Psiquiatria Clinica, 7 2), pp. 67-84, 1986
O dnventério Clinico de Auto-Conceito» (+)
POR
ADRIANO VAZ SERRA *
No presente trabalho é apresentado o desenvolvimento de uma escala de avaliagéo de aspectos
emocionais e sociais de auto-conceito, designada para especial aplicagdo a clinica.
Constituida por 20 questies, que podem ser quotadas de 1 a 5, esté elaborada de forma a que,
quanto mais alta a pontuagdo obtida, melhor & 0 auto-conceito do individuo.
O Coeficiente de Spearman-Brown foi de .791, para 920 elementos da amostra e, o coeficiente
de ‘correlagilo texte x reteste, foi de .838, para 108 elementos, o que revela boa consisténcia interna e
estabilidade temporal.
A correlagao entre uma classificasao pessoal de auto-conceito e a nota global da escala fois
para 920 elementos, de 466, revelando-se positiva e altamente significativa, o que € sugestivo de uma boa
validade de constructo.
Uma andiise factorial de componentes principais e de rotasao ortogonal, permitiu extrair seis factores,
cujas caractertsticas so discutidas no texto.
Escalas para medir 0 auto-conceito
Ha actualmente diversas escalas que tém sido
utilizadas para avaliar 0 auto-conceito, utilizando,
como referem Wells e Marwell (1976), processos
de medida padronizada, objectiva e quantificada.
Padronizada, no sentido de que 0s processos
de avaliagao so equivalentes para todas as Pessoas
cujo auto-conceito se quer medir, em quaisquer
condigdes em que seja efectuada.
Objectiva, porque os resultados obtidos sao
independentes da pessoa que administra a escala.
E quantificada, porque tais escalas costumam
subordinar-se a regras que atribuem valores quan-
titativamente diferentes a apreciagdo de cada atri-
buto.
Sendo 0 auto-conceito um fenémeno intimo e
pessoal, estas escalas so, necessariamente, de
auto-avaliagio € nao de avaliacdo por observador
(Marsh, Smith e Barnes, 1983).
Na maioria dos casos sdo escalas de descrigées
verbais, em que o individuo se classifica segundo
um dado valor, em cada atributo definido pelo item
da escala.
Outras hé que pretendem ser ndo-verbais, uti
zando respostas geométricas, simbélicas ou picté-
ricas. No entanto, qualquer destas nfo deixa de
ser verbal na sua esséncia porque, para o seu preen-
chimento, hé sempre instrugSes que orientam a
forma como 0 individuo deve responder.
‘Nas escalas mais comuns, a pessoa costuma
classificar-se em cada item num intervalo que
vai de zero a quatro ou de 1 a 5 pontos. Ha
autores, no entanto, que vio ao méximo de 11
Ppontos.
O niimero de questdes deve estar em equilfbrio
com o mimero de pontos atribuidos.
Uma escala, por exemplo, constituida por 100
questées diferentes, que precisam de ser respon-
didas apenas num contexto de sim ou de nfio, pode
oferecer uma dificuldade semelhante a uma escala
de muito menor mimero de items, que precisam
de ser respondidos em fungio de um maior
niimero de categorias classificativas.
@)_ Trabalho apresentado no dia 25 de Outubro de 1985, em Coimbra, no I Congresso Portugués de
\portamental.
‘Terapia Comy
(*) Professor Catedrético de Psiquiatria da F. M. C., Director da Clinica Psiquidtrica dos H. U. C.
Professor da Cadeira de Terapéutica do
2
Comportamento da F. P. C. E. da Universidade de Coimbra.cy Adriano Vaz Serra
‘Ha varias escalas conhecidas de auto-conceito.
‘Uma, por exemplo, bastante divulgada, ¢ a
Tennesse Self-Concept Scale, construida por Fitts
et al. (1965). Permite obter varios indices que
constituem processos de avaliagio de um individuo,
que vio desde a auto-critica até 4 auto-considera-
40 positiva, e em diversos estudos empiricos, Fitts
tem verificado que bd agrupamentos de items que
so sensiveis ao mau ajustamento geral da pessoa,
as situagdes de Neurose ou de Psicose, aos distiir-
bios de personalidade ou a situacdo de uma perso-
nalidade bem integrada. E, no entanto, uma escala
extensa, pois tem cem items, ¢ a sua aplicabilidade
nem sempre se torna pratica, pela exigéncia do
tempo que leva a preencher.
