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NIETZSCHE: DA TRAGÉDIA GREGA À FILOSOFIA TRÁGICA∗

Luís Rubira
Universidade Federal de Pelotas

Abstract: Although Dionysus occupies a central place in The birth of tragedy from the spirit of
music, he only appears again as a nucleus of Nietzsche’s reflections in the period of the
conclusion of Thus spoke Zarathustra. In his latest books, Nietzsche declared to be a
Dionysus’ disciple, put “Dionysus versus the Crucified”, and the philosophy of the will to
power and the eternal recurrence had found in Dionysus its mirror. However, the
intensification of the reflection about Dionysus since 1884 is exactly what leads the
philosopher to modify the title of his book’s second edition for The birth of tragedy or
Hellenism and Pessimism. This modification means that Nietzsche passes, then, from the
tragedy Greek as an aesthetic problem, to a conception that was being developed along the
years in his thought: the tragic philosophy.
Keywords: greek tragedy, Dionysus, values, existence, tragic philosophy.

Resumo: Embora Dioniso ocupe um lugar central em O nascimento da tragédia a partir do


espírito da música, ele somente surgirá novamente como núcleo das reflexões de Nietzsche
próximo à conclusão de Assim falava Zaratustra. Em sua obra tardia, Nietzsche declarou ser
um discípulo de Dioniso, colocou “Dioniso contra o Crucificado”, e a própria filosofia
nietzschiana da vontade de potência e do eterno retorno encontraram, nele, seu
espelhamento. Ora, é justamente a intensificação da reflexão em torno de Dioniso a partir de
1884 que conduzirá o filósofo a modificar o título da segunda edição de sua primeira obra
para O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo. A mudança deixa entrever que
Nietzsche passa, então, da tragédia grega enquanto problema estético, para uma concepção
que foi sendo gestada ao longo dos anos em seu pensamento: a filosofia trágica.
Palavras-chave: tragédia grega, Dioniso, valores, existência, filosofia trágica


Palestra proferida em 21 de agosto de 2008, por ocasião da II Semana Acadêmica do Curso de
Filosofia da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL).

© Dissertatio [29], 249 – 261 inverno de 2009


Luís Rubira

Eu imploro aos deuses o fim de meus sofrimentos; depois de tão


longos anos a vigiar sobre este leito, no palácio dos Atridas, sem
repouso, como um cão, eu aprendi a conhecer a assembléia das
estrelas noturnas (...), e o inverno e o verão, príncipes luminosos do
fogo do Éter, do qual conheço a aurora e o crepúsculo. E eis-me aqui,
ainda, esperando o sinal da tocha, o clarão luminoso que de Tróia
nos trará a notícia, a palavra vitoriosa (...). Mas quando eu estou
sobre este leito penetrado de orvalho, que me retém à noite longe de
minha casa, este leito que não conhece a visita dos sonhos – pois, em
lugar dos sonhos, é somente o medo que se aproxima e impede de
juntar minhas pálpebras para um sono tranqüilo – quando eu quero,
portanto, cantar ou cantarolar, e fazer para mim um remédio contra
o torpor, então, desato em lágrimas, deplorando o destino desta casa,
onde não reina mais a bela ordem de antes. Ah! Possa então luzir hoje
o feliz fim de meus sofrimentos, e o fogo mensageiro da alegria
iluminar a escuridão!1

É com este texto pronunciado por um guarda que espera há dez anos
o sinal de fogo anunciador da vitória dos gregos sobre os troianos, que
Ésquilo inicia sua trilogia trágica intitulada Orestéia. É nesta mesma noite
que terminará o sofrimento deste guardião quando ele, por fim, avistar na
noite o fogo luminoso, o archote trazido por um arauto das hostes gregas - o
qual também viveu por dez anos um destino incerto e agora retorna,
finalmente, ao seu solo natal.
Paralelo à alegria que tomará conta destes soldados, iniciará um novo
período de sofrimento no palácio dos Atridas. Os velhos que formam o coro
trazem à memória que, para obter a vitória sobre os troianos, o Rei
Agamêmnon sacrificara sua filha Efigênia. Diante ainda da imagem do
horrível sacrifício, o coro lembra o presságio de Calchas, o adivinho, que
dissera: “uma pérfida vigilante cuidará do Palácio, a Cólera, que não esquece
e vingará uma criança”. O presságio ditado dez anos atrás, de fato, irá se
cumprir. A sabedoria popular dos gregos reza, há tempo, que “é necessário
sofrer para compreender”. Agamêmnon cometera a desmedida sacrificando
sua filha para que a frota grega pudesse partir e ser vitoriosa em Tróia. Ao
vencer os troianos, cometera uma segunda desmedida pois, não se
contentando somente com a vitória, fizera os troianos “pagarem em dobro”
pelo rapto de Helena, permitindo a destruição de seus templos divinos e a

