustados
da Ciência & Tecnologia como decorrente do
pelas avaliações e fascinados pela
investimento financeiro desse ministério no
globalização e facilidades da internet nesse
setor. Mas não falaram que tínhamos apenas
sistema. Falar contra esse sistema era ser
50% da eficiência do 20º colocado quando as
considerado retrógrado, pessimista ou
citações eram divididas pelo número de
antinacionalista.
artigos publicados, o que significava gasto
inapropriado em ciência (Volpato, 2013).
Este cenário voltou a ser arduamente atacado
3. A festa acabou em 2014, por dois artigos na revista Nature
O milagre do sucesso político e mostrando a pobreza e até irresponsabilidade
midiático do Brasil no mundo chega ao fim da organização e produção da ciência
por meio de críticas severas ao Brasil na brasileira. Desses, o último caso, publicado
mídia internacional, particularmente nos em novembro de 20141, mostrou que o Brasil
últimos 4 anos. Junto com isso, a ciência está jogando dinheiro fora na ciência.
brasileira começa a ser apedrejada, e não sem Gastamos cerca de 45 mil dólares para
motivos. Vejam os vexames que passamos conseguirmos colocar um artigo em revista
devido à ação de alguns poucos editores de alto prestígio internacional, ocupando a
(p.ex., os casos vexaminosos das revistas 50º posição entre 53 países, ultrapassando
Farmacognosia, Revista Brasileira de apenas Egito, Turquia e Malásia. E esse
Zootecnia e Clinics, o desta última resultado reflete que somos um país que não
merecendo grande destaque na revista respira ciência e que distribui as verbas para
Nature). Mas isso só significava a ponta de ciência de forma equivocada. E no início de
um iceberg de “jeitinhos” que buscávamos 2015 já vemos que os erros de diagnóstico
para enfrentar a concorrência científica continuam. Texto2 de eminente cientista
internacional. E o Brasil era mais enfatizado brasileiro, fala com razão sobre os desvios de
nesses casos do que outros países, pois ele verba da ciência para outros interesses do
havia ganhado mais visibilidade política e estado; mas avalia o crescimento de nossa
científica. Víamos com tristeza um prédio ciência em termos de número de publicações,
sem alicerce se desmoronando, embora o dizendo que estávamos bem e que agora a
1
Vejam notícia em http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2014/11/1549183-gasto-
brasileiro-com-ciencia-e-muito-pouco-eficiente-diz-nature.shtml
2
http://www.monitormercantil.com.br/index.php?pagina=Noticias&Noticia=164399&Cate
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goria=OPINI%C3%83O
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coisa começa a degringolar. Diagnóstico de bom nível. Há 29 anos estudando e vendo


errado! Nossa ciência já era muito fraca em as entranhas do cenário da ciência nacional
vários setores. Número de publicações não (nas três áreas do conhecimento), atividade
significa muita coisa na ciência, como que faço paralela à minha especialidade
mostrei acima no tocante à eficiência. E mais, científica, formei um mapa bastante
esse texto sugere que nossa situação será persuasivo sobre nossa situação científica.
resolvida pela gestão da SBPC e de membros Isso é reforçado pela minha interação anual
da Academia Brasileira de Ciência. Outro com milhares de orientadores e pós-
equívoco. Talvez a SBPC tenha mais chance, graduandos, além de algumas dezenas de
desde que congregue a sociedade científica gestores da ciência nacional. Eu via um
brasileira e não apenas a “tropa de elite”. Brasil científico triste e pobre
Afinal, foi nossa elite (de instituições de (conceitualmente), enquanto assistia ao meu
fomento e das publicações) que deixou a lado a euforia dos gestores que mostravam
ciência brasileira no estado que está. Deles eu um cenário que eu sequer conseguia perceber.
só quero que expliquem porque erraram Mas parece que chegamos ao final dessa
tanto. O que ocorreu com a seleção brasileira euforia irresponsável. Nossa ciência é fraca,
na copa de 2014 está ocorrendo com a ciência mesmo que contemos com exceções
e temos que trocar os técnicos. valiosíssimas, mas ainda exceções.

E não adianta acharmos que


resolveremos o problema da ciência brasileira
4. Como entendo a situação apostando em meia dúzia de universidades
Vejo no Brasil ainda a prepotência de consideradas (por esses gestores)
acharmos que estamos bem e que nosso vocacionadas para ciência. Essa é a mesma
problema maior em ciência reside na redação opção elitista e separatista que o Brasil
do artigo, no inglês e no preconceito dos financeiro sempre optou. Tampouco
países dominantes. Digo que não há redação resolveremos a questão nos atrelando aos
científica que transforme ciência ruim em grandes do exterior, pois com ciência fraca
textos de bom nível; que não há tradução para seremos apenas os coletores de dados. O
o inglês que supere equívocos de ciência e Brasil será um país de ciência o dia que
que a tradução de ciência fraca em inglês respirar ciência de Norte a Sul, Leste a Oeste,
apenas reforça o preconceito que o mundo começando pelas nossas instituições de
tem sobre a ciência nos países ensino e pesquisa. E teremos nosso real
subdesenvolvidos. Nobel o dia em que ele for produto da
educação brasileira.
Analiso quase diariamente algum
artigo da ciência nacional e o quadro é triste. Estamos dando o primeiro passo,
A ingenuidade e os equívocos teóricos que mesmo que forçosamente: o diagnóstico de
permeiam os textos são assustadores. Não que nossa ciência vai mal. Não sabemos
uso mais do que 2 min para encontrar erros sequer expressar com objetividade e lógica os
absurdos em nossos artigos de nossa coleção objetivos de nossa pesquisa, quanto mais
principal, mas chego a despender mais de encontrar as conclusões mais importantes e
uma hora para encontrar exemplos de ciência expressá-las de forma interessante. Isso é

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falha de ciência e vale para todos os cursos assistem o curso). Ou seja, perdemos tempo.
de pós-graduação, de 3 a 7.