Qutra, o Self Descriptive Questionnaire (Marsh
et al., 1983), & constitufda por 66 questées, que
procuram fazer uma avaliagio do auto-conceito
segundo as dimensées multi-facetadas referidas
por Shavelson et al. (1976) ¢ Shavelson e Bolus
(1982), nomeadamente o auto-conceito académico,
emocional, social e fisico, Uma anilise factorial
desta escala encontrou 8 factores, capazes de
explicar 51% da variéncia, que correspondiam as
dimensdes definidas por Shavelson. Tem sido
sobretudo utilizada em estudos de populagies
escolares.
Estas dimensées de Shavelson foram igual-
mente comprovadas por Fleming e Courtney (1984).
Recentemente Williams e Workman (1978)
referem a construgdo de uma escala comporta-
mental de auto-conceito, projectada fundamental-
menta para avaliago do auto-conceito de criancas
visando, sobretudo, 0 auto-conceito escolar.
Foi construida apés observago prévia de compor-
tamentos de criangas na escola e € constituida
por 36 pares de actividades (por exemplo, ler,
subtrair ou brincar), postas verbalmente ou de
forma pictérica.
Independentemente de escalas deste tipo que
so, fundamentalmente, de tipo Likert, outras bd,
de natureza diferente. Assinalam-se aqui os dife-
renciais semAnticos, desenvolvidos por varios auto-
Tes, as escalas de estimulos miltiplos, a extraccio
de cartes ou as respostas a Who am J?
Quanto aos diferenciais seménticos tém levantado
problemas de duas ordens. Uma, 2 sua compara-
bilidade, pela dificuldade de equivaléncia entre
medidas diversas usadas em locais diferentes de
investigagdo. Outra, a dificuldade na correspon-
déncia dos termos quando se trata de idiomas
diferentes do original.
‘Na extracedo de cartées, em que um individuo
deve fazer um nitmero especifico de agrupamentos,
em que coloca os cartes por ordem segundo a
forma como o definem, a sua capacidade de selec-
do é restrita e pode estar a escolher aquele que
44 0 relato mais aprozimado, em lugar daquele
que verdadeiramente 0 descreve.
Entre nés, Gilberto de Sousa (1985) procurou
também definir perfis de auto-conceito, signifi-
cativos em actividades ocupacionais.
O propésito do presente trabalho é apresentar
uma nova escala de auto-conceito — o Inventdrio
Clinico de Auto-conceito — destinada, fundamen-
talmente, como a prépria denominagdo procura
indicar, a uso clinico,
Como tal, exclui intencionalmente algumas
facetas do auto-conceito descritas por Shavelson
et al. (1976) e Shavelson ¢ Bolus (1982), pro-
curando registar apenas dados significativos, rela-
cionados com 0 auto-conceito social e emocional.
MATERIAL E METODOS
Pesquisa de questdes significativas
A pesquisa das questées significativas a incluir
na presente escala foi feita segundo um critério
quédruplo.
Primeiro, revendo as desctigées feitas na lite-
ratura, sobre auto-conceito e seleccionando as
questBes que parecessem mais significativas salien-
tadas por AA. que se tém distinguido nesta érea.
Nesta revisio da literatura incluimos também as
descrigdes, feitas por Albert Ellis, criador da
Terapia Racional Emotiva, sobre comportamentos
especificos prdprios de pessoas emocionalmente
perturbadas. Na sclecco destes comportamentos
tivemos a preocupagdo de eliminar todos aqueles
que traduzissem manifestacdes de ansiedade ou
de depresséo ou que pudessem ter um aparecimen-
to esporddico. Tentdmos assim sé apurar items
que possuissem caracteristicas de estabilidade tem-
poral. Procurdmos excluir questées de ansiedade
¢ de depressio para, tal como salientam Fleming
e Courtney (1984), evitar inflacionar os resultados
a quando da correlago desta escala de Auto-Con-
ceito com estados de ansiedade e de depressio.
Nas figuras 1, 2 € 3 esto mencionados os items
recolhidos de alguns autores, usualmente consi-
derados fonte de referéncia.