1 ÉSQUILO. Agamennon. In Tragédies complètes, pg. 259-260. Edição Bilíngue.

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morte de inocentes. Ao voltar para seu palácio a Cólera, que o aguarda para
vingar Efigênia, está encarnada em sua esposa Clitemnestra. Contra sua
vontade ela vira a filha sacrificada, e durante dez anos ruminara o assassinato
de Agamêmnon caso um dia ele voltasse a Argos. Chegada a hora e com o
auxílio de Egisto, seu amante, ela assassina Agamêmnon e depois justifica-se
diante do coro mostrando que seu esposo expiara pelos próprios crimes.
É depois da morte de seu pai que Orestes, o protagonista da
tragédia, surgirá em cena. O Oráculo de Apólo havia lhe previsto os piores
sofrimentos caso ele não fizesse justiça à morte de seu pai. Orestes, então, por
ordem de Apólo, vê-se obrigado a matar não somente o amante de sua mãe,
Egisto, mas também sua própria progenitora. Orestes sabe que a antiga lei
vigente entre os gregos, e que fora imposta por Apólo, reza que crimes de
sangue devem ser pagos com o próprio sangue. É por esta razão que oráculo
dissera que, após o matricídio, ele deveria encaminhar-se rapidamente ao
santuário de Apólo para aí ser purificado pelo deus. Todavia, Orestes não
terá tempo de chegar em paz ao santuário, pois, em face da vigência da antiga
lei (semelhante a do “olho por olho, dente por dente”2), as Eríneas (ou
Fúrias), divindades vingadoras do sangue derramado, surgem para fazer com
que ele pague pelo matricídio cometido.
É completamente atormentado que Orestes chega, por fim, ao templo
de Apólo – momento que vai ocupar a terceira parte da trilogia de Ésquilo.
Buscando defender o ato de Orestes, Apólo justifica-se trazendo como
argumento central que esta era a vontade de Zeus. O argumento não é
suficiente para convencer as Eríneas, para as quais o matricídio é um crime
inexpiável. Diante de uma balança cujos pratos não pendem nem para um
lado nem para outro, em face do equilíbrio dos argumentos, intervém Atena,
filha de Zeus, deusa da sabedoria, expressão da justiça entre os helenos.
Impassível, ela diz que somente um tribunal, que pese tanto os argumentos
dos deuses quanto aqueles dos homens, poderá encontrar a justa medida e
fazer justiça ao ato cometido. Pesados todos os argumentos, Orestes acaba
por ser liberto pois, segundo a sentença, agira não segundo sua própria
vontade, mas para cumprir o vaticínio de Apólo. O fato, todavia, gera uma
nova consequência: as Eríneas sentem-se absolutamente lesadas em face do
resultado que permitira Orestes purificar-se de um crime de sangue.
Buscando evitar que a cólera das potentes Eríneas desabe sobre os gregos,