Mas o problema maior é que nossos 5. A solução


pesquisadores ainda alimentam a prepotência
de que nossa ciência é boa. Poucos descem 1. Temos que apostar em qualidade na
do pedestal para reconhecer que temos muito formação de nossos cientistas, esquecendo
que aprender em termos de construção de a premissa prévia de formar muitos para
ciência de bom nível e que nosso doutor ver se sobram alguns com qualidade. Com
formado na pós-graduação é meramente um isso, esqueceremos o “parecer” e
técnico de nível superior, que fez uma tese olharemos para o “ser”. Não basta cumprir
(muitas vezes sem tese) e publicou, em relatório; é preciso ter competência.
parceria, alguns artigos internacionais. Nosso
2. Nossa ciência deve ser regida por cientistas
doutor carece de base filosófica da ciência e é
competentes de visão ampla e não por
ingênuo nos pressupostos da comunicação
gestores cujo poder político sobrepuja a
científica, o que reflete o erro de nossa pós-
competência científica. Isso vale não
graduação. Confundem ciência com o uso da
apenas para os primeiros escalões, mas
metodologia científica. As principais teorias
para os debaixo que influem sobremaneira
da área são pouco conhecidas ou debatidas.
em todo o quadro. Por exemplo,
As determinações da Capes para critérios de
coordenadores de pós-graduação,
qualidade são frequentemente
diretores, pró-reitores, reitores, escalões de
incompreendidas e criticadas pelo simples ato
agências de fomento, de bases de dados e
de se criticar quem está no poder, ou aquele
de outras instâncias de divulgação
que se atreve a questionar nossa prepotência
científica etc.
da competência. Pior, muitos orientadores
dizem que os pós-graduandos estão mal e que 3. Temos que aprender a fazer ciência de
não sabem escrever o artigo. Primeiro, bom nível. Para isso, o pensamento
cientista que não sabe escrever o artigo é científico tem que ser debatido em todas
porque não sabe pensar a própria pesquisa; as instâncias do ensino da ciência,
segundo, compete ao orientador ensinar e diversificando-se pela profundidade. Um
formar o cientista, incluindo a arte da redação formato na universidade seria que alguns
científica. Na realidade, o sistema está fraco conceitos fundamentais de cada disciplina
porque os orientadores também estão fracos. fossem ensinados a partir da forma como
Hoje cada docente busca incansavelmente foram pesquisados e publicados,
entrar na pós-graduação, pois do contrário mostrando a história real da construção do
fica marginalizado e não conseguirá arrecadar conhecimento. Nesse processo o professor
financiamento para suas pesquisas. Com isso, deveria concatenar com os recursos da
o sistema incha e, obviamente, se enfraquece, Epistemologia na construção do
pois avalia primordialmente as publicações. pensamento científico. A lógica dos
Nos meus cursos de redação científica a processos deveria ser prioritária ao
constatação quase unânime é que os alunos conteúdo das disciplinas, enfatizando um
aprendem, mas os orientadores não aprendizado proativo em direção à busca
concordarão (exceto aqueles que também do próprio conhecimento.

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4. Como nossos editores e revisores pesquisadores.


científicos atuam como professores de
8. Sobre o impacto da ciência, nos critérios
ciência em nosso país, precisam fazer
de mérito científico (p.ex., para bolsistas
cursos de reciclagem e praticarem ciência
de produtividade em pesquisa do CNPq)
de bom nível antes de nortearem
devemos priorizar avaliação de eficiência,
pesquisadores por meio de pareceres.
na qual o produto (p.ex., citação) é
Recomendações erradas embutem
ponderado pelo esforço (número de
conceitos errados em nossos cientistas e
publicações), substituindo critérios
desestimulam aqueles que conhecem a boa
absolutistas fundados na produção bruta
ciência.
(número de artigos). Isso potencializaria
5. As exigências sobre nossas revistas não nossos recursos para produzir ciência.
podem ser sobre elementos que não
9. Os grupos que pensam ciência no país
agregam qualidade científica (p.ex.,
devem ser oxigenados, aproveitando
número de páginas, número de artigos,
pessoas jovens e velhas do sistema, onde
seguir normas antigas de comunicação
as ideias prevalecerão sobre currículos e
como resumo estruturado, ABNT etc.),
dotes políticos.
mas sobre inovações de comunicação e
impacto sobre a comunidade científica. O 10. O sistema de pós-graduação deve ser
sistema de pós-graduação pode e deve totalmente reformulado, focando a
promover uma limpeza geral no quadro de formação de um cientista universal,
revistas científicas que possuímos. competitivo na especialidade, de forma a
minimizar erros conceituais ao assumir
6. Os critérios de avaliação de projetos
postos de gestão científica.
científicos e distribuição de verba devem
ser centrados na qualidade científica e
poder de inovação das propostas e não no
“pedigree” dos proponentes; i.e., devemos Referências
avaliar projetos e não titulação, currículos
Volpato GL. 2013. Ciência: da filosofia à
ou estruturas de grupos (hoje grupos
publicação. Cultura Acadêmica, São
temáticos são erroneamente preferidos em
Paulo.
relação a projetos individuais). Se a
proposta é boa, deve ser aprovada, o que
significa um olhar mais profundo para a
ciência e não para estruturas formais. A
formação de grupo é consequência e não
causa.

7. A arrogância de que “já sabemos” deve ser


repensada, num ato de humildade e
coragem para reconhecermos erros em
nossa própria formação. Embora isso seja
um pressuposto básico do cientista,
raramente é exercitado entre os

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