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Arquivos Privados e Renovação das
Práticas Historiográficas
Christophe Prochasson
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E uma pena, embora no fundo talvez seja uma sorte para a liberdade do
historiador, mas um tal "livro" não existe. Pois é antes o sentimento da dispersão
que prevalece naquele que persegue os arcanos da criação. Nenhuma instituição
de arquivo detém todos os arquivos de um político, de um escritor, de um artista
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que tem a ver com experiências que circulam como modelos de vida guerreira.
Jamais o projeto proposto por Marc Bloch em seu artigo de 1921, publicado na
Revue de Synthese, sobre a história das "notícias falsas" encontrou uma jazida
arquivística tão extensa como a constituída pelas correspondências de guerra.
Podemos, aí, acompanhar passo a passo os boatos. Vemos, aí, as lendas heróicas
ou cheias de horrores se elaborarem e circularem.
O florescimento da história cultural entendida como história das insti
tuições e das elites não é o único fator que explica a importância hoje conferida
aos arquivos privados. A crise da história social labroussiana abriu espaço para
modelos de análise em que os indivíduos desempenham um papel importante.
Esperamos assim encontrar os motivos das suas ações nos vestígios escritos que
eles deixaram, por detrás das suas ações públicas, por detrás das suas obras ou
dos seus trabalhos. Em associação com uma cultura política sensível à fala dos
pobres, e muitas vezes em sintonia com um regionalismo militante que também
se opõe à monopolização da fala pejo centro parisiense, voltou-se a dar vida a
escritos privados que jaziam no fundo dos aImários ou dos sótãos.
Trata-se menos, aqui, de correspondências do que de diários íntimos ou
de lembranças. Traumatismo maior da história contemporânea, a Primeira
Guerra Mundial foi um período de grande produção de documentos desse tipo.
Desejosa de entender o conflito em termos diferentes daqueles que durante muito
tempo foram os únicos fornecidos pela história política e militar, a nova histo
riografia da Primeira Guerra Mundial se apropria dessas fontes privadas.
O que nos ensina a observação da guerra no "nível do chão"? É
este o
eixo escolhido por esses historiadores. Não nos espantaremos ponanto de ver um
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deles, Stéphane Audoin-Rouzeau, ublicar recentemente os papéis de guerra de
!
um soldado célebre : Marc Bloch.
No passado, Jean-N orton Cru, animado por um movimento semelhante,
executado talvez de maneira ingênua, reuniu e analisou depoimentos privados
(mas publicados) sobre a guerra. Suas justificações científicas merecem ser
examinadas, pois esclarecem um tipo de relação com os arquivos privados
caracterizado por uma busca da verdade, ou, melhor dizendo, talvez, da autenti
cidade: "A história não-militar ganhou muito em exatidão nos últimos cem anos
graças a uma prática, de um lado, e graças a uma atitude moral, de outro. Sua
nova prática consiste em não se contentar com os documentos oficiais ou
provenientes dos grandes personagens; ela se pôs a pesquisar todos os documen
tos possíveis, os que dizem respeito a detalhes da vida provincial, os que provêm
das testemunhas mais humildes. A atitude é a da imparcialidade científica [ ... ],,1
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Todo o trabalho de Nonon Cru consiste em fazer uma separação entre o ver
dadeiro e o falso com base numa triagem em que são distinguidos os "testemu
nhos" vividos de homens do fr01lt, marcados com o selo de urna psicologia
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seu diário, no qual faltam as confidências mais íntimas: não há nada ou quase
nada sobre a alimentação ou os cuidados com o corpo. Nada sobre a sexualidade,
a técnica ou a política.
Seria portanto bastante ingênuo cair nas armadilhas de um adjetivo
ostentado. A imimidade do diário apenas vem nos informar sobre os aspectos de
uma apresentação de si para si (às vezes para os outros, no caso dos escritores e
de alguns artistas, saturados de sua consciência de si mesmos). Todos os trabalhos
de Philippe Lejeune, especialista no assunto, estão voltados para a introdução da
dúvida no enunciado íntimo. Ele diz isso muito bem a propósito dos diários de
moças no século XIX:
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arquivos do "grande homem". Essa relação com a fonte privada induz práticas
de pesquisa desastrosas nas quais a descoberta material prevalece sobre a in
venção intelectual.
Nem por isso deixa de ser verdade que o interesse pelos arquivos privados
corresponde ao desenvolvimento de novas perspectivas historiográficas. A sen
sibilidade à diversidade das escalas de observação na história social pode ganhar
a história cultural.
Se os arquivos privados não nos ensinam alguma coisa de "mais ver
dadeiro", eles nos asseguram uma mudança de foco. Era aliás nesses termos que
Jean-Norton Cru defendia, com unhas e dentes, a importância do testemunho
direto sobre a guerra.O texto que se segue poderia quase passar por um manifesto
contemporâneo em favor da micro-história:
E com essa linha de conduta, e não com os métodos de uma história presa
às crenças arquivísticas, que as fontes privadas poderão nos dizer algo diferente
sobre os homens em sua história.
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