2 O Antigo Testamento, Êxodo 21: 24.

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Atena intervém uma segunda vez, e lhes garante uma posição de honra: elas
não precisam mais vingar os crimes de sangue, atormentar os mortais, e
deixarão de ser conhecidas como Erínias para passarem a se chamar
Eumênides (as Benevolentes), tendo como tarefa velar pela prosperidade de
Atenas para que entre os gregos reine a justiça.
O coro, então, ressurge ao final da terceira e última parte para elevar à
glória mais alta os feitos de Atena e reconhecer que, apesar dos sofrimentos, a
vontade de Zeus, cujo “olho tudo vê”, impera e reina entre os gregos, para
sua felicidade.
A trilogia Orestéia, de Ésquilo, bem como Prometeu Acorrentado e
outros de seus textos que sobreviveram ao tempo, e ainda as obras trágicas de
Sófocles, estão no centro do primeiro livro de Nietzsche intitulado O
nascimento da tragédia. Aos vinte e sete anos de idade, Nietzsche sustentara
uma tese estética no mínimo polêmica, mas também inovadora: a tragédia teria
nascido entre os gregos a partir do espírito da música. Diagnóstico disto seria a
função do coro na tragédia. Em primeiro lugar, tal como na trilogia Orestéia, o
coro é sempre o único elemento fixo em qualquer uma das três partes. De fato,
primeiramente aparecem como personagens principais o rei Agamêmnon e sua
esposa Clitemnestra, e ainda Cassandra e Egisto; na segunda parte, os
protagonistas são Orestes e sua irmã Electra, Clitemnestra e seu amante Egisto;
e, na terceira e última parte, toda a ação gira em torno de Orestes, de Apólo e
de diversos deuses. Mas se os protagonistas mudam ao longo da tragédia, em
qualquer uma das partes há sempre este elemento fixo: o coro. Todavia, em que
sentido o coro seria o elemento fixo se, na primeira parte da trilogia, ele é
composto pelos anciãos de Argos; na segunda é um coro constituído por
cativos; e na terceira é formado pelas próprias Erínias ou Eumênides? O jovem
Nietzsche tem, então, uma tese precisa: o coro trágico, no fundo, é um coro
sempre constituído pelos servidores do deus Dioniso.
É com base nesta tese que ele pode afirmar em O Nascimento da
tragédia: “a tragédia surgiu do coro trágico e (...) originariamente ela era só
coro e nada mais que coro” (GT/NT § 7). Para explicar que a tragédia nasce
do coro, e que o coro é constituído pelos servidores de Dioniso, Nietzsche
recorre a uma outra tese: a de que no fundo da natureza existem dois
impulsos, os quais podem ser chamados de apolíneo e dionisíaco; impulsos
que estariam presentes no homem na medida em que ele é filho da natureza.
Por meio de uma analogia com o sonho e a embriaguez, o jovem professor
da Basiléia vem, então, explicar o que compreende por apolíneo e dionisíaco.

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O impulso apolíneo é como o sonho: ele produz uma aparência de realidade,


mas não é a própria realidade. Em outras palavras: aquele que sonha,
enquanto sonha, acredita que seu sonho é uma realidade e a vive
intensamente, mas tão somente até o momento em que desperta. O impulso
apolíneo é fundamentalmente, assim, um formador de imagens, delimitador
de uma aparência que é destruída tão logo o sonho encontre seu fim.
Ora, se num primeiro momento Nietzsche recorre à analogia do
impulso apolíneo com o sonho, num segundo ele busca pensar o que
significa o impulso apolíneo em face da realidade, ou melhor, daquilo que
ele chama de Uno-Primordial (Ur-Eine). Na suposição metafísica do jovem
Nietzsche, influenciado por Kant e Schopenhauer, o mundo da aparência é o
mundo dos fenônemos, e o impulso apolíneo é justamente aquele que cria
em nós a ilusão de que somos um indivíduo. Resgatando um trecho de O
mundo como vontade e representação, no qual Schopenhauer trata do
homem colhido pelo véu de Maia, Nietzsche mostrará que, em face do todo,
da realidade, da “coisa-em-si”, do Uno-Primordial (Ur-Eine), nossa
compreensão de que somos um indivíduo é como um sonho e pertence tão
somente ao mundo da aparência, ou seja, do fenônemo. Para tornar mais
claro, observemos o trecho que Nietzsche cita Schopenhauer3, a respeito da
ilusão de que somos um indivíduo:

“Tal como, em meio ao mar enfurecido que, ilimitado em


todos os quadrantes, ergue e afunda vagalhões bramantes, um
barqueiro está sentado em seu bote, confiante na frágil
embarcação; da mesma maneira, em meio a um mundo de
tormentos, o homem individual permanece calmamente
sentado, apoiado e confiante no principium individuationis
[princípio de individuação]. (GT/NT § 1)”