O segundo critério foi tentar incluir items que
niio proviessem de populagdo considerada pertur-
bada mas sim normal, susceptive! de servir como
um aspecto informativo de qualquer pessoa, ao
ser descrita, na sua vida quotidiana.O liventério Clinico de Auto-Conceitor o
ArserTo ELLs
‘As pessoas com perturbagées emocionais reconhecem-se
por:
= indecisio ¢ divida
—formasio facil de «medos+
—sentimentos de incapacidade
—sentimentos de culpabilidede ¢ auto-recriminaco
—sensivel aos comentérios, desconfianga exagerada
—hostilidade ressentimento
— humilhagio
— falta de ‘realismo
—rigidez
—timidez.¢ isolamento
— infelicidade, etc,
Fis. 1
Fitts (1972) — Refere que as pessoas com Auto Conceito
claro, consistente, positive e realista se comportam de
maneira saudével, confiante, construtiva ¢ efectiva.
Tais pessoas sao:
—seguras, confiantes, com respeito proprio
—nio precisam de «provar aos outros»
—sentem-se menos ameacadas pelas tarefas diffceis,
pessoas € situagdes
—relacionam-se ¢ trabalham de forma mais efzctiva
€ confortivel junto dos outros
—as suas percepges do mundo da realidade tém
menor tendéncia a serem distorcidas
Fig, 2
Watts e Marwett (1976)
Auto-estinia alta:
— associada com bom ajustamento ¢ auto-aceitagio
‘pessoa s6 gosta dos outros se gostar de si prépria
stima baixa:
falta de confianga
—dependente dos outros
— envergonhada
—usa fachadas defensivas
—niio imaginativa
—conformada com os valores
—rigida e autoritiria, etc.
Fis. 3
Esta tentativa pode parecer redundante porque,
auto-conceito, bom ou mau, todos tém, quer
Sejam doentes ou nao. Mas usdmos este critério
Para nfo omitirmos questées que pudessem ficar
excluidas, se fossem utilizadas apenas amostras
de populagdes perturbadas.
Solicitamos entretanto, em terceiro lugar, aos
oito elementos que faziam parte do Semindrio de
Terapéutica do Comportamento do ano lectivo
1984/1985, que tentassem claborar uma lista de
questdes, tio exaustiva quanto Ihes fosse poss{vel,
que pudessem descrever uma pessoa, tal e qual
se apresenta no contacto de todos os dias.
Procedemos desta forma porque este grupo cons-
titufa um conjunto de alunos do ultimo ano da
licenciatura em Psicologia, com treino em fazer
descrigdes objectivas de comportamentos.
Por iltimo, tentémos alinhar cada adjectivo
encontrado em fungdo do seu anténimo, na medida
em que precisévamos incluir na escala no sé
perguntas elaboradas de forma positiva, como
igualmente negativa, a fim de evitar fenémenos
de aguiescéncia e de tendéncia de resposta.
Wells e Marwell (1976) referem que 0 con-
tetido das diversas quest6es pode variar substan-
cialmente, Os estimulos apresentados costumam.
sempre envolver qualquer tipo de adjectivo. Aque-
les autores assinalam que € discutivel se dado
estimulo tem vantagem sobre outro. Mas assina-
Jam que os estimulos de adjectivo nico podem
estar mais sujeitos a interpretagdes semfnticas
equivocas do que as descrig6es por palavras ml-
tiplas.
P Decidimes por isso construir frases que defi
nissem claramente uma situagdo ¢ salientassem
apenas uma tnica caracteristica da pessoa.
Construimos, desta forma, uma escala original,
de 75 questdes.
A figura 4 sintetiza algumas das questdes entiio
explicitadas.
Procurémos incluir, conforme se pode observar,
items elaborados num sentido positive e igual-
mente negativo.
—Tenho por hébito cumprir com os compromissos
assumidos.
9—Fazendo um balango da minha vida penso que
me tenho saido com éxito,
20-— As pessoas fartam-se facilmente de mim.
30—Sio-me indiferentes as qualidades ou os bens
materiais das outras pessoas.
Fic. 4
Pontuago atribuida aos items
Sendo esta uma escala de tipo Likert, deci-
dimos criar a possibilidade de cada questio ser
distribuida por cinco categorias diferentes, cada