A contraposição trazida por Schopenhauer entre o mar e o barqueiro


serve, portanto, para mostrar que, diante da realidade do mundo, o homem é
apenas frágil embarcação - algo que sustenta a tese nietzschiana de que a
individuação é como um sonho, pois o “princípio de individuação”, em face
do Uno-primordial, pode ser rompido a qualquer momento. Mas se a
individuação é um sonho, o que é a realidade? Quando o jovem Nietzsche
fala em sua “suposição metafísica”, ele diz que “o verdadeiramente existente

3 Cf. SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Livro IV, L 417, p. 451.

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(Wahrhaft-Seinde) e Uno-primordial” é um “eterno padecente e pleno de


contradição” (GT/NT § 4). Aquilo que é “o verdadeiramente existente”, e que
difere da realidade empírica na qual nós vivemos, pois esta seria sonho, é
definido por Nietzsche, assim, como “eterno padecente e pleno de
contradição”. Ora, para ele, o acesso ao Uno-primordial, ao “eterno
contraditório, pai de todas as coisas” (Idem) dá-se por intermédio de um
outro impulso presente na natureza, o impulso dionisíaco.
Por meio da analogia com a embriaguez, Nietzsche, então, trata do
dionisíaco. A embriaguez é justamente a ocasião em que o homem rompe
com o “princípio de individuação” e tem um sentimento místico de unidade.
É o momento em que é rasgado o “véu de maia” que separa homem e
homem, e homem e natureza. Com o impulso dionisíaco, o homem é
remetido outra vez à natureza, e prova disto é que os adoradores e seguidores
de Dioniso têm no sátiro a sua figura central. O sátiro, por ser uma mistura
de animal e homem, está em ligação com a própria natureza, e por
intermédio de sua voz, quem fala é a própria natureza - da qual o homem se
alheou devido ao princípio da individuação, em decorrência do impulso
apolíneo. Em suma: o dionisíaco vem romper com as fronteiras do
indivíduo, aquelas tão bem vigiadas durante o estado apolíneo. Ou seja:
enquanto o impulso apolíneo preza pela medida, o dionisíaco é a desmedida.
Em O nascimento da tragédia a tese de Nietzsche consiste em dizer
que estes dois impulsos, tão diferentes entre si, reuniram-se pela primeira vez
com os gregos e geraram a tragédia ática. O Dionísiaco, por certo, fala a
linguagem do “eterno padecente e pleno de contradição”, mas por si só é
destrutivo - tal como eram destruidores os selvagens coros báquicos anteriores
aos gregos, que iam da Ásia Menor até a Babilônia e as sáceas orgiásticas.
Apenas como exemplo: as sáceas orgiásticas, uma festa com duração de cinco
dias, eram conhecidas pela sua “licença sexual, pela inversão de papéis sexuais
entre servos e senhores e pela coroação (...) de um escravo como rei, o qual
era sacrificado ao fim da celebração”4. Os gregos, portanto, com sua força
apolínea, negaram o que havia de bárbaro e selvagem no impulso dionisíaco,
mas souberam reconhecer, em face mesmo da dura realidade em que viviam,
que nenhum indivíduo, e por conseguinte nem mesmo um herói, escapa do
processo de aniquilamento e dissolução, tão característicos do próprio
Dioniso - o qual, todavia, é capaz de renascer da destruição e do

4 Cf. nota 24 da tradução de Guinsburg para O nascimento da tragédia.

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aniquilamento. De fato, uma das versões da lenda conta que o deus Dioniso,
filho de Zeus e Perséfone, foi esquartejado e devorado pelos Titãs após nascer,
mas que Atena salvou seu coração e o levou até Zeus, que o engoliu e deu
origem ao novo Dioniso (Zagreu: desfeito em pedaços). E é justamente a
simbologia deste renascimento de Dioniso, segundo a qual ele renasce da
destruição, que os gregos souberam carregar para dentro da tragédia. É assim
que, para Nietzsche, a tragédia nos deixa com um “consolo metafísico (...) de
que a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a mudança das aparências
fenomenais, é indescritivelmente poderosa, e cheia de alegria; esse consolo
aparece com nitidez corpórea como coro satírico, como coro de seres
naturais, que vivem, por assim dizer indestrutíveis, por trás de toda
civilização, e que, a despeito de toda mudança de gerações e das vicissitudes
da história dos povos, permanecem perenemente os mesmos” (GT/NT § 7).
A partir destes elementos, a tese nietzschina de que, inicialmente, a
“tragédia era só coro, e nada mais que coro”, ganha em clareza. O poeta
trágico, o qual para Nietzsche “é ao mesmo tempo um pensador religioso”
(GT/NT § 9) aproveitou o coro dionísíaco que entoa todos os seus cantos em
homenagem ao seu deus, e a partir dele desenvolveu a tragédia. Na verdade,
segundo Nietzsche, os antigos gregos compreendiam a cena e o desenrolar da
ação trágica não como algo existente em si, mas como visão do coro trágico.
É o coro trágico quem produziria, em imagens apolíneas, todo o desenrolar
da cena. No caso, portanto, da trilogia Orestéia, a única realidade em si é o
coro trágico, e toda ação trágica, com o assassinato de Agamêmnon, e depois
com o matricídio que Orestes vem a cometer, é apenas visão do coro trágico
para mostrar que os indivíduos, e entre eles os heróis, nada são
individualmente diante do vir-a-ser do mundo, mas que apesar do destino
trágico ao qual estão submetidos, a vida sempre renasce a partir da
destruição. Deixemos a palavra com o próprio Nietzsche:

“(...) a cena, junto com a ação, eram pensadas no fundo e


originariamente apenas como visão, que a única ‘realidade’ é
aí precisamente o coro, o qual gera a partir de si mesmo a
visão e fala dela com todo o simbolismo da dança, da música
e da palavra. Esse coro contempla em sua visão o seu senhor e
mestre Dioníso e é por isso eternamente o coro servente: ele
vê como este, o deus, padece e se glorifica, e por isto ele
próprio não atua. Nessa posição de absoluto servimento em

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face do deus, o coro é pois, literalmente, a mais alta expressão


da natureza e profere, como esta, em seu entusiasmo,
sentenças de oráculo e de sabedoria; como compadecente ele é
ao mesmo tempo o sábio que, do coração do mundo, enuncia
a verdade. (GT/NT § 8).”

Um livro publicado há poucos anos, intitulado A biblioteca pessoal


de Nietzsche (Nietzsche Persönliche Bibliothek)5, é não somente capaz de nos
dar uma idéia do quanto Nietzsche conhecia bem as tragédias gregas
(ademais tinha exemplares diversos da obra de Ésquilo, por exemplo, em
grego, latim, alemão), mas também torna possível esclarecer um ponto
importante quanto a retomada do tema de Dioniso em sua filosofia. É
importante lembrar que depois da publicação de O nascimento da tragédia, e
do escrito inédito A visão dionisíaca do mundo, Nietzsche faz parcas
referências à Dioniso ou ao dionisíaco tanto nos póstumos quanto na obra
publicada, sendo que somente a partir de 1882, na época de elaboração de
Assim falava Zaratustra, Dionísio começa, lentamente, a surgir novamente
em suas anotações. Ora, em A biblioteca pessoal de Nietzsche, podemos ver
que no ano de 1884, Nietzsche compra uma obra que ele já conhecia no
início da década de 1870, época de gestação de O nascimento da tragédia,
uma obra na qual Creuzer tratava de Dioniso6. Não que a concepção que
Nietzsche tem de Dioniso seja aquela de Creuzer, mas o fato dele comprar
esta obra indica, tão somente, o momento em que ele retoma de forma
intensa e madura sua reflexão sobre o dionisíaco.
Na obra publicada, a retomada da reflexão em torno de Dioniso, vai
se fazer sentir já no prefácio de 1886 ao Nascimento da tragédia. É preciso
dizer, aqui, que os prefácios escritos por Nietzsche em 1886, para cada um de
seus livros, significam para ele um encerramento de contas com a “literatura”
que ele havia produzido até Assim falava Zaratustra7. Zaratustra, é
importante observar, não ganha um prefácio – talvez porque Nietzsche
julgasse que nesta obra estava condensada toda a sua filosofia madura, ou

5 Nietzsche Persönliche Bibliothek, herausgegeben von Giuliano Campioni, Paolo D’Iorio, Maria Cristina
Fornari, Francesco Fronterotta und Andrea Orsucci. Walter de Gruyter, Berlin-New York: 2003.
6 CREUZER, F. Symbolik und Mythologie der Alten Völker; Besonders der Griechen von Friedrich

Creuzer. Leipzig & Darmstadt: Leske, 1843.


7 Neste sentido ver a correspondência de Nietzsche entre 1886 e 1888, tal como em NIETZSCHE, F.

Dernières Lettres. Préface de Jean-Michel Rey. Traduit de l’allemand par Catherine Perret. Editions
Rivages, Paris, 1989.

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seja: o pensamento do eterno retorno, o conceito de vontade de potência, a


problemática do niilismo e da morte de Deus, a concepção do além-do-
homem. De posse de sua filosofia madura, e distante das concepções de Kant
e Schopenhauer que guiaram parte de sua reflexão em O nascimento da
tragédia, o autor do Zaratustra possui uma outra compreenção, em 1886,
sobre o fenômeno do dionisíaco. É assim que, ao prefaciar o seu primeiro
livro, ele busca resgatar aquilo que estava no centro de suas investigações
juvenis, ao perguntar: “Que significa, precisamente entre os Gregos da
melhor época, da época mais forte e mais corajosa, o mito trágico? E o
prodigioso fenômeno do dionisíaco? E, nascido dele, a tragédia?” (GT/NT,
“Prefácio”, § 1). Em 1886, já não é mais como problema estético que
Nietzsche se coloca diante destas difíceis questões, tal como as considerava
em 1871. Na verdade, ele reconhece que, em seu “problemático livro” de
juventude, escrito numa linguagem balbuciante, baseado em “fórmulas
schopenhauerianas e kantianas”, o problema central já era o problema do
valor da existência (Werth des Daseins).
O problema do valor da existência é, sem dúvida, o centro em torno do
qual sempre orbitou a reflexão nietzschiana, embora durante muito tempo, e
para o próprio Nietzsche, este não fosse um tema claro. Quando nos detemos,
todavia, na questão da “morte de Deus” e do niilismo, na concepção do além-do-
homem, e fundamentalmente no pensamento do eterno retorno do mesmo
como uma nova medida de valor, é possível, então, perceber que todas estas idéias
nucleares da reflexão nietzschiana giram em torno do problema do valor da
existência - o qual, de certa forma, já ocupava os escritos juvenis de Nietzsche.
Insatisfeito desde muito cedo com a resposta aportada pelo cristianismo e pela
tradição filosófica, no prefácio tardio ao Nascimento da tragédia Nietzsche
reconhece que, na verdade, o deus Dioniso vinha já, ali, oferecer-se como a
resposta mais afirmativa para a questão do valor da existência. E é por esta razão
que, neste tardio prefácio ele vem dizer que em sua obra de juventude:

“(...) falava em todo caso (...) uma voz estrangeira, o discípulo


de um ‘deus’ ainda ‘desconhecido’ (...); havia ali um espírito
pleno de exigências desconhecidas, ainda sem nome, uma
memória transbordante de questões, de experiências, de coisas
desconhecidas, na margem das quais o nome de Dioniso
vinha se inscrever como um ponto de interrogação
suplementar (GT/NT, “Prefácio”, § 3).”

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Maduro, Nietzsche reconhece a si mesmo como um discípulo de


Dioniso. Modificando o subtítulo de O nascimento da tragédia a partir do
espírito da música, para O nascimento da tragédia ou Helenismo e
pessimismo, ele passa da tragédia grega enquanto problema estético, para o
que foi sendo gestado ao longo dos anos em seu pensamento: a filosofia
trágica. Mudando o eixo de sua investigação, ele pode, então, precisar melhor
as questões que, no fundo, guiavam sua obra de juventude:

“O que é o dionisíaco? (...) a questão fundamental é que


relação entretiam os gregos com a dor? (...) de onde provém,
então, a demanda (...) do horrível, esta maneira franca e
rigorosa que tem o antigo heleno de querer o pessimismo, o
mito trágico, a imagem de tudo aquilo que há de terrível, de
cruel, de enigmático, de destruidor, de fatal no fundo da
existência – de onde proviria, então, a tragédia? Talvez do
prazer, da força, de uma saúde transbordante, de uma
plenitude excessiva? E qual é, então, fisiologicamente falando,
a significação deste delírio de onde saiu a arte trágica tanto
quanto a arte cômica, o delírio dionisíaco? (...) e se os gregos,
precisamente em toda a riqueza de sua juventude, tivessem
querido o trágico, se eles tivessem sido pessimistas? (GT/NT,
“Prólogo”, § 4).”

Depois deste prefácio de 1886, no qual Nietzsche diz que o verdadeiro


nome do Anticristo é Dioniso (Cf. GT/NT, “Prólogo”, § 5), a retomada da
reflexão em torno de Dionísio será cada vez mais intensa, estando presente
sobretudo no Crepúsculo dos Idolos e em Ecce homo - a autobiografia
filosófica que é justamente encerrada com a fórmula “Dioniso contra o
crucificado”. Que Dioniso tenha sido o deus grego que conduziu a reflexão
nietzschiana em seu primeiro livro, e que o último livro de Nietzsche tenha
sido intitulado “Ditirambos de Dioniso”, é mais do que significativo para
perceber como, a partir de um mergulho na tragédia grega de Ésquilo e
Sófocles, o pensamento do filósofo amadureceu para a concepção de uma
filosofia trágica. Além disto, na maior parte dos póstumos em que trata do
eterno retorno e da vontade de potência, bem como em rascunhos de
estrutura das obras que estava gestando neste período, o nome de Dioniso
sempre está presente, tal como no projeto em quatro livros para a obra “A

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transvaloração de todos os valores”, cujo quarto e último livro seria


intitulado justamente “Dioniso: filosofia do eterno retorno”.
E última análise é importante dizer que aquilo que constitui a
filosofia trágica não pode ser pensado sem esta interligação entre Dioniso e o
pensamento do eterno retorno. Afinal, em Ecce Homo, Nietzsche escreve que
o pensamento do eterno retorno é “a mais elevada forma de afirmação que se
pode em absoluto alcançar” (EH/EH, “Assim falava Zaratustra”, § 1), e,
paralelamente, ele também diz no mesmo livro: “no símbolo dionisíaco é
alcançado o limite último da afirmação” (EH/EH, “O nascimento da
tragédia”, § 1). Que a filosofia de Nietzsche seja uma filosofia afirmativa,
trágica, e que nela Dioniso e o pensamento do eterno retorno estejam
confundidos, é algo que transparece quando nos detemos em um texto
póstumo do ano de 1886. Deixemos a palavra final, assim, com o próprio
filósofo trágico:

“E sabeis o que é para mim o “mundo”? Devo mostrá-lo a vós


em meu espelho? Este mundo: uma monstruosidade de força,
sem início, sem fim, uma firme, brônzea grandeza de força,
que não se torna maior, nem menor, que não se consome,
mas apenas se transmuda, inalteravelmente grande em seu
todo, uma economia sem despesas e perdas (...) um jogo de
forças e ondas de forças, ao mesmo tempo um e múltiplo,
aqui acumulando-se e ao mesmo tempo ali minguando, um
mar de forças tempestuando e ondulando em si próprias,
eternamente mudando, eternamente recorrentes, com
descomunais anos de retorno (...) esse meu mundo dionisíaco
do eternamente-criar-a-si-próprio, do eternamente-destruir-a-si-
próprio. (XI, 38 [12] – junho - julho de 1886).”

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Referências Bibliográficas

CREUZER, F. Symbolik und Mythologie der Alten Völker; Besonders der Griechen
von Friedrich Creuzer. Leipzig & Darmstadt: Leske, 1843.

BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida. Edição Revista e Corrigida.


Barueri/SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.

ESCHYLE. Agamemnon, Les Choéphores, Les Euménides. Édition Bilíngüe (grec-


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________. Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe. Berlin/Munique, Walter de


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________. Dernières Lettres. Préface de Jean-Michel Rey. Traduit de l’allemand par


Catherine Perret. Editions Rivages, Paris, 1989.

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Dissertatio, UFPel [29, 2009] 249 - 261

________. Nietzsche Persönliche Bibliothek, herausgegeben von Giuliano Campioni,


Paolo D’Iorio, Maria Cristina Fornari, Francesco Fronterotta und Andrea Orsucci.
Walter de Gruyter, Berlin-New York: 2003.

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. Tradução,


apresentação, notas e índices Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2005.

E-mail: luiseduardorubira@gmail.com

Recebido: 04/2009
Aprovado:julho/2009

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